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Hermenuca losca
e hermenuca bblica
em Paul Ricoeur
Geraldo De Mori*
Resumo
A hermenutica losca de Paul Ricoeur conheceu sua primeira
elaborao no segun-do tomo de sua Philosophie de la volont: La
symbolique du mal. J nesta etapa o lsofo francs oferece uma grande
contribuio hermenutica bblica, uma vez que analisa os smbolos e o
mito atravs dos quais o mal confessado e narrado. A segunda
elaborao da hermenutica de Ricoeur centrada no texto. Para isso,
ele aprofunda a tradio her-menutica anterior, alm de estabelecer um
dilogo fecundo com os estruturalistas e os lsofos da linguistic
turn. As teorias da me-tfora e da narrao fazem parte desta nova
hermenutica, que no aborda os signos da cultura por eles mesmos,
mas tendo em vista uma hermenutica da ao de um sujeito (si) capaz.
Este texto apresenta uma breve snte-se dos principais elementos da
hermenutica ricoeuriana dos textos, indicando, num segun-do
momento, seus desdobramentos na exe-gese bblica.
Palavras-chave: Paul Ricoeur, her-menutica losca, hermenutica
bbli-ca, teoria da metfora, teoria da narrao, hermenutica dos
textos.
g pelas Facults Jsuites de Paris - Centre
Svres -, professor de antropologia teolgica e escatologia crist
na Faculdade Jesuta de Filosoa e
Teologia - FAJE -, Belo Horizonte, Brasil, onde o Diretor do
Departamento de Teologia e o Coordenador do Programa de Ps-
Graduao. Publicou: A teologia em situao de ps-modernidade.
So Leopoldo: Unisinos, 2005; Le temps. nigme des hommes,
mystre de Dieu. Paris: Cerf, 2006. Organizou com outros
autores as seguintes publicaes: Teologia e Cincias da Religio.
Rumo maioridade acadmica
no Brasil. So Paulo: Paulinas, 2011 (com CRUZ, E.); Religio e
educao para a cidadania. So
Paulo: Paulinas, 2011; Aragem do Sagrado. Deus na literatura
brasileira contempornea. So
Paulo: Loyola, 2011; Mobilidade Religiosa. Linguagens,
Juventude,
Polca. So Paulo: Paulinas, 2012.
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Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012
Abstract
The philosophical hermeneutics of Paul Ricoeur met his rst
drafting in the second tome of his Philosophie de la volont: La
symbolique du mal. Already at this stage of the French philosopher
offers a large contribution to biblical herme-neutics, since it
analyzes the myth and symbols through which evil is confessed and
narrated. The second development is the hermeneutics of Ricoeur
centered iin the text. For this, he deepens the earlier hermeneutic
tradition, in addition to establishing a fruitful dialogue with the
structuralists and philosophers of the linguistic turn. The
theories of metaphor and narrative are part of this new
her-meneutic that does not address the signs of culture by
themselves, but in view of a hermeneutics of action of a subject
(self) . This paper presents a brief summa-ry of the main elements
of hermeneutics ricoeuriana texts, indicating a second time, its
developments in biblical exegesis.
Keywords: Paul Ricoeur, philosophical hermeneutics, biblical
hermeneu-tics, the theory of metaphor, narrative theory,
hermeneutics of texts.
Introduo
A reexo losca de Paul Ricoeur de grande diversidade e
complexidade, resistindo a qualquer sistematizao que a rena ao
redor de uma nica perspectiva. Com efeito sua hermenu-
tica dos smbolos, do texto e da ao, sua teoria da metfora e da
nar-
rao, sua reexo sobre o tempo, a histria, a identidade, a
memria
e o esquecimento, suas pesquisas sobre a vontade, o mal, a tica,
o si
ou, ainda, suas contribuies exegese bblica, no traduzem
individu-
almente a obra variada do lsofo francs1. Por isso, no
pretendemos
neste texto oferecer nenhuma chave de leitura do conjunto desta
obra,
nem tampouco apresentar a especicidade de seu aporte literatura
ou
teologia. Contentar-nos-emos em propor uma breve leitura do
percurso
ricoeuriano, recolhendo alguns traos de sua teoria hermenutica
da
hermenutica dos smbolos hermenutica do texto, passando pelas
teorias da metfora e da narrao apontando, num segundo
momento,
1. Para uma introduo ao conjunto do pensamento de Ricoeur, cf.
DOSSE, F. Paul Ricoeur. Le sens dune vie. Paris: La Dcouverte,
1997; GREISCH, J. Paul Ricoeur. Litinrance du sens. Grenoble:
Millon, 2011.
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alguns desdobramentos teolgicos dessa teoria.
1. Da hermenutica dos smbolos hermenutica dos textos2
A teoria hermenutica de Ricoeur conheceu duas grandes
elabora-
es, a da hermenutica dos smbolos e a da hermenutica dos
textos,
ambas relacionadas com sua hermenutica da ao. Pensador das
me-
diaes, que passam em geral pelos grandes signos da cultura, como
os
smbolos, os mitos e os textos, o lsofo francs produziu uma
reexo
em constante dilogo com as principais tendncias loscas do
sc.
XX.
Sua obra inaugural Philosophie de la volont prevista para
des-
dobrar-se num trptico, tendo como primeiro quadro, a eidtica da
vonta-
de, constituda por Le volontaire et linvolontaire; como segundo
quadro,
a emprica da vontade, formada pelos dois volumes de Finitude et
culpa-
bilit: Lhomme faillible e La symbolique du mal; e como terceiro
quadro,
a potica da vontade, que nunca chegou a se formular numa obra
espe-
cca , tem como preocupao de fundo a questo do sujeito (ou do
si)
capaz de um agir que ultrapasse a falha que a partir dele
introduz o mal
no mundo3. De uma leitura fenomenolgica, que estuda as
estruturas do
voluntrio e do involuntrio, Ricoeur passa a uma leitura
hermenutica,
que estuda os smbolos e os mitos que confessam e narram o
mal.
Constitui-se assim sua hermenutica dos smbolos, que se estrutura
em
trs grandes momentos: 1) o da anlise dos smbolos originrios
(man-
cha, pecado e culpabilidade), a partir dos quais a falha que
introduz o
mal no mundo confessada; 2) o da anlise dos mitos que buscam
en-
tender a irrupo do mal na histria (os mitos babilnico, trgico,
rco
2. Esta primeira parte retoma estudo semelhante publicado na
revista Teoliterria, 2012, n. 3, embora ento buscssemos mostrar a
contribuio da hermenutica de Ricoeur na leitura de textos
literrios, ilustrando nosso estudo com alguns aspectos da obra
de Joo Ubaldo Ribeiro, Viva o Povo Brasileiro.3. Cf. RICOEUR, P.
Philosophie de la volont I. Le volontaire et linvolontaire. Paris:
Montaigne, 1949; Philosophie de la volont II. T. 1. Finitude et
culpabilit. Lhomme faillible. Paris: Montaigne, 1960; Philosophie
de la volont II. T. 2. Finitude et culpabilit. La symbolique du
mal. Paris: Aubier, 1960.
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e admico) ou que apontam para sua supresso (mitos
escatolgicos
de redeno e salvao); 3) o da anlise da passagem da simblica
reexo (gnose, doutrina do pecado original e suas releituras pela
tradi-
o losca no Ocidente). O perodo que se segue levar Ricoeur ao
estudo de Freud e ao encontro com a crtica do estruturalismo.
Ele d-
se ento conta do conito de interpretaes que ope as
perspectivas
teleolgicas s leituras arqueolgicas4. Face a esse conito, ele
prope
pensar mais e de outra forma, buscando as mediaes que
contribu-
am para uma melhor compreenso do ser humano em sua condio
histrica5.
A passagem da fenomenologia hermenutica leva Ricoeur a re-
ler os principais expoentes da losoa hermenutica, que o
conduzir
hermenutica dos textos. Crtico de Schleiermacher cuja
hermenutica
busca a inteno do autor por detrs do texto , de Dilthey que
ope
compreenso e explicao , de Gadamer que reitera esta oposio
na dialtica verdade e mtodo , e de Heidegger que segue o ca-
minho curto em sua hermenutica da facticidade , o lsofo
francs
estabelece os elementos de sua teoria do texto e da ao Do
texto
ao , na qual a noo de distanciao jogar um papel decisivo6.
Nesse perodo ele escreveu tambm a obra que explora o fenmeno
da
inovao semntica A metfora viva , concebida junto com sua
teoria
da narratividade e da temporalidade Tempo e narrativa 1, 2, 3 ,
que o
levar a aprofundar o tema da identidade em relao com a tica O
si
mesmo como um outro 7. Vejamos os principais elementos dessa
etapa
4. Cf. RICOEUR, P. De linterprtation: essai sur Freud. Paris:
Seuil, 1965 ; Le conit des inter-prtations. Essais dhermneutique.
Paris: Seuil, 1969.5. Ricoeur pensa particularmente na psicanlise
(voltada para a arqueologia) e a na fenomenologia
hegeliana (voltada para a teleologia), embora denomine mestres
da suspeita a Freud, Nietzsche
e Marx.
6. Cf. RICOEUR, P. Du texte laction. Essais dhermneutique II.
Paris: Seuil, 1986. Trad. Portuguesa. Do texto aco. Ensaios de
hermenutica II. Porto : Rs, 1989.7. Cf. RICOEUR, P. La mtaphore
vive. Paris: Seuil, 1975; Temps et rcit I. Lintrigue et le rcit
historique. Paris: Seuil, 1983; Temps et rcit II. La conguration
dans le rcit de ction. Paris: Seuil, 1984; Temps et rcit 3. Le
temps racont. Paris: Seuil, 1985; Soi-mme comme un autre. Paris:
Seuil, 1990.
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da hermenutica dos textos de Ricoeur.
a. A funo hermenutica da distanciao: a teoria do texto
A noo de distanciao joga um papel importante na teoria do
texto
de Ricoeur. Ele organiza sua compreenso de texto em cinco
momentos:
1) a efetivao da linguagem como discurso; 2) a realizao do
discurso
como obra estruturada; 3) a relao entre fala e escrita no
discurso e nas
obras de discurso; 4) a projeo do mundo do texto; 5) o discurso
e a
obra de discurso como mediao para a compreenso de si8.
Para Ricoeur, a linguagem se realiza primeiro como discurso. o
que mostra a dialtica entre lngua enquanto cdigo e acontecimen-to
alguma coisa acontece quando algum fala . O discurso aparece a como
um evento porque se refere a um mundo e se dirige a um inter-
locutor. No esse evento, porm, que buscamos entender, pois
ele
fugidio, mas seu signicado, que permanece. Ao entrar no processo
da
compreenso, o discurso se supera, enquanto evento, na
signicao.
A primeira distanciao, portanto, a do dizer no dito. E o que o
dito?
Segundo a teoria dos atos de linguagem9, o ato de discurso
constitudo
por uma srie de atos distribudos em trs nveis: o do ato
locucionrio (=
proposicional); o do ato ilocucionrio (= o que fazemos ao dizer
algo); o
do ato perlocucionrio (= o estmulo causado pelo discurso e seu
efeito).
Esses aspectos do ato de discurso esto codicados segundo
paradig-
mas e podem ser reidenticados. O ato locucionrio, por exemplo,
se
exterioriza em frases que podem ser identicadas e reidenticadas
como
sendo as mesmas frases, embora suscetveis de serem transferidas
com
tal ou tal sentido em outra proposio. O ato ilocucionrio se
exterioriza
graas aos paradigmas gramaticais (modos indicativo, imperativo
etc.)
e aos procedimentos que marcam a fora ilocucionria de uma frase.
O
ato perlocucionrio, prprio dos discursos orais, mostra o que no
discur-
8. Cf. RICOEUR, P. A funo hermenutica da distanciao. In Do texto
aco. Op. cit., p. 110.9. Tambm conhecida como Speech-Act, tendo
como principais referncias J. L. Austin e J. R. Searle.
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so estmulo.
Enquanto exteriorizado, o discurso pode se objetivar numa obra
ou num escrito, que mais que a sequncia de uma s frase. De fato, a
obra mais que a justaposio de elementos isolados, pois o
resultado
de todo um trabalho de organizao e de composio, que faz dela
um
conjunto organizado e irredutvel em suas partes. Por outro lado,
esse
trabalho de composio deve submeter-se a um conjunto de regras
e
normas, que constituem os gneros literrios, os quais obedecem
a
certos paradigmas estruturadores. Trata-se de modos de produo
a
partir dos quais possvel engendrar um nmero innito de novas
obras.
Um novo tipo de distanciao se opera a, que permite a inscrio e
a
recepo de uma obra numa forma dada. O processo de construo
de
um texto mostra, enm, uma congurao singular e individual, o
estilo,
que o vestgio daquele que o produziu e o distingue de outros
textos e
obras. A noo de autor aparece ento como o correlato da
individuali-
dade da obra mesma.
a escritura, sobretudo, que transforma um discurso num texto.
Ela introduz o fator exterior e material da xao, que salva o
acontecimento
do discurso da destruio, alm da distanciao entre a obra assim
pro-
duzida e seu autor, e entre esta mesma obra, suas origens, sua
situao
de produo, e seus destinatrios imediatos (oral) ou originais
(escrito) e
futuros (leitores). De fato, todo texto suscita um pblico que se
estende
virtualmente a quem sabe ler. Por causa da autonomia provocada
pela
efetuao do discurso na escritura, a situao dialogal no pode ser
o
modelo ideal da interpretao. Nesse sentido, no h relao
imediata
entre o autor e o leitor, j que o primeiro colocado distncia por
seu
prprio texto, que se forja uma autonomia e se abre uma innidade
de
leituras. Esta passagem da palavra ao texto torna, portanto,
possvel a
distanciao (descontextualizao) do texto com relao inteno do
autor.
Para Ricoeur, todo texto projeta um mundo, o mundo do texto.
O
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lsofo francs constri esta noo num dilogo com o estruturalismo
e
a losoa da linguagem. O mundo do texto, diz ele, no
corresponde
ao mundo da linguagem ordinria que tem em vista o mundo como
ser-dado , mas ao da linguagem potica, que capta o mundo
como
poder-ser, re-criao10. O ato de leitura torna possvel a apreenso
da
proposta de mundo que o texto abre ao leitor para que ele possa
nele se
projetar. O mundo do texto aparece ento como um horizonte
global,
uma totalidade de signicaes, que Gadamer denomina a coisa do
tex-
to. A referncia imediata ao mundo desaparece quando um discurso
se
torna texto, mas libera uma referncia de segundo nvel11. A
hermenu-
tica no consiste mais em buscar as intenes escondidas pelo autor
por
detrs do texto, mas em captar o tipo de ser-ao-mundo que o texto
lhe
prope e que pode ser recebido por ele, reconhecendo assim as
novas
possibilidades abertas pelo texto para que o leitor se
compreenda e se
situe em sua realidade cotidiana.
A apropriao, enm, o ato de recontextualizao pelo qual as ofertas
de sentido do mundo do texto so acolhidas na interpreta-
o de si de um sujeito que doravante se compreende melhor, se
com-
preende de outro modo, ou que comea mesmo a se
compreender12.
Compreender , ento, compreender-se diante do texto, expor-se
ao
texto e receber dele um si expandido pela exposio sua oferta de
ser-
ao-mundo13.
b. O fenmeno da inovao semntica: a teoria da metfora
A teoria da metfora de Ricoeur tambm de grande importncia na
elaborao de sua hermenutica, pois abriu novas perspectivas para
a
leitura de textos poticos e literrios. Ele a elaborou em dilogo
com a re-
trica, desenvolvida por Aristteles, com o estruturalismo, as
teorias lite-
10. Cf. RICOEUR, P. A funo hermenutica da distanciao. Op. cit.,
p. 122. 11. Idem, p. 121.12. Cf. RICOEUR, P. O que um texto? In Do
texto aco. Op. cit., p. 155.13. Cf. RICOEUR, P. A funo hermenutica
da distanciao. Op. cit., p. 124.
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rrias e a losoa da linguagem, defendendo a tese de que a
metfora
o paradigma da criatividade na linguagem e um poema em
miniatura14.
Partindo da polissemia, que faz com que os signicados de uma
palavra possam ir da ambiguidade equivocidade, Ricoeur estuda
as
estratgias que as linguagens ordinria, cientca e potica utilizam
para
combater a no compreenso. A linguagem ordinria, diz ele,
possui
uma polissemia irredutvel, que lhe confere sua capacidade
expressiva.
Para reduzir a equivocidade, ela busca limit-la, o que torna
possvel a
comunicao cotidiana, sem que isso implique a excluso da
polissemia.
A linguagem cientca quer, por sua vez, eliminar toda
ambiguidade, vis-
ta por ela como perniciosa, e busca uma univocidade completa
atravs
de denies e classicaes, que produzem uma linguagem articial,
embora til nos casos da argumentao. A linguagem potica, enm,
recorre polivalncia semntica, comum aos textos literrios e
met-
fora, que no s deixam existir a ambiguidade e a equivocidade,
mas se
esforam por cultiv-la.
A metfora explora a capacidade de as palavras adquirirem
novos
sentidos em contextos diferentes, atravs do choque de
signicaes
literais, que leva ao surgimento de um novo signicado. O texto
literrio
tambm recorre ambiguidade, j que se apresenta como um
conjunto
organizado e cumulativo, que deixa livre o campo a interpretaes
varia-
das. A diferena entre o texto literrio e a metfora que a
ambiguidade
do primeiro se d no nvel da obra, enquanto a da segunda se d
no
nvel da palavra. De fato, o processo metafrico tende a se
concentrar
na extenso mnima da palavra, enquanto o trabalho do texto tende
a
realizar-se na extenso mxima da obra. A metfora por isso uma
obra
em miniatura. Como captar o sentido metafrico, j que no nvel
literal,
ela vista como um absurdo lgico ou uma impertinncia
semntica,
um no sentido? Como fazer emergir a signicao metafrica, j
que
ela no se encontra disposio nas codicaes do lxico? O
processo
14. Cf. La mtaphore vive. Op. cit., p. 339.
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metafrico promove uma toro na linguagem que a faz
ultrapassar-se
e gerar uma inovao semntica ou um aumento icnico do sentido,
abrindo novas formas de ser-ao-mundo e novos possveis, que
so
suscetveis de balanar a compreenso de si15.
Ricoeur rel a histria das teorias da metfora, comeando com a
da retrica aristotlica, para a qual a metfora um artifcio de
substitui-
o de uma palavra literal ou corrente por outra gurada, no
aportan-
do nenhuma inovao semntica. Reduzida ao estado de denominao
desviante ou de procedimento estilstico decorativo, ela vista
como
gura de estilo ou tropo, que troca as palavras somente
estendendo seu
sentido. Na mesma linha se inscreve a teoria da nova retrica
estrutu-
ralista de Greimas, para a qual a metfora permanece um fenmeno
de
pura ornamentao, ligado palavra e a seus semas constitutivos.
Para
o lsofo francs, necessrio abandonar as teorias de substituio
e
a semitica da palavra e inserir a metfora na semntica do
discurso.
Isso signica que preciso pens-la no a partir de palavras
isoladas,
mas da frase inteira. A inovao semntica se produz ento entre os
ter-
mos da armao metafrica, que se situam numa frase, na qual
entram
em coliso e provocam um absurdo lgico, uma contradio ou uma
impertinncia semntica16. Ao interpretar esses termos, o que
no
sentido ganha sentido, o absurdo lgico se torna absurdo
signicante
e a contradio passa a ser autocontradio signicante. Essa
coliso
da linguagem rompe a viso ordinria da realidade e as estruturas
do
real, pois inventa e recria o mundo pelo vis de uma co
imaginativa.
Nesse sentido, as metforas vivas produzem um aumento icnico
da
realidade ou do mundo. Para que isso ocorra, porm, a referncia
literal
realidade substituda por uma referncia metafrica, que de
segun-
da ordem.
Diante da impossibilidade de dizer imediatamente certos
aspectos
15. Cf. RICOEUR, P. Reexion faite: autobiographie intellectuelle
. Esprit, 1995, p. 47.16. Cf. RICOEUR, P. Paul Ricoeur on Biblical
Hermeneutics. In Semeia, n. 4 (1975), p. 78.
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do real, a estratgia da metfora ento a de recorrer ao ser
como17.
Paradoxalmente, quando a referncia literal se colapsa por
inadequa-
o, sob a presso da co potica, atinge-se o corao mesmo do
real. No mais o sujeito que domina a linguagem, mas ela que
o
interpela e o reclama, recriando assim seu ser no horizonte de
suas in-
terrogaes fundamentais. Segundo Ricoeur, tal o mundo do
texto
metafrico. A tenso que ele revela (ser/no ser) aponta, todavia,
para
uma tenso mais fundamental ainda, que de tipo ontolgico. Mais
que
a busca de soluo desta tenso, prossegue ele, necessrio
mostrar
que ela nos revela um mundo anterior oposio sujeito/objeto,
mundo
ao qual pertencemos radicalmente e no qual podemos projetar
nossos
possveis mais prprios18. A questo epistemolgica levantada por
essa
tenso nos conduz ao eclipse da referncia primeira ao mundo
objetivo
dos objetos manipulveis e nos situa ao mesmo tempo diante de
uma
nova dimenso do real e da verdade. Mais que adequao entre o
que
visado pela linguagem e a linguagem ela mesma, a verdade brota
da
capacidade de se reconhecer na linguagem (metfora) uma
manifesta-
o do ser.
c. Os traos temporais da existncia: a teoria narrativa
Ricoeur sistematiza sua teoria narrativa na obra Tempo e
narrativa,
que se organiza num dilogo triangular entre temporalidade,
narrativida-
de (historiograa e co) e historicidade. Duas teses resumem o
projeto
global desta obra: 1) pela narrao, como pela metfora, algo de
novo
indito surge na linguagem19; 2) O tempo se torna tempo humano
na
medida em que se articula de modo narrativo; a narrao tem
sentido na
medida em que desenha os traos da experincia temporal20.
A primeira parte de Tempo e narrativa retraa o crculo existente
en-
17. Cf. Reexion faite: autobiographie intellectuelle. Op. cit.,
p. 47.18. Cf. La mtaphore vive. Op. cit., p. 387.19. Cf. Temps et
rcit 1. Op. cit., p. 11.20. Idem, p. 17.
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tre narrao e temporalidade. Duas incurses independentes, mas
com-
plementares, so feitas por Ricoeur na histria da losoa: 1) a das
apo-
rias da experincia do tempo, apresentada por Agostinho no livro
XI das
Consses, onde a discordncia ganha da concordncia, numa
anlise
do tempo feita a partir da alma (distentio animi); 2) a da
teoria da intriga
dramtica, proposta na Potica, de Aristteles, na qual a
concordncia
leva vantagem sobre a discordncia pelo poder de sntese prprio
ao
tecer da intriga (muthos-mimsis).
Aps essa primeira aproximao entre temporalidade e
narrativida-
de, Ricoeur desenvolve sua compreenso do tecer da intriga
(muthos),
recorrendo teoria da trplice mimsis, tambm de origem
aristotlica.
Mimsis, diz ele, a imitao criadora da experincia temporal e
ela
se articula em trs momentos: mimsis 1 ou pregurao, cuja raiz
a vida de todos os dias, que temporal e se compreende enquanto
tal
nas experincias de recordao, projeo e ateno; mimsis 2 ou
con-
gurao, que o ato de estruturao da narrao a partir de cdigos
narrativos internos ao discurso, com comeo, meio e m; mimsis 3
ou
regurao, que o ato pelo qual o mundo do texto e o mundo do
lei-
tor se encontram no ato de leitura. O arco hermenutico torna-se
assim
completo: ele rene o conjunto das operaes pelas quais uma obra
se
retira do fundo opaco do viver, do agir e do sofrer (mimsis 1),
para ser
dada por um autor (mimsis 2) a um leitor que a recebe e assim
muda
seu agir e seu mundo (mimsis 3)21.
Ricoeur atribui a mimsis 2, que o desdobrar-se da narrao en-
quanto relato histrico ou de co, o papel central de sua anlise.
Sua
reexo se estabelece num dilogo crtico com as teorias
anti-narrativas
presentes nos domnios das cincias histricas e literrias,
marcadas
respectivamente por modelos positivistas e estruturalistas. Sua
tese
que a inteligncia narrativa precede todo ato congurante, tanto
na his-
tria quanto na co. Segundo ele, na historiograa mais
positivista
21. Ibidem, p. 86.
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recorre-se a noes como quase intriga, quase personagem e
quase
evento, que mostram o carter altamente analgico dessas noes
nar-
rativas para a histria cientca. O mesmo se d na literatura, que
apesar
da metamorfose que sofreu ao longo da histria, lida por alguns
como
m da arte de narrar ou como ausncia de narrao em sua
estrutura
de fundo, no deixa de se metamorfosear e guarda sempre um
resduo
de diacronia no seio da acronia. Para Ricoeur, a inteligncia
narrativa e
nossa familiaridade com a tradio narrativa so sempre
requisitadas. A
prpria tradio narrativa sedimentou alguns modelos ou
paradigmas,
que so explorados diversamente nos distintos gneros literrios,
sendo
constantemente inovados pela imaginao criadora. O recurso
imagi-
nao se d de modo distinto na historiograa e na co. Esta
comporta
uma maior liberdade, oferecendo um nmero innito de
possibilidades.
De fato, o relato de co funciona como um laboratrio onde a
imagi-
nao testa diversas solues para resolver os enigmas do tempo
ou
outros enigmas da existncia.
A temtica de mimsis 3, a da regurao, retoma as aporias do
tempo para se concentrar na questo do leitor, atravs do ato de
leitura.
Ricoeur sustenta que o tempo humano captado na referncia
cru-
zada entre a representncia da historiograa (documentos,
arquivos,
sucesso de geraes, vestgios) e a signicncia da co literria
(variaes imaginativas, metforas etc.). Ambas se referem ao
real,
mas diferentemente, atravs da imaginao produtora. Por um lado,
as
intrigas ctcias que inventamos ajudam a dar forma a nossa
experin-
cia, criando novos esquemas de inteligibilidade da ao. Esta
produtivi-
dade implica, num primeiro tempo, a suspenso da referncia
imediata
ao real. Nesse momento de suspenso, o texto projeta um mundo
que
simula a experincia vivida e comporta suas prprias guras da
exis-
tncia. o mundo do texto, que se oferece acolhida crtica do
leitor
e entra em confronto com o mundo real, j que pode desestrutur-lo
e
reorganiz-lo, amea-lo ou conrm-lo, ou seja: regur-lo. Por
outro
lado, a histria se assemelha co, pois produz sua referncia,
j
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Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012
que s atinge o real passado indiretamente, reconstruindo-o
atravs da
imaginao criadora do historiador, que pe em intriga os
documentos
dos quais dispe e lhes d uma nova congurao. Nos dois tipos
de
narrativas existe uma referncia verdade, j que o historiador
busca
a verdade do que realmente aconteceu, enquanto o romancista
busca
narrar o que poderia ter acontecido. Em ambos os casos se pode
per-
ceber uma espcie de dvida com a realidade. De fato, as
reconstru-
es da histria e da co so uma tentativa de restituir aos homens
do
passado o que lhes devido.
O mundo do texto, dado pela representncia da historiograa e
pela signicncia da co, possui desta forma um carter
revelante,
pois pe em evidncia traos dissimulados da experincia do leitor;
e
transformante, j que uma vida assim examinada uma vida
mudada.
O ato de leitura constitui, portanto, o lugar indispensvel de
interseo
entre o mundo imaginrio do texto e o mundo efetivo do leitor.
Nesse
sentido, a leitura uma parada no curso da ao e um reenvio
ao,
um lugar onde o leitor interrompe seu percurso e um meio que o
faz
seguir adiante em sua travessia. atravs dela que se opera a
transfe-
rncia da estrutura da congurao narrativa sua regurao, que
por
sua vez transforma a ao humana passada e futura.
O encontro e o cruzamento entre histria e co do origem no-
o de identidade narrativa, central na reexo de Ricoeur, pois
ela
que o levar s anlises de O si mesmo como um outro. Segundo o
lsofo francs, a identidade considerada como uma noo da
prtica,
s se diz narrativamente. S a narrao fornece ao nome prprio
de
um indivduo um suporte permanente para o conjunto de sua vida.
Para
responder questo: quem?, preciso narrar uma histria. A
identidade
narrativa no deve ser tomada no sentido de um mesmo (idem =
identi-
dade substancial), mas no sentido de um si mesmo (ipse =
ipseidade). A
ipseidade assim entendida est em contnua evoluo, ela nunca
deixa
de ser regurada por todas as histrias que o sujeito conta, l ou
escuta
sobre si mesmo ou sobre os outros. Esta identidade , porm,
instvel,
-
216
Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012
pois no cessa de se fazer e de se desfazer. A noo de identidade
nar-
rativa aplicvel tambm comunidade. o caso, como mostraremos,
do Israel bblico, que mais que qualquer povo, sempre esteve
apegado
aos relatos que contavam sua histria.
Apesar de a narrao ser uma das principais mediaes na forma-
o da identidade narrativa, ela no esgota nem a identidade do
sujeito/
si, nem a de uma comunidade. Outros gneros literrios e outros
recur-
sos da linguagem tambm intervm nesse processo. Por isso, na
ltima
parte de Tempo e narrativa, Ricoeur retoma duas outras grandes
aporias
do tempo, a da disperso e unicao entre passado, presente e
futuro,
e a da relao entre tempo e eternidade. A primeira est na origem
das
losoas da histria, e d ocasio para que o lsofo francs
elabore
sua prpria hermenutica da conscincia ou do agir histrico,
pensada
como relao entre horizonte de espera (que pode ser instrudo
pela
linguagem da utopia), espao de experincia (que recebe seu limite
e
sua fecundidade da linguagem da ideologia), e iniciativa (que
faz advir o
novo no corao da histria atravs do agir do sujeito). A segunda
aporia
indica o carter inescrutvel da referncia a um fundamento do
tempo e
obriga a linguagem a buscar no s na narrao, mas tambm em
outras
formas de linguagem o enigma do outro do tempo. Como veremos
nos
estudos de exegese de Ricoeur, a Bblia no constituda s de
textos
narrativos, mas tambm de textos profticos, sapienciais, hnicos,
legis-
lativos.
II. Contribuies da hermenutica de Ricoeur exegese
e teologia
As relaes entre hermenutica losca e hermenutica bblica es-
-
217
Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012
to presentes em vrios textos de Ricoeur22. Segundo ele, existe
uma
relao complexa de incluso mtua entre essas duas hermenuti-
cas23. A primeira possui um carter mais amplo do que a segunda,
trans-
cendendo seus debates metodolgicos. Sem ocupar-se do conito
de
interpretaes que existe entre os dois mtodos principais da
exegese
histrico-crtico e estruturalista , o lsofo francs mostra a
comple-
mentaridade que existe entre eles, complementaridade que implica
sua
reticao mtua, pois cada um corre o risco de erigir-se em
ideologia.
O mtodo estrutural corre o risco de se tornar ideologia do texto
em si e
o mtodo histrico-crtico de xar-se na fonte, no autor e no
destinatrio
primeiro. A hermenutica bblica deve abordar o texto como
retomada de
uma tradio e a interpretao como retomada do texto, dirimindo
as-
sim as antinomias entre verdade e mtodo, explicao e
compreenso,
e contribuindo na soluo do conito entre a leitura monoltica da
ver-
dade e a perspectiva innita da interpretao. Como veremos a
seguir,
percebem-se nas contribuies de Ricoeur exegese bblica os
vrios
momentos de sua teoria do texto e os diferentes aspectos de sua
teoria
da metfora e da narrao.
1. O evento da Palavra de Deus
A Bblia , em primeiro lugar, a realizao escrita da instncia
de
discurso oral que presidiu sua xao. Sua redao o
prolongamento
da primeira distncia aberta entre o ato de discurso e seu
contedo.
Com efeito, o texto bblico uma palavra dirigida por algum para
dizer
alguma coisa sobre a realidade a um destinatrio. Ele instncia de
dis-
curso porque em sua origem se encontra a inteno Palavra de
Deus,
22. Cf. RICOEUR, P. Hermenutica losca e hermenutica bblica. In
Do texto aco. Op. cit., p. 125-138; A hermenutica bblica. So Paulo:
Loyola, 2006; Penser la bible. Paris: Seuil, 1999. Seguiremos na
apresentao que se segue o estudo exaustivo da relao entre
hermenutica losca e exegese bblica de Ricoeur feito por AMHERDT,
F.-X. Lhermneutique philosophique de Paul Ricoeur et son importance
pour lexgse biblique. En dbat avec la New Yale Theology School.
Paris: Cerf, 2004.
23. CF. Hermenutica losca e hermenutica bblica. Op. cit., p.
125.
-
218
Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012
que interveio na histria, se fez carne, palavra e livro, e que
se d nas
palavras de Jesus a testemunhas de seu futuro no mundo. O corte
pro-
movido pela escrita torna patente a distino entre evento e
sentido j
presente no advento da Palavra de Deus. Deus encontra o ser
humano
como evento de palavra, pois seu Filho se manifesta como Palavra
divi-
na feita carne, e o querigma original e a pregao da Igreja
proclamam
esta Palavra. O objeto do trabalho de exegetas e telogos a
sucesso
desses quatro discursos a Palavra de Deus, Deus como Palavra
em
Jesus Cristo, a Palavra da pregao primitiva e sua atualizao na
pre-
gao atual buscando assim reconquistar e rearmar a signicao
da
Palavra original que pe em movimento esta sequncia de
palavras24.
Nesse sentido, toda teologia uma teologia da Palavra, pois
interpre-
tao da Palavra divina tal como se apresenta na sucesso histrica
das
vrias formas de discurso acima enumeradas. A hermenutica
teolgica
tem como tarefa compreender a Palavra original como Palavra
portadora
de um novo sentido para hoje.
Pode-se ento perceber no texto bblico nal uma cadeia de
comu-
nicao, j que por ele uma experincia de vida levada
linguagem,
xada por escrito e restituda palavra viva por diversos atos de
discurso
que a reatualizam25. A efetuao do texto bblico como discurso se
insere
assim na dialtica entre evento e sentido, presente na palavra
originria
do cristianismo: uma primeira distncia existe entre o evento
Jesus e a
proclamao de suas primeiras testemunhas, por um lado, e o
sentido
percebido pelos ouvintes do querigma e tornado disponvel xao
por
escrito, por outro lado26. Graas a esta primeira distncia entre
os ou-
vintes e as testemunhas do evento Jesus Cristo, o sentido
adquire uma
autonomia que o faz inaugurar um percurso ilimitado.
2. A Bblia como obra literria
24. Cf. COLLECTIF. Exgse et hermneutique. Paris: Seuil, 1971, p.
301.25. Cf. RICOEUR, P. Nommer Dieu. In tudes thologiques et
religieuses 52 (1977), p. 491-492.26. Cf. Penser la Bible. Op.
cit., p. 379.
-
219
Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012
O discurso bblico se efetuou tambm como obra literria.
Afastado
de sua situao original de evento de palavra, ele se exteriorizou
e se
xou pouco a pouco numa rica diversidade de formas de discurso:
nar-
raes, leis, profecias, ditos sapienciais, hinos, oraes,
apocalipses,
parbolas, frmulas litrgicas, prosses de f etc. Os textos da
Bblia,
tanto do Antigo como do Novo Testamento, se apresentam, portanto
ao
leitor numa grande variedade de composies, de gneros literrios e
de
estilos, sendo obras de linguagem marcadas por um estilo e um
modo
de composio.
Ricoeur no o primeiro a perceber a diversidade desses ml-
tiplos gneros literrios na Bblia. A originalidade de sua leitura
que
ela no os considera como simples ferramentas de classicao
(taxis),
mas como meios de produo (prxis e poiesis) pelos quais o
discurso
bblico produzido como uma obra que engendra diversas facetas
da
Revelao divina. Ao se xar numa espcie literria, diz ele, a obra
de
discurso adquire uma autonomia com relao inteno do autor, do
contexto e do auditrio primitivo. Um espao de jogo ento aberto
s
interpretaes, porque a restituio do evento original de discurso
toma
a forma de uma reconstruo que procede precisamente da estrutura
in-
terna de tal ou tal forma especca de discurso 27. A hermenutica
bblica
do lsofo francs se d ento como primeira tarefa identicar as
vrias
conguraes literrias estveis que, tomadas em conjunto, denem
o
espao de interpretao no interior do qual a linguagem bblica pode
se
compreender. Ele constata que cada tipo de consso de f, de
nome-
ao de Deus e de articulao da temporalidade corresponde a uma
congurao literria especca. Sem ser exaustivo, nosso autor
busca
no Antigo e no Novo Testamento a imbricao entre a forma
lingustica e
o contedo teolgico de alguns gneros literrios. Ele no se
contenta,
porm, em enumer-los, mas os confronta entre si, mostrando o
alcance
das tenses da surgidas, a circularidade que estabelecem no
interior
27. Cf. RICOER, P. La philosophie et la spcicit du langage
religieux. In Revue dhistoire et de philosophie religieuses 55
(1975), p. 17.
-
220
Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012
do cnon e o sentido teolgico que da emerge. Vejamos brevemente
o
resultado de sua anlise no corpus do texto bblico.
a. Gneros literrios no Antigo Testamento
Para Ricoeur, do Antigo Testamento emergem as seguintes
vozes:
a da narrao, a da profecia, a da lei, a da sabedoria, a do hino
e, mais
raramente, a do apocalipse28.
A forma narrativa , segundo Ricoeur, predominante no Antigo
Testamento. Ela mostra que o Deus da Revelao no um primeiro
motor abstrato, mas o grande ator da histria, o libertador. Com
isso
ela historiciza os rituais litrgicos e quebra toda construo
teolgica
fundada no numinoso ou no sagrado csmico29. Recorrendo
teologia
das tradies de G. von Rad, o lsofo francs mostra a
solidariedade
que existe entre o tipo de consso de f de Israel e a narrao. O
olhar
do leitor, diz ele, no atrado pelo narrador mas pelos fatos
narrados,
os quais revelam Yahv como o actante ltimo do drama histrico
que
a aliana com seu povo. O sentido da Revelao se articula ento
ao
redor de alguns eventos fundadores no Antigo Testamento: a eleio
de
Abrao, a sada do Egito ou o xodo, a entrada na terra prometida,
a un-
o de Davi. Tais eventos engendram a histria e criam um povo,
sendo
por isso instauradores e instituintes30. Com efeito, o relato
aponta para o
evento ou para os eventos fundadores, como vestgios, marcas,
rastros
de Deus31. Ao contar tais eventos, Israel confessa seu Deus e
sua his-
tria se torna Histria da salvao. Apesar de se referirem ao
passado,
esses eventos tm carter querigmtico. De fato, a narrao pe em
in-
triga o querigma, impedindo-o de toda sistematizao ahistrica ou
dog-
mtica. A consso de f joga o papel de princpio unicador que
preside
28. Cf. Nommer Dieu. Op. cit.29. Cf. RICOEUR, P. Manifestation
et proclamation. In CASTELLI, E. (d.). Le sacr. tudes et
recherches. Paris : Aubier, 1974, p. 64-66.30. RICOEUR, P.
Hermneutique et lide de Rvlation. In COLLECTIF. La Rvlation.
Bruxelles: Saint Louis, 1977, p. 19-20; Nommer Dieu. Op. cit., p.
49731. Cf. Hermneutique et lide de Rvlation. Op. cit., p. 21.
-
221
Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012
a ltima redao do relato. Ela o guarda de reduzir-se a pura
narrao.
o que mostra, por exemplo, a armao Yahv fez seu povo sair do
Egito, que assegura a unidade do sentido histrico e querigmtico,
e
fornece narrao a possibilidade de estender-se a grandes
conjuntos,
como a obra do javista, sobre a qual se superps a do
deuteronomista
e a do sacerdotal. O ncleo querigmtico permite ainda que a
narrao
atraia elementos exgenos, no narrativos, como as sagas mticas,
as
lendas, as prescries litrgicas, os preceitos ticos32. O
querigma, que
possui o papel de instncia organizadora do narrativo, exprime a
f de
Israel em um Deus que intervm na histria. A narrao se torna
assim
a carta de fundao de Israel, que se identica com o narrado, com
o
destinatrio e com o actante das narrativas que produziu,
encontrando
nessas narrativas sua identidade narrativa33. Israel proclama
ento sua
f contando sua histria. Ao redor de eventos nucleares se
constitui um
discurso misto, um recitativo feito ao mesmo tempo de narrao
hist-
rica e de consso querigmtica, que se abre celebrao e
inaugura
uma tradio.
A forma narrativa entra em tenso estrutural e temtica com
ou-
tras formas de discurso, como a proftica. Com efeito, existe o
risco de o Deus grande actante da gesta salvca ser absorvido no
passado
do povo e de o acento muito exclusivo na memria apagar a
tenso
da esperana. a que intervm o orculo proftico, que impede uma
identicao excessiva de Yahv com a histria de Israel. A profecia
faz
irrupo no narrativo, que tende a se esclerosar se no
constante-
mente reatualizado. Ela balana as bases das certezas
estabelecidas,
desconstri a narrativa esvaziada pelo esquecimento, quebra toda
segu-
rana solidamente instalada, desfaz o cosmos, provoca rupturas e
abre
um espao novo de sentido, onde uma nova narrao pode surgir
para
32. Cf. RICOEUR, P. Les incidences thologiques des recherches
actuelles concernant le lan-gage. Institut ddutes ocumniques, 1972,
p. 64.33. Idem, p. 78.
-
222
Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012
uma nova edicao da comunidade34. O orculo proftico cria,
portan-
to, fratura na narrativa anterior para fazer nascer outra, com
novo dina-
mismo. Ele balana o tempo da Histria da salvao, ameaando-a
de
desaparecimento, com o advento do Dia de Yahv, dia de terror e
de
desolao35. No entanto, o tempo do discurso proftico pressupe o
tem-
po dos relatos histricos. A dialtica entre profecia e narrao
engendra
uma inteligncia paradoxal da histria, como simultaneamente
fundada
na rememorao e ameaada pela profecia36. Outra diferena entre
pro-
fecia e narrao que esta fala de Deus na terceira pessoa,
enquanto o
profeta fala em nome de Deus. Ele o nomeia em dupla primeira
pessoa,
como palavra de outro em sua palavra37. O proftico ento o
discurso
do evento de palavra, do testemunho do inteiramente Outro. O
risco des-
sa modalidade de discurso, segundo Ricoeur, o de reduzir a
Revelao
ao conceito estreito de uma escritura soprada ao ouvido,
identicando-a
com a noo de inspirao, concebida como voz por detrs da
voz38.
Cortada da narrao, a profecia pode ainda ser vista como
adivinhao
do futuro. Pressionada pela apocalptica, ela se confunde com a
viso
premonitria do m dos tempos39. Somente associada narrao a
pro-
fecia pode fazer emergir uma nova concepo do tempo, a
escatolgica,
na qual o tempo se torna o ainda no do Dia de Yahv, que
tambm
um Dia de libertao para o povo eleito40. Ligada ao discurso
narrativo, a
profecia metaforiza o conjunto da tradio bblica numa histria da
pro-
messa. Enm, como na narrao, o proftico tambm se combina com
o querigmtico, assegurando, por um lado, a permanncia da
presena
divina ao longo da Histria da salvao, e suscitando, por outro,
um novo
comeo depois de uma ruptura brutal. Essa dialtica entre o
querigma e
34. Ibidem, p. 91.35. Cf. La philosophie et la spcicit du
langage religieux. Op. cit., p. 19.36. Cf. Nommer Dieu. Op. cit.,
p. 498.37. Idem.38. Cf. Hermneutique et lide de Rvlation. Op. cit.,
p. 18.39. Idem.40. Cf. Les incidences thologiques des recherches
actuelles concernant le langage. Op. cit., p. 82.
-
223
Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012
a profecia se encontra igualmente na apocalptica, que projeta
para o m
dos tempos uma sucesso similar de catstrofe e recriao: no
momento
de destruio suceder a ltima interveno salvca de Yahv.
Esta polaridade entre narrao e profecia no esgota a
polifonia
da Revelao, da qual emerge tambm a voz do discurso prescritivo.
Nesse discurso, observa Ricoeur, Deus nomeado como aquele que
d a Tor instruo . Na medida em que ela me dirigida, eu me
percebo como designado por Yahv na segunda pessoa: Tu amars
o
Senhor teu Deus41. Um novo tipo de relao se estabelece ento
entre
Deus e o ser humano, uma relao de dependncia. O dom da Tor ,
no entanto, indissocivel dos eventos salvcos da libertao42. Por
isso,
a narrao convertida em tica pela Tor que se torna a carta de
liber-
tao do Povo salvo. Mais que um imperativo exterior, ela exprime
uma
relao de Aliana amorosa, que engloba o conjunto da vida
individual e
comunitria de Israel. Por isso, um acento unilateral no
prescritivo pode
levar a esquecer o que distingue a Revelao bblica da ontologia
grega:
a designao de Deus como ator de um drama histrico. A instruo
narrativa da Tor e a teologia histrica do Nome de Deus se opem
hie-
rofania do dolo e manifestao da divindade pela imagem43.
Desligado
dos relatos de libertao, com a palavra proftica e os hinos
litrgicos, a
forma legislativa tende a reduzir a Revelao a um cdigo moral,
que se
dirige vontade e no imaginao. O carter concreto do
prescritivo
ganha preciso ainda se aproximamos o mandamento do apelo
profti-
co. Segundo Ricoeur, da mesma forma que o tu do profeta
interpelado
se torna o eu do porta-voz de Yahv, tambm o tu da interpelao
tica se torna o eu da responsabilidade44. Para alm do
intercmbio
entre voz proftica e voz tica, diz ele, a dialtica da profecia e
da ins-
truo se prolonga no dinamismo histrico da Tor. Ora ela se
difrata
41. Cf. Nommer Dieu. Op. cit., p. 498-499.42. Cf. Hermneutique
et lide de Rvlation. Op. cit., p. 24.43. Cf. Manifestation et
Proclamation. Op. cit., p. 64-66. 44. Cf. Nommer Dieu. Op. cit., p.
499.
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224
Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012
numa multido innita de pequenas prescries, ora ela se
concentra
numa nica perspectiva de santidade ou no nico mandamento do
amor.
Nesse sentido, a nova Lei oriunda dos profetas, uma tica
segundo
a profecia45. A nova aliana, inscrita no corao, no proclama
preceitos
suplementares, mas estabelece uma nova qualidade relacional. O
dis-
curso legislativo tambm animado por um movimento temporal,
que
visa a santidade e a perfeio, as quais constituem a dimenso tica
da
Revelao. Ele guarda um dinamismo criador de existncia e de
com-
portamento, e leva a um reajuste constante da existncia
individual e
coletiva, por delidade Aliana e readaptao das instituies.
A sabedoria, assinala Ricoeur, possibilita o movimento de
aprofun-damento da Tor e sua interiorizao para alm da
multiplicidade de pre-
ceitos. O sbio medita sobre a condio humana em geral, atingindo
o
universal para alm do povo eleito. As fontes de seu discurso
encontram-
se no simbolismo do cosmos e da natureza. Como vimos, a
profecia
em geral ganha de toda forma de sagrado natural e csmico no
mundo
hebraico46. No entanto, observa nosso autor, o evento da Palavra
per-
deria em profundidade e em substncia se no conservasse
algumas
ressonncias do numinoso47. Quando se passa da profecia para a
sa-
bedoria a noo de Revelao muda de registro: o profeta
reivindica
a inspirao divina como cauo. O sbio no o faz. Ele no declara
que sua palavra a palavra de outro. Mas ele sabe que a
sabedoria
o precede e que, de algum modo, por participao sabedoria que
o homem pode ser dito sbio48. A funo do sbio a de ligar ethos
e
cosmos, a ordem do agir e a ordem do mundo. O simbolismo
csmico
no , portanto, suprimido, mas reinterpretado, deslocado,
historiciza-
do, segundo as exigncias da proclamao. De fato, a sabedoria toca
a
grande variedade de situaes onde o humano atinge suas
grandezas
45. Idem.46. Cf. Manifestation et proclamation. Op. cit., p.
64-65.47. Idem, p. 74.48. Cf. Hermneutique et lide de Rvlation. Op.
cit., p. 28.
-
225
Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012
(beleza, prosperidade, nascimento) e seus limites (injustia,
desastre,
morte). Sem negar a prioridade da proclamao, Ricoeur prope
uma
dialtica entre o querigmtico e a manifestao do sagrado. Para
ele, o
simbolismo csmico no abolido pela Palavra, mas submetido a
uma
reinterpretao que o utiliza e o modica sob a forma dramtica de
uma
reviravolta. O sbio reete sobre o sentido da existncia em meio
ao
sem sentido do trgico e da injustia. Ele nomeia Deus como
ausente e
silencioso, especialmente na experincia da justia e do
sofrimento do
inocente49. J o paradigma da literatura sapiencial, chegando a
amar
Deus por nada, negando a falsa teologia da retribuio e ganhando
a
aposta feita por Sat no incio do livro50. Como o discurso
sapiencial
se articula com as outras modalidades de discurso? Segundo
Ricoeur,
como a narrao, a sabedoria tambm fala de um desgnio de Deus,
mas ela se anula diante do impenetrvel deste desgnio. a
sabedoria
de Deus, uma sabedoria que os Provrbios personicam em gura
femi-
nina, que acompanha Deus durante a criao (Pr 8). O sbio
encontra
o profeta, pois a objetividade da sabedoria personicada
corresponde
subjetividade da inspirao proftica. Profecia e sabedoria se
encontram
ainda no discurso escatolgico, convergindo em livros como o de
Daniel
e os do perodo intertestamentrio, que anunciam o Dia de Yahv:
ad-
vento do apocalipse e revelao dos segredos de Deus51.
O ltimo gnero literrio do Antigo Testamento estudado por
Ricoeur
o das diferentes modalidades da literatura lrica, como os hinos
de louvor, as splicas e as aes de graa. Essa literatura afeta,
segundo
ele, as demais formas literrias na medida em que se dirige a
Deus em
segunda pessoa. Deus se torna ento um tu para o tu humano52.
No
contexto do hino, os relatos dos prodgios realizados por Ele,
como a
criao ou o xodo, so transformados em invocao. Sem as splicas
49. Cf. Nommer Dieu. Op. cit., p. 500.50. Cf. RICOEUR, P. Le
mal. Un d la philosophie et la thologie. Genve: Labor et Fides,
2006, p. 22. 43-44.
51. Cf. Hermneutique et lide de Rvlation. Op. cit., p. 28.52.
Cf. Nommer Dieu. Op. cit., p. 500.
-
226
Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012
dos salmos, o sofrimento do justo culminaria no mutismo da
incompreen-
so. A sabedoria, que ensina o saber sofrer, se encontra ento
elevada
pelo grito de splica. Na lamentao chega-se a acusar Deus, como
no
grito do salmista: At quando Senhor?, acusao que ilustra a
impa-
cincia da esperana53. Em retorno, a sabedoria contribui para
trans-
formar qualitativamente a reclamao, espiritualizando-a. Ela nos
leva a
descobrir que cremos em Deus, no para explicar a origem do mal,
mas
apesar do mal, em detrimento do mal. A espiritualizao da
lamen-
tao culmina na supresso, quando o sbio, como no exemplo de
J,
renuncia a todos os seus desejos e consegue amar a Deus por
nada54.
b. Gneros literrios no Novo Testamento
O estudo de Ricoeur sobre a linguagem do Novo Testamento se
con-
centrou, sobretudo, no gnero parablico, a partir do qual ele
estudou a
especicidade da linguagem religiosa, aprofundando tambm os
ditos
apocalpticos e sapienciais de Jesus. Na forma parablica ele
desco-
bre uma aplicao suplementar da categoria textual da obra: os
cdi-
gos narrativos em ao no relato-parbola funcionam ao mesmo
tempo
como constrangimentos paradigmticos e como impulses a uma
livre
gerao, que se benecia do dinamismo estruturante disponvel
meta-
forizao. A parbola para nosso autor uma forma de
narrativo-recitati-
vo e um modelo de querigmatizao da narrao, em continuidade
com
os estudos que ele realizou sobre o Antigo Testamento.
Segundo Ricoeur a parbola combina trs dimenses intrinseca-
mente ligadas: 1) uma forma narrativa: a vertente narrao, que
ele
estuda a partir da anlise estrutural e da semntica da
narratividade; 2)
um processo metafrico: a vertente potico-simblica, que ele
aborda
com a ajuda de sua teoria da metfora; 3) um qualicador prprio,
que
provoca a passagem para o referente ltimo da parbola, que por
sua
53. Cf. Le mal. Un d la philosophie et la thologie. Op. cit., p.
42.54. Idem, p. 42-44.
-
227
Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012
vez constitui a especicidade mesma da linguagem religiosa, a
qual
igualmente teolgica.
No primeiro momento do estudo das parbolas Ricoeur retoma
algu-
mas teorias do parablico que privilegiam a vertente da narrao,
como
as de D. O. Via, V. Propp, A. J. Greimas e L. Marin. Segundo
ele, para
algumas dessas teorias uma conexo entre as abordagens
literria-es-
trutural e histrica se revela impossvel e impraticvel. O lsofo
francs
preconiza, porm, o retorno ao cdigo da mensagem pela articulao
da
anlise semitica com a interpretao hermenutica, em funo de
trs
categorias relacionadas s categorias do texto: 1) a parbola
efetua-
da como discurso, que no obliterado pela escritura, graas
dialti-
ca evento/sentido; 2) o gnero literrio parbola no tem um
estatuto
unicamente taxonmico, mas exerce um trabalho de engendramento
do
discurso como obra singularizada. Mais que preocupar-se com o
cdigo,
a hermenutica deve colocar-se ao servio da mensagem; 3) a
forma
narrativa funciona efetivamente como comunicao, cujos sinais se
en-
contram no seio mesmo da narrao e estabelecem um intercmbio
en-
tre um doador e um receptor da parbola.
No segundo momento de sua anlise Ricoeur arma que a par-
bola um modo de discurso que aplica forma narrativa um
processo
de metaforizao, segundo a dupla modalidade da inovao
semntica
no nvel do sentido , e da co heurstica no nvel da referncia
. O relato parablico sofre assim uma transferncia de sentido sob
a
presso de traos metafricos, que o levam a redescrever a
realidade
humana e a visar obliquamente o Reinado de Deus55. O que uma
in-
terpretao metafrica da parbola? Distanciando-se de A.
Juelicher,
que prope uma leitura prxima da retrica da metfora e v a
par-
bola como artifcio de persuaso e de conhecimento, nosso autor
se
aproxima de E. Jngel, percebendo na tenso lingustica presente
no
relato-parbola um processo metafrico. Mas enquanto na metfora
o
55. Cf. Nommer Dieu. Op. cit., p. 501.
-
228
Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012
fenmeno da torso advm no nvel da frase, na parbola no nvel
do
conjunto da narrao que intervm a tenso entre a concepo
habitual
da realidade e a histria ctcia que pe em cena a parbola. Os
traos
dessa metaforizao j aparecem no tecer da intriga do
relato-parbo-
la. na ao da narrao, na crise e na soluo que ela prope, que
se
encontram os traos da metaforizao. O que provoca a
inconsistncia
da estrutura narrativa e engendra o dinamismo metafrico o
elemento
de extravagncia. Cada parbola introduz na textura da intriga um
epi-
sdio inesperado, paradoxal, inslito ou escandaloso, de tipo
trgico ou
cmico: a retribuio dos operrios da dcima primeira hora, o
abandono
das 99 ovelhas para encontrar a centsima, a venda de todos os
bens
para comprar o campo com o tesouro, o convite festa feito na rua
a
convidados de substituio56. A excentricidade desses
comportamentos
manifesta a emergncia do extraordinrio. Esses traos de
extravagn-
cia criam a tenso metafrica, geram um excesso de sentido,
quebram o
fechamento da forma narrativa, liberam a abertura do processo
metafri-
co e conduzem transgresso do sentido interno rumo a uma
referncia
externa. o contraste entre o realismo da histria e a
extravagncia do
desfecho que suscita a espcie de deriva pela qual a intriga e
sua ponta
so inesperadamente deportadas ao Inteiramente Outro57.
O jogo de interferncias metafricas se estende alm do corpus
das
parbolas ao corpus de palavras atribudo pelos Sinpticos a
Jesus,
como ocorre com os provrbios e os ditos escatolgicos.
Segundo
Ricoeur, esses discursos produzem o mesmo efeito que as
parbolas:
apontam para o gurativo Reinado de Deus. Uma mesma lei de
extra-
vagncia est em ao nessas trs modalidades de discurso.
Enquanto
a sabedoria do Oriente Mdio antigo guia o discernimento nas
circuns-
tncias cotidianas da vida, as frmulas proverbiais do Novo
Testamento
desorientam o ouvinte, dissuadindo-o de fazer de sua vida um
projeto
coerente. Elas utilizam ora o paradoxo: quem quer salvar sua
vida a
56. Cf. Manifestation et proclamation. Op. cit., p. 69.57. Cf.
Nommer Dieu. Op. cit., p. 502.
-
229
Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012
perder e quem a perde a salvar (Lc 17,33), ora a hiprbole:
Amai
vossos inimigos, orai pelos que vos perseguem (Mt 5,44). Este
uso sis-
temtico do paradoxo ou da hiprbole opera uma intensicao do
uso
do provrbio e abre a uma lgica de uma existncia inteiramente
outra58.
Quanto s expresses escatolgicas como: o Reino de Deus no vem
de uma maneira visvel. No se dir: ei-lo aqui ou ento ei-lo ali.
De
fato, eis que o Reino de Deus est no meio de vs (Lc 17,20-21),
elas
funcionam com uma estratgia similar. Aqui a prtica apocalptica
ha-
bitual da busca de sinais que subvertida. Uma nova
temporalidade
invade o presente e rompe todo o esquema temporal literal. Tanto
os
provrbios quanto os dizeres escatolgicos entram em interao com
as
parbolas e provocam uma intensicao de sua extravagncia59.
Ricoeur prope, enm, um passo a mais ao situar o discurso
para-
blico e o conjunto das palavras de Jesus numa interao com a
nar-
rao de seus gestos e aes. As atitudes escandalosas de Jesus
ao
sentar com os pecadores ou ao frequentar as prostitutas, bem
como
seus milagres, provocam uma interrupo no curso ordinrio dos
even-
tos. No se poderia dizer, pergunta-se o lsofo francs, que as
par-
bolas atraem nossa ateno sobre a dimenso milagrosa do tempo,
ao
mesmo tempo em que os relatos de milagres recebem da pregao
sua
dimenso parablica?60 A interssignicao das palavras e das aes
de Jesus culmina nos relatos da paixo: eles interferem
metaforicamente
com o corpus das parbolas, no numa relao de justaposio, mas
de
interpenetrao simblica. Com efeito, pode-se falar de parbolas
do
Crucicado. De um lado, Jesus proclama Deus em parbolas (ele
o
locutor de histrias parablicas), e do outro, ele proclamado pela
Igreja
como parbola de Deus, ele o heri das narraes metafricas61. O
Evangelho conta Jesus contando parbolas.
58. Cf. Manifestation et proclamation. Op. cit., p. 67-68;
Nommer Dieu. Op. cit., p. 502.59. Cf. Paul Ricoeur on Biblical
Hermeneutics. Op. cit., p. 101-102.60. Idem, p. 103.61. Ibidem, p.
105.
-
230
Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012
No terceiro momento de sua anlise Ricoeur aprofunda a
especi-
cidade da linguagem religiosa. Nas duas primeiras etapas, diz
ele, a
parbola foi descrita em termos de forma narrativa deslocada por
um
processo metafrico. Como todo relato ctcio, ela possui um poder
de
inovao semntica e de redescrio da realidade humana. O que
ento
o especco da linguagem bblica com relao linguagem potica?
O que pode fazer da funo potica o rganon do discurso
religioso?
Segundo o lsofo francs, a originalidade do discurso bblico
dada
pela presena de expresses-enigmas, como a de Reinado de
Deus,
que operam a ruptura do dizer ordinrio, levando a co da
narrativa a
transgredir suas fronteiras ordinrias e provocando a intensicao
do
processo metafrico. Pela irrupo do extraordinrio, do
implausvel,
do inslito, no curso ordinrio da vida, as formas habituais da
lingua-
gem so levadas a seu limite de expressividade. As
expresses-enigma
se tornam ento expresses-limite. Para Ricoeur, o funcionamento
da
linguagem religiosa determinado por aquilo que ela tenta levar
lin-
guagem: o Reinado de Deus. Este se torna o referente-limite de
todas
essas expresses-limite, e pode desta forma conduzir ao innito as
di-
versas modalidades discursivas, apontando ao Inteiramente Outro,
ao
Transcendente. A parbola paradigma da linguagem religiosa
porque
combina uma estrutura narrativa lembrando a ancoragem da
lingua-
gem da f na narrao , um processo metafrico tornando manifes-
to o funcionamento potico do conjunto da linguagem da f , e
uma
expresso-limite ligada metfora que a torna um condensado da
no-
meao de Deus.
O referente-limite do discurso parablico a expresso reinado
de Deus , preside tambm o tipo de experincias que a
linguagem
religiosa pretende regurar. Ricoeur as chama de
experincias-limite.
Com efeito, a fora da revelao do qualicativo introduz em nosso
agir
humano a mesma excentricidade e o mesmo escndalo lgico que
na
intriga narrativa. Nossa experincia cotidiana e nossa vontade de
dar um
sentido global nossa vida so rompidas sem que nos seja
prometida
-
231
Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012
a nova sistematizao. A insistncia da descontinuidade nesta forma
de
captar a linguagem religiosa mostra, segundo o lsofo francs, a
fora
heurstica dos relatos-parbolas, que funcionam como um modelo
de
desvelamento existencial em trs nveis: ela orienta nossa
existncia pela aparente normalidade do relato; ela nos desorienta
pela intriga; mas para melhor nos reorientar em direo a novas
possibilidades de ser-ao-mundo. Alm da reverso de todo programa, as
expresses-
limite nos introduzem numa outra lgica que a da retribuio. Ao
falar
ao imaginrio mais que ao querer, as parbolas, por sua
excentricida-
de semntica, nos fazem aceder a uma lgica da generosidade e
da
superabundncia, a lgica de Jesus62. Se o incrvel irrompe em
nosso
discurso como em nossa experincia, porque o incrvel enigmtico
faz
parte constitutiva do mundo de nosso discurso e de nossa
experincia. A
linguagem religiosa nos desorienta ento unicamente para nos
reorien-
tar. O referente-ltimo das parbolas, provrbios e ditos
escatolgicos
no o Reinado de Deus, mas a realidade humana em sua
totalidade63.
No nal de seu estudo Ricoeur mostra a relao existente entre
a
linguagem bblica e a linguagem teolgica. Segundo ele, a teologia
deve
articular a linguagem religiosa com a experincia que ela veicula
e a
experincia de toda a humanidade. Mais que recorrer a uma
conceptu-
alizao losca extrnseca, ela deve tirar proveito do exame das
po-
tencialidades conceituais da prpria linguagem religiosa. Com
efeito, as
diferentes formas literrias do discurso bblico so atravessadas
por um
dinamismo simblico que requer interpretao. A parbola, por
exemplo,
se apresenta como uma histria enigmtica, resultado de uma
primeira
interpretao a da comunidade primitiva , que demanda
interpreta-
es ulteriores. Essa necessidade de explicao interna d origem
a
discursos semi-conceptuais intermedirios, como o da literatura
did-
tica, apologtica e dogmtica das primeiras cristologias ou a
linguagem
62. Cf. RICOEUR, P. La logique de Jsus. Romains 5 (criture et
prdication 33). In tudes thologiques et religieuses 55 (1980), p.
423.63. Cf. Paul Ricoeur on Biblical Hermeneutics. Op. cit., p.
127.
-
232
Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012
paulina da justia de Deus64. Esses discursos balizam a
progresso
que conduz o discurso religioso ao discurso teolgico, e guardam
a mes-
ma lgica da superabundncia divina pelo colapso da lgica
ordinria
que se encontra na parabolizao evanglica. Por isso, a
congurao
polifnica da Bblia-obra requer uma interpretao tambm
polifnica.
3. A categoria escritura
A terceira categoria da teoria do texto de Ricoeur tematizada
em
sua exegese bblica ao redor do par palavra e escritura. Qual a
inci-
dncia para a teologia da Palavra de Deus o fato de a Escritura
ser o
resultado escrito da dialtica evento sentido? Uma das ocasies
em
que Ricoeur reete sobre isso em seu dilogo com certas
modalidades
de teologia da Palavra. Segundo ele, algumas dessas correntes
correm
o risco de privilegiar exclusivamente o encontro existencial
entre o leitor
e a Palavra de Deus que precede a escritura. O risco consiste em
se
apegar somente no desdobramento do futuro da palavra,
privilegiando
um modelo de imediatidade dialogal entre o eu humano e o tu
divino65.
Edica-se ento uma teologia que faz a economia da encarnao do
Cristo na Escritura e cede armadilha de querer atualizar
imediatamente
o evento de palavra, curto-circuitando a sequncia
palavra-escritura-
palavra, que constitutiva do querigma originrio66. Outra
exigncia da
teologia da Palavra, continua Ricoeur, assumir a metodologia da
abor-
dagem estrutural que decodica o texto , da leitura
fenomenolgica
que percebe o falar do texto , e da perspectiva ontolgica que
faz
eclodir o dizer da linguagem e sua ancoragem no fundamento
englo-
bante do ser e da existncia67. A Palavra divina s nos atinge nos
textos
64. Cf. RICOEUR, P. Toward a Narrative Theology: Its Necessity,
Its Resources, Its Difculties. In WALLACE, M. I. Figuring the
Sacred. Religion, Narrative and Imagination. Minneapolis, 1995, p.
247-248.65. Cf. Nommer Dieu. Op. cit., 490-491.66. Cf. RICOEUR, P.
vnement et sens. In CASTELLI, E. (dir.). Rvlation et histoire.
Paris, 1971, p. 24-25.67. Cf. Exgse et hermneutique. Op. cit., p.
310-315.
-
233
Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012
e sua interpretao, e a teologia da Palavra deve ser hermenutica
da
obra escrita68.
Nas pegadas de Paul Beauchamp, Ricoeur retoma a questo dos
gneros literrios atravs da relao entre voz e escritura. Ele
mostra
que a trplice estrutura da tradio rabnica Tor, Profetas,
Outros
Escritos corresponde a uma trplice forma de articular palavra e
escri-
tura. Assim, a Tor, que no Pentateuco rene o prescritivo e o
narrativo,
se apresenta como a injuno da Palavra divina que requer a escuta
da
parte do povo, que foi transmitida a uma nica testemunha
Moiss
num encontro de uma particularidade intensa. Esta Palavra gura o
ime-
morial, princpio de todas as leis anteriores e ulteriores. sob a
forma de
escritura que ela transmitida ao povo para que, no quadro da
aliana,
ele a acolha. J o profeta se investe totalmente de sua palavra,
que pro-
nuncia em nome de Yahv, mas que ele s pode proclamar
referindo-se
ao Senhor da Tor escrita, pois somente os escritos recolhem as
leis e
os relatos que contam os feitos de Deus. Alm do mais, sua
palavra
datada, enquanto a da Lei imemorial. Nos Outros Escritos, a
dialtica
entre voz e escrita atinge uma grande complexidade, pois a
sabedoria
ao mesmo tempo sem idade, encontrando-se com a Palavra
criadora,
e cotidiana, aproximando-se do conselho oral. A Bblia hebraica
fecha o
espao no interior do qual circulam essas trs escrituras. Mas o
Livro
fechado ao mesmo tempo aberto: pela sabedoria, a outras
naes;
pela apocalptica, que recorre a uma maneira de escrever
hermtica;
pelo fenmeno da deuterose69, a um cumprimento, fora de seu
prprio
texto, da novidade que anuncia; e, enm, ao fora do texto que
o
povo de Israel, que se reconhece como povo de Deus ao constituir
suas
Escrituras. Com efeito, o povo de Deus se reconhece como tal
confes-
68. Cf. vnement et sens. Op. cit., p. 25.69. Beauchamp v o
fenmeno da deuterose no Deuteronmio, onde as leis se tornam a Lei;
no Deutero-Isaas, onde as profecias se tornam a Profecia; nos 9
primeiros captulos dos Provrbios, onde os ditos sapienciais se
tornam a Sabedoria. Trata-se de um fenmeno de aprofundamento e
recapitulao. Cf. BEAUCHAMP, P. Lun et lautre testament. 1. Essai de
lecture. Paris : Seuil, 1976, p. 150 s.
-
234
Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012
sando sua instaurao por essas Escrituras, tidas como manifestao
da
Palavra de Deus. O crculo no foi rompido: ele foi ampliado ao
ponto de
nos incluir70. A trade das escrituras corresponde no s a um
ternrio
da nomeao e do apelo divino, mas tambm ao ternrio da
identidade
do povo, que se apresenta como uma identidade tico-narrativa
estvel
e fundada na segurana de uma tradio; como uma identidade
tica
abalada, desestabilizada pela histria hostil e submetida
alternncia
de morte e ressurreio; como uma identidade sapiencial, chamada a
se
comunicar com a universalidade das naes. Essa identidade
tambm
o resultado de um processo ilimitado de interpretaes do Livro
que elas
enriquecem71.
4. Categoria mundo do texto
A escritura do discurso bblico introduz, enm, a distanciao
pela
qual a coisa do texto destacada de seu locutor, de seu primeiro
desti-
natrio e de sua situao primitiva. Pela escritura, a Palavra
comea um
percurso de sentido uma tradio que se estende at ns, e ela o
faz
atravs da coisa ou do mundo do texto que veicula esta tradio.
Ao
abordar esta quarta categoria Ricoeur mostra o que o texto
bblico tem
de comum com os textos poticos em geral e o que faz sua
originalidade.
Dizer que os textos bblicos projetam um mundo, com a
objetividade
que comporta esta noo, prevenir a hermenutica bblica contra
a
irrupo prematura das categorias existenciais da compreenso
subje-
tiva. Sua primeira tarefa no consiste ento em provocar
sentimentos,
atitudes ou converso no leitor, mas em favorecer o desdobramento
da
proposio de mundo que a Bblia chama Reinado de Deus, novo
mun-
do, nova aliana, corao novo, homem novo. este novo ser
objeti-
vo que conduz o jogo da interpretao. O uso desta categoria
interdiz,
portanto, sua identicao apenas com a deciso existencial. De
fato,
70. Cf. RICOEUR, P. Lenchevtrement de la voix et de lcrit dans
le discours biblique. In Lectures 3. Aux frontires de la
philosophie. Paris: Seuil, 1994, p. 324.71. Idem, p. 325.
-
235
Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012
o horizonte do texto bblico se exprime em registros outros que
os da
relao pessoal eu-tu entre o homem e Deus. As vozes mltiplas da
po-
lifonia bblica aludidas acima se acordam a abrir um espao
global, rico
de dimenses histricas, cosmolgicas, culturais, ticas,
comunitrias e
pessoais. A noo de mundo do texto permite ainda a
despsicologizao
do conceito de inspirao concebido apenas em termos de doao
de
sentido a um escriba pela insuao imediata. o texto e seu
mundo
que so inspirados. Mesmo a Revelao conduzida coisa que o
texto diz. A Bblia abre para seu leitor uma possibilidade de
existncia
sobre a qual ele no tem nenhum domnio, embora ela seja prometida
a
se tornar seu possvel mais prprio.
A segunda especicidade do mundo bblico reside no lugar
central
que nele ocupam os referentes Deus e Cristo. Ora, na maneira
como o novo ser da Bblia se anuncia nos textos que se reconhece
sua
originalidade. Podemos, portanto, reconhecer este livro como
Palavra
de Deus se vamos at o fundo em sua escuta como livro conforme
os
outros. Com efeito, o nome de Deus tem um lugar central no mundo
bbli-
co, seja como poder de coordenao de todos os discursos sobre
Deus,
seja como o ponto de fuga ou o index de incompletude de todas
essas
formas particulares. A nomeao especica ento as Escrituras
bblicas
entre os textos poticos, e nomear Deus, antes de um ato do
leitor cren-
te, primeiro um ato dos textos em seus diversos gneros
literrios, que
atribuem a cada vez uma forma particular a esta nomeao. Os
distintos
modos de discurso e de escritura mostram um rosto mltiplo de
Deus,
que, como vimos, designado de maneira polissmica: nas
narrativas,
como Deus do qual se fala em terceira pessoa, o actante supremo
de
uma gesta salvca pontuada de eventos fundadores; nos textos
legis-
lativos, como um Deus que se d como o Eu que a fonte de uma
injuno e que requer do tu humano uma palavra de obedincia;
no
conjunto da Tor, como um Deus que est na origem imemorial de
todas
as coisas, da histria e da Lei, que funda a identidade
tico-narrativa do
povo de Israel; na profecia, como um Deus que advm como a voz
de
-
236
Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012
um Eu transcendente que duplica o eu humano do profeta, cuja
pala-
vra afronta a ameaa da destruio-luto e a promessa da
reconstruo-
esperana; nos Outros Escritos, como um Deus designado como o
sen-
tido universal, dissimulado por detrs do uxo annimo do cosmos e
da
histria em seu absurdo; no hino, como um Deus que o homem
contesta,
invoca e celebra, como o Tu da lamentao, da splica e do louvor.
O
mesmo se percebe no Novo Testamento, atravs da extravagncia
dos
relatos-parbolas, no paradoxo e na hiprbole das expresses
prover-
biais e na deslocao do tempo das palavras apocalpticas, todos
eles
produzindo a mesma fuga ao innito do referente Deus. Quanto
gura
do Cristo, ela continua, sem substituir, o processo de nomeao
divi-
na inaugurado no Antigo Testamento. O que aporta de novo o
referente
Cristo? Segundo Ricoeur, ele tem o mesmo poder innito de
reunio
e abertura que a palavra Deus, acrescentando o amor capaz, por
seu
sacrifcio, de trinfar sobre a morte. A palavra Cristo acrescenta
assim
palavra Deus uma profundidade de encarnao, segundo uma dupla
re-
lao de amor: o dom gracioso que nos feito em Jesus Cristo, e
nossa
atitude de total reconhecimento diante de Deus.
O mundo do texto bblico nos oferece tambm uma temporalidade
plural, que brota do entrecruzamento de temporalidades de
natureza
diferente no seio do grande intertexto das Escrituras. Assim, o
tempo
dos relatos e das leis nos remete anterioridade do irrevogvel, o
que
resulta numa concepo cumulativa da histria, da qual procedem
as
tradies que do comunidade, que conta e se conta, nos relatos
de
libertao e de doao da lei e da terra, uma identidade particular,
nar-
rativa e tica72. A profecia exerce, quanto a ela, um
discernimento crtico
sobre o presente da histria e de sua no conformidade com a
tradio
da Aliana, alm de fazer intervir a promessa de uma renovao sob
a
forma de restaurao criadora do antigo. Os textos da sabedoria,
ape-
sar de parecerem no narrativos, no se desinteressam do tempo.
Eles
conjugam o cotidiano e o imemorial. Os hinos englobam e
recapitulam,
72. Cf. RICOEUR, P. Temps biblique. In Archivio di losoa 53
(1985), p. 29
-
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Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012
enm, o conjunto das temporalidades, com o hoje e o em todo o
tem-
po dos salmos que reatualizam o presente do el em orao, a
criao,
a salvao, o dom da Lei, as promessas da aliana.
Concluso
Este sobrevoo pela hermenutica losca e bblica de Ricoeur nos
revela sua complexidade e riqueza, oferecendo diferentes pistas
para o
trabalho exegtico, que foi profundamente enriquecido sob sua
inspira-
o, como tambm para a reexo teolgica, ela tambm marcada nas
ltimas dcadas pela fora heurstica do lsofo francs. o que se
percebe, no primeiro caso, na renovao atual da exegese, no s
mar-
cada pela oposio entre as correntes histrico-crticas e as
correntes
estruturalistas e literrias, mas que busca mediaes que lhe
permitam
de novo colocar-se escuta do texto. Quanto teologia, j h
algum
tempo se fala de uma virada hermenutica do pensar teolgico,
protago-
nizado entre outros por Claude Geffr, na Frana, ou David Tracy,
nos
USA. Seria interessante perguntar-nos at que ponto a contribuio
de
Ricoeur exegese e teologia tem fecundado os exegetas e
telogos
latino-americanos e brasileiros. No se trata, evidentemente, de
seguir-
mos as novas modas suscitadas no mundo da exegese e da
teologia
em outras paragens, mas, talvez, muito enriqueceria nosso
trabalho de
hermenutica do texto as potencialidades das categorias propostas
pelo
lsofo francs. Mais que a repetio pura e simples de seu
pensamen-
to, como foi feito nesse texto, trata-se de abrir caminhos,
aprendendo,
sem dvida, do grande mestre que foi Ricoeur, mas tambm
ousando
pensar em relao crtica ou mesmo contra ele.
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