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A arte de saber fazer grafi smo nas bonecas karaj
A ARTE DE SABER FAZER GRAFISMO NAS BONECAS KARAJ*
Manuel Ferreira Lima Filho**
Telma Camargo da SilvaUniversidade Federal de Gois Brasil
Resumo: Neste artigo analisamos as representaes sociais
articuladas pelos grafi s-mos aplicados nas bonecas karaj a partir
do entendimento de que a cultura material est inserida em contextos
scio-ecolgico-territoriais e imbricada nas dinmicas de poder que
envolvem sua produo, signifi cao e circulao. A anlise feita a
partir dos dados levantados na pesquisa coletiva que subsidiou o
registro do modo de fazer e formas de expresso das Ritxoko como
Patrimnio Cultural Imaterial do Brasil. A pintura dos grafi smos
integra o processo de fabricao das fi guras em cermica pelas
mulheres, articula o mundo simblico karaj e revela igualmente um
processo cria-tivo prprio, decorrente de fatores exgenos como
aqueles imputados pelo contato intertnico. Nesse sentido, as
ceramistas so classifi cadas internamente como boas ceramistas a
partir de categorias que interligam arte, relaes de gnero, saber
tradicional, inovao e prestgio.
Palavras-chave: arte, bonecas karaj, cultura material, grafi
smo.
Abstract: This article analyses the social representations of
graphisms on Karaj dolls based on the idea that material culture is
embedded in socio-ecological-territo-ries contexts and
interconnected to the dynamics of power involved within its
produc-tion, meaning and circulation. The study is based on the
data collected by a research group which informed the registry of
how to do and the expression forms of
* Este artigo retoma refl exes e dados contidos nos relatrios
tcnicos elaborados por Telma Camargo da Silva (2010), intitulado
Primeiras aproximaes ao grafi smo aplicado s Ritxoko Aldeia Santa
Isabel do Morro (Hawal) Ilha do Bananal (TO); e por Manuel Ferreira
Lima Filho (2010), intitulado Consideraes sobre o grafi smo karaj
na perspectiva dos Karaj de Aruan (GO). Os relatrios inte-gram o
projeto Bonecas karaj: arte, memria e identidade indgena no
Araguaia, desenvolvido por equipe do Museu Antropolgico e Faculdade
de Cincias Sociais (PPGAS), da Universidade Federal de Gois.
** Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfi
co e Tecnolgico (CNPq).
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Manuel Ferreira Lima Filho e Telma Camargo da Silva
the Ritxoko as Patrimnio Cultural Imaterial do Brasil. The
graphisms drawing is a phase of the fabrication of ceramic dolls by
women which articulates Karaj symbolic world as well as unveils a
singular creative process coming up from external factors as the
inter-ethnical contact. From this standpoint, the ceramists are
classifi ed by the members of their group as good ceramists based
on categories that merge art, gender relationships, traditional
knowledge, creativity and prestige.
Keywords: art, graphism, material culture, Karajs dolls.
A cultura material, em suas manifestaes simblicas, ajuda a
discernir as representaes coletivas; e que elas apontam para a
reproduo social.
Por isto so smbolos visveis de identidade tnica, entendida esta
em defi nio mais simples: os fatores raciais, culturais, etc.) que
unem uma
comunidade para contrast-la de outra.Berta Ribeiro
Os Karaj, os objetos e a antropologia
O registro das bonecas karaj como Patrimnio Cultural Imaterial
do Brasil, nas categorias ofcio e modos de fazer e formas de
expresso,1 sugere uma refl exo que articule essas duas dimenses do
artefato na vida social do povo Iny.2 Nesse texto propomos analisar
as representaes sociais articuladas pelos grafi smos3 aplicados a
esse artefato cermico evidenciando os aspectos que o caracterizam
tambm como expresso de arte na vida social de seus produtores. Se o
grafi smo e a forma das fi guras modeladas remetem ao uni-verso
social e cosmolgico karaj, a maneira como os desenhos so feitos
nas
1 A pesquisa que subsidiou o registro, aprovado em 25 de janeiro
de 2012, foi fi nanciada no ano de 2008, pela Fundao de Apoio
Pesquisa do Estado de Gois (Fapeg), e recebeu apoio da Secretaria
de Estado de Polticas Pblicas para Mulheres e Promoo da Igualdade
Racial (Semira). Em 2010, o projeto con-tou com a parceria e fi
nanciamento do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional
(Iphan), Superintendncia de Gois. A equipe em campo foi composta
pelos antroplogos Manuel Ferreira Lima Filho, Nei Clara de Lima,
Rosani Moreira Leito e Telma Camargo da Silva.
2 Autodenominao.3 O modo de fazer a Ritxoko boneca de cermica na
fala feminina foi objeto da etnografi a (Lima et al.,
2011) que comps o dossi que subsidiou o registro.
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A arte de saber fazer grafi smo nas bonecas karaj
bonecas singulariza algumas ceramistas no contexto em que esse
ofcio parte do processo de socializao feminina. Logo, as bonecas
expressam atravs do grafi smo as representaes Iny ao mesmo tempo em
que saber fazer o desenho insere algumas mulheres em uma rede
social de prestgio. Essa pers-pectiva de anlise coloca este estudo
em dilogo com as recentes refl exes a respeito da cultura material
no contexto terico da antropologia.
Na trajetria da produo do conhecimento antropolgico, a cultura
ma-terial sempre suscitou refl exes. Malinowski (1978), com a
descrio da ca-noa trobriandesa e os colares do kula, assim como o
estudo de Mauss (2003) e o sistema de trocas do potlach, so
exemplos clssicos. Em tempos atuais, ressaltamos as refl exes de
Appadurai (2006) e Kopytoff (2006), inspirados numa antropologia
das coisas: as circulaes dos objetos, os valores atri-budos a eles
e suas trajetrias equivalem ao status de uma biografi a da vida
social, e Johannes Fabian (2010), que enfatiza o papel da cultura
material no processo de reorientaes epistmicas da antropologia tal
como a questo lite-rria na discusso da cultura como texto.
Nesse sentido, os objetos, enquanto testemunhas de uma paisagem
da memria coletiva (Silveira; Lima Filho, 2005), igualam-se a
textos etnogr-fi cos produzidos a partir de trocas comunicativas e
performances nas quais o etngrafo um participante ativo (Fabian,
2010). A cadeia operatria da fabricao dos objetos pensada nas
dimenses polifnicas e hermenuticas, ou seja, uma antropologia dos
sentidos.4
Por sua vez, Fabio Mura (2011) desenvolve a ideia de que o
objeto pode igualmente ocupar o lugar de sujeito social,
alinhando-se dessa forma decla-rao de Henry Jeudy de que o objeto
teria um carter antropomrfi co pen-sando sobre ns (Jeudy, 2005;
Lima Filho, 2006).
No Brasil, nos ltimos anos, o tema da cultura material ganhou
novo in-teresse acadmico relacionando-se aos estudos dos
patrimnios. Destacamos as refl exes pioneiras de Jos Reginaldo dos
Santos Gonalves (2007) sobre as noes de cultura e de ressonncias
relacionadas aos estudos de objetos, das colees e dos museus; os de
Silveira e Lima Filho (2005) sobre obje-tos, documentos e paisagem
cultural; e ainda uma refi nada anlise etnogrfi ca de Fbio Mura
(2010) sobre os Kaiowa e os chiru. Este autor tambm se
4 Ver as consideraes de Lima Filho (2012).
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Manuel Ferreira Lima Filho e Telma Camargo da Silva
posiciona no debate em torno do perpectivismo. Para ele, as
anlises do tema da cultura material relacionadas aos grupos
amerndios tendem ou para um determinismo tcnico ou para um
determinismo simblico e social, que refor-am a dicotomia
natureza/cultura inicialmente criticada. Em contraposio a essas
perspectivas tericas, Mura (2011, p. 120) prope:
Em alternativa a esse proceder, proponho um enfoque processual,
que busca o sentido das concatenaes tcnicas a partir de contextos
scio-ecolgico-ter-ritoriais especfi cos, no transcendendo a prtica
efetiva dos sujeitos sejam eles humanos ou no humanos , dando nfase
s intencionalidades polticas, s relaes de poder e s necessidades de
uso, bem como confrontao de diferentes designs.
pois nesse contexto conceitual que nos propomos a dialogar com o
saber fazer o grafi smo, arte das mulheres karaj do Brasil
Central.
Situados no vale do rio Araguaia, os Karaj so classifi cados na
perspec-tiva lingustica como J do Brasil Central e apresentam modos
de falar espec-fi cos em cada um dos trs subgrupos karaj (karaj,
java e xambio). Por sua vez, em cada um dos subgrupos h uma maneira
especfi ca de fala marcada pelos gneros feminino e masculino
(Rodrigues, A., 1986).
Inserido na bacia do rio Araguaia e sua diversifi cada rede de
tributrios e lagos, o territrio karaj compreende desde as aldeias
da cidade de Aruan, em Gois, at aquelas mais ao norte, no estado do
Par e Mato Grosso, passando pelas grandes aldeias na ilha do
Bananal, situada no estado do Tocantins.
Na perspectiva etnolgica, os Karaj apresentam alguns costumes em
comum com os demais J, como a uxorilocalidade e o espao ritual
mas-culino. Contudo, se distanciam deles ao construrem suas casas
em linhas retas e no de forma circular e, de modo especial, por
habitarem as margens do rio Araguaia, possurem uma mitologia e
rituais de forte inspirao no mundo das guas. Nesse caso, eles se
aproximam dos grupos amaznicos (Lima Filho, 1994). Dessa maneira,
uma sociedade indgena portadora de formas de organizao social e
cultural com alta capacidade de manejar recursos tanto do cerrado e
suas variaes quanto do grande ecossistema da fl oresta amaznica. A
ilha do Bananal refl ete tal ambiente de transio ecolgica.
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A arte de saber fazer grafi smo nas bonecas karaj
A produo de cultura material karaj envolve tcnicas de construo
de casas, a tecelagem de algodo, a fabricao de artefatos de palha,
madeira, mi-nerais, concha, cabaa, crtex de rvores, miangas,
cestaria, plumria e cer-mica5 (Lima Filho, 1999). O fato chamou a
ateno de Paul Ehrenreich (1948), que pesquisou entre o grupo em
1888 e, depois, por Fritz Krause (1940-1943), no ano de 1908. Nos
anos de 1938-1939 William Lipkind (1948) igualmente destacou a
produo de objetos do grupo, retomada dcadas depois pela des-crio
mais genrica de George Donahue Jr. (1982).
No ano de 2011, o modo de fazer as bonecas Ritxoko/Ritxoo karaj
foi registrado num dossi textual e imagtico (Lima et al., 2011), e
a produo cultural material6 do grupo ganha repercusso nacional.
Atividade nica das mulheres, as fi guras de cermica tiveram no
passado e ainda tm uma funo ldica para as crianas, mas so tambm
instrumento de socializao da menina, conforme estudou de modo
pioneiro Maria Helosa Fnelon Costa (1978). Nelas so modeladas
dramatizaes de acontecimentos da vida cotidiana e ritual, assim
como personagens mitolgicos. O contato imprimiu modifi caes quanto
ao tamanho (se tornaram maiores) e ao ma-terial utilizado, como
tinturas qumicas. Entretanto, os motivos fi gurativos e padres
decorativos so mantidos pelas ceramistas mais novas, que inclusive
ressaltam fi guras dos mitos e dos ritos (Lima Filho, 1999, Lima et
al., 2011) apesar dos padres inovadores criados, ou seja, so
produes artsticas que no so excludentes. Nesse processo de criao
que recortamos uma anlise do grafi smo.
Nosso estudo tem com referncias as ceramistas das aldeias karaj
de Santa Isabel do Morro, na ilha do Bananal (TO), com uma populao
de 647, e Buridina, em Aruan, com 106 pessoas (Fundao Nacional de
Sade, 2011).7
5 O saber lidar com a cermica identifi ca os Karaj como um povo
fi liado a uma tradio oleira que pode indicar conexes mais remotas
quando comparados aos registros etnoarqueolgicos (Lima Filho, 1994,
2005, 2012; Wust, 1975).
6 Entre os trabalhos acadmicos que escolheram o tema da cultura
material karaj destacam-se: Mrio Ferreira Simes (1992), Castro
Faria (1959), Maria Helosa Fnelon Costa (1978); Maria Helosa Fnelon
Costa e Hamilton Botelho Malhano (1986); Irmhild Wust (1975); Edna
Taveira (1982); Sandra Lacerda Campos (2002); Chang Whan (2010) e
Ana Rondon (2011).
7 Os dados demogrfi cos atuais registram 21 aldeias karaj, com
uma populao de 2927 pessoas (Rodrigues, P., 2008; Fundao Nacional
de Sade, 2011). Ver ainda Lima et al. (2011).
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Estratgias em campo
Para a constituio de um inventrio dos grafi smos e a anlise de
seus signifi cados, os pesquisadores elaboraram um catlogo fotogrfi
co com ima-gens de desenhos feitos nas bonecas da coleo8 constituda
pela equipe do projeto Bonecas karaj: arte, memria e identidade
indgena no Araguaia (Silva, 2010), e ainda pela identifi cao dos
padres de grafi smo na coleo de Mrio Ferreira Simes, constituda
entre os anos de 1954 e 1956.9
Essa estratgia metodolgica possibilitou, em campo, a identifi
cao do mesmo desenho por diferentes ceramistas, o que revelou
aspectos signifi can-tes do processo de nomeao, alguns j apontados
por outros estudiosos, como veremos mais frente. O uso do catlogo
de imagens facilitou a interlocuo entre falantes de lnguas
diferentes10 e permitiu evidenciar o uso de diferentes grafi as11
usadas para a mesma palavra em lngua karaj.
A comparao entre evidncias apontadas pelo inventrio de desenhos
construdo por ns e aqueles constitudos por outros estudiosos foi
feita den-tro de alguns limites. Por um lado, em alguns estudos j
realizados, o foco da anlise no era a pintura na boneca, mas a
cestaria (Taveira, 1982), ou a pin-tura corporal (Ministrio da
Educao, 1995; Toral, 1992). Por outro lado, os estudos referentes
aos grafi smos aplicados boneca cermica no trazem ilus-trao do
grafi smo descrito (Costa, 1978, p. 116-120) e, quando h ilustrao,
esta no acompanha pela identifi cao do desenho (Saviola, 1995). O
uso da imagem fotogrfi ca das bonecas com foco nos grafi smos foi
um recurso que permitiu viabilizar o registro de aspectos formais e
sua identifi cao pelas ceramistas, alm de possibilitar uma interao
maior com as mulheres, tendo como eixo articulador o ofi cio de
pintar as Ritxoko.
8 Vinte e sete bonecas confeccionadas por ceramistas de Santa
Isabel do Morro, acervo do Museu Antropolgico da UFG.
9 As colees de Mrio Ferreira Simes pertencem ao acervo do Centro
Cultural Jesco von Puttkamer da PUC-Gois. As peas dessas colees
foram feitas por duas ceramistas consideradas mestras, a saber:
Kuanijiki e Berix, da aldeia de Santa Isabel do Morro.
10 Nas situaes em que as ceramistas no eram falantes da lngua
portuguesa, intrpretes nativos traduzi-ram as conversas e as
nominaes dos desenhos como indicado nas tabelas.
11 De acordo com o tradutor, a grafi a de um mesmo nome encontra
variaes, como em relao s palavras Tyreh-hok (tambm escrita como
Tyreherko) e Itxalabu (tambm escrita como Isalyb, Ixalabu. Existe
um processo em andamento de normatizao da grafi a karaj por
estudantes do Curso de Licenciatura Intercultural Indgena da
UFG.
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Com o objetivo de construir um inventrio que articulasse os
grafi smos inseridos nas bonecas como expresso do universo
cosmolgico Karaj, ou-tras estratgias metodolgicas foram usadas.
Assim, construo do inventrio que subsidia as refl exes aqui
apresentadas contou, alm do catlogo de ima-gens, com a realizao em
papel dos desenhos usados pela ceramista Mahiru, de Santa Isabel do
Morro, e sua identifi cao. Mahiru tambm nomeou os gra-fi smos12
usados como decorao de uma pousada em So Felix do Araguaia (MT),
indicando os desenhos usados na decorao das bonecas.
12 Estes desenhos foram fotografados por Telma Camargo da Silva,
impressos e posteriormente apresenta-dos por ela a Mahiru.
Figura 1.Figura 1. Grafismos desenhados em papel pela ceramista
Mahiru. Dados coletados por Telma Camargo da Silvana aldeia de
Santa Isabel do Morro, junho de 2010.
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Enquanto o inventrio possibilita a refl exo entre a elaborao da
forma grfi ca e sua signifi cao no seu contexto sociocultural de
produo, o falar sobre a arte do desenho e a observao da circulao
dos artefatos classifi -cados como feitos por uma boa ceramista
permitem pensar sobre o lugar social ocupado por estas
mulheres.
Consideraes sobre aspectos formais dos grafismos e as associaes
nativas
As Ritxoko constituem um dos vrios suportes usados pelos Karaj
para aplicao do grafi smo.
No que se refere aos grafi smos aplicados nas bonecas de
cermica, as olei-ras utilizam um pincel constitudo de fi na haste
de palha de buriti com a ponta
Figura 2.Figura 2. Grafismos desenhados em papel pela ceramista
Mahiru. Dados coletados por Telma Camargo da Silvana aldeia de
Santa Isabel do Morro, junho de 2010.
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envolvida em algodo13 nativo (Costa, 1978, p. 113; Whan, 2010,
p. 169). As tintas14 mais usadas so extradas de vegetais como o
jenipapo que, misturado ao carvo, fornece a cor preta; o urucum,
obtido da semente da planta do mesmo nome, fornece a cor vermelha,
que tambm pode ser obtida do barro vermelho re-tirado das margens
do rio Araguaia; o amarelo obtido do tubrculo do aafro.
Os motivos usados nas bonecas so elaborados primeiramente com a
cor preta e, em seguida, complementados com a cor vermelha. Os
Karaj usam padres geomtricos e associam esses motivos e suas
combinaes linhas, gregas, faixas, listras a partes do corpo, fauna
terrestre e aqutica.
Embora concorde que as interpretaes nativas relacionam essas
formas geomtricas fauna, Maria Heloisa Fnelon Costa (1978, p. 114)
chamou a ateno para a ausncia de interpretaes referentes a
acidentes geogrfi cos e outros objetos da natureza como rios,
chuva, relmpago e montanhas, por exem-plo. Segundo ela, no existe,
da mesma forma, preocupao com a fl ora, consti-tuindo exceo o padro
denominado Makitret desenho da cana. Ela remete a observaes feitas
por Ehrenreich (1948, p. 55-57) e Krause (1940-1943) para afi rmar
que existe uma recorrncia a traos que reportam ao morcego e cobra e
que alguns traos geomtricos foram tomados tcnica do tranado.
A esta observao de que os nomes dados aos motivos podem ser
alusi-vos a epnimos animais ou vegetais, Toral (1992) problematiza
os processos classifi catrios acima apresentados. Primeiro, porque
os sistemas nativos po-deriam ser muito mais complexos do que
aquele do observador em campo. Segundo, porque esse mesmo sistema
classifi catrio, atravs do qual existe o esforo de apreenso de
similitudes entre forma visual e natureza, no daria conta do
processo criativo, gerador dos motivos. Assim, ele sugere que o
de-senho pode possuir nome prprio, e ele continua:
[] originrio de uma classifi cao que pode ser muito mais
detalhada que a nossa prpria quando utilizamos termos como gregas,
desenhos geomtri-cos etc. Com um acervo variado de desenhos,
terminaram por criar uma srie de nomes cujo nico fi m diferenciar
conjuntos de padres, s vezes com escas-sa ligao com seu epnimo
vegetal ou animal. Muitas vezes, a classifi cao dos desenhos feita
mais por seu resultado fi nal que pelos motivos por intermdio dos
quais feito. (Toral, 1992, p. 194).
13 Foi observado em campo que as ceramistas mais habilidosas,
com a elaborao de traos mais fi nos, dispensam o uso do algodo.
14 O uso de tintas industriais tambm comum entre as
ceramistas.
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Essas consideraes indicam que a construo de um inventrio de
pa-dres dos grafi smos aplicados s Ritxoko como suporte material
das repre-sentaes do universo karaj no tarefa fcil. Apesar da
complexidade do estabelecimento dessa classifi cao e da identifi
cao e denominao de pa-dres grfi cos aplicados na decorao das fi
guras cermicas, nossas obser-vaes em campo e os dados etnogrfi cos
apontados por outros estudiosos permitem algumas consideraes:
As associaes variveis
Um mesmo padro recebe um nome distinto de acordo com diferentes
in-formantes. Isso pode ser visto na maioria dos grafi smos que
foram mostrados para serem identifi cados pelas ceramistas. Por
exemplo, como indicado abai-xo, o mesmo padro identifi cado como
Tyreh-hok (pintura de morcego), Haru e Ko-Ko.
Figura 3.Figura 3. Conjunto de grafismos (Silva, 2010, p.
99-101).
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LOCALIZAO DO GRAFISMO
NOME DO PADRO SIGNIFICADO NOME DA/DO INFORMANTE
PERNA LATERAL
Tyreh-ho (fala masculina)
Tyreh-hok (fala feminina)
Pintura do morcego
Iracema Hakt Karaj
Hamunjaka(fi lho de Iracema)
Haru Mahuederu
Mawisi (fi lho de Mahuederu, auxiliou na traduo e na grafi
a)
Ko-Ko Zigue-zague Lawarideru
Korihele (auxiliou na traduo e na grafi a)
Tyreh-rk Morcego Irok (caula)
Kaimot
SokrowTyreherko
Obs: A pintura feminina quando pintura corporal
Morcego Coaxiro
Txarawa (auxiliou na traduo e na grafi a)
Quadro 1.Quadro 1. Variao na identificao de um mesmo padro
grfico.
Essa constatao sugere que a denominao acompanha a perspectiva do
olhar e da percepo da/do informante, ocorrendo as associaes
variveis (Boas, 1947 apud Costa 1978, p. 114). Pode ser, no caso do
exemplo acima:
1) a percepo de uma forma, Haru, que me sugere o tringulo;2) a
repetio da forma, formando um zigue-zague (Ko-Ko);3) a associao
feita com um elemento da natureza, no caso exemplifi ca-do um
animal, o morcego (Tyreh-rk);4) pode ser, em outro exemplo, a
indicao de contato intertnico15 como se depreende da afi rmao de
Iracema Hakt Karaj que ao nomear um grafi smo afi rma que o mesmo
uma pintura kamayur (Xingu), como na imagem a seguir:
15 Ela explicitamente diz que em decorrncia da presena de
mulheres kamayur na aldeia de Santa Isabel do Morro, referindo-se a
Mavir e sua fi lha Kaimot.
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A evidncia emprica de que existe uma variao na denominao de um
mesmo grafi smo segundo a perspectiva do informante foi
anteriormente observada por Costa (1978, p. 114), que afi rma:
[] outros (padres), entretanto, so denominados de modo diferente
pelos di-versos informantes, e isto na mesma aldeia, o que Boas
explica como se tratando de associaes variveis estabelecidas em
relao forma, fato de que h ocorrncias em grupos da Amrica do Norte:
Por exemplo, entre os ndios da Califrnia, a mesma forma designada
por diferentes pessoas, ou s vezes pela mesma pessoa em ocasies
diversas, ora como uma pata de lagartixa, ora como uma montanha
coberta de rvores [].
Essa constatao sobre as associaes variveis problematiza a anlise
e interpretao da relao entre a cosmologia karaj e os padres grfi
cos, como afi rmado acima.
A relao entre os nomes dos grafismos e a natureza
A coleo de nomes levantados que indica relaes com a fl ora e a
fau-na assinala a predominncia dos animais. Embora formado por um
conjunto relativamente pequeno, pode-se observar que existe uma
tendncia maior de relacionar os nomes dos grafi smos a animais que
vivem na gua, como indica o quadro a seguir:
Figura 4.Figura 4. Conjunto de grafismos (Silva, 2010, p.
101).
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CATEGORIA TRADUO / LUGAR MTICO / COSMOLOGIA NOME EM KARAJ
Refernciaa animais
CU
Flamingo (seria colhereiro?)Morcego
UrubuUrubuAsa do urubuPassro (no sabe qual)Pssaro (no sabe
qual)Gavio
TERRA
Metade da pintura do casco do jabutiPintura de
tatuTamanduLagartaJabuti
GUA
Tipo de peixe (para uns) e tipo de formiga (para outros)Pirarucu
(desenho do pirarucu)Piau (desenho)Pirarucu (desenho do
pirarucu)Pacu (desenho)Jiboia
Jiboia
Tucunar
CU
Wekr-wekrTyreh-ho /
Tyreh-hokRarRarajieRaratiederatytyHaradieKukHir
TERRA
Otubna bro riti ureOhWaririIjar KohasaKotubuma Brorite
GUA
Walarodidi ou WylyhajijiHatykysiBywyBenory YriHaruHawwyynimyrar
/ HawykynimyrarHawykyni Marah /HawaynimyrahWaur benor
Referncia fl ora
CipCoit pretoEspinho
WeryIxalabuAnont
Quadro 2.Quadro 2. Correlao entre padro grfico, elementos da
natureza e cosmologia karaj.
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Manuel Ferreira Lima Filho e Telma Camargo da Silva
H desenhos considerados como criaes livres das ceramistas como
nos explicou Dyrity (Jandira) em Aruan ao ver as fotos da coleo de
Mrio Ferreira Simes. Outros desenhos foram descritos por ela como
incio da pintura ou, classifi cados como pintura dos joelhos ou
faixas/listras nas pernas e braos.
Figura 5.Figura 5. Kyrinaty. Incio da Pintura nas costas (Coleo
Mrio Ferreira Simes, constituda entre os anos de 1954 e 1956).
Centro Cultural Jesco von Puttkamer (PUC-GO), Goinia. Foto: Manuel
Ferreira Lima Filho, 2009.
Figura 6.Figura 6. Dikohulyby. Pintura de uma faixa larga de cor
preta nos joelhos (Coleo Mrio Ferreira Simes, constituda entre os
anos de 1954 e1956). Centro Cultural Jesco von Puttkamer (PUC-GO),
Goinia. Foto: Manuel Ferreira Lima Filho, 2009.
Figura 7.Figura 7. Tyekr. Padro tpico de braos e joelhos (Coleo
Mrio Ferreira Simes, constituda entre os anos de 1954 e 1956).
Centro Cultural Jesco von Puttkamer (PUC-GO), Goinia. Foto: Manuel
Ferreira Lima Filho, 2009.
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A arte de saber fazer grafi smo nas bonecas karaj
Existem padres que so classifi cados por gnero, como O O Hawyy
riti pintura de mulher , baseados em outros parmetros classifi
catrios como a pintura feita numa cuia Tariruku itx usada para
guardar leo de ba-bau quando usado para passar com algodo nos
cabelos ou ainda os Haru, metade do desenho de um mosquito da
praia.
Figura 8.Figura 8. O O Hawyy riti. Pintura de mulher
identificada por Karitxama Karaj, aldeia Buridina, Aruan (GO).
Manuel Ferreira Lima Filho, 2010.
Figura 9.Figura 9. Pintura Tariruku itx (Coleo Mrio Ferreira
Simes, constituda entre os anos de 1954 e 1956). Centro Cultural
Jesco von Puttkamer (PUC-GO), Goinia. Foto: Manuel Ferreira Lima
Filho, 2009.
Figura 10.Figura 10. Haru identificado por Welaki Karaj, aldeia
Buridina, Aruan (GO). Manuel Ferreira Lima Filho, 2010.
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Manuel Ferreira Lima Filho e Telma Camargo da Silva
O grafismo e as interpretaes
As bonecas de cermica constituem um dos vrios suportes nos quais
os Karaj exercitam a arte do grafi smo. Maria Helosa Fnelon Costa
(1978, p. 111-112) e Chang Whan (2010, p. 172-173) assinalam que o
uso de padres grfi cos comuns nas bonecas so os mesmos usados na
pintura corporal.
Andr de Amaral Toral (1992, p. 193) considera que, alm da
aplica-o na decorao das cermicas, os desenhos da pintura corporal
aparecem tambm na feitura das mscaras, na cestaria e nas esteiras.
Silva (2010, p. 7) acrescenta que os padres grfi cos so utilizados
tambm na produo de arte-fatos masculinos como remos, arcos, fl
echas, bancos ritualsticos e na confec-o de miniaturas de arcos e
fl echas e de barcos, estes destinados ao comrcio implementado pelo
turismo. Os grafi smos aparecem tambm em maracs e em objetos
produzidos com o uso de miangas. Neste ltimo caso, a pesquisa-dora
observa que os motivos surgem do tranado de fi os e contas na
urdidura do Maranin (colar usado em cerimnias como na dana de
Aruan) ou, em adornos usados no cotidiano por adultos e crianas
independente do gnero.
No que se refere especifi camente aos estudos que focalizam o
grafi smo aplicado s bonecas de cermica, algumas caractersticas
podem ser apontadas:
Quanto aos motivos: so geomtricos e esto presentes em outros
arte-fatos. H padres bsicos e padres derivados que operam por meio
de com-binaes, de entrecruzamento de linhas e pela distribuio no
espao. Alguns dos desenhos corporais mais comuns so as listras e
faixas pretas, usadas nos braos e pernas, reproduzidas nas Ritxoko,
predominantemente usadas pe-los mais velhos por ser considerada uma
pintura discreta e de fcil execuo (Costa, 1978, p. 109).
Para a pesquisadora, outro padro favorito a grega e suas
variantes, usada indistintamente por homens e mulheres, e por
diferentes grupos de ida-de. A antroploga Edna Luisa Taveira (2002,
p. 25) observou:
So vrios os padres usados caracterizando-se pela combinao de
linhas ho-rizontais e verticais, numa composio geomtrica de gregas
qutricas. Os de-senhos, pelos nomes que lhes so dados, representam
partes do corpo, da fauna terrestre e aqutica: formiga, cobra,
urubu, morcego, peixe, tartaruga, mas nun-ca o animal no todo.
Podem ocorrer tambm motivos ornamentais interpreta-dos como
elementos da natureza: caminho sem fi m, forquilha, etc. O nico
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A arte de saber fazer grafi smo nas bonecas karaj
motivo ornamental que foge a essa regra encontra-se na decorao
de alguns potes, pratos cerimoniais, fi guras fantsticas e maracs
nos quais aparece repre-sentada a mscara de Aruan.
Quanto aprendizagem dos padres: Taveira (2002) assinala que os
mo-tivos que se constituem como padres tradicionais so ensinados
pelos mais velhos e mais habilidosos s crianas, que os reproduzem
nas areias das praias do Araguaia. Para ela, a prtica do desenho,
portanto, se insere no processo educativo Karaj, que impe normas de
uso conforme idade, sexo e papel social (Taveira, 2002, p. 25).
No que se refere reproduo da memria coletiva importante
repor-tar a Toral (1992, p. 206), que chama a ateno para o fato de
que a pintura corporal, por exemplo, estaria a principio inspirada
em um tempo mtico ideal dos antigos. O pesquisador pondera tambm
que o que se observa na prtica uma originalidade nas verses
apresentadas, pois os desenhos teriam sido obtidos pelo heri
mitolgico Kynyxiwe que na prpria narrativa aponta para a incorporao
de elementos novos entre os quais a reelaborao de desenhos muitas
vezes decorrentes do contato intertnico.
Kynyxiwe tem um papel central na mitologia karaj, pois por meio
de suas aes que as coisas foram obtidas e nominadas. O conjunto de
mitos envolvendo esse personagem fundamental para o entendimento
das fi guras modeladas e pintadas pelas ceramistas.
Lima Filho (1994, p. 140) analisa o mito de como Kynyxiwe, ao
criar tudo que existe, descreve como plantas rasteiras produziram
emaranhados de fl ores e folhas e como os Karaj teceram as esteiras
com desenhos e tornaram o cho mais macio. Maria Heloisa Fnelon
Costa (1978, p. 129), da mesma maneira, descreve as vantagens que
Kynyxiwe obteve para os Karaj como a luz do sol, da lua e das
estrelas, o machado, a canoa, alm dos enfeites toma-dos de Xibur ou
o urubu-rei. Lima Filho (1989) tambm apresenta uma das verses do
mito publicado por Aytai (1979), em que o personagem central seria
Tainahak, que corta o cabelo do passarinho Hireni e coloca urucum
no olho para enfeitar. J Donahue Jr. (1982) descreve o mito de
Tainahak que desce velho do cu e se torna novo, todo enfeitado com
braceletes e colares, com o corpo pintado de jenipapo para se casar
e ensina aos Karaj a fazer roas. J no mito sobre a origem do
arco-ris ou do dilvio, Aytai (1978) in-forma como a chuva em forma
de um personagem mtico encontrado pelos Karaj num buraco e depois
de pedir fumo para um velho, que fumava num
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Manuel Ferreira Lima Filho e Telma Camargo da Silva
cachimbo, pega o carvo e comea a se pintar com o carvo e cinzas
do ca-chimbo. Karitxama (Darcilia Uassuri), ceramista da aldeia
Buridina, contou uma verso de como os Karaj adquiriram o
conhecimento da pintura tendo como ator principal, o heri mitolgico
Kynyxiwe.
A obteno das coisas pelo heri mitolgico se d a partir de relaes
com seres e animais. Inspirado nessa observao Andr de Amaral Toral
(1992, p. 207) afi rma que:
As incorporaes e mudanas ocorridas no desenho e pintura corporal
nesse quase um sculo de registros parecem se explicar pelas ideias
contidas no mito. Com o contato defi nitivo e o convvio cotidiano
com a populao brasileira, o desenho passou por considerveis
mudanas, especialmente se pensarmos nas adaptaes realizadas para a
aplicao em artefatos que passaram a produzir para venda. Ele se
alterou maneira da sociedade Karaj, altamente interessada na
incorporao de novos elementos e informaes e obtendo nesse
intercmbio o maior nmero de vantagens possvel []
Nesse sentido, interessante observar que podemos visualizar dois
siste-mas de representaes disponveis ao artista karaj para inspirar
suas criaes: o mundo tradicional e o mundo advindo do contato
intertnico. Mundos entre-laados no processo de reproduo cultural.
As bonecas karaj so fabricadas a partir desse contexto
intercultural.
O mundo do tempo antigo pode ser maximizado pela representao
m-tica do Kobo, o chefe de todos, e por um conjunto de personagens
e seres mgicos, como os Worysy, Kynyxiwe, Teribr, Xibur, Tayn, Ani
Ani, os Ijas, entre outros. Algumas destas fi guras so
representadas nas criaes das ceramistas que Costa (1978, p. 56-61)
chamou de fi guras estranhas, tais como: Wajoramani, Txyreheni,
Hir, Benor, Krer, Kobo, alm de fi guras bicfalas e multicfalas.
No ritual de iniciao masculina, conhecido como Hetohoky ou casa
grande, os homens tambm se dividem em homens de cima, homens de
baixo e homens do meio e, na disposio espacial das casas rituais,
igualmente tem--se a casa pequena (rio abaixo), a casa grande (rio
acima) e casa de Aruan, que fi ca sempre no meio destas. Portanto,
a localizao das aldeias karaj possui uma razo de ser nesse ou
naquele local com relao ao Araguaia, as-sim como a disposio das
casas de moradia, dos cemitrios, das casas rituais, segundo um
simbolismo prprio da cultura karaj (Lima Filho, 1994).
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A arte de saber fazer grafi smo nas bonecas karaj
Os mitos abordam temas muito variados, como a origem, o
extermnio e o recomeo dos Karaj, a origem da agricultura, o veado e
o fumo, a ori-gem da chuva, a origem do sol e da lua, a origem dos
aruans, as mulheres guerreiras, a origem do homem branco, as
mulheres e o jacar, a origem do arco-ris, o dilvio, os pirarucus, a
faanha de dois irmos, entre muitos outros (Lima Filho, 1989).
Normalmente esses mitos esto associados aos rituais e aos temas
sociais, como as relaes de gnero, o casamento, o xamanismo e o
poder poltico, as doenas e a morte, o parentesco, as plantaes, as
pescarias, os enfeites e o contato com os brancos.
A estrutura ritual dos Karaj tem dois grandes cerimoniais como
refern-cias: o rito de iniciao masculina, o Hetohoky, e a Festa de
Aruan, que apre-sentam ciclos anuais, fundados na subida e descida
das guas do rio Araguaia. Entre outros pequenos ritos, podem ser
citados a pescaria coletiva de timb, a festa do mel, a festa do
peixe, as cerimnias relacionadas menarca (rito denominado
Hiraritxanamy), alm de outros inclusos nos grandes rituais dos
aruans e do Hetohoky.
Esses trs nveis cosmolgicos (o cu, a terra e a gua) devem estar
em equilbrio para manter a vida em sociedade segura. Todas as aes
dos rituais, dos xams e das chefi as tradicionais e ritualsticas
buscam manter a estabili-dade do edifcio csmico (Ptesch, 1993).
Assim, na perspectiva da manuteno do tempo dos antigos, cclico,
de autorreproduo do Kobo fechando a passagem para a contagem do
tempo linear e a espacialidade, encontram-se os padres de desenhos
tradicionais e formas das bonecas.
Nesse contexto, podem ter sentido as observaes da antroploga
Patrcia Mendona de Rodrigues (1993, 2008), enquanto exerccio
analtico baseado em longos trabalhos de campo entre os Java, e
dados da etnografi a sobre a cesta karaj de Edna Luisa de Melo
Taveira (1982), ao propor a correlao entre os padres da natureza e
da cultura do grafi smo karaj. Como j citado, h recorrncia etnogrfi
ca da diviso que os Karaj fazem entre trs nveis cosmolgicos: o cu,
gua e a terra. Na interpretao de Patrcia de Mendona Rodrigues
(1993), as extremidades (cu e gua) se encontram em algum mo-mento
(terra/meio) que seria representado por um sistema grfi co aberto e
um outro fechado presentes nos padres de desenhos relacionados ao
ciclo da infncia velhice, na subida e descida do rio Araguaia, no
smen que sai do corpo masculino e entra no corpo feminino, no
poente e no nascente, na
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pele nova/pele velha, na nascente e na foz do Araguaia.
Extremidades que se encontram num mesmo ponto. Da os inmeros padres
Ko-Ko (voltas) e Urawo (fechado) (Lima Filho, 2010). Esses padres
tradicionais so reprodu-zidos tambm nas bonecas karaj.
Entretanto, tambm como previsto nos mitos, em busca de novidades
e de vantagens, os Karaj so sensveis s novidades estticas advindas
do contato nacional, deixando sempre em aberto a possibilidade de
criao e interpretao dos padres de grafi smo do grupo. Andr de
Amaral Toral (1992, p. 207) assina-la essa interessante capacidade
de um movimento criativo que se volta ao mundo da reproduo cultural
dos antigos, dos mitos, do tempo cclico, da tradio e, igualmente,
suscetvel ao tempo histrico, do contato e das inovaes:
Os muitos campos de cultura material dos Karaj plumria,
tecelagem, ces-taria, escultura em madeira e barro, cermica,
pintura corporal, artesanato para venda, fabricao dos objetos
cerimoniais etc. parecem refl etir essa capacida-de de aprendizado
no contato com outras culturas e sociedades.
Nessa perspectiva, a tradio, como afi rma Campos (2007, p. 113),
deve ser entendida de forma dinmica e com possibilidades de fl
exibilizao: A cria-o de um estilo novo no signifi ca o abandono de
prticas seculares, principal-mente por envolver a mesma tecnologia
de produo. Deve ser entendida como continuidade que incorporam
mudanas e por sua vez criam novas tradies.
Arte comunal e a singularidade da expresso artstica: padres,
variaes e prestgio
O homem est investido nas coisas e as coisas esto investidas
nele.Merleau-Ponty
Os Karaj mesclam o prazer de desenhar e de criar com o exerccio
da memria coletiva. Essa relao entre a prtica prazerosa do desenho
e da transmisso do saber fazer o desenho observada no cotidiano das
ceramis-tas em Santa Isabel do Morro.16 Muitas vezes, elas riscam
grafi smos no cho enquanto conversam e descrevem o modo de fazer a
boneca, cenas que so
16 Diferentemente de Buridina, onde a aprendizagem dos grafi
smos acontece em contexto escolar formal.
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A arte de saber fazer grafi smo nas bonecas karaj
observadas e copiadas por suas netas, principalmente as que
vivem em suas casas.17 Assim como a modelagem das bonecas e as
formas que elas adqui-rem, a aprendizagem da pintura acontece no
mbito das famlias extensas e se caracteriza pelo ldico em processo
de socializao. As brincadeiras com as bonecas e a repetio dos
desenhos no cho possibilitam ao mesmo tempo a aprendizagem dos
papeis sociais e da mitologia karaj.
17 De acordo com o padro karaj de residncia uxorilocal.
Figura 11.Figura 11. Grafismo feito pela ceramista Koaxiro
enquanto descrevia a matria-prima usada na pintura das bonecas.
Aldeia de Santa Isabel do Morro, dezembro de 2010 (Telma Camargo da
Silva Acervo Iphan).
Figura 12.Figura 12. Neta da ceramista Koaxiro imita os desenhos
feitos pela av. Aldeia de Santa Isabel do Morro, dezembro de 2010
(Telma Camargo da Silva Acervo Iphan).
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O grafi smo aplicado nas Ritxoko segue padres tradicionais aos
quais so acrescidos elementos da criatividade individual. Os
motivos indicados como tradicionais so: Haru (losangos, ou losangos
que circunscrevem li-nhas paralelas; ou losangos que circunscrevem
tringulos pretos); Itxalabu (busto preto, pintura masculina); Ko-Ko
(nome genrico dado grega e suas variantes); Wed-Wed (pontos). A
singularidade da arte da ceramista decorre da sua criatividade na
combinao dos padres tradicionais entre si e na habilidade com que
os grafi smos so aplicados nas bonecas e a preciso na execuo dos
traos.
Os exemplos abaixo ilustram esta criatividade no caso do padro
Wed-Wed, em que o mesmo usado de diferentes maneiras: a) em
combinao com outras formas; b) com a aplicao de pontos formando uma
linha; c) com a aplicao de um ponto dentro de um losango; d) em um
conjunto de vrios pontos.
Figura 13.Figura 13. Variaes na aplicao e combinaes do motivo
Wed-Wed (Silva, 2010, p. 106).
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Essa habilidade e a criatividade na aplicao dos grafi smos so
identi-fi cadas pelos membros do grupo que, ao expressarem suas
avaliaes, clas-sifi cam as ceramistas como boas ceramistas. Dessa
forma, reconhecem a singularidade das mesmas como artistas no
conjunto daquelas que sabem exe-cutar o ofcio, mas cuja obra no se
individualiza.
A avaliao do grupo expressa, por exemplo, no caso do grafi smo a
seguir, que, ao ser mostrado para duas mulheres mais velhas e
indicadas como boas ceramistas (Mahuederu e Lawarideru) recebe o
seguinte comentrio: Ela [a ceramista que fez a boneca] est
aprendendo.
O conjunto de padres criados pelos Karaj grafi smos reconhecidos
e repassados pela tradio remete a uma arte comunal que confere ao
grupo uma imagem de si mesmo. Nesse contexto de produo do saber e
do ofcio, pessoas identifi cadas como povo karaj identifi cam e
nomeiam aquelas ce-ramistas que melhor atendem s caractersticas
defi nidas pelo saber tradicio-nal. Essas consideraes so
corroboradas pelas afi rmaes de Darcy Ribeiro (1986). Sobre a arte
comunal, ele afi rma:
Figura 14.Figura 14. Grafismo classificado por algumas
ceramistas como trabalhode uma ceramista aprendiz (Silva, 2010, p.
106-107).
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Esta arte comunal a afl orao maior das comunidades indgenas.
Aquela que lhes confere a imagem do visvel de si mesmas, de sua
beleza, rigor e dignida-de. Cumpre, por isso, trs funes
elementares: a de diferenciar o mundo dos homens, regidos pela
conduta cultural que se constri a si mesma, do mundo dos bichos,
comandados por impulsos inatos, inevitveis e incontrolveis. A de
diferenciar aquela comunidade tnica de todas as outras,
proporcionando um espelho em que ela se v e se contrasta com a
imagem etnocntrica que tem de outros povos. Cumpre, ainda a funo
geral de dar aos homens coragem e ale-gria de viver. (Ribeiro,
1986, p. 31).
E sobre a expresso artstica na arte comunal, ele continua:
No mundo indgena ela (a idia ocidental de coisa artstica) existe
para o etnlogo que olha, reconhece e colhe os objetos artsticos; no
tanto para os ndios que os tm e os usam junto com todos os outros.
Esclarea-se aqui que, apesar de us-los conjuntamente, os ndios
apreciam distintivamente os espcimes que atendem melhor aos
requisitos formais de perfeio de cada gnero e melhor expressam o
padro tradicionalmente prescrito, como tambm reverenciam muito as
pessoas que conseguem faz-los com tamanha perfeio. (Ribeiro, 1986,
p. 30).
Logo, a ceramista encontra-se na confl uncia de dois movimentos
dos quais decorrem implicaes para a demarcao do seu lugar no grupo.
Por um lado, ao reproduzir os padres que lhe foram repassados pela
tradio, ela contribui para a continuidade da afi rmao de uma
identidade karaj e ocupa o seu papel tradicional como reprodutora
do mundo simblico. Um lugar de-fi nido pelas relaes de gnero em que
fazer famlias de bonecas com o uso de padres grfi cos tradicionais
e presentear as crianas com estas famlias18 a reafi rmao do seu
papel na transmisso do conhecimento sobre a cons-tituio do ncleo
familiar karaj, do ciclo de vida e tambm dos elementos grfi cos e
formais (a modelagem) que pertencem ao saber comunal.
Por outro lado, a relao entre tradio e criatividade sugere que a
cera-mista tem fl exibilidade no uso do grafi smo aplicado na
cermica. Para Taveira (2002, p. 26) [] se o uso do padro dos
desenhos geomtricos deve se submeter ao cdigo social do grupo, na
cermica que a interdio cessa e
18 Conjunto de pequenas fi guras humanas que reproduzem uma
famlia extensa e que so presenteadas por avs e tias s meninas
quando atingem a idade de seis anos, aproximadamente (Campos, 2007;
Lima et al., 2011; Whan, 2010).
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a ceramista combina padres diversos. Ser considerada boa
ceramista como uma artista defi ne um lugar singular no sistema
simblico e econmi-co tradicional prprio do grupo. A procura pelas
suas bonecas em detrimento de outras, o dinheiro que entra na sua
famlia e no em outras, e o seu maior poder aquisitivo para consumo
de bens industriais so alguns dos elementos que apontam para uma
possvel confi gurao de poder e relaes de gnero fora da representao
tradicional karaj.
Mas a caracterizao da boa ceramista vai alm das caractersticas
for-mais do artefato por ela produzido e da qualidade e
criatividade do desenho feito. A distino decorrente da classifi cao
como boa ceramista interliga as dimenses da produo do artefato
(modelagem, queima e pintura) de cir-culao desses bens no mercado
consumidor externo (museus, antroplogos, casas de artesanato, entre
outros). De certa forma, so as relaes de afi liao poltica interna
aldeia e de parentesco da ceramista com as lideranas locais que
conferem visibilidade ao seu trabalho alm daquele atribudo pela
Ritxoko como brincadeira infantil. essa visibilidade que confere
legitimidade e re-fora as caractersticas formais do desenho
produzido como bem feito, bo-nito. Como de uma forma geral as
ceramistas no falam a lngua portuguesa e raramente circulam fora de
suas aldeias sem a presena masculina, a circu-lao dos artefatos
dependem de uma mediao masculina. Nesse sentido, o artefato
sinaliza para os papis tradicionais de gnero.
Contudo, quando o resultado do produto comercializado retorna
para as famlias em forma de bens da sociedade de consumo DVD, TV,
fogo a gs, roupas, celulares as mulheres ceramistas adquirem uma
outra forma de pres-tgio diferente dos assegurados pela socializao
karaj. A boa ceramista condensa ento na modelagem e pintura das
bonecas, a reproduo dos mitos e o relato modelado em barro das
cenas do cotidiano, sinaliza a rede social de pertencimento e
materializa como resultado dos bens produzidos e consumi-dos uma
nova posio no contexto das relaes internas aldeia.
Essa constatao nos leva a refl etir sobre a tenso entre os
gneros. Os homens so socializados para serem portadores de uma boa
performance oral praticada nos espaos rituais, construindo
lideranas e fortalecendo a rede de solidariedade entre parentes
consaguneos masculinos em contraposio aos parentes masculinos por
afi nidade: sogros e cunhados. As mulheres antece-dem as decises
masculinas tomadas na casa dos homens em suas unidades uxorilocais
e tm seu prestigio crescente medida que envelhecem, se tornam
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avs e particularmente xams. E tambm, no caso especfi co da
confeco de bonecas e grafi smo na medida em que passam de
aprendizes a mestras do ofcio de saber fazer Ritxoko (Lima et al.,
2011), e principalmente quando entram na classifi cao nativa de
boas ceramistas. A circulao do dinheiro e de bens nas mos das
ceramistas pode signifi car a ultrapassagem de um li-mite de
prestgio culturalmente aceito e que potencializaria uma
agressividade entre os gneros prevista nos mitos/ritos (Rodrigues,
P., 1993). No contexto histrico karaj, marcado pelas consequncias
impactantes do contato inte-rtnico, o fato de algumas mulheres
ceramistas romperem limites e padres culturais pode engendrar
complexas relaes onde prestgio, poder e agressi-vidade estariam
sendo tecidas.
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Recebido em: 28/02/2012Aprovado em: 30/07/2012