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* Professor Assistente no Insper Instituto de Ensino e
Pesquisa/Pesquisador do CEM-Cebrap Doutor em Administrao de
Empresas, Fundao Getulio Vargas (FGV) Ps-doutorado em Sociologia
Econmica, Columbia University. [email protected]
** Doutoranda em Sociologia, The University of Chicago. Bolsista
CAPES Proc. n 0841/12-1 [email protected]
*** Professor da Escola Brasileira de Administrao Pblica e de
Empresas da Fundao Getulio Vargas (EBAPE/FGV) Doutor em
Administrao, Ecole ds Hautes Etudes Commerciales de Paris (HEC).
[email protected]
Conflito e improvisao por Design: a metfora Do repente
Charles Kirschbaum*Cristina Sakamoto**
Flvio C. Vasconcelos***
Resumo
A metfora do Jazz foi introduzida nos Estudos Organizacionais
com o objetivo de estimular a adoo de prticas que levassem a um
maior grau de improvi-sao. Essa apropriao foi feita assumindo-se um
alto grau de cooperao, em oposio a organizaes altamente
formalizadas onde as rotinas se apre-sentariam como rgidas e
geradoras de inrcia. Esse artigo se apropria dessa literatura,
buscando em primeiro lugar ampliar a ideia de rotina
organizacional, enfatizando a dimenso interpretacionista,
salientando o aspecto conflitivo e finalmente revendo o valor
heurstico da dicotomia entre colapso do sensemaking e sensemaking.
Essa reapropriao nos permite preparar o terreno para a introduo e
anlise da metfora do Repente e subsequente comparao com a metfora
do Jazz. Buscamos mostrar como as estruturas do Repente permitem a
improvisao e ao mesmo tempo prote-gem os espaos de cada oponente.
Essa configurao importante quando toma-se o conflito como vetor
preponderante na improvisao.
Palavras-chave: Rotinas organizacionais, improvisao,
sensemaking, conflito, Repente
Abstract
The Jazz metaphor was introduced in Organizational Studies
aiming to en-courage the adoption of practices that could lead to a
greater degree of improvisation. This appropriation was made
assuming a high degree of co-operation, as opposed to highly
formalized organizations where routines are taken as rigid
routines, source of inertia. This article appropriates from this
literature, seeking first to extend the idea of organizational
routines, emphasizing the interpre-tationist dimension, pointing
out the role of conflict and finally reviewing the heuristic value
of the dichotomy between collapse of sensemaking and sensemaking.
This reappropriation allows us to prepare the ground for the
introduction and analysis of the Repente metaphor and subsequently
to compare it with the metaphor of Jazz. We attempt to show how the
structures of Repente allow improvisation while protecting each
opponents space. This setting is important when one takes conflict
as the pre-dominant vector for improvisation.
Key-words: Organizational routines, improvisation, sensemaking,
conflict, Repente
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Vasconcelos
Introduo
A metfora do Jazz-como-improvisao foi introduzida nos estudos
organi-zacionais com o intuito de reforar a contraposio ao modelo
burocrtico. De forma caricatural, poderamos sintetizar o argumento
da seguinte forma: a) as organizaes (principalmente as burocrticas)
desenvolvem rotinas rgidas, b) essas rotinas so postas em dvida
apenas quando h um colapso do sensemaking, c) o que leva
necessidade de improvisao e recriao das rotinas. Em contraste, d)
os msicos de Jazz se engajam na improvisao sem que haja
ne-cessariamente um colapso do sensemaking (como por exemplo, um
grave erro de um msico), e essas prticas poderiam ser traduzidas
para a realidade organizacional. Assume-se que as bandas de Jazz
sejam e) harmnicas, democrticas, e informais (talvez um revival da
metfora de organizao orgnica) e com isso a improvisao transcorre de
forma esteticamente agradvel. No decorrer desse artigo, retomaremos
a esses pressupostos.
No lugar do entendimento convencional das rotinas como rgidas e
inertes, ofereceremos uma viso mais flexvel das rotinas ao
explicitar suas dimenses osten-siva e performativa. Se as rotinas,
mesmo em contextos mais burocratizados, no so plenamente rgidas,
possvel vislumbrar uma dinmica de mudanas nas rotinas que prescinde
do elemento de colapso de sensemaking. Se o Jazz aparecera na
litera-tura como bala-de-prata para a promoo da improvisao
espontnea, tentaremos mostrar que a improvisao pode ocorrer de
forma deliberada em contextos altamente estruturados. Finalmente,
ao retratar a banda de Jazz como um grupo harmnico, tememos que o
papel conflitivo da improvisao no ganhe a nfase necessria.
Em comparao com o Jazz, caracterizado como o lcus social onde h
pre-dominncia de interaes informais e coeso grupal e o conflito
tomado como se-cundrio, sugerimos o estudo do Repente, que por sua
vez evidencia o conflito como um elemento central, e existncia de
rotinas que demarcam o territrio dos atores envolvidos, sugerindo
maior formalizao. Mostraremos que o Repente nos ajuda a pensar as
metforas musicais como configuraes (RAGIN; BECKER, 1992): na
me-dida em que encontremos nos diversos gneros musicais combinaes
distintas das dimenses crticas, podemos tornar a comparao entre a
metfora e as organizaes um exerccio de gerao de novos conhecimentos
ao evidenciar tanto na metfora quanto na organizao os mecanismos
(anlogos ou alternativos) que do coerncia configurao.
Especificamente no estudo do Repente, mostraremos como o papel
central do conflito est ligado improvisao e suportado pela
estrutura de versos (anlogo aos processos organizacionais). Essa
estrutura ao mesmo tempo protege o espao de cada msico, mas permite
a improvisao temtica e obriga as partes a engajarem--se em
dilogo.
A centralidade das rotinas organizacionais
Um dos conceitos centrais para esse artigo a centralidade das
rotinas para entendermos o comportamento organizacional. Rotinas
podem ser definidas como atividades repetitivas, cujos padres podem
ser reconhecidos e associados a aes interdependentes, levadas a
cabo por mltiplos atores (FELDMAN; PENTLAND, 2003; PENTLAND, 2010).
Recentemente, agregou-se a ideia de que rotinas tambm so associadas
a predisposies adquiridas atravs de atividade passada e que podem
ser reativadas se evocadas pelo estmulo adequado. (BECKER; ZIRPOLI,
2008)
Tradicionalmente, a literatura assume as rotinas como estveis e
associadas a um baixo engajamento cognitivo. (REYNAUD, 2005) March
e Simon (1958) identifica-ram nas rotinas uma das fontes de reduo
de esforo cognitivo, na medida em que permitiam reduzir os esforos
de busca de solues, assim como abreviar o tempo dedicado deliberao.
As rotinas tambm so importantes para reduzir incertezas (BECKER;
KNUDSEN, 2005), e podem ser o resultado de trgua entre partes
(por
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exemplo, de departamentos) em conflito. (NELSON; WINTER, 1982;
ANTONELLO; GODOY, 2009; PENTLAND, 2010)
Se partirmos do pressuposto que as rotinas estabilizam a interao
interpes-soal, coerente assumir que os indivduos tero pouco estmulo
para modific-las, ganhando um alto grau de estabilidade. Sob esse
ponto de vista, como poderamos entender a mudana nas rotinas? Cyert
e March (1963) elaboraram um modelo adap-tativo, localizando em
meta-rotinas a fonte da mudana nas rotinas respectivamente
subordinadas (ver tambm BECKER et al., 2005).1 Uma outra forma de
mudana o estmulo dos gestores aos subordinados de desempenhar a
mesma rotina de forma distinta. (ADLER; GOLDOFTAS; LEVINE, 1999) No
outro extremo do espectro, pes-quisadores alinhados com a Ecologia
Organizacional enxergam nas rotinas uma fonte de inrcia
organizacional que rompido apenas com um choque externo capaz de
forar a organizao a uma reorganizao mais profunda. Vale ressaltar
que nessas abordagens as rotinas so sempre vistas de forma
reificada elas existem de forma objetiva e inequvoca, seja como
fonte de inrcia, ou como subproduto da atividade
organizacional.
Em contraste, propostas recentes vm reexaminando o conceito de
rotina com a finalidade de reinterpretar as rotinas como elementos
intermedirios entre estrutura e agncia. (BECKER, 2004) Pentland e
Feldman (2005) propuseram que o estudo das rotinas deve cobrir
sempre duas dimenses, a ostensiva e a performativa. A dimenso
ostensiva se refere ao aspecto explcito, verbal e formalizvel, e
tambm abstrato das rotinas. Em contraste, o aspecto performativo
leva em considerao que as rotinas so concretizadas na medida em que
so efetivamente desempenhadas atravs de prticas.
Ao propor a existncia dessas duas dimenses, possvel verificar
que a rotina em sua dimenso cognitiva no ganha correspondncia
unvoca nas prticas, como se as prticas pudessem ser determinadas
pelas rotinas. Ao contrrio: a sustentao da rotina pode dar-se
atravs do desempenho de prticas concretas que fogem do
reconhecimento consciente da gesto (BECKER; ZIRPOLI, 2008), ao
mesmo tempo em que no justo fixar o aspecto ostensivo como
antecedente ao aspecto performativo. O ltimo pode influenciar o
primeiro, na medida em que a codificao de prticas em rotinas pode
ser relacionada como um esforo estruturante. (GIDDENS, 1986)
importante salientar que possvel estabelecer vnculos diretos
entre ambas as dimenses com abordagens interpretativistas vida
organizacional. Em oposio a uma leitura objetivista das rotinas,
entende-se que seu aspecto ostensivo est sempre aberto para
reinterpretaes e no pode ser tomado como uma entidade unificada.
(PENTLAND; FELDMAN, 2005) Alm disso, a especificao da dimenso
ostensiva nunca exaustiva, sempre permitindo que as respectivas
prticas variem, satisfazendo de forma diversa as lacunas deixadas
pela dimenso formal. (BECKER, 2004; COHEN, 2007) Traduzindo essa
ideia para as metforas musicais, isso corresponde evidncia de que
mesmo na execuo da msica erudita, onde poderamos conceber a
partitura como exaustiva em suas instrues, h liberdade de
interpretao.
Alm disso, a interpretao das rotinas tambm depende da experincia
pas-sada e da leitura da situao. Dessa forma, h uma relao forte
entre sensemaking e a abordagem interpretativista das rotinas.
(REYNAUD, 2005; COHEN, 2007) Se a atividade ligada s rotinas
depende de interpretao da dimenso ostensiva e da traduo dessa
dimenso em prtica, alcanando atravs de esforo uma adequao aceitvel
entre as duas dimenses, h pelo menos trs formas em que o
sensemaking um elemento preponderante na constituio das rotinas: na
interpretao do as-pecto ostensivo, na interpretao da situao e na
reapropriao de experincias passadas. De forma correlata, possvel
pensar no sensemaking organizacional como fortemente influenciado
pelas rotinas, na medida em que as rotinas influenciam a ateno
organizacional.
1 Feldman e Pentland (2003) identificam a ideia de meta-rotina
de Cyert e March como an-tecessora a ideia atual de capacidades
dinmicas.
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Se as rotinas no so simplesmente tidas como dadas e facilmente
reproduzi-das, mas que so suscetveis interpretao e dependem de
esforo para o alcance de nveis aceitveis de desempenho em situaes
diversas, podemos admitir que haja uma fonte endgena de mudana nas
rotinas. (NELSON; WINTER, 1982; BECKER et al., 2005) Como corolrio
da mudana que ocorre a cada vez que uma rotina performada, sempre h
um elemento de improvisao. (JOAS, 1996; PENTLAND; FELDMAN,
2005)
Para o nosso estudo, importante tambm enfatizar o aspecto
coletivo e rela-cional das rotinas. (PENTLAND, 2010) Como
salientado acima, as rotinas por definio so um fenmeno coletivo,
interpessoal, enquanto que as atividades que se restringem aos
indivduos sem serem compartilhadas ou sem aspectos interpessoais so
corren-temente definidas como hbitos individuais. A possibilidade
de compartilhamento de rotinas torna-as passveis de serem
distribudas nas organizaes. (BECKER, 2004) De forma correlata, como
adquirem um status de coordenao interpessoal, tambm exigem um mnimo
de consenso, exigindo o sensemaking coletivo e sustentao de
interpretaes intersubjetivas. Em situaes onde h presso para o
desempenho de rotinas (por exemplo, tempo exguo para a realizao de
tarefas), possvel que haja menor predisposio dos indivduos para
engajarem-se em sensemaking coletivo, le-vando a possvel rompimento
na rotina. (WEICK, 1993; BECKER, 2004) Se a trgua entre os
indivduos envolvidos j no mais sustentvel, o conflito interpessoal
pode levar remoo da sustentao social da rotina (ZBARACKI; BERGEN,
2010)
A partir desses elementos, possvel sugerir um mecanismo dinmico
de mu-dana das rotinas, como resultado da interao entre indivduos e
grupos dentro das organizaes. Na medida em que rotinas so
relacionais, elas sempre dependem do status intersubjetivo e,
portanto, se sustentam em um acordo (tcito ou explcito). (BECKER et
al., 2005) Essa mudana pode ocorrer ainda que seu aspecto ostensivo
se mantenha inalterado. Eventualmente o aspecto ostensivo tambm
poder ser al-terado para dar conta das modificaes nas prticas
concretas dos grupos engajados na rotina. Essa dinmica pode ser
descrita como um mecanismo coevolucionrio de mudana de rotinas
atravs de interaes intraorganizacionais. (NELSON; WINTER, 1982;
BECKER, 2004)
Sensemaking, incerteza e improvisao
Como apontamos acima, torna-se importante recuperar o conceito
de sense-making proposto por Weick e sua relao com as rotinas e a
improvisao. Tentaremos mostrar uma possvel bifurcao na apreenso
desse conceito de Weick. Por um lado, h possibilidade de utilizao
desse conceito a partir de uma perspectiva realista, onde a ao
social presume a existncia de uma realidade objetiva e plenamente
com-partilhada. Em contraste, enfatizamos a apreenso
interpretacionista, onde a produo de sentido e negociao do
entendimento da realidade so dimenses imbricadas na ao social. Esse
deslocamento nos levar a uma releitura da ideia de colapso do
sensemaking e maior nuance da ideia de improvisao.
O conceito de sensemaking proposto por Weick (1998) est
intimamente ligado produo de sentido: Sensemaking envolve
transformar circunstncias em uma situao que possa ser compreendido
explicitamente em palavras e serve como tram-polim para a ao
(WEICK, 1998, p. 2, traduo nossa)2 Sensemaking transformar em
palavras a forma com que a organizao percebe o seu ambiente: Ns
sentimos um entusiasmo conjunto ao reestabelecer o sensemaking ao
torna-lo mais voltado ao futuro, mais macro, mais vinculado ao
organizar3 (WEICK, 1998, p. 2, traduo nossa)
o dar sentido s aes das pessoas para os fins da organizao e o
entendi-mento do grupo forma da realizao de suas tarefas. De acordo
com Weick (1998),
2 Sensemaking involves turning circumstances into a situation
that is comprehended explicitly in words and that serves as a
springboard into action.
3 We sense joint enthusiasm to restate sensemaking in ways that
makes it more future orien-ted, more action oriented, more macro,
more closely tied to organizing.
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Conflito e improvisao por Design: a metfora do Repente
o sensemaking se faz mais explcito quando h um evento inesperado
na organizao e que poucas pessoas, ou ningum, tem conhecimento
anterior de referncia para lidar com essa situao imediatamente;
portanto, naquele momento, a organizao ser obrigada a aprender com
esta nova situao. O sensemaking tem as seguintes caractersticas
(WEICK, 1998): a) organiza o fluxo de experincia, dando coerncia
aos eventos percebidos; b) produz e renova as categorias
cognitivas, organizando os eventos percebidos em esquemas
cognitivos compartilhados, c) sustenta e produzido de forma
concomitante ao social: Se a primeira pergunta do sensemaking O que
est acontecendo aqui?, a segunda questo igualmente importante O que
fao em seguida?.4 (WEICK, 1998, p. 13, traduo nossa)
Um elemento central na ideia de sensemaking o papel da
incerteza. Iniciemos a anlise dessa relao a partir de um
experimento mental, propondo uma situao fictcia onde inexiste a
incerteza. Nessa situao, a produo de sentido seria trivial: todas
as informaes relevantes seriam plenamente compartilhadas,
coletivamente interpretadas da mesma forma, eliminando, portanto, o
elemento subjetivo e inter-subjetivo da ao humana. Nesse sentido,
poderamos sugerir a articulao dessa ideia com as elaboraes tericas
recentes nos estudos de rotinas organizacionais. Se as situaes
pudessem ser concebidas como destitudas de incerteza e o elemento
intersubjetivo concebido como trivial, poderamos admitir como
corolrio uma viso das rotinas organizacionais limitada dimenso
ostensiva descrita acima.
No entanto, ao defrontar-se com a incerteza, intrnseca a toda ao
humana, que a produo de sentido se faz como uma atividade no
trivial. Essa ideia se desdobra em duas implicaes importantes para
o nosso entendimento da ao social dentro das organizaes. Em
primeiro lugar, podemos entender a dimenso performativa das rotinas
como um corolrio da existncia intrnseca da incerteza, em graus
variados, na experincia individual e coletiva.
Entretanto, possvel que invertamos os termos da equao: ao darmos
a devida nfase dimenso agntica e colocarmos como pressuposto a
necessidade e direito de todos indivduos em produzir sentido para
aquilo que fazem, isso nos leva possibilidade que os indivduos, de
forma deliberada introduziro e toleraro incerteza em suas situaes
cotidianas para que a partir disso possam mobilizar sua capacidade
de gerao de sentido. Em outras palavras: sem incerteza, no h
oportunidade de recriao de sentido, o que nos obriga a abandonar o
pressuposto que os indivduos conseguem eliminar completamente a
incerteza de seu dia a dia.
A partir desse posicionamento, podemos fornecer o marco terico
para a im-provisao dentro das organizaes. Improvisao pode ser
definida como a distncia entre o planejamento e a execuo (VENDELO,
2009), o que nesse sentido, define--se com trs caractersticas
importantes: a) assume um objetivo (no apenas uma atividade
aleatria), b) extempornea (no h como planejar como a improvisao ir
ocorrer) e c) ocorre durante a ao. (CUNHA; CUNHA; KAMOCHE,
1999)
A improvisao pode ser concebida como a ao social que permite o
desatar-rachamento (uncoupling) da dimenso performativa e ostensiva
das rotinas, e pode ser motivada por eventos exgenos como choques,
por questes de complexidade sistmica, por falhas e variaes
individuais, mas tambm por ao deliberada, seja do indivduo, de
grupos, ou por design organizacional.
Como mostramos acima, o elemento performativo pode levar a
variaes nas prticas concretas, sem levar a modificaes na parte
ostensiva. Dessa forma, a im-provisao desencadeada pelos fatores
listados acima poder levar a variaes nas atividades, sem com isso
promover uma desestabilizao da dimenso ostensiva das rotinas, o que
permite a manuteno da coordenao, dado que os atores entendem que as
modificaes introduzidas no implicam em um rompimento dos elementos
ostensivos compartilhados, essenciais para a coordenao.
Na prxima sesso, recuperaremos a relao entre improvisao e
colapso do sensemaking. Argumentaremos que embora essa relao tenha
sido til como estra-
4 If the first question of sensemaking is Whats going on here?,
the second equally important question is, What do I do next?.
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tgia heurstica para explorar a relao entre incerteza,
sensemaking e improvisao, ela traz o risco de uma nfase exagerada
em casos limtrofes.
Deslocando a centralidade do colapso do sensemaking
Karl Weick utilizou uma srie de casos limtrofes de perda de
sentido (colapso do sensemaking) com o objetivo de evidenciar como
se d a ao social e a recons-truo do sentido quando categorias,
esquemas cognitivos, narrativas, relaes de causa e efeito,
procedimentos sedimentados em processos formais, enfim, quando
elementos que de forma ampla podemos nos referir como sentido
usualmente evo-cado parecem no surtir efeito. (WEICK, 1993, 2010)
Traduzindo para o arcabouo terico sobre rotinas que elaboramos
anteriormente, essas situaes limtrofes levam os atores a
suspenderem a validade da dimenso ostensiva das rotinas. Nessas
situa-es, a improvisao motivada por choques externos ou rupturas
internas radicais. De forma correlata, a recriao de sentido pode
vir a modificar ou adaptar de forma extensa esses elementos
ostensivos.
Essa estratgia analtica, no entanto, arrisca dar uma nfase
exagerada s situaes limtrofes. Em outras palavras: a necessidade
lgica de enfatizar o papel da incerteza na produo do sentido leva
os estudantes de organizaes a coletar e analisar os casos onde h
uma perda radical de sentido. De forma correlata, retira-se a nfase
sobre situaes que seriam classificadas pelo pesquisador como
normais e, portanto destitudas do glamour necessrio para nossa
ateno. Nesse sentido, interessante que o exemplo do desastre de
Mann Gulch envolvesse bombeiros que no se conheciam e que dependiam
de convenes e rotinas altamente burocratiza-das para se coordenarem
(WEICK, 1993) o que refora a apreenso em relao seleo enviesada de
situaes limites.
Quando damos nfase exagerada s situaes limtrofes, arriscamos
enten-der a relao entre a incerteza e a ao social de forma
dicotmica: a incerteza experimentada como plena (collapse) ou
tomada como completamente eliminada (taken-for-grantedness). O
mesmo problema se espraia nos conceitos conexos: as rotinas existem
como objetivas e dadas, ou simplesmente no do conta dos eventos
percebidos. E, sobretudo, o ator social concebido como realista, na
medida em que acredita e exige uma realidade externa e objetiva
para agir. Ainda que o prprio pesquisador saiba que esse
posicionamento epistemolgico no sustentvel, cabe a indagao quanto
necessidade de conceber o ator social dessa forma. Embora no
acreditemos que tenha sido essa a inteno original de Karl Weick,
entendemos que essa pode ser uma das formas de apreenso de sua
ideia de sensemaking, rotinas, e colapso do sensemaking quando se
privilegia o material emprico coletado a partir de desastres,
acidentes e outras situaes limtrofes.
Apresentao e reapropiao da metfora da improvisao no Jazz
A situao distpica do colapso do sensemaking parece depender de
uma viso de rotinas rgidas, onde a dimenso ostensiva e performtica
esto fortemente atarrachadas (tightly coupled), talvez prprio de um
contexto altamente formalizado (por exemplo, CROZIER, 1963). Dessa
forma, no estaremos cometendo uma injustia ao contextualizar a
crtica de Weick dentro de uma corrente de pensamento na segunda
metade do sculo XX, que buscava rejeitar a excessiva formalizao e
burocratizao como solues necessrias. Nesse contexto, a apresentao
de alternativas viveis
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torna-se um esforo ao mesmo tempo propositivo e terico. nesse
contexto histrico que a metfora do Jazz pode ser melhor
apreciada5.
Ao descrever e relatar a metfora da improvisao do Jazz, Weick
nos convida a pensar como os indivduos poderiam, de forma
voluntria, colocar em dvida a percepo da sua realidade e, por
consequncia, a forma como enxergam as rotinas. Weick evoca a
improvisao no Jazz como uma situao ideal de criatividade, onde os
indivduos podem livremente negociar o desenrolar da sequncia
musical. Em contraste com organizaes tradicionais, aqui os
indivduos so levados a introduzir delibera-damente a incerteza em
seu dia a dia, emulando o caos que podemos observar em uma
performance jazzstica. (BARRETT, 2012) A seguir, recuperaremos os
elementos que guardam afinidade com essa forma de apresentao do
Jazz.
De criao afro-americana, o Jazz um estilo derivado do Blues
originrio de New Orleans, onde, durante e ao fim da escravido,
artistas negros expressavam sua condio musicalmente, utilizando-se
da influncia europeia da msica clssica. Di-versos artistas romperam
as barreiras da msica inovando as tcnicas da formalizada msica
clssica para uma transformao mais sincopada no ragtime de Buddy
Bolden e Scott Joplin. Seguido de novas formas de cantar e tocar os
instrumentos clssicos de orquestra, como o saxofone e o trumpete,
com Louis Armstrong and Sidney Bechet; que inspiraram,
posteriormente, os msicos que nessa poca tambm rompiam as barreiras
raciais Benny Goodman e Glenn Miller com suas orquestras de swing.
(BURNS; DAVID; CORREL, 2001; BERLINER, 1994)
O swing popularizou o Jazz, pelo seu ritmo acelerado e forma
danante, tornando-se o principal estilo musical em Nova York e Los
Angeles. No entanto, a vontade de romper ainda mais barreiras na
execuo musical com grande ousadia, outros subestilos do Jazz
surgiram como o Bebop, Cool Jazz, Free Jazz, nos anos 40 e 50, ao
Jazz Fusion e Post Bop nos anos 60 e 70, ao Jazz experimental dos
anos 80 em diante. (BURNS; DAVID; CORREL, 2001) Hoje, o Jazz pode
ser considerado um estilo musical de experimentao, no qual os
artistas procuram um estilo pessoal de execuo, se diferenciando dos
demais msicos, testando o limite dos seus talentos. Um grande
exemplo o pianista Thelonious Monk, que, atravs da dissonncia de
sons, marcou-se como um pianista inovador. (GOURSE, 1997)
Cooperao e conflito no Jazz
O Jazz comumente idealizado como um estilo musical democrtico na
medida em que traz a possibilidade para que cada indivduo expresse
o seu estilo pessoal na msica. Ao mesmo tempo, concebido como um
estilo cooperativo, onde todos esto empenhados em resguardar a
coeso interna da msica. A cooperao tomada como necessria para que o
grupo todo produza uma boa apresentao.
Quando uma sesso de Jazz tpica comea, os msicos tocam parte da
melodia principal, acrescentando o seu estilo prprio, batida e
arranjos. Segue-se ento s improvisaes: enquanto um msico desenvolve
sua improvisao, os outros acompa-nham em um volume mais baixo para
que o solista possa se destacar. Para que exista ordem no
revezamento dos solos, o lder da banda determina o tempo e a ordem,
para que cada msico de Jazz fique mais vontade para criar o seu
solo no tempo da msica que lhe foi concedido, sem ser abruptamente
interrompido por outro.
Portanto, a cooperao tornou-se um elemento central na forma como
entende-mos o Jazz. Essa percepo reforada pelas evidncias trazidas
pela etnomusicologia:
[A] comunidade do jazz esposa uma [] viso de liberdade de
expresso que enfatiza a interdependncia mtua dos msicos que de
certa forma limita a liberdade individual. Para Leroy Williams,
tocar jazz como um esforo de equipe, do tipo que voc encon-tra em
basquete ou beisebol. Cada um deve desempenhar sua tarefa
especfica. Essa
5 Apesar do foco desse artigo ser o Repente, acreditamos que
podemos nos beneficiar da anlise da metfora do Jazz, com o objetivo
de refletir criticamente quanto apropriao dessa metfora.
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a nica forma de marcar pontos. Um jogador no consegue tomar para
si todos os lances no basquete, por exemplo. Ele tem que ficar na
retaguarda de vez em quando. Voc tem que dar a bola para o jogador
que tiver a melhor posio, qualquer que seja ele. um grande esforo
coletivo e quando todos esto em harmonia, assim que as melhores
coisas acontecem. As vezes voc tem que sacrificar suas melhores
ideias.6 (BERLINER, 1994, cap. 15, grifo nosso, traduo nossa)
Quando tocam em conjunto, cada artista transmite seu estilo
individual que compreendido pelos colegas que o correspondem tambm
com seus estilos individuais. O resultado da interao de uma banda
de Jazz em uma jam session,7 por exemplo, o equilbrio do talento
individual de cada um. A caracterizao acima nos leva a crer que a
improvisao no Jazz, para que tenha sucesso, deva comprometer-se com
o ideal de harmonia do grupo, suprimindo a competio e conflito8
entre os membros da banda. Essa uma fotografia simplificada do
Jazz, onde as relaes de poder e dominao tambm esto presentes.
(ZACK, 2000) Em primeiro lugar, concebe-se as relaes internas ao
grupo de Jazz como preponderantemente horizontais, minimizando a
assimetria de poder que se pode observar empiricamente na histria
do Jazz. Em segundo lugar, o grupo de Jazz imaginado como um espao
social harmnico, onde o conflito tem um papel secundrio.
A liderana no Jazz geralmente vista como secundria, e funcional,
na medida em que caracterizada como uma varivel epifenmica
liberdade, coeso e harmo-nia no Jazz. O lder da banda concebido
como o coordenor dos membros do grupo dando igual oportunidade para
solar, indicando por gestos ou olhares, quem deve ser o prximo, ou
quando algum deve parar.
Em contrapartida, historicamente podemos observar na histria do
Jazz o papel do poder hierrquico do lder (principalmente nas big
bands de Swing, mas mesmo em pequenas bandas como a de Miles
Davis). O conflito entre os msicos para con-seguir um pouco mais de
espao de solo bem documentado pela etnomusicologia e um elemento
constitutivo da emerso de novos estilos. (BERLINER, 1994; DE-VEAUX,
1999) No Jazz, a competio torna-se mais evidente quando os msicos
de uma banda tentam superar seus colegas na apresentao, mas sem
importarem-se como seus colegas iro reagir ou se eles sabero
acompanh-lo; ou mesmo sabendo, o colega no pode lhe superar
tecnicamente, portanto, podendo ser deliberadamente competitivo.
Berliner (1994) nos oferece uma passagem:
Uma vez, ao final de uma cano numa apresentao no Sweet Basil em
Nova Iorque, Lonnie Hillyer diminui seu ritmo de repente e comeou a
improvisar a cadencia num tom fora da mtrica. Olhando do teclado
surpreendido, o pianista instantaneamente diminui seus padres
rtmicos e trocou olhares rpidos com o percursionista que aban-donou
as baquetas pelas vassouras para criar ondas de som desprendidas de
ritmo com seus cmbalos. Na medida em que o ritmo e a textura da
msica mudou ao seu
6 [T]he jazz community espouses a [] view on freedom of
expression, stressing the mutual interdependence of players and
someway limiting individual freedom. For Leroy Williams, playing
jazz is like a team effort, the kind you find in basketball or
baseball. Everybody has to do their specific job. Thats the only
way youre going to score. One guy cant take all the shots in
basketball, for instance. He has to lie back at times. You have to
give the ball to whichever player has the best shot. Its one big
group effort, and when everybodys in harmony, thats when the best
things happen. You have to sacrifice your own ideas at times.
7 Jam Sessions so um tipo de apresentao do Jazz em que diversos
msicos, que trabalharam juntos previamente ou no, revezam em bandas
a fim de demonstrarem seus talentos. Geralmente, participam de Jam
Sessions, msicos desconhecidos ou no profissionais, como uma
oportunidade de prtica em banda.
8 Em vrios pontos desse artigo nos referiremos aos termos
competio e conflito como conceitos prximos, mas distintos. Enquanto
a competio marca a disputa por recursos excassos (como por exemplo,
a ateno da plateia), ela no implica a desestabilizao das regras e
do framing de uma situao. Em contraste, o conflito j implica no
questionamento do framing mais apropriado para a situao em questo.
Essa distino entre competio e conflito o que leva socilogos como
Georg Simmel e Robert E. Park pensarem o conflito social como um
escalonamento da competio.
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Conflito e improvisao por Design: a metfora do Repente
redor, o baixo ficou confuso de incio e parou de tocar. Mas em
seguida, entretanto, ele comeou a dedilhar o baixo como se fosse um
violo e tocou em conjunto com os outros msicos enquanto Hillyer
conclua a cano.9 (BERLINER, 1994, p. 377, traduo nossa)
Se por um lado as evidncias de competio no Jazz frustram a viso
idlica desse estilo como um lcus harmnico e cooperativo, justamente
o impulso ao destaque individual e o embate tcnico nas cutting
sessions que fez surgir o Bebop, o paradigma do Jazz moderno.
(DEVEAUX, 1999) Em contrapartida, a ideia de que o Jazz deve
permanecer como um estilo onde o coletivo se sobrepe ao indivduo e
a improvisao coletiva seja a nica autntica (em detrimento da
improvisao indivi-dual percebida como comercial) acusada de
primitivismo. (GIOIA, 1989) Ou seja, a ideia de que para o Jazz ser
autntico, seus msicos devem manter suas caracte-rsticas originais
(especificamente a harmonia coletiva em detrimento da expresso
individual) origina-se de um movimento intelectual norte-americano
dos anos trinta que apoiava o New Deal, no qual o jazz era
apropriado como smbolo de coeso social. Essa apropriao torna-se um
problema para ns, estudantes de organizaes no Brasil, quando tomada
de forma acrtica e a-histrica, sanitizada de conflitos e assimetria
de poder. Ainda assim, podemos acatar a ideia de que o papel do
conflito no Jazz , na melhor das hipteses, coerente com a coordenao
informal. Com o propsito de enderear a dimenso conflituosa das
organizaes de forma mais direta, trabalhos como de Kamoche, Cunha e
Cunha (2003) trouxeram aos estudos organi-zacionais gneros
musiciais alternativos como o da msica indiana. Ao abordarmos o
Repente, esperamos contribuir para esse esforo, buscando analisar
uma forma de improvisao que combine dimenso conflituosa promovida
de forma deliberada e sustentada pelas rotinas.
Rotinas e Improvisao no jazz
A improvisao no Jazz acontece em dois nveis: do indivduo e do
grupo como um conjunto. A improvisao no nvel individual mais
perceptvel quando o artista est solando. A improvisao individual
influenciada pelo prvio preparo do artista. Assim como as
organizaes utilizam-se da sua memria organizacional para rea-lizar
suas atividades, o artista tambm utiliza na sua improvisao seu
aprendizado passado sobre teoria musical, execuo do instrumento e
tambm o aprendizado ao ter escutado msicos que o precederam.
Msicos de seo rtmica se baseiam na sua experincia de execuo
musical para improvisar acompanhamentos compatveis dentro dos
arranjos musicais, satisfazen-do assim as expectativas do grupo de
uma interao bem-sucedida. [...] Para cada gerao de improvisadores,
as prticas acumuladas de performance da tradio do Jazz tm servido
como diretrizes gerais de composio, delimitando as possibilidades
infinitas dentro do papel de cada instrumento e contribuindo para a
coeso musical coletiva.10 (BERLINER, 1994, p. 347, traduo
nossa)
9 Once, at the close of a ballad in a set at New Yorks Sweet
Basil, Lonnie Hillyer slowed his tempo suddenly and began
improvising a cadenza in unmetered time. Looking up from the
keyboard in surprise, the pianist instantly slowed his comping
patterns and exchanged quick glances with the drummer, who switched
from sticks to brushes to create free-rhythmic waves of sound with
his cymbals. As the musics tempo and texture changed around him,
the bass player appeared flustered initially and stopped
performing. Soon, however, he began to strum the bass softly like a
guitar and phrased in step with his counterparts as Hillyer
concluded the ballad.
10 Rhythm section players draw upon their knowledge of the
interrelated performance practices sampled above to improvise
compatible accompaniments within arrangements, thereby satisfying
the groups expectations for successful interaction. [...] For each
generation of improvisers, in effect, the jazz traditions
cumulative performance practices have served as general
compositional guidelines, delimiting otherwise infinite
possibilities for invention within each instruments part and
contributing cohesion to collective musical invention.
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Como sugerimos acima, podemos identificar as seguintes fontes de
improvisa-o, em relao s rotinas organizacionais. Em primeiro lugar,
desatarrachamento da dimenso performativa da dimenso ostensiva. Em
segundo lugar, choques exgenos e estmulos endgenos podem levar a
variaes nas prticas (dimenso performativa), podendo ou no levar a
uma modificao na dimenso ostensiva das rotinas. Essas duas fontes
no so excludentes. No Jazz, os msicos podem deliberadamente criar
interpretaes distintas a partir da mesma base harmnica, mas fugindo
da base meldica original. (BARRETT, 2012) Como a mesma base
harmnica pode se referir a inmeras canes distintas, mesmo que no
haja um perfeito compartilhamento de repertrio, possvel que msicos
que nunca se viram antes, nem conheam as mesmas msicas possam tocar
juntos. (FAULKNER; BECKER, 2009) Em contrapartida, o distanciamento
da base meldica original pode ocorrer em virtude de um erro ou
provocao de um colega.
Finalmente, a forma de construo da msica muitas vezes
caracterizada como catica, completamente livre, como se a
improvisao fosse a expresso pura e ab-soluta de uma ao livre,
destituda de regras. Oguri, Chauvel e Suarez (2009) mostram como a
improvisao a partir de estruturas mnimas permite que a organizao
resista rigidez tipicamente associada ao planejamento burocrtico.
No Jazz, h diferentes nveis de improvisao que podem ser comparados
a diferentes tipos de organizaes. No trabalho de Moorman e Miner
(1998), utiliza-se um departamento de pesquisa e desenvolvimento de
uma organizao como exemplo nos diferentes nveis de improvisao:
Primeiro nvel: acrescenta-se modificaes simples, para embelezar
e orna-mentar uma pea pr-existente. Segundo Moorman e Miner (1998),
como se modificasse uma caracterstica de um produto j
existente.
Segundo nvel: a improvisao na msica comea a expressar
caractersti-cas do artista, fazendo com que sobre menos elementos
da melodia original do que no primeiro nvel. Segundo as autoras,
como se a organizao criasse novos produtos, mas como variaes de
produtos pr-existentes.
Terceiro nvel: nesse nvel, o improvisador cria uma nova
estrutura, utilizan-do muito pouco da msica original, isso se no a
descartar. Ainda segundo as autoras, como criar um produto inovador
que no existe no mercado.
Fica evidente que, em contraste com uma viso de que a improvisao
se d de forma livre, estudos de musicologia no Jazz revelam que a
improvisao s pode ocorrer quando os msicos compartilham
coletivamente da base harmnica que rege a msica e logram modificar
a melodia de tal forma que a base harmnica no rom-pida. com esse
entendimento de como regras, normas e procedimentos que sejam
abstratos suficientes permitem uma adaptao s situaes concretas, mas
coerentes o suficiente para manter a coeso em torno de objetivos
comuns. (STINCHCOMBE, 2001; DAVIS; EISENHARDT, BINGHAM, 2009)
Como apontado acima (seo 1), erros podem levar improvisao
(FLACH; ANTONELLO, 2011) e mudana das rotinas. (RERUP; FELDMAN,
2011) Berliner indica um exemplo sobre o caso.
Durante uma execuo no clube Sweet Basil, o solo de Lonny Hillyer
vacilou, e ele precisou temporariamente segurar e tocar o trumpete
com a mo direita, enquanto ele passava a esquerda pelo cabelo com
um nico movimento, como para se coar, e ento, passou levemente a mo
sobre sua orelha antes de retornar a mo esquerda ao trompete.
Compreendendo o gesto, o pianista instantaneamente passou de
pa-dres de acompanhamentos indescritveis para aberturas de acordes,
at que Hillyer recuperasse sua auto-confiana.11 (BERLINER, 1994, p.
381, traduo nossa)
11 During a Sweet Basil engagement in which Lonny Hillyers solo
faltered, he temporary held and played the trumpet with his right
hand, while he ran his left through his hair with a single motion,
as if to scratch an itch, then lightly brushed his ear before
replacing his left hand on the trumpet. Un-
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Conflito e improvisao por Design: a metfora do Repente
O erro fora os msicos a criarem um novo movimento para que ele
seja re-dimido.
Com relao ao ato de salvar uma msica por solistas, grupos de
jazz simplesmente tratam erros de execuo como problemas de composio
que exigem solues ime-diatas e coletivas, e em alguns casos,
exigindo a salvao hbil da execuo de um msico por outro.12
(BERLINER, 1994, p. 382, traduo nossa)
A flexibilidade com que os eventos acontecem durante as
apresentaes levam a esse tipo de evento.
Dentro do passo normal de uma apresentao, improvisadores devem
reagir de forma criativa s surpresas que surgem constantemente.
Mudanas inesperadas de eventos ocorrem de todas as maneiras: nos
detalhes de cada parte e nas mudanas peridi-cas de grande escala em
programas de repertrio e estruturas formais que orientam a
improvisao. Esta ltima ocorre geralmente quando o fluxo de idias de
uma apresentao faz com que o grupo mude seu estilo de
acompanhamento a fim de se igualar execuo de um improvisador
externo. Em ltima anlise, a flexibilidade com que os msicos tratam
arranjos musicais e de seus repertrios, seja ornamentando
sutilmente ou alterando as suas caractersticas substancialmente,
refora o esprito de improvisao de performances. 13 (BERLINER, 1994,
p. 374, traduo nossa)
Gostaramos de propor na prxima sesso o estudo do Repente como
candidato metfora para o entendimento da ao social. Enquanto a
metfora do Jazz parece ser adequada ao entendimento da dinmica
interna de equipes coesas, acreditamos ser necessria a introduo de
metforas que deem conta de situaes onde as partes se encontram em
unidades distintas (departamentos, unidades de negcio, ou mes-mo
parceiros em aliana estratgica). Essas situaes se distinguem das
equipes na medida em que no podemos assumir uma coeso social
suficientemente forte para produzir a coordenao, nem podemos
assumir que a coordenao seja garantida por elementos hierrquicos de
governana, mas onde existem elementos institucionais de coordenao
(como rotinas) que permitem a improvisao.
O Repente como metfora: conflito por design, improvisao e
aprendizado
As razes do Repente14 remontam s tradies trovadoras da Pennsula
Ibrica por sua forma e poesia serem baseadas na sextilha
setissilbica, podendo variar para
derstanding the gesture, the pianist instantly switched from
elusive comping patterns to explicit chord voicings, which he
continued until Hillyer regained his confidence.
12 As for musical saves of soloists discussed earlier, jazz
groups simply treat performance errors as compositional problems
that require instant, collective solutions, in some cases the
skillful mending of one anothers performances.
13 Within the normal compass of their activities, improvisers
must respond creatively to surpri-ses that constantly arise during
performances. Unexpected turns of events occur everywhere: in the
ever-changing details of each part and in the periodic large-scale
changes in repertory programs and formal structures that guide
improvisation. The latter occur typically when the natural flow of
ideas conceived in performance leads a particular improviser
outside the groups agreed-upon formats and other players follow
along. Ultimately, the flexibility with which musicians treat
repertory and musical arrangements, whether subtly ornamenting or
substantially altering their features, enhances the im-provisatory
spirit of performances.
14 Em comparao com o volume de pesquisas sobre o Jazz, h pouca
literatura acadmica sobre o Repente. A maioria da literatura
formalizada sobre o repente apresentada neste trabalho foi
encontrada pelos autores fora do Brasil, apesar de serem resultados
de pesquisas financiadas pelo Ministrio da Cultura (MinC), como no
caso da obra de Salles (1985), ou ento, por serem resultado de
pesquisas de acadmicos americanos, alemes e franceses.
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quartilha e/ou para versos de dez slabas (CROOK, 2005; SALLES,
1985). Artistas nordestinos transformaram essa tradio musical
europeia atravs da mescla das culturas europeia, negra e indgena.
Eles expressavam sua situao de pobreza no Serto Nordestino, e
migrao dos nordestinos ao sul do Brasil; contedos sociais que
alimentaram a msica Repentista (MCGOWAN; PESSANHA, 1998) O Repente
tambm se desenvolveu no Par, principalmente na Ilha de Maraj.
(SALLES, 1985)
Segundo Crook (2005), os repentistas tinham a funo de crticos
sociais, his-toriadores, filsofos, e intelectuais orgnicos
comentando sobre os problemas dirios e sociais confrontados pela
populao rural e migrante do Nordeste em um momento em que tais
profissionais pouco existiam formalmente naquela regio.15 (CROOK,
2005, p. 94, traduo nossa) Atravs de sua poesia improvisada, os
cantadores discutiam assuntos desde os problemas sociais do seu
cotidiano a disputa da ateno de alguma mulher, usando como base a
melodia e ritmos achatados e quase montonos que so a base da msica
repentista (MCGOWAN; PESSANHA, 1998). Os tpicos abordados pelos
cantadores revestem-se de certa malcia e ironia, que s vezes
descambam para o insulto. (SALLES, 1985, p. 46)
O Repente ajudou a difundir a cultura nordestina para o resto do
Brasil, uma cultura tradicionalmente oral. A dana Baio executada
antes do Desafio (cantoria) em praas pblicas nas cidades do
Nordeste servia como preldio competio potica, que atraia sua
plateia. Os cantores produziam seus versos, mantendo seu ritmo
me-ldico constante acompanhado de suas violas de dez cordas,
pandeiro ou ganz. Um cantor expe uma questo, desafio ou insulto; o
outro responde tentando vencer seu oponente sempre na mesma forma
potica rigidamente observada. As palavras so cantandas planamente,
quase que montonas.16 (MCGOWAN; PESSANHA, 1998, p. 153, traduo
nossa) A disputa verbal, piadas e insultos divertem a plateia; e
depois da apresentao, passa-se um chapu para recolher algumas
moedas. (MCGOWAN; PESSANHA, 1998, p. 153)
O repentista tinha um status social elevado, e sobreviver com a
sua arte signi-ficava ter que encontrar o equilbrio entre manter as
tradies do Repente, enquanto se adapta ao meio social em que se
expressa, criando suas falas dentro dos costumes e da tica local. A
reputao do repentista era firmada principalmente ao receberem
convites dos fazendeiros para participar de desafios, e aqueles que
mais entretiam e venciam os desafios eram os mais convidados.
Portanto, o grande motivador para a competio no Repente o status
social conferido ao Repentista pela qualidade da sua arte. (MIGUEL;
SAUTCHUK, 2010)
Cooperao e conflito no Repente
O formato mais comum da msica repentista envolve dois cantadores
que utili-zam suas violas de dez cordas para acompanh-los enquanto
improvisam na criao de versos, discutindo e dialogando, dentro da
msica improvisada, um tpico especfico muitas vezes definido e
informado atravs de manifestaes vocais pela plateia; ou, no caso de
competies formais, a dupla recebia no palco o tpico da disputa em
um envelope selado. (SALLES, 1985; CROOK, 2005)
Travassos (2000) aponta que os valores imbudos no Repente
transformaram-se. Originalmente o Repente era uma expresso artstica
que envolvia conflitos acirrados. A plateia esperava que apenas um
cantor fosse o campeo, e esse receberia o total do dinheiro doado
pelos ouvintes. Em consequncia, os embates poderiam durar dias. No
era raro que esses duelos terminassem em lutas fsicas violentas;
portanto, em alguns casos, o cantador era tido como um marginal (ou
para usar a expresso de
15 Repentistas (as these singers-poets are also called)
functioned as social critics, historias, philosophers, and organic
intellectuals commenting on the daily problems and social issues
confronted by the rural and migrant populations of the
Northeast.
16 One singer poses a question, challenge, or insult; the other
responds, trying to top his op-ponent, always in the same rigidly
observed poetic form. The words are sung rather flatly, almost in a
monotone.
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Conflito e improvisao por Design: a metfora do Repente
BECKER, 1972, um desviante social), por envolver-se com lcool,
brigas e ser um andarilho sem razes.
Aps a profissionalizao e formalizao do Repente, os versos dos
cantadores passaram a definir com mais peso o vencedor da competio,
por exemplo, quando um cantador d-se por vencido ou fica-se claro
que um deles no possui mais argu-mentos contra o outro.
A emerso do perodo atual do Repente levou modificao de alguns
desses elementos. Em primeiro lugar, a busca de profissionalizao do
msico de Repente levou ao repdio da luta fsica. Em segundo lugar, e
mais importante, os msicos envolvidos em um embate j no se
preocupam em encontrar um vencedor. Ao con-trrio, h um esforo de
manuteno de uma equidade entre as partes, para que o jogo
mantenha-se equilibrado:
Um desafio envolve dois indivduos que se confrontam um contra o
outro como poetas. Como homens e mulheres comuns, suas identidades
sociais so constitudas por uma gama de atributos, como status,
relacionamentos, gnero, idade, religio, etc; mas ao entrar na arena
da execuo musical, eles devem esforar-se para suspender as suas
identidades sociais cotidianas, neutralizando esses atributos para
se envolver com o outro oponente como poetas, ou seja, como
iguais.17 (TRAVASSOS, 2000, p. 63, traduo nossa)
A fim de se obter uma certa equidade entre os dois cantadores,
algumas regras emergiram no Repente, notando-se que essas regras
esto embutidas no estilo mu-sical como um todo, e permanecem
durante a apresentao. Essas regras envolvem o formato dos versos e
o fato de que os dois cantadores devem garantir o espao do outro
para que tambm possa se expressar, diferentemente do caso da
competio no Jazz, quando um msico pode se arriscar a prolongar sua
improvisao roubando o tempo do colega. (SALLES, 1985; BERLINER,
1994)
A cooperao dentro do contexto competitivo pode ser observada em
vrios elementos do ethos contemporneo dos msicos de Repente. Em
primeiro lugar, cada msico providencia o acompanhamento para seu
parceiro. Os msicos tocam toadas conhecidas e que podem ser
facilmente acompanhadas por seus parceiros. Toadas so melodias e
canes que so conhecidas pela comunidade de repentistas e que formam
os repertrios dos subgneros, ajudando os repentistas a se guiar na
criao de versos, j que no h tempo hbil para que possam contar o
nmero de slabas por verso antecipadamente. O rtmo de melodias
padres, marcadas e compassadas ajudam-nos nessa criao.
Esse procedimento leva proteo do oponente de certa forma porque
se elimina o risco de desconhecimento da melodia e ao mesmo tempo
protege-se a voz e afinao do parceiro atravs da baixa variao
meldica. Em segundo lugar, as provocaes tpicas do Repente so
contidas para evitar-se a humilhao do opositor. O oposto acontece:
se a humilhao ocorre, aquele que ofende tem a sua reputao posta em
risco pela comunidade de repentistas. Finalmente, os repentistas
repartem as doaes recebidas da plateia, reforando mais uma vez o
carter cooperativo da competio.
A dupla inicia a msica em um mesmo nvel, ou seja, os dois
participantes tm o mesmo status diante da plateia. Na medida em que
a msica se desenvolve, um msico pode se sentir-se em desvantagem em
relao ao outro. Logo, o outro se sente vitorioso, por ter proferido
algo em um verso que poderia ter feito com a imagem do outro
diminusse. A vontade de um repentista em tentar vencer o outro
durante a msica faz com que exista um jogo de palavras,
derrubando-o s vezes,
17 A desafio involves two individuals who confront one another
as poets. As ordinary men and women, their social identity is
constituted by a range of attributes, such as status, a network of
relations, gender, age, religion and so on; but on entering the
performance arena, they must strive to suspend their everyday
social identities, neutralizing these attributes to engage with one
another as poets, that is, as equals.
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mas tambm, por solidariedade e para no cristalizar a assimetria
de status, ajudar o parceiro para que esse se recupere.
O elemento de improvisao entra no Repente novamente ligado ideia
de justia e equidade no embate, que s so possveis quando a interao
autntica (no ensaiada) e quando as partes tm oportunidades reais de
recuperar a face. Para que a interao no fique presa em rotinas
engessadas, preciso que ambos repentistas se engajem na improvisao.
Como salienta Travassos:
O princpio da prtica repentista a condenao do uso excessivo de
versos previa-mente preparados, o chamado decoro (memorizado) ou
balaio. Um balaio um receptculo para o transporte da safra, mas
metaforicamente, significa versos prontos, aqueles que foram
armazenados. A fim de impedir o uso de versos memorizados e
garantir a autenticidade das improvisaes, cantores podem ser
chamados a fazer a primeira linha de seu verso rimar com a ltima
linha da improvisao do seu parceiro; essa prtica chamada de pegar
na deixa[...].18 (TRAVASSOS, 2000, p. 80, grifos do autor, traduo
nossa)
Em resumo, o Repente contemporneo nos revela uma expresso
artstica que comporta a competio cooperativa. Os jogadores
esforam-se por manter o jogo justo, mantendo assim uma conduta tica
entre os repentistas. Seguindo Huizinga (1971), poderamos tambm
adicionar que esses jogos justos mantm o interesse dos competidores
e da plateia.
Quando um poeta demora demais para soltar seu verso, batendo nas
cordas da viola para pensar no que vai dizer, ele quebra o
andamento do dilogo potico e dispersa a ateno do pblico, o qual
tende a entender que o cantador que tarda insistentemente esteja
apanhando. Pecando pelo oposto, h poetas que, em disputas
acirradas, usam iniciar seu canto logo que o colega encerra sua
ltima slaba, quase emendando sua estrofe com a do outro, mas isso
no bem visto, porque inibe ou encobre aclamaes eventuais da
audincia (aplausos, gritos, elogios) estrofe do parceiro. (MIGUEL;
SAUTCHUK, 2010, p. 179)
Portanto, verificamos um forte consentimento com um conjunto de
regras e valores que regem a competio entre os repentistas. A
possibilidade de competio cooperativa que a) bloqueie a destruio
mtua, b) mantenha a simetria (justia) na competio e c) fomente
embates futuros possvel pelo desenvolvimento e consen-timento a
esse ethos contemporneo do Repente.
Rotinas e improvisao no Repente
As regras de versificao so inspiradas em diversos gneros
poticos, sendo a mais comum as sextilhas (versos de seis linhas de
rima abcbdb) de sete slabas de comprimento. Os temas das disputas
so escolhidos pela plateia que os comunicam gritando a distncia aos
cantores, que os convertem em jogos intelectuais, atravs de
argumentos trocados entre eles enquanto seguem estritamente as
regras poti-cas e meldicas. (SALLES, 1985; MCGOWAN, PESSANHA, 1998)
E o ltimo verso da sextilha deve permitir que o segundo cantador
consiga continuar com seu argumento buscando rimar seu primeiro
verso com o final do ltimo verso do cantador anterior, a chamada
deixa. (CROOK, 2005)
18 The principle norm in repentista practice is the condemnation
of the excessive use of pre-viously prepared verses, the so-called
decoro (memorized) or balaio. A balaio is a receptacle for
transporting the harvest, but metaphorically, it means ready-made
verses, ones that have been put away. To hinder the use of
memorized verses and guarantee the authenticity of the
improvisations, singers can be called upon to make the first line
of their verse rhyme with the last line of their partners
improvisation; this practice is called pegar na deixa [].
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Conflito e improvisao por Design: a metfora do Repente
A msica dos repentistas baseada na improvisao, pois eles criam
as suas falas no momento da execuo da msica, e criam um
acompanhamento musical simples em sua viola, como que apenas para
acrescentar um tom musical poesia. A melodia da msica repentista
bem simples, sendo quase montona e recitada, pois segundo Crook
(2005, p. 97, traduo nossa), a viola serve apenas para apoiar e
ajudar na interpretao da poesia, e no para ofusc-la.19 O repentista
Ivanildo Vilanova, entrevistado pelo peridico Folha de So Paulo,
afirma que quando vem um sujeito que s canta com a viola, que no
tem voz privilegiada, pobre em melodia, estranham. No percebem que
a fora do cantador a palavra. As pessoas preferem o barulho. Existe
um preconceito em relao ao cantador. (ALMEIDA, 1982)
O paralelo dos Jazz e do Repente com as organizaes
Metforas tm sido abundantemente utilizadas nos Estudos
Organizacionais. Oferecemos aos nossos alunos ilustraes vvidas de
empresas-como-mquinas ou organizaes-como-selva. Entretanto, a
utilizao das metforas limitadas s seme-lhanas e analogias ao mesmo
tempo desperdia oportunidades de descobrimento de novas associaes
conceituais, assim como obscurece o entrelaamento semntico dos
conceitos, assumindo a transposio imediata dos significados de um
contexto a outro. (TSOUKAS, 1991; PALMER, DUNFORD, 1996) Como
ilustrao: assistimos ao filme Ensaio de Orquestra de Federico
Fellini com o intuito de ilustrar conflitos den-tro de uma
burocracia. E curiosamente, em um dos depoimentos dos msicos nesse
pseudodocumentrio, a orquestra caracterizada como uma linha de
produo. Se a metfora deveria ser um espelho fiel da realidade,
Fellini inverte esse espelho e nos fora desancorar as metforas
(nesse caso, as musicais): a organizao burocrtica serve como
metfora aos msicos, que refletem at que ponto so capazes de criar e
se expressar. E mesmo em contextos onde acreditaramos estar
destitudos de au-tonomia (como em orquestras), h depoimentos de
liberdade de criao.
Cornelissen (2005) sugere que a utilizao de metforas deve ir alm
do esforo de evidenciar a simples similaridade, em direo criao de
novo conhecimento. Na medida em que os termos so correlacionados,
os proponentes da utilizao da metfora devem evidenciar de que forma
eles so reinterpretados, dado que se en-contram em domnios
semnticos distintos. Nesse esforo, os proponentes devem tambm
explicitar no apenas as semelhanas, mas tambm as tenses (diferenas)
de utilizao do mesmo termo em contextos distintos. a partir da
explicitao das diferenas que os termos ganham maior poder
analtico.
Alm disso, novo conhecimento pode ser gerado a partir da
identificao de rela-es causais existentes em um contexto, mas que
poderia ser investigados em outro. Por exemplo, no caso da metfora
do Jazz, evidenciamos como as regras simples constituem parte do
mecanismo que suporta a improvisao. tambm nesse sentido que a
utilizao das metforas vai alm da analogia: os elementos observados
podem ser gerados por causas distintas nos diversos contextos,
evidenciando a equifinalidade tpica da anlise configuracional. A
partir dos conceitos de rotina, sensemaking e im-provisao, partimos
para a comparao do Jazz e do Repente, visando a construo de pontes
para o estudo das organizaes.
Relao entre as dimenses ostensiva e performativa das rotinas. No
Jazz existe a possibilidade de migrao entre a melodia e harmonia,
enquanto marco orientador (aspecto ostensivo das rotinas). Essa
possibilidade torna as regras mais abstratas, aumentando o poder
discricionrio na dimenso performativa e, portanto, d maior espao de
criao e improvisao. J o Repente traz a dimenso ostensiva
aparentemente mais rgida, ao estabelecer a mtrica e a versificao.
No entanto, essa rigidez compatvel com a natureza conflitiva da
interao dos msicos, como
19 Viola serves only to support and help interpret the poetry,
not to overshadow it.
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iremos aprofundar a seguir. Em contrapartida, os msicos gozam de
alta liberdade de improvisao temtica.
Conflito. Enquanto no Jazz o conflito visto como algo secundrio,
talvez inde-sejado, no Repente o papel do conflito central. A
estrutura do jogo proposto aos seus participantes coloca os
oponentes em conflito; sua improvisao fruto dessa competio, e ambas
as partes aprendem um com o outro justamente por estarem em
competio, em contraste com a caracterizao idlica do aprendizado em
grupos harmnicos. (DEWEY, 2004) O conflito leva as partes a se
engajarem no reconheci-mento mtuo e estreitamento da relao.
(SIMMEL, 1955) Se as rotinas podem ser vistas como o resultado
cristalizado das trguas entre partes conflitivas (ver seo 1 acima),
ao promover o conflito, as organizaes tambm esto fomentando a
reviso das rotinas em suas diversas acepes.
Cooperao. Como exploramos acima, o Jazz bastante marcado pela
coopera-o tipicamente encontrado em equipes. Ainda que exista o
conflito e a competio, e esses desempenhem um papel importante para
o desenvolvimento de novos estilos20, salientamos que a dimenso
conflitiva no deliberada no Jazz, como no Repente. A existncia de
frico interna s equipes nas organizaes refora ainda mais a
ne-cessidade de releitura da metfora do jazz como um lcus onde h o
conflito e com-petio, ainda que o objetivo coletivo seja o de
realizao coletiva. (EINSENHARDT; KAHWAJY; BOURGEOIS, 1997;
LANGFRED, 2004)
interessante notar que embora o Repente traga a dimenso
conflitiva de forma explcita, existe a expectativa normativa que o
oponente salve a face do companheiro, assemelhando-se assim ao
salvar a face encontrado no Jazz, quando h erros. Essa constatao
importante, na medida em que o Repente nos ajuda a perceber como o
conflito s pode ser produtivo quando existe um esforo de ambas as
partes para que a relao perdure e que o conflito no seja disruptivo
(ver tambm nos embates no rap, LEE, 2009). Em comparao com o Jazz
(que se traduz melhor para situaes de equipe), sugerimos que o
Repente se traduza melhor para situaes onde h pouca ou nenhuma
coordenao via liderana, e ao mesmo tempo um alto grau de formalizao
da interao. Eccles e White (1998) reportam como o conflito entre
gestores de uni-dades de negcio autnomos em organizaes
multidivisionais ajudava ao CEO obter uma quantidade mais elevada
de conhecimento tcito. As interaes e a circulao de conhecimento se
davam atravs de rounds de negociao em torno de oramentos anuais e
estabelecimento de preos de transferncia. Nessa situao, o processo
de formulao do oramento deliberadamente conflitivo, e os atores
implicados devem levar em considerao os argumentos utilizados
anteriormente por seus oponentes. dessa forma que esse processo se
assemelha ao Repente: os diversos rounds se assemelham s estrofes
intercaladas entre os msicos.
Liderana. Como vimos acima, o papel da liderana no Jazz na sua
verso mais frouxa desempenhado de forma benevolente (na medida em
que associado princi-palmente mediao das interaes entre os msicos
para que haja respeito mtuo); em sua forma mais coercitiva, o lder
pode vir a impor fortes restries autonomia de seus msicos. No
Repente, a figura do lder inexiste. Em compensao, torna-se ainda
mais importante a adeso estrutura de versos para que as partes
possam respeitar-se mutuamente. Ainda insistindo na analogia de
formao de oramento em organizaes complexas, o CEO desempenha
predominantemente o papel de plateia do que lder, uma vez que se v
como provedor de capital, e no necessariamente o coordenador de
atividades de seus executivos. (WILLIAMSON, 1973)
Concluso
O desafio desse artigo foi de explorar no Jazz e no Repente uma
metfora que seja ao mesmo tempo capaz de mobilizar as dimenses
cognitivas e emocionais do
20 Com exeo dos cutting sessions, jam sessions onde havia um
intuito de disputa pela maestria tcnica. (DEVEAUX, 1997)
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Conflito e improvisao por Design: a metfora do Repente
gestor (HATCH, 2002) e conduzir a desenhos organizacionais que
incluam a dimenso da improvisao. (CAVALCANTI, 2004) Em contraste
com a metfora do Jazz, o re-pente oferece de forma mais explcita a
possibilidade de localizar a improvisao em contextos onde o
conflito organizacional deliberadamente promovido.
Ao tomarmos a comparao entre o Jazz e o Repente, podemos
vislumbrar configuraes distintas, onde os vrios aspectos (conflito,
improvisao, cooperao, relao entre as dimenses ostensiva e
performativa das rotinas) se combinam de formas distintas. Ou seja:
enfatizamos como essas variveis se combinam de forma coerente,
retirando a nfase da anlise isolada de cada dimenso. (RAGIN;
BECKER, 1992).
Nosso ponto de partida foi a relao entre as rotinas
organizacionais e a improvi-sao. Atravs do Jazz percebemos formas
como a improvisao pode ser desencadeada sem uma ruptura das
rotinas. Ao contrrio: as rotinas podem levar improvisao, na medida
em que suportam a flexibilidade nas prticas locais e concretas.
Mostramos tambm como a improvisao, mesmo ocorrendo em situaes
destitudas de um colapso do sensemaking, pode levar a uma mudana
nas rotinas, na medida em que levam a modificaes nas
meta-regras.
Em contraste com uma viso unvoca entre harmonia e aprendizado,
recupe-ramos tambm o papel do conflito na mudana das rotinas e no
aprendizado. Embora o conflito exista no Jazz, no promovido de
forma deliberada. Assim, tornou-se importante trazer tona os
estudos de sociologia organizacional onde o conflito deliberado.
nessa configurao (conflito deliberado, improvisao e demarcao de
territrios atravs de rotinas) que se justificou a apropriao do
Repente.
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