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NECC-ENTREVISTAS: intelectuais em foco NECC Ncleo de Estudos
Culturais Comparados UMFS
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Entrevista Professora Emrita Eneida Maria de Souza Realizada em
22 de abril de 2009.
No saguo do Bahamas Apart Hotel Campo Grande, MS
NECC-ENTREVISTAS: intelectuais em foco Coordenador: Marcos
Antnio Bessa-Oliveira
Vinculado ao NECC Ncleo de Estudos Culturais Comparados -
UFMS
Orientao: Prof. Dr. Edgar Czar Nolasco Entrevista Realizada
por:Marcos Antnio Bessa-Oliveira e Rony Mrcio Cardoso Ferreira
Filmagem: Giselda Paula Tedesco e Jos Francisco Ferrari Transcrio
da Entrevista: Gabriela Gusman Barros da Silva Correo Textual:
Leilane Hardoim Simes Edio da Filmagem: Douglas Urbanek
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NECCENTREVISTAS - Desde 2004, nota-se um significativo aumento
nos estudos de crtica biogrfica, crtica cultural e estudos
latino-americanos na UFMS, principalmente nos Programas de
ps-graduao e graduao, enviesados pelas propostas apresentadas em
seus livros, a exemplo do Crtica Cult. A partir desses estudos
comparados, como senhora v a criao de um ncleo que volta suas
discusses exatamente para tais questes? ENEIDA Eu vejo como um
grande empreendimento, pois penso que estamos cada vez mais
aprendendo a tornar os ncleos de pesquisa mais variados. Como a
estrutura da universidade j est um pouco viciada, a criao de um
ncleo de pesquisa acaba sendo a grande sada para se discutir
qualquer tema, assunto e teoria. Com relao questo biogrfica e
cultural, percebemos que ela est em pleno avano e, ao mesmo tempo,
preserva-se a crtica mais centrada para o texto em si, ou seja,
antes de se concentrar nos estudos biogrficos, nas questes
polticas, culturais, sociais e histricas, voc tambm tem que ter a
experincia de utilizar certa perspiccia de anlise do prprio texto,
seja ele literrio, jornalstico, mesmo o musical ou voltado para a
entrevista. Acho que temos que levar em conta tudo. Por exemplo, no
se pode falar de um autor, a ttulo de ilustrao Clarice Lispector,
sem conhecer a fundo sua escrita, sua linguagem, pois a partir
dessa anlise que se extrai uma metodologia, uma maneira especial de
trabalhar o texto. NECCENTREVISTAS - Aquela idia do Crtica Cult, no
ensaio de autobiografia, continua valendo ento vida e obra para se
ler um trabalho atravs da crtica cultural? ENEIDA Sim, comprei
recentemente um livro de vrios autores que discutem o conceito de
autofico, que est sendo retomado atualmente pela crtica literria.
Esse conceito foi criado por Serge Doubrovsky, escritor francs, em
1967. Distingue-se da autobiografia, na medida em que na autofico o
autor j assume o texto como se fico. A autobiografia j , em
princpio, fico. Distingue-se um pouco da autobiografia tout court,
conceito muito bem desenvolvido por Lejeune, e que est sendo
assumido, atualmente, por escritores como Silviano Santiago. Ao
mesmo tempo que o escritor est fazendo autobiografia, revendo e
recriando a memria de sua vida e de sua famlia, se instaura sempre
o lance da fico, que atua como quebra de uma relao direta com a
realidade.
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NECCENTREVISTAS - Uma vez que o nosso ncleo intitula-se Ncleo de
Estudos Culturais Comparados, fazemos a seguinte pergunta: como
fica a disciplina Literatura Comparada depois do boom dos Estudos
Culturais no Brasil? ENEIDA Essa uma boa pergunta, e ao mesmo tempo
polmica. a questo de rtulo, de ttulos. Ao tentar definir a
Literatura Comparada, teramos que distinguir o que literatura, o
que se torna cada dia mais difcil, e o que a comparada, que por sua
vez tambm difcil. At mesmo a definio de Estudos Culturais,
disciplina que at hoje j se encontra um pouco descrente por
estudiosos, porque aquela histria: as pessoas acham que modismo,
que vai passar como toda moda. Em termos de crtica literria sempre
assim, tem-se o fenmeno do boom e, depois, as teorias vo sendo
substitudas por outras, ou, ao contrrio, nunca se abandona esta ou
aquela teoria, este ou aquele conceito. Mas o que acho mais
importante, tirando a questo da disciplina, a questo do ttulo; eu
acho que isso no muito importante, porque hoje a gente pode passar
por cima. Mas eu acho que a comparao o que mais importa. E
aprendemos isso desde que comeamos a trabalhar com literatura
comparada, que voc nunca pode trabalhar um texto,
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estudar um autor ou estudar um momento sem que todos esses
elementos sejam comparados com outros. E o que comparar? a grande
dvida, porque os nossos opositores afirmam que agora se compara
tudo, alhos com bugalhos, etc. Eu acho que no se trata mais de
pensar na perspectiva de comparar um escritor europeu com um
escritor brasileiro ou da Amrica Latina, mas a questo de se ampliar
essa comparao. Se voc coloca em comparao trs escritores ou trs
temas, amplia-se o foco da comparao, antes voltado para a relao
entre dois escritores. A presena de uma muda um pouco a relao.
Comparar no significa hierarquizar, usando preconceitos, como a
questo do gosto, no gosto, que o hbito nosso do dia-a-dia. Estamos
frequentemente sendo indagados sobre nossas predilees literrias:
voc gosta desse livro, voc no gosta, de que voc gosta?. Convivemos
o tempo todo com a questo do gosto, do valor. O gesto comparativo j
sofreu grandes mudanas e transformaes. preciso comparar os temas
que so semelhantes e o que diferente, aquilo que distorce. Se voc
acrescentar outros elementos de comparao, o trabalho cresce em
interesse e possvel brincar mais, jogar mais, pois no atrito entre
idias diferentes que so produzidos melhores efeitos.
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NECCENTREVISTAS - S para poder complementar mais essa questo,
queria saber a opinio da senhora: estudar Literatura Brasileira
estudar Literatura Comparada. Ento estudar Literatura Comparada
seria estudar Estudos Culturais? ENEIDA Eu acho que sim. O problema
o termo literatura, que a fica restrito a esse termo e no abarca
outras manifestaes. Eu acho que j no tem mais interesse essa
polmica entre os estudos culturais e a literatura comparada. Mas o
que eu sinto que estamos voltando a um pensamento de gueto, de
ficar defendendo a literatura em relao a outras disciplinas. Isso
no me agrada. Eu assisti recentemente a um documentrio intitulado
Palavra (en)cantada, um filme muito interessante. E discute
justamente dessa questo. poeta o letrista de msica popular? Chico
Buarque disse que no e apresentou suas razes. Mas a resposta que
mais gostei foi a da Adriana Calcanhoto: para mim essa polmica
completamente vazia. Se voc pensar o que poesia, o que ser poeta, ,
na realidade uma pergunta completamente vazia. Por qu? As pessoas
ainda esto preocupadas em definir o que poesia. Como voc pode
definir poesia? Como voc pode definir a letra de uma cano e dizer
que Chico Buarque no um poeta? Claro, profissionalmente ele no um
poeta, mas so as letras que contam, pois Chico considerado um dos
melhores poetas da msica popular. NECCENTREVISTAS - Seria ento,
professora, s para provocar um pouquinho, um grande erro dizer que
os Estudos Culturais, como vrios outros crticos disseram,
banalizaram a literatura comparada? ENEIDA Sim, mais ou menos isso.
As pessoas que praticam e defendem no Brasil a Literatura Comparada
citavam muitas vezes somente os europeus, os especialistas na
disciplina, os franceses, os alemes, etc. Quando os Estudos
Culturais entram na Amrica Latina, principalmente por meio da
academia americana, mas se apropriando de conceitos de crtica e
cultura pertencentes a tericos europeus, muda um pouco a recepo
desses estudos entre ns. Criou-se uma polmica, porque o fato de no
se preocupar com as noes de valor e de gosto, com o que bom e o que
no , muda muito o parmetro analtico no interior dos estudos
comparados e culturais. Para mim esta polmica j no tem muito
sentido, embora exista ainda estudiosos que no aceitam a diluio dos
critrios rgidos de valor.
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NECC-ENTREVISTAS Nos ltimos anos, a crtica tem se voltado para a
Amrica Latina. Por que isso ocorre e como a senhora se posiciona
perante tal fato? ENEIDA Eu acho que a Amrica Latina ns somos a
Amrica Latina, a gente se posiciona sempre de modo afastado,
separado no se conhece. No conhecemos a literatura, a histria, a
poltica, pelo fato de estarmos sempre com os olhos voltados para a
Europa, para os Estados Unidos, e mais recentemente, para a
literatura do Terceiro Mundo, recebendo as teorias, e as
deglutindo. No entanto, hoje estamos muito preocupados em conhecer
mais a Amrica Latina, to perto da gente, mas s vezes to distante.
Na atualidade, o atraso em relao Amrica Latina est sendo corrigido,
pois comeamos a trocar idias, a dialogar com os conceitos
produzidos aqui e ali, a traduzir nossos textos e nossa literatura
para os vizinhos. O leitor brasileiro sempre se interessou pela
literatura latino-americana, sempre a traduzimos, mas eles se
mostraram constantemente desinteressados com relao nossa cultura. A
situao agora outra.
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NECC-ENTREVISTAS A crtica latino-americana muito traduzida e
estudada nas universidades brasileiras. A recproca verdadeira no
que se refere crtica brasileira? Como senhora contextualizaria a
crtica brasileira hoje na Amrica Latina? ENEIDA Eu acho que so
poucos, ainda so poucos. Mas j h todo esforo. Na Argentina, por
exemplo, h um grupo que liderado por Florencia Garramuo e seu
marido, lvaro, alm de outros pesquisadores, que esto traduzindo
textos brasileiros, estudando literatura brasileira. A Florencia
acabou de publicar um livro que se chama Modernidades Primitivas,
muito interessante, porque ela vai relacionar Carlos Gardel e
Carmem Miranda ou seja, Argentina e Brasil. isso que est faltando a
gente fazer. Quer dizer, voc no pode estudar a figura da Carmem
Miranda como se ela existisse sozinha, tem que analis-la com a
ajuda de outras personalidades e artistas, tais como, Evita Pern,
outras cantoras do Caribe, ou mesmo do Brasil e que se projetaram
nos Estados Unidos ou na Europa. O envolvimento do samba com o
tango, o maxixe, os ritmos africanos, as tendncias do Caribe so
hoje uma das mais visveis marcas da integrao do continente por meio
da msica. Ento isso tudo no digo que d certa integridade Amrica
Latina porque no isso mas fornece certo perfil e a bons resultados
so atingidos atravs do mtodo comparativo. nesta direo que estou
querendo colocar em dilogo os acontecimentos marcantes da dcada de
1950 no Brasil e na Argentina com as mortes de Carmem Miranda,
Evita Pern, Getlio Vargas. Personagens polticas com personagens do
meio musical, mas que provocaram efeitos surpreendentes na populao
pelo seu carisma e, principalmente, pela sua morte prematura e
trgica. Pelo fato de mostrar que essas mortes contm pontos
semelhantes e diferentes, acrescento valores e interpretaes minha
anlise de Carmem Miranda. Se o objetivo da pesquisa se concentrar
numa figura apenas, no estabeleo possveis pontes culturais e
polticas entre os dois pases, entre acontecimentos significativos
para a compreenso de nosso to complexo continente. NECC-ENTREVISTAS
Ento um bom exemplo dessa interlocuo entre as pesquisas, entre a
crtica e entre a literatura, por conseqncia, seria o caso da
revista Margens/ Mrgenes e a revista Cincia Hoje, que uma revista
que recebemos como bolsistas de iniciao cientfica que trouxe no
exemplar de maro uma edio bilnge, entre Argentina espanhol e
castelhano e o portugus. Ento seria um bom exemplo dessa troca de
informaes. ENEIDA Eu acho que a nossa sada. Nosso grupo de pesquisa
do Acervo de Escritores Mineiros da UFMG est refazendo o antigo
projeto que havia sido desenvolvido com a CAPES e o CNPq, e que vai
ser rotulado de Resduos Margens. Trata-se de retomar as culturas
das margens e desenvolver tpicos
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relativos a esse tema, com o objetivo de dialogar nossa cultura
com outras, consideradas marginalizadas pelo discurso oficial.
NECC-ENTREVISTAS Acabou de ser lanado pela editora da UFMG o livro
organizado pela senhora e pelo professor Reinaldo Marques
Modernidades Alternativas na Amrica Latina. E tambm a senhora
organizou um livro de memrias de sua me. Gostaramos que falasse um
pouco a respeito desses livros. ENEIDA Vou falar primeiro do livro
de minha me, que resultou de um projeto meu e da minha irm, Leila,
foi ela quem comeou digitando os discursos dela. Minha me foi uma
professora catedrtica de portugus do primeiro e segundo graus e
defendeu sua tese em 1950, em Belo Horizonte. Trabalhou o tempo
todo como professora e era sempre convidada a redigir e proferir
discursos. Era sempre solicitada no s na escola como tambm no
Rotary Club, tendo sido, com meu pai, um de seus fundadores. E ela
guardou todo esse material, manuscritos e datiloscritos. Dividimos
o livro em cinco partes e ficou muito bonito, est simples, mas
muito interessante. O Paulo Schmidt foi o autor da programao
grfica. E o ltimo livro, que j est saindo pela UFMG, foi o
resultado de dois encontros que a gente fez em Belo Horizonte, ento
resolvemos trabalhar com a noo de modernidades alternativas.
justamente o que estamos desenvolvendo na pesquisa, em torno das
modernidades tardias. Trata-se de outra denominao, pois no se
concebe mais aceitar rtulos referentes modernidade hegemnica
europia. O conceito de modernidade vai passar por esses crivos. O
conceito de modernidades alternativas representa a idia de que, por
exemplo, na sia, no prprio Oriente, j esto se desenvolvendo outros
tipos de modernidades que no seguem o parmetro dos conceitos
relativos modernidade hegemnica. Ento isso me agrada muito, ao lado
da participao, nesse livro, de pesquisadores da Amrica Latina, como
Hugo Achugar, Adriana Prsico, Julio Ramos, autor de um texto
belssimo do livro, no qual discorre sobre a droga, o haxixe, e
sobre a relao entre Walter Benjamin e a modernidade europia. Ao
mesmo tempo que acredita numa modernidade urbana, parisiense,
criada nas ruas e por meio dos flneurs, Benjamin, ao se encontrar
em Marseille, assiste a um conjunto de jazz composto por negros, a
ele percebe que outras modalidades de modernidade podero coexistir.
preciso tentar mapear um pouco essas mltiplas modernidades e
ps-modernidades que nos cercam e nos situam tambm no nosso
cotidiano. NECC-ENTREVISTAS Ainda em relao ao livro de sua me, eu
acho que deve ter sido um campo muito frtil lidar com esses
documentos, uma vez que a senhora disse que conversas, fotos,
entrevistas, palestras papis de modo geral contribuem para a crtica
cultural biogrfica. A senhora faz alguma interveno diretamente no
livro?
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ENEIDA No, minha interveno foi apenas quanto a reviso dos textos
e sua organizao, porque os discursos feitos por ela so desde 1945
at os anos 90 e precisavam ser um pouco atualizados. Tive ento de
fazer uma reviso das repeties, das datas, etc. e organizar o livro
por temas. Organizei o primeiro tema, que foi a famlia. Anexamos um
discurso proferido na Academia Manhuauense de Letras no qual ela
escreve a histria de meu pai, a histria da famlia e, em outra
ocasio, ela narra a histria de sua famlia. Escreve tambm sobre a
Escola em que lecionou durante mais de trinta anos, sobre os
eventos da cidade, da Casa da Amizade, da qual foi secretria, alm
de algumas cartas escritas por ela para amigos e familiares. Esse
registro permite a contextualizao de uma vida que no s dela, como
tambm das pessoas com as quais ela conviveu. As cidades hoje
carecem de memria, preciso registrar os fatos, pois amanh ningum ir
se lembrar dessas histrias.
NECC-ENTREVISTAS O crtico Silviano Santiago viria pela primeira
vez a Campo Grande, infelizmente no foi dessa vez. Deixamos aqui
nossa frustrao pelo desencontro. Gostaramos que a senhora, que
discpula crtica
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direta dele, nos falasse da importncia de Silviano Santiago para
a crtica brasileira hoje. ENEIDA Eu considero Silviano Santiago um
dos maiores crticos hoje, de crtica cultural, literria e o
considero ainda um grande escritor. Ele foi quem nos ensinou e nos
ensina o tempo todo, com seu exemplo, a respeito da preocupao com a
seriedade profissional, a seriedade de sempre preparar um texto
quando vai se dirigir a este ou aquele auditrio. Nada se improvisa.
perfeitamente antenado ao que se passa no mundo, est por dentro das
novidades, por dentro de tudo aquilo que est surgindo em termos de
teoria, de arte, etc. uma pessoa que pela manh se interessa pelas
notcias de toda sorte adquiridas pela internet, l o The New York
Times, os jornais mais importantes do mundo e do Brasil. Ele nos
preparou ainda para os estudos de Literatura Comparada e dos
Estudos Culturais. Retomando a afirmao do Antonio Candido, de que
estudar Literatura Brasileira estudar Literatura Comparada, no
sentido de que necessrio marcar o lugar de onde se fala. Se voc est
falando do Brasil, voc tem sempre que puxar um pouco dessa sua
reflexo, no s para o lugar de onde se est falando, mas tambm o
momento em que voc est falando. Mesmo que esteja, no presente,
realizando um trabalho do sculo 18, do sculo 19, a sua viso, suas
leituras, so as de hoje. A sua experincia a de hoje. Somos leitores
dos dias atuais. Essa ainda uma das boas lies que dele recebemos. H
crticos, estudiosos que estudam o barroco do sculo 18 e ficam l no
sculo XVIII. No tentam trazer essa mensagem para os dias
contemporneos. A seriedade profissional seria, talvez, a sua maior
qualidade como intelectual e escritor. NECC-ENTREVISTAS Em relao ao
seu texto Nas margens, a metrpole, a senhora disse que as demarcaes
polticas e geogrficas no existem mais. Isso vale ento,
consequentemente, para a crtica, a literatura comparada e os
estudos culturais e para qualquer tipo de estudo que a gente possa
fazer hoje em qualquer produo artstica literria? ENEIDA um pouco
temerrio dizer que as demarcaes geogrficas no existem mais, mas eu
acho que se voc for pensar, por exemplo, em identidade nacional, em
termos de literatura brasileira, essa priso a um certo regionalismo
j um assunto descartado. Ento a gente tem hoje uma preocupao com o
neo-regionalismo ou o ps-regionalismo, ou o local que est sempre em
dilogo com o global, as periferias se relacionando com o centro,
etc. Todas essas afirmaes so muito relativas. No ltimo nmero da
revista Bravo! no tive tempo de ler mais vi a manchete, que trata
das artes plsticas, revelando a como o motivo nacional no mais a
primeira preocupao dos artistas. Essa preocupao eu tenho
demonstrado em relao literatura, no a literatura modernista, da
dcada de 1920. Com Mrio de Andrade, era preciso construir a cultura
nacional, pois se estava tambm
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construindo uma idia de nao e de Estado moderno. Toda essa
proposta modernista foi importantssima para a criao de uma
literatura brasileira. Mas hoje no se observa mais essa priso a um
territrio, a uma geografia. Mas ao mesmo tempo voc est falando de
um determinado lugar. Eu acabei de ler um livro do Bernardo
Carvalho, O filho da me, vou fazer uma resenha. Achei um livro
muito difcil, porque se passa em So Petersburgo e Moscou. E fiquei
pensando justamente nessa questo dos territrios. Ele est h muito
tempo trabalhando literariamente nesta direo, com os romances O sol
se pe em So Paulo, Monglia e Nove Noites. A pergunta que se faz at
que ponto essa estratgia de enfocar lugares estrangeiros, escrever
sobre lugares talvez considerados por ns como exticos, aproveitando
desse extico que a Rssia, a Monglia, para fazer literatura
brasileira? Chico Buarque, por exemplo, escreveu Budapeste, livro
no qual a ao se passa tanto em Budapeste como no Rio de Janeiro.
Acaba de lanar outro livro com outra proposta mais brasileira. A
caracterizao da literatura brasileira hoje se acha meio complexa,
pois h vrias tendncias e caminhos s vezes opostos. A multiplicidade
uma das tnicas de nossa poca. NECC-ENTREVISTAS A senhora falou de
uma concepo de autofico que a senhora est estudando. Com relao ao
ltimo romance do Silviano Santiago, Heranas, teria alguma relao com
esse conceito de autofico? ENEIDA Sim, ele at assumiu que sua
literatura procede segundo a autofico. Vai sair um artigo dele na
Revista Aletria, da Faculdade de Letras da UFMG, organizada por mim
e outros, em comemorao dos 40 anos da Faculdade de Letras e os 25
da ps-graduao. Nesse artigo ele desenvolve essa teoria da autofico
ao se referir a sua obra. Na verdade o que ele realiza na
literatura esse tipo de procedimento, diferente da autobiografia. O
escritor est o tempo todo inserido na obra, mas sempre na condio de
personagem. Constroi uma personagem que retira de conhecimentos
pessoais, mas ela o tempo todo mesclada com outras de sua imaginao,
alm de ter traos de outras. interessante perceber que quando se
escreve um texto memorialista e ele escreve o tempo todo memrias,
embora mentirosas - no se trata de uma literatura memorialista tout
court, uma autobiografia; porque est sempre fingindo e descartando
a relao com os acontecimentos vividos, com a biografia propriamente
dita. NECC-ENTREVISTAS Que conselho a senhora daria para os alunos
de graduao e de ps-graduao que esto se enveredando na pesquisa?
ENEIDA Eu acho que vocs tm que continuar e conservar sempre o livro
aberto, estudar muito, mas tambm, como j dizia Mrio de Andrade, se
apropriar ainda da experincia da rua. No s ler, tambm relacionar
essa leitura e essa literatura com a vida, caso contrrio, a vida se
desloca da
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literatura e essa situao no desejada. diferente de transformar a
vida em literatura, ficcionaliz-la. Embora seja interessante a
leitura da vida como se fosse um pouco semelhante a um texto. Gosto
de repetir uma afirmao que encontrei numa revista sobre
autobiografia, que a seguinte: Olha, depois que comecei a encarar
meu marido como um personagem, o meu casamento melhorou. Quando voc
est encarando e achando que ele pessoa, voc enxerga defeitos, quer
que ele se comporte conforme seus desejos, vendo s qualidades nele.
Quando voc observa que uma pessoa tem mais defeitos do que
qualidades, voc a ficcionaliza e, assim, convive melhor com as
diferenas(risos). NECC-ENTREVISTAS Agradecemos professora Eneida
por essa entrevista e esperamos rev-la muitas outras vezes em Campo
Grande para nos privilegiar e nos dar o prazer de sua companhia.
Obrigada, professora, em nome do Ncleo, em nome de todos os membros
do NECC. ENEIDA Eu que agradeo, sempre bom vir aqui e me encontrar
com os amigos e colegas. ENEIDA MARIA DE SOUZA Bolsista de
Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nvel 1A, Professora titular em
Teoria da Literatura da UFMG; professora Emrita da UFMG; graduada
em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (1966), mestre
em Letras (Literatura Brasileira) pela Pontifcia Universidade
Catlica do Rio de Janeiro (1975) e doutora em Literatura Comparada
- Semiologia - Universit de Paris VII (1982). Tem experincia na rea
de Letras, com nfase em Teoria Literria, atuando principalmente nos
seguintes temas: critica cultural, dependncia cultural, Mrio de
Andrade, biografia literria e crtica brasileira. Orientou 1
bolsista de ps-doutorado, 17 teses de doutorado, 3 dissertaes de
mestrado, 4 monografias de final de curso, 11 bolsistas de Iniciao
Cientfica. Tem 6 livros publicados, 12 livros sob sua organizao,
vrios artigos em peridicos nacionais e estrangeiros, alm de mais de
uma dezena de captulos de livros. ltimos ttulos publicados: Crtica
cult (2002-2007); Pedro Nava - o risco da memria (2004); Tempo de
ps-crtica (2007), O sculo de Borges, 2a edio, 2009. Participa do
Projeto Integrado Acervo de Escritores Mineiros da FALE/UFMG, com o
projeto "Biografias saem dos arquivos". Atua como membro do comit
editorial de vrias revistas nacionais, destacando-se, entre elas, a
revista Margens/Mrgenes, de mbito internacional. Exerce atividades
interinstitucionais como professora-visitante em vrias
universidades brasileiras, como a UFBA, UERJ, PUC/Rio, UFJF, UFRN,
UFC, UFRGS, alm de universidades estrangeiras, como as de
Nottingham (Inglaterra), Poitiers (Frana), San Andrs
(Argentina).