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DADO COLETADO, SUJEITO FABRICADO:DROGAS E OBJETIVIDADE EM UM
EMPREENDIMENTO DE PESQUISA MDICO-
CIENTFICO1
EDUARDO DOERING ZANELLA2
INTRODUO
O presente artigo prope uma interseco entre uma antro-pologia da
cincia e a temtica das drogas em nossa sociedade contempornea.
Trata-se de abordar, etnograficamente, as ma-neiras pelas quais as
cincias da sade em geral e aquelas do campo mdico em particular
arena de onde provm os dis-cursos aos quais se confere, na
atualidade, maior legitimidade para discorrer sobre as drogas e
sobre como devemos lidar com o seu consumo apreendem estas
substncias na qualidade de objetos de estudo cientfico.
1 Agradeo aos membros que formaram a banca examinadora na ocasio
da defesa da dissertao de mestrado que deu origem a este artigo,
cujas contribuies foram fundamentais para a sua elaborao: Cludia
Fonseca, Emerson Giumbelli, Fabola Rohden (orientadora) e Frederico
Viana Machado. Tambm foram importantes para o aperfeioamento deste
texto os pareceristas e a revisora tcnica da revista Ps - Re-vista
Brasiliense de Ps-Graduao em Cincias Sociais.
2 Mestre em Antropologia Social pelo Programa de Ps-graduao em
Antropolo-gia Social da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul/UFRGS. E-mail: [email protected]
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OBJETIVIDADE...Eduardo Doering Zanella
Para isto, apresenta-se uma descrio das prticas de coleta de
dados3 de um estudo em especfico. Trata-se de uma pesquisa
desenvolvida por um coletivo de cientistas especializados no tema
lcool e drogas4, realizada com pacientes internados para tratamento
de dependncia qumica em um hospital geral. Ob-jetiva-se compreender
como os procedimentos que constituem este momento da atividade
cientfica, ao produzirem as infor-maes que sero armazenadas e
posteriormente analisadas, fa-bricam os sujeitos participantes da
pesquisa, construindo assim uma objetividade prpria e especfica.
Trata-se de elaborar uma narrativa sobre a produo de dados em
pesquisas mdico-cien-tficas sobre drogas, de modo a compreender
tanto as transfor-maes que este processo implica para os sujeitos
pesquisados quanto o ideal de objetividade pretendido nesta
modalidade de produo de conhecimento.
O coletivo de pesquisadores em questo, junto ao qual desen-volvi
trabalho de campo etnogrfico, o Centro de Pesquisa em lcool e
Drogas (CPAD), vinculado ao Departamento de Psiquia-tria da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e localizado no Hospital
de Clnicas de Porto Alegre (HCPA). Este grupo de pesquisa envolve
uma rede composta por cerca de 40 pesquisa-dores5, majoritariamente
psiquiatras e psiclogos, embora haja tambm a presena de
profissionais com formao nos campos
3 Utilizo a expresso coleta de dados em itlico pois este um
termo especfico do universo de pesquisa onde realizei o trabalho de
campo para a elaborao deste arti-go. A nfase em itlico objetiva
explicitar que esta no uma categoria analtica, mas sim uma
categoria descritiva, problematizada na anlise aqui
empreendida.
4 Droga uma expresso polissmica, que opera de diferentes formas
em distintos registros, de tal modo que definir o que entra e o que
sai desta categoria um exerccio fundamentalmente poltico. Apesar de
reconhecer a ambivalncia do termo, ao longo deste artigo, no o
menciono com aspas. Tal referncia levaria problematizao de outras
categorias de substncias, tais como lcool e medicamentos, o que
escapa ao escopo do presente trabalho. Deste modo, explicito que
neste texto o termo droga designa aquelas substncias de uso ilcito
maconha, crack, cocana, ecstasy etc. , pois esta a classificao que
opera no coletivo de pesquisadores junto ao qual de-senvolvi o
presente estudo, o Centro de Pesquisa em lcool e Drogas.
5 Em seus projetos mais amplos, geralmente desenvolvidos em
cooperao com outras instituies de pesquisa e financiamento, o CPAD
chega a envolver redes com-postas por 100 ou at 200
pesquisadores.
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de biomedicina, enfermagem e assistncia social. Trata-se de um
centro de pesquisa com relevante participao no campo das cincias da
sade que estuda lcool e drogas o que se ex-pressa, por exemplo, nos
prmios recebidos por seus integran-tes em funo de trabalhos
acadmicos desenvolvidos na rea6.
Os projetos de pesquisa do CPAD so desenvolvidos principal-mente
nos campos da psiquiatria, epidemiologia, gentica, neu-rocincias e
toxicologia. Deste modo, so diversos os objetivos destas pesquisas
com relao s drogas, tais como: aferir asso-ciaes entre comorbidades
psiquitricas e o consumo destas substncias; estimar as suas relaes
com polimorfismos ge-nticos; definir padres de uso e perfis
sociodemogrficos para determinadas regies e populaes de
consumidores de drogas; validar instrumentos de pesquisa e de
avaliao clnica de usu-rios; indicar fatores de risco e custos
econmicos relacionados s prticas de uso de drogas; entre muitos
outros. Estas pesqui-sas so desenvolvidas com relao a variadas
substncias: lcool, crack, cocana, maconha, drogas sintticas (em
especial o ecstasy), havendo tambm investigaes sobre o consumo de
tabaco.
A expresso coleta de dados amplamente mobilizada nestes
es-tudos, em especfico, para aludir ao momento em que
question-rios, testes, entrevistas padronizadas, instrumentos de
extrao de material biolgico (basicamente sangue, saliva e urina) ou
psi-comtricos em geral so aplicados sobre os sujeitos
participantes
6 Em 2013, os integrantes do CPAD receberam trs congratulaes:
prmio Cyro Martins (melhor pster) na XI Jornada de Psiquiatria da
APRS (Associao de Psi-quiatria do Rio Grande do Sul), segundo lugar
na categoria pster no XXII Congresso da Associao Brasileira de
Estudos do lcool e Outras Drogas (ABEAD) e melhor apresentao oral
no XVIII Congresso Brasileiro de Toxicologia. Desde o ano de 2010,
os membros do centro de pesquisa ainda receberam as seguintes
premiaes: Prmio Professor Oswald Moraes Andrade (melhor trabalho
escrito), do XXVIII Congresso Bra-sileiro de Psiquiatria; Prmio
Volvo de Segurana no Trnsito, de 2010 (concedido pela companhia
fabricante de veculos sueca Volvo s melhores aes desenvolvidas para
segurana no trnsito); melhor pster no XIX International Council on
Alcohol, Drugs and Traffic Safety (ICADTS); melhor trabalho na XXV
Jornada Sul-Rio-Grandense de Psiquiatria Dinmica; melhor pster no
XIII Simpsio Internacional sobre Tratamento de Tabagismo (promovido
pela ABEAD); Prmio Denatran de Educao no Trnsito, de 2010; Meno
Honrosa no Prmio Cincia e Inovao em Psiquiatria, na Jornada do
Centro de Estudos Lus Guedes do ano de 2012.
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OBJETIVIDADE...Eduardo Doering Zanella
de uma dada pesquisa. Este um evento de suma importncia para os
estudos deste coletivo de cientistas, visto que nesta oca-sio em
que produzida a sua prpria matria-prima: os dados cientficos que
sero armazenados, analisados e inscritos sobre artigos, dissertaes,
teses e demais textos de cunho acadmico.
No presente artigo, irei me deter sobre as coletas de dados da
pesquisa Preditores clnicos, biolgicos e psicossociais de reca-da
precoce em usurios de crack, desenvolvido com pacientes usurios de
drogas em especfico, crack que se encontram internados na Unidade
de Adio do Hospital de Clnicas de Porto Alegre, submetidos a
tratamento para dependncia qumica. Este um projeto amplo, que
contava com o registro de mais de 200 e 60 entrevistas no incio do
ano de 2014, de modo que era conside-rado prioritrio na agenda de
pesquisa do CPAD.
Este estudo busca verificar as possveis associaes entre a
re-cada ao uso de drogas ou o abandono de tratamento, por parte dos
pacientes da Unidade de Adio do HCPA, com referncia a trs fatores:
clnicos e psicossociais (variveis demogrficas, co-morbidades
psiquitricas, transtornos de personalidade, escores de gravidade de
dependncia, impulsividade, vnculo parental, agressividade e
abstinncia); neurocognitivos (funes executivas e de controle
inibitrio); e biolgicos, em especfico as dosagens sricas de:
Neuropeptdeo Y (grupo de peptdeos que modulam a atividade do
sistema nervoso central, inibindo estresse e sinto-mas de
ansiedade), Brain Derived Neurotrophic Factor (marcador biolgico de
plasticidade cerebral) e Estresse Oxidativo (condio biolgica
caracterizada pelo desequilbrio entre a formao e a reduo de agentes
oxidantes do organismo).
Em resumo, os participantes da pesquisa so avaliados a partir
destes trs eixos: neurocognitivo, biolgico e clnico/psicossocial.
Trata-se de aplicar vrios instrumentos e realizar duas extraes de
sangue, com intervalo de 15 dias entre uma e outra, com os
pa-cientes. Em um segundo momento, verificado se os parmetros
obtidos esto ou no relacionados adeso/abandono de trata-mento ou
recada ao uso de drogas. Para isto, os instrumentos de pesquisa so
novamente aplicados, bem como so realizados
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testes de deteco do uso de drogas na urina. Esta segunda fase da
pesquisa ainda no havia sido iniciada no perodo em que re-alizei o
trabalho de campo, de modo que no abordada no pre-sente artigo.
O trabalho de campo realizado foi pautado pela minha observa-o e
participao nas atividades do CPAD, durante o perodo de um ano
(2013), em sua sede no Hospital de Clnicas de Porto Alegre. Esta
insero no grupo me possibilitou acompanhar as sesses de coletas de
dados com os pacientes usurios de drogas do HCPA, o treinamento dos
entrevistadores para a realizao das mesmas, bem como as reunies
semanais destinadas coordenao da re-ferida pesquisa.
Foi possvel assim atentar para elementos que no esto contidos,
tal como o mtodo etnogrfico os apreende, nas narrativas oficiais do
fazer cientfico (como teses, artigos, dissertaes etc.), com o
objetivo de compreender as maneiras pelas quais a cincia
efe-tivamente produzida, para alm das regras e normas que buscam
instituir qual deve ser a sua conduo correta. Entretanto, apesar do
acompanhamento prximo e contnuo dos fenmenos de inte-resse, deve
ser ressaltado que no foi permitida a minha interao com os
pacientes usurios de drogas do HCPA, nem durante nem aps a aplicao
dos instrumentos7. Por este motivo, este trabalho no aborda em
profundidade as impresses ou percepes destes sujeitos acerca do
estudo em que estavam implicados.
pertinente tambm referir que documentos vinculados s co-letas de
dados aqui em questo foram importantes para a ela-borao da descrio
que segue. Na medida em que o CPAD est essencialmente envolvido com
pesquisas acadmicas, a elabora-o de textos uma atividade central do
grupo, que constitui a prpria materialidade de sua produo. Desta
forma, nestes
7 Os pesquisadores do CPAD compreendiam que o meu trabalho de
campo deveria intervir o menos possvel nas coletas de dados, motivo
pelo qual no era possvel in-teragir com os pacientes nestas
ocasies. Uma vez que a participao dos pacientes neste
empreendimento cientfico implicava sua ausncia em algumas
atividades do tratamento, tambm no pude acess-los aps as
entrevistas, com a justificativa de que isto poderia prejudicar a
recuperao teraputica destes sujeitos.
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OBJETIVIDADE...Eduardo Doering Zanella
objetos esto presentes de modo concentrado ou estendido, em
forma de enunciados vrios procedimentos que descrevem as dinmicas
de seus empreendimentos de pesquisa. Assim, proje-tos, pareceres do
comit de tica do HCPA e manuais de aplicao de instrumentos de
pesquisa se revelaram importantes fontes de informao para a
consecuo do presente trabalho.
A partir da realizao de trabalho de campo nos moldes
men-cionados, apresento uma narrativa centrada nos procedimentos
que envolvem a produo dos dados da pesquisa Preditores cl-nicos,
biolgicos e psicossociais de recada precoce em usurios de crack.
Trata-se de descrever um conjunto de prticas de coleta de dados,
com a pretenso de compreender de que maneira tais metodologias e
tcnicas agem sobre e assim transformam os pa-cientes usurios de
drogas que participam da referida pesquisa. Por meio desta
discusso, lano algumas consideraes acerca do processo de fabricao
dos sujeitos participantes da pesquisa e do ideal de objetividade
pretendida no mbito deste empreendimento cientfico.
Estas questes so informadas por perspectivas tericas do campo
dos estudos sociais em cincia e tecnologia. Sobretudo, a
proble-matizao aqui proposta desenvolvida a partir do conceito de
mediao, tal como elaborado nas obras de Bruno Latour, John Law e
Annemarie Mol, ponto delineado em maiores detalhes no tpico
seguinte.
MEDIAES E PRTICAS CIENTFICAS
Autores como Bruno Latour (2001; 2012), John Law (1992; 2001) e
An-nemarie Mol (2005), entre outros, argumentam que os objetos
cien-tficos no so entidades preexistentes ao trabalho que se
realiza sobre eles, no sentido de que tais objetos em nenhum
momento se encontram desvinculados das tcnicas, relaes ou
procedimentos mobilizados em sua constituio. Objetos seriam
performativos e no ostensivos. Tal como prope a distino de
Latour
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[o] objeto de uma definio ostensiva permanece a, no importa o
que acontea ao dedo indicador de quem assiste. Mas o objeto de uma
defi-nio performativa desaparece quando no mais representado ou,
caso permanea, isso significa que outros atores entraram em cena.
(LATOUR, 2012, p. 63)
Law (2001) argumenta de maneira semelhante, por exemplo, em um
texto que analisa a constituio do design de uma aeronave militar,
produzida pela English Electric Company para o governo britnico em
1958. Ao comentar a apropriao que faz das ferra-mentas da semitica
para a sua anlise, este autor afirma que termos, objetos,
entidades, so formados nas diferenas entre uns e outros. O
argumento que eles no possuem atributos es-senciais, mas ao
contrrio, alcanam a sua significao a partir de relaes, relaes de
diferena (LAW, 2001, p. 118).
Ou seja, os objetos no estariam localizados de maneira esttica
em um plano transcendental, fora daquilo que envolve a sua
re-presentao (nos termos do enunciado de Latour) ou a sua
sig-nificao (nos termos do enunciado de Law). Por outro lado, tais
objetos somente existiriam, e ganhariam uma forma especfica, a
partir das prticas de representao dos atores (tal como expres-so
por Latour), ou a partir das relaes de diferena estabelecidas com
outros objetos (tal como expresso por Law).
O enunciado de Latour ao qual fiz referncia (2012, p. 63) no faz
dos objetos, sejam eles cientficos ou no, entidades menos reais.
Est em questo um princpio que Annemarie Mol (2005) explicitou de
maneira bastante clara: se a realidade no precede s prticas tambm
no pode servir de acesso a elas. Compreendo que o prin-cpio de
irreduo de Latour (1994) faz referncia mesma ideia. Ao no utilizar
palavras cuja vocao revelar a verdade por detrs dos fenmenos, este
autor objetiva no reduzi-los a esferas transcendentes fora do
alcance analtico, de modo a consider-los e descrev-los sempre por
meio das situaes nas quais emergem. Ou seja, so as realidades
propriamente ditas dos fenmenos, on-tologias nos termos de Mol
(2005), que so trazidas existncia por meio de um conjunto de
prticas e no o contrrio.
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OBJETIVIDADE...Eduardo Doering Zanella
Se os objetos de ateno cientfica somente existem a partir e em
consequncia das prticas que os sustentam, ento tambm deve ser
destacado que tais objetos no possuem contornos fixos: se
diferenciam na medida em que se alteram os procedimentos por meio
dos quais so performados. Procedimentos estes que Mol (2005) e
demais autores designam por sociomateriais, visto que so
intrinsecamente heterogneos no que diz respeito qualidade variada
dos materiais ou entidades que mobilizam. A noo de me-diao tem sido
utilizada no campo dos estudos sociais em cincia e tecnologia para
fazer referncia a estes processos de diferencia-o, em que entram em
questo materiais/entidade de tipos muito diferentes.
Latour (2012) define o conceito de mediador em contraposio ao de
intermedirio. Enquanto os segundos transportam significa-dos sem a
fora de transform-los, os primeiros transformam, traduzem,
distorcem e modificam o significado ou os elementos que
supostamente veiculam (p. 64). Apesar de o autor utilizar as
expresses mediador/intermedirio tal como se denotassem um tipo
especfico de agente, importante destacar que, nesta pers-pectiva,
entidades isoladas no so dotadas de uma capacidade de ao inerente
ou intrnseca. Ao contrrio, a ao sempre considerada enquanto
propriedade de uma srie de associaes que vem a envolver variados
agentes, de modo que se trata de um trabalho essencialmente
coletivo.
Portanto, antes de aludir a mediadores propriamente ditos, faz
mais sentido falar em processos de mediao. Admitir tais pro-cessos
nas tramas da prtica (LATOUR, 2001, p. 351) constitui uma maneira
de encarar os mecanismos de produo dos fen-menos de interesse
(sejam eles objetos, grupos, entidades, concei-tos, instituies
etc.). Trata-se de reconhecer a importncia das transformaes e da
heterogeneidade em suma, do movimen-to na conformao destes
fenmenos, em detrimento de uma perspectiva linear, uniforme ou
homognea dos mesmos8.
8 Esta perspectiva retoma sua posio filosfica de compreenso dos
fenmenos da obra de Gabriel Tarde (2007). Para este autor, a
harmonia e a estabilidade seriam somente um instante provisrio
dentro de uma variao e diferenciao universal.
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Assim, possvel definir que mediaes constituem aes de efeitos
transformativos ou diferenciadores, realizadas por meio do
estabelecimento de associaes entre uma srie de atores que no esto
determinados a priori. Ou seja, tratam-se de proces-sos de associao
que alteram a natureza dos entes associados mudanas estas
provocadas pelo prprio ato de conexo. Estas mediaes so fundamentais
para a atualizao e para a confor-mao dos objetos em termos gerais,
sejam eles elementos da sociedade sejam eles fenmenos da
natureza.
Autores como Law, Latour e Mol, entre outros do campo,
argu-mentam que sem tais mediaes, que atravessam de uma s vez os
domnios do social e do natural ao associar materiais de diferentes
tipos, estas esferas no se sustentariam por muito tempo enquanto
entidades purificadas. Por exemplo, em Jamais Fomos Modernos,
Latour (1994) argumenta que a purificao cada vez mais circunscrita
dos cantes ontolgicos da sociedade e da natureza somente se realiza
na contrapartida das mediaes, que misturam elementos do social e do
natural na produo, tambm cada vez mais intensiva, de seres hbridos.
Purificao, neste con-texto terico, deve ser entendida enquanto um
esforo por deli-mitar e instituir fronteiras, por alcanar a pureza
ontolgica de fenmenos necessariamente hbridos de natureza e cultura
(LA-TOUR, 1994). Para o que diz respeito ao problema de pesquisa
que aqui pretendo delinear, destaco que por meio de mediaes que
grupos sociais, entidades naturais ou objetos novamente, em termos
gerais , adquirem uma unidade, ou seja, so purificados.
A partir desta perspectiva, objetivo explorar os processos de
me-diao em operao no mbito da pesquisa do CPAD Preditores clnicos,
biolgicos e psicossociais de recada precoce em usu-rios de crack.
Trata-se de atentar para as transformaes que passam os objetos e as
entidades deste empreendimento cientfi-co em meio s prticas de sua
realizao. Em especfico, este arti-go trata do momento da coleta de
dados, enfocando os pacientes usurios de drogas que participam da
pesquisa. Uma vez que a coleta de dados um momento fundamental do
referido estudo instante de produo das informaes que constituem o
seu elemento essencial , pode ser tomada enquanto via de acesso
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130DADO COLETADO, SUJEITO FABRICADO: DROGAS E
OBJETIVIDADE...Eduardo Doering Zanella
para a compreenso do ideal de objetividade que este persegue,
objetivo que procuro cumprir no tpico final do presente artigo.
Passo para a descrio das prticas que envolvem a coleta de da-dos
com os pacientes da Unidade de Adio do HCPA, atentando para a forma
como tais procedimentos agem, transformam ou diferenciam os
sujeitos que so o centro de sua ateno. O texto est organizado de
tal maneira que busca correspondncia com o desenvolvimento das
coletas de dados. Ou seja, a descrio dos procedimentos de pesquisa
pretende seguir a sequncia de sua realizao com os sujeitos
participantes do estudo. Deste modo, a descrio assume a forma de
uma narrativa direta e sistemtica das prticas de coletas de dados,
expondo sua execuo e logs-tica. Optei por este modelo de narrativa
em detrimento, por exemplo, de uma descrio que enfocasse densamente
situaes especficas vividas em campo , pois considerei que assim
pode-ria proporcionar uma viso abrangente do processo de coleta de
dados, finalidade do presente artigo e ponto importante para a
construo de seus argumentos.
COLETA DE DADOS
A coleta de dados com os pacientes da Unidade de Adio do HCPA
tem incio com o exame de sangue, procedimento que tam-bm parte do
protocolo de assistncia geral deste servio de sade. As amostras
extradas so analisadas em dois laborat-rios, ambos localizados e
pertencentes ao Hospital de Clnicas de Porto Alegre: o de qumica e
o de psiquiatria molecular.
No laboratrio de qumica, o sangue analisado para os fins do
tratamento e da assistncia teraputica. Ali se verificam nos
pacientes, entre outras ocorrncias, os seus nveis de glicose,
colesterol, leuccitos, plaquetas, triglicerdeos e hemoglobina, bem
como as incidncias de HIV, hepatites C e B. J no laborat-rio de
psiquiatria molecular, o sangue avaliado exclusivamen-te para as
finalidades da pesquisa. Em especfico, neste local so determinadas
as dosagens sricas de Neuropeptdeo Y, Brain Derived Neurotrophic
Factor e Estresse Oxidativo.
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Esta extrao de sangue objetiva verificar a ao da droga, no caso
o crack, sobre os organismos dos participantes da pesqui-sa. por
este motivo que o sangue coletado logo na manh seguinte ao dia da
internao dos pacientes, quando estes ainda estariam sob efeito de
crack tal como expresso no projeto da pesquisa Preditores clnicos,
biolgicos...: isto [a extrao de sangue na manh seguinte ao dia da
internao] permite que possamos analisar variveis biolgicas de
pacientes enquanto ainda esto sob o efeito de crack (PECHANSKY, et
al., 2013, p. 10).
Depois da extrao de sangue, o chefe do Departamento de
En-fermagem do HCPA inscreve o nome do paciente, o nmero de seu
protocolo, o dia de sua internao e o dia da coleta de seu sangue em
uma planilha, fixada na Unidade de Adio do HPCA. Esta planilha deve
informar quais so os pacientes que esto disponveis para receber o
convite de participao na pesquisa, processo denominado de aplicao
do Termo de Consentimen-to Livre e Esclarecido (TCLE). Caso o
paciente esteja clinicamen-te estvel, este convite realizado no
mesmo dia da extrao de sangue, ou seja, no segundo dia de internao.
A aplicao do TCLE caracterizada por uma srie de procedimentos, que
devem ser executados pelo entrevistador de forma padronizada.
Basicamente, o entrevistador deve ler ao paciente, de maneira
pausada e clara, todo o texto contido neste instrumento. Depois
desta leitura, deve reforar quais so os objetivos da pesquisa;
informar ao paciente tanto sobre os riscos quanto sobre a
vo-luntariedade de sua participao; deixar claro que a sua
desis-tncia no necessita ser justificada e tampouco ir interferir
na qualidade do tratamento que lhe oferecido; informar que os seus
dados pessoais sero tratados de forma sigilosa, bem como deve lhe
entregar um folder do Hospital de Clnicas de Porto Alegre, com
informaes relativas aos direitos do participante de pesquisa.
necessrio, ainda e por fim, que o paciente aceite participar da
pesquisa, o que raras vezes deixa de acontecer.
por meio desta sequncia de procedimentos que o paciente adquire
uma posio especfica neste empreendimento cient-fico, que
corresponde sua identidade enquanto participante
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132DADO COLETADO, SUJEITO FABRICADO: DROGAS E
OBJETIVIDADE...Eduardo Doering Zanella
de pesquisa. Tal situao revela que as identidades formais do
empreendimento cientfico no esto dadas de antemo e tam-pouco so
estabelecidas em suas esferas conceituais ou epist-micas. Pelo
contrrio, tais identidades so feitas na imanncia das prticas de
pesquisa propriamente ditas, por meio da mobi-lizao de objetos
especficos em interaes concretas motivo pelo qual tambm no so
estticas, de modo que necessitam ser refeitas a todo o tempo9.
Desta forma, os pacientes ainda tero de ser fabricados enquan-to
participantes de pesquisa no sentido que continuaro sujei-tos a
novas intervenes por meio de outros procedimentos. Em especfico,
estes sero relativos s peculiaridades destes sujeitos enquanto
usurios de drogas. O primeiro destes proce-dimentos a espera por
mais alguns dias para o incio da apli-cao dos instrumentos.
DESINTOXICANDO OS SUJEITOS PARTICIPANTES DA PESQUISA
A realizao das entrevistas propriamente ditas no deve iniciar no
segundo dia de internao dos pacientes, junto extrao de sangue e
aplicao do TCLE, mas somente a partir do quinto dia em que estes se
encontram na Unidade de Adio do HCPA. Eu estranhei bastante este
procedimento, visto que um dos maio-res problemas das coletas de
dados consistia em cumprir com a aplicao de todos os instrumentos
de pesquisa. A dificuldade para conseguir horrios disponveis com os
pacientes dentro do programa teraputico do HCPA, somada a uma
dinmica de alta rotatividade dos mesmos neste hospital, entre
outros imprevis-tos, provocava muitas vezes a suspenso das
entrevistas sem a
9 Guilherme S argumentou de maneira semelhante para o caso dos
primatlogos que estudou em sua tese de doutorwado. Tambm neste
contexto, a constituio dos objetos de pesquisa, em especfico a
transubstanciao do macaco-sujeito-floresta em
macaco-objeto-laboratrio, se constitua em funo de uma relao de
experi-ncia ntima no interior das dinmicas dos coletivos e no por
contingncia genrica de um macroprocesso que se consolida nas
esferas epistmicas, histricas e polticas de uma cadeia de
transcries ( 2009, p. 31).
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aplicao de todos os instrumentos (o que no vinha a invalidar os
dados obtidos). Deste modo, eu considerava que o quanto antes as
entrevistas fossem iniciadas melhor seria para este empre-endimento
de pesquisa, pois assim maiores eram as chances de finalizar a
coleta de dados com os pacientes.
Os instrumentos so aplicados somente no quinto dia de interna-o
dos pacientes a fim de que ele [o paciente] j tenha passado pelos
primeiros dias de desintoxicao (PECHANSKY et al., 2013, p. 10), tal
como informa o projeto da pesquisa Preditores clnicos,
biolgicos.... A intoxicao recente por uso de drogas (ou a sua
interrupo sbita) poderia destituir os pacientes das condies clnicas
mnimas e necessrias para a participao nas entrevis-tas. Nesse
sentido, era importante esperar pelos primeiros dias de
desintoxicao, j que neste perodo os pacientes poderiam apresentar,
entre outras alteraes, sono intenso, hipertenso, taquicardia,
nuseas, delrio, convulses, alucinaes, paranoia ou mesmo um quadro
de deliruim tremens.
A ausncia de condies clnicas mnimas, contudo, no o nico motivo
pelo qual o uso recente de drogas impede a participao do paciente
recm-internado nas entrevistas. A aplicao dos instrumentos tambm no
ocorre nos primeiros dias de inter-nao a fim de diminuir o vis do
prejuzo cognitivo decorrente da intoxicao [por uso de drogas]
(PECHANSKY et al., 2013b). Ou seja, at o quinto dia de internao os
pacientes ainda poderiam estar sob efeito de drogas, o que
comprometeria a confiabilida-de de suas respostas aos instrumentos
de pesquisa.
Para alm de provocar prejuzo cognitivo e vis nas respostas dos
pacientes, o uso recente de drogas tambm pode dificultar o
entendimento correto das questes da entrevista, de modo que as
respostas que os entrevistados oferecem nestas situaes seriam
confusas tal como informa o Manual de Aplicao da Escala de
Gravidade de Dependncia (ASI6), instrumento va-lidado em pesquisa
desenvolvida pelo CPAD e utilizado nestas coletas de dados. Nestes
casos, tambm importante aguardar um dia ou mais para a aplicao do
instrumento.
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134DADO COLETADO, SUJEITO FABRICADO: DROGAS E
OBJETIVIDADE...Eduardo Doering Zanella
No caso do paciente parecer ter dificuldades de entender muitas
questes, pode ser vantajoso interromper a entrevista. Neste caso,
melhor esperar um dia ou mais para que o paciente se recupere da
confuso inicial e efeitos desorientadores do abuso recente de lcool
ou outras drogas, do que registrar respostas confusas. (KESSLER;
PE-CHANSKY, 2011, p. 19)
Ou seja, o abuso recente de lcool ou outras drogas provocaria
confuso e efeitos desorientadores nos pacientes, o que faz com que
estes ofeream respostas confusas aos instrumentos. Problema este
que pode ser solucionado caso sejam aguardados alguns dias para a
realizao da entrevista. Por estes motivos (efeitos desorientadores
e respostas confusas), a Escala de Gravidade de Dependncia (ASI6)
tambm no deve ser aplicada com pacientes que apresentem sintomas de
abstinncia graves ou efeitos agudos do uso de substncias (KESSLER,
2011, p. 48). Este , na verdade, um procedimento bastante
convencional do campo das cincias mdicas que realiza pesquisas com
usurios de drogas: a instituio do uso recente destas substncias
en-quanto critrio de excluso para a seleo da amostra do estudo.
Deste modo, se com a aplicao do TCLE o paciente passa a es-tar
disponvel para a concesso de entrevistas, o uso recente de drogas
impede o exerccio desta participao na pesquisa duran-te os
primeiros dias de internao. Estas substncias podem ge-rar
alucinaes, delrios ou convulses sobre os pacientes, bem como podem
prejudic-los cognitivamente, desorient-los e confundi-los, de modo
que as suas respostas aos instrumentos seriam igualmente confusas
ou carregadas de vis. Para ate-nuar tais efeitos decorrentes do uso
de drogas, de modo a garan-tir que o paciente fornea informaes
confiveis e fidedignas, espera-se alguns dias desde a sua internao
para o incio da aplicao dos instrumentos. Trata-se de abrandar os
efeitos des-tas substncias e de desintoxicar os participantes da
pesquisa.
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135PSvolume 13 | 2 | 2014
INSTRUMENTOS AUTOAPLICVEIS QUE NO SO
AUTOAPLICADOS
A maioria dos instrumentos utilizados nas coletas de dados com
os pacientes da Unidade de Adio do HCPA de estilo autoa-plicvel, ou
seja, com perguntas inscritas na primeira pessoa do singular (por
exemplo, sou uma pessoa distrada?). Contudo, mesmo que vrias destas
ferramentas apresentem este forma-to, todas as questes de todos os
instrumentos so lidas a todos os pacientes. Tal orientao faz com
que esta fase da coleta de dados assuma o formato de uma entrevista
padronizada.
Entre outros motivos, isto acontece, pois, alguns pacientes,
de-vido s suas prticas de uso recente ou continuado de drogas,
seriam dotados de ateno prejudicada, tal como fui informa-do pelos
meus interlocutores. Esta condio dificultaria a total compreenso
das questes contidas nestas ferramentas, o que pode tornar a sua
autoadministrao displicente ou dispersa de modo a tambm comprometer
a veracidade das informaes registradas.
Nesse sentido, a entrevista padronizada no somente
caracte-rizada pela leitura das perguntas que esto contidas nos
instru-mentos de pesquisa aos pacientes. O entrevistador deve tambm
e mais importante certificar-se de que o entrevistado com-preendeu
a inteno de cada questo que lhe foi dirigida, para que dessa
maneira possa oferecer as respostas mais corretas possveis10.
Tal como expresso no Manual de Aplicao da Escala de Gravida-de
de Dependncia (ASI6), para que o paciente compreenda ade-quadamente
a informao que lhe solicitada, o entrevistador deve estar disposto
a repetir, mudar as palavras e questionar at que sinta que o
paciente entende a questo e que a respos-ta reflete o melhor
julgamento do paciente, consistente com a
10 Este procedimento no implica que no haja instrumentos
autoaplicveis vlidos para usurios de drogas.
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136DADO COLETADO, SUJEITO FABRICADO: DROGAS E
OBJETIVIDADE...Eduardo Doering Zanella
inteno da pergunta (KESSLER; PECHANSKY, 2011, p. 12). Para isso,
preciso primeiramente que o entrevistador, ele prprio, compreenda a
finalidade subjacente a cada questo do instru-mento: importante que
o entrevistador entenda a inteno da pergunta para dispor da
informao mais completa disponvel pelo paciente e, ento, registrar a
resposta mais apropriada, in-cluindo comentrios (KESSLER;
PECHANSKY, 2011, p. 12)11.
Ou seja, assumir a coleta de dados na forma de uma entrevista
padronizada, a fim de que os entrevistados compreendam
inte-gralmente as suas questes, parece ser particularmente
impor-tante para pesquisas com usurios de drogas, visto que estes
seriam dotados de ateno prejudicada. Uma vez mais, o Ma-nual de
Aplicao da Escala de Gravidade de Dependncia (ASI6) faz uma
referncia esclarecedora, relativa tanto importncia do paciente
usurio de drogas em compreender plenamente as questes contidas nos
instrumentos, quanto validade da en-trevista padronizada para que
este objetivo seja atingido.
Tem-se notado que o formato padronizado de entrevista o nico
mtodo vivel para assegurar a plena compreenso das questes
per-guntadas, o que particularmente importante para alguns
segmentos da populao que abusa de substncias (isto , pacientes
psiquiatri-camente comprometidos, idosos, pacientes confusos ou com
doenas clnicas). (KESSLER; PECHANSKY, 2011, p. 26)
Quero apontar neste tpico que, tal como o aguardo por cinco dias
para o incio das entrevistas, o prprio formato desta etapa da
coleta de dados (uma entrevista padronizada) objetiva tam-bm, entre
outras coisas, atenuar os efeitos das drogas sobre os pacientes. O
uso de drogas prejudicaria a ateno, compro-meteria a condio
psiquitrica e confundiria os pacientes. Tais efeitos dificultariam
o completo entendimento das ques-tes dos instrumentos, o que
inviabiliza a sua autoaplicao. A fim de contornar estes efeitos, de
modo a registrar informaes
11 Apesar de estas citaes se referirem aplicao da Escala de
Gravidade de Dependncia (ASI6) em especfico, so tambm vlidas para o
que diz respeito aos demais instrumentos utilizados nestas
entrevistas.
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137PSvolume 13 | 2 | 2014
fidedignas sobre os instrumentos de pesquisa, a coleta de da-dos
toma a forma de uma entrevista padronizada.
Tal dificuldade dos pacientes usurios de drogas em compreen-der
as questes dos instrumentos de pesquisa pode, inclusive, levar o
entrevistador a encerrar a entrevista.
Os entrevistadores podem encontrar pacientes que simplesmente so
incapazes de entender os conceitos bsicos da entrevista ou de se
con-centrar em questes especficas, geralmente por causa dos efeitos
de abstinncia de lcool ou outras drogas ou devido a transtornos
men-tais. Quando isto se torna aparente, a entrevista deve ser
finalizada e outra sesso agendada. (KESSLER; PECHANSKY, 2011, p.
31)
Ainda alm, as entrevistas no somente podem ser finalizadas ou
reagendadas, mas os pacientes podem tambm ser excludos da pesquisa.
Nesse sentido, durante o perodo em que realizei o trabalho de
campo, os dados coletados com dois pacientes fo-ram removidos dos
registros deste empreendimento cientfico. Os participantes excludos
eram pacientes alcoolistas que, se-gundo os entrevistadores e
coordenadores desta pesquisa, apre-sentavam demncia devido ao uso
intenso, antigo e continuado de bebidas alcolicas condio que lhes
impossibilitava o en-tendimento das questes contidas nos
instrumentos.
CONTORNANDO O PREJUZO DE AUTOAVALIAO
Contudo, caso a coleta de dados no seja finalizada ou o paciente
excludo da pesquisa, a entrevista segue um padro geral de
procedimentos. O entrevistador e o paciente dirigem-se at a sala de
atendimento individual, localizada ao final do corredor onde esto
os leitos da Unidade de Adio. Sentam-se um de frente para o outro,
e ambos de frente para uma mesa. Nesta mesa, o entrevistador
posiciona os instrumentos que traz con-sigo e l ao paciente as
perguntas que ali esto ordenadas. O paciente responde. A partir
destas respostas, o entrevistador marca uma inscrio no instrumento
de pesquisa e passa para a prxima questo, e assim
repetidamente.
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138DADO COLETADO, SUJEITO FABRICADO: DROGAS E
OBJETIVIDADE...Eduardo Doering Zanella
Caso os pacientes cumpram todas as fases da coleta de dados,
chegam a participar da aplicao de treze os instrumentos de
pesquisa. Com a insero dos testes neurocognitivos, no ms de
setembro do ano de 2013, esta entrevista passou a contar com
de-zessete instrumentos. As questes contidas nestas ferramentas
tratavam de temas diversos: relaes sexuais, histria familiar,
envolvimento com a justia, consumo de lcool e drogas, traba-lho,
histrico teraputico, infncia, relaes de amizade etc.
Aqui interessante comentar certo estranhamento que, nas si-tuaes
em que acompanhei as coletas de dados, percebi da par-te de alguns
pacientes com relao a estas perguntas. Duran-te as entrevistas,
estes frequentemente se surpreendiam que uma mesma questo lhes
fosse dirigida repetidas vezes. Havia momentos em que os pacientes
eram solicitados a responder a trs ou a quatro indagaes bastante
semelhantes entre si, que se diferenciavam somente a partir de uma
pequena alterao dos termos de enunciao. Outras vezes, tinham de
responder a diferentes questes, mas que buscavam registrar uma
mesma informao. Tambm podiam ser feitas perguntas gerais ou
am-plas, que eram especificadas por meio de perguntas posteriores,
mais circunscritas. Embora este fenmeno seja relativo a vrios
instrumentos de pesquisa, os pacientes o reparavam principal-mente
quando da aplicao das ferramentas que abordavam o uso de
drogas.
Por exemplo, no questionrio Perfil do Consumo de Cocana, a
questo 16-D pergunta se o paciente isolou-se dos outros por meio do
consumo de cocana; ao que especificada pelas questes 20-C e 20-H,
que perguntam se o uso desta substncia promoveu, respectivamente, o
isolamento da famlia e o iso-lamento dos amigos. A questo 17-B, por
sua vez, questiona se a perda de dia de escola/trabalho foi uma
consequncia do uso de cocana, e a questo 20-E indaga se ocorreu
ausncia do tra-balho em funo do mesmo motivo. J a questo 20-F
pergunta
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139PSvolume 13 | 2 | 2014
se a cocana motivou brigas fsicas com outras pessoas, en-quanto
a pergunta seguinte, 20-G, indaga se devido ao consumo desta
substncia o paciente feriu fisicamente outra pessoa.
No roteiro de perguntas da Escala de Gravidade de Dependn-cia de
Crack, tambm h questes que, de certa forma, so pr-ximas ou se
assemelham. Por exemplo, a fim de investigar o domnio do paciente
acerca das suas prticas de consumo de crack, este instrumento lhe
dirige as seguintes perguntas (o en-trevistado deve posicionar a
sua resposta nas opes concordo muito, concordo, discordo e discordo
muito): 11 No tenho nenhum controle sobre meu consumo de crack; 02-
No resis-to ao crack quando tenho oportunidade de us-lo.
O descontrole do entrevistado perante o uso de crack tambm
especificado de forma parecida nestas duas prximas questes, que
fazem referncia situao na qual o usurio no consegue ou tem
dificuldade em interromper o consumo da substncia: 17 Sempre uso
maior quantidade de crack do que planejo inicial-mente; 08 A
quantidade de crack que eu uso nunca suficien-te, pois sempre quero
fumar mais.
Este questionrio ainda pergunta: 22 Tenho dificuldade em aceitar
que o crack um problema pra mim; e 23 No consigo perceber os
problemas que o crack j me causou, evocando a ausncia de
reconhecimento, por parte do entrevistado, acerca da ocorrncia de
problemas relacionados ao uso de crack. Ou ainda, 19 No tenho
interesse por atividades que no se relacionam ao crack; e 32 No
sinto mais prazer nas coisas do dia a dia por causa do crack,
aludindo a uma mesma forma pela qual o crack assume centralidade na
vida do paciente.
Quando perguntei aos entrevistadores os motivos pelos quais os
instrumentos de pesquisa eram compostos de perguntas pare-cidas ou
semelhantes, fui informado que, dentre outras razes, por meio deste
procedimento possvel contornar o prejuzo de autoavaliao dos
entrevistados, condio que seria derivada de um histrico de uso
frequente e estendido de drogas. O uso abusivo destas substncias,
por um longo perodo, provocaria
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140DADO COLETADO, SUJEITO FABRICADO: DROGAS E
OBJETIVIDADE...Eduardo Doering Zanella
determinados danos para a percepo do paciente acerca de si e da
sua relao com as drogas, o que lhe causaria tambm certa dificuldade
para avaliar adequadamente a sua condio atual e passada de
vida.
Uma das manifestaes deste prejuzo de autoavaliao seria a
ocorrncia de respostas inconsistentes e contraditrias, por par-te
dos pacientes, durante as sesses de entrevista. Deste modo, meus
interlocutores compreendiam que instrumentos de pes-quisa compostos
por perguntas similares permitiriam revelar as incongruncias e as
contradies nas respostas dos entrevista-dos, de maneira a obter os
dados mais fidedignos possveis. Em suma, trata-se de mais uma forma
de atenuar os efeitos do uso de drogas sobre os pacientes, de modo
a garantir que a sua partici-pao nas sesses de entrevista resulte
na inscrio de respostas corretas sobre os instrumentos.
Para alm de instrumentos compostos por perguntas prximas ou
semelhantes, os entrevistadores tambm so orientados, pe-los
coordenadores da pesquisa, a confrontar as informaes do paciente ao
longo de toda a entrevista. Ou seja, o entrevistador deve ficar a
todo o momento bastante atento s respostas que o paciente lhe
apresenta, conferindo se entram ou no em con-tradio com as
informaes disponibilizadas na ocasio de per-guntas anteriores. Este
procedimento tambm objetiva colocar prova a veracidade das
respostas dos entrevistados aos instru-mentos, a fim de garantir a
integridade dos dados coletados12.
Nesse sentido, a Escala de Gravidade de Dependncia (ASI6), que
como j referido mobilizada nestas coletas de dados, foi conce-bida
de tal modo que vrias de suas perguntas demandam infor-maes
pontuais, exigidas por diferentes questes ao longo da entrevista
com este instrumento. Ou seja, em vrios momentos de sua aplicao, o
paciente tem de reafirmar as informaes que concedeu na ocasio de
questes anteriores. A fim de auxiliar o
12 Evidentemente, esta no uma orientao exclusiva para pesquisas
das cincias mdicas com pacientes usurios de drogas, mas sim um
procedimento destacado com especial nfase para estudos que envolvam
esta populao.
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141PSvolume 13 | 2 | 2014
trabalho do entrevistador em conferir a consistncia das
respos-tas do entrevistado, o Manual de Aplicao deste instrumento
apresenta uma lista de itens para checagem cruzada da acur-cia da
entrevista. Trata-se de um inventrio das perguntas cujas respostas
demandam informaes semelhantes. Ou seja, uma lista de questes que
cruzam as informaes oferecidas pelos pacientes.
Por exemplo, o item 19 desta lista informa que, quando o
paciente diz em L21 estar aguardando sentena ou julgamento, a
infrao que ocasionou tal situao tem que constar na listagem L7-L14.
J o item 30 avisa que, quando o paciente relata comportamen-to
violento em P13 e P14, isso deveria constar em L (Legal) na forma
de ameaas ou agresses, ou em F (Famlia/Social), como conflitos com
outras pessoas. De maneira semelhante, quando o paciente no teve
problemas psiquitricos nos ltimos 30 dias em P18, mas aparecem
anteriormente problemas psiquitricos de P8 a P17, o entrevistador
deve revisar isso com o paciente (item 27). Tambm se o paciente
casado ou vive como casado, deve aparecer em H (Habitao/Moradia)
que vive com parceira; em E (Emprego/Sustento), isso pode constar
como ajuda no sustento; em F1 (Famlia/Social) tambm deve ser
relatado relacionamento amoroso nos ltimos 30 dias (item 1).
Esta lista tambm apresenta os procedimentos que o entrevis-tador
deve adotar nos casos em que as respostas do entrevista-do parecem
incoerentes com os demais dados oferecidos. Deste modo, o
entrevistador pode verificar se as respostas dos pacien-tes, de
fato, refletem a sua percepo acerca dos acontecimen-tos e das
condies de sua vida.
Nesse sentido, nesta lista informado ao entrevistador que, s
vezes, pacientes informaro na seo lcool e outras Drogas (item D1)
sobre uma overdose que necessitou de hospitalizao, que eles
esqueceram de contar na seo Mdica, ao que segue a orientao: Volte e
esclarea os itens M25 e M26 na seo m-dica (item 17). Tambm nas
situaes nas quais o paciente rela-tou no ter tido problemas com
lcool nos ltimos 30 dias, mas diz estar incomodado com problemas
com lcool ou precisar de
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142DADO COLETADO, SUJEITO FABRICADO: DROGAS E
OBJETIVIDADE...Eduardo Doering Zanella
tratamento para esses problemas, o entrevistador deve voltar ao
D21 e perguntar novamente o nmero de dias que [o paciente] se
sentiu incomodado com problemas com lcool (item 14). Ou para o
paciente que no acha que o lcool um problema para o qual precisa
tratamento e, no entanto, consumiu lcool 15 dias no ltimo ms, o
entrevistador deve revisar isto com ele e se mantiver a posio
negativa, anotar comentrio (item 10). A Escala de Gravidade de
Dependncia (ASI6) possui 31 itens deste tipo.
Ainda no sentido dos procedimentos que objetivam assegurar a
integridade dos dados obtidos nas sesses de entrevista, importante
referir que, depois de preenchidos, os instrumentos so regularmente
revisados por um assistente de pesquisa. Este deve ter experincia
prvia como entrevistador, de modo a ser familiarizado com os
instrumentos mobilizados neste empreen-dimento cientfico. Esta
reviso consiste em observar se faltam informaes de identificao dos
pacientes, se os instrumentos esto completamente preenchidos e sem
erros de codificao e se existem contradies entre os dados
registrados.
Caso haja incoerncias, o assistente de pesquisa que faz esta
reviso deve contatar o entrevistador para explicao. Espera--se que
faa isto o mais rpido possvel, logo aps o trmino da coleta dos
dados, para que o entrevistador ainda tenha recente na memria as
informaes do paciente que entrevistou. Caso o entrevistador no
consiga resolver a contradio identificada, deve ento verificar se o
referido paciente ainda se encontra na Unidade de Adio do Hospital
de Clnicas de Porto Alegre, para que a dvida possa ser elucidada
pessoalmente pelo entrevista-do. Se isto no for possvel, as questes
inconsistentes devem ser anuladas.
CONSIDERAES FINAIS
Em funo do uso de drogas, tanto recente quanto de longo pra-zo,
ou devido sua interrupo abrupta, os pacientes da Unida-de de Adio
do HCPA se encontrariam clinicamente instveis,
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143PSvolume 13 | 2 | 2014
confusos, desorientados ou psiquiatricamente comprome-tidos;
estariam com a ateno prejudicada e sofreriam de prejuzos, tanto
cognitivos quanto de autoavaliao. Desta forma, no apresentariam
condies clnicas para conceder entrevistas, bem como as informaes
que forneceriam nestas situaes seriam confusas, inconsistentes ou
contradit-rias. Assim, uma srie de precaues adotada para que seja
vivel a coleta de dados com estes pacientes.
Primeiramente, a aplicao dos instrumentos de pesquisa tem incio
somente no quinto dia de internao dos pacientes, a fim de que os
mesmos j tenham passado pelos primeiros dias de desintoxicao. Isto
possibilita a consolidao de condies clnicas para a participao dos
pacientes nas entrevistas, assim como atenua os prejuzos
cognitivos, os efeitos deso-rientadores e a confuso que derivam do
uso de drogas e que comprometem a credibilidade de suas
respostas.
Para que os entrevistados tenham plena compreenso das in-formaes
que lhes so solicitadas, tambm a coleta de dados assume a forma de
uma entrevista padronizada. Isto significa que todas as questes, de
todos os instrumentos, so lidas pelos entrevistadores a todos os
pacientes procedimento importan-te para aqueles cujo uso de drogas
prejudicou a ateno. Por fim, com o intuito de contornar o prejuzo
de autoavaliao, prprio a usurios de drogas, os instrumentos de
pesquisa so dotados de mecanismos para a identificao de informaes
contraditrias; bem como o entrevistador deve estar atento, durante
toda a entrevista, a possveis inconsistncias nas res-postas dos
pacientes. Se aps todos estes mtodos e tcnicas, o paciente ainda
continuar sob efeito de drogas, ento deve ser excludo dos registros
da pesquisa.
Considero que o conjunto destes procedimentos de pesquisa coloca
em operao um processo de mediao, em que esto implicados os usurios
de drogas participantes do estudo; pro-cesso este que, tal como
irei argumentar, relativo ao ideal de objetividade pretendido no
mbito destas coletas de dados. Para
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144DADO COLETADO, SUJEITO FABRICADO: DROGAS E
OBJETIVIDADE...Eduardo Doering Zanella
abordar estes pontos, fao referncia a uma considerao de
Gil-berto Velho (1987), acerca do papel que cumprem e da posio que
ocupam as drogas e os seus usurios em nossa sociedade.
Este autor, em um clssico artigo no qual toma para reflexo duas
categorias de acusao prprias do contexto brasileiro (anos de 1980),
a de subversivo e a de drogado, afirma que este ltimo funciona para
a nossa sociedade como um smbolo diferenciador, que, por meio desta
figura define aquilo ela que no , ou aquilo que no quer ser. Para
Velho, o subversivo e o drogado ameaam uma certa ordem social
estabelecida, pois ferem a concepo de mundo que lhe subjacente. So
figuras desviantes, constitudas a partir da criao primeira de uma
dada norma social, e que funcionam para a manuteno e reifi-cao
desta mesma norma e de seus valores fundantes.
Para o caso que tomei para anlise no presente artigo, argu-mento
que as drogas tambm esto instituindo determinadas fronteiras e
demarcando valores especficos. Estas substncias operam enquanto uma
espcie de marco delimitador da obje-tividade explorada por este
empreendimento de pesquisa, que definida em contraposio quilo que
as drogas representam: incerteza, instabilidade, desorientao,
confuso, incoerncia etc. Ou seja, as drogas, uma vez que associadas
a estas repre-sentaes, se constituem enquanto um smbolo
diferenciador da objetividade cientfica pretendida nas coletas de
dados: reve-lam pelo negativo os valores que constituem este
atributo enquanto tal, quais sejam, certeza, estabilidade,
segurana, confiabilidade13. Em outras palavras, as drogas ameaam
uma certa concepo de cincia, fundada na busca por uma objeti-vidade
cujos valores constituintes so antagnicos quilo que estas
substncias representam.
E uma vez que drogas e objetividade cientfica esto asso-ciadas a
qualidades simetricamente opostas, a fim de garantir
13 Para uma apropriao semelhante das consideraes citadas de
Gilberto Velho, ver Stlio Marras (2008).
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145PSvolume 13 | 2 | 2014
a confiabilidade e a integridade das informaes produzidas nas
coletas de dados, torna-se necessrio purificar o empreen-dimento
cientfico da ao destas substncias objetivo cujo limite a prpria
excluso de pacientes que, devido s consequ-ncias de seus histricos
de uso de drogas, estariam incapaci-tados de fornecer respostas
confiveis. Ou seja, quanto menos os efeitos das drogas se fizerem
presentes nos participantes do estudo, mais objetivo ser este
empreendimento cientfico. Trata-se, portanto, de purificar as
informaes produzidas nas coletas de dados, de modo a lhes conferir
o estatuto mais ob-jetivo possvel, por meio da eliminao dos efeitos
subjetivos atribudos ao das drogas.
Este processo de purificao feito por meio da srie de
proce-dimentos descritos no presente artigo. nesse sentido que as
prticas de coletas de dados encontram nos pacientes o objeto
central de sua ao: so meios de atenuar, diminuir ou de abran-dar os
efeitos das drogas sobre os entrevistados, de maneira a viabilizar
a participao dos mesmos no estudo e registrar as informaes mais
fidedignas possveis sobre os instrumentos de pesquisa.
Ao agir sobre os pacientes entrevistados, estes procedimentos de
pesquisa tambm os esto transformando: ao longo do empreen-dimento
cientfico, os pacientes deixam de ser sujeitos intoxica-dos,
confusos e sob efeito de drogas tal como no momento em que realizam
o primeiro procedimento da coleta de dados, a extrao de sangue para
se tornarem participantes de pesqui-sa que respondem adequadamente
aos instrumentos. A busca por assegurar condies em que os sujeitos
entrevistados pos-sam oferecer dados ntegros e verdicos constitui,
deste modo, um processo de diferenciao dos mesmos.
Este um processo de mediao (LATOUR, 2012), voltado para a produo
simultnea de sujeitos de pesquisa coerentes e de da-dos objetivos.
Deste modo, as transformaes com as quais es-to implicados os
pacientes usurios de drogas do HCPA esto intimamente conectadas com
a busca por dados imaculados do
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146DADO COLETADO, SUJEITO FABRICADO: DROGAS E
OBJETIVIDADE...Eduardo Doering Zanella
vis decorrente dos efeitos das drogas: mediao e purificao so
processos intercalados, em relao de coproduo.
Portanto, a produo de dados coerentes depende de um proces-so de
mediao, que almeja a fabricao de um sujeito entrevista-do
igualmente coerente, que no seja confuso, desorientado, incerto.
Este objetivo parece adquirir particular importncia na medida em
que os participantes da pesquisa so usurios de drogas substncias
que, no registro das sociedades modernas ocidentais, seriam
eminentemente qualificadas pela produo de comportamentos instveis,
tal como argumentou Stlio Marras (2008).
Interpretaes como estas colocam em questo a prpria expres-so
coleta de dados, tal como implicada nos procedimentos de pesquisa
aqui abordados: em que medida possvel apreender um dado por
coletado remetendo assim a uma informao pronta e acabada, cujo o
acesso imediato somente exigiria do pesquisador a sua coleta se o
prprio sujeito que fornece o dado no vem pronto, mas construdo
durante o empreendimento cientfico, por meio de procedimentos
inerentes a este?
Deste modo, importante ressaltar que os procedimentos de cole-ta
de dados aqui abordados so mais do que simples regras para a conduo
apropriada do empreendimento cientfico: constituem formas de agir
sobre os pacientes participantes do estudo. E uma vez que a ao esta
capacidade de transformar a outros seres, tal como definiu Latour
(2001), agir sobre os pacientes tambm, consequentemente,
transform-los: a cincia no representa a realidade de seus objetos
sem intervir sobre os mesmos.
Contudo, tambm no deve ser dada pouca importncia ao fato de que
esta mediao realizada, ao final das contas, com o objetivo de
conduzir o empreendimento cientfico da maneira compreendida como
aquela que a mais adequada possvel. Os procedimentos de pesquisa
aqui destacados so concebidos en-quanto meios de garantir a
fidedignidade das respostas dos pa-cientes; so como que estratgias
para diminuir o vis de suas
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147PSvolume 13 | 2 | 2014
respostas, o prejuzo cognitivo, a ateno prejudicada e o pre-juzo
de autoavaliao que decorrem de sua intoxicao por uso de drogas. Em
outras palavras, so meios de produzir algo muito valorizado pelo
coletivo de pesquisadores que empreende a coleta de dados que tomei
para investigao etnogrfica neste trabalho, denominado de
objetividade cientfica.
Portanto, argumento por fim que tal objetividade cientfica no
caracterizada por manter uma relao distante, neutra ou mesmo
passiva para com os objetos que busca apreender tal como po-deria
ser depreendido da busca incessante por dados confiveis, ntegros e
verdicos que motiva. Diferentemente, a persecuo desta objetividade
depende, de maneira intrnseca, de uma rela-o ativa para com os
pacientes usurios de drogas, no sentido que comprometida com a
transformao destes sujeitos: um processo de mediao, que busca
purificar os dados coletados das drogas e de seus efeitos.
na medida em que todo o processo de purificao instvel,
in-completo e sujeito a limites, que tal ideal objetividade se
constitui enquanto um horizonte normativo, ao qual sempre necessrio
e
desejvel aproximar-se, mas cujo alcance absoluto no possvel.
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149PSvolume 13 | 2 | 2014
RESUMO
Este artigo descreve as coletas de dados de uma pesquisa
mdico-cien-
tfica, realizada com pacientes usurios de drogas. Analisam-se os
meios
pelos quais as prticas desta pesquisa agem sobre estes sujeitos,
a fim de
compreender qual ideal de objetividade pretende-se alcanar no
mbito des-
te empreendimento. Afirmo que a produo de um dado confivel
envolve
um processo que almeja diminuir ou contornar os efeitos do uso
de drogas
sobre os participantes do estudo, de modo que a coleta do dado
depende da
fabricao do sujeito que ir fornecer este dado. Esta no uma
objetividade
passiva ou neutra com os sujeitos que so o centro de sua ateno,
mas sim
ativa e empenhada na transformao dos mesmos.
Palavras-chave: Coleta de dados, Objetividade, Drogas,
Antropologia da
Cincia.
ABSTRACT | COLLECTED DATA, FABRICATED SUBJECT: DRUGS AND
OBJECTIVITY IN A MEDICAL-SCIENTIFIC RESEARCH
This article describes data collection of a scientific and
medical research,
conducted with drug users. Analyzes the ways these research
practices act
upon these subjects, in order to understand what is the ideal of
objectivity de-
sired under this project. I affirm that the production of
trusted data involves
a process that aims to reduce or overcome the effects of drug
use on the par-
ticipants, in a way that the collection of the data depends on
the production of
a subject that will provide this data. This is not a passive or
neutral objectivity
regarding the subjects that are the center of its attention. On
the contrary, this
objectivity is active and involves the transformation of those
subjects.
Keywords: Data collection, Objectivity, Drugs, Anthropology of
Science.
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150DADO COLETADO, SUJEITO FABRICADO: DROGAS E
OBJETIVIDADE...Eduardo Doering Zanella
RESUMEN | RESUMEN DATO RECOGIDO, SUJEITO FABRICADO: DROGAS Y
OBJETIVIDAD EN UNA INVESTIGACIN MDICO-CIENTFICA
En este artculo se describe la recoleccin de datos de una
investigacin
mdico-cientfica, realizada con usuarios de drogas. La intencin
es exami-
nar cmo los procedimientos de este estudio actan sobre los
sujetos par-
ticipantes, con el fin de entender que ideal de objetividad se
busca en este
proyecto. Argumento que la produccin de un dato seguro objetiva
reducir
o mitigar los efectos del uso de drogas en los participantes del
estudio, de
modo que la recoleccin del dato depende de la fabricacin del
sujeto que
proporcionar el dato. Esto no es una objetividad pasiva o
neutral en relacin
a los sujetos que son el centro de su atencin, pero activa y
comprometida
con la transformacin de estos sujetos.
Palabras clave: Recoleccin de Datos, Objetividad, Drogas,
Antropologa
de la Ciencia.