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1 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL CINEMA E AUDIOVISUAL YUICHI INUMARU LANGE FOTOGENIA DO ENSINO Niterói 2017
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yuichi inumaru lange fotogenia do ensino

Apr 03, 2023

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Khang Minh
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Page 1: yuichi inumaru lange fotogenia do ensino

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL

CINEMA E AUDIOVISUAL

YUICHI INUMARU LANGE

FOTOGENIA DO ENSINO

Niterói 2017

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YUICHI INUMARU LANGE

FOTOGENIA DO ENSINO

Orientadora: Profª. Eliany Salvatierra Machado

Niterói

2017

Monografia apresentada ao Curso de

Graduação em Cinema e

Audiovisual da Universidade

Federal Fluminense, como pré-

requisito para obtenção do Grau de

Licenciado.

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3

YUICHI INUMARU LANGE

FOTOGENIA DO ENSINO

Aprovada em julho de 2017

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________________________

Prof. Dra. Eliany Salvatierra Machado

Universidade Federal Fluminense

__________________________________________________________________________

Prof. Dr. Fabián Núñez

Universidade Federal Fluminense

__________________________________________________________________________

Prof. Dra. Alice Akemi Yamasaki

Universidade Federal Fluminense

Niterói

2017

Monografia apresentada ao Curso de

Graduação em Cinema e

Audiovisual da Universidade

Federal Fluminense, como pré-

requisito para obtenção do Grau de

Licenciado.

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AGRADECIMENTOS

Não me senti confortável o suficiente para agradecer a ninguém especial.

Nenhuma parte do todo é mais especial que a outra.

Que todos se sintam agradecidos e sejam a gratidão.

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5

“[…]

1'T is not too late to seek a newer world.

Push off, and sitting well in order smite

The sounding furrows; for my purpose holds

To sail beyond the sunset, and the baths

Of all the western stars, until I die.

It may be that the gulfs will wash us down;

It may be we shall touch the Happy Isles,

And see the great Achilles, whom we knew.

Tho' much is taken, much abides; and tho'

We are not now that strength which in old days

Moved earth and heaven, that which we are, we are;

One equal temper of heroic hearts,

Made weak by time and fate, but strong in will

To strive, to seek, to find, and not to yield.”

ULYSSES, LORD TENNYSON

1 Não é tarde para buscar um novo mundo. / Partam, e em ordem todos, fulminem / As sonoras esteiras; Pois

meu intento persiste / Em navegar além-poente, e sob o banhar / Das estrelas do ocidente, até morrer. / Pode ser

que os golfos nos devorem, / Pode ser que alcancemos as Afortunadas Ilhas, / E vejamos o grande Aquiles, caro a

nós; / Mesmo perdendo muito, muito nos aguarda, e Ainda / que não sejamos aquela antiga força que nos velhos

dias / Movera a Terra e o Céu; Aquilo que nós somos, somos; / O mesmo heroico coração temperado, /

Enfraquecido pelo tempo e o fado, mas forte em vontade / de lutar, buscar, achar, e nunca ceder. (Tradução feita

pelo autor)

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RESUMO

Objetivo refletir sobre uma fundamentação para pensar a proposta pedagógica

interdisciplinar como entrada para o cinema no campo da escola. Baseado numa experiência

subjetiva de relato de campo, realizo estudos no campo da psicanálise, estética e

interdisciplinaridade para fundamentar uma proposta de atuação do cinema na escola que seja

ao mesmo tempo um projeto estético de ensino, que chamo de “fotogenia do ensino”, e ao

mesmo tempo um projeto político, bebendo em proposta da pedagogia dialógica.

Palavras-chave: Cinema; Educação; Cinema e Educação; Fotogenia; Estética;

Interdisciplinaridade; Pedagogia Dialógica.

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SUMÁRIO

Preâmbulo................................................................................................................................7

Introdução................................................................................................................................12

1. A situação escolar que o audiovisual encontra.................................................................13

2. Um relato pessoal de licenciando em Cinema..................................................................17

3. O Audiovisual como Campo na Escola.............................................................................22

4. Uma fotogenia do Ensino? .................................................................................................32

5. O Cinema como encontro com Si Mesmo ........................................................................32

6. O filme como investigação e o Desejo de aprender..........................................................32

7. O cinema e a Interdisciplinaridade ..................................................................................32

Considerações Finais...............................................................................................................47

Referências...............................................................................................................................49

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PREÂMBULO

A escolha pelo estudo do cinema enquanto campo de conhecimento deu-se pela

curiosidade que o assunto despertou em mim após viver uma vida acadêmica e escolar um tanto

quanto não-usual, com um percurso diverso e por uma estrada sempre-em-construção; houve

espaço para inovação e experimentação – ainda que para isto nem sempre tivesse aparecido,

nas diversas esferas educacionais, pessoas com vontade, aptidão ou mesmo coragem. Este é um

trabalho voltado, sem dúvida, para uma reflexão desta minha experiência acadêmica, em

contraste com a minha vida escolar. E para uma possibilidade para o campo do cinema e

educação, um vislumbre que eu enxergo – espero que não sozinho.

É, sem dúvida alguma, uma ironia para mim, estar concluindo esse curso. Eu gostaria

de começar deixando uma contextualização muito pessoal. Eu sempre odiei a disciplina de artes

da escola. Sempre, e odiei, reafirmo cada palavra desta frase. Eu sempre achei um desperdício

inaceitável do meu tempo de vida ter que ficar fazendo uns desenhos descontextualizados e sem

sentido, ser forçado a escrever cartõezinhos de natal ou de dia das mães/pais. Nunca entendi o

motivo de fazer trabalhinhos de arte. E nenhum professor jamais soube me responder o porquê.

Estudei sempre em escolas particulares, e eu assumia que era bom para os negócios da

escola me colocar para fingir um papel – que não me sentia na obrigação de aceitar – de filhinho

bonitinho, criancinha feliz, isto é, um Boneco com o qual certos adultos brincam de paternidade

de vez em quando (e não um ser vivo com vontade própria e projetos de vida próprios). Nunca

entendi porque a escola – e na verdade a sociedade inteira – tem de imbecilizar a criança. E

mais tarde, quando descobri minha aptidão para a música, percebi que ela nunca esteve presente

na disciplina de artes. E que no sistema de avaliação e na concepção de currículo havia algo de

errado, mas eu não sabia dizer o que era. Só vim a entender muito tempo depois, perto do final

da faculdade. Se eu tivesse entendido antes, talvez não tivesse cursado engenharia química ou

economia antes, cursos que não concluí.

Na verdade, não era apenas a disciplina de artes – ou melhor, a imposição goela abaixo

de conteúdos ligados às artes dos quais nem eu nem a professora entendiam a importância –

que me despertava esse sentimento de total e completo desprezo pelo sistema educacional. Era

com todas as matérias, a partir da quinta série, e eu passei a fazer questão de nunca fazer nenhum

dever de casa de nenhuma matéria, e ainda assim passar de ano com notas altas. Essa era, talvez,

a única resposta possível à arrogância dos adultos – sejam eles os que romantizam a escola

(presentes na minha família) ou aqueles que dela vivem. Em A Arte de Escrever, Schopenhauer

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diz que existem aqueles que vivem para o conhecimento, e existem aqueles (se referindo aos

acadêmicos da época na Alemanha) que vivem do conhecimento – para os quais ele é apenas

uma vaca leiteira. 2

A única matéria que tinha na escola que eu estudava em casa era química, pois música

não tinha na escola. E mesmo que tivesse, eu escutava Metal, e os professores endeusavam a

Música Popular Brasileira, rejeitando qualquer outra coisa. E eu estudava química pois queria

fazer explosivos, não o conteúdo dado em sala, que eu considerei sempre ridículo e fácil – e

todo mundo, por algum motivo que não entendia na época, sempre considerou absolutamente

difícil. Eu lia livros de química orgânica já na oitava série a fim de saciar a curiosidade. A

questão é clara para mim hoje, a ausência de afeto. Eu simplesmente gostava de bombas, então

para eu aprender como elas são feitas era o máximo. Para os outros, não. A escola obriga peixes

a escalar árvores e correr maratonas.

De algum modo, eu me desenvolvi em reação ao sistema educacional, e não em

consonância com ele. Eu sentia necessidade de questionar, mesmo que silenciosamente, todas

as regras do mesmo que eu considerava fúteis ou que não compreendia – não sem antes, é claro,

tentar entendê-las. Mas, as pessoas que trabalham num espaço destinado ao conhecer e ao

compreender não conseguem fazer-se compreendidas quanto às regras do próprio espaço?

Depois de certa idade da minha vida, ao invés de ódio ou desprezo pelo sistema educacional,

eu passei a ter ódio dos professores e professoras com quem tive aula, salvo alguns casos

específicos, de pessoas realmente competentes e bem intencionadas. E isso se estende, de

maneira exponencial, para os diretores, coordenadores e tudo que vem acima deles, pois a

responsabilidade é ainda maior. ‘Dadores’ de aula, ladrões de sonhos, ladrões do meu tempo,

eu pensava. Alguns eram de fato ladrões – pegavam pertences meus, por eu não estar

supostamente prestando atenção na aula e davam para os meninos do bairro, segundo diziam.

Caras de pau, imprestáveis. Ensinam-nos informações erradas3, nos impõem interpretações em

textos literários que nem o autor concorda, são arrogantes e completamente incapazes de aceitar

críticas, cometem inumeráveis atrocidades, em nome do próprio umbigo. Que sistema permite

2 Na verdade o livro se trata de uma organização, uma antologia de ensaios recolhidos de Parerga e Paralipomena

- escritos filosóficos menores (Parerga und Paralipomena. Kleine philosophische Schriften, no original alemão),

escrito em 1850 por Schopenhauer. A Arte de Escrever tem Organização, tradução, prefácio e notas de Pedro

Süssekind. 3 Um exemplo sendo o conceito de ligação covalente dativa da química, que obedece ao modelo extremamente

ultrapassado do “pudim de passas”, criado por Thomson em 1897, e tendo sua extinção total dos livros didáticos

determinada desde 1964 pela IUPAC (até hoje está nos livros de Ricardo Feltre). A primeira coisa que qualquer

professor de química geral da faculdade tem de dizer é “esqueçam tudo que aprenderam”. Esta mesma frase ouvi

na minha vida de pelo menos três professores, de química, de economia e de história.

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isso? Agarram-se ao poder e autoridade sobre os alunos como demônios ao enfermo4,

estelionatários ao fiel, e vão ao fundo mais mesquinho para sabotar quem os desafie. E eu os

via saindo no pau entre si por uma migalha maior de aprovação, seja de alunos, ou da

coordenação, ou dos pais, ou do raio que o parta – contanto que legitime a posição distinta

(enquanto uns poucos desesperados tentavam contornar a situação se desdobrando em três).

Salve o deus ego. Os peixes agressivos aprenderam a comer pequenos pedaços dos rabos de

seus semelhantes para não morrerem de fome. É isso o que eu me mantive pensando até cerca

de um ano atrás, de certo modo.

Eu nunca soube colocar isso em palavras quando era mais novo, no entanto. E por medo,

e só e somente por medo, eu resolvi seguir o jogo. E eu podia ter fingido ver que nada estava

acontecendo, ou ver e ficar quieto, simplesmente seguir a manada e sobreviver à tortura

generalizada à segurança das sombras. Mas estava claro demais para mim que a lógica desta

escola – a escola tradicional, ou hegemônica, ou a escola média, enfim – é a mesma do estupro,

e eu não tive como andar na linha. Esta escola é um centro de tortura, na qual entram crianças

e saem robozinhos de repetir frases feitas, e de vez em quando alguns seres humanos vivos, mas

machucados. Sorte para mim que eu possuía boa capacidade de memória. Mas talvez por falta

de clareza de pensamento, autoconsciência ou simplesmente visão além do óbvio, eu tive

depressão por um bom tempo, e tentei suicídio em dois momentos diferentes da minha vida.

Na minha experiência há contraexemplos, e talvez seja importante citá-los. Um deles é

relevante para este trabalho: o Colégio Estadual Guilherme Briggs, localizado no bairro de

Santa Rosa em Niterói – no qual também atuou o grupo ANINGAPARA, do qual faço parte e

descrevo posteriormente –assim como muitas escolas, serve como um abrigo, um refúgio para

muitas crianças de situações periféricas, que vivem uma vida entre a violência, a pobreza. Para

esses alunos, a escola é quase um porto-seguro, na qual eles podem obter uma educação integral

e com propostas diversificadas, inclusive na qual se inclui refeições e recreação que não

recebem em casa. Não estou falando, portanto, de todas as escolas – estou falando de um tipo

específico de escola que é difícil identificar social, econômica, cultural e espacialmente, e em

alguns casos, de uma experiência específica de escola, que não é igual para todos. Esta escola

é, para mim, uma entidade simbólica, que bebe características de diversas superestruturas

opressoras. Há uma infinidade de pedagogias diferentes, propostas diferentes, e vez ou outra

resultados aparentemente positivos, mas analisar a fundo cada caso requer uma antropologia da

4 Enfermo em referência a Mateus 10:8, onde a enfermidade está associada aos demônios, em um caráter

ambíguo de doença do corpo ou da alma.

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escola, e isto foge ao escopo do trabalho. Não seria fácil questionar os resultados aparentemente

positivos e os negativos colocando-se em perspectiva a história daquelas pessoas. Digo isto

pois, talvez entre o inferno e a morte5, algumas propostas podem parecer muito boas – mas não

se sabe o quão boas em relação ao quão bom poderia ser sem uma perspectiva geral, o que não

se pode exigir de pessoas vivendo em situações precárias. Não sendo possível, foco no meu

problema, na minha experiência de escola – tanto de discente quanto de docente, e numa

proposta de solução. Do mesmo modo que Eduardo Coutinho e tantos outros documentaristas

escolhem aparecer e se posicionar nos seus filmes, revelando o filme como construção, revelo

minhas percepções idiossincráticas e assim acredito que o trabalho se torna mais honesto.

Com isso, é possível dizer que o espaço da escola em si ou o conhecimento per se não

são os problemas a serem atacados – no meu caso, deles eu sempre gostei, eu gostava de brincar

com meus amigos, e sempre tive uma curiosidade insaciável. O meu problema sempre foi e

talvez ainda seja com as pessoas da escola (e é óbvio que eu sei que não são todas). Porque eu

entendo a falta de estrutura, as políticas educacionais nacionais subdesenvolvidas, a formação

precária que os profissionais da educação têm, mas a falta crônica de auto responsabilidade

(que resulta em enrolação, empulhação e nas desculpas esfarrapadas), a arrogância e a

pantofobia que motiva as atrocidades são inaceitáveis para alguém que se considera profissional

seja em que área for. Na minha experiência e nas experiências de todas as pessoas de quem eu

colhi relatos durante toda a minha vida, examinados com calma, mais de 70% dos problemas

da escola residem nas pessoas que a integram, e não em problemas infraestruturais ou técnicos.

Infelizmente eu não tenho como provar nada disso a partir da minha experiência, a não

ser que eu andasse com uma câmera escondida. E felizmente o sindicato não vai ler minha

monografia, afinal ninguém da sociedade – além da banca – lê, então estou seguro. Não vai ter

campanha de difamação contra mim em rede social nem nenhuma outra estratégia mesquinha

de silenciar quem diz a verdade, e todo mundo pode voltar a viver em paz na mentira.

É ironia que eu esteja me formando professor, e de uma arte ainda por cima, nessa vida.

A julgar pelo ensino básico, eu não tenho nenhuma razão para sê-lo, muito pelo contrário. Na

faculdade, a quantidade de altos equipara ao de baixos, de modo que eu sinto que tanto ela me

doou quanto me consumiu tempo com idiotices. Não nutro sentimentos negativos por essas

pessoas, mas esta é, friamente, minha análise; o que houve, houve. Decidi transmutar isso em

algo que seja útil. O que eu levo de melhor da faculdade e da escola não são os conhecimentos

(até porque muitos dos quais eu adquiri lendo coisas sozinho, ou trazendo bagagem anterior, na

5 Em referência à série de quadrinhos Sargento Rock e também ao filme Revolver (2005, Guy Ritchie)

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verdade), são boas recordações de certas pessoas específicas, ou de certos momentos

interessantes – nos quais eu adquiri algo que chamava para mim mesmo de sabedoria, que é um

conhecimento além do conhecimento, um saber que transcende o saber, que enxerga as próprias

limitações do mesmo. Ao ler Os Sete Saberes, de Edgar Morin (2004), descobri que isto era

chamado de Conhecimento Pertinente.6 Muita coisa jogo no lixo, outras nem sequer lembro,

mas tiro das experiências práticas ainda alguma esperança para a educação.

Deixo esta foto como lembrete de algo que até hoje ouço repetidas vezes: “mais um dia

se passou e eu não usei para nada”. Mais ainda, como observação de que muitos de nós não tem

a mínima recordação desta fórmula, por que ela não constitui Significado para si. A última coisa

que eu desejo é que o processo educacional continue sendo uma atividade intragável, da qual

ninguém lembra em si, ou então lembra com desgosto, como é o meu caso.

6 É uma espécie de conhecimento que não mutila o seu objeto, isto é, que não se limita às barreiras da disciplina

onde ele se enquadra quando da divisão do conhecimento total. Morin aponta que neste ethos do conhecimento

disciplinar, perde-se de vista o Contexto, o Global, o Multidimensional e o Complexo.(MORIN, 2004)

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INTRODUÇÃO

O objetivo do presente trabalho é analisar alguns aspectos que aguardam o cinema

quando da sua entrada na escola, apresentando um recorte particular da discussão teórica a

respeito do aprendizado na situação atual e uma proposta para uma pedagogia interdisciplinar

do cinema centrada num motor estético, porém com métodos dialógicos e investigativos,

entendendo o fazer do filme com um projeto e um processo.

Primeiramente, faço uma discussão sobre o panorama da área na situação escolar que o

audiovisual encontra ao chegar na escola enquanto campo do ponto de vista de uma

Licenciatura em Cinema. Prossigo com um relato pessoal da atuação no campo e faço uma

breve discussão sobre as condições de estabelecimento do audiovisual como campo na escola.

Segundamente, procuro fazer discussões teóricas em três eixos – no eixo da estética,

debatendo conceitos como fotogenia e poética do ensino, no eixo do saber e as contribuições

que a perspectiva lacaniana fornecem para a escola, no eixo da linguagem e fazendo uma

discussão sobre como o objeto de estudo da arte seria reflexivo, isto é, o próprio eu, e no eixo

da interdisciplinaridade, costurando os assuntos anteriores numa culminação de proposta.

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1. A SITUAÇÃO ESCOLAR QUE O AUDIOVISUAL ENCONTRA

Já no prefácio do livro Integração e Interdisciplinaridade no Ensino Brasileiro, de Ivani

Fazenda (1979), escrito por Hilton Japiassú, a interdisciplinaridade – ou, talvez, a revelação da

alienação advinda de uma disciplinaridade – é descrita como um elemento de pavor pela escola,

devido ao dano que ela causa ao status quo onde o professor é revelador de uma suposta verdade

que há no mundo, portanto um elemento sine qua non na vida de um jovem. A

interdisciplinaridade lembra a incerteza que há no conhecimento, a importância do erro para a

construção do saber, e mais do que tudo, que nenhum saber é encerrado em si e mais valioso

que outro.

“Por outro lado, não posso deixar de ver no dogmatismo de um saber definitivo,

acobertado pela etiqueta “objetivo” ou pelo rótulo “verdadeiro”, um dos sintomas

mais evidentes de uma ciência em estado de agonia. A pretensa maturidade intelectual,

fundada no domínio de um saber objetivo, orgulho de tantos sistemas de ensino,

constitui apenas um obstáculo entre outros. A famosa cabeça bem feita, bem

arrumada, bem estruturada e objetivada, de que nos fala com tanta insistência e

sabedoria Bachelard, não passa de uma cabeça mal feita, fechada, produto de escola

e de modelagem. Por isso, trata-se de uma cabeça que precisa ser refeita. E o

interdisciplinar, ao lado da postura crítica ou de questionamento constante do saber,

ajuda a se refazer as cabeças “bem-feitas”. Pois cultiva o desejo de enriquecimento

por enfoques novos, o gosto pela combinação das perspectivas, e alimenta o gosto

pela ultrapassagem dos caminhos já batidos e dos saberes já adquiridos, instituídos e

institucionalizados. Mais do que nunca, precisamos estar conscientes de que não

nascemos com cérebros desocupados, porém inacabados. A sociedade e a escola

querem ocupar os cérebros dos alunos pela linguagem, pela instrução, numa palavra,

pelo ensino. Como se o processo de educação pudesse ser reduzido ao ensino do já

sabido, à transmissão do já conhecido, à conformação com o já adquirido. Donde a

necessidade urgente, me parece, de se psicanalisar os educadores (ou disciplinadores),

de se instalar uma psicologia da despsicologização, a fim de que eles passem a ser

agentes que despertem, que provoquem, que levem a descobrir e a criar (ou recriar),

e não se limitem a desempenhar este odioso papel de disciplinadores intelectuais, de

capatazes da inteligência ou de meros revendedores de um saber-mercadoria,

empacotado ou enlatado para fins ditos “pedagógicos”. (JAPIASSÚ, IN FAZENDA,

1979, p.15-16)

Para não mencionar o contexto multidisciplinar em que nasce a atividade

cinematográfica, que se insere numa dualidade arte-indústria – não só do ponto de vista

artístico, absorvendo diversos saberes das artes visuais, do teatro e da música, mas também das

engenharias, tecnologias e ciências, envolvidas direta ou indiretamente com criação, produção,

distribuição e exibição, o filme é em si o próprio revelar de uma ou várias perspectivas.

Portanto, existe na atividade de frequentar e tecer laços com os filmes7 um fundamento cultural

de se prestar atenção, prestar observação e engajamento com uma ou mais perspectivas. Um

discurso audiovisual, qualquer que seja, é um discurso de perspectivas – uma sucessão de

7 Para invocar o termo que Bergala (2008) usa.

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proposições de olhares e escutas, no qual o espectador tem a possibilidade de olhar por um jeito

que, de um modo ou de outro, é o jeito com o que o autor do filme teve um olhar ou um escutar.

Portanto, o gosto por filmes é um gosto por perspectivas, de modo semelhante ao

interdisciplinar – já que, como cita Japiassú, o interdisciplinar “cultiva o desejo de

enriquecimento por enfoques novos, o gosto pela combinação das perspectivas, e alimenta o

gosto pela ultrapassagem dos caminhos já batidos e dos saberes já adquiridos, instituídos e

institucionalizados.” (JAPIASSÚ, IN FAZENDA, 1979, p.15)

A escola fundada no monopólio do conhecimento é um câncer, assim como o estado

fundado nas bases do monopólio da violência – ambos instituições perversas que se

reproduzem, multiplicam e desdobram pelo sequestro do pensamento original. Ao nascer neste

mundo, o indivíduo está submetido, à força, a um contrato com o estado, cheio de termos dos

quais nunca foi consultado se consentia, inclusive o currículo mínimo escolar. O

comportamento generalizado é o mesmo de um zumbi – todos acham que esses termos valem,

como se eles flutuassem no ar que respiramos, de modo que há a tendência de repetir esse

comportamento e alimentar o moinho de almas. A ilusão de que podemos ser governados é a

mesma de que podemos ser libertados – uma grande mentira, que é repetida há tanto tempo e

por tantos que parece até verdade. E por necessidade de justificar o investimento e o sofrimento

passado, todos a reproduzem na vida posteriormente. Na minha perspectiva, a escola que

reproduz a anti-liberdade tem de acabar, e o estado também – tão rápido quanto possível. Porque

no fundo nunca passaram de mentiras, uma piada de extremo mau gosto – são meramente

figurativos em significado, mas reais em opressão. Substituir esta escola por uma reunião

semanal aberta na praça, sem restrição de idades, entre pessoas não-egóicas que correm atrás

de conhecimento e sabedoria sozinhas (e fazem textos, filmes ou o que for a fim de produzir

conhecimento e cultura em rede) e vão lá se reunir para trocar figurinhas seria muito mais

proveitoso.

Jesús Martín-Barbero diz em seu livro Dos Meios às Mediações que a escola e a família

perderam o poder de mediação entre o jovem e o mundo (MARTÍN-BARBERO, 1987). Esta

escola que vai morrendo é uma que age como mediadora do conhecimento, isto é, entre alguém

que produz e alguém que consome conhecimento, tal como uma loja, na qual o professor é um

funcionário que opera esta mediação – isto é, ele vende um conhecimento que não produziu,

apenas “copiou”, a um estudante, que também não pensa nem produz, apenas absorve –

consome o ensino. Este modelo precisa de mudanças e um mar de propostas e alternativas foram

feitas, mas ainda não se sabe dizer o que vai despontar como modelo.

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Além disso, como aponta Jorge Forbes(2010), a postura do indivíduo pós-moderno é a

de uma auto-responsabilidade sem padrões, e isto faz de qualquer instituição de padronização

obrigatória obsoleta. É mais do que necessário à escola, se deseja sobreviver, reaprender a

escutar o outro; reaprender a escutar o indivíduo, especialmente aquele cujo mundo pretende

mediar. Não há mais nenhuma possibilidade de continuar ensinando como se o indivíduo que

entra na escola fosse o mesmo de um século atrás. Para contextualizar melhor esta passagem,

cito Jorge Forbes, psiquiatra e psicanalista – um dos fundadores da escola lacaniana no Brasil,

em sua tese Inconsciente e Responsabilidade:

“A primeira clínica, ou a do significante, que privilegia o registro do Simbólico, foi a

que dominou por muito tempo a psicanálise, sendo adequada a um mundo onde o laço

social se estruturava verticalmente, destacando o sentido do Pai. A segunda clínica

surgiu da necessidade da psicanálise responder a novos sofrimentos proporcionados

por um laço social horizontalizado, efeito da globalização. Se na primeira o Complexo

de Édipo era soberano, na segunda, a psicanálise vai além do Édipo, além do sentido

do Pai, pondo o Real no lugar privilegiado, anteriormente ocupado pelo Simbólico.

Ao privilegiar o Real sobre o Simbólico e o Imaginário, a prática clínica muda de uma

posição de “dar um sentido a mais”, consagrado nas interpretações das formações do

inconsciente recalcado, para o seu avesso: um limite ao sentido, um basta à ideia de

que haveria sempre algo mais a ser explicado. É esse aspecto que se condensa no título

da tese: Inconsciente e Responsabilidade, pois, contrariamente ao que

costumeiramente se pensa, somos sim responsáveis pelo acaso e pela surpresa.”

(FORBES, 2010, p.6.)

O cenário se agrava quando somado à propensão à privatização por parte de grupos

políticos fortes no cenário nacional8, e esta não como uma venda de ativos do governo para

aquisição de outros ativos, mas como um meio de simultaneamente desresponsabilizar o

governo das funções que não procurou efetuar com eficácia e enriquecer amigos do setor

privado que compram barato. Portanto, ou a escola se reinventa, ou um dia vai morrer.

O educador audiovisual talvez traga um refresco a esse assunto por dois aspectos: tanto

por trazer competências que o favorecem na desconstrução dessa mídia que tanto se infiltra na

escola como a rouba o protagonismo da mediação de mundo9, quanto por trazer dentro de si um

aspecto artístico que, ao mesmo tempo que centra a análise e o ensino no Eu, propicia um lugar

diferenciado na escuta do outro.

Ao cumprir com o dever de escrever uma monografia para terminar o curso, e, com

meus estágios igualmente obrigatórios, procurei contribuir no plantio de uma semente que, ou

salve a escola ou talvez até a destrua de vez. Que aconteça o que tiver de acontecer. As soluções

existem e são perfeitamente possíveis; mas elas requerem indefectivelmente a vontade e a

8 Como linhas do PSDB e do PMDB, suas bancadas aliadas e partidos subsidiários. Vale citar o surgimento

relativamente recente de movimentos apartidários que pregam uma ideologia reducionista do “estado mínimo”,

como o Movimento Brasil Livre. 9 Conforme aponta Jésus Martín-Barbero (1987), anteriormente comentado.

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dedicação das pessoas envolvidas na execução, uma vontade que frequentemente se equipara à

do sacerdócio. E como eu disse, o centro dos problemas são as pessoas. Por isso acredito na

possibilidade da destruição.

Pois bem, eu resolvi – eu precisei, na verdade, durante toda minha vida acadêmica –

buscar a razão de toda essa confusão, a raiz de todos esses problemas e do sofrimento humano,

mais especificamente os da escola, e procurei tentar encontrar uma solução. E existe uma raiz,

e tem nome: ego. Desta estrutura mental que se origina da imagem e se desenvolve no medo,

surgem todos os desdobramentos nefastos que infectam o ser humano e suas criações, e quando

retroalimentados pelo medo em massa, criam organizações e superestruturas que asseguram sua

sobrevivência e reprodução. Não é o meu foco aqui debater exatamente como isso se dá; isso

seria assunto para um trabalho mais longo.

O problema da escola, de modo bastante simplificado, se origina na necessidade de

imaginar o que é um cidadão pleno, pois o problema político resultante da discussão de o que

deve constar num currículo escolar parte da concepção nacional de um cidadão pleno

imaginário médio no qual um currículo base deve mirar.

Ele se desdobra noutro problema, que é o de organizar esse grande corpo de

conhecimento de mundo que deve constar no currículo e dividi-lo em pedaços assimiláveis, de

modo sistematizado, simplificado e digerível. Tanto o primeiro problema quanto o segundo são

assaltados pelo medo, gerando no primeiro caso visões perversas do que deve ser um cidadão

pleno – ou ainda antes, do que de fato é um ser humano –, e no segundo, divisões dos

conhecimentos que os encerram em verdadeiras bolhas, ilhas de saber alienado de ligação com

o mundo, com necessidade constante de afirmação.

Isto, por sua vez, amplifica o primeiro problema – são formados grupos de interesse que

vão buscar exercer influência tendenciosa sobre o tal conceito de cidadão pleno, que não visam

atingir o propósito do mesmo, porém favorecer a si na disputa. Decorre disso que o currículo

mínimo não é feito com o intuito de fornecer ao cidadão que é obrigado a cursá-lo, porém com

o intuito de agradar certos grupos de interesse em disputa por fatias cada vez maiores do

espectro educacional – como se suas matérias fossem mais importantes que as outras.

Com o princípio distribuidor de conhecimento corrupto à raiz, decorre que toda estrutura

educacional é pensada afim de atender demandas que não correspondem à realidade cotidiana

nem profissional do cidadão que mira, produzindo um cenário alienador ao invés de libertador.

E as pessoas que trabalham na escola, e os próprios alunos, não estão livres da lógica de

reprodução do medo, e da escravização mútua. É preciso libertar-se.

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2. UM RELATO PESSOAL DE LICENCIANDO EM CINEMA

Antes de partir diretamente para o tema, que é refletir sobre a condição psíquica no

contexto da escola sob a minha experiência a fim de saber como o audiovisual pode contribuir,

devo fazer uma contextualização sobre o campo do cinema e educação e sua atual conjuntura

na escola. Como arte, o Cinema é ainda relativamente jovem – mesmo hoje, em espaços fora

da academia, ainda pode haver debate se o mesmo é, de fato, arte ou não – uma vez que estamos

inseridos numa realidade dominada por uma indústria do audiovisual que opera sob a lógica do

capital, da venda de produtos culturais, da arte como entretenimento, e numa formação histórica

que favorece o excesso. Ainda não há por todo o lugar o reconhecimento aprofundado da

potência disparadora do audiovisual enquanto campo de conhecimento, de sua potência

desenvolvedora e enriquecedora do aparelho criativo e do senso estético. Pouco a pouco, a

escola talvez o absorva como uma das possíveis artes, mas ainda não há um ambiente que o

acolha facilmente – timidamente, o cinema é explorado por professores de diversas disciplinas,

geralmente como instrumento de mostra e reflexão. É absolutamente comum ouvir falar de um

professor de História que usa filmes para transmitir seu conteúdo – um filme sobre a segunda

guerra mundial introduz a matéria, pescando os alunos pelo afeto, e então o professor segue

para a aula expositiva da história do período referido.

O curso de Licenciatura em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense

é inovador – o primeiro do Brasil a formar educadores de Cinema e Audiovisual, para atuar no

campo da educação básica, tal como um professor de arte, porém com as ferramentas

específicas da área – isto é, profissionais capazes de cumprir a tarefa de educar através do

cinema. Pioneiro no país, conforme consta em seu projeto político-pedagógico, o curso foi

proposto a partir de um contexto nacional na qual “a indiscutível presença do audiovisual na

vida cotidiana tem ampliado a intimidade de todos com a sua linguagem sem que se faça uma

reflexão cultural, estética e técnica dos modelos de representação social nos quais se insere essa

vasta produção” (UFF, 2011)10. O curso existe desde 2012, e tem dado às suas primeiras turmas

de alunos um campo amplo ainda por explorar, no que o curso se esforça para desenhar um

processo de formação de docentes aptos a atuar nas áreas mais diversas possíveis, mas ao

mesmo tempo um terreno de atuação ainda por arar.

Como qualquer curso de licenciatura, os graduandos do curso tem estágio obrigatório, e

10 Trata-se do projeto político pedagógico da UFF, presente em

www.cinevi.uff.br/images/docs/licenciatura/...gerais/PROJETO_PEDAGOGICO.pdf. Data de acesso: 6 de julho

de 2017.

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podem, durante o curso, integrar práticas laboratoriais em iniciação científica, além de integrar

o PIBID11 e outros programas. Nosso curso foi abençoado com 12 bolsas de PIBID, além de

outras oportunidades de atuação, já nos seus estágios mais iniciais – um número que considero

até o momento positivo, relativo à proporção de bolsas por alunos de outros cursos de

licenciatura. Além disso, talvez por ser um assunto novo à escola e querido por muitos, talvez

por estar muito presente na vida dos tempos atuais a este trabalho – o audiovisual, de modo

geral, parece ser recebido com alegria pelos professores e pela escola, num primeiro momento.

Infelizmente, a alegria ainda não é simétrica à capacidade de agir da escola para o próprio

recebimento desta disciplina, de modo geral, salvo raros casos. As razões disso pretendo discutir

aqui.

Durante meu curso, ouvi e compartilhei muitos relatos sobre estas práticas e seus

impactos com meus colegas, sejam eles em situações semelhantes ou não. Estive no PIBID –

na época, estagiei no Colégio Estadual Raul Vidal, e colhi experiências importantes. Estagiei

num projeto de educação à distância feito em São Gonçalo do Amarante por um sistema moodle

customizado pela UFF, na qual diversos professores de escolas públicas de lá tiveram a

orientação de um mediador para realizar vários filmes-dispositivos.

Estagiei, para a matéria de Pesquisa e Prática de Ensino (doravante PPE)12 no Colégio

Universitário Geraldo Reis, o colégio de aplicação da UFF – doravante COLUNI13.

Posteriormente fui convidado para integrar o LECINE14, no qual participei ativamente de uma

proposta de levar para o COLUNI uma estrutura fixa, com um grupo de trabalho composto

basicamente por alunos em final de curso, afim de facilitar o estágio de outros estudantes da

licenciatura no futuro. Com este mesmo grupo, demos oficinas de cinema para professores da

11 O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – PIBID é um programa de aprimoramento do

processo de formação de docentes para a educação básica, vinculado a Diretoria de Educação Básica Presencial

– DEB – da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. O PIBID oferece bolsas

para que alunos de licenciatura exerçam atividades pedagógicas em escolas públicas de educação básica,

contribuindo para a integração entre teoria e prática e a aproximação entre universidades e escolas. 12 A disciplina de Pesquisa e Prática de ensino é na qual se dá o estágio obrigatório da licenciatura, que na UFF é

dividida em 4 partes – PPE I, PPE II, PPE III e PPE IV – que totalizam 200h de aulas teóricas e 200h de prática

de ensino em escolas pelos discentes do curso de licenciatura. 13 O Colégio Universitário Geraldo Reis é uma unidade acadêmica pertencente à Rede Federal de Ensino,

mantida pela Universidade Federal Fluminense. Anteriormente era um CIEP, administrado pelo estado, que

estava para ser desativado, mas por meio de um convênio assinado entre a Universidade Federal Fluminense em

2006 com o Governo do Estado do Rio de Janeiro, garantiu-se a permanência da equipe de professores e

funcionários da rede estadual lotados no colégio e dos alunos do anterior CIEP Geraldo Reis, onde agora

funciona. 14 Laboratório de Cinema e Educação da Universidade Federal Fluminense, liderado por Eliany Salvatierra, que

na época era Vice-Coordenadora do curso de Licenciatura em Cinema. Dentro do laboratório, diversas práticas

em cinema e educação foram desenvolvidas, e é também sob o guarda-chuva do mesmo laboratório que o PIBID

de Cinema e Audiovisual é desenvolvido.

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rede pública de ensino. Este grupo se chamava, quando de sua concepção, CINESCOM15,

porém posteriormente veio a ser renomeado para ANINGAPARA (nome científico da planta

comigo-ninguém-pode), e era composto por mim, Liana Lobo Batista, João Paulo Barreto Dias,

Rosana Miranda e Luana Farias, contando com o apoio de Alice Akemi Yamasaki, Emerson

Guimarães entre outros. Eu e Liana somos da turma de 2013, a segunda turma, e ambos Rosana,

João e Luana são da primeira turma de licenciatura em cinema, de 2012.

Nos unimos em um coletivo para propor atuações no campo contando com parcerias

com docentes da UFF e com o projeto Inventar com a Diferença, protagonizando ações na

criação e desenvolvimento de atividades pensadas para fortalecer o campo e o próprio curso de

Licenciatura da UFF no seu diálogo efetivo com a sociedade. A todas essas experiências, somo

o relato das experiências de outros colegas, que contribuíram em muito para formar um

diagnóstico preliminar para tentar responder à questão problema deste trabalho.

Originalmente, o projeto buscava agir na criação de 4 espaços fixos de trabalho, a longo

prazo – no COLUNI, no Colégio Estadual Guilherme Briggs (doravante CEGUIB), no morro

do Palácio (provavelmente no Macquinho) e em mais alguma comunidade (na época pensava-

se na Mangueira).

O planejamento inicial deste projeto se deu em agosto de 2016 em diante, tendo durado

até outubro. Conversas não-oficiais acerca do seu conteúdo já vinham de antes de junho, mas

em agosto foi formalizada a criação do grupo de trabalho CINESCOM. O início de projeto para

nosso grupo foi de planejamento de ações, propondo e adequando as propostas às condições de

tempo e espaço no COLUNI. O primeiro passo foi uma série de reuniões de planejamentos e

de produção sobre a oficina que será realizada no COLUNI e sobre a formação de professores.

Neste período inicial, foram discutidas amplamente questões materiais, financeiras e

operacionais norteando a viabilidade do projeto, bem como questões políticas e pedagógicas,

criando consenso entre as partes acerca da presença dos alunos de licenciatura em cinema nas

salas de aula do COLUNI para além de práticas paralelas sem um contexto social e escolar

maior, como vinha acontecendo de certo modo com alunos do PIBID e PPE – que geralmente

acompanham algum professor apenas. Havia uma certa ambição na ideia de oferecer uma

matéria de Cinema na grade oficial da escola, mediada por um professor da escola e por alunos

da Licenciatura em Cinema.

15 CINESCOM significa Cinema, Escola e Comunicação. É um grupo de pesquisa e extensão originado no

LECINE para efetuar trabalhos também na área de cinema e educação, em especial buscando fortalecer uma

ponte entre o curso de Licenciatura em Cinema e Audiovisual da UFF e o COLUNI, além de outras escolas

públicas através das oficinas de cinema para professores. Em junho de 2017, seu nome mudou para

ANINGAPARA, sendo mantidas as pessoas que o compõem.

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Estiveram presentes nas primeiras reuniões a Coordenadora pedagógica do COLUNI

Fátima Pereira Picanço, a Vice-Coordenadora e Professora do Curso de Licenciatura de Cinema

e Audiovisual da UFF Eliany Salvatierra Machado, a Professora da Faculdade de Educação da

UFF Alice Akemi Yamasaki, o Professor do COLUNI na disciplina de História Emerson de

Carvalho Guimarães, o Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro Alexandre Palma,

Professora do CEGUIB na disciplina de artes Glaucia Andreza do Nascimento, o Professor e

Produtor no Portal Emdiálogo/UFF Geraldo Pereira, e os alunos de Licenciatura em Cinema

pela UFF e integrantes do grupo CINESCOM – Liana Lobo Baptista, João Paulo Barreto Dias,

Yuichi Inumaru, Rosana Miranda, Luana Chaves de Farias.

Neste período inicial, realizamos visitas técnicas na escola, nos reunimos com o corpo

docente anunciando a entrada do projeto na escola, e visitamos o espaço onde seria construída

nossa base para escola. Questões relacionadas ao laboratório de informática foram discutidas,

além de uma reforma na instalação que nos foi destinada, que estava sendo usada como depósito

e mantinha muita poeira.

O COLUNI, cabe mencionar, tem passado por reformas curriculares graduais, e a partir

de uma reforma no projeto pedagógico da escola que vinha sendo desenhada há um bom tempo

pelos docentes, mudou suas estratégias de avaliação e passou a oferecer matérias eletivas em

sua grade na parte da tarde, além das disciplinas obrigatórias da manhã. Decidimos em reunião

junto à coordenação pedagógica da escola que as disciplinas de cinema teriam horário dentro

da grade curricular da escola à tarde, ou seja, um espaço igual às demais disciplinas eletivas,

no ano letivo de 2017.

Paralelamente, produziríamos o curso de formação continuada de professores da rede

pública, sobre cinema e educação. Planejamos 4 encontros, cada um centrado em um dos quatro

seguintes temas: Imagem, Som, Montagem e Curadoria.

Para viabilizar a implementação de ambas as frentes, concorremos ao edital de seleção

de parceiros do projeto Inventar com a Diferença, que visa oferecer formação e

acompanhamento a educadores de escolas públicas em todo país interessados em trabalhar com

Cinema e Educação. O projeto oferece uma verba de 30 mil reais, a ser utilizada a critério do

pleiteante, que usamos para custear equipamentos de boa qualidade para a Escola de Cinema,

entre eles uma câmera Canon T5i, cartões de memória, discos rígidos externos, interface de

som Tascam DR-60, microfone shotgun Rode NTG2, headphone de monitoramento Sony

MDR7506, um tripé de cabeça hidráulica AVA, entre outros. A coordenação garantiu um espaço

na escola para o armazenamento destes equipamentos – uma sala destinada à escola de cinema

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com um armário. Além disso, esta verba possibilitaria, caso necessário, custear necessidades

operacionais no futuro, como viagens e excursões com os alunos, produção de eventos na escola

(mostras e festivais).

Felizmente, fomos contemplados pelo edital e selecionados. Foram 25 projetos

selecionados, dentre 151 de todo país. O Inventar com a Diferença realiza encontros entre os

grupos de diversos lugares do país, e nesta edição realizou 3 encontros deste tipo com 8 ou 9

grupos cada. Nos dias 16 e 17 de setembro de 2016 atendemos ao workshop do projeto, que

consiste numa formação de 20 horas dentro de sua metodologia, que trabalha com dispositivos

fílmicos – metodologia que já era conhecida pelo grupo e pôde ser aprofundada.

Durante os dois dias foram debatidas profundamente as propostas e a metodologia do

inventar, e houve uma tarde de oficina de dispositivos, os quais foram debatidos depois afim de

compreender a prática e a reflexão na metodologia. Do ponto de vista acadêmico, foi altamente

proveitoso estar em contato com propostas das mais diversas de todo país, e adquirir

conhecimento a partir dos relatos e experiências compartilhados. Alguns dos projetos dos

colegas estavam em consonância direta com a nossa proposta, porém mais avançados e com

mais tempo de atuação em seu estado, o que foi interessante para dar um espelhamento ao nosso

projeto.

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3. O AUDIOVISUAL COMO CAMPO NA ESCOLA

O Audiovisual é um campo emergente na Academia. Mas em outros campos – como na

educação básica – minha experiência e a de meus colegas mostram que a recognoscibilidade do

mesmo é absolutamente limitada, quando existe.

Sem uma tradição escolar, a maioria dos professores de ensino fundamental e médio não

sabe o que tem o cinema a oferecer no campo educacional, o que torna esquálida a

implementação pelos alunos do curso de práticas pertinentes ao cinema na escola. Por exemplo,

quando se trata da disciplina de Prática e Pesquisa de Ensino, cujo estágio obrigatório requer

observação e atuação na escola. Com qual professor o licenciando estagia – se não há

professores de Cinema e Audiovisual na escola?

Talvez o de Artes – porém, esta alternativa geralmente tende a nos revelar outro

problema: que o campo das artes na escola de modo geral é um dos (senão o) que mais sofrem

de achatamentos. Em muitos casos, o professor claramente não sabe sequer do que se trata o

assunto Arte, nunca teve nenhuma reflexão filosófica aprofundada sobre o assunto – e não é

necessariamente por sua culpa. Até a década de 1990, a maioria das formações de arte-educação

no país oferecia uma formação multidisciplinar em artes, de modo amplo e superficial, de

apenas dois anos, geralmente resultando em ensino de desenho técnico nas escolas. Um

panorama geral desta lamentável situação pode ser visto no artigo de “Arte-Educação no Brasil:

realidade hoje e expectativas futuras”, de Ana Mae Barbosa (1989). Esta situação por si só já é

um tema para grande debate, o que não ocorrerá no presente texto, salvo a contextualização.

Fato é que alguns investimentos no campo ocorreram de lá para cá, como por exemplo

o REUNI16 e a expansão das universidades públicas durante os governos petistas – da qual

inclusive se origina o próprio curso de Licenciatura em Cinema da UFF. Mas seus impactos e

desdobramentos, se existem, lentamente (mais lentamente que a escola de hoje necessita)

penetram na educação básica, e até hoje permanecem consequências nefastas de políticas

educacionais do passado mal desenhadas (com o perdão do trocadilho). Sem mencionar que a

expansão supracitada se dá em quantidade, mas não é acompanhada pela qualidade, muitas

vezes. Isto torna o trabalho difícil – por vezes, o cinema enquanto arte é um alienígena mesmo

para os professores das artes.

Outra opção seria, então, recorrer a parcerias com os professores de ciências humanas,

16 O REUNI é um programa do Governo Federal de Apoio a Planos de Reestuturação e Expansão das

Universidades Federais brasileiras, instituído pelo Decreto Presidencial nº 6.096, de 24 de abril de 2007.

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como História – onde ocorre uma conexão nos assuntos que relacionam direitos humanos, ética

e estética, memória e afetos, espaços públicos e privados, e modos de inscrição dos mesmos em

narrativas – cada um a seu modo, História e Cinema. Ocorre diálogo, sim; mas é o máximo.

De modo geral, o cinema é instrumentalizado – ele se torna uma vitrine agradável de

certas matérias. Sabemos que é preciso afeto ligado a um saber para que haja relevância do

mesmo; sem isso o aluno não o apreende, não há interesse legítimo. Uma aula de segunda guerra

mundial é facilmente ilustrada com um filme retratando epicamente os eventos históricos. Uma

aula de ecologia, biologia marinha, ou até mesmo de química pode ser potencializada com o

uso de um documentário sobre poluição marinha. Cria-se afetos com o conjunto de

conhecimentos relacionados, por meio do filme, e assim os conhecimentos são retidos mais

facilmente. Ou seja, o filme é quase como um instrumento facilitador da passagem da matéria.

Se a mente de um aluno fosse uma porta fechada, passar a matéria com a ajuda de um filme é

como passar um bilhete por debaixo da porta. Rosália Duarte (2002) ressalta que o uso do

cinema com fins pedagógicos deveria exigir um conhecimento de história e teoria do cinema, e

completa “filmes não são decalques ou ilustrações para acoplarmos aos textos escritos nem,

muito menos, um recurso que utilizamos quando não podemos ou não queremos dar aula”

(DUARTE, 2002, p.95).

Isto não é, de todo, negativo. Esta prática revela aspectos da obsolescência do nosso

sistema de ensino, cujas causas dentre os quais citarei uma: o fechamento das matérias em

verdadeiras bolhas, ilhas de conhecimento alienígena, desconectado do mundo – especialmente

o mundo do aluno. A sala de aula é, para muitos, uma antessala da vida, um lugar outro que não

o próprio mundo. De tão desconectadas da realidade que podem ser, às vezes é preciso recorrer

a truques para tornar a matéria digerível, assimilável, conectável. Isto é o que é negativo e

lamentável – o ponto de alienação do conhecimento em que chegamos. Reconhecer a ausência

de afetos e buscá-los, mesmo que de um modo ainda precário, é o natural. O reconhecimento

dessa falta, dessa necessidade do afeto – e consequentemente a potência das artes e do cinema

– não é negativo, é natural.

Se o audiovisual é, por um lado, potente na interdisciplinaridade por natureza – algo que

discutirei mais à frente – e isto talvez o traga uma condição especial na sua recepção, por outro

lado o audiovisual enquanto campo de conhecimento em si – isto é, o conhecimento próprio da

área a ser oferecida – fica inteiramente relegado à margem quando o filme é apenas instrumento

de transposição de dificuldades do campo da educação como um todo para uma ou outra matéria

das ciências. Como ia dizendo anteriormente: o diálogo ocorre; mas é só. Para o cinema se

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estabelecer na escola como campo de conhecimento, é preciso mais. Além disso, mesmo sob

condições onde há apoio institucional mais próximo, como o PIBID (em que é oferecida bolsa

ao aluno e ao professor supervisor da escola), a aridez do terreno, a falta de estrutura material

e mesmo político-pedagógica na escola pública pode prejudicar incalculavelmente o impacto

de qualquer ação. É possível realizar práticas pontuais, com os celulares dos alunos e há vasto

material publicado demonstrando isso. Entretanto, isso é uma estratégia boa para penetração e

fixação no imaginário da escola – isto é, o cinema passa de completo alienígena a alguém

familiar.

Para ocorrer um estabelecimento concreto na escola, é preciso que haja suporte material,

para que ocorra aulas de cinema de fato. É preciso ter acesso a um certo conjunto de ferramentas

– câmeras, interface de áudio e microfone, projetor para exibição – que permaneçam

disponíveis para que haja planejamento a longo prazo e continuação das práticas. Caso

contrário, o visto de turista não acede ao de residente – isto é, o cinema não vem a se tornar um

cidadão da escola. Afinal não se dá aula de filmes usando lousas e cadernos, e sim vendo e

fazendo filmes, e refletindo sobre ambos. Por isso, muitos dos relatos de alunos do curso de

Licenciatura em Cinema que temos sobre estágio na escola mostram que geralmente o que vinha

ocorrendo são apenas práticas pontuais, sem uma continuidade – com uma exceção que

pretendo comentar no futuro. São ações de difícil articulação e pouca duração, ou seja, de

rendimento baixo a longo prazo. Isto é, o aluno procura o professor para estagiar, e depois de

muito tempo de conversa, são desenvolvidas poucas ações, e então o trabalho se encerra. É

quase como uma lua de mel.

Portanto, frente a este cenário acima descrito, o grupo ANINGAPARA, em seus dias

iniciais (na época ainda operando sob o guarda-chuva do LECINE, com o nome de

CINESCOM), avaliou que as frentes de ação mais elementares seriam duas – uma com o

objetivo de construir e fixar uma escola de cinema no COLUNI, e outra com o objetivo de

fornecer oficinas de formação em cinema e educação para professores da rede pública de

ensino.

Com a primeira frente de ação, seria possível experimentar uma ponte continuada entre

o curso de Licenciatura em Cinema e Audiovisual da UFF e o COLUNI, estruturalmente

concreta tanto do ponto de vista político-pedagógico quanto do ponto de vista material. Para

isso, contamos com o apoio de Emerson Guimarães – professor de História e principal parceiro

pedagógico nosso dentro do colégio, e Fátima Picanço, coordenadora pedagógica e figura

principal na administração do colégio. Uma de nossas esperanças era que, uma vez que esta

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frente de ação funcionasse de modo estável, a escola poderia ser tomada como um modelo a ser

seguido.

Com a segunda frente de ação, seria possível experimentar a criação de novas pontes

entre o curso de Licenciatura em Cinema e Audiovisual da UFF e outros colégios e seus

professores, e disciplinas diversas além das artes. Isso seria uma iniciativa de plantar uma

semente a fim de aumentar o grau de familiaridade com o campo Cinema e Educação com as

escolas públicas locais pouco a pouco, ao longo das gerações de alunos. Além de possibilitar

novas parcerias, no futuro, para alunos do próprio curso, que queiram estagiar em escolas

diversas, uma vez que um contato inicial já tenha sido estabelecido. Afinal, tornou-se evidente

a necessidade de construir e manter uma rede diversificada de educadores e pesquisadores que

pensam Cinema e Educação dentro e fora da UFF.

Em sequência à reforma curricular que inseriu matérias optativas na grade do COLUNI,

as atividades da Escola de Cinema iniciam já dentro do currículo pedagógico de 2017 do colégio

– todas as quartas-feiras das 13:30 às 15:00 para o Ensino Fundamental II, e 15:30 às 17:00

para o Ensino Médio. Para cada disciplina, 20 alunos de turmas mistas para cada horário. Uma

das razões pelas quais se desejava uma matéria eletiva na grade da escola, para ir além das

oficinas pontuais e das práticas já realizadas (como o que aconteceu no PIBID) era a valorização

do estudante de Licenciatura em Cinema e Audiovisual da UFF, pois a formação desses sujeitos

traz uma nova cara de profissionais de Cinema e Educação, isto é, uma afirmação do campo.

Por muito tempo no campo de Cinema e Educação tivemos diversos projetos de pessoas que

trabalham com cinema batalhando para elevar a compreensão do campo, e agora temos um

processo de formação que pensa como essas duas áreas, cinema e educação, se interligam desde

o início. E é preciso, para contribuir com a formação profissional desses futuros educadores de

cinema, manter uma rede fortalecida no campo de Cinema e Educação na UFF. Evidentemente,

conseguir introduzir com efeito permanente na grade escolar uma ou mais disciplinas que

contemplem o cinema – não como instrumento de outras matérias, e sim como campo de

conhecimento próprio – é um problema que necessita ser atacado por mais de uma frente.

Porém, dar aulas de cinema é algo que demanda tempo, no sentido mais estrito da

palavra – tempo de aula. Se tivermos apenas dois tempos de aula isto é, uma hora e meia, para

dar uma matéria de cinema, como faremos para passar um longa-metragem, debater o mesmo

em sala de modo aprofundado e tentar uma prática (ver, fazer e refletir)? Como procurei deixar

claro na introdução, não é minha intenção competir com outras disciplinas por uma fatia maior

de tempo, não creio que isso seja solução viável para a escola. Na dimensão do simbólico,

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ocupar um espaço garantido na grade da escola e poder medir impactos de ações continuadas

por apoio institucional é de alto valor, mas na dimensão do real, tenho certeza de que é preciso

pensar uma outra estratégia para o futuro próximo.

A experiência de trabalho com ambas as frentes me mostra que o cinema não é um

campo estabelecido na escola. Isto é, na dimensão simbólica do ensino básico, ele ainda é um

estranho. Na ficha de inscrição da oficina de formação em cinema e educação, muitos

professores indicaram que seu interesse pelo campo reside na ideia de que o mesmo tornaria as

aulas mais atrativas aos alunos; alguns informaram ter experiência com cinema por utilizarem

filmes na sala de aula para despertar o interesse dos alunos sobre assuntos a serem abordados –

o que confirma uma das preocupações quanto ao uso do cinema dentro de escola contra o qual

o grupo tinha como objetivo trabalhar, que é a instrumentalização (ou melhor, o uso meramente

instrumental) do cinema.

Quanto à experiência na escola, é absolutamente pertinente pensar numa Escola de

Cinema para a Educação Básica na UFF que estabeleça um ponto fixo de articulação onde os

licenciandos de cinema possam realizar suas práticas e pesquisas em ensino, o que contribui

com a formação docente dos mesmos de modo insubstituível. Se esta universidade é uma das

mais antigas no ensino de cinema, é pioneira em Cinema e Educação e criou o primeiro curso

de formação de professores de cinema, faz sentido que seu colégio de aplicação desfrute destas

propriedades e ofereça também a seus alunos uma educação artística com potência na área de

cinema bem explorada – bem como se projetar com protagonismo e pioneirismo no campo,

dentre as escolas públicas – quem sabe servindo de modelo em caso de práticas integradoras

bem-sucedidas.

Porém ao chegar nesta escola, enfrentamos inúmeros problemas. Não é do meu desejo

entrar em detalhes e pessoalizar as questões, primeiro porque não creio que isto nada adiantaria

para este trabalho e tampouco para o desenvolvimento pessoal e profissional das pessoas

envolvidas, além do campo, e espero deixar explicado o porquê no decorrer do texto. Segundo

porque as experiências relatadas mostram que não são problemas particulares, porém próprios

da estrutura educacional vigente e talvez do próprio ser humano. O cinema é um convidado

ilustre no primeiro momento, mas depois se torna um desafio ao status quo. Cezar Migliorin

reflete a respeito em seu livro Inevitavelmente Cinema:

“O cinema na escola é bastante aceitável quando ele chega na forma de exibição de

filmes e debates em torno de conteúdos presentes nos filmes, mas e se levarmos a

sério a possibilidade do cinema pensar o mundo e consequentemente a escola? Que

implicações e invenções nos trazem essa ousadia? Fundamentalmente, o cinema se

apresenta como uma experiência com o mundo, com o outro, com o conhecimento,

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através de imagens e narrativas. (...)Não por outro motivo, sempre foi fundamental

para nós que a produção de imagens e sons estivesse na escola, e não somente a

exibição de filmes. Com a produção de imagens, o aprendizado passava

necessariamente por uma relação criativa e crítica por parte dos alunos. (...)Se as

imagens hoje fazem com frequência o papel contrário, limitando nossas experiências

– do turismo à publicidade – a aposta no cinema não deixa de ser um embate pela

possibilidade de uma experiência, pela possibilidade da presença dos estudantes na

relação com o que eles vêm e sentem. Não seriam esses os papéis de toda educação e

de toda produção de conhecimento? ” (MIGLIORIN, 2015. p.10)

Como este problema pode ser atacado? Será que há algo maior que o cinema no

problema do cinema na escola – inclusive o professor e a própria ideia de disciplina? Como o

cinema pode enfrentar um problema que transcende a si e se estende por toda a discussão da

educação brasileira?

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4. UMA FOTOGENIA DO ENSINO?

Desde a aurora da história do ser humano há os registros artísticos. Dos seres vivos neste

planeta, o único capaz de produzir a arte é o humano. Seja enquanto habilidade ou conjunto de

meios e procedimentos através dos quais é possível a obtenção de produtos ou fins práticos,

seja uma técnica, dentre as diversas teorias da arte o campo está sempre ligado às manifestações

estéticas e/ou comunicativas, especialmente no que se refere ao processo criativo, à percepção

humana e à expressão de ideias e emoções.

Diversas tentativas de enquadrar o cinema como arte foram tentadas no decorrer da

história do cinema, especialmente no engatinhar da linguagem cinematográfica. O Manifesto

da Sétima Arte, escrito por Ricciotto Canudo – teórico do futurismo italiano – é um exemplo.

Escrito em 1912, propõe que o cinema seja a sétima arte, e uma arte cuja característica principal

é a síntese, a totalidade, abrangendo assim as outras artes. (BRANDÃO, 2008)

Uma dessas tentativas de denominar o que define o cinema enquanto arte está em Jean

Epstein, com o conceito de fotogenia, que define como um aspecto da coisa filmada cujo caráter

seria realçado pela reprodução cinematográfica, sendo assim, aquilo que “é para o cinema o que

a cor é para a pintura, o volume para a escultura – o elemento específico dessa arte” (EPSTEIN,

1921-1953). A arte do cinema pode ser entendida como “um acontecimento capaz de

desterritorializar a consciência daqueles por ela afetados”, possibilitando ao espectador

“transcender estruturas de pensamentos cristalizadas pelo olhar viciado” (BARRETO, 2014).

Maria Irene Aparício considera, no artigo “As teses essenciais de Jean Epstein: uma

breve introdução” (2014), que as teses essenciais de Jean Epstein são três: primeiramente a

fotogenia e o movimento como especificidades da arte fílmica, segundamente o cinema como

língua universal e terceiramente da questão dualística bem/mal. No que se refere à fotogenia,

diz:

“É a partir dos conceitos de movimento e fotogenia – o último terá sido utilizado pela

primeira vez por François Arago (1786-1853) em 1839 – que Jean Epstein (1897-

1953) estabelece as suas teorias do cinema, exercendo a arte em conformidade com

as suas ideias. A fotogenia é, segundo Epstein, a qualidade própria do cinema;

inefável, imponderável, algo que está intimamente ligado à questão do movimento,

por um lado, e ao grande plano, por outro.” (APARÍCIO, 2014, p.I)

A ideia de fotogenia surge como uma espécie de beleza fundamental ao movimento, do

“passar” – uma dimensão de registro ligada ao tempo que outras formas de artes não reuniam

anteriormente como o cinema. Esta qualidade se projeta como uma característica transcendental

do cinema – aqui, transcendental no sentido de transcender limites “espaçotemporais” e

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31

proporcionar uma percepção de perspectiva mais ampla do que esta.

“O movimento e o grande plano são as descobertas maiores da arte do cinema, as suas

condições essenciais. São estas formas que permitem a transfiguração da realidade e

a sugestão de dimensões que não revelam apenas a simples representação do aparente

mundo fenomenal mas procuram aceder a outras secretas dobras do real. O cinema

equaciona um mundo onde é possível combinar ou desconectar espaços e tempos que

a limitada percepção humana e a visão linear da História sempre nos ensinaram a ver

numa suposta unidade indissociável: um espaço-tempo. E, ao tratar o tempo em

perspectiva, o cinema tem ainda o poder de evidenciar uma existência de uma quarta

dimensão, operando a desterritorialização do espaço e do tempo e potenciando a

percepção da sua dimensão cósmica.” (APARÍCIO, 2014, p. I)

Aparício aponta no mesmo texto que há uma evidenciação pelo cinema de que tudo está

em movimento, isto é, o cinema propicia a percepção de movimentos por sua forma que nem o

olho humano veria senão por meio daquele, o que dialoga com a interrogação deixada pela

relatividade Einsteiniana às teorias científicas da época. Citando como exemplo um filme feito

sobre a própria teoria da relatividade geral, a autora chama atenção para o potencial pedagógico

do filme e parte para sintetizar a proposta de Epstein do cinema como uma “língua universal”.

“Para Epstein, as consequências epistemológicas decorrentes da “visão” do

cinematógrafo são imensas. A partir do momento em que é possível expressar e

mostrar o movimento interno e externo de todos os seres, ou experimentar a “nova

sensação perante o que são exactamente as colinas, as árvores ou os rostos no espaço”,

a crença na estabilidade e na anterior hierarquia dos seres e dos mundos dá lugar a

uma dúvida cuja potência é, justamente, a de questionar essa mesma ordem das

coisas”.

[...] “É, portanto, re(a)presentando o mundo na sua contínua mobilidade, que o cinema

assume uma forma peculiar de conhecimento e, ao mobilizar extensivamente (quase)

todos os sentidos, tem ainda a poderosa capacidade de nos permitir ultrapassar as

nossas limitações fisiológicas. Epstein considera pois que o cinema é, depois da

matemática, o melhor candidato ao estatuto de língua universal, dado o poder de

compreensão quase imediata das imagens animadas.” (APARÍCIO, 2014, p. III)

A ousada proposição de Epstein para a linguagem do cinema é quase como uma analogia

à universalidade lógica da matemática, no que ao cinema há uma universalidade do sentir. O

mesmo contrapõe o cinema à figura do livro, que é metonímia para a faculdade da razão. O

cinema é colocado como uma espécie de antídoto ao livro fazendo uma crítica ao excesso de

intelectualismo e a extrema racionalização amplificada pelo desenvolvimento da ciência.

(APARÍCIO, 2014)

Um dos autores que disserta sobre o excesso de racionalidade é Friedrich Schiller,

contemporâneo a Immanuel Kant. Uma de suas obras fundamentais foi Série de cartas sobre a

educação estética do homem17, publicada pela primeira vez em 1794, que surgem inspiradas

17 Título original em Alemão Über die ästhetische Erziehung des Menschen em einer Reihe von Briefen

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32

pela Revolução Francesa, especialmente na questão da promessa de uma iluminação e de uma

racionalidade, contraposta ao resultado de sua degeneração em violência e do fracasso de

sucessivos governos em colocar seus ideais em prática. A partir do trabalho de Schiller, que

evolui como uma forma de romantização do trabalho de Kant, é possível observar que o

propósito central de sua estética é trazer de volta à unidade o lado racional e emocional do ser.

Assim como Epstein, também Schiller aponta a arte, ou mais especificamente o estético, como

um antídoto aos males causados pelo excesso de racionalidade. Antes mesmo de Benjamim ou

Brecht, Schiller argumenta que o trabalho do poeta deve refletir a filosofia e a ciência de sua

época, e é precisamente no encontro de uma realidade aonde a fragmentação de nossas

faculdades se intensifica, é que a poesia adquire uma função especial – reunificar os poderes

divididos da alma humana. Isto é, para Schiller é certo que “a pré-condição para alcançar a

totalidade (da alma) reside no estado estético” (HINDERER, IN MARTINSON, 2005). Como

aponta Walter Hinderer, no livro A Companion to the Works of Friedrich Schiller (org.), Schiller

vai um pouco mais longe que Kant na análise da queda do ser humano quando do despertar da

consciência de si18:

19“[...] Kant define a saída do jardim do Éden – apesar de todas as óbvias desvantagens

– como um evento antropológico decisivo: com este ato a humanidade livra a si

mesma dos limites estreitos do instinto e da tutela da natureza, e passa a um estado de

liberdade, começando a servir a razão e tornando-se, no sentido de Kant, maduro. Em

seu ensaio Etwas über die erste Menschengesellschaft nach dem Leitfaden der

mosaichen Urkunde, Schiller caracteriza, ainda mais forçadamente que Kant, a queda

do homem da polícia do instinto como a mais afortunada, de fato o maior evento na

história da raça-humana. Apesar da entrada da corrupção moral no mundo com a auto-

responsabilidade e a maturidade, é, de acordo com Schiller, somente por meio deste

evento que tais coisas como a bondade moral se tornariam possíveis.” (HINDERER,

IN MARTINSON, 2005. p.28)

No que se refere às tendências de seu tempo, ainda como aponta Hinderer, Schiller dirige

um criticismo à iluminação pela razão, em função de uma percepção das síndromes que atacam

de modo diverso as classes sociais, altas ou baixas, apontando a influência do iluminismo como

18 Consciência de si é um assunto comentado mais adiante neste trabalho, com o Estádio do Espelho de Lacan 19 Tradução livre do inglês: “Kant defines the way out of the garden of Eden – in spite of all the obvious

drawbacks – as a decisive anthropological event: with this act mankind frees itself from the narrow bonds of

instinct (“Gängelwagen des Instinkts”) and from the guardianship of nature and passes into a state of freedom,

beginning to serve Reason and becoming, in Kant’s sense, mature (“mündig,” Werke, 9:92). In his essay Etwas

über die erste Menschengesellschaft nach dem Leitfaden der mosaichen Urkunde (On the First Society of Men

according to the Guidelines of the Mosaic Document, 1790), Schiller characterizes, even more forcefully than

Kant, the fall of man from the swat of instinct (“Abfall des Menschen vom Instinkt”) as the most fortunate,

indeed the greatest event in the history of human-kind (“glücklichste und grösste Begebenheit in der

Menchengeschuchte, “ 6:434). Although moral corruption (“moralisches Übel”) enters the world with self-

responsibility and maturity, it was, according to Schiller, only by means of this event that such a thing as moral

goodness (“das moralisch Gute”) could become possible.”

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tão parca nas convicções das pessoas que teria terminado por promover a corrupção. Sua crítica

ataca um sistema predominante do egoísmo, retornando a pensamentos de seus trabalhos mais

iniciais, no que se refere a antíteses de ordem social e política, e chega à ideia de que uma

unidade de entendimento presente nos gregos antigos teria sido “desfeita nos tempos modernos:

igreja e estado, leis e moral, prazer e trabalho, meios e fins, esforço e recompensa são

desanexados um do outro.” (HINDERER, IN MARTINSON, 2005. p.38)

Sendo assim, Schiller propõe a educação estética como um ponto de reunião e reconexão

dos saberes, de recomposição de um corpo mental humano fragmentado à sua visão pelo

iluminismo, o que data um dos problemas da educação em que se situa este trabalho já há mais

de 200 anos. Fazendo mais uma última citação:

20“Aqui Schiller formula uma ponderosa metáfora para a mecanização da vida humana

e o desencantamento através da cultura racional, o que deixou um impacto duradouro

em seus contemporâneos. Os românticos ligam repetidamente a esta síndrome do

Iluminismo, nomeadamente, a alienação, falta de imaginação e sentimentos, e

fragmentação generalizada. Hoje, de acordo com Schiller, o indivíduo “ao invés de

colocar o carimbo de humanidade sobre sua própria natureza, ele se torna nada mais

que uma mera impressão de sua ocupação ou seu conhecimento especializado”

(8:573). Desta maneira, a imagem da espécie foi desmembrada, e seria preciso ir em

turnos de um indivíduo a outro a fim de ler a totalidade da espécie como um todo.”

(HINDERER, IN MARTINSON, 2005. p.28)

O problema que o campo das artes enfrenta, portanto, no campo da educação, quando

há uma primazia pelo racional em detrimento da dimensão sensorial, emocional e estética do

ser humano, vem desde já muito antes de o cinema existir – como se pode notar já em Schiller

as heranças iluministas (que depois se desdobram, como desenvolvimento sociológico, no

positivismo) de um endeusamento da faculdade da razão tem consequências nefastas. Schiller

propõe uma espécie de solução para este problema através de uma educação estética. Portanto

o problema a que se refere Epstein acerca do excesso de racionalidade, representado pela figura

do livro anteriormente, é na verdade uma dívida de família que o cinema adquire do campo das

artes.

Tendo este problema ecoado até hoje, a questão da escola se complica ainda mais neste

descompasso em função de que o ser humano vai mudando conforme o passar do tempo, como

20 Tradução livre do inglês: “Here Schiller formulates a powerful metaphor for the mechanization of human life

and disenchantment through rational culture, which left a lasting impact on his contemporaries. The Romantics

would point repeatedly to this syndrome of the Enlightenment, namely, alienation, lack of imagination and

feelings, and general fragmentation. Today, according to Schiller, the individual “instead of putting the stamp of

humanity upon his own nature, he becomes nothing more than the mere imprint of his occupation or of his

specialized knowledge” (8:573). In this way the image of the species (“Bild der Gattung”) has been

dismembered, and one has to go the rounds from one individual to another in order to read the totality of the

species as a whole.”

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o próprio Schiller admite. Portanto há de se contextualizar em metodologia suas propostas

filosóficas. Uma das tentativas que encontrei que é interessante é a de David T. Hansen (2005),

que propõe uma poética do ensino. Sobre o trabalho de Schiller, ele explica:

“Por exemplo, em seu trabalho pioneiro, “Educação estética do homem”, Friedrich

Schiller (1967) procurou escrever um engenhoso trabalho a respeito do fenômeno da

arte e seu lugar na educação. Ele queria, simultaneamente, escrever um tratado

estético e um tratado em estética.” (HANSEN, 2005, p.116)

Hansen, em seu artigo, procura esclarecer o conceito de “poética do ensino”. Dos

diversos significados que a palavra “poética” pode abranger, um deles é a de função da

linguagem. Dentre as funções da linguagem, figuram as funções poética, fática, metalinguística,

conativa, emotiva e referencial. A função poética da linguagem é aquela em que a linguagem

se centra na mensagem. A poética vem, segundo Hansen, sendo utilizada desde a época de

Aristóteles “para capturar a natureza do efeito artístico” (HANSEN. 2005).

Para conceituar a ideia de uma poética da prática (afim de partir para o conceito então

de poética do ensino) Hansen comenta:

“Eles consideraram como as estruturas na arte influenciam ou modelam o auto-

entendimento das pessoas e as visões de mundo. Eles observaram como os artistas

influenciam uns aos outros de maneira tanto direta quanto indireta (BLOOM, 1988).

Essas tarefas envolvem o exame dos conteúdos do trabalho artístico, incluindo as

intenções artísticas, estilos e modos de trabalhar. Além disso, os críticos usaram a idéia

de poética para abordar não apenas a arte como um resultado do trabalho, como

também a artisticidade como uma qualidade ou dimensão da atividade humana.

A partir dessa perspectiva, podemos chamar de “uma poética da prática” aquela que

envolve ações e conseqüências. A idéia unifica a poiesis, que tem em sua raiz

significados como “fazer” e “criar”, com a praxis, que tem como significado primário

a “ação” e a “condução de si”. Uma poética da prática privilegia o que é feito, o estilo

ou a maneira como é feito e o impacto de tudo isso sobre aqueles envolvidos.

(HANSEN, 2005, p.99-100)

Uma poética da prática seria, portanto, um conceito metafórico que coloca a prática

como centro de um processo comunicativo hipotético geral, isto é, como se o praticar, enquanto

ato intersubjetivo (tal como uma mensagem, na comunicação), quando do foco em si mesma,

toma-se de uma fragrância artística, inspiradora, e de percepção centrada não em um ou outro

sujeito, mas no encontro. Hansen argumenta que “a virtude característica de uma poética reúne

ao mesmo tempo as dimensões estéticas, morais e intelectuais do ensino, geralmente tratadas

de maneira separada, quando o são, tanto na pesquisa quanto na sala de aula”. Fundamentar

uma poética do ensino seria propor a prática de uma espécie de perspectiva holística do ensino

e do conhecimento, dinâmica, a fim de “ajudar educadores a continuarem a incumbência nunca-

finalizada de articular a natureza e o significado do ensino.” (HANSEN, 2005).

Esta proposta é uma interessante resposta à questão da mecanização do ensino e aos

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excessos de racionalidade presente ainda hoje na maioria das escolas, sem no entanto opor o

racional e o emocional (ou sensual, para utilizar o mesmo termo que Schiller). Uma poética do

ensino consiste numa visão que dialoga com a interdisciplinaridade, colocando como motor do

encontro intersubjetivo a arte – não uma arte enquanto disciplina, porém como uma perspectiva.

Trazendo a proposta à luz do Cinema, seria possível uma fotogenia do ensino? Márcio

Barreto aponta em seu artigo Cinema e Ciência, Natureza e Cultura uma proposta de tornar o

cinema uma espécie de fio condutor da reflexão sobre a ciência moderna a partir de textos de

Bergson, Deleuze e outros autores, procurando demonstrar a potência do cinema para

dimensões da ciência que vão além das relações com o estado e o mercado. (BARRETO, 2017)

A “fotogenia do ensino” é uma proposta que faço em consonância com a de Hansen, no

sentido de uma “poética cinematográfica” do ensino, em que o cinema se lança como linguagem

e como arte, fornecendo lugar de possibilidade de ensino unificador por meio da estética. Este

ensino carrega em si algumas premissas da interdisciplinaridade, o que vou discutir

posteriormente.

5. O CINEMA COMO ENCONTRO COM SI MESMO

O pensamento se estrutura através da linguagem. O jeito como nós pensamos muda

conforme a linguagem que usamos, as linguagens que dominamos, dos idiomas que

dominamos. As estruturas de pensamento são diferentes em cada linguagem, o jeito como as

coisas se conectam é outro, a ordem dos elementos muda, isto é, o discurso é organizado de

maneira diferente. Quando falamos em linguagem, pensamos em comunicação, principalmente

– na ideia de que quando queremos falar alguma coisa para um outro, recorremos à linguagem

para codificar aquilo que pensamos e transmitir para esse outro. Quase como se houvesse um

canal invisível direto entre uma pessoa e outra, de ponto a ponto – e esse canal seria a

linguagem. Mas talvez não seja bem assim que realmente acontece. O cinema é revelador nesse

sentido: revelador do processo de multissignificação, seja por conta da ambiguidade da imagem,

da polivalência da montagem ou da polissemiótica da trilha sonora. Por mais bem estruturada

que qualquer linguagem seja, a mesma mensagem nunca dá sempre o mesmo resultado.

Fazendo uma breve análise da contribuição das ideias de Christian Metz para a teoria da

linguagem do cinema. Metz possui dois momentos, um primeiro no qual estuda linguística e

semiologia, e tenta trabalhar diretamente com os conceitos de linguística aplicados ao cinema,

e um segundo momento, no qual Metz passa à psicanálise lacaniana, ao perceber que a

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semiologia não era suficiente, e também pelas semelhanças entre as estruturas de

funcionamento dos sonhos e do cinema enquanto postiço psíquico.

Antes de entrar diretamente na linguagem do cinema, descrevo de modo breve o que é

a língua escrita/falada. A linguagem, diferentemente da língua, é a capacidade que os seres

humanos têm para produzir, desenvolver e compreender a língua e outras manifestações, como

a pintura, a música e a dança. Já a língua é um conjunto organizado de elementos (sons, gestos

e outros signos) que possibilitam a comunicação. É fácil traçar sua origem estrutural,

principalmente as de alfabeto não-ideogramático. Cada letra possui um significado sonoro (isto

é, liga-se com um fonema), e o significado sonoro da soma de letras é exatamente a soma dos

significados. Por exemplo, a letra C é um significante cujo significado21 associado é o som de

um C mudo (o fonema C). A letra “A”, por outro lado, é um significante cujo significado

associado é o som de “A”. Quando juntamos o significado C e o A na sílaba CA, o significado

da sílaba CA é exatamente a soma do significado de C e de A, isto é, uma combinação dos sons

de ambos.

Mesmo quando estamos falando de palavras, cujo significado pode ser mais amplo e

abstrato, ainda assim ocorre um processo de combinação de significados que é estruturado de

maneira a obedecer uma lógica aristotélica – exceto em caso de apropriações artísticas. Quero

dizer que, mesmo em idiomas de alfabeto ideogramático, como o Mandarim (no qual um

símbolo remete diretamente a um significado sem um intermediário sonoro, o que permite ao

Japonês, ao Chinês, ao Taiwanês e ao Cantonês compartilharem os mesmos símbolos e

signficados com sons diferentes associados), ocorre uma combinação lógica de sentidos. Se eu

digo cadeira azul, os significados associados aos significantes cadeira e azul se somam

respectivamente para invocar na mente do ouvinte uma imagem (significado) com as

características invocadas tanto pelo significante cadeira (objeto de formato específico) e azul

(propriedade do objeto – cor). Portanto toda língua possui uma estrutura mínima de significação

em formato semelhante.

O cinema não possui esta estrutura mínima de produção de significado – portanto, não

é língua. Uma unidade mínima do cinema não poderia ser considerada sem movimento, senão

nada haveria de diferente no mesmo enquanto arte das outras artes visuais, em especial a

fotografia. Portanto, uma unidade mínima de significação do cinema haveria de ser o plano (e

não poderia ser um quadro dentre um dos 24 que passam por segundo). E o plano é uma unidade

21 Faço uso da palavra significado e significante aqui mais como explicação de modo a adequar ao conceito à

teoria lacaniana que leva em conta Real, Simbólico e Imaginário, nos dois últimos os quais moram o significante

e o significado, respectivamente.

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de significação extremamente complexa, isto é, nele está contida toda a informação contida

entre um corte e outro, todos os elementos presentes na imagem deste intervalo, todos os

elementos ausentes da imagem, mas lembrados por intermédio do jogo identificatório dos

elementos presentes, todos os elementos presentes na trilha sonora (ruído, voz, música, silêncio)

– todos elementos que possuem ambiguidades dentro de si. Isso transforma o plano num

elemento muito polivalente quando organizado em discurso através da montagem.

As implicações do fato de o cinema possuir uma unidade mínima de significação tão

complexa quanto o plano são profundas – primeiro ele não pode, é claro, ser considerado uma

língua, apenas linguagem – justamente pela ausência da estrutura mínima de significado

baseada na lógica. Do mesmo modo, não se pode analisá-lo como tal. Bastaria observar que a

produção de relações que se dá entre uma letra e outra ou até mesmo entre uma palavra e outra

é completamente diferente do que acontece entre um plano e outro. Segundo é que, para analisá-

lo de modo mais aprofundado, é preciso recorrer à origem dos jogos de identificação por meio

das quais se estabelece relações de posicionamento do plano em relação aos outros planos ou

ao contexto – a mente humana. Nesse sentido, o cinema é mais próximo dos sonhos do que das

linguagens escritas.

Ler um texto sobre o câncer e assistir um filme sobre o câncer com o mesmo texto

podem ser experiências de impacto profundamente diferentes – especialmente quanto à

emoção. A montagem acontece na cabeça do espectador, por conta do jogo identificatório que

Metz defende, o que explico melhor posteriormente. Decorre disso que o cinema tem uma força

comunicativa, uma potência que transcende qualquer barreira da linguagem estruturada por

bases lógicas. É quase impossível pensar que ele não comunique absolutamente nada; que não

faça vibrar nenhum elemento do imaginário de um espectador. Mas tem em si a força de

atravessar emocionalmente, de modo muito mais direto, vários outros espectadores. Uma

pessoa que tem um paciente na família poderia se comover, ou até mesmo ficar ofendida com

a forma com que a imagem representou a doença – uma contradição aos seus sistemas de

significação.

A fim de exemplificar melhor a ambiguidade da imagem, tomo como exemplo a cena

do filme Marnie (1964, Hitchcock), a cena aonde a mulher é violentada, e a câmera a deixa,

mostra de maneira errática parte do cenário, e termina no mar. Uma leitura possível seria a de

que a câmera é como a vida daquela mulher – se esvai, sua alma se vai com aquela violência, o

mar terminando por ser um sinal associado a abandono e a se deixar levar. Ou poderia haver

uma leitura no sentido de ligar a câmera ao comportamento da sociedade, que simplesmente

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vira o rosto para a violência que a mulher sofre – questiona sua saia e seus modos, culpabiliza

a vítima.

Na minha leitura, o que é mais interessante nessa polivalência da imagem, na

argumentação do livro O Significante Imaginário, de Christian Metz (1980), é de que,

independentemente dos signficados que emergem da leitura do filme, eles apontam sempre para

um mesmo lugar: para o Eu.

Para falar deste assunto de maneira mais esclarecedora e abrangente dentro do contexto

que pretendemos abordar, será preciso introduzir alguns momentos da psicanálise. Diversas

tentativas de apropriação da psicanálise para a análise fílmica foram tentadas, mas a de Metz

tem por especificidade focar não no imaginário, como a maioria teria feito – porém no

simbólico. Do entendimento de que o Cinema é uma técnica do imaginário, é natural que o

imaginário em si fosse ser buscado primeira e amplamente por autores, e a transmissão da

psicanálise pelo filme assim teria ganhado força na década de 70, com autores como Daney,

Bonitzer, Chion, Baudry, Mulvey e o próprio Metz. Porém este, ao perceber que seus estudos

sobre o imaginário estariam sendo redundantes, frente a uma quantidade de escritos sobre o

imaginário, decide então engendrar no reino do simbólico.

Assim, surge o livro “O Significante Imaginário” – que é o livro no qual Metz se debruça

pela primeira vez na psicanálise lacaniana para além da semiologia. Partindo da ideia de

realidade psíquica de Freud, Lacan cria o sistema RSI, que coloca três instâncias psíquicas – o

Real (que é o real puro, inalcançável pela língua, tal como a “coisa em si” de Kant), o Simbólico

(reino ao qual pertencem, de certo modo, os significantes) e o Imaginário (reino ao qual

pertencem então os significados), fundando a estrutura do sujeito como forma de linguagem,

em que Simbólico e Imaginário constituem a realidade psíquica. Somos um sujeito do discurso,

da fala; e o inconsciente é estruturado pelo simbólico. Lacan, logo após terminar sua tese de

doutorado, anuncia que sua pesquisa tomará o rumo de investigar o narcisismo e em 1949 lança

o trabalho “O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na

experiência psicanalítica”. Assim Lacan começa a pensar uma psicologia do imaginário ao

lançar o estádio do espelho, que é uma argumentação acerca do recém-nascido, sobre as etapas

de reconhecimento de si mesmo no espelho, e, principalmente, da fundação do Eu como produto

do Outro. Como aponta Léa Silveira Sales:

“O início da teorização sobre o estágio do espelho – no qual se insere o texto de 1949:

“O estágio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na

experiência psicanalítica” – ocorre em um momento em que o pensamento de Lacan

está voltado para a construção de uma psicologia científica que se afaste de qualquer

tipo de reducionismo e de individualismo. Trata-se de situar a imago como o conceito-

chave para o estudo do psiquismo, o único capaz de fazer compreender a objetivação

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do indivíduo humano em suas funções de conhecimento e de relação com o

semelhante. Para tanto, são bem-vindas tanto a psicanálise – especialmente com sua

formulação do conceito de identificação –, quanto a psicologia comparada e a etologia

animal, todas perpassadas por um exercício de dialética. Nesse contexto, a noção de

inconsciente encontra-se repudiada, como também tudo o que na teoria freudiana

consistir, aos olhos de Lacan, sinal de biologismo. Alguns dos objetivos gerais dessa

teoria do imaginário são: o estabelecimento do caráter determinado do sujeito, a

acusação do caráter ilusório do conhecimento humano, a defesa de uma

simultaneidade na constituição do sujeito e do objeto (realidade). O estágio do espelho

equivale ao esforço, dentro dessa teoria, de especificar o processo de formação do

indivíduo humano por meio de sua identificação a uma imagem totalizada que o

precipita a despeito de sua “sensação de si” apontar, de modo oposto, para um

sentimento de ausência de organização corporal e de fragmentação.” (SALES, 2005)

O estádio do espelho é importante para a teoria de Metz, que coloca a tela do cinema

como um espelho diferenciado da teoria de Lacan. Antes, seria preciso conceituar o ego em

Lacan, porém como aponta Adriane de Freitas Barroso, sua definição vai mudando e o sujeito

na psicanálise vem sempre sendo abordado de modo indireto por conta de sua natureza:

“Em Lacan, a noção de sujeito sofre uma série de transformações na medida em que

a teoria avança. Da primazia do simbólico à concepção de gozo que atinge seu ápice

no conceito de falasser, fica claro, para o autor, que falta a essa construção qualquer

materialidade que tenha sido inicialmente hipotetizada.

Conclui-se, portanto, de forma simplificada e ainda longe de abordar o tema com a

extensão e a intensidade que suas vicissitudes exigiriam, que a construção do conceito

de sujeito, de Freud a Lacan, avança sucessivamente, atingindo o plano central da

teoria lacaniana, onde permanece até a construção do conceito de falasser, que o

sucede. No entanto, o sujeito não deixa nunca de ser encarado, do ponto de vista

teórico, apenas pelas bordas, de forma indireta, uma vez que sua existência é da ordem

do efeito, não da substância.” (BARROSO, 2012)

A argumentação é da seguinte forma: Imagine-se uma mãe com um recém-nascido, de

frente pra um espelho. Num primeiro momento essa criança não tem um imaginário

suficientemente desenvolvido, não arbitrou significados e comparações entre eles, então ela vê

no espelho apenas formas, porém não uma mais do que outra. Num segundo momento, essa

criança enxerga uma forma de um Outro no espelho, mas não reconhece a si nesta forma. Isso

geralmente se dá entre 6 e 18 meses, a criança reconhece um corpo, um objeto, mas não percebe

como a si mesma. É um corpo outro. Num terceiro momento, essa criança enxerga que esse

outro na verdade é a si mesma, esta é a imagem que seu próprio corpo produz. Começa aí a

ideia de Eu como produto do outro, isto é como produto de uma imagem outra. Mas além disso,

algo importante acontece em seguida. A criança desvia o olhar do espelho, olha para o lado em

busca de alguém; no caso do exemplo, a mãe. E ela dá um sorriso, ou esboça uma reação, como

quem quer perguntar "é mesmo Eu ali?", isto é, é um olhar a procura do sim, a procura do

reconhecimento, da validação do Eu. Aí está a fundação do Eu como produto do outro, tanto

do reconhecimento de uma imagem outra no espelho, quanto da busca no outro pela validação

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deste Eu-imagem. Este Eu-imagem (imaginário) foi transformado em Eu-significante

(simbólico) por meio da validação do outro, tornando evidente o aspecto de que este Eu-

percebido é produto da linguagem. Através da troca de significantes foi possível para esta

criança apreender um significado – a imagem dela (significado) corresponde ao eu

(significante). O nome da criança passa a incluir e figurar na lista de significados e significantes

associados a esse Eu.

“Lacan entende que esta conquista da imagem do corpo próprio, ou seja, a constituição

de um eu na criança, depende, não apenas de um desenvolvimento maturacional, mas

exige a implicação de um outro, o qual insere a criança no universo da linguagem e

da comunicação. É a partir dos cuidados necessitados pelo bebê para sua

sobrevivência, que a mãe inscreve marcas e empresta significados para nomear as

sensações e comportamentos da criança. Ou seja, o bebê se dirige a este Outro-espelho

&– encarnado neste outro-semelhante &– em busca de uma imagem que o totalize. É

o olhar da mãe que antecipa a Gestalt de um corpo unificado no bebê. Portanto, falar

em sujeito na teoria lacaniana não é gratuito, pois percebemos que se trata de um eu

assujeitado ao Outro e ao seu desejo. No entanto, este assujeitamento inicial é

entendido como fundamental e necessário para que a criança possa vir a se inserir no

mundo dos humanos.” (IMANISHI, 2008)

A partir das extrapolações dessa ideia é que surge a perspectiva da Tela de cinema como

espelho. Metz, em “O Significante Imaginário”, chama o espelho da tela de cinema de “postiço

psíquico”. Começa Metz, neste mesmo livro, citando críticas de Lacan a Mélanie Klein na

forma de se analisar, alegando que esta teria reduzido a análise ao imaginário, sem nem sequer

vislumbrar uma teoria do simbólico, e segue para desenvolver seu raciocínio todo focado no

simbólico, numa estrutura do inconsciente presente no cinema, isto é, numa semiótica invés de

uma semionírica. Ele analisa o simbólico desde o ato de ir ao cinema, ao falar de cinema, ao

gostar de cinema – isto é, diversas instâncias do significante cinema.

Metz argumenta na seção “O sujeito Omnipercepcionante” que a tela do filme é como

um espelho, tal como no estádio do espelho de Lacan, exceto que o sujeito vê fantasmas de tudo

que é objeto, menos o seu reflexo – que é este jogo identificatório anteriormente mencionado.

A máquina psíquica do cinema necessita que o espectador tenha a experiência do estádio do

espelho formada em sua mente, e é isto que torna possível o desenrolar inteligível do filme

apesar da ausência do espectador na tela – sem a qual não seria possível um jogo identificatório

de imagens e “Eus”.

Assim, o espectador não tem mais necessidade da presença de sua forma, mas o cinema

depende deste jogo identificatório, porém não pela presença, porém pela ausência do eu na tela,

isto é, o reconhecimento de todos os outros não-eu ou projeções do eu. Nesse sentido a tela do

cinema é menos como um espelho e mais como um vidro, num primeiro momento. O sujeito é

omnipercepcionante, pois percebe a tudo, enquanto que ninguém o percebe, no filme.

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Ele está ausente da tela, mas presente na sala com seu aparelho psíquico dando

funcionamento ao cinema. Portanto este “Eu” constitui Significante do cinema. Metz

prossegue:

“No cinema, o saber do sujeito toma uma forma muito precisa sem a qual nenhum

filme seria possível. Este saber é duplo (mas é um e a mesma coisa): sei que percebo

o imaginário (e é por isso que as suas extravagâncias, se necessário extremas, não me

inquietam seriamente) e sei que sou eu que o percebo. Este segundo saber desdobra-

se por sua vez: sei que percebo realmente, que os meus órgãos dos sentidos são

fisicamente atingidos, que não estou a fantasmar, que a quarta parede da sala (o écran)

é realmente diferente das outras três, que à sua frente há um projector (não sou eu que

projecto, portanto, ou pelo menos não sou eu sozinho) –, e sei igualmente que sou eu

que percebo tudo isso, que esse material percebido-imaginário vem depor-se em mim

como sobre um segundo écran, que é em mim que ele vem agrupar-se e organizar-se

numa continuidade, o que eu próprio sou, portanto, o lugar em que esse imaginário

realmente percebido acede ao simbólico instaurando-se como significante de um certo

tipo de actividade social institucionalizada, dita <<cinema>>.” (METZ, 1980. p.58)

“O espectador, em conclusão, identifica-se consigo mesmo, consigo mesmo como

puro acto de percepção (como despertar, como alerta): como condição de

possibilidade do percebido, e portanto, como que com uma espécie de sujeito

transcendental, anterior a qualquer há.” (METZ, 1980. p.58~59) .

Este sujeito transcendental que Metz menciona, mas não se aprofunda em descrever

– visto que seu objeto de pesquisa é o significante cinematográfico – é, ao que parece, uma

espécie de “Eu-Real”, em oposição ao que seria um “Eu-Significante” (ou “Eu-Significado”).

O que Metz está descrevendo aqui é o mecanismo por meio do qual o cinema atinge uma espécie

de transcendentalidade da linguagem, chegando na “coisa em si” – a coisa, no caso, sendo o

próprio espectador.

Isto é um uma alegação de Metz interessante, especialmente no que se refere ao uso do

termo “transcendental”, pois na psicanálise Lacaniana que Metz utiliza como base não admite-

se uma transcendência do ego. No que se refere à teoria do espelho, Lacan sugere no seu

seminário sobre angústia (o décimo) que o estádio do espelho demonstra que o Ego é um

produto de falso-entendimento (méconnaissance), isto é, um engano; um falso-reconhecimento

do Eu na tela. O sujeito torna-se alienado de si mesmo ao ser introduzido a uma ordem

imaginária do eu, e identificar-se com esta. Como aponta John Zuern:

“Lacan é crítico do existencialismo, entretanto, e seu criticismo é relacionado a seus

ataques à Psicologia do Ego americana. Apesar de existencialistas reconhecerem a

ausência de sentido da existência e a responsabilidade do ser humano por extrair

significado da mesma, esta filosofia formula uma visão geral negativa no que se refere

a uma consciência que é self-presente e self- consciente. O modelo de Lacan de

consciência é baseado no princípio de que o self nunca é consciente de si, que o que

experiencia como a “si mesmo” é um falso-reconhecimento, uma méconnaissance.

Uma psicanálise existencial de fato se desenvolve do existencialismo, focando em

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ajudar o indivíduo a chegar em termos com os imperativos éticos de sua existência.”

(ZUERN, 200922)23

Para Metz, como o trecho citado anteriormente aponta, o ego é um significante, e mais

ainda, um do qual o cinema dispõe para o funcionamento, e às vezes, o revela, deixando com

isso a possibilidade de um “eu maior”, um “si mesmo” que vem antes deste eu-significante.

Diferentemente de Jean Epstein (citado anteriormente neste texto), há uma ideia de

transcendental aqui que não se refere necessariamente às dimensões espaço-temporais do

cinema, mas claramente simbólico-imaginárias.

Isto é, o espelho de Metz é um apontamento de que o cinema, tanto no fazer quanto no

assistir, enquanto um lugar de experimento do jogo identificatório, pode vir a ser um meio de

transpor o próprio estádio do espelho de Lacan – como um segundo estádio do espelho – e essa

identificação equivocada que produz o ego. Ao mesmo tempo pode ser um apontamento de que

o cinema é um dos caminhos de auto-diálogo (monólogos não unidiscursionais) possíveis para

uma realização do self jungiano, ou esta possível dimensão real do eu (que aqui chamei de “eu-

real”, mas Lacan não nomeia, visto que o real é inapreensível – Lacan toma a figura do vazio).

Isto é, o ego é o centro da consciência, mas não o somos: somos mais do que ele, e, portanto,

não estamos submetidos a suas leis, apesar da ilusão criada pelo espelho. A ideia de sujeito

transcendental lançada por Metz é um tema, porém, que foge ao escopo deste trabalho, que visa

evidenciar uma tendência presente no cinema para o encontro consigo mesmo.

“Como dispositivo (e num sentido muito topográfico desta palavra), o cinema está

mais embrenhado na vertente do simbólico, e também na secundaridade, do que está

o espelho da criança. Não é surpreendente, visto que vem muito tempo depois deste,

mas o que me interessa mais é que ele se inscreva na sua esteira segundo uma

incidência simultaneamente tão directa e desfasada, sem equivalente exacto em outros

aparelhos de significação.” (METZ, 1980. P.59)

Nesse sentido, a linguagem do cinema se coloca como uma através da qual o próprio

espectador dispõe para organizar inconscientemente elementos da sua psiquê – e em vantagem

a outras linguagens, sobretudo do inconsciente – afim de experienciar, no mais íntimo, a si

mesmo – sobretudo, novamente, a parte de si mesmo a que não tem acesso consciente. O texto

22 Artigo online, presente em http://www.english.hawaii.edu/criticalink/lacan/guide6.html. Data de acesso: 6 de

julho de 2017. 23 Tradução livre do inglês: “Lacan is critical of existentialism, however, and his criticism is related to his attacks

on American-style ego psychology. Although existentialists recognize the meaninglessness of existence and the

human being's responsibility to make meaning out of it, this philosophy formulates this negative outlook in terms

of a consciousness that is self-present and self-aware. Lacan's model of consciousness is based on the principle

that the self is never self-aware, that what is experiences as "itself" is a misrecognition, a méconnaissance. An

existential psychoanalysis did develop out of existentialism, focusing on helping the individual come to terms

with the ethical imperatives of his or her existence.”

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de Metz prossegue com aprofundamentos e desdobramentos da teoria do espelho como os

efeitos de espelhos organizados em cadeia na identificação do espectador com a câmera,

discursando sobre como o filme faz sucesso porque é capaz de acessar a dimensão dos sonhos

– isto é, o inconsciente, visto que este é estruturado pelo simbólico, a que o cinema reivindica

no jogo de identificação. Também sobre o prazer escopofílico, ou o prazer de ver a forma, e

sobre as relações das estruturas de crença com a castração, mas o objetivo aqui é demonstrar

uma relação entre uma ideia de encontro consigo mesmo presente no cinema.

O cinema é uma espécie de mágica: criar um filme é criar uma espécie de configuração

de imagens e sons em sucessão que, quando for experienciada por outra pessoa – cujo

microcosmo interno é completamente desconhecido, mas não imprevisível – esta configuração

provoque esta pessoa a se confrontar com este microcosmo, e seus elementos lá presentes. E

este confrontamento pode se desdobrar num reconhecimento e conscientização, ou num deleite,

ou num enfrentamento. Acima ainda de tudo que pode ser debatido numa aula sobre linguagem

cinematográfica, o que é preciso que seja conhecido por este profissional hipotético da área de

cinema que domina tal linguagem é algo muito mais complexo do que conformações luminosas

ou sonoras: o ser humano, e mais especificamente sua mente, e, mais especifica e

principalmente, a parte adormecida da mesma.

Este tipo de argumentação de Metz traz uma luz da psicanálise ao campo das artes, não

apenas do cinema. Não é possível conhecer arte bem sem conhecer a si mesmo; sem entender

minimamente o que de Si se projeta na tela (ou em qualquer veículo artístico). E na verdade o

campo do conhecimento das artes é, de modo abrangente, o do sensorial – emoções,

sentimentos, sentidos e suas composições.

Não é, consequentemente, um campo de conhecimento que visa estudar o externo –

senão formas de ver o reflexo de si mesmo neste externo, do mesmo modo que é apontado na

argumentação acima – isto é, de que modo este externo atravessa o interno. É um esforço de

tornar-se consciente do inconsciente. Um possível ensino de artes só pode ser feito se o objeto

direto de estudo é, no fim, o próprio sujeito.

No que se refere ao egocentrismo, etnocentrismo e todo e qualquer centrismo, no

momento em que se tornam projeções do ego no externo, Morin (2004) faz um discurso a fim

de Ensinar a Compreensão24 e com isto trazer à luz estes aspectos. O que Morin descreve como

self-deception e depois na questão do espírito redutor dialoga inteiramente com a ideia de viés

cognitivo, isto é, uma espécie de padrão de distorção de julgamento que ocorre em situações

24 Título e tema do sexto capítulo de seu livro Os Sete Saberes.

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específicas nas quais a interpretação lógica e a percepção são debilitadas a fim de salvaguardar

o sistema de crenças do interpretador. Ao enfrentar o mundo pela perspectiva do ego, todo ser

está sob o perigo de cair num senso delusional25 de si e do outro, e os vieses cognitivos são

inúmeros. Porém, dentre as principais causas, está a Dissonância cognitiva, que de acordo com

a teoria de Leon Festinger (1957), ocorre quando o sujeito vê defrontada uma crença forte no

núcleo de seu sistema de crenças. Em defesa do ego, o ser humano é capaz de negar qualquer

nível de lógica, negar evidências, criar falsas memórias, distorcer percepções, chegando a

desencadear, em casos graves, uma perda de contato com a realidade – o que seria o surto

psicótico. A terapia, nesse sentido serve para mudar crenças enraizadas disfuncionais, porém

sem geralmente provocar o desconforto do enfrentamento da crença, optando por caminhos

indiretos e pelas perguntas. O cinema, por outro lado – não em substituição à terapia, mas como

um espelho diferenciado – pode vir a ser um grande aliado no ensino da compreensão de si.

25 Delusional no sentido lato, como delirante, isto é, cuja mente se engana.

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6. O FILME COMO INVESTIGAÇÃO E O DESEJO DE APRENDER

O filme pode ser resultado de uma pesquisa26, consequência de uma pesquisa ou até

mesmo causa de uma pesquisa. Uma investigação ou descoberta científica pode resultar num

filme, documentário ou ficção. O processo de produzir um documentário pode ser em si mesmo

uma pesquisa (como um documentário que carece de levantamento de dados para ser realizado).

O contrário também é válido – uma pesquisa pode ser motivada ou mobilizada por um filme,

seja do seu fazer ou do seu assistir.

Os dispositivos fílmicos, ao mesmo tempo que servem como estratégias de criação,

servem também como disparadores de pesquisa. Uma professora de química que queira fazer

um projeto sobre polímeros com seus alunos pode usar um dispositivo de texturas aplicados aos

polímeros – isto é, fazer um filme contendo diversos planos apenas com polímeros presentes

na própria escola. Isto é, o filme pode ser um disparador de pesquisa.

O filme pode, também, funcionar como pesquisa em si, isto é, como se a própria câmera

fosse um microscópio27. A câmera, às vezes sem a interferência de quem filma (por exemplo

num dispositivo aonde ela fica parada por longos períodos) capta e torna extremamente visível

aspectos ocultos de uma ou outra realidade. Não só a câmera, mas a montagem também pode

ser disparadora desse processo – como é o caso do filme Um Dia na Vida (2010, Eduardo

Coutinho, 94min), que é verdadeiramente uma etnografia da televisão brasileira.

Vale também mencionar o filme Cabra Marcado para Morrer (1984, Eduardo Coutinho,

119min) que procurava retratar o líder camponês João Pedro Teixeira, morto em 1962. As

filmagens são interrompidas em 1964 por conta do golpe militar, e o local retratado é tomado

pela polícia militar. O trabalho é retomado 17 anos depois, fazendo-se uma pesquisa junto aos

camponeses que trabalharam nas filmagens iniciais, processo que aparece no filme.

Mesmo quando se trata de um filme de ficção, sempre estamos a pesquisar, a investigar.

Há, no processo criativo do filme, um investigar de um mundo interior, ou imaginário, ou

exterior, real. Construímos narrativas e as investigamos elas. Investigamos a fundo cada

personagem que criamos. No filme, sempre vai haver investigação.

Paulo Freire, ao denunciar um tipo de escola que ele enxerga como operando sob uma

lógica bancária – isto é, uma pedagogia bancária – propõe uma pedagogia dialógica, isto é,

26 Pesquisa aqui no modo amplo de dizer, não necessariamente uma pesquisa científica. Pode ser uma pesquisa

escolar, uma pesquisa de campo para coletar opiniões, sem necessariamente um método científico por trás Me

refiro mais ao sentido abrangente da palavra, que pode ser adequado para cada realidade. 27 Um exemplo seria o filme Deixe Seu Like (2017, Yuichi Inumaru, 9min), a ser publicado no youtube a partir

do dia 10 de julho de 2017 no canal do grupo ANINGAPARA.

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centrada no diálogo. Sua analogia procura entender uma escola anterior, opressora, como um

banco, isto é, uma instituição que vende o ensino, e o professor como funcionário da passagem

desse conhecimento – tal como se o conhecimento fosse dinheiro. O professor seria como um

caixa de banco, que serve clientes dessa instituição – os alunos. Os alunos não tem espaço

participativo nesta escola, eles apenas fazem uma transação comercial, na qual recebem o

conhecimento. O professor, por sua vez, repassa um conhecimento que não produziu ou pensou.

A concepção bancária de educação não exige nem a consciência crítica do professor nem a do

educando, bem como o conhecimento que ela entrega não revela questões da realidade de

ambos ou os porquês, as razões nas entrelinhas. Portanto ela oprime, negando a dialogicidade

nas relações entre os sujeitos e a realidade.

“Como aprender a discutir e a debater com uma educação que impõe? Ditamos idéias.

Não trocamos idéias. Trabalhamos sobre o educando. Não trabalhamos com ele.

Impomos-lhe uma ordem a que ele não adere, mas se acomoda. Não lhe propiciamos

meios para o pensar autêntico, porque recebendo as fórmulas que lhe damos,

simplesmente as guarda. Não as incorpora porque a incorporação é o resultado de

busca de algo que exige, que quem o tenta, esforço de recriação e de procura. Exige

reinvenção. (...) Daí a necessidade que sentíamos e sentimos de uma indispensável

visão harmônica entre a posição verdadeiramente humanista, mais e mais necessária

ao homem de uma sociedade em transição como a nossa, e a tecnológica.” (FREIRE,

2003, p.105)

Em resposta a esta pedagogia, Freire propõe uma nova, que seria libertadora, e não

opressora. A concepção de uma educação problematizadora ou dialógica é uma realizada pelo

professor com o aluno, considerando o aluno um “sujeito da ação educativa, e não como objeto

passivo desta, o que implica que a sua participação no processo deve ocorrer em todos os níveis,

inclusive na definição conjunta do conteúdo programático.” (DELIZOICOV, 1983, p.85)

Isto é, uma educação problematizadora ou dialógica seria uma realizada por duas

categorias de seres pensantes – o educador e o educando, que nunca são seres completos ou

prontos, e sim seres sempre-em desenvolvimento, em busca de um constante evoluir. Neste

encontro ambos procuram produzir uma investigação temática, a partir de um tema gerador que

deve ser identificado pela equipe de professores como relacionado diretamente à realidade do

aluno, e este tema gera sua própria demanda de conteúdo programático. Uma vez que a

comunicação só se dá quando ambos, receptor e emissor da mensagem, estão aptos e dispostos

a entender e fazer-se entendidos, como condição básica do processo está a “apreensão da visão

da realidade que a comunidade possa ter.” (DELIZOICOV, 1983, p.86)

João Francisco Duarte Jr. Aponta no livro Fundamentos Estéticos da Educação (2008)

que para aprender, é necessário querer aprender; e para querer aprender é preciso ter tanta

consciência de si e, principalmente, do que se quer. É preciso ter um norte. Não se aprende

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47

nenhum conhecimento sem um norte – não norte apenas como reconhecimento racional de uma

importância, porém como uma vontade de ir a algum lugar. Para aprender é necessário ter afeto,

pois aprender significa transformar algo em significado – isto é, em parte de si. Com isso, aponta

que a educação da arte se dá (de modo semelhante ao anteriormente apontado por Schiller)

pelas relações entre os sentimentos e a compreensão, que são imprescindíveis a todo ato de

conhecimento humano (DUARTE JR, 2008).

Indo além, ainda hoje é preciso levantar a pergunta: “você quer o que deseja?”. Vale

uma contextualização histórica. Talvez seja um pouco estranho imaginar uma “sociedade sem

o desejo”, para quem vive a época atual a este texto, mas quem cunha o conceito de Desejo é

Freud. Até sua obra, a sociedade em geral tinha modelos e padrões muito claros de deveres,

além de um imperativo positivista racional – de modo que as pessoas geralmente achavam que

tinham plena consciência racional do que estavam fazendo. Não era uma época na qual era

possível dar-se ao luxo de haver incertezas; as estruturas estavam dadas, os papéis sociais,

familiares, comunitários e profissionais estavam estabelecidos. Mas os indivíduos se viam,

então, em certas situações de contradição – momentos no qual percebiam que suas vontades e

seus desejos não eram a mesma coisa. Como uma pessoa que quer ser médica, mas depois

descobre que estava cometendo um ato reflexo, isto é, esta pessoa teria um parente querido que

era médico e por conta disso teve a vontade de também sê-lo (um ato reflexo desse parente).

Mas seu real desejo era ser Advogado, por exemplo. Freud então descobre uma maneira de dar

voz a isto que não era consciente; que era inconsciente. Ou seja, ele cria um método de acessar

o Desejo humano, que até então não era ouvido, e então, passa a advogar para esse Desejo.

Freud é então o primeiro a perceber que o humano é um ser dividido; que o inconsciente e está

em conflito com uma parte sua que está identificada com a civilização, que é o consciente. Que

nós somos contraditórios por estrutura, não por defeito. Descobre então que esse desejo se

expressa com uma linguagem específica, com regras. Esta interface inventada por Freud para

acessar o desejo humano era o Complexo de Édipo, que é baseada em alguém que quer algo,

este algo, e alguém que permite ou não isto – esta interdição da permissão sendo a castração. É

a partir daí que se desdobra a revisão de Lacan. Lacan entendia que Freud, no momento de sua

descoberta, não tinha ferramentas de análise e convencimento da população, pelo tamanho de

sua intensidade. Munido dos novos conceitos de lógica (além da lógica aristotélica), da

linguística e semiologia, e diversas outras descobertas que o ajudaram imensamente à sua

época, Lacan se sente capaz de reler Freud e reaver a importância de suas descobertas, frente

ao que poderia ter sido distorcido, em sua visão.

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48

Frente aos desafios da contemporaneidade, a psicanálise vem nos trazer luz a alguns

assuntos dos quais pretendo comentar para fins de fundamentação teórica da proposta que faço,

a saber a proposta de Lacan para a educação, e ao “sumiço” do desejo do aluno pelo saber.

Mandelli (2011) afirma:

“Lacan na abordagem do desejo como fator de busca, nos diz que o desejo é, uma

questão que busca resposta no campo do Outro, isto é, que faz investir no lugar

transferencial do outro.

[...] Sabemos que o desejo vem de uma falta, e esta falta para produzir o desejo pelo

saber está relacionada com a questão “de onde vem os bebes”? Freud chamou de

pulsão epistemofílica e que quando inibida ocasiona a suspensão dos investimentos

cognitivos, que por sua vez provoca a passagem do desejo de saber para ‘nada saber’.

Este acontecimento irá desarmar o surgimento da transferência (sujeito que quer

aprender) e deste modo o não acontecer do Sujeito Suposto Saber. O sujeito não é

instinto, mas sim cultura e esta, o captura através da linguagem veiculada pela fala.

No âmbito escolar, é o professor que apresenta o saber através de uma fala estruturada

pela linguagem. Se está presente no aluno o desejo de aprender esta fala do professor,

baseada na transferência tem o Sujeito Suposto Saber ancorando a pulsão do saber,

provoca o efeito desejado que é o conhecimento. Sabemos ainda que segundo Lacan,

o recalque originário é o meio através do qual somos inseridos na corrente da cultura

e da civilização, quando o Nome do Pai vem interditar o Desejo da Mãe. Esta inserção

abre as séries de buscas pelo objeto faltante.” (MANDELLI, 2011)

Este fragmento do texto de Mandelli resume a gênese do desejo e a ideia lacaniana de

transferência, e do desejo de saber na falta advinda da castração, da interdição pelo Nome do

Pai – da qual decorre que o conceito de ensino em Lacan é baseado na transferência de trabalho,

como aponta Ayrton Reis:

“Segundo as teorias lacanianas, educar não é levar o aluno e o professor a se

identificarem através dos circuitos escolares ou se apropriarem do saber, tornando-os

"seus". Educar é perceber que o ensino nos remete à própria cultura, à uma nova forma

de ver o social e o individual. Ensinar é estabelecer referências.

Lacan nos propicia uma outra resposta, distinta daquela estabelecida pelos

psicopedagogos: ensinar é gerar transferência de trabalho. Ensinar é pôr os alunos a

trabalhar, fazendo-os ir em busca do que eles não sabem.” (REIS.s.d.)28

Dito isso, do ponto de vista da psicanálise é absolutamente necessária uma postura

pedagógica de trabalho em pesquisa e investigação, especialmente uma que mobilize os

sentidos na busca pelos saberes e que se explicite no desenrolar de sua construção enquanto

linguagem, como é o caso da pesquisa e construção de um filme investigativo. Reis

complementa:

“Mas, qual a diferença entre as duas propostas? A Psicopedagogia faz uma leitura do

mundo como se a resposta dos sujeitos se encontrasse no significado, no significante

e no sentido. Isto é, ela acredita que haja a resposta. Para a Psicanálise, este contexto

se explicita de uma outra forma. O saber é da ordem do semblante. Ele se encontra

atrelado ao processo do sujeito. Não se trata mais de um saber universal. Ele se

apresenta sob várias vestimentas. Todas são semblantes, nenhuma é a coisa. Por isso,

28 Artigo disponível online, sem data de publicação em http://coral.ufsm.br/lec/01_01/Ayrton-OrionL5.htm

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É preciso que nós não confundamos saber e verdade. O saber que a escola apresenta

não é verdadeiro. Ele também é mais uma forma, semblante do saber. Por exemplo,

uma das faces do saber na escola é o saber científico. O saber que o professor apresenta

pode ser tomado como sendo a ciência pelos alunos, mas ele não é a ciência. O saber

do cientista tem outra estrutura, apresenta uma outra articulação proposicional,

necessitando ser resgatado em seu contexto específico. O que vai determinar a verdade

é a lógica proposicional que ela apresenta. Ou seja, é a partir da emissão do discurso

e, em decorrência, da sua análise bem como da análise dos seus efeitos que se pode

saber se um saber é verdadeiro ou não.” (REIS .s.d.)

Fica evidente a lógica proposicional como motor de uma articulação como aquilo que

revela uma verdade, e portanto sua necessidade quando da proposta. Ainda a contribuir com o

debate sobre como deve ser uma proposta de ensino na contemporaneidade, vale citar:

“O sujeito pós-moderno, por ser efeito de discurso – e de um discurso que emergiu

mediante a queda do pai, ou seja, o discurso capitalista –, é um sujeito para quem o

desejo não é falta, senão capricho, vontade de gozo. O desejo do sujeito pós-moderno

é vontade de gozo porque o discurso capitalista tem a lógica insensata e feroz do

supereu. Mais: poderíamos dizer que o discurso capitalista é o supereu do sujeito “pós-

moderno”. Discurso capitalista e supereu articulam-se num mesmo imperativo:

“Goza!”, mas não do imperativo da renúncia, como ordenava o supereu “moderno”, e

sim de um modo infernal e ilimitado, goza do objeto técnico, do objeto que é efeito

do discurso da ciência.” (RIAVIZ apud REIS .s.d.29)

Esta visão complementa à de Forbes (2010) anteriormente citada neste texto, e coaduna

com a de Barbero (1987). Para Forbes, a psicanálise do século XXI é uma psicanálise do Real,

em detrimento a uma do Simbólico que servia a uma era anterior pai-orientada. Uma vez que

ocorre no âmbito do simbólico a queda das estruturas de poder, a queda das relações de

verticalidade na sociedade para uma cada vez mais horizontal – fenômeno provocado pela

globalização, ocorre uma mudança que torna o humano desta época “desbussolado” – isto é,

sem padrões de referência. Por isso, ao indagar-se o que a psicanálise do século XXI tem a

oferecer para a escola, faz uma análise da escola em três momentos, antes de concluir

proposição no terceiro momento em função de uma escola que seja capaz de abarcar a dimensão

do Real.

Esta primeira escola seria para Forbes (2010) a escola autoritária, magistral clássica, na

qual o que era dito pelo mestre era bom e correto, e o não dito era o ruim. Nessa escola havia

restrição de liberdade de expressão e imposição de regras e tudo quanto fosse necessário; não

havia conversa. A segunda escola, vinda em resposta a essa primeira, tentava juntar o bom e o

ruim a fim de conviverem juntos, propondo-se assim uma proposta mais moderna, preocupada

com o que todos pensam. Consagra-se nela o jargão “vamos ver e pensar juntos” e os círculos

29 Reis cita Riaviz em seu artigo, porém o texto é transcrição de uma palestra realizada pela Escola Brasileira de

Psicanálise em Novembro de 2005, em São Luís – MA.

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de alunos e professores sentados no chão, não havendo críticas feitas diretamente ao aluno e

todas as falas recebiam igual valor e atenção. Quanto à terceira, Forbes disserta:

“E, finalmente, propusemos um modelo ainda por vir: uma escola fora do parâmetro

maniqueísta bom ou mau, ou bom e mau e que pudesse incorporar, na repetitiva e

ineficiente dicotomia de bom ou mau, o silêncio, o real." (FORBES, 2010, p.114)

“É um avanço, sem dúvida. Não resolve, no entanto, o silêncio a que nos referimos: o

Real que há de ser incluído para que a relação com o saber torne-se responsável e,

portanto, criativa. Pois tanto Ataulfo quanto Caetano30, nesses exemplos, têm soluções

completas: o primeiro, ao excluir o que não serve; o outro, ao equilibrar a

ambivalência. Nenhum dá lugar à incompletude do saber, testemunha da presença do

real, que é o espaço da criação singular. Delineamos, por isso, uma terceira escola,

para a qual temos apenas condições de apontar como uma tendência, sem melhor

definição. Poderíamos ousar chamá-la de Escola Lacan?

Não temos uma canção para exemplificá-la, mas sim as palavras usadas por Jacques

Lacan em seu Seminário XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise

(1964/1985b, p. 254): “Eu te amo, mas, porque inexplicavelmente amo em ti algo que

é mais do que tu – o objeto a minúsculo, eu te mutilo.

Dizer “Amo em ti algo que é mais do que tu”, sintetiza o excesso: a essência que está

além de qualquer significação. Como pensar um modelo prático dessa escola Lacan,

que inscreve o silêncio, o real no amor do saber?” (FORBES, 2010, p.117-118)

Aqui está sendo colocada em cheque toda possibilidade de conhecimento fechado em si

numa proposta de escola real, do mesmo modo que os autores da interdisciplinaridade apontam,

porém por outra perspectiva. Faço aqui um resgate da ideia de poética do ensino, e ao

significado de poética, faço o anexo das funções da linguagem. Vemos que Forbes aponta, uma

primeira proposta de escola que é autoritária, seja centrada na verticalidade e na figura do

professor como dono do saber e emissor da mensagem, na qual prevalece o discurso sério e

informativo – é uma escola da função referencial, ou denotativa. A segunda é uma proposta

centrada na figura do aluno, que vem como resposta, como reação à primeira escola, e há uma

preocupação em não fazer críticas ao mesmo tempo que escutar e dar atenção a todos – seria,

talvez, uma escola da função expressiva da linguagem? E em terceiro lugar, quando aponta uma

tendência para uma escola do real, ele se aproxima de uma escola da função poética, centrada

na sua própria mensagem: o saber. Isto é, uma escola não como um espaço de informar, ou de

se expressar apenas, mas de saber – na qual não um ou outro método prevalece, porém o modo

como o processo inteiro se faz. Ele dá um exemplo:

“A título ainda provisório, pensamos que a experiência de Domenico De Masi (DE

MASI; FREI BETTO, 2002, pp122-3), na Universidade de Roma, pode ser um

exemplo. Este autor não se propõe dizer qual seria a melhor didática, mas sim, relatar

sobre aquela que ele desenvolve. Combina pesquisa teórica e prática; trabalhos

individuais, em pequenos grupos e coletivos; utilização intensiva da informática, um

site, em que se encontram o programa, a bibliografia, comentários de filmes e de livros

e poemas. Este site é gerido por alunos e coordenadores, e qualquer pessoa pode

30 Por Ataulfo e Caetano, Forbes se refere à escola autoritária e à moderna, respectivamente, conforme metáforas

anteriores no texto. Para a escola do Real, ele dá o nome de escola Lacan.

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acessá-lo. É evidente que, ao vermos a proposta de De Masi, reconhecemos como ela

vem em seqüência aos cartéis propostos por Lacan à sua Escola. Basicamente, De

Masi estabelece um tema de pesquisa por ano, dividido em unidades. Cada uma dessas

unidades é trabalhada da seguinte forma: há, primeiramente, algumas conferências

expositivas do tema, seguidas de elaboração e pesquisa por grupos de alunos -

acompanhados de “tutores” – em uma atividade finalizada com a apresentação do

resultado por cada grupo, em público. No final do ano, então, os grupos assim

constituídos apresentam um trabalho geral sobre tudo o que pesquisaram. Dessa

forma, De Masi associa estudo, pesquisa, tarefas individuais, em pequenos grupos e

coletivas, ao site e à inter-relação dos alunos dos vários anos. Será esta a escola que

melhor suportará o real? É uma questão a ser provada. Parece-nos, pelo momento, a

que melhor articula criação e responsabilidade. Fatores que, como temos defendido,

são os fundamentais da nossa época”. (FORBES, 2010, p.118)

A escola de De Masi dialoga diretamente com a proposta Freireana de tema-gerador e

investigação. Ao diversificar as práticas – pesquisas e trabalhos individuais, em grupo e em

coletivos – garante-se uma multiplicidade de dimensões de trabalho e competências

intersubjetivas empregadas. Em outras palavras, o aluno se lança em diversos tipos de grupos

com os quais deve aprender a lidar. Há uma linha de pesquisa, uma divisão dos trabalhos e um

trabalho geral que é exposto no final. Como Reis (s.d.), citado anteriormente, a escola que Lacan

pensa é a que coloca o aluno para trabalhar, com o intuito de tornar os saberes significados –

isto é, partes de si (do ego).

O que proponho aqui então é o filme como esse trabalho, o filme como investigação e

como pesquisa. Penso em unir a perspectiva Freireana, que procura observar o universo do

educando a fim de delinear tema-gerador, com a perspectiva lacaniana. É justamente

observando e entendendo o universo do educando que é possível tornar relevante (significado)

o conhecimento pretendido pelo trabalho, mas aqui não apenas por um trabalho, mas por uma

perspectiva estética do trabalho.

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7. O CINEMA E A INTERDISCIPLINARIDADE

A interdisciplinaridade é um assunto que é tido como dado, um fato, mas quase ninguém

de fato conhece a fundo e o emprega com competência. Isto vem de um contexto aonde o regime

militar brasileiro lança na sua reforma de diretrizes e bases, sem definir o conceito, o termo

interdisciplinaridade, enquanto o conceito do mesmo ainda estava começando a ser discutido

na Europa. Disto resulta uma distorção prática do conceito, especialmente quando da aplicação

e efetivação de currículos integrados (ROVAI, 2015). Afinal, o que é interdisciplinaridade?

Ivani Fazenda, principal nome do campo da interdisciplinaridade no Brasil, ao fazer uma análise

das principais correntes de pensamento a respeito, chega a uma síntese, no sentido de distinguir

diversos termos vez ou outra confundidos no assunto:

“A nível de multi e de pluridisciplinaridade, ter-se-ia uma atitude de justaposição doe

conteúdos de disciplinas heterogêneas ou a integração de conteúdos numa mesma

disciplina atingindo-se quando muito o nível de integração de métodos, teorias ou

conhecimentos.

A nível de interdisciplinaridade, ter-se-ia uma relação de reciprocidade, de

mutualidade, ou melhor dizendo, um regime de co-propriedade que iria possibilitar o

diálogo entre os interessados. Neste sentido, pode dizer-se que a interdisciplinaridade

depende basicamente de uma atitude. Nela a colaboração entre as diversas disciplinas

conduz a uma “interação”, a uma intersubjetividade como única possibilidade de

efetivação de um trabalho interdisciplinar.

O nível da transdisciplinaridade, como evoca a própria nomenclatura, seria o nível

mais alto das relações iniciadas nos níveis multi, pluri e inter. Trata-se de um “sonho”,

no dizer de Piaget, mais do que uma realidade.” (FAZENDA, 1979, p.39)

O conceito descrito por Ivani Fazenda difere das correntes majoritariamente presentes

no campo, que poderíamos enxergar como sendo a de origem Europeia e a Americana. A

europeia possui um viés mais centrado na epistemologia, enquanto que a americana é centrada

no mercado de trabalho e na funcionalidade. Ivani Fazenda inaugura uma interdisciplinaridade

brasileira, descrita como uma espécie de postura, isto é, ela depende de uma atitude frente ao

conhecimento e ao outro. (LENOIR, 2006)

Esta interdisciplinaridade pressupõe uma intersubjetividade, uma interação entre

sujeitos (de formações disciplinares diferentes), na qual ocorre uma mudança de atitude frente

ao problema do conhecimento humano, de uma “concepção fragmentária para uma unitária do

ser humano” (FAZENDA, 1979) a partir desta troca intersubjetiva. A ideia de uma

interdisciplinaridade como questão de atitude traz uma reflexão, nesse contexto, sobre que

posição de ser ou estado de espírito é este no qual a atitude interdisciplinar se centra, para que

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53

se retome a consciência sobre o sentido da presença do homem no mundo (JAPIASSÚ, 1976,

apud FAZENDA). Ou seja, destas pressuposições, tiramos que o educando deve ser

obrigatoriamente protagonista da própria história, e que o educador deve ser mais humano;

livre, porém comprometido, solidário e crítico – deve haver um olhar atento e corajoso para

enfrentar o novo e as incertezas, com objetividade e racionalidade, mas sem se alienar ou perder

outras dimensões da vida.

Antes de me aprofundar no assunto da interdisciplinaridade propriamente, vou dar um

passo atrás e refletir sobre o que é disciplina. Não tenho contas de quantas vezes ouvi alunos –

e minha experiência em sala de aula é minúscula – perguntarem-se qual o sentido de estudar tal

ou tal outra disciplina. Por exemplo, “porque estudar Matemática, se vou fazer Direito?”. Então

o que é disciplina e porque é que temos de estudá-la? Qual o sentido de entrar numa escola num

tal horário e ser privado de estar com amigos ou família para estudar um assunto que não sei a

importância? Qual o sentido de estudar cinema, por exemplo? São perguntas desse tipo que me

fazem procurar uma resposta.

As disciplinas podem ser definidas como campos específicos do saber, para as quais

vale a teoria de campos de Bourdieu. Isto é, todo campo disciplinar possui certas práticas e

certos saberes, e também um campo de interesses, visto que “qualquer que seja o campo, ele é

objeto de luta tanto em sua representação quanto em sua realidade” (BOURDIEU, 2003, p.29).

A disciplina é um campo que desenvolve jargões próprios, linguagem própria por meio da qual

se comunicam os pertencentes ao campo, o que é necessário e natural, porém com José

D’Assunção Barros, toda disciplina é histórica e está submetida à sua história, de modo que

precisa se renovar sempre. Ele define:

“[...] Três aspectos fundamentais a serem considerados quando se fala na constituição

de um “campo disciplinar” relacionam-se ao fato de que nenhuma disciplina adquire

sentido sem que desenvolvam ou ponham em movimento certas teorias, metodologias

e práticas discursivas. Mesmo que tome emprestados conceitos e aportes teóricos

originários de outros campos de saber, que incorpore métodos e práticas já

desenvolvidas por outras disciplinas, ou que se utilize de vocabulário já existente para

dar forma ao seu discurso, não existe disciplina que não combine de alguma maneira

Teoria, Método e Discurso.” (BARROS, 2011, p.260)

Portanto, além de teoria, método e discurso próprios, ao desenvolvimento de um

linguajar próprio, é possível que surja dentro da disputa de campo agentes que façam força no

sentido de afirmar estes em reação a outros campos, encerrando as disciplinas em pequenas

bolhas, especialmente no âmbito da escola. E assim, como aponta Japiassú, é que começa o

processo de cancerização, de fechamento dos campos em bolhas de conhecimento, que não

dialogam com outros. Resulta-se em situações bizarras, como um biólogo e um químico não

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serem capazes de reconhecer água em duas equações diferentes, uma retratando uma situação

típica da biologia e outra da química – o significado da coisa é o mesmo, mas a necessidade de

afirmar o próprio linguajar é tamanha que o sujeito se fecha em sua incapacidade de

compreender. Japiassú (1979), referindo-se à interdisciplinaridade, diz:

“Para sairmos desse impasse, duas perspectivas epistemológicas atuais se revelam

bastante promissoras, sobretudo porque reintroduzem, na consideração das práticas

científicas e de sua pedagogia no sistema de ensino, a indispensável dimensão crítica.

A primeira é a chamada ciência crítica” que, fundamentalmente, consiste em ressituar

as práticas científicas em seu real contexto sócio-político cultural. A segunda, a única

que vai nos interessar aqui, é a da interdisciplinaridade que, essencialmente, consiste

num trabalho em comum tendo em vista a interação das disciplinas científicas, de seus

conceitos diretrizes, de sua metodologia, de seus procedimentos, de seus dados e da

organização de seu ensino.

Esta segunda perspectiva ainda se encontra relegada ao ostracismo em nosso sistema

de ensino. Isto se deve aos arraigados preconceitos positivistas e cientificistas que

ainda cultivam, sobretudo em nossas universidades, todo tipo de epistemologia da

dissociação e do esfacelamento do saber. Também sob esse aspecto, a ciência ensinada

em nossas universidades é bastante alienada. Ensina-se um saber em processo de

cancerização galopante. Porque seus horizontes espistemológicos são cada vez mais

reduzidos. Ademais, ensina-se uma especialização que constitui um fator de cegueira

intelectual, que instaura a morte da vida ou que revela uma razão irracional. A ponto

de os especialistas conseguirem este feito extraordinário de não mais saberem aquilo

que acham que sabem. Ora, o esmigalhamento do conhecimento revela uma

inteligência esfacelada. As “ilhas” epistemológicas, dogmática e acriticamente

ensinadas, sem portas nem janelas, são verdadeiras prisões, mantidas pelas

instituições ainda às voltas com o problema da distribuição de suas “fatias” de saber,

pequenas rações retiradas de um estoque cuidadosa e ciumentamente armazenado

nessas penitenciárias centrais da cultura que são as universidades, onde ainda

prevalece o espírito de concorrência e propriedade epistemológica, preparando

“extralúcidos” regionais, porém cegos ao sentido da totalidade humana.” (JAPIASSÚ,

1979, p.13-14)

Pelas razões acima apontadas, Japiassú (1979) reflete no mesmo texto que a atitude

interdisciplinar provoca medo e recusa, por razões semelhantes ao que Morin (2004) aponta

como sendo em função do medo da incerteza, que devemos enfrentar. Japiassu defende uma

“pedagogia da incerteza” em oposição ao que chama de pedagogia da certeza, que, embora gere

um medo do desconhecido, promove o desapego de posições e conceitos e uma visão mais

aberta e sóbria do conhecimento científico. O conhecimento nasce da dúvida e alimenta-se da

incerteza. Para ele os homens devem aprender a viver no repouso do movimento e na segurança

da incerteza.

Não quero que o cinema seja mais um problema para o sistema educacional – isto é,

mais um participante numa luta contra as outras disciplinas por uma fatia maior de espaço na

grade, e sim um parceiro, um colaborador na luta contra o real problema humano, que é a

ignorância e a escravização dos quais o saber pretende libertar. Portanto é necessário apontar

que a divisão disciplinar é um problema em potencial para o estabelecimento do cinema na

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escola, à medida em que ele é mais um que vem a disputar o campo da escola. Apesar de estar

nos seus estágios ainda iniciais de entrada na escola, e, portanto, ser frágil – necessitando, assim,

de uma afirmação do próprio espaço, considero também que é absolutamente necessário que o

cinema chegue na escola com uma abordagem que busque se integrar às outras matérias,

considerando este um passo prévio para a interdisciplinaridade, conforme define Fazenda

(1979), buscando fazer o papel de desconstrução do poder de mediação que a mídia (no âmbito

audiovisual) sequestra da escola, como aponta Martín-Barbero (1987).

Se para Ivani Fazenda, a interdisciplinaridade só acontece no encontro intersubjetivo,

entre sujeitos com conhecimentos diferentes, e na atitude de encarar o conhecimento como não

fragmentário, o audiovisual tem em si uma potência que vem do ver, fazer e refletir31 do filme

e no discurso cinematográfico em si. No momento em que alunos começam a fazer seus filmes

e debater uns sobre seus filmes e os dos outros, as subjetividades são diretamente colocadas em

destaque e em diálogo. Quaisquer saberes dos alunos com os quais eles se identifiquem como

parte relevantes para si emergem imediatamente, e a troca passa a ser possível. Há uma mudança

na atitude frente ao conhecimento – uma pequena mudança, no sentido de reconhecer estes

conhecimentos como parte de si. A teoria do espelho é recobrada aqui. Para a

interdisciplinaridade, é preciso reconhecer os conhecimentos como não-fragmentários, como

parte de um todo. Porém se há o reconhecimento como parte de si, falta apenas reconhecer a si

como parte do todo.

A metodologia de dispositivos do Inventar com a Diferença é interessante neste sentido,

quando retira a necessidade de um “sabedor do cinema”, um alguém com uma posição

diferenciada, saindo com isso a necessidade de afirmação do campo. Mais ainda, deixa o

experimentar e investigar livres, ausentes do peso do medo das incertezas. As incertezas são

premissas; os resultados, diversão. O que importa fica sendo o processo, como em um jogo.

No que se refere ao medo da incerteza, Morin discorre sobre as diversas formas de

incertezas que sempre estiveram presentes no fazer da ciência e no desenrolar da história da

humanidade como um todo, colocando o próprio mundo, a ser conhecido, como objeto incerto.

Quanto à incerteza do conhecimento, diz:

“O conhecimento é, pois, uma aventura incerta que comporta em si mesma,

permanentemente, o risco de ilusão e de erro.

Entretanto, é nas certezas doutrinárias, dogmáticas e intolerantes que se encontram as

piores ilusões; ao contrário, a consciência do caráter incerto do ato cognitivo constitui

a oportunidade de chegar ao conhecimento pertinente, o que pede exames,

verificações e convergência dos indícios; assim, nas palavras cruzadas, atinge-se a

31 Em referência à Proposta Triangular de Ana Mae Barbosa.

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56

precisão para cada palavra na adequação ao mesmo tempo de sua de finição e sua

congruência com as outras palavras que contêm letras comuns; em seguida, a

concordância geral que se estabelece entre todas as palavras constitui a verificação de

conjunto que confirma a legitimidade das diferentes palavras inscritas. Mas a vida,

diferentemente das palavras cruzadas, compreende espaços sem definição, espaços

com falsas definições, e, sobretudo, a ausência de um quadro geral fechado; é somente

aí que se pode isolar um quadro e tratar os elementos classificáveis, como no quadro

de Mendeleiev, que se pode alcançar certezas. Uma vez mais repetimos: o

conhecimento é a navegação em um oceano de incertezas, entre arquipélagos de

certezas.” (MORIN, 2004, p.86)

Os medos já foram retratados dos modos mais diversos nas obras de arte, e no cinema

especialmente, e os gêneros de terror são pedagógicos nesse sentido, a saber pelo modo como

se constrói o medo no cinema. O ser humano em algum momento passa a ser consciente de si,

e decorre da consciência da própria existência a conjectura da não-existência, que por sua vez

se desdobra no medo da não existência – o medo da morte, por exemplo, ou o medo dos

monstros e de tudo que pode causar a morte – o medo do perigo. Desdobra-se o medo da não-

existência na necessidade de garantir a existência, isto é, através da sobrevivência e da

reprodução. Da necessidade de garantir sobrevivência – que, por sua vez, depende da

previsibilidade de cenários para os quais é preciso se preparar ou proteger, desdobram-se os

medos do imprevisível, do desconhecido, da incerteza e do inseguro. Estes medos, por sua vez,

reincidem na reprodução, sendo todos os relacionamentos intersubjetivos sob constante ameaça

da incapacidade de previsão. Disso vem a necessidade de controle do outro; e pronto, está

fundada toda a estrutura de violência obrigatória. No âmbito do terror, do horror, do suspense

ou do mistério – gêneros fílmicos com diferenças conceituais entre si mas todos baseados no

medo – temos uma sofisticação porém simplificação do medo à sua raiz – as construções

narrativas ocultam peças chave de modo seletivo e cuidadoso afim de impedir que o espectador

forme sentido total antes do momento certo. Há uma angústia, uma ansiedade, um medo –

provocado pela ausência do conhecer, do prever, do controle. Não sabendo aonde vai a

narrativa, em que lugar de fato se situa o personagem no qual projeta, o espectador cai no medo

do desconhecido. No caso do mistério (ou thriller) para além de um monstro – que é a causa do

medo no filme de horror, mas tem corpo físico, propriedades conhecidas e pode ser alvejado

com uma estratégia – o terror que não personifica nem diz qual é a causa dos acontecimentos

negativos da trama é ainda pior: a causa desconhecida representa a possibilidade de todas as

causas, indepententemente do fato de as serem; e isto é mais aterrorizador que qualquer causa

definida. Acerca dos medos da e relacionados à incerteza, recobro a Schiller. Terry Eagleton

(1993) faz uma leitura comparativa de seu projeto estético com a hegemonia de Gramsci, da

qual retiro o trecho a seguir:

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57

“O que Schiller denomina a “modulação estética da psique” denota, de fato, um

projeto de reconstrução ideológica fundamental. A estética é a mediação necessária

entre uma sociedade civil bárbara, entregue ao puro apetite, e o ideal de um estado

político bem-ordenado: “se o homem pretende algum dia resolver o problema da

política, na prática, ele terá que abordá-lo através do problema da estética, pois só

através da Beleza o homem atingirá a Liberdade. Toda política progressista naufragará

tão certamente quanto o jacobinismo, se não fizer um atalho através do psíquico e não

enfrentar o problema da transformação do espírito humano. A “estética” de Schiller

é, nesse sentido, a “hegemonia” de Gramsci num outro tom, e ambos os conceitos

nascem politicamente do colapso de esperanças revolucionárias. A única política que

se sustentará será a que se fundar firmemente numa “cultura reformada e na

subjetividade revolucionada.

A estética não tornará a humanidade livre, moral e verdadeira, mas a preparará

internamente para receber e responder a esses imperativos racionais: “embora esse

estado [estético] não seja por si mesmo decisivo no que respeita às nossas percepções

internas ou convicções, deixando tanto nosso valor moral como intelectual ainda

inteiramente problemáticos, ele é, no entanto, a precondição necessária para que

tenhamos qualquer percepção interna ou convicção. Numa palavra, não há outro meio

para tornar racional o homem sensível, senão o de inicialmente torná-lo estético”.

(EAGLETON, 1993. pp.80-81)

Schiller aponta a estética como condição necessária, mas não uma panaceia que

resolveria todos os problemas, não sendo papel da estética fornecer saberes completos e

fechados em si ou juízos de valores fáceis, mas a condição de possibilidade de chegar

individualmente nas respostas para as perguntas fundamentais da alma humana.

Ou seja, no âmbito de um projeto interdisciplinar estético estruturado pelo cinema, não

apenas pode o filme funcionar como um dispositivo investigativo em conjunto com outras

matérias numa espécie de pedagogia dialógica da investigação, mas também como um estado

preparatório para o recebimento e resposta dos imperativos racionais e condição prévia de

possibilidade de acesso ao conhecimento, por meio da estética – aqui no caso, apresentada como

possibilidade de transposição dos medos da incerteza.

Existe no fazer fílmico uma potência para a realização de síntese de saberes múltiplos,

no encontro em equipe. Equipes interdisciplinares poderiam se encontrar para realizar trabalhos

interdisciplinares que culminariam em produtos fílmicos, na escola. A interdisciplinaridade

pode surgir na abordagem e no enredo, ou na perspectiva do discurso, como é em Ilha das Flores

(1989, Jorge Furtado, 13min), um documentário de curta-metragem que costura uma linha de

raciocínio transitando por diversas camadas e esferas sobre o impacto da ação humana a partir

de simples atos e como a roda da economia tal como se dá hoje produz desigualdades. O filme

dialoga com a ideia de complexidade de Edgar Morin quanto ao seu objeto de estudo, mas é

interessante notar que há uma relação entre o conceito de complexidade e algumas teorias da

montagem do cinema.

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58

“O conhecimento pertinente deve enfrentar a complexidade. Complexus significa o

que foi tecido junto; de fato, há complexidade quando elementos diferentes são

inseparáveis constitutivos do todo (como o econômico, o político, o sociológico, o

psicológico, o afetivo, o mitológico), e há um tecido interdependente, interativo e

inter-retroativo entre o objeto de conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o

todo e as partes, as partes entre si. Por isso, a complexidade é a união entre a unidade

e a multiplicidade. Os desenvolvimentos próprios a nossa era planetária nos

confrontam cada vez mais e de maneira cada vez mais inelutável com os desafios da

complexidade. Em conseqüência, a educação deve promover a “inteligência geral”

apta a referir-se ao complexo, ao contexto, de modo multidimensional e dentro da

concepção global.” (MORIN, 2004, p.38)

Se o filme é um objeto de conhecimento, a montagem, no sentido mais amplo possível,

seria esta tessitura interdependente, e compreender a montagem é uma possibilidade para a

compreensão do complexo. Esta ideia de tessitura pode ser sentida através do conceito de ritmo.

O conceito de ritmo tem, na verdade, uma inserção interessante no âmbito pedagógico para a

teoria da montagem, ou seja ele em qualquer arte – porque mesmo que corporalmente, qualquer

um é capaz de senti-lo em alguma medida, a começar pelo próprio batimento cardíaco – o que

revela uma predisposição a um caráter antropomórfico para a medida do passar do filme. É

sempre possível achar um caminho de sensibilizar pelo ritmo. E montagem não é apenas corte,

montagem é ritmo. Do mesmo modo que o uso na música, o ritmo determina a dinâmica e a

fluidez interna de um plano assim como de um conjunto de planos ou a totalidade de um filme.

E é comum que a etapa de edição se confunda com a montagem, mas na verdade a montagem

já começa desde a direção de fotografia, visto que os enquadramentos, os movimentos dentro

de quadro, a dinâmica de luzes, cores, sombras e movimentos de câmera, todos influenciam no

ritmo. Um excelente exemplo disso é o documentário Iluminados (2008, Cristina Leal,

100min), em que seis renomados diretores de fotografia brasileiros são convidados a dirigir a

mesma cena, com os mesmos ator e atriz, mesmo cenário, mesmo roteiro – e no entanto o

resultado sai completamente diferente. As partes são as mesmas, mas o todo é diferente por

causa do modo como se escolhe estabelecer relações por meio da ação humana, aparecendo

assim os complexos.

Morin (2004) separa dois tipos de compreensão, a intelectual/objetiva e a

humana/intersubjetiva. Esta última vai além da explicação, além da informação objetiva;

necessita de um conhecimento entre sujeitos (que é a exatamente a intersubjetividade para

Fazenda), e uma percepção do outro para além da objetivação. Os obstáculos à compreensão

que cita são o ruído de transmissão de informação, a polissemia, a ignorância dos costumes, a

incompreensão de valores culturais, incompreensão de valores éticos, impossibilidade de

compreensão de ideias e impossibilidade de compreensão de estruturas mentais – todos elas

diretamente expostas no serviço fílmico. É evidente que o cinema não resolve todos os

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problemas da compreensão, mas ele é um lugar perfeito para experimentá-los e superá-los, na

medida em que possibilita lugares de fala diferenciados, truques de revelação que não existem

em outras linguagens. Vale citar:

“Estamos abertos para determinadas pessoas próximas privilegiadas, mas

permanecemos, na maioria do tempo, fechados para as demais. O cinema, ao favorecer

o pleno uso de nossa subjetividade pela projeção e identificação, faz-nos simpatizar e

compreender os que nos seriam estranhos ou antipáticos em tempos normais. Aquele

que sente repugnância pelo vagabundo encontrado na rua simpatiza de todo coração,

no cinema, com o vagabundo Carlitos. Enquanto na vida cotidiana ficamos quase

indiferentes às misérias físicas e morais, sentimos compaixão e comiseração na leitura

de um romance ou na projeção de um filme.” (MORIN, 2004, p.101)

Morin coloca o cinema, portanto, como um aliado no ensino da compreensão humana

de modo geral. Com uma “fotogenia do ensino”, ou uma “poética cinematográfica do ensino”,

é possível elencar os quatro princípios do Conhecimento Pertinente, que o mesmo autor define

como sendo “o contexto, o global, o multidimensional e o complexo”. Para Morin, o

“conhecimento das informações ou dos dados isolados é insuficiente.” O filme, por sua vez, é

impossível de ser entendido sem o contexto: como discutido anteriormente, é uma linguagem,

não uma língua; depende do entendimento do contexto narrativo o desenrolar de qualquer filme.

Do entendimento da relação entre os planos é possível visualizar o global: que é um conjunto

das relações que há entre o todo e as partes. Para Morin, o “global é mais que o contexto, é o

conjunto das diversas partes ligadas a ele de modo inter-retroativo ou organizacional”. Do

mesmo modo que uma sociedade não é apenas o contexto – é um todo organizador do qual

fazemos parte, o filme também é mais do que apenas seu contexto, é um todo organizador da

qual fazem parte planos, sequências, performances, músicas, sons e imagens de diversos tipos

e em diversas disposições, estabelecendo as mais diversas relações de causalidade, tanto da

ordem racional quanto emocional. O filme, enquanto lugar de encontro com si mesmo, enquanto

prática de pesquisa e investigação, enquanto evento, enquanto projeto, também é

multidimensional em si – não só no conteúdo fílmico, mas o que há além do mesmo que o

circunda e no entanto aparece, em cada plano, de modo “hologrâmico”. Por fim, o complexo,

discutido anteriormente.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluo, pois, sintetizando uma proposta em que o filme se lança como produto, projeto

e processo, de pesquisa, investigação e problematização, trazendo e organizando múltiplos

saberes, múltiplos discursos e múltiplos sujeitos no mesmo discurso audiovisual. A proposta,

no fundo, é simples – achar um tema-gerador, trabalhar investigativamente nele,

interdisciplinarmente nele, e realizar um filme no início, no meio do processo, e no fim do

mesmo como produto. Ao abordar interdisciplinarmente o tema, a pesquisa conta mais de um

professor de áreas diferentes, promovendo o encontro intersubjetivo e a troca de saberes de

áreas diferentes. Ao pesquisar a realidade dos alunos e construir a proposta através do diálogo

o tema-gerador torna-se relevante. Ao abordar esteticamente o tema, não apenas relevante, mas

significante.

Com isso, a orientação do processo tem equilíbrio racional e sensível, com lugar devido

restaurado à emoção. Os resultados da pesquisa se consolidam no filme. Os processos de

aprendizado podem ser filmados e se transformar em memória e documentário, e os erros não

serão um fardo, porém um ganho para o conhecimento. O foco é no processo, mas o filme pode

servir como início e como fim também.

Ao que poderia se observar de uma inspiração Freireana na questão de uma pedagogia

investigativa, dialógica ou problematizadora, a um eixo político-pedagógico adiciona-se um

eixo estético vindo do projeto poético de ensino, que se completa posteriormente num tripé com

a ideia do cinema como encontro consigo mesmo com um eixo ético, tornando assim este um

projeto ético-estético-político pedagógico.

Porque não pensar uma escola que procura soluções para problemas reais da cidade:

Como a despoluição de um lago, ou erros da história passada sendo re-cometidos no presente,

ou como lidar com a perda da memória do patrimônio da comunidade em que os estudantes

moram, ou tantas outras questões.

O projeto de formação de professores, nesse sentido, que venho fazendo com o grupo

ANINGAPARA, é uma espécie de tentativa de preparar o terreno para uma possível entrada do

cinema nas escolas locais. É, sem dúvida, um investimento no futuro.

Procurei elaborar uma proposta que recuperasse o sentido estético da educação, a

sensação e a emoção, e ao mesmo tempo servisse de reunificação para os setores em difícil

diálogo. Mais do que apenas recuperar o sentido de aprender e o prazer do mesmo, gostaria de

sonhar com uma educação que pensa, de fato, a vida. Não uma que seja uma ante-sala da vida,

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mas uma que esteja ligada à mesma como se nunca tivessem saído uma da outra. No processo

de racionalização e dessensibilização das coisas, perdemos não apenas o sentimento, mas o

significado de viver. Krishamurti, ao criticar um paradigma de educação industrial, indaga

“Qual é, pois a significação da vida? Para que vivemos e lutamos? [...] Se a vida tem um

significado mais amplo, que valor tem nossa educação se nunca descobrimos esse significado?

(KRISHNAMURTI, 1982, p.12)”.

Termino este texto com uma frase que digo a mim mesmo às vezes, mas gostaria de ter

dito a todos os alunos: Lux fecit te caecus veritatis – surrexis stella iam (a luz te fez cego para

a verdade – já nasceste estrela).

E aos professores, deixo palavras de Paulo Freire: “Não deixe que o medo do difícil

paralise você.”32

32 Segunda carta de Paulo Freire (1997) em “Professora sim, Tia não”

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