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O TRABALHO DE ENFERMAGEM E O CUIDADO EM SADE MENTAL : NOVOS
RUMOS ? Dbora Isane Ratner Kirschbaum
INTRODUAO Atualmente, o trabalho de enfermagem nos servios de
sade mental apresenta
caractersticas to diversificadas e heterogneas, dependendo do
modelo de interveno ao qual
ele est articulado, que dificilmente poderamos nos referir a ele
no singular. Por certo, um dos principais motivos desta
diversificao foi o aparecimento dos chamados novos equipamentos em
sade mental, que surgiram juntamente com a Reestruturao da
Assistncia Psiquitrica no Brasil, que promoveu a substituio
gradativa dos hospitais como nica forma de tratamento e uma
reorganizao do processo de trabalho. Em consequncia, o trabalho de
enfermagem
tambm transformou-se. De uma prtica tipicamente custodial
desenvolvida em algumas instituies, em outras convive-se com um
cuidado de enfermagem voltado para a Reabilitao Psicossocial de
pessoas com transtornos mentais severos e persistentes. As
atividades historicamente atribudas enfermagem nas instituies
psiquitricas, tais como o estmulo realizao das atividades de vida
diria deixam de ser vistas como prticas banais e ocupam o centro do
palco, pois tornam-se extremamente relevantes no tratamento de
sujeitos psicticos. A participao nestes projetos implica uma mudana
de posio para os profissionais de enfermagem, que, na maioria dos
servios-dia passam a responsabilizar-se pela implementao
de projetos teraputicos, de modalidades de atendimento grupais e
individuais, como tambm pode produzir uma transformao no modo de
apreender e de intervir junto aos sujeitos, levando o enfermeiro a
buscar na clnica os fundamentos para a realizao do cuidado em sade
mental . Baseado na experincia clnica e docente da autora e em
pesquisas realizadas recentemente em servios-dia e hospitais
especializados, este estudo visa problematizar algumas questes que
decorrem das mudanas que afetam o trabalho de enfermagem e o
cuidado em sade mental .
I. AS CARACTERSTICAS DO TRABALHO DE ENFERMAGEM EM SADE MENTAL: A
CONVIVNCIA ENTRE DIFERENTES MODELOS E TICAS.
A observao das prticas de enfermagem, empreendidas nos servios
de sade mental na ltima dcada, indica que a convivncia entre
diferentes ticas e modelos de interveno ora
contraditrios entre si, ora antagnicos, no interior de um mesmo
modelo assistencial uma das
Enfermeira. Professor Assistente Doutor do Departamento de
Enfermagem da FCM/UNICAMP. E-mail :
[email protected]
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caractersticas do contexto que sucedeu a implantao da Reforma
Psiquitrica brasileira. Neste sentido, prticas orientadas pelos
princpios que regiam o modelo assistencial asilar convivem
lado a lado com prticas voltadas para a substituio daquele
modelo a partir de um deslocamento do lugar ocupado pela
enfermeira. De vigilante e repressora para agente teraputico,
preocupada com a promoo da qualidade de vida e com a constituio de
sujeitos responsveis por suas escolhas.
Esta mudana foi possvel a partir da Reestruturao da Assistncia
Psiquitrica em curso no pas, desde os anos 90. Em algumas
instituies, principalmente nos servios dia e extra-hospitalares, o
trabalho de enfermagem (ALMEIDA, ROCHA, 1997) passou a apresentar
caractersticas distintas das que o vinham marcando at ento, pois,
no contexto que antecedeu a
Reforma Psiquitrica, o trabalho de enfermagem era realizado
quase que exclusivamente no interior dos hospitais psiquitricos e
em raros ambulatrios de sade mental existentes na poca
(ROCHA, 1994; FRAGA, 1993; ROLIM, 1992; COLVERO, 1994). Conforme
mostram ROLIM (1992); FRAGA (1993); ROCHA (1994), as atividades
administrativas ocupavam a ateno e a maior parte da jornada de
trabalho dos enfermeiros, que delegavam aos auxiliares de
enfermagem as aes de cuidado direto aos pacientes, criando uma
tenso entre a prtica concreta e a prtica aprendida nas
Universidades, onde o ensino preconizava um enfermeiro responsvel
pela manuteno do ambiente teraputico e por operar as tcnicas
concernentes ao chamado Relacionamento Interpessoal, enquanto nas
instituies de sade no existiam condies materiais mnimas para
viabilizar o papel proposto (FILIZOLA, 1990). O carter ideolgico
deste discurso veiculado pelas escolas e pelas instituies
psiquitricas e sua contribuio para a realizao de um trabalho
alienado j foi exaustivamente apontado por pesquisadores da rea
(FILIZOLA, 1990; ROCHA, 1994; FRAGA, 1993), cuja produo cientfica
teve uma contribuio muito importante para subsidiar a construo de
um discurso que possibilitasse um posicionamento crtico da
Enfermagem Psiquitrica em relao a sua prxis e que fornecesse
mais elementos para a proposio de um novo papel para o
enfermeiro que vem sendo construdo no contexto dos novos
servios.
Mas, apesar destas mudanas, preciso reconhecer que na maioria
das instituies psiquitricas brasileiras, o trabalho desenvolvido
por enfermeiros, tcnicos, auxiliares de enfermagem ainda apresenta
caratersticas compatveis com as que o definiam no modelo
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assistencial manicomial, mesmo que se considere a diversidade de
modelos de interveno adotados e modos de estruturao e funcionamento
organizacional (CAMPOS, 1999) que podem acarretar diferentes
composies nas prticas de enfermagem realizadas tambm nos servios
hospitalares, sejam eles unidades psiquitricas em hospitais gerais,
sejam os hospitais psiquitricos especializados.
1. O TRABALHO DE ENFERMAGEM NOS SERVIOS DE SADE MENTAL
ORGANIZADOS SEGUNDO O MODELO MDICO
Em pesquisas realizadas recentemente em servios de sade mental
de mbito hospitalar (KIRSCHBAUM, PAULA, 1999; MACHADO, 1999),
observa-se que o trabalho de enfermagem realiza-se atravs de
atividades voltadas quase que exclusivamente para o cuidado fsico,
a
administrao de medicamentos, a coleta de exames laboratoriais, a
vigilncia e a observao do comportamento dos pacientes com vistas a
subsidiar as intervenes mdicas ainda predomina na
maior parte das instituies organizadas a partir do modelo mdico
tradicional (MENDES GONALVES, 1979) - ou seja, aquele em que o
processo de trabalho se organiza em torno do ato mdico e em que as
demais aes so complementares e dirigidas a aumentar a eficcia
deste. Tambm a realizao de atividades de natureza administrativa,
envolvendo desde as aes mais complexas (como o planejamento da
assistncia de enfermagem e a organizao da distribuio dos membros da
equipe de enfermagem) at as mais simples (como, por exemplo, a
reposio de lmpadas e almoxarifado) consomem uma parte significativa
da jornada de trabalho dos enfermeiros, sendo vista por eles como
um fator que os afasta da realizao do cuidado direto,
sendo este realizado majoritariamente pelos auxiliares e tcnicos
de enfermagem. interessante notar que estes, por sua vez, raramente
recebem algum preparo formal especfico para cuidar de
pacientes com transtornos mentais, em virtude da reduzidssima
carga horria terico-prtica destinada Enfermagem Psiquitrica e em
Sade Mental nos cursos de nvel mdio, sobretudo para os auxiliares
de enfermagem, para quem a carga horria destinada ao ensino deste
contedos
mnima (KIRSCHBAUM, OLIVEIRA, 1999). Apesar disto, possvel notar
algumas mudanas no modo de pensar e agir de alguns
profissionais de enfermagem inseridos nestes servios, que
relatam a situao recm descrita como algo vivenciado de um modo
inquietante, insatisfatrio e gerador de mal-estar. Dentre os
motivos apontados para justificar o incmodo que experimentam em
funo da posio que assumem nas instituies organizadas a partir do
modelo mdico tradicional, pode-se assinalar o
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reconhecimento de que suas intervenes so insuficientes para
atender as necessidades de cuidado da clientela, sobretudo a de
pacientes psicticos, uma vez que estas seriam mais eficazes
se fossem baseadas numa viso interdisciplinar do processo
sade-doena mental; numa incluso dos familiares como parceiros no
tratamento, numa extenso do trabalho realizado durante a internao
psiquitrica ao perodo imediatamente posterior alta, por meio de
visitas domiciliares, por exemplo. Alm disso, nas investigaes
realizadas, notou-se que alguns profissionais de enfermagem de nvel
universitrio e de nvel mdio identificam as dificuldades para
estabelecer relaes de poder mais horizontalizadas entre a equipe
multiprofissional e a falta de comunicao entre seus membros, assim
como a diminuta incluso das observaes realizadas pelo pessoal de
enfermagem no planejamento e implementao das intervenes mdicas como
um obstculo para a boa prtica da Enfermagem em Sade Mental.
O que interessante ressaltar da leitura destes depoimentos
reproduzidos na pesquisa
que parece haver uma mudana de perspectiva expressa no discurso
de alguns enfermeiros em relao s deficincias que identificam para a
realizarem seu trabalho de maneira mais satisfatria. Vale notar que
os pontos levantados como obstculos esto mais relacionados s
dificuldades para implementar uma prtica assistencial compatvel com
a que vem sendo preconizada como ideal pelos setores comprometidos
com a defesa da Reforma Psiquitrica (como, por exemplo, ateno
realizada por equipe multiprofissional, relaes de poder democrticas
no interior da equipe e na relao com os usurios, valorizao similar
dos vrios saberes envolvidos) do que a falta de preparo formal
especfico do pessoal de enfermagem, o acmulo de funes de natureza
burocrtica que afastariam o enfermeiro do cuidado direto e a baixa
remunerao e valorizao profissional desses trabalhadores, que embora
tenham sido
citadas no foram enfatizadas como tradicionalmente acontecia nos
estudos publicados nos anos 90 (FILIZOLA, 1990; FRAGA, 1993; ROCHA,
1994).
Desse modo, seja pela apropriao de alguns aspectos contidos no
discurso dos protagonistas da Reforma Psiquitrica, seja por um
interesse em dar cincia ao pesquisador de que o entrevistado est
preocupado em reorientar sua prtica em direo a que hoje proposta
nos meios acadmicos e pelos setores mais comprometidos com uma viso
crtica do campo da sade mental e, portanto, identificada como a
ideal. O fato que a criao de novos dispositivos de cuidado e o
desejo de estabelecer outras formas de organizao do trabalho em
equipe algo
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que vem sendo includo no discurso dos enfermeiros e apontado
como uma sada para os impasses que encontram em sua prtica.
Mas, o que chama a ateno nestes discursos o modo por vezes
ingnuo, por vezes acrtico como os profissionais de enfermagem
encaram sua posio na equipe e a de seu trabalho nas instituies em
que o modelo mdico o hegemnico. Tem-se a impresso de que estes no
percebem que os limites para a realizao de seu trabalho esto
relacionados ao modo como esto organizadas as instituies em que
esto inseridos e no s deficincias individuais de cada profissional,
que poderiam ser superadas atravs do esforo pessoal de cada um ou
atravs das propostas de formao ou de educao em servio.
Com efeito, o modelo mdico que hoje perdura na maioria das
instituies de sade mental o resultado de sucessivas transformaes
por que foi passando o projeto psiquitrico desde a sua constituio
no final do sculo XVIII. sempre bom lembrar que desde a sua
emergncia ele contou com a enfermagem como um elemento fundamental
na sua estruturao e na operacionalizao do Tratamento Moral, que foi
o modelo de interveno que fundou a psiquiatria que hoje conhecemos
(KIRSCHBAUM, 1994).
Por isso, recorreu formao de pessoal de enfermagem dentro das
prprias instituies psiquitricas com o intuito de garantir a eficcia
do modelo. No Brasil, h exemplos disso que inclusive ajudam a
entender porque no se optou pelo modelo nightingaleano. Isto , a
formao moral dentro da racionalidade psiquitrica era fundamental
pra operar a clnica psiquitrica, j que o alienista e os enfermeiros
estavam includos no processo da cura. Depois, com o advento da
terapias de choque e das medicaes foi possvel alcanar uma certa
externalidade por parte do mdico, isto com certeza fiava mais
difcil para a enfermagem, dado que pela prpria natureza
do seu trabalho ela necessita oferecer-se como algum includo no
tratamento (KIRSCHBAUM, 1994).
De qualquer forma, o que importa que no modelo mdico o lugar da
enfermagem, seja enquanto trabalho, seja enquanto agentes deste
trabalho, est muito bem estabelecido. Ela est ali para garantir a
observao, a vigilncia e o registro de comportamentos que subsidiam
o fazer do
mdico para que este possa estabelecer um saber sobre a doena e
prescrever modos de interveno. Neste sentido, difcil estabelecer
relaes mais horizontais, pois isso faria com que tais prticas
deixassem de ser a clnica psiquitrica e passassem a ser outra
coisa.
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Ainda que se deseje muito que esta passagem ocorra, ainda que
haja sinais de que algo est mudando ao nvel do discurso dos
enfermeiros, pode-se duvidar que estas se dem na direo
suposta pelos enfermeiros, ou seja, a democratizao do saber e do
poder na equipe multiprofissional, a incluso de outros saberes e
disciplinas na formulao de diagnsticos e projetos teraputicos.
Se se acompanhar atentamente as tendncias atuais no campo da
psiquiatria nos ltimos dez anos, observa-se um grande
recrudescimento de uma Psiquiatria Biolgica reducionista (SERPA
JNIOR, 1998) e a gradativa substituio da clnica psiquitrica
fenomenolgica por uma clnica da medicao, como nomeada por LEITE
(2000), em que predomina uma Psiquiatria classificatria que se
pretende a-terica e a-histrica, passvel de ser aplicada em
todos os lugares com a vantagem de evitar as divergncias e a
multiplicidade que cercavam a definio de categorias diagnsticas at
a elaborao do DSM III e dos atuais DSM IV e CID-10 .
A hegemonia destes projetos traz conseqncias importantes para a
prtica da enfermagem, pois, nesta perspectiva, cada vez menos se
requerer do profissional de enfermagem algo alm de administrar
medicamentos, observar reaes aos mesmos, preparar e encaminhar os
pacientes para exames laboratoriais, vigiar a obedincia s
recomendaes mdicas e anotar os comportamentos verificveis.
Trata-se, portanto, de algo que transcenderia as conseqncias que se
poderia levantar a uma prtica de enfermagem psiquitrica que
originada no mesmo contexto em que nasceu este modelo de
psiquiatria baseada na utilizao dos chamados diagnsticos de
enfermagem, que padronizam e criam uma linguagem comum para
descrever os comportamentos
observveis nos clientes, preconizada num dos manuais de
Enfermagem Psiquitrica que, segundo ALENCASTRE (2000) dos mais
utilizados nas escolas brasileiras, por no levarem em conta a
singularidade de cada cliente e de cada relao teraputica.
A questo que por mais que o sujeito possa ser naturalizado e a
subjetividade equiparada ao funcionamento cerebral, como no limite
preconizado neste modelo terico, haver sempre
situaes que escapam ao previsto, ao planejado e com estas
situaes que as enfermeiras, tcnicos e auxiliares de enfermagem tem
que se haver. Por exemplo, a recusa a tomar a
medicao que poder modificar seu humor, a resistncia a se
alimentar, o no querer permanecer internado. Haver sempre um
paciente disposto a atrapalhar nossos planos de um Mundo Perfeito e
disposto a apontar o furo em nosso saber. Ento, preparar-se para
ocupar o lugar de quem tensiona e traz de volta o sujeito para
estas prticas, mostrando que elas podem ser feitas, mas
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sem se esquecerem de que no somos ainda os filhos de um Admirvel
Mundo Novo. Parece ser este o grande desafio para os profissionais
de enfermagem inseridos nos servios que tem no
modelo mdico seu modo de organizao. Que enfermagem pode resultar
disso ? Como a enfermeira responder a estes desafios
colocados pela vida real ? Como administrar esta tenso entre o
desejo por um modo de trabalhar que possibilite ao cliente sair
desta condio objetivada e garantir as condies de produo que
possibilitam ao modelo biomdico a sua reproduo ? So questes que
ficam como um convite reflexo neste incio de sculo.
2. O TRABALHO DE ENFERMAGEM NOS SERVIOS-DIA E NOS HOSPITAIS
PSIQUITRICOS ESPECIALIZADOS EM TRANSFORMAO
Enquanto isso, nos servios de sade mental, organizados a partir
dos princpios preconizados pela Reforma Psiquitrica, o foco da
ateno dos profissionais de enfermagem
desloca-se para questes ligadas reorganizao do processo de
trabalho em sade mental e viabilizao de condies mais favorveis ao
exerccio da clnica e da reabilitao psicossocial, embora no estejam
isentos das demais discusses que afetam aos seus colegas inseridos
em outros modelos de interveno.
Uma delas justamente a preocupao em caracterizar o trabalho de
enfermagem que vm inventando nos servios-dia: NAPS, CAPS,
Hospitais-Dia, Centros de Convivncia, Oficinas Protegidas, Lares
Abrigados e Moradias extra-hospitalares distribudos por diferentes
regies do pas, os quais, por sua vez, apresentam percursos bastante
particulares em termos de
tempo, estilo de trabalho, concepo teraputica, dentre outros.
Neste servios, o pessoal de enfermagem vive s voltas com
interrogaes sobre: Como cuidar de forma a estimular a
construo de subjetividades ? Como incluir-se na equipe
multiprofissional a partir de uma posio de terapeuta ? Como
desenvolver o papel de tcnico de referncia ? Como lidar com famlia
? Como realizar o acompanhamento teraputico ? Como ser agente
reabilitador ? Outra
questo que ganha relevo a busca de um fundamentao terica que
sustente a implementao de dispositivos de cuidado em elaborao e que
viabilize a transmisso destes saberes construdos
a partir da experincia clnica desenvolvida nos novos
equipamentos. E ainda outra questo parece ser a necessidade de
estabelecer os contornos desta posio ocupada pelos profissionais de
enfermagem num modelo de ateno em sade mental em transformao.
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Obviamente, estas questes no eram formuladas de forma to clara
nos primrdios da Reforma Psiquitrica brasileira. De fato, elas
foram se configurando medida que os primeiros
servios substituivos ao hospital psiquitrico passaram a ser
implementados no final dos anos 80 e incio dos 90 e que seus
projetos teraputicos iam sendo submetidos a avaliaes e reformulaes
por parte das equipes (WETZEL, 1995; GOLDBERG, 1996, 1998; BANZATO
et al., 1993; VICHI et al., 1997; FILIZOLA, 1999;)1. Alm disso, a
expanso destes equipamentos pelas diversas regies do pas no final
da dcada de 90 contribuiu para ampliar o nmero de profissionais
envolvidos, com experincias diversas de insero nos servios,
oferecendo mais elementos para que se possa refletir criticamente
sobre as tendncias e rumos possveis para o trabalho dos agentes de
enfermagem no contexto da Reforma (Anais de BH, 1998).
Ao direcionar o olhar para as primeiras experincias ( WETZEL,
1995; FRAGA, 1996; KIRSCHBAUM, 1996; MIRANDA, 1997) observa-se que
os primeiros tempos foram marcados pela tentativa de construir uma
nova posio para a enfermeira e auxiliares de enfermagem,
deslocando-os da posio historicamente atribuda e assumida de vigia
e repressor para uma posio de agente teraputico envolvido com a
concepo, a realizao e a reflexo sobre o tratamento proposto aos
clientes destes ento chamados novos servios.
Por certo, o que favoreceu o referido deslocamento foi a
reorganizao do processo de trabalho em sade mental, a partir da
constituio de equipes multiprofissionais estruturadas sob uma
perspectiva interdisciplinar, em que no havia uma rgida definio de
funes e papis correspondentes a formao original do profissional.
Como tambm contribuiu para ampliar a
participao do enfermeiro na conduo dos projetos teraputicos
individuais e, particularmente, das modalidades de atendimento
grupais, atravs da assuno da coordenao de grupos
teraputicos compostos por pacientes psicticos, neurticos ou
dependentes de drogas. Neste sentido, a experincia do Hospital-Dia
do Servio de Sade Cndido Ferreira ilustrativa desta conformao que o
trabalho de enfermagem foi assumindo nos ento chamados novos
equipamentos (KIRSCHBAUM, D.I.R, 1996; KIRSCHBAUM, D.I.R.;
PAULA, F.K.C. , 1999) Mas situaes semelhantes ocorriam tambm nos
NAPS em Santos, no CAPS Luis
Cerqueira, em So Paulo, na Casa, em So Loureno do Sul-RS e esta
conformao do processo
1 Tal situao pode ser apreendida pela anlise do trabalho
realizado pelos enfermeiros em diferentes servios de
sade mental situados nos municpios de Campinas, Belo Horizonte,
Santos, So Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Porto Alegre, onde o
processo de implantao da Reforma Psiquitrica e a conseqente
diversificao da oferta de dispositivos de cuidados em sade mental
encontra-se em curso h pelo menos mais de cinco anos.
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de trabalho generalizou-se na maioria dos servios-dia
posteriormente criados pelo pas, segundo mostram ( FRAGA, 1993;
WETZEL, 1995; MIRANDA, 1997; FILIZOLA, 1999; COLVERO, 1999 ) .
Foi um tempo tambm de iniciar, nos hospitais, a desconstruo dos
procedimentos disciplinares que possibilitavam obter a obedincia e
a docilidade dos internados s regras asilares, manejadas
principalmente pelo pessoal de enfermagem ( MIRANDA, 1994, 1997;
KIRSCHBAUM, 1994) . Refiro-me aqui s filas para tomar medicao,
alimentar-se e tomar banho. As proibies de visitas, de sadas para
passeio, de acesso aos pertences pessoais e principalmente aos maos
de cigarro, cujo controle e manipulao pelo pessoal de enfermagem
favorecia certos excessos e o exerccio do poder. O abandono destas
prticas implicava na
produo de um novo estilo de trabalho, em que se passasse a lidar
com as pessoas em tratamento nestas instituies como sujeitos que
tinham um nome, uma histria de vida, um jeito muito prprio de
encarar a si mesmos e de relacionar-se com as outras pessoas.
Neste contexto, desinstitucionalizar ou reabilitar representava
restituir a cada um deles os direitos civis, uma identidade, um
lugar no grupo a que pertenciam, um espao na instituio em que
pudessem conservar consigo seus pertences pessoais. Tratava-se ento
de reconstruir projetos de vida e isso no era algo simples fosse a
clientela constituda por pacientes asilados, s vezes com mais de 30
anos de institucionalizao, fosse pela que habitava os
Hospitais-dia, os CAPS, as Oficinas Protegidas, as Unidades de
Internao, cuja trajetria pessoal era geralmente marcada por
diversas internaes psiquitricas, abandonos de tratamentos, vnculos
familiares e sociais
extremamente desgastados ou enfraquecidos. Fazia-se necessrio
ento abordar esses pacientes de uma maneira radicalmente
diferente
da que marcava as intervenes psiquitricas no modelo assistencial
asilar, recorrendo a estratgias e modalidades teraputicas grupais
ou individuais que favorecessem aos pacientes a retomada de seu
lugar de sujeito falante, reflexivo, produtivo, responsvel,
capacitado para retornar a vida social e conviver com seus
familiares, amigos, colegas de trabalho.
Inspirados nos projetos de Reforma Psiquitrica empreendidos em
outros pases desde o ps-guerra e, s vezes, em experincias de
reformulao implementadas anteriormente no pas, os profissionais
envolvidos com a implementao dos servios-dia e com a
desinstitucionalizao dos hospitais psiquitricos aglutinaram-se em
torno da proposta de Reabilitao Psicossocial (PITTA, 1996). Assim,
ao mesmo tempo em que buscavam neste referencial instrumentos
para
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abordar a problemtica da reinsero social, os profissionais de
sade mental procuravam abordar as prticas de reabilitao no como uma
tcnica, mas como uma tica de solidariedade que
facilite aos sujeitos com transtornos mentais severos e
persistentes, o aumento da contratualidade afetiva, social e
econmica, que viabilize o melhor nvel possvel de autonomia para a
vida na comunidade (PITTA, 1996, p.9) .
No cotidiano das instituies, o recurso a um imenso leque de
intervenes - que am das Assemblias Gerais ( para estabelecer com os
usurios as regras que regeriam a convivncia de profissionais e
pacientes no espao institucional ) aos grupos de verbalizao, de
medicao, de atividades, de recepo, de passeio, de musicoterapia, de
arteterapia, de jornal, de contos, de teatro, de produo artstica,
expresso corporal, de familiares e destes s oficinas
protegidas,
ateliers, festas comunitrias - visava substituir o enfoque
hegemnico no modelo mdico por uma abordagem psicossocial do
tratamento dos doentes mentais, que embora no exclusse os
aspectos fsicos no lhes atribua uma primazia em relao aos
demais. Com a adeso a este enfoque pretendia-se aumentar a eficcia
e a efetividade das aes em sade mental, a fim de ampliar os
recursos disponveis para a reinsero social do paciente, atravs da
construo de uma rede social, na qual ele pudesse estabelecer laos
afetivos, e da criao de oportunidades ocupacionais,
profissionalizantes, educacionais, que lhes permitiria reinserir-se
no processo produtivo e resgatar o respeito e a valorizao social,
muitas vezes perdido em funo da situao de excluso e estigmatizao
que os cercava. Alm disso, estas medidas tinham como finalidade
evitar internaes psiquitricas desnecessrias e a perda de vnculos
sociais delas decorrentes.
Conforme mencionado anteriormente, esse modo de conceber e
organizar as prticas em sade mental produziu efeitos considerveis
para a realizao do trabalho de enfermagem,
embora, inicialmente, no tenham envolvido da mesma forma a
totalidade da equipe de enfermagem. De fato, nos momentos iniciais,
estes efeitos puderam ser apreendidos de forma mais contundente no
que concernia s atividades assumidas pelas enfermeiras. Os relatos
de
experincia e as pesquisas que reconstituram a trajetria que
marcou a implementao dos servios-dia e a desinstitucionalizao de
alguns hospitais, mostram que o papel tradicionalmente
assumido pela enfermeira, marcado por uma maior dedicao s
atividades administrativas, foi abandonado em favor de uma maior
insero nas atividades de assistncia direta, sobretudo nas equipes
em que o processo de trabalho foi reorganizado sob um enfoque
interdisciplinar. Com isso, o que era atribuio especfica da
enfermeira pode ser compartilhado com outros
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profissionais e ela pde ampliar sua atuao, passando a coordenar
grupos teraputicos, oficinas de trabalho, responsabilizar-se pela
elaborao de projetos teraputicos individuais ou de grupos de
pacientes e pela implementao de programas para clientelas
especficas. Em alguns servios, que adotaram a estratgia de case
manegement (VASCONCELOS, 1997) ou de equipe de referncia (CAMPOS,
1999), as enfermeiras tornaram-se tcnico de referncia, o que
representava assumir o gerenciamento do projeto teraputico. Nestes
casos, as atribuies podem estender-se das atividades desenvolvidas
no interior do servio s que envolvem o cuidado extramuros e
domiciliar, que incluem a realizao do acompanhamento
teraputico.
Em que pese as crticas falta de formao das enfermeiras e dos
demais profissionais da equipe para assumirem este tipo de
atividades, pois os currculos das instituies de ensino
superior no tem por objetivo a preparao de trabalhadores
polivalentes e sim a de generalistas, observa-se que as enfermeiras
tendem a buscar a qualificao requerida para o trabalho nos
equipamentos de sade mental em cursos de especializao, em cursos
de formao em psicoterapia, psicanlise, psicoterapia de grupo,
psicodrama (KIRSCHBAUM, 1996, FILIZOLA, 1999).
Desenvolver estas novas atribuies como atividades do campo da
enfermagem acarreta uma mudana radical nas caractersticas deste
trabalho, pois, mais do que envolver uma dedicao significativa s
atividades de assistncia direta, implica em responsabilizar-se pela
implementao de projetos teraputicos e atividades de cunho
psicoterpico, o que significa voltar-se para a clnica (BEZERRA,
1996; MACEDO, MARON, 1997; LEITE, 2000 ). Torna-se cada vez mais
necessrio um aprofundamento da leitura clnica dos casos, como
condio para atingir os objetivos dos projetos de Reabilitao
Psicossocial.
Todavia, as prticas concretas, cotidianamente realizadas nestas
instituies, no esto livres nem isentas de uma srie de equvocos, de
leituras contraditrias, de incongruncias entre o que dito e
proposto nos documentos oficiais, nos conclaves cientficos e o que
posto em ato,
como prprio, alis, s atividades humanas. So, alis, o seu
reconhecimento e a sua delimitao que permitem a produo de saber, de
conhecimentos cientficos, a realizao da
clnica e a reorientao das prticas com vistas a aumentar sua
eficcia teraputica e a contribuir para a melhoria da qualidade de
vida das pessoas.
Ciente de que no possvel encontrar respostas nicas, totalitrias
e a-temporais s questes que emergem da clnica, do ensino e da
investigao em sade mental e que no h um
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modo ideal de agir, mas estilos e leituras possveis para o
contexto em que estamos inseridos nos servios de sade mental, de
agora em diante, tratarei de algumas questes que ao meu ver
tornam problemtica a implementao do cuidado em sade mental e,
mais particularmente, o realizado pelas enfermeiras e pelos tcnicos
e auxiliares de enfermagem em servios-dia, moradias
extra-hospitalares e nas instituies psiquitricas em processo de
desinstitucionalizao.
SER QUE TODOS OS MODOS DE PRATICAR A REABILITAO PODEM CONTRIBUIR
EFETIVAMENTE PARA QUE OS CLIENTES SE TORNEM SUJEITOS COM MAIOR
AUTONOMIA ?
Tambm no campo da Reabilitao Psicossocial, o modo como se opera
o cuidado em sade mental est relacionado com as concepes de doena
mental, de sujeitos e de tratamento existentes. Foi assinalado
antes que os servios-dia foram criados com o intuito de
oferecer
tratamento a uma clientela composta por pessoas com transtornos
mentais severos e persistentes,
cuja necessidade de cuidados demanda intervenes contnuas,
sistemticas e, s vezes, complexas. Concretamente, os sintomas
apresentados por estas pessoas traduzem-se em dificuldade para
estabelecer relaes interpessoais efetivas; para realizar atividades
de vida diria, mais especificamente as de auto-cuidado, sem a
colaborao de outras pessoas; para comprometerem-se com atividades
de vida prtica, dentre outras.
Em vista disso, a maioria dos projetos de Reabilitao
Psicossocial (BANDEIRA, 1999; SARACENO, 1999) preconizam a adoo de
intervenes diversificadas que visam estabelecer condies para que os
pacientes possam resgatar, recuperar ou adquirir habilidades2 que
lhes possibilitem conviver com seus familiares, amigos, colegas na
prpria comunidade, e conquistar,
assim, uma melhor qualidade de vida. Segundo expe SARACENO
(1999) , h entendimentos controversos acerca do que seja
reabilitao, havendo os que a consideram uma tcnica, ao passo que
outros vem-na como um processo, uma exigncia tica. Tal como os
ltimos, o autor define-a assim :
A Reabilitao deveria ser, portanto, o conjunto dos procedimentos
que procuram aumentar as Habilidades (ou diminuir as Desabilitaes)
e diminuir a deficincia.(...) O possvel paralelismo com a
Reabilitao fsica, no entanto, termina aqui, enquanto provvel
que
intervenes eficazes sobre a desabilitao e sobre a deficincia
melhorem, tambm no caso do
2 SARACENO (1999) , baseado numa classificao proposta pela OMS,
define desabilitao como limitao ou
perda de capacidades operativas produzidas por hipofunes e
diferencia-a da deficincia, que consistiria na desvantagem,
consequncia de uma hipofuno/eou desabilitao que limita ou impede o
desempenho do sujeito ou
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paciente psiquitrico, tambm o estado do dano, o que no se d no
caso da patologia fsica (p.34-5)
No entanto, h vrios modelos de Reabilitao e estes podem
basear-se em correntes tericas as mais diversas, que vo da
cognitivo-comportamental s , de onde decorrem tambm intervenes
tcnicas bastante reducionistas. Portanto, a denominao de reabilitao
psicossocial para designar certos projetos no garante em si mesma o
direcionamento do trabalho para uma abordagem ampla e
interdisciplinar dos transtornos mentais, como poderia parecer a
primeira vista. Apesar disso, esta crtica no parece ser
suficientemente evidente para o conjunto dos trabalhadores que
militam nos servios de sade mental. Em geral, os depoimentos
coletados entre estes profissionais(KIRSCHBAUM, FRANCISCHETI, 2000;
KIRSCHBAUM, PAULA, 2000) permitem supor que existem certas
ambiguidades, alguma confuso em torno da noo de reabilitao, seja
devido as contradies contidas na prpria proposta (BEZERRA, 1996),
seja em decorrncia da forma como os profissionais se apropriam das
proposies e as articulam em seu discurso num momento inicial.
Neste sentido, um dos pontos que chama a ateno o fato de que a
reabilitao psicossocial frequentemente significada a partir das
atividades realizadas com os pacientes em vez de ser retratada
conforme proposto por PITTA (1996) e SARACENO (1996, 1999). Ainda
que se leve em conta que a Reabilitao Psicossocial, sob o referido
enfoque, seja uma novidade entre ns, no se pode menosprezar a
presena, entre os profissionais de sade mental e, dentre eles, os
de enfermagem, de uma certa tendncia a aderir s novidades de
maneira acrtica e
imediatista, confundindo os fins com os meios e absolutizando o
valor dos ltimos. Um exemplo disto a supervalorizao da realizao de
atividades grupais 3 da mais variada natureza na
implementao dos projetos teraputicos, a despeito de uma avaliao
mais cuidadosa e criteriosa da indicao das mesmas para cada
paciente. sempre bom lembrar que o recurso s atividades de extrema
valia e que elas possuem um significativo potencial teraputico
quando a sua
implementao est articulada a uma discusso clnica, que
possibilita ampliar o entendimento de um caso (ou de um projeto
teraputico) e uma maior compreenso das questes que afetam o
sujeito. No entanto, quando descoladas de qualquer avaliao desta
natureza no proporcionam
das capacidades de qualquer sujeito, eslarecendo que esta
condicionada resposta que a organizao social d a um sujeito com
desabilitao e no est, portanto, referida a ele mesmo. 3 Trata-se
das oficinas, ateliers, grupos de desenho, pintura, msica,
atividades corporais, culinria, salo de beleza,
dentre outros.
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aqueles efeitos e corre-se o risco de banaliz-las como estratgia
de tratamento, assim como o de transform-las em uma forma da manter
o paciente ocupado com a execuo de tarefas sem
qualquer sentido, ou como frequente ouvir-se , distrado ,
transformando o espao de tratamento num espao de alienao, ou
segundo prefere SARACENO (1999), de entretenimento.
Ironicamente, parece que fenix renasce das cinzas. No seria este
modo de encarar a ocupao semelhante ao que era preconizado pelos
alienistas desde o sculo XIX , que acreditavam que a ocupao por si
s produzia benefcios teraputicos ao desviar a ateno do louco de seu
delrio para a realizao da atividade ? E cuja concepo de doena
mental e formas de trat-la os profissionais de sade mental desejam
transformar, desconstruir ?
Longe de negar ou desconsiderar a importncia dos momentos de
descontrao, de convivncia social, de encontros, de trocas afetivas
e de momentos ldicos para a clientela que
frequenta estes servios, as crticas feitas at aqui tem por
objetivo ressaltar a importncia de se preservar estes servios como
espaos de tratamento, diferenciando-os de locais que disfarados de
instituio de tratamento contribuam na realidade para aprofundar a
excluso e a segregao que marca a vida das pessoas com transtornos
mentais severos e persistentes.
Alm disso, h que se levar em conta tambm que a prpria conformao
da Reabilitao Psicossocial, enquanto proposio, favorece a construo
de certas interpretaes prescritivas, normativas. Pois, se o que est
em jogo a aquisio de habilidades em lugar das desabilidades e se
estas correspondem s dificuldades ou limitaes para os afazeres
cotidianos que afetam os
sujeitos com transtornos mentais severos razovel que se procure
modific-las por meio de intervenes prticas, voltadas para o
aprendizado de comportamentos ou de formas de agir mais
eficientes, que propiciem aos pacientes adquirir a mxima
autonomia possvel para participar da vida comunitria ? E, aqui, h
um ltimo ponto que vale a pena destacar para reflexo.
Pode-se notar que as prticas voltadas para a Reabilitao
Psicossocial trazem em si
mesmas um carter pedaggico, normativo. Trata-se de estimular os
sujeitos a adquirirem habilidades que tornem cada vez mais possvel
aproximarem-se de um certo ideal de homem,
como se houvesse um determinado modo de ser que caracterizasse
melhor do que outros o que seja um sujeito habilitado e autnomo.
Uma indagao que se faz necessria o quanto este posicionamente no
poderia provocar uma conformao do sujeito ao ideal propugnado pelos
profissionais e o quanto este tipo de interveno de fato favoreceria
a autonomia do paciente. E
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de autonomia em relao a qu ? Aos servios, aos familiares, ao
acompanhamento teraputico feito por profissionais devidadmente
qualificados ? No haveria, embutida nesta concepo, uma
certa equivocao no sentido de equiparar autonomia e cura,
favorecendo a adoo de intervenes voltadas quase que exclusivamente
para a assistncia social em detrimento de intervenes clnicas,
fundamentais para proporcionar aos sujeitos psicticos uma certa
estabilizao que lhes permita estabelecer vnculos sociais e usufruir
destes equipamentos comunitrios ?
QUE CONSEQUNCIAS PODEM ADVIR DE UMA REABILITAO APREENDIDA E
PRATICADA NUMA PERSPECTIVA NORMATIVA ?
As consequncias que podem decorrer da adoo de uma perspectiva
normatizadora,
supostamente pedaggica, na realizao do cuidado em sade mental s
vezes no so devidamente apreciadas ou consideradas pelos
profissionais envolvidos com a criao de novos
dispositivos de cuidados ou de servios extra-hospitalares. Mas a
experincia clnica mostra que, dependendo da situao e do sujeito em
questo, a adoo de uma atitude prescritiva4, ainda que motivada
pelas melhores intenes, este tipo de interveno pode produzir
efeitos nefastos ao tratamento, provocando uma piora dos sintomas e
trazendo maior sofrimento para o paciente5, por motivos que sero
assinalados mais adiante. Embora esta questo seja levada em conta
na prtica da clnica psicanaltica h tempos (BEZERRA, 1996; LEITE,
2000), ela raramente considerada na implementao das atividades de
reabilitao desenvolvidas cotidianamente nos servios de sade
mental.
Talvez seja a prpria multiplicidade de sentidos atribuveis a noo
de reabilitao o que favorea a sua apreenso pelos profissionais como
sinnimo de reeducao, readaptao, e,
consequentemente, leve-os a assumir uma atitude semelhante
pedaggica na conduo das modalidades teraputicas e particularmente
nas que visam a melhoria do desempenho na realizao de atividades de
vida diria. O carter normatizador que pode ser imprimido durante
a
implementao destas prticas o importa aqui assinalar, sobretudo
por que aos profissionais de enfermagem e principalmente aos
auxiliares de enfermagem que continua sendo atribuda a
sua implementao nos servios de sade mental. Como tais atividades
consistem no cuidado do
4 No sentido de aproximar ou levar o paciente a adotar um certo
modo de agir que parea mais adequado s
exigncias sociais ou s formas de relacionamento social mais
apreciadas pelo grupo em que ele deveria estar inserido . 5 Por
exemplo, no caso de um psictico, aumentando o fosso entre ele e os
outros, acirrando as idias de perseguio.
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corpo, do espao de moradia, da alimentao e nas questes que
envolvem o exerccio da sexualidade e da convivncia social, elas
podem tornar-se mais facilmente um alvo para
intervenes claramente normativas e para a formao de discursos
investidos de uma forte conotao moral. H algumas situaes
vivenciadas com frequncia no cotidiano destas instituies que
ilustram de maneira exemplar aquelas atitudes. Tome-se, por
exemplo, o caso do namoro entre pacientes. A polmica que resulta
desta situao na instituio impressionante. Os discursos que os
profissionais dirigem aos pacientes, que vo desde dizer que namorar
bom, saudvel, desde que as pessoas se amem e estejam bem
intencionadas umas com as outras at o afirmar que s se deve ter
relaes sexuais com quem se tem vnculos afetivos duradouros
evidenciam de forma to explcita uma inteno normativa e moralizante,
que dispensam maiores
comentrios. Alm disso, chama a ateno o uso de argumentos que
parecem deslocados de seu tempo, pois lanam mo de valores morais
que seriam questionados hoje - com perdo pela ironia - pelos
adolescentes pertencentes s melhores famlias da nossa sociedade e
que, muito provavelmente, num mundo em que o ficar e as novas
formas de relao amorosa so cada dia mais comuns, dificilmente
seriam utilizados para as pessoas que no so portadoras de
transtornos mentais severos e persistentes. O que se observa entre
os profissionais de sade mental e de enfermagem, em particular, uma
preocupao em prescrever, orientar, ensinar, treinar os pacientes a
fim de eliminar ou reduzir de forma significativa as suas
dificuldades na execuo das atividades de vida diria que acaso
possam inviabilizar a sua insero social e a convivncia comunitria.
No entanto, o que fica evidente na operacionalizao do cuidado
em
sade mental a predominncia de intervenes pautadas em vises de
senso comum, ou por idias pretensamente cientficas, juzos de valor
dominantes na sociedade e, em funo disso, equiparados a verdades
universais e a-histricas.
bem provvel que a assuno de uma atitude normativa na implementao
das prticas de sade mental esteja relacionada com a uma concepo
cartesiana de sujeito, por mais incompatvel e contraditria que
possa parecer. No entanto, um dos problemas que decorrem desta
conformao da Reabilitao Psicossocial a tentativa de conciliar
prticas baseadas em
ticas e concepes tericas distintas, produzindo algumas vezes
significaes que esvaziam o significado que estas possuam
originariamente e esvaziando a capacidade explicativa e operativa
de certos conceitos. Um exemplo disto o uso frequente de
determinados conceitos como sujeito, desejo, subjetividade, lao
social, escuta que, apesar de possurem uma filiao tica e terica
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clnica psicanaltica lacaniana, so empregados de forma indistinta
e imprecisa. Assim, sujeito utilizado como sinnimo de pessoa, sem
qualquer relao ao conceito de sujeito do inconsciente; desejo, como
sinnimo de vontade, e no como uma noo articulada falta;
subjetividade como equivalente ao que da ordem do no objetivo, do
particular; lao social como contato social e no como o modo como o
sujeito est inserido na linguagem; escuta como sinnimo de ouvir, de
atentar para o que o paciente disse, sem qualquer articulao com a
associao livre e com a leitura de uma cadeia de significantes.
Supor que estas preocupaes consitam em preciosismo terico, de
exerccio de retrica, de esnobismo intelectual uma ingenuidade, pois
seria negar as implicaes prticas que decorrem da opo por uma tica e
no por outra, da vinculao a uma posio terica e no outra. A adoo de
uma posio pedaggica, na qual o profissional se
autoriza a ocupar um lugar de mestria e prescrever modos de
sentir, agir e pensar, mais compatvel com uma tica da tutela,
implica necessariamente numa viso de sujeito cartesiana e
inconcilivel com uma tica do desejo, que reconhece no sujeito os
efeitos de sua diviso pelo inconsciente, o que equivale a admitir
que no h um modo de existir, mas diversos modos possveis de
existncia.
Um outro ponto a ser destacado a eficcia teraputica destas
intervenes ligadas ao cuidado dirio. A experincia cotidiana com
pacientes que apresentam diferentes estruturas clnicas e
diagnsticos psiquitricos (LEITE, 2000) mostra o quanto faz diferena
manejar um caso a partir de uma posio tica que responsabiliza o
sujeito, em vez de trat-lo como um indivduo em treinamento.
3. A BUSCA POR UM ESTILO DE CUIDAR Para tornar mais claras as
consideraes a seguir, vale a pena recorrer ao relato do caso de
uma paciente que retrata uma situao comum, cotidianamente
vivenciada nos servios, envolvendo o banho de uma pessoa com
transtorno mental severo e persistente. Tratava-se de uma mulher
jovem, solteira, com escolaridade universitria, desempregada, que
vivia com seus pais idosos, e que se recusava diariamente a tomar
banho, lavar-se, trocar suas roupas, seja em sua prpria casa, seja
no servio-dia em que se tratava h dois meses, sob a alegao de que
no precisava, estava bem, em resposta aos insistentes convites que
lhe dirigiam inicialmente, as duas auxiliares de enfermagem, com
quem havia estabelecido um bom vnculo. Tal situao, obviamente,
provocava um grande incmodo, que, com o passar dos dias,
estendeu-se equipe como um todo, pois, por maiores que fossem, eram
inteis os esforos dos profissionais para
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convenc-la. Os argumentos usados iam desde a necessidade de
tomar banho para manter a sade, para ficar mais bonita, para sentir
menos calor, at a importncia de faz-lo para poder
conviver com as outras pessoas, participar de grupos
teraputicos. Diante deles, depois de algumas horas de negociao,
conseguia-se, finalmente que ela entrasse embaixo do chuveiro. Aps
o banho, a paciente tornava-se extremamente assutada. Dizia que
tinham-na espiado no banheiro e que tinha perdido partes de seu
corpo durante o banho. Diante da sua fala, os profissionais que a
acompanhavam esforavam-se por convenc-la de que ningum a havia
espiado, argumentando que tinham ficado ao lado da porta do
banheiro e ningum mais tinha aparecido por ali. Quanto s alteraes
corporais, com o intuito de tranquiliz-la, estimulavam-lhe a
mirar-se no espelho para ver que tudo continuava ali e aproveitavam
para ressaltar o quanto
ela ficara ainda mais bonita aps o banho. claro que h n modos
diferentes de manejar esta situao, e cada um de ns teria uma
sugesto melhor a propor. No se trata aqui de avaliar a correo
das intervenes, relatadas em reunies de superviso clnica pelos
profissionais envolvidos. O que importa ressaltar aqui o sentido de
orientao, de educao para a sade que marcava tais intervenes.
Evocando-as, o que se quer chamar a ateno para a forma de leitura
(ou para a falta dela) feita por quem cuida de pacientes psicticos
dia a dia.
Note-se que, a despeito do cuidado no tratar, da preocupao em
dar ouvidos a fala do cliente e evitar o emprego de atitudes
violentas e autoritrias no lidar com o mesmo, as intervenes que se
pretendem reabilitadoras no nos isentam de assumir atitudes que
dificultam
o reconhecimento das questes que esto em jogo para o sujeito e
que implicam em coloc-lo numa posio de objeto do desejo do Outro
(Lacan, 1988), entendido aqui enquanto um saber suposto como
absoluto ou como o conjunto de significantes disponveis na
linguagem.
Disso decorre a possibilidade de chamar a si a funo s vezes
ocupada pelo(s) perseguidor (es) no delrio psictico, s vezes a de
algum que o invade implacavelmente, contra o qual ele nada pode
fazer, ficando merc de suas vontades, aes, reatualizando, portanto,
a posio que ele ocupara nos momentos iniciais de sua vida em sua
relao com a me, ou com
quem a substituiu no exerccio da funo materna (Lacan, 1988),
particularmente nos casos em que o lugar a ser preenchido pelo
Nome-do Pai esteve ausente . Atente-se para o fato de que, no caso
relatado, no se tratava de uma pessoa que desconhecesse a
importncia do banho para a manuteno da sade. A jovem possua formao
universitria, fora uma boa aluna e
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eventualmente fazia comentrios sobre temas ligados biologia e
sade nas diferentes atividades teraputicas de que participava, que
evidenciavam a posse daquele conhecimento que os sujeitos que dela
cuidavam insistiam em ensinar-lhe, cnscios que estavam da sua funo
de reabilitadores.
Logo, o que lhes escapava, na interpretao que faziam da recusa a
tomar banho, era que o saber que a estava em jogo de natureza
diferente do referido na concepo cartesiana. Em decorrncia desta
posio - que v o saber como produto da razo, exclusivamente - no h
maior problematizao das relaes que possam existir entre o modo como
o sujeito em questo signifique seu corpo, o cuidado corporal e a
estrutura clnica prpria psicose. como se os significados atribuveis
ao banho pudessem ser limitados a uns poucos, tais como: a limpeza,
o
combate aos germes. E exclussem outros significados possveis,
tais como: a de ter o corpo derretido pela gua6, a de desintegrao
do corpo, a de uma situao de extrema vulnerabilidade e
de exposio ao olhar do Outro7. esse mesmo saber, a que damos o
nome de inconsciente, que est envolvido no processo
de constituio do sujeito, a partir de sua diviso pela lei da
castrao, com a qual est relacionada a possibilidade do mesmo
estruturar-se como neurtico, psictico, perverso ou como um caso
inclassficavel (LEITE, 2000).
Vale esclarecer, tambm, que conceber o sujeito a partir destes
princpios ticos implica em reconhecer que o corpo no consiste
apenas num conjunto de clulas, uma estrutura puramente biolgica,
onde reaes qumicas se processam, mas numa materialidade investida
de
significaes. Em vista disso, h que se reconhecer que o processo
de constituio da subjetividade est intrisecamente relacionado
formao da imagem corporal. A existncia de um descompasso jamais
preenchido entre a imagem disforme do corpo percebida nos primeiros
anos de vida e a constituio da imagem corporal que o sujeito
atribui a si e que constituinte no processo de formao do Eu, cujos
percalos Lacan ( 1998) apontou ao formalizar a teorizao do estdio
do espelho. Com ele, aprendemos que a construo destas imagens
corporais est profundamente articulada produo do conhecimento
paranico, no sentido que nos
identificamos com uma imagem que a do outro (aquele que est l, o
nen que vemos a nossa
6 Que foi a explicao posteriormente dada pela paciente auxiliar
de enfermagem para dar a conhecer o motivo de
sua recusa. 7 Descrito pela paciente como as pessoas que a
espiavam enquanto banhava-se, com o intuito de comprovarem a
dissoluo por que passava seu corpo e divertirem-se com o seu
sofrimento.
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frente e que, s depois, em um momento seguinte reconheceremos
como sendo Eu) e esta estar sempre a nos observar e nomear enquanto
uma alteridade.
Nos casos em que o Nome-do-Pai foracludo, ou seja, em que a
ausncia da metfora paterna marca o processo de estruturao do
sujeito, que o que fundamentalmente determina se algum se tornar
psictico, a relao que este estabelece com seu corpo necessariamente
atravessada pela maneira como ele se reconhece, ou seja, um Sujeito
invadido pelo Outro. O que equivale a dizer que a posio em que se
supe que o Sujeito estaria situado8 , caso houvesse um barramento
entre eles, ocupada pelo Outro. Este, por sua vez, no precisa ser
necessariamente uma pessoa, mas pode tambm ser representado por uma
pessoa ou por um grupo de pessoas e, estas tanto podem corresponder
a uma pessoa real quanto imaginria. esta juno entre o Sujeito e o
Outro que proporciona o aparecimento dos fenmenos elementares,
chamados alucinaes. E explica por qu, por exemplo, alguns pacientes
percebem as vozes com contedos
acusatrios como vindas do exterior e porqu s vezes
identificam-nas como sendo de pessoas conhecidas (tais como:
familiares, vizinhos, parentes mortos).
Obviamente no se tem a pretenso de fazer uma sntese das
formulaes de Jacques Lacan sobre as psicose no mbito deste artigo.
Seria uma ousadia descabida e uma injustia obra deste autor, que
tratou do tema em diferentes momentos de sua produo, em cada um dos
quais abordou-a de modo original e totalmente novo. No entanto, no
poderia deixar de trazer aqui algumas elaboraes que a leitura de
seus textos possibilita para a clnica das psicoses nos equipamentos
em sade mental. Nem deixar de expor as contribuies preliminares que
desta
leitura pude extrair para propor um modo de realizao do cuidado
de enfermagem a partir de um novo estilo, mesmo correndo o risco de
coloc-las de forma apressada e um tanto incompleta de
modo que, talvez, no expressem a complexidade que possuem as
formulaes produzidas por Lacan ou, ao contrrio do que desejaria,
contribuam para mistificar ainda mais as dificuldades que envolvem
a sua leitura. De qualquer modo, no seria possvel perder a
oportunidade de criar
um meio de interlocuo com meus pares atravs desta escrita. Para
concluir, penso que seria interessante expor brevemente os caminhos
que esta leitura
possibilita com vistas a fundamentar terca e ticamente o
direcionamento do cuidado de enfermagem em sade mental.
8 Tal como ocorre na estrutura da neurose, na qual h um
barramento do Outro, separando-o do Sujeito. A isso se
nomeia como presena do Nome-do Pai , segundo assinala LEITE
(2000).
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CONSIDERAES FINAIS Encarar o psictico como um sujeito que pode
advir de uma interveno que introduza
algum tipo de corte entre ele e o Outro talvez seja um bom
comeo. As maneiras de faz-lo podem ser infinitas e precisam ser
inventadas, descobertas, redescobertas a cada dia com cada sujeito,
no havendo portanto um modelo a ser seguido, repetido ou passvel de
sistematizao a partir da padronizao de condutas, procedimentos,
tcnicas, atos to caros e comuns a nossa prtica profissional. Alis,
a receita convencer-se de que no h receitas.
Com elas, o mximo que promovemos o silenciamento dos sujeitos, o
tamponamento da sintomatologia, cuja exposio fundamental para que
possamos efetivamente dar um direcionamento a esta to evocada
escuta. Mas, para haver escuta, preciso que haja palavra e, ento,
uma das primeiras coisas a fazer seria criar condies para que a
palavra seja dita, circule, comparea no discurso, inscreva-se
atravs da escrita. Por isso importante que as atitudes e
palavras de tranquilizao, que visam antes de mais nada aplacar a
angstia de quem as enuncia, talvez com o intuito de defender-se da
angstia que advm da percepo da falta no Outro, ou, dito de outra
forma, da constatao de nossa impotncia e no-saber diante da
psicose, sejam banidas de nosso dircurso, a fim de favorecer a
emergncia de um outro discurso. Aquele, que historicamente foi
desautorizado, em consequncia do que tende-se tratar seu autor como
um incapaz, uma pessoa infantil, algum com quem no se conta no
processo de produzir um projeto de vida, algum por quem precisamos
zelar, ainda que correndo o risco de invad-lo e suprimir sua posiao
de sujeito.
Realizar um cuidado de enfermagem a partir de uma clnica do
sujeito implica em conceb-lo diferentemente, ou seja, trata-se de
responsabiliz-lo, convidando-o a ocupar uma posio diferente da de
objeto do desejo do Outro.
a que comea a parte mais difcil desta histria. Por que para que
ele possa deslocar-se desta posio necessrio que um outro
deslocamento tambm ocorra. preciso que haja ali um profissional
disposto a desocupar o lugar reservado ao grande Outro nas
psicoses.Algum que se reconhea como um sujeito dividido, condio
fundamental para criar a possibilidade de aparecimento de um Outro
barrado tambm. Algum, disposto a colocar-se em posio de secretrio
do alienado, como ensina Lacan ( 1998 ).
Em outras palavras, um trabalhador de enfermagem que reconhea
que no obrigar a tomar banho no significa que se democrtico. Ou
melhor, de que no se trata de ser autoritrio
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ou respeitar o gosto e a vontade do paciente, mas sim de buscar
juntamente com o sujeito a relao que ele estabelece entre o cuidado
corporal e quem ele , ou seja, os nexos entre delrio e a
dificuldade de cuidar do prprio corpo.
Portanto, poder encar-lo de outro modo, implica em realizar
tambm uma leitura das psicoses a partir da clnica e, neste sentido,
a psicanlise tem contribuies bastante importantes.
No entanto, no h como encerrar esta exposio sem pelo menos fazer
uma referncia a
questo da formao do profissional de enfermagem e da posio de
excluso do processo de concepao do projeto teraputico a que boa
parte deles ainda est sujeito.
Resgatando uma pontuao feita a pouco neste texto, sempre
importante lembrar que o saber que est em jogo numa clnica
psicanaltica no o mesmo presente no discurso universitrio,
cartesiano, racionalista. Talvez, por suas caractersticas, ele no
caiba nas escolas, pelo menos no em todas e, s vezes tambm no
encontre espao nas instituies de sade
mental comprometidas com o fechamento das hincias que
necessariamente aparecem onde se faa a clnica, onde habitarem
humanos, onde, afinal, a vida se fizer presente.
Isto no significa que o acesso a este saber construdo a partir
da experincia a que chamamos de clnica no demande espaos ou
momentos de formalizao. Ao contrrio, ele implica um esforo
significativo, s vezes monumental, construdo na leitura de textos,
na escrita de casos clnicos e de elaboraes produzidas a partir das
anlises e da decifrao dos textos. Enfim, implica na construo de um
percurso, s vezes solitrio, s vezes compartilhado, mas
fundamentalmente rico de sentidos, de descobertas, de invenes.
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