ZBIGNIEW HERBERT O presente que cega
ZBIGNIEW HERBERT
O presente que cega
ZBIGNIEW HERBERT
O presente que cega
versões publicadas na ítaca 3
tradução do polaco deIzabela Stapor, José Pedro Moreira e Tatiana Faia
posfácio de Ana María Sánchez Tarrío
Zbigniew HerbertO Presente que Cega
tradução: Izabela Stapor, José Pedro Moreira e Tatiana Faia
posfácio: Ana María Sánchez Tarríofotografias: Ricardo Ávilarevisão: Hanna Jakubowicz Batoréo© Katarzyna Herbertowa, Ana María Sánchez
Tarrío, Izabela Stapor, José Pedro Moreira, Tatiana Faia, Edições Artefacto
Agio cadernos de ideias, textos & imagenshttp://revistaagio.blogspot.pt/
Sociedade de Instrução Guilherme CossoulAv. D. Carlos I, n. 61, 1.º A1200 – 647 [email protected]
índice
de Torrente de Luz, 1956A Apolo...................................................................................Sobre Tróia..............................................................................A Marco Aurélio......................................................................Nikê que hesita........................................................................Uma balada para que não pereçamos.......................................
de Estudo de Objecto, 1961Apolo e Mársias.......................................................................
de Inscrição, 1969Lugar.......................................................................................Porquê os Clássicos..................................................................
de O Senhor Cogito, 1974O Sr. Cogito e a pérola............................................................História do Minotauro............................................................O velho Prometeu...................................................................Calígula...................................................................................O Sr. Cogito discorre sobre a posição recta..............................
posfácioAna María Sánchez Tarrío, «O presente que cega»...................
p. 09p. 11p. 13p. 14p. 16
p. 17
p. 20p. 21
p. 23p. 24p. 25p. 26p. 28
p. 33
9 | Torrente de Luz, 1956
A Apolo
1
Ia inteiro no rumor das vestes de pedradava sombra láurea e brilho
respirava suavemente como as estátuase ia como uma flor
ouvindo a sua própria cançãoerguia a lira à altura do silêncio
submerso em si próprioas pupilas brancas como a corrente de um rio
petrificadodesde as sandáliasaté à fita nos cabelos
eu inventava os teus dedos confiava nos teus olhos
sem cordas o instrumentoas mãos sem dedos
devolve-meo grito jovemas mãos estendidase a cabeça minhaadornada com a colorida coroa do encanto
devolve-me a esperançaó branca cabeça silenciosa
10 | Torrente de Luz, 1956
silêncio – o pescoço fendidosilêncio – o canto quebrado
2
No primeiro fundo da juventudenão tocarei eu mergulhador paciente
agora apenas pescotorsos salgados feitos em estilhaços
Apolo aparece-me em sonhoscom o rosto do persa morto
os vaticínios da poesia são enganadorestudo era diferente
diferente foi o fogo do poema diferente foi o fogo na cidade os heróis não regressaram da expedição não houve heróis salvaram-se os indignos
procuro a estátua submersa na juventude
ficou apenas o pedestal vazioo traço da mão buscando a forma
11 | Torrente de Luz, 1956
Sobre Tróia
1
Tróia ó Tróiaum arqueólogopor entre os dedos deixará correr a tua cinzae um incêndio maior do que a Ilíadapara as sete cordas –
demasiado escassas as cordasnecessário um coroum mar de lamentosum estrépito de montanhasuma chuva de pedras
– como conduzir a partir das ruínas a gente como conduzir a partir dos poemas o coro –
pensa o poeta perfeito como uma estátua de sal dignamente mudo – o Canto sairá ileso Saiu ileso de uma asa de fogo no céu límpido
Sobre as ruínas nasce a luaTróia ó Tróia Está calma a cidade
12 | Torrente de Luz, 1956
O poeta luta com a própria sombraO poeta grita como um pássaro no vazio
A lua repete a sua paisagemum metal suave nos escombros
2
Caminhavam pelos desfiladeiros de ruas do passadocomo por um mar vermelho de destroços
e o vento levantava o pó vermelhofielmente pintava o ocaso da cidade
Caminhavam pelos desfiladeiros de ruas do passadobafejavam em jejum na madrugada gelada diziam: longos anos passarãoantes que aqui se construa a primeira casa
caminhavam pelos desfiladeiros de ruas de outrorapensavam que viriam a encontrar uma pista
na harmónicatoca o aleijadoacerca das tranças do salgueiroacerca da rapariga
o poeta está caladochove
13 | Torrente de Luz, 1956
A Marco Aurélio
Boa noite Marco apaga a luze fecha o livro Já sobre a cabeçacresce o lamento de prata das estrelasé o céu que fala em outra línguaé o grito bárbaro do terrorque o teu latim desconheceé o medo eterno o medo sombriocomeça pela frágil terra humana
a bater-se E vencerá Ouves o rumoré a maré alta Destruirá as tuas letrasa corrente imparável dos elementosaté ruírem as quatro paredes do mundoe para nós – tremer ao ventoe de novo soprar as cinzas agitar o étermorder os dedos procurar palavras vãse arrastar connosco a sombra dos mortos
melhor é então Marco que te despojes da paze ergas a mão sobre a escuridadeque trema ao bater nos cinco sentidoscomo numa lira débil o universo cegohão-de trair-nos o universo a astronomiaos cálculos das estrelas e a sabedoria da relvae a tua grandeza demasiado grandee o meu choro Marco desamparado
Para o Professor Henryk Elzenberg
14 | Torrente de Luz, 1956
Nikê que Hesita
Nikê é mais belaquando hesitaa mão direita bela como uma ordemapoia-se no arporém as asas tremem
pois ela vêum jovem solitárioque segue o rastode um carro de guerrapor uma estrada cinzenta numa paisagem cinzentade rochas e escassos arbustos de zimbro
aquele jovem morrerá em breveagora mesmo o prato da balança do seu destinopende violentamentepara terra
Nikê sente um enorme desejo dese aproximare beijar-lhe a testa
mas teme queele que não conhece aindaa doçura do carinhoconhecendo-apudesse fugir como os outrosdurante esta batalhaentão Nikê hesitae por fim resolveficar na posiçãoque lhe ensinaram os escultores
15 | Torrente de Luz, 1956
envergonhando-se muito por este momento de comoção
sabe bemque amanhã de madrugadahão-de encontrar este jovemcom o peito abertoos olhos fechadose com o amargo óbolo da pátriadebaixo da língua rígida
16 | Torrente de Luz, 1956
Uma balada para que não pereçamos
Aqueles que navegaram de madrugada mas nunca mais voltarãona onda deixaram o seu traço –
no fundo do mar cai então uma conchabela como lábios petrificados
estes que andavam pelo caminho de areiamas não chegaram às portadasembora avistassem já os telhados –
e no sino do ar encontram abrigo
e aqueles que só deixam órfãoum quarto gelado alguns livrosum tinteiro vazio uma folha branca –
na verdade não morreram inteiramente
por bosques de papel de parede avança o seu sussurrono tecto mora uma cabeça plana
de ar água cal terrafizeram o seu paraíso o seu anjo de ventoirá com a mão fazer pó dos seus corposvãodispersar-se pelos prados deste mundo
17 | Estudo de Objecto, 1961
Apolo e Mársias
o exacto duelo entre Apoloe Mársias(o ouvido absolutocontra as escalas imensas)dá-se ao anoitecerquando como já sabemosos juízes deram a vitória ao deus
fortemente amarrado à árvoreperfeitamente arrancada a peleMársiasgritaantes de o grito alcançaras suas altas orelhas descansa à sombra deste grito
agitado por um arrepio de repugnânciaApolo limpa o seu instrumento
só em aparênciaa voz de Mársiasé monótonae composta por uma vogal A
na verdadeconta Mársiasa incomensurável riquezado seu corpo
18 | Estudo de Objecto, 1961
calvas montanhas do fígadodesfiladeiros brancos de alimentossussurrantes bosques do pulmãodoces colinas de músculosarticulações fel sangue arrepioinvernoso vento de ossospor sobre o sal da memória
agitado por um arrepio de repugnânciaApolo limpa o seu instrumento
agora ao coro junta-se o monte de orações de Mársias essencialmente é o mesmo Asó que mais profundo com a ferrugem adicionada
isto ultrapassa as capacidades do deus de nervos de fibra sintética
pela álea de gravilhade buxo plantadaafasta-se o vencedorpensandose do uivo de Mársiasnão nasce com o tempoo novo ramoda arte – digamos – concreta
de súbitoaos pés cai-lheum rouxinol petrificado
vira a cabeçae vê
19 | Estudo de Objecto, 1961
que a árvore a que estava amarrado Mársiasestá cinzenta
totalmente
20 | Inscrição, 1969
Lugar
regressei anos depoistalvez demasiado saciado
queria ver o lugar
as colinas eram mais pequenasnas valas de salvaçãocorria água castanha
a relva no geral a mesmaidentificou a flor de angélica
a paisagem minguouera meramente normalpor trás de tanto medopor trás de tanta esperança
os pássaros esvoaçavamdos ramos mais baixospara os ramos mais altos
por isso nem neles podiaprocurar a certeza
21 | Inscrição, 1969
Porquê os Clássicos
Para A. H.
1
no livro quarto da Guerra do PeloponesoTucídides conta a história da sua expedição fracassada
entre longos discursos de comandantesbatalhas cercos pestesdensa rede de intrigasesforços diplomáticoseste episódio é uma agulha de pinheirona floresta
a colónia ateniense de Anfípoliscaiu nas mãos de Brásidasporque Tucídides tardou com o auxílio
por isto pagou à sua cidadecom o exílio perpétuo
os exilados de todos os temposconhecem bem este preço
2
os generais das últimas guerrasse lhes acontece caso parecidogemem de joelhos diante dos descendentesapregoam o seu heroísmoe inocência
22 | Inscrição, 1969
culpam subordinadoscolegas invejososventos adversos
Tucídides diz apenasque tinha sete naviosque era invernoe que foi rápido a navegar
3
se o tema da artefor um jarro quebradouma pequena alma quebradacheia de pena de si própria
o que ficará depois de nósserá como o choro de namoradosnum pequeno hotel sujoquando o papel de parede madruga
23 | O Senhor Cogito, 1974
O Sr. Cogito e a Pérola
Por vezes o Sr. Cogito recorda, não sem comoção, a sua marcha ado-lescente rumo à perfeição, esse juvenil per aspera ad astram. Ora suce-deu-lhe um dia, ao correr para as aulas, uma pedrinha entrar-lhe para o sapato. Meteu-se maliciosamente entre a pele e a peúga. O bom-senso ordenava-lhe que se livrasse do intruso, mas o princípio de amor fati – pelo contrário – a suportá-lo. Optou pela segunda, resolução heróica. A princípio não parecia grave, apenas um incómodo e nada mais, no entanto, depois de algum tempo, no campo de consciência apareceu o calcanhar, e isto no momento em que o jovem Cogito tentava laborio-samente alcançar o pensamento do professor que desenvolvia o tema da ideia em Platão. O calcanhar crescia, inchava, pulsava, de rosa pálido tornava-se púrpura como o sol poente e afastava da sua mente não só a ideia de Platão mas qualquer outra ideia. À noite, antes de se entregar ao sono, sacudiu da peúga o corpo estra-nho. Era um pequeno grão de areia, frio e amarelo. O calcanhar, por sua vez, estava inchado, quente e negro de dor.
24 | O Senhor Cogito, 1974
História do Minotauro
Na ainda não decifrada escrita do Linear A é contada a verdadeira his-tória do príncipe Minotauro. Ele era – ao contrário de boatos posteriores – o verdadeiro filho do rei Minos e de Pasífae. O rapaz nasceu saudável, porém com uma cabeça anormalmente grande – que os adivinhos inter-pretaram como um sinal de futura sabedoria. Na verdade o Minotauro crescia forte, um pouco melancólico – um tonto. O rei escolheu para ele a carreira de sacerdote. Os sacerdotes, porém, explicaram que não podiam aceitar o anormal do príncipe, pois isto podia diminuir a já enfraquecida – pela invenção da roda – autoridade da religião. Minos mandou então vir Dédalo, o engenheiro, que estava na moda na Grécia – o inventor do estilo de arquitectura pedagógica. Assim foi criado o labirinto. Por meio do seu sistema de corredores, desde mais simples até cada vez mais complexos, por meio da variação de níveis e de degraus de abstracção, era suposto iniciar o príncipe nos princípios do pensamento correcto. O infeliz príncipe errava então, empurrado por preceptores, pelos cor-redores da indução e da dedução, olhava com olhar vazio para os frescos ideológicos. Não percebia nada de nada. Esgotadas todas as medidas, o rei Minos resolveu livrar-se da vergonha da sua linhagem. Mandou vir (também da Grécia, famosa por ter muita gente talentosa) o hábil Teseu. E Teseu matou o Minotauro. Neste ponto o mito e a história estão de acordo. Pelo labirinto – agora inútil cartilha – regressa Teseu trazendo a enorme cabeça ensanguentada do Minotauro de olhos esbugalhados, nos quais pela primeira vez começou a despontar a sabedoria – que a experi-ência normalmente transmite.
25 | O Senhor Cogito, 1974
O Velho Prometeu
O velho Prometeuescreve as suas memórias.Tenta nelas explicaro lugar do heróino sistema da necessidade,reconciliar conceitos contráriossobre a existência e o destino... O fogo crepita alegre na lareira,pela cozinha anda a esposa – moça exaltadaque não lhe pode dar um rapaz, mas consola-aa ideia de que mesmo assim ficará na história.Prepara-se o jantar, a que virão o pároco local e o farmacêutico,agora o mais próximo amigo de Prometeu.
O fogo crepita alegre na lareira,na parede uma águia empalhada e a carta de agradecimento
do tirano do Cáucaso,que graças ao invento de Prometeuconseguiu incendiar a cidade revoltosa.
Prometeu ri baixinho.É agora a única forma que lhe restade mostrar o seu desacordo com o mundo.
26 | O Senhor Cogito, 1974
Calígula
Lendo velhas crónicas, poemas e vidas, o Sr. Cogito experimenta por vezes uma sensação de presença física de pessoas há muito falecidas
Diz Calígula:
de entre todos os cidadãos de Romaamei apenas umIncitato – o cavalo
quando entrou no senado a irrepreensível toga do seu pêlobrilhava imaculadamente entre covardes assassinos orlados de púrpura
Incitato era só virtudesnunca discursavanatureza estóicacreio que de noite no estábulo lia os filósofos
ameio-o tanto que um dia resolvi crucificá-lomas a sua nobre anatomia não o permitiu
aceitou com indiferença a dignidade de cônsulexercia a autoridade da melhor forma possívelisto é não a exercia de todo
não se pôde convencê-lo a manter relações amorosas estáveiscom a minha querida esposa Cesóniae assim tristemente não surgiu uma linhagem de Césares-centauros
por isso Roma caiu
27 | O Senhor Cogito, 1974
decidi proclamá-lo um deusmas no nono dia antes das calendas de FevereiroQuereia Cornélio Sabino e outros idiotas frustraram asminhas piedosas intenções
recebeu com tranquilidade a nova da minha morte
expulsaram-no do palácio e condenaram-no ao exílio
suportou este golpe com dignidade
morreu sem descendênciaabatido por um rude açougueiro do lugarejo de Âncio
sobre o destino póstumo da sua carneTácito cala-se
28 | O Senhor Cogito, 1974
O Sr. Cogito discorre sobre a posição recta
1
Em Úticaos cidadãosnão querem defender-se
na cidade eclodiu a epidemiado instinto de sobrevivência
o templo da liberdademudaram-no para a feira da ladra
o senado delibera sobrecomo não ser senado
os cidadãosrecusam defender-sefrequentam cursos intensivospara aprender a cair de joelhos
passivamente esperam o inimigoescrevem discursos submissosenterram o seu ouro
cosem os novos estandartesinocentemente brancosensinam as crianças a mentir
escancararam as portaspor onde agora entrauma coluna de areia
29 | O Senhor Cogito, 1974
além disso como semprecomércio e copulação
2
O Sr. Cogitoqueria ficarà altura da situação
isto significaolhar o destinodirectamente nos olhos
como Catão de Úticavide as Vidas
não tem porémuma espadanem oportunidadede enviar a família para lá do mar
espera então como os outrosdeambulando pelo quarto insone
apesar das recomendações dos estoicosqueria ter um corpo de diamantee asas
olha pela janelacomo o sol da Repúblicacaminha para o ocaso
restou-lhe poucoverdadeiramente sóa escolha da posiçãoem que quer morrer
30 | O Senhor Cogito, 1974
a escolha do gestoa escolha da última palavra
por isso não vaipara a camapara evitarsufocar no sono
queria até ao último instanteestar à altura da situação
o destino olha-o nos olhosno lugar onde antes estavaa sua cabeça
33 | Ana María Sánchez Tarrío
O presente que cega
Eu vivi estendidoentre o passado e o momento presentecrucificado muitas vezes pelo tempo e pelo espaço Z. Herbert, Rovigo (1992)
Após aquela explosão de 1939 – e a destruição de Lvov, do seu lugar de nascimento – seguiu-se uma segunda forma de devastação, mais vio-lenta e definitiva, a do tempo estilhaçado, e, em seguida, a incapacidade de focar o próprio tempo. Contra esta haveria de levantar Zbigniew Herbert o seu imponente edifício de versos, enfrentando a perda maior que a Cultura Ocidental herdara da Segunda Guerra Mundial. Ao contrário de alguns dos ensaístas mais brilhantes desta perda, como George Steiner ou Hanna Arendt, o poeta polaco (1924-2008) – que também padeceu na própria carne as consequências da História – não perdeu tempo na análise da Culpa da Cultura Europeia. Esta classe de lamentação era alheia a um espírito que não se deixou iludir: pôr em causa a cultura herdada, afundar a fratura, daria lugar a uma arte que não mais seria do que essa «pequena alma quebrada, cheia de pena de si própria» do poema «Porquê os Clássicos», síntese bastante exacta do que haveria de ser uma parte considerável da poesia publicada na Europa durante o século xx até os nossos dias. Os melhores autores que escreviam sob os regimes da órbita soviética não podiam perder tempo em subtilezas de escalpelo procurando a génese e as formas desta ensurdecedora Culpa. Porque ela, a Cultura Ocidental, significava para eles o ventre materno que todos os órfãos idealizam, o elo umbilical com a Unidade de Civilização, que a sua arte exigia e que lhes era escamoteada pelos imperativos didácticos uniformizadores do Socialismo.
34 | o presente que cega
A resposta de Osip Mandelstam, – a quem pediram em certa ocasião uma definição do acmeísmo, movimento literário a que pertencia – a «nostalgia de uma cultura mundial» situa-nos adequadamente na quali-dade da poesia de Herbert: a excavação intensa na tradição ocidental, e em particular na tradição clássica, à procura de sinais, de mestres como Marco Aurélio, que ajudam «a apagar a luz» antes da insónia («Para Marco Aurélio»), de juízes mais altos. O leitor de Herbert é obrigado a conhecer ou reconhecer as aveni-das principais e secundárias do mapa de civilização que estruturou a Europa. Os seus poemas permitiram-me, sem qualquer classe de estri-dência ou exagerado entusiasmo, traçar uma geografia fundamental dos principais autores da cultura grega e latina: de Homero a Eurípides, de Tucídides a Tácito, de Cícero a Marco Aurélio e constantemente Ovídio. Permitiram-me deixar de os compreender tão adequadamente à luz das suas misérias e do seu contexto, e aprofundar em detalhes da sua in-actu-alidade – cada vez mais clara no nosso presente cego de trevas pós-moder-nas –, recuperar, enfim, uma leitura mais livre, muito antes, muito longe da pesada Culpa Ocidental que nos ensinaram a carregar. Sem casa no gigantesco quarto fechado da escala pan-soviética1, rio desviado do seu leito pela violência de uma época poderosa, como a Anna Akhmátova da Quinta Elegia do Norte (escrita em Leningrado em 1945), conhece o terror de não reconhecer as próprias margens, e procura no «diálogo com os mortos» (que descreve Heiner Müller) um mecanismo de sobrevivência. Um elo luminoso parece conectar a evocação da tradição clássica e a descrição da orfandade dos escritores malditos no universo pan-soviético: são «as Eurídices rodopiando» e «o touro levando Europa pelas ondas» que emitem um funesto agoiro sobre o futuro da pátria no poema Para Osip Mandelstam de Anna Akhmátova, em que descreve a angústia do instante daquela noite de Vorónej em que Mandelstam foi preso. Esta poesia, a do poeta homérico russo, Orfeu sacrificado (em dramático vaticínio da prematura e iminente morte de Mandelstam nos campos de Sibéria) e a da Cassandra russa que sobreviveu a todos para poder
1 Josif Brodsky, «El hijo de la civilización», Menos que uno, trad. R. Verdagué Costa y Esteban Riambau Saurí, Barelona, Versal, 1987, p.32.
35 | Ana María Sánchez Tarrío
continuar o seu testemunho, tornou-se «voz da lira misteriosa/ aos prados de além-túmulo visitando» dos versos finais de esta magnífica epístola poética2. Esta poesia reiterava uma e outra vez a individualidade de Orfeu, dilacerada pelo corpo colectivo das Bacantes em fúria, e os mitos clás-sicos tornavam-se uma linguagem cifrada e universal que denunciava ao mundo a nova irmandade dos órfãos, separados e torturados, descrita por Marina Tsvetáeva no seu poema «Para Boris Pasternak». Perante a fortaleza nova do classicismo das suas obras, despedaçam-se categorias de ancoragem no pasado como conservadorismo ou elitismo, categorias que com demasiada frequência, e nem sempre injustamente, têm acompanhado a recepção da tradição clásica no Ocidente. Todos eles são de facto Orfeus que desceram à procura do Cultura Europeia ferida de morte. Alguns, como Osip Mandelstam, não conse-guiram regressar. Herbert regressou. Porque «tinha dado a sua palavra»:
… mas o tempo explodiujá não havia antesjá não havia depoisno presente que cegahavia que escolherentão dei a minha palavra
uma palavra – corda ao pescoçopalavra derradeira3.
O pensamento de Herbert foi transformado pelos clássicos, e será justo dizer que Herbert transformou para sempre Marco Aurélio, Tito Lívio, Tucídides... Dotou-os por vezes duma dimensão moral que lhes não pertencia por completo, e que habitava nele, forjada na experiên-cia quotidiana das misérias e as humilhações do Mal contemporâneo («Porquê os clássicos»). A marcada modulação satírica impõe embora
2 A. Akhmátova, «Para Osip Mandelstam», Só o sangue cheira a sangue, trad. Nina e Filipe Guerra, Lisboa, Assirio & Alvim, 2000, pp. 52-55.3 Tradução do original polaco por Izabela Stapor.
36 | o presente que cega
distância, ponderação crítica perante o material clássico («Calígula», «O divino Cláudio», «As Metamorfoses de Tito Lívio») e responde, por outro lado, à sua inserção no ponto de vista dos bárbaros, dos vencidos, a sua genealogia predilecta de antepassados, do ponto de vista da nacionalidade mas sobretudo da irmandade moral. O material clássico concedeu-lhe, por exemplo, pensar «o Heróico» num tempo, o da geração que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, marcado pela experiência da militarização fascista da heroicidade e os abusos totalitários do espírito de sacrifício individual. Tempos em que o conceito de herói era mal-visto na literatura, que se ocupava preferencial-mente dos anti-heróis, salvados pela ironia, pela resistência passiva, como o bravo Soldado Svejk de Jaroslav Hasec, ou então enfrentava a descons-trução solene do próprio conceito do heróico, como o Poema sem herói de Akhmátova4. Herbert retira também do seu tempo estilhaçado o ponto de vista irónico, sem mergulhar porém no niilismo ou no relativismo. Trabalha contra a arte de um século que parece não ter voz já para o indivíduo que luta contra o seu tempo e por ele se imola. Ora o sacrifício inerente ao conceito do heróico é um tema principal do seu classicismo. Compartilha todavia com o seu tempo a impossibilidade da épica, descrita no seu poema «Tróia»: o silêncio de deserto que pesa sobre as ruínas de Tróia/Varsóvia/Lvov aniquiladas, o opressivo silêncio total que segue à matança colectiva deixa mudo o poeta, porque foi testemunha. A guerra constitui um assunto primordial no seu imaginário, mais focada, porém, no ponto de vista da Tragédia, do que da Épica: isto é, da pers-pectiva dos sobreviventes, das vítimas. A tragédia antiga proporciona-lhe também a focagem de outra das suas obsessões: a relação entre o indiví-duo e a lógica do Estado moderno, do Estado totalitário que conhece desvios assassinos e demagogias impensáveis para Sófocles e Eurípides. O silêncio descrito em «Tróia» não deixou de pairar sobre a terra até o nosso tempo, aparentemente incapaz da epopeia. A moralidade define também a sua Poética, uma estilística marcada pelo princípio clássico da ordem e do sacrifício, o labor limae. Não se
4 A. Akhmátova, Prosas escolhidas e Poema sem herói, trad. Nina e Filipe Guerra, Lisboa, Relógio d’Água, 2001, pp. 208-276.
37 | Ana María Sánchez Tarrío
concentrou porém na imitação directa da disciplina dos moldes métricos, essas magnitudes espirituais que não podem ser substituídas por nada, descritas por Brodsky a propósito de um Mandelstam que encontrou, nos seus alexandrinos fortemente cessurados, uma expressão russa para o hexâmetro homérico. A consciência vigilante de Herbert observa-se antes na elevada dose de autopoética dos seus poemas, e sobretudo na batalha evidente por purificar o seu estilo de todo o engano, de toda a inflação verbal, de toda a impostura erudita, como nos ajudam a compreender Izabela Stapor, José Pedro Moreira e Tatiana Faia com a sua tradução. Mas a leitura dos clássicos de Herbert revela-se mais vasta do que esta disciplina e esta ética. Como a de Mandelstam e a do seu exegeta exemplar, Josif Brodsky, é uma leitura radicalmente derivada do amor mais arrebatador, o amor de Dante por Vergílio: Amor que nos submete e acaba por nos transformar.
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