Anita Abed Protagonismo Infantil
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Anita Lilian Zuppo Abed
O DESENVOLVIMENTO DAS HABILIDADES
SOCIOEMOCIONAIS
COMO CAMINHO PARA A APRENDIZAGEM
E O SUCESSO ESCOLAR
DE ALUNOS DA EDUCAO BSICA
So Paulo
Abril de 2014
2
Resumo
ABED, Anita Lilian Zuppo. O desenvolvimento das habilidades socioemocionais como
caminho para a aprendizagem e o sucesso escolar de alunos da educao bsica. So
Paulo: 2014.
O presente estudo tem o objetivo de oferecer subsdios filosficos e tericos para a elaborao
de polticas pblicas voltadas ao desenvolvimento das habilidades socioemocionais nas
instituies escolares. O paradigma da Ps-modernidade apresentado e discutido, com base
principalmente nas ideias de Edgar Morin, para situar as bases filosficas que sustentaram a
educao ps-iluminista, fragmentada e focada nos estoques cognitivos, e ancorar a
transformao da escola na direo da construo do pensamento complexo e do
desenvolvimento integral dos estudantes, caminhos fundamentais para a promoo da
aprendizagem, sucesso escolar e progresso social na atualidade. As contribuies tericas dos
principais autores interacionistas Piaget, Vygotsky e Wallon lanam luzes para a
compreenso do processo ensino-aprendizagem, enriquecida pela tica da Psicopedagogia,
representada por Alicia Fernndez. As caractersticas de uma ao mediadora de qualidade
(Feuerstein), a utilizao de mltiplas linguagens para atingir as diferentes inteligncias
(Gardner) e os diferentes estilos cognitivo-afetivos (Fagali), bem como o potencial do jogo e
da metfora (Abed), explicitam caminhos concretos para o professor incluir, com
intencionalidade, o desenvolvimento socioemocional na sua prtica pedaggica. O Frum
Internacional de Polticas Pblicas, ocorrido em maro de 2014, serve como linha condutora
para vislumbrar as tendncias atuais acerca do tema. Nas consideraes finais, reflete-se sobre
as implicaes da transformao do olhar em relao ao desenvolvimento humano e processo
ensino-aprendizagem na prtica do professor, principal protagonista na mudana do cenrio
educacional.
Palavras-chave: habilidades socioemocionais, interacionismo, mediao da aprendizagem,
Ps-modernidade
3
Abstract
Abed, Anita Lilian Zuppo. The development of socio-emotional skills as a means to foster
learning and the academic attainment of students in basic education. So Paulo: 2014.
The present study aims to provide philosophical and theoretical support for the creation of a
public policy focused on the development of socio-emotional skills in public schools. The
paradigm of postmodernity is presented and discussed principally through the ideas of Edgar
Morin in order to situate the philosophical basis that has sustained post-Enlightenment
education, which was fragmented and focused on cognitive aspects, and support the
transformation of schools toward the construction of complex thinking and the holistic
development of students - important ways to promote learning, academic attainment and
social progress nowadays. The theoretical contributions from leading interactionist authors
such as Piaget, Vygotsky, and Wallon shed light on our understanding of the teaching-
learning process. The discussion is also enriched by a number of aspects from Educational
Psychology presented by Alicia Fernndez. The characteristics of good mediating actions
(Feuerstein), the use of multiple languages in order to approach different intelligences
(Gardner), and the different cognitive-affective styles (Fagali), as well as the potential of the
game and the use of metaphors (Abed), present concrete ways in which teachers can
intentionally include socio-emotional development in their teaching practices. The
International Forum for Public Policies, held in March 2014, serves as a guiding principle for
a glimpse of the current trends on the subject. Finally, we reflect on the implications of this
change of perspective in teaching practices in relation to human development and the
teaching-learning process for the teacher, the main protagonist in the educational scenario.
Keywords: socio-emotional skills, interactionism, mediated learning, Postmodernism
4
Sumrio
1. Introduo 05
2. Contextualizao histrico-filosfica 14
3. Desenvolvimento e aprendizagem 25
3.1. Jean Piaget (1896-1980) 25
3.2. Alicia Fernndez (1944- ) 30
3.3. Lev Vygotsky (1896-1934) 41
3.4. Henri Wallon (1879-1962) 46
3.5. Integrando os autores 54
4. Caminhos para a transformao da prtica de sala de aula 58
4.1. O professor como mediador da aprendizagem e do desenvolvimento 58
4.2. As mltiplas inteligncias do ser humano 71
4.3. Os estilos cognitivo-afetivos 75
4.4. Implicaes para a sala de aula anlise de uma sequncia didtica 80
4.5. Os jogos como recursos mediadores 92
4.6. Recursos metafricos no processo ensino-aprendizagem 99
5. Tendncias atuais: as habilidades socioemocionais em foco 105
6. Consideraes Finais 125
Referncias Bibliogrficas 133
5
1. Introduo
Dai-me Senhor, a perseverana das ondas do mar, que fazem de cada recuo, um ponto de partida para
um novo avanar. Ceclia Meirelles1
As ltimas dcadas do sculo XX e o incio do sculo XXI vm sendo marcados por um
processo cada vez mais acelerado de mudanas na sociedade, nas relaes do trabalho, no
cotidiano das pessoas, na infncia de nossas crianas...
O acesso ao universo digital est cada vez mais democrtico. Desde a mais tenra idade,
podemos observar a nova gerao manipulando as telas touch scream de videogames
portteis, smartphones e tablets com uma desenvoltura impressionante.
A universalizao dos meios de comunicao digitais altera substancialmente a relao com a
informao e com os conhecimentos. Em tempo real, uma foto tirada em um jantar entre
amigos pode ser disponibilizada a um sem nmero de pessoas, potencialmente em qualquer
canto do planeta. Um pensamento postado em uma rede social pode ser alvo de infinitos
comentrios, crticas, complementaes, questionamentos.
Informaes propagam-se velocidade da luz.
Infelizmente, as instituies de educao formal, no Brasil e no mundo, no vm
acompanhando esse ritmo alucinado de transformaes. A escola como a instituio
responsvel por transmitir contedos no cabe nesse contexto, os paradigmas que sustentam
a ao educativa precisam se adequar aos novos tempos e aos novos estudantes que as escolas
recebem dentro de seus muros. Hoje, h vrios empregos que no existiam h 10 anos, como
estrategista de mdias sociais ou gerente de sustentabilidade e, com certeza, daqui a 5 ou
1 Fonte: http://www.frasescurtas.net/frases-bonitas.html
6
10 anos, quando nossos alunos de hoje ingressarem no mundo do trabalho, inmeras sero as
opes de carreiras que ainda no foram criadas, que provavelmente utilizaro tecnologias
com as quais nem sonhamos... Concluso: no h como preparar as crianas e jovens para
enfrentar os desafios do sculo XXI sem investir no desenvolvimento de habilidades para
selecionar e processar informaes, tomar decises, trabalhar em equipe, resolver problemas,
lidar com as emoes...
Com o intuito de sustentar reflexes e debates que possam subsidiar propostas de polticas
pblicas, diretrizes curriculares e projetos poltico-pedaggicos voltados para o
desenvolvimento integral dos alunos, o presente estudo se debrua em referenciais filosficos
e tericos que podem servir como inspirao e pontos de partida para a construo da
Educao do Terceiro Milnio.
Calcado no pressuposto de que o aprender envolve no s os aspectos cognitivos, mas
tambm os emocionais e os sociais, este estudo foca a compreenso das interrelaes entre o
desenvolvimento das habilidades socioemocionais e o processo de ensino e de aprendizagem.
Compreender como tais habilidades podem contribuir com a melhoria do desempenho escolar
e vida futura dos estudantes permite construir caminhos que promovam o desenvolvimento,
aprimoramento e consolidao de uma educao de qualidade. Nesse sentido, sero discutidos
alguns indicadores que podem servir como inspirao para as aes dos professores nessa
rdua - mas gratificante - tarefa de formar os cidados responsveis por determinar os rumos
da civilizao humana.
Historicamente, o espao escolar, no Ocidente, nasceu e se estruturou em torno da
transmisso dos contedos consagrados pela sociedade e privilegiou o pensamento lgico.
Essa configurao da educao formal que prioriza apenas os aspectos cognitivos e os
contedos programticos sustenta-se, segundo Morin (2000a), em concepes que marcaram
7
a cultura ps-iluminista: a separabilidade; a neutralidade dos conhecimentos cientficos; o
universo ordenado e imutvel; a supremacia da razo. Penso, logo existo, dizia Descartes,
supervalorizando a faceta racional do ser humano.
Esta viso moderna do conhecimento, esta epistemologia da verdade nica
afetou todos os aspectos da vida ocidental, todas as instituies. (...) As
escolas da era ps-iluminista enfatizaram no a produo do conhecimento,
mas a aprendizagem daquilo que j havia sido definido como conhecimento.
(KINCHELOE, 1997:13)
As polticas educacionais, no Brasil e no mundo, no poderiam ter sido diferentes: foi dada
uma importncia maior aos estoques cognitivos, ou seja, aos conhecimentos programticos
transmitidos em cada uma das disciplinas do currculo escolar. Coerentes com tal abordagem,
as polticas de avaliao e as mtricas produzidas por meio delas permaneceram voltadas para
esses aspectos, no abrangendo as facetas emocionais e sociais dos estudantes.
Nas ltimas dcadas, vivemos uma realidade marcada por muitas e velozes transformaes. O
desenvolvimento dos meios de transporte e de comunicaes encurtou o planeta (MORIN,
2000b), alterando o dia a dia da sociedade, instituindo novas demandas e necessidades,
provocando um movimento de repensar as crenas que subjazem as prticas nas instituies
sociais. No campo acadmico, alteraes paradigmticas produziram novos alicerces tericos
que, por sua vez, vm promovendo novas alteraes tecnolgicas e mais mudanas na vida
das pessoas - um movimento de circularidade causal.
Transformar o espao escolar no uma opo: uma consequncia inevitvel desse efeito
domin em que estamos inseridos. Parece indiscutvel que os contedos que compem as
grades curriculares das disciplinas escolares so, e sero sempre, muito importantes; afinal,
marca da espcie humana a busca pelo conhecimento e a transmisso dos saberes s prximas
geraes. A questo que se coloca cada vez mais, no meio acadmico, a necessidade de
8
recolocar o ser humano na sua condio inerente de totalidade - voltar a integrar as facetas do
ser humano, que foram cindidas pela Modernidade.
Integrar "tornar inteiro, completar", re-unir (unir de novo) o que na
realidade nunca foi separado, foi apenas pensado em separado. Tornar
inteiro resgatar a unicidade, recompor as clulas, restituir o ser. (ABED,
1996: 6)
No mais possvel conceber que apenas a cognio comparece sala de aula: os estudantes
tm emoes, estabelecem vnculos com os objetos do conhecimento, com os colegas, com os
professores, com a famlia, com os amigos, com o mundo. Os professores tambm. Todos ns
rimos, choramos, sofremos, nos encantamos, desejamos, fantasiamos, teorizamos... Somos
seres de relao, repletos de vida, h infinitos universos dentro e fora de ns - no h como
fugir disso.
O presente estudo terico sobre o desenvolvimento das habilidades socioemocionais com
vistas melhoria da qualidade da Educao Bsica, da aprendizagem e do desempenho e
sucesso escolar dos estudantes, uma iniciativa do Conselho Nacional de Educao (CNE),
objetiva oferecer subsdios consistentes e abrangentes que possam colaborar na necessria
(re)construo do espao escolar.
O cho da escola precisa se transformar, mas certo que nenhuma mudana ser vivel se
os professores no tiverem o suporte necessrio para assumir o papel de protagonistas
privilegiados deste enredo, o que no tarefa fcil, nem simples. Afinal, somos seres do
nosso tempo, a maior parte dos educadores de hoje vivenciou uma escolarizao tradicional,
muitas vezes mecnica e esvaziada de sentidos. Ser autor de mudanas exige dos
professores o desenvolvimento de suas prprias habilidades. Estes, para tanto, precisam que
os gestores da escola cumpram seu papel na valorizao, formao e apoio da equipe docente,
ancorados por polticas pblicas claras, consistentes e eficazes.
9
Para embasar as reflexes sobre a conjuntura atual, o captulo 1, Contextualizao histrico-
filosfica, traz um pequeno histrico dos pressupostos gnosiolgicos que marcaram a relao
do Homem com o conhecimento, sua produo e transmisso s novas geraes. A
perspectiva da Ps-modernidade e do pensamento complexo, proposta por Edgar Morin,
grande pensador francs da atualidade, ser analisada como um terreno frtil para a
compreenso das relaes do Homem com o conhecimento e das direes a seguir para
construir a Educao do terceiro milnio.
A mudana nas concepes do que ensinar e do que aprender realoca as posies e as
responsabilidades dentro da sala de aula. No possvel pensar o aprender como algo isolado
do ensinar. No captulo 2, Desenvolvimento humano e aprendizagem, a abordagem
interacionista ser apresentada e defendida por meio de alguns dos seus mais importantes
tericos: Jean Piaget, Lev Vygotsky e Henri Walon. As contribuies de Alicia Fernndez
iro fundamentar a apresentao de uma abordagem psicopedaggica que busca resgatar a
complexidade do processo ensino-aprendizagem, ou seja, apreender a trama de interrelaes e
interdependncia entre os inmeros fatores envolvidos no aprendizado.
A opo por apresentar o olhar psicopedaggico coerente com o tema proposto neste estudo:
os impactos do desenvolvimento de habilidades socioemocionais na aprendizagem e no
sucesso escolar. A Psicopedagogia uma rea do conhecimento e um campo de atuao que
lana mo das contribuies de vrias reas do conhecimento (Psicologia, Pedagogia,
Sociologia, Antropologia, Lingustica, Neurologia, Filosofia, Histria etc.) na busca de
integrar os mltiplos aspectos da aprendizagem humana: os fatores envolvidos no processo;
seus padres normais e patolgicos; a influncia do meio (famlia, escola, sociedade); a
construo e configurao da cena pedaggica, a elaborao e otimizao de recursos e
10
projetos pedaggicos com vistas melhoria da aprendizagem e desenvolvimento integral dos
estudantes (ABED, 2006).
Cada um dos autores escolhidos traz subsdios para refletir sobre algum ou alguns dos
aspectos da problemtica da integrao entre as habilidades cognitivas, sociais e emocionais.
Embora Jean Piaget no tenha se debruado diretamente nas questes emocionais e sociais,
encontramos nesse autor elementos para refletir sobre o desenvolvimento cognitivo e suas
implicaes para a estruturao do currculo escolar. As contribuies tericas da abordagem
psicopedaggica argentina, representada por Alicia Fernndez, sero utilizadas para nos
aprofundaremos nas relaes entre o desenvolvimento emocional (sob a tica da Psicanlise)
e o cognitivo (epistemologia gentica de Piaget) e suas implicaes para a compreenso do
processo ensino-aprendizagem, seu padres normais e seus desvios.
As ideias de Lev Vygotsky iro colaborar na compreenso do papel da mediao da cultura e
das interaes sociais na constituio do ser humano. As noes de desenvolvimento das
Funes Psicolgicas Superiores humanas em processos intersubjetivos e intrasubjetivos, a
distino entre significado e sentido e o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal
lanam luzes significativas sobre a promoo do desenvolvimento humano pelo processo de
aprendizagem.
As contribuies de Henri Wallon nos do subsdios para pensar o desenvolvimento do ser
humano nas instncias biolgica, psquica e social. O autor prope um modelo de
desenvolvimento humano que transita e integra a dimenso motora, a afetividade e a
inteligncia humana na constituio dos sujeitos.
11
No captulo 3, Caminhos para a transformao da prtica de sala de aula, sero apresentadas
algumas contribuies que colaboram nas reflexes sobre o como colocar em prtica os
novos paradigmas de ensino, ou seja, como transformar em aes a concepo de
aprendizagem que est sendo defendida.
Em primeiro lugar, preciso transformar o papel do professor: no mais um dador de aulas,
mas um mediador cuidadoso que, com suas aes, configura a cena pedaggica de modo a
promover situaes de verdadeira e significativa aprendizagem, colaborando com o
desenvolvimento global dos estudantes. Para refletir sobre as caractersticas que fazem de um
ensinante2 um mediador de qualidade, visitaremos os Critrios de Mediao, propostos por
Reuven Feuerstein, a partir da releitura que Marcos Meier e Sandra Garcia (2007) realizaram,
transportando-os para a sala de aula.
Para ancorar a abordagem que salienta a existncia de mltiplas inteligncias e de diferentes
formas de aprender, o que implica em diferentes linguagens e recursos para o ensinar, sero
apresentados os referenciais de Howard Gardner, pesquisador americano, e Elosa Fagali,
autora brasileira de inspirao junguiana.
As pesquisas desenvolvidas em meu trabalho monogrfico e na Dissertao de Mestrado
delinearo o valor e o potencial da utilizao de recursos metafricos e de jogos de regras
como instrumentos mediadores privilegiados para promover o desenvolvimento das
habilidades socioemocionais associadas construo do conhecimento.
Sistematizar um slido arcabouo filosfico e terico fundamental, mas no suficiente
para garantir a transposio dos conceitos para a prtica, para a ao do professor no cotidiano
2 Adotaremos os termos propostos por Alicia Fernndez: ensinante e aprendente.
12
escolar, nem tampouco para estruturar formas de monitoramento e avaliao dos resultados
dessas aes. O captulo 4, Tendncias atuais: as habilidades socioemocionais em foco, ir
apresentar e discutir algumas perspectivas atuais, em busca de elementos que possam
subsidiar alternativas de soluo para efetivar a urgente transformao da escola.
Inmeras questes se colocam no movimento de transposio da teoria para a prtica:
Em relao aos estudantes: Como promover o desenvolvimento pleno e integral dos alunos?
Como garantir a aprendizagem efetiva e ampliar as chances de construo de projetos de vida
saudveis e de sucesso? Como investir no fortalecimento das competncias de todas as
crianas e jovens, para que possam se tornar adultos que continuam aprendendo e produzindo
conhecimento ao longo de suas vidas? Como tornar o ambiente escolar dinmico, envolvente,
interessante, uma verdadeira academia do conhecimento? Como resgatar o desejo de
aprender, o prazer e a paixo pelo saber? Como motiv-los para comparecer escola de
corpo, alma e corao?
Em relao aos professores: Como o professor pode transformar as referncias tericas em
aes prticas? Como preparar o professor para mediar as situaes de aprendizagem de
maneira eficiente? Como ultrapassar seus modelos pessoais e construir novos saberes e novos
contornos de aes pedaggicas? Como transitar entre as exigncias do currculo, da
sociedade, dos familiares? Como conciliar as condies concretas de trabalho com as novas
concepes de ensino? Como desenvolver as habilidades dos educadores para que eles
possam transformar a sala de aula em direo a um espao para o desenvolvimento integral?
Como resgatar o prazer e o orgulho de ser professor?
13
Em relao s mtricas: Como mensurar o desenvolvimento de habilidades emocionais e
sociais e seus impactos na aprendizagem e na vida futura dos estudantes? Como estabelecer
mtricas que orientem polticas pblicas que, a partir de diagnsticos da conjuntura, possam
oferecer diretrizes para a elaborao de programas para o avano e modernizao da educao
no pas?
Em suma, esse estudo espera contribuir na construo de prticas inovadoras, consistentes e
bem embasadas, que privilegiam no s a cognio, mas tambm os aspectos socioemocionais
dos alunos como caminhos para a aprendizagem e sucesso escolar.
14
2. Contextualizao histrico-filosfica
O paradigma desempenha um papel ao mesmo tempo subterrneo e soberano em qualquer teoria, doutrina ou
ideologia. O paradigma inconsciente, mas irriga o
pensamento consciente, controla-o e, neste sentido,
tambm supraconsciente. Edgar Morin3
Este captulo tem o objetivo de contextualizar o momento histrico que estamos vivendo. Do
ponto de vista paradigmtico, a Ps-modernidade ser discutida a partir das contribuies de
Edgar Morin, filsofo francs, Joe Kinchloe, educador americano, e Laerthe Abreu Jnior,
pesquisador brasileiro. As contribuies da Psicopedagogia sero pontuadas como
reverberaes tericas coerentes com os pressupostos da Ps-modernidade que, por sua vez,
sugerem e amparam transformaes no fazer pedaggico, no espao escolar, em direo ao
resgate da subjetividade na construo do conhecimento.
Desde meados do sculo XX, a velocidade e intensidade das transformaes que o mundo
vem sofrendo ocorrem de maneira cada vez mais acentuada. A cada dia, bilhes de
informaes so processadas, aparatos tecnolgicos cada vez mais sofisticados so criados, o
conhecimento se multiplica de maneira exponencial.
As transformaes na maneira como o ser humano se insere no mundo e se relaciona com
seus elementos implicam no nascimento de novas necessidades sociais que, dessa forma,
provocam mudanas no papel da escola, que deve preparar a criana e o jovem para a sua
insero nessa sociedade em movimento.
Nas cincias, e especialmente nas cincias humanas, o paradigma cientfico da Ps-
modernidade vem questionando o modelo da chamada cincia moderna, nico considerado
vlido durante muitos sculos. Segundo Kinchloe (1997), o nascimento da cincia moderna,
3 (MORIN, 2000b: 26)
15
no final da Idade Mdia, relacionou-se com a ruptura da rgida organizao feudal da
sociedade medieval, em que o saber estava instalado no divino. A Verdade de Deus,
representada pela Igreja, era absoluta e incontestvel, de modo que o movimento cientfico
nasceu imbudo da necessidade de garantir verdades absolutas e de ser, tambm,
incontestvel.
Nos ltimos sculos, a sociedade ocidental viveu o apogeu da dominao da cultura europeia,
justificada pela excelncia de sua Cincia. O sculo XX, talvez o mais veloz em
transformaes j vividas pelo Homem, assistiu ao pice das conquistas cientfico-
tecnolgicas, conquistas essas que tanto podem salvar a humanidade de muitos males como
podem levar a sociedade barbrie da destruio de povos, naes, valores, culturas - da
prpria espcie humana.
A tese que gostaria de discutir a de que desbarbarizar tornou-se a questo
mais urgente da educao (...). Entendo por barbrie algo muito simples, ou
seja, que, estando na civilizao do mais alto desenvolvimento tecnolgico,
as pessoas se encontrem atrasadas de um modo peculiarmente disforme em
relao a sua prpria civilizao (...) que contribui para aumentar ainda mais
o perigo de que toda esta civilizao venha a implodir (...). Considero to
urgente impedir isto que eu reordenaria todos os outros objetivos
educacionais por esta prioridade. (ADORNO, 2010: 155)
Os avanos tecnolgicos dos meios de comunicao e de transporte diminuram as dimenses
do planeta, colocando a diversidade humana em contato. As concepes de neutralidade
cientfica, de universo ordenado e imutvel, de verdade nica e de supremacia da razo,
pilares da cincia moderna, segundo Morin (2000a), no se sustentam diante da velocidade
das transformaes sociais, da pluralidade da produo cultural humana, do reconhecimento
da condio histrica do Homem.
A tenso entre o encanto e o desencanto, aquilo que une e o que separa e
desagrega, o que rene e o que sobra dessa re-unio, o que cenrio,
representao do real e o cotidiano fragmentrio de nossas aes, constitui
hoje questo que abala e desafia nossa tradio de compreender
modelarmente o mundo e nossa crena nas grandes solues para os
16
problemas da humanidade. A Histria pe em questo as utopias
iluminadoras/salvadoras e as fronteiras do conhecimento desafiam nossos
modelos. (GATTI, 1995: 13)
A crtica ps-moderna ao reducionismo da cincia moderna se faz presente em vrios mbitos
do discurso acadmico, na filosofia e tambm nas artes, em busca de novas possibilidades de
construes tericas e culturais. No paradigma ps-moderno da complexidade, pensa-se
sempre em um interjogo de fatores que nunca podem ser compreendidos descontextualizados,
uma vez que so constitudos nesse inter-jogo, simultaneamente formam e so formados
nele, em processos incessantemente dinmicos, histricos, inacabados.
Segundo Kincheloe (1997), a escola da cincia moderna tinha como funo transmitir, aos
mais jovens, aquilo que j havia sido consagrado como conhecimento, (...) em nome da
neutralidade, uma viso particular do propsito educacional, que afirma que as escolas
existem para transmitir cultura sem comentrios. (KINCHELOE, 1997: 21). Na mudana
paradigmtica que vivemos, a ao educacional deixa de ser apenas informativa e de objetivar
a manuteno da organizao social j existente. A sociedade ps-moderna clama por
originalidade, flexibilidade e criatividade para enfrentar as novas situaes e os novos
desafios que vo se apresentando, a todo o momento, em uma sociedade em veloz
transformao. Cabe educao resgatar o desenvolvimento do ser humano em toda a sua
complexidade e diversidade, para que sejam ampliadas as suas possibilidades de criao de
novos saberes e de novos caminhos. Cabe educao do terceiro milnio, segundo Morin,
desenvolver o pensamento complexo, que
(....) no absolutamente um pensamento que elimina a certeza pela
incerteza, que elimina a separao pela inseparabilidade, que elimina a
lgica para permitir todas as transgresses. A caminhada consiste, ao
contrrio, em fazer um ir e vir incessante entre as certezas e as incertezas,
entre o elementar e o global, entre o separvel e o inseparvel. (....) No se
trata de opor um holismo global e vazio ao reducionismo mutilante; trata-se
de ligar as partes totalidade. (MORIN, 2000a: 212)
17
Nas ltimas dcadas, vrias pesquisas e projetos vm se debruando na construo de
abordagens pedaggicas que, ancoradas nos pressupostos da Ps-modernidade, buscam
responder a essa realidade. O grande desafio promover uma prtica pedaggica que resgate
o desenvolvimento do ser humano em toda sua complexidade e diversidade, reintegrando
facetas que foram cindidas pela sociedade moderna.
Tradicionalmente, de acordo com uma viso racionalista e dualista do ser
humano, considerou-se a aprendizagem exclusivamente como um processo
consciente e produto da inteligncia, deixando o corpo e os afetos fora; mas
se houve humanos que aprenderam porque no fizeram caso de tal teoria e
fugiram dos mtodos educativos sistematizados. (FERNNDEZ, 1990: 47)
As polticas pblicas e os projetos poltico-pedaggicos precisam priorizar aes que
(re)integrem, no processo de ensino e de aprendizagem, a construo do conhecimento e o
desenvolvimento de habilidades no s cognitivas, mas tambm socioemocionais. Para tanto,
imprescindvel investir na formao dos professores, que precisam se preparar para
organizar e orquestrar a cena pedaggica de maneira a contemplar o desenvolvimento integral
dos estudantes.
A questo que se coloca no mudar drasticamente a realidade da sala de aula, mas sim
ampliar a ao pedaggica para alm da mera transmisso de contedos. A postura, a escuta,
o olhar, a qualidade do vnculo que o professor estabelece com a situao de ensino-
aprendizagem precisam impregnar-se das ncoras do paradigma da Ps-modernidade, de
modo a considerar e contemplar as diferentes dimenses do ser humano e os mltiplos
aspectos do aprender.
A Psicopedagogia contribui para essa transformao no espao educacional ao propor um
tipo de olhar especial que busca, intencionalmente, abarcar a complexidade da situao de
ensino-aprendizagem e da constituio, amadurecimento e desenvolvimento do sujeito
humano.
18
Ao integrar as contribuies tericas advindas dos vrios campos das
cincias em torno do processo de aprendizagem humana, a Psicopedagogia
cria uma forma peculiar de olhar este processo. O olhar psicopedaggico se reveste de uma preocupao em resgatar o interjogo dinmico e complexo de
aspectos envolvidos na situao de aprendizagem: a particularidade dos
indivduos que ali comparecem (o aprendente e o ensinante); a relao que
se estabelece entre eles e entre eles e o objeto de conhecimento; as estruturas
sociais s quais eles fazem parte (famlia, escola, sociedade). (ABED, 1996:
11)
O cenrio da complexidade, portanto, no uma reforma programtica, mas uma
transformao no olhar, na forma de ver, entender, processar e atuar na realidade. Segundo
Abreu Jr. (1996), a Ps-modernidade uma ruptura ideolgica e poltica, pois implica em um
movimento de sada da dominao da cultura europeia, sustentada pelo cientificismo da
verdade nica, em direo ao dilogo democrtico entre os diversos pontos de vista, entre as
diversas culturas. Transcendendo para o tema discutido neste livro, podemos refletir sobre o
movimento de se ultrapassar a hipervalorizao das habilidades cognitivas e do tratamento
lgico do conhecimento para uma interlocuo entre as diferentes dimenses do ser humano
na sua relao consigo mesmo, com a aprendizagem e com o mundo.
Est subjacente pretenso de verdade nica da cincia moderna uma ideologia de excluso:
excluso de outras formas de se conceber o mundo, de se apreender e de atribuir significado
aos fenmenos, de expressar e de processar conhecimento. Complexidade no tem a ver com
complicao e sim com o problema de se pensar monoliticamente sobre um tema cheio de
imbricaes e interpretaes multifacetrias... (ABREU JR., 1996: 80).
O paradigma ps-moderno se reveste de uma tica da diversidade, de uma perspectiva
inclusiva no convvio entre as culturas em que o respeito, a solidariedade e a cooperao
mtuos resgatam e valorizam o poder criativo da humanidade, expresso pela sua diversidade
cultural. Conclama a dialtica, o dilogo das oposies: a ordem e o caos; o uno e o mltiplo;
a razo e a emoo; a cincia, a filosofia e a arte; o homem, a sociedade e a natureza... O
reconhecimento da pluralidade recoloca o Homem em sua dimenso de humanidade.
19
Para Morin (1999), o pensamento complexo resgata a duplicidade do pensamento e do
conhecimento. Segundo o autor, os dois modos de pensamento humano, embora sejam
antagnicos, devem ser dialeticamente complementares entre si: o pensamento
emprico/tcnico/racional e o pensamento simblico/mitolgico/mgico.
O primeiro dissocia, analisa, busca o isolamento e o uso tcnico-instrumental
das coisas, a objetividade, as leis gerais, atravs de um forte controle lgico
e do emprico exterior. Seu objetivo a explicao. O segundo associa,
relaciona, sintetiza, busca a dimenso humana, a subjetividade, a
singularidade, atravs de um forte controle analgico (metafrico) e da
vivncia interior. Seu objetivo a compreenso. Explicao e compreenso
esto dialeticamente interligadas numa relao complexa, ou seja, so
simultaneamente complementares, concorrentes e antagnicas. (ABED,
2002: 16)
O pensamento complexo da Ps-modernidade traz, portanto, uma ruptura paradigmtica que
tem implicaes no s nas cincias, mas em vrios mbitos da sociedade atual, inclusive na
educao: a escola deve transformar-se em direo complexidade do conhecimento,
abrindo-se para ir alm do j estabelecido.
Sentir e fazer so a linguagem da educao, do conhecimento
transdisciplinar: aquele conhecimento ativo que possibilita estabelecer
contato com o mundo sem precisar de passaporte para navegar entre
Cincia, Filosofia e a Arte. atravs da ao cognitiva que nos chegamos a
ns mesmos, aos outro e ao mundo. O sentido da educao a perspectiva
do encontro do homem consigo mesmo, com a Natureza e com a
Sociedade: um ato de afeto e ternura (...). Promover o encontro verdadeiro
entre Homem, Sociedade e Natureza o desafio da complexidade do
conhecimento. Compartilhar esse conhecimento entre as pessoas o
desafio da educao. (ABREU JR., 1996: 187)
Se o conhecimento vlido no se restringe mais ao cientificamente consagrado como tal,
no cabe escola apenas garantir que as novas geraes no percam o patrimnio conceitual
j construdo pela humanidade em sua trajetria histrica. no espao educacional que as
novas ideias devem ser cultivadas, que devem ser formados cidados aptos a dar continuidade
construo do saber humano, ampliando-o em mltiplas e infinitas direes, abarcando a
riqueza e a diversidade da produo cultural humana.
20
O professor deve assumir seu papel de mediador no s das relaes dos alunos com os
objetos do conhecimento como tambm da sua constituio enquanto ser humano. Em uma
sociedade em que as crianas e jovens passam um tempo considervel na escola,
imprescindvel que as instituies de ensino assumam a responsabilidade pela formao
global e integral dos estudantes - desde o Ministrio da Educao at cada um dos
professores, a cada minuto de cada hora que est diante de seus alunos, dia aps dia.
no espao educacional que, na sociedade atual, os valores de igualdade de direitos, de
justia, de respeito pelas diferenas e de incluso devem ser cultivados a partir de uma ao
educativa democrtica e igualitria. Mais uma vez: Ps-modernidade no apenas uma
mudana programtica e paradigmtica, mas poltica e ideolgica.
A escola um local privilegiado de encontro, de interlocuo, de
questionamento, de construo e transformao do conhecimento.
Conhecimento no s nos livros, mas nas experincias de cada um. Encontro
no s de saberes, mas principalmente de pessoas, nas suas diversidades e
nas suas riquezas pessoais e culturais. Um contato amoroso entre seres que
preenchem a vida. (ABED, 2002: 23)
O paradigma da Ps-modernidade sustenta-se na concepo de complexidade. A palavra
complexus significa, originalmente, aquilo que tecido junto - preciso cerzir os rasgos
do tecido dos fenmenos que haviam sido cindidos pela cincia moderna, recompondo sua
constituio, reintegrando as mltiplas facetas da compreenso humana: o pensamento e a
emoo, o abstrato e o concreto, o conhecimento vivencial e o formal, o ldico e o srio, a
cincia e a arte, o discurso e a ao... O pensamento complexo um pensamento que procura
ao mesmo tempo distinguir (mas no disjuntar) e reunir (MORIN, 2000a: 209). No se trata
de negar a ordem e a lgica formal, mas de resgatar o tecido dinmico constitudo e
constituinte de certezas com incertezas, de identidades com contradies, apreendidas atravs
do raciocnio lgico formal integrado a outras formas de se processar conhecimento.
21
Da mesma forma, ressaltar o desenvolvimento das habilidades socioemocionais como
objetivo da educao escolar no implica em desconsiderar os aspectos cognitivos, a
construo de conhecimento e a transmisso de informaes. Resgatar o emocional e o social
na prtica pedaggica significa, na verdade, realocar subjetividade e objetividade como
duas facetas de um mesmo processo: o aprendizado.
Alguns setores da sociedade vm se referindo s habilidades socioemocionais como no
cognitivas, como se os aspectos emocionais e sociais do humano pudessem ocorrer sem a
cognio, sem o pensamento (e o oposto: como se a cognio pudesse ocorrer de maneira
independente das condies afetivas). uma mentira da Modernidade a ideia de que o ser
humano cindido, dividido em pedaos independentes. A realidade multifacetada por
natureza; a aprendizagem, aspecto fundante da realidade humana, tambm.
Muitas so as habilidades de qualidade emocional que esto intrinsicamente envolvidas na
aprendizagem: o interesse, engajamento e motivao para construir o vnculo com os
ensinantes e com os objetos do conhecimento; a carga emocional que precisa ser investida na
relao com o conhecimento, para que os aprendentes atribuam sentido pessoal e se
posicionem criticamente em relao ao saber; a disponibilidade interna para persistir, para
atravessar o caminho do aprender, que muitas vezes envolve dores e lutos; a resistncia
frustrao para suportar o processo de amadurecimento ao longo da vida e tantas outras.
Seria surpreendente que no experimentssemos alguma dor (...) mas a
disposio de atravessar cada uma das passagens equivale disposio de
viver abundantemente. Se no mudamos, no crescemos. Se no crescemos,
no estamos realmente vivendo. (SHEEHY, 1988: 482)
A aprendizagem humana , acima de tudo, relacional ocorre no seio de interaes entre as
pessoas. Portanto, as habilidades de qualidade social tambm so inerentes ao processo de
ensino-aprendizagem. Para aprender, necessrio estabelecer vnculos saudveis entre o
ensinante, o aprendente e os objetos do conhecimento. necessrio inserir-se nos grupos
22
sociais, acatar as regras estabelecidas para o convvio em sociedade, respeitar os direitos e
deveres dos cidados. Saber expressar-se com clareza, preocupando-se com a compreenso do
outro, fundamental. preciso saber trabalhar em equipe, estabelecer metas em comum,
postergar a satisfao das necessidades individuais em prol dos objetivos grupais, e muitas
outras habilidades de convivncia, cooperao e colaborao.
No s os alunos, mas tambm, e principalmente, os professores devem desenvolver suas
habilidades socioemocionais. No grupo-classe, composto pelo docente e seus alunos, o
professor um protagonista diferenciado: cabe a ele configurar os contornos e as matizes das
relaes pessoais para promover aprendizagens significativas e duradouras em seus
estudantes. O professor deve ser um mediador que, intencionalmente, observa, avalia, planeja
e atua em prol da aprendizagem do outro.
Para Freire (1970), a reflexo crtica componente essencial do processo educativo. Refletir
criticamente no significa perder de vista os parmetros consagrados de conhecimento,
acumulados por sculos e sculos de construo de saberes ao longo da histria da
humanidade. A questo que se coloca tomar conscincia do sentido histrico, social e
cultural dos conhecimentos, oportunizando outras representaes, diferentes anlises e pontos
de vista, desde que bem fundamentados e nas esferas em que sejam possveis. Situar a
verdade no tempo e no espao permite respeitar e valorizar a diversidade cultural humana,
resgatando o poder criativo e intelectual do ser humano. Citando Morin (2000b: 86): o
conhecimento a navegao em um oceano de incertezas, entre arquiplagos de certezas.
H uma orao que traduz muito bem a essncia dessa ideia:
Senhor, D-me serenidade para aceitar tudo aquilo que no pode e no deve ser
mudado.
D-me fora para mudar tudo o que pode e deve ser mudado.
Mas, acima de tudo, d-me sabedoria para distinguir uma coisa da outra.
23
Cabe ao professor mediar a construo de um ambiente de ensino-aprendizagem democrtico,
responsvel, coerente e participativo, onde se cultive o verdadeiro di-logo, ou seja, onde o
logos (o conhecimento, o saber) possa ser compartilhado a dois o eu e o outro. O
verdadeiro dilogo, em oposio ao solitrio mono-logo da aula expositiva e bancria
(FREIRE, 1970), pressupe dois lados - o docente e o discente - que se aventuram na
construo conjunta dos saberes: observam e pensam, expressam suas ideias e escutam outros
pontos de vista, sentem e vibram, fantasiam e criam, enriquecendo-se mutuamente nesse
encontro.
fundamental que a prtica pedaggica, nas instituies de ensino, resgate o prazer de
dialogar, de pensar, de posicionar-se, de aprender e de ensinar. preciso revestir os atos
mentais de emoo, de vibrao, de sentidos pessoais, de significados. Apenas resgatando a
subjetividade no processo de ensino e de aprendizagem que ser possvel garantir a
verdadeira apropriao do conhecimento e sua transformao em saber. Segundo Fernndez, o
saber supe a originalidade do desejo pessoal e a universalidade da inteligncia:
(...) ao educador no deveria bastar-lhe que seu aluno faa bem as
multiplicaes e divises, ou responda a uma avaliao. Existe um sinal
inconfundvel para diferenciar a ortopedia da aprendizagem: o prazer do
aluno quando consegue uma resposta. A apropriao do conhecimento
implica no domnio do objeto, sua corporizao prtica em aes ou em
imagens que necessariamente resultam em prazer corporal. Somente ao
integrar-se ao saber, o conhecimento apreendido e pode ser utilizado.
(FERNNDEZ,1990: 59)
Em sntese, resgatar os aspectos socioemocionais na prtica pedaggica implica em
transformar, na escola, as interaes sociais e as relaes com o conhecimento. Sustentar
essas mudanas nos pressupostos da Ps-modernidade no significa um vale tudo, mas sim
uma costura cuidadosamente elaborada entre as partes, que foram historicamente cindidas
pela Modernidade, para a reconstruo de um todo coerente e em constante movimento. Esta
nova etapa da construo do conhecimento exige arcabouos tericos que lhe confiram
24
coerncia e sustentabilidade. o que veremos no prximo captulo. Antes, porm, vale
esquematizar algumas das principais caractersticas que marcam o pensamento moderno
cujas limitaes estamos lutando por ultrapassar e as ampliaes advindas do paradigma da
Ps-modernidade que estamos batalhando por conquistar.
MODERNIDADE PS-MODERNIDADE
Cultura da ciso, da fragmentao, Cultura do diferenciar e integrar.
Busca pelo saber absoluto, pela certeza, pela
tica da verdade nica: certo ou
errado.
Flexibilizao, mltiplas dimenses do
saber, articulao entre diferentes
perspectivas.
Supremacia apenas da razo, da inteligncia
lgica.
Valorizao e desenvolvimento das
mltiplas inteligncias do ser humano,
inclusive a lgica.
nfase apenas nas habilidades cognitivas e
nos contedos programticos.
Foco no s nos contedos e habilidades
cognitivas, mas tambm na construo de
novos saberes e no desenvolvimento
socioemocionais.
Supremacia do pensamento ocidental. Convivncia pacfica e respeito mtuo entre
as diferentes culturas.
Autoritarismo, poder do saber absoluto. Democracia do saber.
Busca da hegemonia (o certo). Aproveitamento da diversidade humana.
Domnio. Troca.
Educao para a intelectualidade. Educao para a intelectualidade e o amor.
25
3. Desenvolvimento humano e aprendizagem
"Estude o passado, se quiseres decifrar o presente. Confcio
4 A alegria que se tem em pensar e aprender faz-nos pensar e aprender ainda mais. Aristteles5
Este captulo tem o objetivo de apresentar, de maneira panormica, alguns referenciais
tericos que possam sustentar a conexo e interrelao entre os aspectos sociais, emocionais e
cognitivos no processo de ensino e aprendizagem.
Vrios so os autores que oferecem sustentao para a construo de caminhos pedaggicos
que promovam as transformaes na configurao do espao educacional e o
desenvolvimento do pensamento complexo. No se pretende realizar uma varredura sobre o
tema, nem tampouco um estudo aprofundado dos tericos escolhidos, mas sim pontuar alguns
conceitos que podem apoiar esta caminhada.
3.1. Jean Piaget (1896-1980)
Segundo Kincheloe (1997), Piaget inaugura o interacionismo ao propor que o conhecimento
uma construo que se d na interao de um sujeito ativo com o meio, em constantes
processos de desequilbrio e busca de novo equilbrio. A viso interacionista quebra a
dicotomia sujeito/objeto, colocando nfase na relao dinmica, na interdependncia entre os
aspectos ligados ao sujeito que conhece e aos estmulos e condies do ambiente que o cerca.
Assim, fica sem sentido a pergunta: o aprender determinado por fatores inatos ou
ambientais? Nem uma coisa, nem outra, mas sim a histria de relaes entre o orgnico e o
social.
4 Fonte: http://www.rh.com.br/Portal/frases.php
5 Idem
26
Na abordagem interacionista de inspirao piagetiana, a escola deixa de ser o transmissor do
conhecimento j consagrado, mas o local em que esta interao sujeito / objeto do
conhecimento cuidada no sentido de se promover, nos alunos, a construo de estruturas
cognoscentes cada vez mais complexas e adaptativas. O professor deixa de ser o detentor e o
transmissor do saber para ser um organizador de situaes significativas de desequilbrios que
levem os alunos busca ativa da construo dos saberes.
Wadsworth (1997) ressalta que Piaget prope quatro fatores importantes para o
desenvolvimento cognitivo do ser humano: a maturao, a experincia ativa, a interao
social e o processo de equilibrao.
A maturao est relacionada aos fatores orgnicos, hereditariedade, s caractersticas de
desenvolvimento biolgico da espcie humana. Os aspectos maturacionais indicam se a
construo de determinadas estruturas possvel em um dado momento do desenvolvimento
da criana.
(...) a maturao (fatores herdados) coloca amplas restries ao
desenvolvimento cognitivo. Estas restries mudam medida que a
maturao progride. A realizao do potencial subentendido por estas restries, a qualquer ponto do desenvolvimento, depende as aes da
criana sobre o seu meio. (WADSWORTH, 1997: 20)
Um aspecto da obra de Piaget que no to conhecido diz respeito aos trs tipos de
conhecimento: o social, o fsico e o lgico-matemtico. Cada tipo de conhecimento requer
uma qualidade diferente de experincia ativa na interao com os objetos e com as pessoas.
O conhecimento fsico refere-se apropriao das caractersticas fsicas dos objetos. A fonte
deste conhecimento est localizada nos objetos e o processo de aprendizagem se d atravs do
contato direto, corpreo, com esses objetos. So exemplos de conhecimento fsico as noes
de cor, textura, tamanho, forma, gosto, cheiro etc. O conhecimento social liga-se aos
contedos construdos pela cultura, pela sociedade em que o sujeito vive; sua fonte est nas
27
pessoas, exigindo, portanto, transmisso cultural. So exemplos: os fatos histricos, os signos
lingusticos, as normas sociais de conduta etc. Finalmente, o conhecimento lgico-
matemtico tem a sua fonte no nos objetos nem no social, mas na mente humana que capaz
de construir relaes lgicas entre os objetos, classificando, ordenando e organizando os
dados da realidade. Esse conhecimento tem que ser construdo ativamente pelo sujeito, pois
ele s possvel a partir da construo de estruturas lgicas de pensamento.
Em geral, os objetos do conhecimento apresentam, de maneira interligada, caractersticas
fsicas, sociais e lgicas. Um exemplo bastante simples: a noo de que um objeto maior
que outro, um elefante maior do que uma formiga. A dimenso de tamanho caracterstica
que pertence aos objetos (um conhecimento fsico), mas a mente humana que coloca um
objeto ao lado do outro e os compara, criando uma relao lgica entre eles. J o termo
maior, utilizado para nomear essa relao, cultural, portanto um conhecimento social.
A interao social concebida como o intercmbio e confronto de ideias entre as pessoas.
Particularmente importante para o desenvolvimento dos conhecimentos sociais, que por sua
natureza so arbitrrios e socialmente definidos e validados, a interao social fundamental
para criar os desequilbrios que promovem o desenvolvimento das estruturas cognoscentes.
Na teoria de Piaget, o fator da equilibrao coordena e integra os trs fatores anteriormente
citados (maturao, experincia ativa e interao social). A equilibrao o processo de
autorregulao das interaes da criana com o meio, o que permite que as experincias
sejam incorporadas s estruturas internas do sujeito. Diz respeito constante busca de
restaurar o equilbrio pelos processos de assimilao e acomodao: a assimilao a face do
processo cognitivo pelo qual um novo dado ou uma nova experincia integrado a um
esquema ou padro j existente no sujeito; a acomodao a face do processo cognitivo pelo
28
qual os esquemas pr-existentes so modificados ou um novo esquema criado para ampliar a
estrutura atual e possibilitar a assimilao de algum elemento que no cabia nas estruturas
do sujeito.
Na acomodao, h uma alterao no sujeito em funo de imposies de realidade, enquanto
que na assimilao h uma transformao do objeto para que este se ajuste ao sujeito.
Movimentos dialticos, assimilao e acomodao so os componentes do esforo ativo do
sujeito em se adaptar ao seu ambiente e manter-se em equilbrio com ele. Pela assimilao, os
esquemas internos se fortalecem; pela acomodao, os esquemas internos se ampliam.
Piaget prope uma sequncia de desenvolvimento em que as idades cronolgicas so um
pouco variveis, porm a ordem das aquisies constante. Estas aquisies dependem da
idade da criana tanto no que diz respeito ao seu amadurecimento neurofisiolgico, como
tambm ao repertrio de aquisies que j esto escritas em sua histria pessoal. Por outro
lado, dependem do meio ambiente no sentido do alimento que ele esteja oferecendo a esta
criana, possibilitando a ela exercitar e vivenciar experincias com os objetos e promover
condies de intercmbio social e de linguagem.
Na troca com o ambiente, o desenvolvimento intelectual se d em um processo de
restabelecimento do equilbrio perturbado, ou seja, algo novo que deve se encaixar na
estrutura j existente. Tanto o algo novo como a estrutura j existente precisam se ajustar
(assimilao e acomodao) para que este encaixe possa ocorrer. Ou seja, uma experincia s
passvel de ser aprendida na medida em que ela seja assimilvel. A experincia tem que
estar dentro de certos limites (faixa de desequilbrio): de um lado, suficientemente nova
para provocar o desequilbrio e, de outro, no nova demais para que possa ser digerida. Se a
29
experincia estiver muito alm das possibilidades da criana, esta no ter recursos
necessrios para aproximar-se, acomodar-se a ela e assimil-la.
A construo do conhecimento lgico foi o foco principal das pesquisas de Piaget e o aspecto
mais conhecido de sua obra. Talvez por isso a prtica pedaggica de inspirao piagetiana
tenha se limitado, muitas vezes, construo do conhecimento lgico. Ou pior, por vezes
confundiram-se os tipos de conhecimentos, esperando que a criana construsse conhecimento
social, eximindo-se de seu papel de transmissor deste tipo de conhecimento. Na alfabetizao,
por exemplo, as estruturas de pensamento para compreender o funcionamento lgico da
lngua devem ser construdas pela mente da criana (como nos aponta a obra de Emlia
Ferrero6), pois um conhecimento lgico, mas a correta ortografia das palavras deve ser
transmitida criana pelo adulto, pois um conhecimento social, portanto arbitrrio.
Piaget considerava o desenvolvimento psicolgico como uno, ou seja, um processo que
engloba tanto aspectos cognitivos como afetivos. Entretanto, suas pesquisas focaram
amplamente a construo das estruturas cognitivas que permitem ao ser humano conquistar o
pensamento lgico. A dimenso afetiva inclui a motivao, os sentimentos, os interesses, os
valores, que se constituem como fatores energticos das interaes entre sujeito e objeto
que promovem o desenvolvimento cognitivo e a construo do conhecimento. (PIAGET,
2005). Pouco antes de sua morte, em 1980, Piaget afirmou em uma entrevista que deixava
aos seus seguidores a tarefa de pesquisar como os aspectos emocionais e sociais interferem
no desenvolvimento cognitivo e na construo do conhecimento.
Encontramos, na Psicopedagogia, estudiosos que atenderam ao seu desejo...
6 Ver a respeito: FERREIRO &TEBEROSKY, 1999.
30
3.2. Alicia Ferndndez (1944 - )
Piaget estudou o sujeito epistmico, seu interesse cientfico era como o ser da espcie
humana constri estruturas lgicas de pensamento. A Psicopedagogia deu continuidade
estudando sujeitos psicolgicos, pessoas encarnadas que vivem inseridos em experincias
altamente emocionais, interagindo socialmente com outros sujeitos, situados em uma cultura,
em um meio social, em um ambiente familiar. Teorias psicopedaggicas vm se debruando
na compreenso de como as relaes vinculares, especialmente as primeiras relaes do beb,
influenciam os rumos da construo das estruturas cognitivas, ou seja, impactam nos
processos de assimilao e acomodao.
Autores da Psicopedagogia vm se dedicando a pesquisas e construes tericas que focam as
interaes entre os mltiplos aspectos da aprendizagem humana, buscando cerzir as
contribuies parciais de vrias reas do conhecimento - Psicologia, Pedagogia, Sociologia,
Antropologia, Neurologia, Lingustica etc - em um corpo terico coerente e dinmico.
Segundo Ramos (2009), h controvrsias sobre o incio da Psicopedagogia. Para Bossa
(2007), possvel identificar os primrdios da Psicopedagogia com a criao dos primeiros
Centros Psicopedaggicos fundados na Frana, em 1946, por Juliette Boutonier e George
Mauco. Os mdicos desses centros contavam com uma equipe multidisciplinar, das reas da
Psicologia, Psicanlise e Pedagogia, para auxiliar no diagnstico e tratamento de crianas e
jovens com problemas de comportamento e de aprendizagem. Com enfoque mdico-
pedaggico, a chamada reeducao consistia em identificar e tratar as dificuldades
apresentadas por meio de classificao dos desvios, medicao e planos de interveno com o
intuito de readaptar o doente ao seu meio familiar, social e escolar.
31
Nos anos subsequentes, comeou a crescer a preocupao com crianas e adolescentes que,
embora no apresentassem deficincias fsicas, mentais ou sociais, apresentavam baixo
rendimento escolar. Ainda em um vis mdico, acreditava-se que os problemas de
aprendizagem eram causados por disfunes neurolgicas to pequenas que no eram
detectveis pelos exames. O termo Disfuno Cerebral Mnima DCM generalizou-se,
principalmente na dcada de 70, como explicao para a ocorrncia desse fenmeno. A
principal preocupao passou a ser o diagnstico diferencial e a elaborao de aes
reeducadoras que contribussem para o desaparecimento dos sintomas e a readaptao
pedaggica do aluno. A esse tipo de atuao deu-se o nome de Pedagogia Curativa.
Janine Mery, em 1978, lanou o livro Pedagogie Curative Scolaire Et Psychanalyse. Nele,
a autora apresenta e discute o papel do psicopedagogo enquanto um professor-terapeuta: de
fato, o psicopedagogo um professor, mas um professor de um tipo especial: ele deve
realizar sua tarefa de pedagogo sem perder de vista os propsitos teraputicos de suas
aes. (MERY, 1985: 16)
A autora utiliza conceitos advindos da Psicanlise como base para uma mudana de postura
que ultrapassa a viso patologizante do no aprender: necessrio compreender a relao
educativa psicopedagogo/paciente e propor intervenes teraputicas nessa relao. A atuao
do profissional no se restringe, portanto, reeducao com o objetivo de adequar uma
criana com distrbio ao processo de escolarizao. O psicopedagogo deve, ao invs disso,
equilibrar duas polaridades do seu papel: por um lado, manter o foco nos processos de
construo do conhecimento e sucesso escolar; por outro, promover a compreenso da
dinmica da criana nas suas relaes pessoais com o prprio terapeuta, que desvelam a sua
maneira peculiar de ser e de estar no seu meio familiar, escolar e social (noo de
transferncia, em Psicanlise) e do sentido ao sintoma.
32
Essa corrente francesa influenciou significativamente o nascimento da Psicopedagogia na
Argentina e, posteriormente, no Brasil. Na dcada de 70, em Buenos Aires, surgiu o primeiro
curso de Psicopedagogia e, em Porto Alegre, foram criados os primeiros cursos em
Aconselhamento Psicopedaggico. Em 1979, aps vrios anos de prticas de cunho
psicopedaggico, um grupo de educadores paulistas, formados sob a influncia da abordagem
argentina, fundou o primeiro curso de especializao em Psicopedagogia no Brasil, no
Instituto Sedes Sapientiae, em So Paulo.
Desde a publicao de A Inteligncia Aprisionada, em 1987, a argentina Alicia Fernndez
vem aprofundando os estudos, iniciados por Sara Pain, e construindo uma slida teoria
psicopedaggica interrelacionando o desenvolvimento cognitivo, segundo a epistemologia
gentica de Jean Piaget, e as contribuies da Psicanlise, especialmente Lacan e Winnicott,
sobre o desenvolvimento emocional humano.
O ser humano nasce muito frgil e depende totalmente do meio ambiente para sobreviver. Do
ponto de vista orgnico, o beb precisa de algum que o alimente, o limpe, o proteja. Do
ponto de vista psquico, o beb humano precisa das relaes que estabelece com outros seres
humanos para se constituir enquanto sujeito (WINNICOTT, 1975) e para desenvolver as
Funes Psicolgicas Superiores prprias da raa humana (VYTOTSKY, 1991). Ou seja, ns
nos constitumos enquanto seres humanos nas e pelas aprendizagens promovidas pelas
interaes com o entorno social. O Homem torna-se humano porque aprende. um ser
histrico e social, cada gerao acumula e amplia os conhecimentos das geraes anteriores.
As situaes sociais de aprendizagem envolvem dois protagonistas, o ensinante e o
aprendente, uma relao que se estabelece entre eles e entre eles e os objetos do
conhecimento, ou seja, envolve uma triangulao:
33
Objetos do conhecimento
Ensinante Aprendente
Segundo Fernndez (1990), h quatro aspectos, interdependentes e indissociveis, que
constituem cada um dos protagonistas que comparecem situao de ensino-aprendizagem: o
organismo, o corpo, a inteligncia e o desejo.
A distino entre organismo e corpo fundamental para ultrapassar o dualismo organismo-
psiquismo. O organismo diz respeito aos processos biolgicos, carga gentica herdada, aos
potenciais e delimitadores fsico-qumicos do funcionamento orgnico. Um organismo
saudvel e bem estruturado base para uma boa aprendizagem, mas no suficiente; da
mesma forma, um organismo com algum distrbio ou deficincia pode dificultar a
aprendizagem, mas no o determinante do problema de aprendizagem.
O corpo construdo de maneira especular, ou seja, nas relaes com um Outro7 que serve
como um espelho para que o ser humano possa ver a si mesmo e tomar posse, apropriar-se
do seu organismo. O corpo construdo e reconstrudo dia a dia pela forma particular com
que cada um usa o organismo herdado, de acordo com os ditames de seus desejos e de sua
inteligncia. A inteligncia refere-se ao nvel cognitivo e autoconstruda nas interaes com
o ambiente, por meio da construo e reconstruo contnua de estruturas cognoscentes pelo
processo de equilibrao entre assimilao e acomodao; o desejo diz respeito aos processos
subjetivantes, ao investimento de energia, atribuio de sentido, tanto consciente como
inconsciente.
7 Em Psicanlise, utiliza-se Outro, com letra maiscula, para se referir ao no-eu.
34
Assim como a inteligncia tende a objetivar, a buscar generalidades, a
classificar, a ordenar, a procurar o que semelhante, o comum, ao contrrio,
o movimento do desejo subjetivante, tende individualizao,
diferenciao, ao surgimento do original de cada ser humano nico em
relao ao outro. (FERNNDEZ, 1990: 73)
O organismo, transversalizado pela inteligncia e pelo desejo, constri e reconstri o corpo ao
longo de toda a vida. Aprender incorporar, incorporar significa colocar no corpo, tornar
parte de si mesmo algo que no o era antes do aprendizado. no corpo que a aprendizagem se
inscreve: o corpo coordena e a coordenao resulta em prazer, prazer de domnio
(FERNNDEZ, 1990: 59).
Fonte: Inteligncia Aprisionada, Alicia Fernndez, pgina 53
O ensinante no transmite o conhecimento, como se entregasse um pacote ao outro; no se
aprende simplesmente pegando um contedo transmitido e colocando-o no bolso. Se o
conhecimento no passar a fazer parte das entranhas do aprendente, ele no aprendeu de fato,
no tornou seu um conhecimento que do Outro o conhecimento, portanto, permanece
externo. Quantas vezes o aluno consegue apenas reproduzir um conhecimento, sem dominar o
contedo, sem operar com ele... Quantas vezes sabe apenas o suficiente para passar na prova e
depois, esquece...
35
Ao invs de transmitir o conhecimento como se fosse uma mercadoria para o aluno adquirir, o
ensinante, com o seu corpo, apresenta ao aprendente os sinais desse conhecimento para que
este, ao interagir ativamente com o conhecimento, com seu organismo, seu corpo, seu desejo
e sua inteligncia, possa constru-lo em si mesmo. Ao revestir o conhecimento de prazer e de
sentido, o ensinante oferece ao aprendente o seu prprio prazer para que o aprendente possa
destruir o conhecimento que recebe e reconstru-lo a partir da sua prpria subjetividade,
atribuindo-lhe sentido e valor. Incorporando-o, tomando-o como parte de si.
(...) atravs do olhar, as modulaes da voz e a veemncia do gesto,
canalizam-se o interesse e a paixo que o conhecimento significa para o
outro (...). Consequentemente, a descorporificao da transmisso despoja o
transmitido de todo interesse e garante seu esquecimento. (FERNNDEZ,
1990: 60)
Para que a aprendizagem acontea, necessrio que se construa um espao de confiana entre
aquele que ensina e aquele que aprende. No aprendemos de qualquer um, aprendemos
daquele a quem outorgamos confiana e o direito de ensinar. (FERNNDEZ, 1990: 52)
Um professor no um ensinante, na vida do aluno, a no ser que seja instalado por ele nesse
lugar. Quem autoriza o outro a ensinar-lhe o aprendente, mas o ensinante que, por meio do
seu amor e interesse, do seu corpo e do seu prazer pelo conhecimento, desperta no aprendente
o desejo de aprender.
O conceito de modalidade de aprendizagem central nessa abordagem. Com base em
pressupostos advindos da Psicanlise, as modalidades de aprendizagem dizem respeito ao
molde relacional que cada um utiliza para organizar um conjunto de aspectos, tanto
conscientes quanto inconscientes, da relao pessoal com o conhecimento: aspectos lgicos,
de significao, simblicos, corpreos, estticos.
A modalidade de aprendizagem marcar uma forma particular de relacionar-
se, buscar e construir conhecimentos, um posicionamento de sujeito diante de
36
si mesmo como autor de seu pensamento, um modo de descobrir-construir o
novo e um modo de fazer prprio o alheio. (FERNNDEZ, 2001: 88)
No seu livro Os idiomas do aprendente, de 2001, Alicia Fernndez prope uma modalidade
saudvel, em que h equilbrio e alternncia entre assimilao e acomodao, e trs
modalidades que perturbam o aprender. Para compreend-las, necessrio visitarmos,
rapidamente, alguns fundamentos sobre o desenvolvimento emocional humano.
Donald Winnicott, pediatra e psicanalista ingls, estudou a fundo o nascimento do psiquismo
humano, as primeiras relaes vinculares e suas influncias na constituio do sujeito.
Segundo Winnicott (1975), ao nascer, o beb humano vive uma primeira fase de simbiose,
como se a realidade fosse um prolongamento de si mesmo. Uma me suficientemente boa 8
e um ambiente suficientemente bom oferecem a ele a sustentao necessria, o holding
para que possa viver essa iluso de continuidade do ser que lhe d condies de se instalar
em seu psiquismo. Aos poucos, conforme o beb se fortalece emocionalmente e se torna mais
capaz de suportar frustraes, amplia-se cada vez mais a funo de apresentao do mundo
em pequenas doses, promovendo aos poucos a desiluso que faz com que o beb se
diferencie. A condio inicial de unicidade (1) evolui para o dual (2) em um processo de
diferenciao que vai, aos poucos, construindo a noo de eu e de no-eu.
O autor prope uma rea intermediria entre o eu (realidade subjetiva) e o no eu
(realidade externa): o espao transicional ou potencial. Esta uma regio paradoxal, pois
composta por objetos e fenmenos que, apesar de pertencentes ao no eu, so fortemente
impregnados pelo mundo subjetivo.
(...) este paradoxo (eu/no-eu) necessita ser permitido, e permitido no
cuidado de cada beb (...) No para ser resolvido. possvel resolver o
8 Os termos entre aspas so os utilizados por Winnicott para descrever o desenvolvimento emocional do beb.
A palavra holding foi mantida em ingls, por se considerar que no h uma traduo que mantenha o sentido original.
37
paradoxo por meio de uma fuga para um funcionamento intelectual
dissociado, mas o preo a pagar por isto a perda do valor do prprio
paradoxo. (WINNICOTT, apud DAVIS & WALLBRIDGE, 1982: 75)
Para Fernndez (1990), o conhecimento o terceiro elemento, que promove a passagem do
vnculo a 2, me-beb para a constituio da triangulao a 3, ensinante-aprendente-objeto
do conhecimento:
Tudo comea na triangulao do primeiro olhar. No primeiro momento, a
me ou seu equivalente busca os olhos da criana e a criana busca seus
olhos; aqui h um encontro necessrio para que haja aprendizagem, mas logo
a me olha para outro lado, objeto ou pessoa, e seu filho tambm desvia o
olhar para esse mesmo lado. Seus olhares encontram-se em um objeto
comum, um objeto de reencontro, quer dizer, desse olhos nos olhos vai haver
um deslocamento at outros objetos do conhecimento. (SARA PAN apud
FERNNDEZ, 1990: 28)
As modalidades de aprendizagem que perturbam a aprendizagem so resultantes de desajustes
nos processos de assimilao e acomodao em funo de excesso, falta ou inadequao
desses cuidados primrios: o holding e a apresentao de mundo em pequenas doses.
Retomando os conceitos piagetianos. Pela assimilao, o sujeito utiliza esquemas j existentes
em sua estrutura cognoscente para incorporar a nova experincia. Isso implica em adequar a
realidade s condies dos recursos internos do sujeito, ou seja, a estrutura do sujeito que
dita os contornos, o colorido da interao. Essa face da adaptao fortalece os esquemas j
existentes. Pela acomodao, os esquemas so modificados ou novos esquemas so
construdos para atender a uma exigncia da nova experincia, que no cabe nas estruturas
prvias. Na acomodao, o objeto do conhecimento que se impe na interao; essa a
face do processo que amplia os recursos internos disponveis ao sujeito.
Refletindo sobre os processos de assimilao e acomodao, Sara Pain (1985) props e
descreveu quatro tipos de desajustes nos processos representativos, sintetizados rapidamente
abaixo:
38
- hipoassimilao: processos de assimilao insuficientes; esquemas empobrecidos e dficit
ldico.
- hiperassimilao: processos de assimilao exagerados e inadequados; predomnio ldico e
excesso de subjetivao; o pensamento se afasta da realidade.
- hipoacomodao: processos de acomodao insuficientes; desrespeito ao tempo da criana
para acomodar.
- hiperacomodao: processos de acomodao exagerados e inadequados, com
superestimulao da imitao, sem que a criana possa dispor de suas prprias expectativas e
experincias.
A partir da prtica clnica e aprofundamento terico em relao s interrelaes entre a
construo da inteligncia e a constituio do sujeito desejante, Alicia Fernndez
sistematizou, em 2001, as quatro modalidades de aprendizagens que, a seu ver, funcionam
como moldes relacionais, como matrizes que organizam a forma como uma pessoa se
relaciona consigo mesma como aprendente, com o outro como ensinante e com o
conhecimento como um terceiro elemento da triangulao. Esse molde relacional mantm a
tenso entre o que se impe como repetio/permanncia de um modo anterior de relacionar-
se e o que precisa mudar nesse mesmo modo de relacionar-se. (FERNANDEZ, 2001b: 78)
Na construo desse molde, fundamental a forma como a famlia atribui significado ao
conhecer, o quanto autoriza a criana a ser autora de sua aprendizagem e como equilibra essas
duas funes: de um lado, a permisso para a criana viver suas prprias experincias, repeti-
las, process-las, um espao para perguntar, brincar e jogar com o conhecimento (relacionado
ao holding winnicottiano); de outro lado, a interdio, a apresentao dos limites e das
imposies da realidade (apresentar o mundo em pequenas doses). A primeira funo
propicia a assimilao; a segunda, a acomodao.
39
Quando o ambiente suficiente bom, as exigncias da realidade e as demandas da
subjetividade da criana encontram-se em um certo equilbrio dinmico. Como resultado, a
modalidade de aprendizagem saudvel, ou seja, tanto o processo de assimilao como de
acomodao ocorrem de maneira suficientemente adequada para promover a construo da
inteligncia e o desenvolvimento do ser como aprendente.
S O
O termo suficientemente bom proposital na teoria winnicottiana: no h um certo e um
errado, um valor exato e perfeito. Cada par me-beb nico, o que suficiente para um
pode no ser para outro (WINNICOTT, 1975). O processo de constituio do sujeito
dinmico, interminvel, h construes e reconstrues constantes que envolvem um sem
nmero de emoes, de significaes, de representaes, tanto pessoais como culturais.
As modalidades no saudveis de aprendizagem revelam algum tipo de desvio para alm da
faixa do suficientemente bom. So elas:
Hiperassimilao-hipoacomodao: um ambiente com dificuldade em impor os
limites da realidade criana amplia demais o processo de subjetivao na relao
com o conhecimento. Resultado: o desequilbrio que a realidade deveria impor no
vivido, a criana acaba por assimilar experincias s suas estruturas pr-existentes
de maneira inadequada. O novo no vivido como novo e no gera acomodao; ao
contrrio, gera assimilaes distorcidas - a criana no amplia seus esquemas (no
acomoda) e os esquemas existentes ficam confusos, hiperinclusivos, bagunados. a
criana que faz do seu jeito, mesmo que esse jeito no atenda s necessidades da
interao.
40
S O
Hipoassimilao-hiperacomodao: no extremo oposto, um ambiente
exageradamente controlador, que impe restries de maneira arbitrria e
excessivamente autoritria, sem permitir criana a experimentao e a repetio de
vivncias significativas, restringe demais o processo de subjetivao na relao com o
conhecimento. Resultado: a criana imita, obedece, procurando acomodar-se s
exigncias do meio, mas a verdadeira acomodao no acontece, as referncias
permanecem externas, no transformam de fato as estruturas internas do sujeito que,
assim, no pode assimilar as experincias. So as crianas copistas, que no
conseguem incorporar o conhecimento pela precariedade do processo de subjetivao,
que no lhe permitido.
S O
Hipoassimilao-hipoacomodao: nas modalidades anteriores, algo do movimento
da adaptao estava de certa forma preservado, mesmo que com desvios. A
modalidade hipo-hipo ocorre quando tanto a funo de holding com a de
apresentao do mundo em pequenas doses ocorrem de forma deficitria,
dificultando o contato tanto com a subjetividade como com os objetos. Os esquemas
41
so poucos e pobres, a criana parece que no estabelece o vnculo com o
conhecimento. Parece esvaziada.
S O
Ao integrar a compreenso sobre o desenvolvimento cognitivo, segundo a epistemologia
gentica de Piaget, e sobre o desenvolvimento emocional, pela tica da Psicanlise, fica muito
evidente a importncia da escola desenvolver as habilidades socioemocionais, tanto no aluno
como no professor. Implica em fortalecer os protagonistas da cena pedaggica para que
possam estabelecer vnculos saudveis entre si e com os objetos do conhecimento,
construindo de maneira eficiente e prazerosa essas relaes. Elementos essenciais para
acomodar e assimilar, ou seja, para promover o desenvolvimento cognitivo e a aprendizagem.
3.3. Lev Vygotsky (1896-1934)
Mais um autor que merece destaque Vygostky, psiclogo russo que viveu os tempos de
profundas transformaes sociais, culturais e polticas em seu pas, no incio do sculo XX.
Com uma viso interacionista de ser humano, de desenvolvimento e de aprendizagem, esse
autor aprofunda-se, em sua obra, nas questes culturais, nas mediaes sociais e no papel da
linguagem na constituio humana.
Apoiado nos pressupostos tericos do materialismo histrico e da dialtica marxista,
Vygotsky aprofundou-se no estudo das funes psicolgicas superiores, que caracterizam e
diferenciam a espcie humana. As funes tipicamente humanas referem-se aos processos
voluntrios, s aes conscientemente controladas e mecanismos intencionais: a linguagem, a
ateno, a lembrana voluntria, a memorizao ativa, o pensamento abstrato, o raciocnio
42
dedutivo, a capacidade de planejamento, a imaginao, entre outras. Segundo o autor, as
formas superiores de comportamento consciente tm sua origem nas contnuas interaes
entre os aspectos biolgicos/maturacionais e as relaes sociais que o sujeito estabelece no
contexto cultural e histrico do qual faz parte.
A partir das estruturas orgnicas elementares, determinadas basicamente pela
maturao, formam-se novas e mais complexas funes mentais, dependendo
da natureza das experincias sociais a que as crianas se acham expostas. Os
fatores fisiolgicos preponderam sobre os sociais apenas no incio da vida.
Aos poucos, o desenvolvimento do pensamento e o comportamento da criana
passam a ser orientados pelas interaes que ela estabelece com pessoas mais
experientes. (GARCIA, 2003: 19)
A cultura compreende as forma pelas quais a sociedade organiza e expressa os conhecimentos
disponveis, os instrumentos simblicos e fsicos que permeiam a forma de vida das pessoas
em um determinado contexto social. Os sistemas simblicos, de origem sociocultural,
medeiam as relaes dos seres humanos com o entorno e consigo mesmo. Dentre eles,
Vygotsky destaca o papel da linguagem na organizao e desenvolvimento dos processos de
pensamento e de aprendizagem. A inveno dos signos como mediadores simblicos
anloga inveno dos instrumentos de trabalho, por meio dos quais o Homem relaciona-se
com a realidade objetiva na luta pela subsistncia. Pela linguagem, o Homem toma
conscincia da realizao de suas atividades, tanto fsicas como simblicas.
Segundo Vygostky (1987), o ser humano se constitui nas e pelas relaes que estabelece com
o meio social. Embora o autor tenha atribudo grande nfase aos fatores externos, o Homem
no considerado como um mero produto dessas influncias socioculturais, uma vez que
tambm cria, com suas aes, os patrimnios culturais. Em um processo histrico e dialtico,
o ser humano vai sendo construdo e vai construindo seu meio circundante.
(...) o reflexo psquico consciente ou imagem psquica (entendida enquanto
contedo da conscincia formado a partir da apreenso do real) algo vivo,
produzido pela atividade humana concreta, caracterizada pelo movimento
dialtico permanente por meio do qual o objetivo se transforma em subjetivo.
43
Atravs da atividade prtica, a imagem psquica ou contedo da conscincia
passa do sujeito ao objeto. O contedo objetivo da atividade prtica dos
homens cristaliza-se no seu produto, podendo assim ser transmitido pela
linguagem em toda a sua riqueza. Uma vez objetivado, o contedo da
atividade torna-se socialmente disponvel e, ao ser internalizado pelos
indivduos, cria nestes a imagem psquica ou a representao da realidade.
(GARCIA, 2003: 41)
Para Vygotsky, a capacidade humana de fazer relaes, planejar, comparar, lembrar supe um
processo de representao mental que substitui o real e possibilita ao homem libertar-se das
limitaes do aqui e agora. Essas representaes so mediadas pelos signos internalizados,
que sustentam a relao social por permitir os significados compartilhados e, portanto, a
comunicao entre as pessoas. Ao longo da histria da humanidade, as representaes da
realidade se constituem em sistemas simblicos transgeracionais, em constante
transformao.
Pelo processo de interiorizao, as Funes Psicolgicas Superiores que se constroem no
plano intersubjetivo (interaes sociais, atividades externas) so internalizadas para constituir
o funcionamento intrapsicolgico, intrasubjetivo de cada um. Essa reconstruo interna no
uma mera cpia do externo, mas uma apropriao pessoal das referncias socioculturais. A
autorregulao, fundamento do ato voluntrio, nasce na internalizao dos processos que as
crianas vivem com os limites e interpretaes que os representantes do seu meio
sociocultural (os pais, os professores...) colocam nas suas interaes. Ou seja, o
funcionamento no plano intersubjeitovo permite criar o funcionamento interno, pessoal.
De acordo com Vygostky (1987), os adultos que cuidam de um beb no lhe
proporcionam apenas cuidados fsicos, mas colocam sobre ele certas
representaes sociais (imagens, ideias, expectativas) que o introduzem no
mundo da cultura. Se o beb nasce num mundo simblico, em que os
significados vo sendo usados pelos indivduos para controlar seu meio
ambiente e a si prprios, na interao com os outros membros da sua
cultura e com os meios de comunicao que ele, posteriormente, pode
escolher entre diferentes modos de comportamento, construindo novos
modos de ao. Paulatinamente, a criana vai construindo significados,
conhecimentos, valores, num dilogo com ela mesma, com o outro e com o
mundo... (MEIER & GARCIA, 2007: 59)
44
A linguagem humana fundamental nesse processo de constituio do sujeito, tendo duas
funes bsicas: o intercmbio social e a organizao do pensamento: ... a linguagem
simplifica e generaliza a experincia, ordenando as instncias do mundo real em categorias
conceituais cujo significado compartilhado pelos usurios dessa linguagem. (OLIVEIRA,
1992a: 27). Os conceitos refletem os atributos - necessrios e suficientes - selecionados pelos
diferentes grupos sociais para defini-los. So, portanto, objetos da cultura.
Os conceitos cotidianos ou espontneos so internalizados no decorrer das atividades da
pessoa no seu dia a dia, em suas relaes sociais. J os conceitos cientficos so parte de
sistemas organizados de conhecimentos, adquiridos por meio de situaes formais de ensino.
O conceito cotidiano impregnado de experincias, de situaes vividas pelo sujeito que no
tem, necessariamente, conscincia desse conceito a ponto de defini-lo por meio de palavras.
Dessa forma, os conceitos cientficos devem implicar em processos metacognitivos, na
organizao dos pensamentos em sistemas conscientes e controle deliberado que possam
explicar os conceitos espontneos.
Ao forar sua trajetria para cima, um conceito cotidiano abre o caminho
para um conceito cientfico e seu desenvolvimento descendente. Cria uma
srie de estruturas necessrias para a evoluo dos aspectos mais primitivos
e elementares de um conceito, que lhe do corpo e vitalidade. Os conceitos
cientficos, por sua vez, fornecem estruturas para o desenvolvimento
ascendente dos conceitos espontneos da criana em relao conscincia e
ao uso deliberado. (VYGOTSKY, 1987: 93-94)
Vygotsky distingue dois aspectos das palavras que compem a linguagem: o significado
propriamente dito e o sentido. O significado diz respeito ao uso compartilhado da palavra,
que lhe concerne um ncleo relativamente estvel para que as pessoas que compartilham a
lngua possam compreend-la. J o sentido refere-se ao que a palavra significa para cada
indivduo, diz respeito ao contexto pessoal de uso da palavra e s vivncias afetivas que a
45
envolvem. O sentido da palavra liga seu significado objetivo ao contexto de uso da lngua e
aos motivos afetivos e pessoais dos seus usurios. (OLIVEIRA, 1992b: 81)
Assim, o autor relaciona o pensamento e a linguagem com as emoes e os valores, expressos
na maneira como cada um atribui sentido pessoal aos elementos da cultura. Ou seja, o
sentimento e a emoo so instrumentos mediadores para que o indivduo possa interagir no
mundo externo, a caminho da construo seu mundo interno.
Segundo Vygostky (1991), o brincar uma atividade rica em momentos emocionais.
Brincando, a criana cria situaes de forma a atribuir sentidos aos objetos, presentes em seu
dia a dia, com o propsito de favorecer seus desejos e necessidades de forma imediata. A
emoo, no plano imaginrio do brincar, uma experincia que propicia criana
compreender aquilo que caracteriza os personagens, as relaes sociais e as regras de
comportamento, ou seja, colabora para que a criana possa elaborar os contedos, recebidos
do grupo social, sobre a cultura que a cerca. O sentimento e a emoo, para Vygotsky,
fornecem a motivao, so a mola propulsora do desenvolvimento das funes psicolgicas
superiores e da aprendizagem.
Para compreender como o ser humano aprende, o conceito de Zona de Desenvolvimento
Proximal (ZDP) central na teoria do autor. A ZDP diz respeito a funes ainda emergentes
no sujeito, a capacidades e habilidades que ainda precisam do apoio de um outro mais
experiente. definida como a distncia entre aquilo que j constitui o funcionamento interno
(nvel de desenvolvimento real) e aquilo que a pessoa j tem condies de fazer desde que
conte com a ajuda de algum mais experiente, antes que o desenvolvimento se consolide e o
sujeito adquira a independncia (nvel de desenvolvimento potencial).
H duas implicaes desse conceito que concernem ao tema que estamos desenvolvendo: a
avaliao das condies atuais cognitivas e socioemocionais com que o aluno comparece
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relao de ensino-aprendizagem e as aes que o educador deveria realizar para atuar na
ZDP e promover o desenvolvimento do aprendiz. Segundo o autor, uma ao educativa s
boa quando faz progredir o estado atual do desenvolvimento para um patamar superior, ou
seja, quando desperta e pe em marcha as funes que esto em processo de maturao, na
ZDP.
3.4. Henri Wallon (1879-1962)
Wallon, psiclogo, mdico e filsofo francs, tem uma contribuio fundamental ao tema das
habilidades socioemocionais: em sua obra, este autor aprofunda-se nas interrelaes entre os
campos funcionais da motricidade, da inteligncia e da afetividade.
Em 1947, Wallon coordenou o projeto Reforma do Ensino Francs, conhecido como
Langevin-Wallon, calcado na concepo de que a escola deve proporcionar a formao
integral dos estudantes: intelectual, afetiva e social. Na poca, era absolutamente
revolucionria a ideia de que no s o cognitivo, mas tambm o corpo e as emoes das
crianas comparecem sala de aula e devem ser consideradas.
Para Wallon, o sujeito constri-se nas suas interaes com o meio, de modo que deve ser
compreendido, em cada fase do desenvolvimento, no sistema complexo de relaes que
estabelece com o seu ambiente. Contra simplificaes, aponta a importncia de se estudar a
criana a partir de uma perspectiva global e dinmica, multifacetada e original, que possa
apreender sua real complexidade. Coerente com seu embasamento epistemolgico no
materialismo dialtico, o autor ope-se aos reducionismos e encara as contradies como
inerentes realidade.
(...) o materialismo dialtico, ao coordenar pontos de vista apresentados sob forma
exclusiva e absoluta pelas diferentes doutrinas filosficas, a nica abordagem que
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permite a superao das antinomias que entravam a objetiva compreenso da
realidade. Buscando a compreenso dos fenmenos a partir dos vrios conjuntos dos
quais participa e admitindo a contradio como constitutiva do sujeito e do objeto,
este referencial apresenta-se como particularmente fecundo para o estudo de uma
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