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A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO MODELO DE AÇÃO ESTRATÉGICA À PREVENÇÃO DO CRIME Adriano Mendes Barbosa; Delegado de Polícia Federal; Mestre em Defense Analysis pela Naval Postgraduate School (NPS), Califórnia, EUA, grau revalidado pela Universidade de Brasília (UnB) como Mestre em Relações Internacionais; Especialista em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV); Professor Convidado do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança da Universidade de Brasília (NEVIS/UnB) para o Curso de Pós-Graduação em Gestão de Segurança Pública na Disciplina Inteligência Policial; Professor Voluntário da Universidade de Brasília (UnB) para a Graduação em Direito na Disciplina Investigação Criminal e Polícia Judiciária; Professor Titular da Escola Superior de Polícia da Polícia Federal para o Programa de Pós-Graduação em Ciências Policiais nas Disciplinas Gestão Estratégica da Investigação Criminal e Terrorismo Internacional; Professor Convidado de Cursos Preparatórios para Concurso nas Disciplinas Direito Penal e Direito Processual Penal; Orientador de Monografias nas temáticas da Criminalidade Organizada, Terrorismo Internacional, Inteligência Policial e Gestão da Investigação Criminal; Escritor; Conferencista; Articulista e Palestrante sobre as temáticas do Terrorismo Internacional, Criminalidade Organizada, Investigação Criminal e Inteligência Policial, Membro da Comissão Editorial da Revista Brasileira de Ciências Policiais, ISSN 2178-0013 e da Revista de Segurança Pública e Cidadania, ISSN 1983-1927. I - Dois Lados da Mesma Moeda O Brasil enfrenta, hoje, um momento histórico que demanda ações estatais mais contundentes na seara da segurança pública. Isso, nos três níveis de poder, vale dizer local (Município), regional (Estado) e federal (União). Notadamente nos grandes centros urbanos pátrios, sem se olvidar das cidades do imenso interior brasileiro, o cidadão e cidadã brasileiros se enxergam acuados por atos de violência por todos os lados. Tal estado de coisas permeia todos os estratos sociais e todos os nichos da pólis. Das 1/14
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A Construção de Um Novo Modelo de Ação Estratégica ÀàPrevenção do Crime

Feb 22, 2023

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Page 1: A Construção de Um Novo Modelo de Ação Estratégica ÀàPrevenção do Crime

A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO MODELO DE AÇÃO ESTRATÉGICA ÀPREVENÇÃO DO CRIME

Adriano Mendes Barbosa; Delegado de Polícia Federal; Mestre em DefenseAnalysis pela Naval Postgraduate School (NPS), Califórnia, EUA, graurevalidado pela Universidade de Brasília (UnB) como Mestre em RelaçõesInternacionais; Especialista em Administração Pública pela FundaçãoGetúlio Vargas (FGV); Professor Convidado do Núcleo de Estudos sobreViolência e Segurança da Universidade de Brasília (NEVIS/UnB) para oCurso de Pós-Graduação em Gestão de Segurança Pública na DisciplinaInteligência Policial; Professor Voluntário da Universidade de Brasília(UnB) para a Graduação em Direito na Disciplina Investigação Criminal ePolícia Judiciária; Professor Titular da Escola Superior de Polícia daPolícia Federal para o Programa de Pós-Graduação em Ciências Policiaisnas Disciplinas Gestão Estratégica da Investigação Criminal e TerrorismoInternacional; Professor Convidado de Cursos Preparatórios para Concursonas Disciplinas Direito Penal e Direito Processual Penal; Orientador deMonografias nas temáticas da Criminalidade Organizada, TerrorismoInternacional, Inteligência Policial e Gestão da Investigação Criminal;Escritor; Conferencista; Articulista e Palestrante sobre as temáticasdo Terrorismo Internacional, Criminalidade Organizada, InvestigaçãoCriminal e Inteligência Policial, Membro da Comissão Editorial daRevista Brasileira de Ciências Policiais, ISSN 2178-0013 e da Revista deSegurança Pública e Cidadania, ISSN 1983-1927.

I - Dois Lados da Mesma Moeda

O Brasil enfrenta, hoje, um momento histórico que

demanda ações estatais mais contundentes na seara da

segurança pública. Isso, nos três níveis de poder, vale

dizer local (Município), regional (Estado) e federal

(União).  Notadamente nos grandes centros urbanos pátrios,

sem se olvidar das cidades do imenso interior brasileiro, o

cidadão e cidadã brasileiros se enxergam acuados por atos de

violência por todos os lados.  Tal estado de coisas permeia

todos os estratos sociais e todos os nichos da pólis.  Das

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favelas e subúrbios longínquos, que convivem com o poder

paralelo do tráfico de drogas e hordas de justiceiros, v.g.,

milícias cariocas, às praias e condomínios verticais de

luxo, que são alvo de arrastões e roubos coletivos, a

criminalidade incide sem discriminações.  Assim, a grande

questão que ascende nesses dias de pós-modernidade tropical,

diriam os articulistas internacionais, “the one million dollar

question”, é como arrefecer os níveis de criminalidade nos

centros urbanos brasileiros mergulhados numa espécie de

espiral randômica de violência?

Por óbvio, não existe uma solução mágica ou panacéia,

que por encanto vem à tona e resolve todas as questões que

envolvem os problemas da violência urbana e da

criminalidade.  Em veras, o fenômeno social do crime vem à

baila por diferentes formas e atinge o cidadão de maneira

das mais diversas.

Há, portanto, o crime organizado que leva a efeito

atividades criminosas, tais como roubos a banco, seqüestros

pré-ordenados (planejados e com alvo – vítima – adredemente

estabelecido), lavagem de capitais, tráfico de armas e

drogas.  Tais crimes atingem os cidadãos comuns de certa

forma, mas não em base de rotina, chegando à grande parcela

da população através da imprensa (em regra sensacionalista),

incidindo muito mais no campo das idéias, engendrando em

corações e mentes a chamada “sensação de insegurança”.  Essa

espécie de atividade delituosa constitui-se em verdadeiro

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empreendimento onde as ações criminosas são levadas a

efeito, de forma sistemática, por uma estrutura

organizacional formal, com o escopo de auferir lucro.  Essa

estrutura organizada criminosa se diferencia, portanto, das

atividades criminosas ordinárias que ocorrem sem relevante

suporte organizacional.  Paul Lunde (2004, p.8) afirma o

seguinte sobre crime organizado:

Organized crime is an economic activity, and differs fromstreet gangs (…) not just in the degree of organization andpurpose, but because organized crime accumulates capitaland reinvests it.  It is this that differentiates organizedcriminal groups from street gangs and “unorganized”criminals.

Acrescenta ainda Lunde:

Organized crime, however defined, shares a fewcharacteristics, whateevr the differences among individualgroups and the cultures that produced them. They have incommon: durability over time, diversified interests,hierarchical structure, capital accumulation, reinvetment,access to political protection, and the use of violence toprotect their interests.

Noutro giro, há a atividade criminosa que atinge os

cidadãos e cidadãs em seu cotidiano, trazendo insegurança,

por assim dizer, in concreto, às ruas das cidades, notadamente

aquelas com grande conglomerado populacional.  Aqui há o

furto, o roubo, o dito “seqüestro-relâmpago”, o latrocínio,

o estupro. Crimes que atingem os munícipes nas suas vidas

privadas, fazendo de cada um, em certa medida, uma vítima em

potencial.  E toda essa atividade criminosa tem seu eco

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amplificado pela parcela da imprensa que tem no crime e nas

tragédias cotidianas a sua matéria-prima.  James Q. Wilson

(1984) chama tais crimes de “predatory crime” (crimes

predatórios), e R.T Naylor (2004, p.15), neste diapasão,

traz o seguinte sobre tal espécie de atividade criminosa:

Organized crime groups specialize in a type of offense thatis different from that of ordinary criminals.  Commoncriminality is mostly associated with predatory crimes –burglary, armed robbery, ransom kidnapping, and the like– acts that involve forcible or fraudulent redistribution ofwealth, are episodic in nature, and require little long-termsupporting infrastructure.

Com efeito, essas duas formas de atividade criminosa

exigem modos diversos de abordagem, prevenção e repressão. 

No presente estudo o segundo tipo de crime, o predatório,

que serve de combustível para as angústias e fobias urbanas

é o objeto de análise, isso ao lado de uma resposta

estratégica plausível para sua neutralização.

II - Predador e Presa

A realidade das ruas de cidades como Rio de Janeiro e

São Paulo é traduzida pelos meios de comunicação, e por via

de conseqüência, absorvida pelo inconsciente coletivo, tal

qual a máxima de Thomas Hobbes em seu Leviatã (1651):

“Bellum omnia omnes” (a guerra de um contra todos), o homem é

o lobo do homem.  E onde há homens mais lobos que outros

homens.  O brasileiro médio, então, se vê invadido por esse

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sentimento de fragilidade ao perceber que as autoridades

constituídas não são hábeis a lhe prover a segurança que lhe

é direito fundamental contemplado na Lex Excelsa (1988), ex vi

art. 5°, caput.

Nesse passo, a violência é um dos temas centrais da

vida do brasileiro neste início de terceiro milênio.  Dados

de pesquisa de opinião pública nacional composta pelos

índices de avaliação e de expectativa, com as variáveis

emprego, renda, saúde, educação e segurança pública,

promovida pela Confederação Nacional dos Transportes (CNT) e

a empresa SENSUS Pesquisa e Consultoria, de Abril de 2007,

apontam que, das 2000 pessoas entrevistadas, 90,9%

consideram que a violência aumentou no país, enquanto 5,2%

disseram que não aumentou.  Tal pesquisa ouviu moradores de

136 municípios de 24 estados, entre os dias 2 e 6 de abril,

possuindo margem de erro de 3% para mais ou para menos.  Vê-

se, então, que a ampla maioria da população está submersa na

certeza de que o crime tomou conta das ruas (Barbosa, 2003).

Essa certeza ascende da constatação de que o ambiente

urbano onde se vive não é seguro.  Claro que esse cenário

ganha dimensões hiperbólicas, quando projetado sobre a

opinião pública através da mídia. Todavia é fato que não

pode ser arredado por argumentos.  As ruas das grandes

cidades já não são lugares onde se transita com

tranqüilidade e sem temer pela própria segurança.  Seja a

pé, seja em veículos, todos estão sujeitos a ser vítimas de

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uma abordagem criminosa.  A próxima esquina ou o próximo

semáforo pode esconder um delinqüente pronto a se lançar

contra o patrimônio ou incolumidade física do incalto

transeunte.  Poucos são os que vivem em grandes

conglomerados urbanos que não têm em seu círculo familiar ou

de amizade alguém que já foi vítima de um predador urbano.

Casos como o do menino João Hélio, morto em fevereiro

de 2007, como num ritual de brutalidade, fazem o ambiente

urbano ter cores e nuances de violência, cada vez mais forte

e mais viva. Fatos que tais fomentam a sensação de

insegurança e passam a ser referência para o cidadão comum

em termos de circulação nos espaços públicos.  Com efeito,

fobias urbanas como síndrome do pânico e stress ascendem,

fazendo com que praças, parques, calçadas e ruas passem a

ser sinônimo de locais inseguros, onde o predador está

sempre à espreita.

III - O Problema

Nessa equação o poder público se apresenta como um

componente que falha ao promover a sua participação.  No

contexto específico dos crimes predatórios, o papel da

polícia, na sua dimensão preventiva, se agiganta.  No Brasil

a instituição policial que desenvolve tal papel é a Polícia

Militar (PM) dos estados.  Não obstante, o que se vê é que o

modelo estratégico policial adotado alhures pelas PMs,

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baseado no que se pode chamar de prevenção-reativa, onde a

polícia em regra somente age quando mobilizada por canal de

comunicação, não tem alcançado os resultados esperados de

prevenção criminal e arrefecimento da violência urbana. Em

outras palavras, a estratégia primordial adotada pelas

Policias Militares do Brasil, que se pode chamar estratégia-

190, tem se mostrado desconectada com as demandas sociais de

segurança.

Outrossim, há de se frisar que essa abordagem

estratégica policial não é algo, obviamente, que só se vê no

Brasil.  Em verdade, trata-se de uma espécie de epidemia

social, isso para usar o Tipping Point de Malcolm Gladwell

(2002), onde modelos de conduta são repetidos

independentemente do contexto em que são inseridos.  O

referencial para esse modelo estratégico é o 911 americano.

Catherine M. Coles (2002) explica que foi a idéia de

polícia preventiva como uma agência do sistema criminal,

focada tão-somente no combate da criminalidade, que isolou a

polícia da população e a levou para um entendimento de que

seu papel social haveria de ser fundado na realização de

prisão dos que cometem crimes. Coles defende que dessa visão

estreita do papel social da polícia é que ascendeu um

cultura policial voltada tão-somente para a guerra contra o

crime.  Coles e George L Kelling (1997, p.88) declinam o

seguinte sobre esta cultura policial:

Finally, a police “culture” evolved that viewed wholesegments of society – especially inner-city minority youth –

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as “the enemy”. Most police have middle-class origins andare unfamiliar with minority neighborhoods. Their traininghas focused on the problems and dangers of such areas,but they know little else about them.

Concluindo, eles dizem:

Police saw themselves as warriors, defending the goodagainst the bad, the problem was, with few contacts inmany local communities police had a difficult time sortingout the troublemakers from ordinary citizens.

No Brasil tal estado de coisas é muito mais evidente

devido ao caráter paramilitar das polícias ostensivas de

prevenção.  Aqui o policial é soldado e o transgressor da

lei é o inimigo, isso sem exageros nem metáforas.  Mais

ainda, a formação militar do policial, em regra, obnubila a

sua formação cidadã.  Assim, exigências administrativas

(militares) como a prestação de continência e as instruções

de Ordem Unida passam a ter a mesma importância, e por vezes

maior relevância, no processo de formação do policial

(soldado), do que disciplinas que versem sobre o tratamento

com urbanidade de cidadãos e o papel social do policial no

contexto político-social em que está inserido.  Mais ainda,

o cidadão é visto como o “paisano” e o delinqüente é o

“inimigo” que se deve combater até às últimas

conseqüências.  Ocorre que não há guerra alguma em curso.  O

crime é um fenômeno social que necessita de tratamento

preventivo (muito além do meramente policial) e de ação

repressiva.  Não há batalhas (no sentido militar) a serem

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vencidas nem bandeiras inimigas a serem arreadas. Neste

diapasão, Ricardo Balestreri (2002, p.68) ensina o seguinte:

A polícia existe para proteger o cidadão.Essa mesclagem ideológica que, no períodomilitar “pedalou” a porta dos fundos dapolícia, gerou muitas mazelas que até hojecarrega a atividade policial.

Conclui Baslestretri:

O que tem a ver polícia, mesmo que carregueo termo “ militar”, com as Forças Armadas,no contexto de uma democracia estável?Absolutamente nada do ponto de vista dafuncionalidade do dia-a-dia. São lógicasdistintas, são propostas distintas, sãodoutrinas distintas.

A conseqüência dessa cultura de guerra contra o crime é

que o papel da Polícia Militar na prevenção de crimes fique

restrita ao policiamento por meio de ação rápida de

viaturas, que conferem, em princípio, mais agilidade às

rádios-patrulha, e pronta resposta ao evento criminoso

através do sistema 190. Neste sentido, não ascende como

necessário o policiamento das ruas e ruelas à pé. O

policial, assim, não deve ser importunado por transeuntes e

moradores, vale dizer os cidadãos, para prestar informações

ou ouvir os problemas da vizinhança.  Nessa cultura, que

conduz a uma opção estratégica, a polícia tem que tão-

somente neutralizar ações criminosas, ou seja, prender

“elementos” suspeitos. Ela não tem que estar preocupada com

questões outras vinculadas à qualidade de vida da

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vizinhança, por exemplo.  O policial, desse modo, há de

estar preocupado com uma resposta rápida à ação do inimigo

(criminoso), ação que só pode ser alcançada através de

mobilidade e comunicação.  Mas comunicação filtrada e

difundida pelas centrais de comunicação e controle

operacionais, que ditam onde, como e quando os policiais nas

ruas devem agir.  Segundo o escólio de Cole e Kelling (1997,

p.90):

Well integrated into the reform strategy and tactics, rapidresponse keeps officers in cars and under centralizedcontrol, focuses police activities on city-wide priorities, iscongruent with interception and preventive patrol, and isnot intrusive neighborhood life – since by definition it isreactive.

Neste sentido, o centro de gravidade para as ações

policias preventivas passa a ser a de respostas de

emergências anunciadas pelos sistema 190 e atendidas por

deslocamento de viaturas distribuídas adredemente pelas

circunscrições das unidades (batalhões) e subunidades

independentes (companhias) da PM.  Nesse sentido, o policial

atua em determinada área, mas só tem contato com a mesma

através dos vidros de sua viatura e dos mapas postos na sala

de instrução de sua organização militar (OM).  O policial,

com efeito, circula pelo bairro, mas só estabelece contato

visual e ascéptico com os “paisanos” (moradores e

transeuntes), sem tempo para uma saudação amistosa.  São

como dois seres de mundos diferentes e distantes: o policial

guerreiro combatente do crime e o cidadão paisano, vítima

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indefesa do criminoso.  É claro que há iniciativas, como o

da Polícia Comunitária.  Contudo iniciativas que tais são

exceções que só confirmam a regra.  A questão é maior do que

a necessidade de iniciativas louváveis e isoladas, como os

projetos de policiamento comunitário.  A polícia preventiva

precisa fincar raízes profundas na comunidade e ter um

policial com formação cidadã, especializado e qualificado em

segurança pública e não em combate militar urbano.

Noutro giro, esse modelo preventivo e reativo de

respostas emergenciais não tem conseguido, em regra, atender

às demandas sociais de segurança.  O isolamento da polícia

preventiva em seus quartéis e por trás de seus rituais e

cultura militares, ao lado da estratégia policial de

resposta emergencial a situações que envolvem a prática

delituosa, coloca o cidadão em um mundo distante da sua

polícia e faz com que sua credibilidade e imagem sejam

debilitadas.  Dessa forma, para os policiais a conseqüência

dessa opção estratégica é o isolamento que os leva a

interagir com a população somente diante da perpetração de

crime de alta indagação e através de acionamento de central

de comunicações. Com efeito, os policiais passam a ser

“estrangeiros” na sua área física de atuação profissional. E

como estrangeiros sem vínculos psicológicos e/ou morais com

as pessoas e os fatos que povoam o território em que eles

atuam, os policiais passam a trilhar meandros que podem

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conduzi-los a lançar mão de métodos coercitivos de ação como

o uso abusivo da força e a intimidação da população local.

O cidadão, assim, não vê suas demandas de segurança

atendidas.  As ruas dos bairros, as alamedas dos centros

comerciais, continuam a ser lugares de angústia.  O policial

está na sua viatura atento ao rádio e à espera do

acionamento do COPOM (Central de Operações da Polícia

Militar) para mais um confronto com o inimigo.  O cidadão

que mora no bairro e circula nas calçadas, conhecendo e

sentindo na pele os efeitos da criminalidade na sua

comunidade ou local de trabalho, não é consultado ou ouvido

pela polícia em relação às suas necessidades de segurança. 

Se não for para “denunciar” um crime através do 190, o

cidadão comum não tem voz junto à polícia que promove a

prevenção do crime.  Contudo o próprio policial não tem

formação ou qualificação para estabelecer contato com o

munícipe, isso para fins de estabelecimento de contato

institucional e prospecção e angariação de informações que

podem otimizar a prevenção do crime na área em que o

policial faz o seu patrulhamento.

O problema que se identifica, portanto, é a

incongruência entre a opção estratégica policial de resposta

de emergência suportada pelo sistema 190 e as necessidades

de segurança da população.  Por óbvio, o sistema 190 é

pertinente como instrumento de comunicação e mobilização de

forças policiais para reação policial ao ato delituoso recém

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praticado ou ainda em curso.  Outrossim, ele é necessário,

mas não é suficiente; e não deve ser a pedra angular do

policiamento ostensivo, pois isola a polícia da comunidade e

traz prejuízo à prevenção do crime, fazendo com que ascenda

uma prevenção-reativa.

IV – Resposta: A Construção de Um Novo Modelo de Ação

Estratégica à Prevenção do Crime

Uma alternativa estratégica policial é, portanto,

necessária para enfrentar tal estado de coisas.  E

experiências outras, inclusive internacionais, podem surgir

como referência para que se estabeleça uma abordagem

estratégica em consonância com a realidade brasileira e suas

demandas de segurança.

Ab ovo, há de se esclarecer que aqui não serão

perquiridas questões relativas à necessidade de se

desmilitarizar as polícias preventivas estaduais e o

aperfeiçoamento dos currículos dos cursos de formação e

aperfeiçoamento policiais de praças e oficiais das PMs. 

Isso desvirtuaria o gol do presente estudo. Mais ainda, a

corrente análise não se lança em empreitada para fins de se

abordar com profundidade a necessidade de mudança de cultura

coorporativa das PMs - vale dizer, da cultura de caserna.  O

foco é centrado em uma proposição estratégica alternativa

que, por certo, necessita de uma adaptação mínima de postura

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organizacional para ser implementada com sucesso.  Assim, a

superação de alguns dos paradigmas que circundam e sustentam

a suso referida cultura é necessária.  Assim não sendo,

abordagens como as iniciativas de polícia comunitária serão

sempre algo lateral e não a inauguração de uma nova era de

policiamento preventivo.

O referencial teórico utilizado em prol da sustentação

da alternativa estratégica aqui apresentada é a chamada

“Broken Windows Theory” (teoria das janelas quebradas),

idealizada por James Q. Wilson e George L. Kelling (1984).

Durante a década de 1980 a prefeitura de Nova Iorque

implementou a chamada “Broken Windows Theory”.  Tal teoria foi

estabelecida pelos criminalistas e pensadores da atividade

policial, James Q. Wilson e George L. Kelling e tem como

objetivo reduzir a incidência de atividades criminosas em

espaços urbanos.  O cerne de tal teoria está fundamentada na

seguinte lógica: comportamentos em espaços urbanos que

inobservam a lei e normas de conduta dão causa a um ambiente

social propício a prática de crimes. Logo, a repressão de

tais condutas, mesmo as de menor monta, como pichações e

mendicância, hão de ser prevenidas e reprimidas. Aqui a

polícia age em coordenação e cooperação com órgãos públicos

que cuidam da assistência social. Aqui a polícia é mais que

uma agência pública que combate o crime ou que previne o

crime com reação. Policiamento, segundo tal teoria, é

entendido como a prestação de um serviço público que

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corrobora com um ambiente social seguro e de qualidade.

Segundo o escólio de Coles e Kelling (1997, 97):

There is growing evidence to suggest that police attentionto "quality-of-life" issues and low-level crimes,, making useof tactics significally at variance with 911 policing, mayhave a significant impcat in lowering incidence rates ofindex crimes. For example in New York City, as of June 30,1995, the rate of reported murders by handgun was down40.7 percent from the previous era, largely attributable,according to federal and local officials, to "quality-of-life"enforcement by the police.

Neste sentido, o que se propõe é que haja uma mudança

de abordagem estratégica policial, no que concerne à

prevenção do crime, isso, de um estágio de prevenção reativa

para prevenção propriamente dita. E tal prevenção é

desenvolvida com a aproximação do policial com a comunidade

em que ele está inserido, enquanto guardião da lei e da

ordem. Com essa aproximação física, a partir da introdução

de uma visão cidadã de segurança pública na formação e

qualificação dos policiais, o policial desembarca de sua

viatura e ocupa de forma efetiva o espaço urbano. Assim, com

a presença física e o contato humano do policial com os

moradores e transeuntes das ruas e calçadas do agrupamento

urbano, o policial pode se antecipar à prática criminosa e

ter no cidadão uma valiosa fonte de informações que pode lhe

indicar, por exemplo, a presença suspeita de indivíduos que

transitam no bairro.

Todavia a ação policial é necessária, mas não é

suficiente para a prevenção do crime. Ao lado da atividade

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preventiva policial, é preciso que o Estado atue na dimensão

social dos problemas urbanos, fazendo com que o espaço

urbano deixe de ser “locus amoenus” para atividades que

desrespeitem regras de conduta urbana que conduzem à prática

de ações delituosas. Isso, pois, o desrespeito a normas de

conduta (mesmo as de pequena monta) em centros urbanos induz

a um ambiente propício à perpetração de crimes. Em outras

palavras, um ambiente urbano permeado por condutas que

trazem desordem, como sem-tetos que urinam e defecam nas

ruas, pedintes que abordam transeuntes de forma agressiva, é

porta de entrada de condutas criminosas.

Por conseguinte, o poder público, tanto o estadual,quanto o municipal, há de agir na dimensão da infra-estrutura urbana e da assistência social para promoverinclusão social e construção de um espaço urbano queproporcione a elevação da qualidade de vida do munícipe e,por conseguinte, a elevação de sua auto-estima. Em verdade,qualquer estudo profícuo na seara da segurança públicaalcança facilmente conclusões de que as ações estatais decombate à violência urbana não podem se restringir à searapolicial. Em verdade, as ações de polícia são um doselementos que dão suporte às iniciativas estatais na área dasegurança, mas isso não é a solução, por assim dizer, mágicado problema da alta incidência dos crimes predatórios e daconseqüente violência urbana desenfreada.

Em verdade, quando se transfere toda a responsabilidadeda segurança pública às instituições policiais, o que se fazé uma tentativa de escamotear as responsabilidades estatais,nos três níveis da Federação, das demais dimensões do PoderExecutivo. De fato, é muito mais fácil e cômodo jogar sobreos ombros da polícia a culpa pelos desmandos da segurançapública. Como as polícias, por muito tempo -- ditadura

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militar --, foram instrumento de opressão política, nãocontando, assim, com a fidúcia e simpatia da maioria dapopulação (por óbvio, sendo em certa medida culpada tambémpor este estado de coisas devido aos seus desvios de condutalegal e moral cometidas por alguns de seus membros), ficafácil, diria extremamente fácil, transferir aos homens dedistintivos e fardas a culpa pelos seculares equívocos naseara da segurança.

Centrar as culpas pela falha do sistema de segurança, eas respostas estatais para sanar tais equívocos, unicamentenas polícias, é enxergar a verdade somente com um dos olhos.O problema da segurança pública, adstrito à violênciaurbana, advém de falhas da gestão pública na seara socialcomo um todo. A falta de investimentos em educação, aausência de incentivos à profissionalização de jovens eadultos, a falta de programas de educação desportiva parajovens carentes, a ausência de financiamento, em largaescala, em prol de negócios de pequeno porte para fins degeração de renda e emprego, são alguns dos elementosdefectíveis que afetam de maneira crucial a questão dasegurança. Noutro giro, o maior dos problemas sociais queafeta a segurança nos grandes centros urbanos é anegligência, e por fim o abandono dos espaços urbanosinseridos em bolsões de pobreza e miséria. O abandono dessasáreas leva à ascensão do caos urbano, vide as favelascariocas. Ai, então, passa a imperar a baixa-estima social ea ausência da assistência estatal em prol dos necessitados.Nas vielas, valas e lages há a mais completa anomia, valedizer, ausência de lei, imperando o caos e a lei do maisforte. Pior, o vácuo produzido pela ausência do poderpúblico faz nascer o poder paralelo, que substitui o poderestatal constituído e passa a ditar como devem se dar asnormas de conduta social e política dos moradores destesguetos. Assim, a violência passa a viger como a pedraangular da administração do poder criminoso, que agora é opoder de fato e de direito nessas áreas de abandono estatal.

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Com efeito, o Estado e o Município devem agir naprevenção do crime para além da ação policial. Taisentidades estatais hão de desenvolver ações para que seimpeça a ascensão do caos urbano. A recuperação de áreasdegradadas e a manutenção destas áreas em níveis tais queproporcionem um ambiente urbano-social civilizado é um dosprimeiros passos para se superar o caos reinante nas novassenzalas pós-modernas. Se não há a recuperação do espaçourbano, a lei da “selva de pedra” impera. Se as janelasquebradas (“broken windows”) permanecem aos pedaços, semprehaverá mais uma pedra sendo atirada para quebrar a próximajanela. Caos urbano gera violência. Não que isso seja umdeterminismo darwiniano, mas é, com certeza, uma teoria detodo aplicável. Isso, onde a desordem do espaço urbano é avariável independente (VI) e a violência urbana a variáveldependente (VD).

Assim, Estado e Município precisam dar sua cota departicipação no processo de fortalecimento de ações estataisna área de segurança, não somente na dimensão policial. Hãode existir medidas de ação estatal de estatura social.Assim, a intervenção do poder público na seara da segurançapública há de passar pelo resgate das áreas urbanas queabrigam os bolsões de pobreza e miséria, tornado essasregiões um espaço urbano sadio e digno.

Um bom exemplo da plausibilidade dessa proposta

estratégica de prevenção da ação criminosa foi a iniciativa

dos governos estadual e municipal na cidade do Rio de

Janeiro, que levou a efeito a ”Operação Copabacana”. Tal

ação estatal se deu com a retirada de 40 pessoas das ruas,

cinco caminhões apreendidos, cargas interditadas e diversas

multas aplicadas. Foi um verdadeiro mutirão da ordem pública

formado por 50 agentes de órgãos estaduais e municipais de

segurança, fiscalização e assistência social. A Secretaria

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de Segurança Pública do Rio de Janeiro publicou o seguinte

no seu sítio na rede mundial de computadores em 19/04/2007:

Os agentes investiram no diálogo pararemover os moradores de rua. O centro dasvarreduras foi a Avenida Atlântica, um dosprincipais pontos turísticos do Rio deJaneiro. Alguns moradores de rua resistiramà remoção, mas receberam garantia de bomtratamento e entraram nas viaturas. Elesforam levados à 12ª DP (Copacabana) paralevantamento da ficha e cadastramento nadelegacia, procedimento chamado desarqueamento. Quem aceitou apoio socialseguiu para abrigos públicos. Algumaspessoas não possuíam documento deidentificação e receberam auxílio daFundação Leão XIII. O centro das varreduras foi a AvenidaAtlântica, um dos principais pontosturísticos do Rio de Janeiro. Algunsmoradores de rua resistiram à remoção, masreceberam garantia de bom tratamento eentraram nas viaturas. Eles foram levados à12ª DP (Copacabana) para levantamento daficha e cadastramento na delegacia,procedimento chamado de sarqueamento. Quemaceitou apoio social seguiu para abrigospúblicos. Algumas pessoas não possuíamdocumento de identificação e receberamauxílio da Fundação Leão XIII. Um vendedorde côcos foi autuado por falta de notafiscal e licença necessária para venda doproduto aos comerciantes. A VigilânciaSanitária multou o quiosque “Antônio’sLanches” em R$ 877 por falta de higiene.

Nesse sentido, uma abordagem holística da segurança

pública, que vai além, muito além, da necessária ação

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policial, é imprescindível para que haja uma prevenção de

fato do fenômeno da violência urbana. Se se continuar, tão-

somente, investindo em prevenção policial de estatura

reativa, com distanciamento do policial do cidadão que ele

protege, e aplicação de recursos na maquiagem da ação

policial, como em compra de viaturas, isso olvidando-se da

qualificação daquele que a opera, serão obtidos somente os

mesmos resultados frustrantes.

Ao contrário, é preciso uma resposta estratégica à

violência urbana, que contemple a retomada do espaço urbano

pelo poder público através de seu ordenamento com

investimentos de cunho social para fins de seu resgate e

revitalização, fazendo com que as comunidades mais carentes

tenham a seu dispor um espaço pólis digno e arredado do

caos. E, concomitantemente, a polícia há de superar a

cultura da guerra ao crime e implementar definitivamente uma

abordagem cidadã da segurança pública, com aproximação da

população e antecipação de fato da prática de condutas

delituosas.

Lista de Referências:

BALESTREI, Ricardo Brizolla. Direitos Humanos: Coisa de

Polícia, Passo Fundo, RS: CAPEC – Gráfica e editora

Berthier, 2002.

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BARBOSA, Adriano Mendes. Efeitos do Crime: Violência

Gera Insensibilidade no Consciente Coletivo, 2003,

http://conjur.estadao.com.br/static/text/8960,1

(acessado em 01/05/2007);

GLADWELL, Malcolm. The Tipping Point; How Little Things

Can Make a Big Difference, New York, NY: Little, Brown

and Company, 2002;

HOBBES, Thomas. The Leviathan, 1651, edição para

Internet de eBooks@Adelaid, 2007.

http://etext.library.adelaide.edu.au/h/hobbes/thomas/h6

8l/ (acessado em 01/05/2007).

KELLING, George and COLES, Catherine. Fixing Broken

Windows: Restoring Order and Reducing Crime in Our

Communities, New York, NY: Touchstone, 1997.

LUNDE, Paul. Organized Crime: An Inside Guide to the

World’s Most Successful Industry, London, UK: Dorling

Kindersley, 2004.

Pesquisa de opinião pública nacional composta pelos

índices de avaliação e de expectativa, com as variáveis

emprego, renda, saúde, educação e segurança pública,

CNT/SENSUS, abril, 2007,

http://www.cnt.org.br/arquivos/downloads/relat88.pdf

(acessado em 01/05/2007).

NAYLOR, R.T. Wages of Crime: Black Markets, Illegal

Finance, and the Underworld Economy, Ithaca, NY:

Cornell University Press, 2004;

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Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de

Janeiro, Começa o choque de ordem da operação

“Copabacana”,

http://www.seguranca.rj.gov.br/content.asp?

cc=12&id=2212 (acessado em 19/04/2007);

WILSON, James Q. Thinking about Crime, New York, NY:

Vintage Books edition, 1985.

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