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276 D. W. WINNICOn
poca do nascimento pode ser fortalecida pelas experincias, mesmo
que setrate de uma reao intruso, desde que esta no dure tempo
demais. Duasintruses, no entanto, exigem duas reaes, e isto corta a
psique em duas. Oesforo do ego que descrevi acima uma tentativa de
manter as intruses adistncia por meio da atividade mental,
permitindo que as reaes a elas sedem uma de cada vez sem ocorrer a
desorganizao da psique. Tudo istopode ser muito claramente
demonstrado no tratamento analtico, desde quesejamos capazes de
seguir o paciente para trs no desenvolvimento emocio-nal tanto
quanto ele precisa ir, pela regresso dependncia, a fim de alcan-ar
momento anterior quele em que as intruses tornaram-se mltiplas
eimpossveis de controlar.
Por fim, repito que no existe anl ise baseada exclusivamente no
trata-mento do trauma do nascimento. Para chegar a esses estgios
primitivs,preciso que tenhamos mostrado ao paciente a nossa
competncia em todo oespectro da compreenso psicanaltica comum. E
mais: quando um pacienteque esteve inteiramente dependente comea a
progredir novamente, ser ne-cessrio que o analista compreenda
muitssimo bem a posio depressIva,-e-tambm o desenvolvimento gradual
rumo primazia do genital, bem comoda dinmica dos relacionamentos
interpessoais, tanto quanto o anseio por al-canar a independncia a
partir da dependncia.
Captulo XV
o dio na Contratransferncia(1947Y
NO PRESENTE TRABALHO, gostaria de examinar um dos aspectos do
temaambivalncia, a saber, o dio na contratransferncia. Creio que a
tarefa doanalista (chamemo-Ia analista pesquisador) que assume a
anlise de um psi-ctico intensamente afetada por esse fenmeno, e que
a anlise de pacien-tes psicticos revela-se impossvel a no ser que o
dio do prprio analistaesteja muitssimo discernvel e consciente.
Isto equivale a dizer que o analis-ta deve ser ele mesmo analisado,
mas implica tambm em afirmar que a an-. .lise de um psictico
irritante, se a compararmos com a de um neurtico, eque isto lhe
inerente.
O manejo de um psictico inevitavelmente irritante, e aqui no me
re-firo ao tratamento psicanaltico. De tempos em tempos tenho feito
crticascontundentes s atuais tendncias da psiquiatria, com seus
choques eltricosfceis demais e suas leucotomias drsticas demais
(Winnicott, 1947, 1949).Justamente em razo dessas crticas por mim
expressas, gostaria de ser o pri-meiro a reconhecer a extrema
dificuldade inerente ao trabalho do psiquiatra,e especialmente da
enfermagem psiquitrica. Os pacientes insanos repre-sentam sempre
uma pesada carga emocional para os que deles cuidam. De-vemos
perdoar aos que se envolvem com esse tipo de trabalho por
fazeremcoisas horrveis. Isto no significa, todavia, que devemos
aceitar qualquercoisa que os psiquiatras e os neurocirurgies faam
como sendo legtimas doponto de vista da cincia.
Portanto, ainda que a presente reflexo refira-se psicanlise, ela
ver-dadeiramente importante para o psiquiatra, mesmo para aquele
cujo traba-
Baseado num trabalho apresentado British Psycho-Analytical
Society em 5 de fevereiro de1947. Publicado no Int. J of
Psycho-Analysis, vol. XXX, 1949.
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278 D. W. WINNICOn
lho jamais o leva a estabelecer um relacionamento do tipo
analtico com os _seus pacientes.
A fim de ajudar aos que praticam a psiquiatria geral, o
psicanalista deveestudar os estgios primitivos do desenvolvimento
emocional do indivduoenfermo, mas deve estudar tambm.a natureza da
carga emocional que recaisobre o psiquiatra ao fazer o seu
trabalho. O que ns 'psicanalistas chamamosde contratransferncia
algo que precisa ser compreendido tambm pelospsiquiatras. Por mais
que estes amem os seus pacientes, no podem evitarodi-los e tem-los,
e quanto melhor eles o souberem mais difcil ser para omedo e o dio
tomarem-se os motivos determinantes do modo como eles tra-tam esses
pacientes.
possvel classificar os fenmenos contratransferenciais da
seguinte'maneira: .
1. Anormalidade nos sentimentos contratransferenciais, e
relacionamentos eidentificaes padronizados e reprimidos do
analista. O comentrio a esse res-
, peito o de que o analista precisa de mais anlise, e costumamos
acreditar quetrata-se de um problema menos grave entre os
psicanalistas do que entre os psi-coterapeutas em geral.
2. As identificaes e tendncias oriundas da experincia e do
desenvolvimentopessoal do analista, que fornecem as bases positivas
do seu trabalho analtico etornam esse trabalho diferente do de
outros analistas.
3. Destes dois tipos de fenmeno eu distingo a contratransferncia
verdadeira-mente objetiva ou, se isto for dificil, o amor e o dio
do analista em reao personalidade e ao comportamento reais do
paciente, com base numa observa-o objetiva.
Sugiro que se um analista prope-se a analisar pacientes
psicticos ouanti -sociais ele deve estar to profundamente
consciente de sua contratrans-ferncia, que lhe seria possvel
identificar e examinar as suas reaes objeti-vas ao paciente. Estas
incluiro o dio. Fenmenos contratransferenciaisrepresentaro, em
certos momentos, o elemento central da anlise.
Gostaria de sugerir que o paciente reconhece no analista apenas
o queele mesmo capaz de sentir. Quanto s motivaes: um obsessivo
tender apensar que o analista faz o seu trabalho de modo
obsessivamente vazio. Umhipomaniaco, incapaz de sentir-se deprimido
a no ser por uma guinada ex-tr~ma do humor, e em cujo
desenvolvimento emocional a posio depressi-va no foi alcanada com
toda a solidez, no sendo portanto capaz de sentirculpa,
responsabilidade e concernimento de modo profundo, no
conseguirperceber que o trabalho do analista tem por objetivo fazer
reparaes a
DA PEDIATRIA A PSICANLISE
respeito de seus prprios sentimentos de culpa (do analista). Um
paciente neu-rtico tender a ver no analista uma ambivalncia em
relao a ele (paciente),e a esperar por uma ciso entre o amor e o
dio do analista. Esse paciente, se ti-ver sorte, recebe o amor
porque alguma outra pessoa est recebendo o dio.Assim sendo, no bvio
que se um paciente psictico encontra-se num esta-do de 'amor e dio
coincidentes' ele ter a profunda convico de que o analis-ta s capaz
de relacionar-se com ele a partir desse mesmo fenmeno brutal
eperigoso de 'amor e dio coincidentes'? Neste caso, se o analista
demonstraramor ele certamente matar o paciente no mesmo
instante.
A coincidncia de amor e dio algo que sempre aparece
caracteristica-mente na anlise de psicticos, dando margem a
problemas de manejo quepodem facilmente exigir do analista mais do
que ele pode dar. Essa coinci-dncia de amor e dio qual me refiro
algo distinto da agressividade quecomplica o impulso do amor
primitivo, e implica em que na histria dessepaciente ocorreu um
fracasso do ambiente poca dos primeiros impulsosinstintivos em
busca do objeto.
Se for inevitvel que ao analista sejam atribudos sentimentos
brutais, melhor que ele esteja consciente e prevenido, pois lhe ser
necessrio tolerarque o coloquem nesse lugar. Acima de tudo ele no
deve negar o dio querealmente existe dentro de si. O dio que
legtimo nesse contexto deve serpercebido claramente, e mantido num
lugar parte para ser utilizado numafutura interpretao.
A fim de nos tornarmos capazes de analisar pacientes psicticos,
deve-mos alcanar em nossas anlises os nveis mais primitivos em ns
mesmos, eeste apenas mais um exemplo de que as respostas para
muitos problemasobscuros da prtica psicanaltica encontram-se na
anlise adicional do psi-canalista. (A pesquisa em psicanlise seria,
talvez, em algum grau, uma ten-tativa do analista de levar a sua
prpria anlise a um nvel mais profundo queaquele que lhe foi
possibilitado pelo seu analista.)
Uma das tarefas mais importantes na anlise de qualquer paciente
a de'manter a objetividade em relao a tudo aquilo que o paciente
traz, e um casoespecial desse tema a necessidade de o analista ser
capaz de odiar o pacien- 'te objetivamente.
E no que realmente existem muitas situaes em nosso trabalho
nor-mal nas quais nosso dio se justifica? Durante vrios anos senti
que um demeus pacientes, um obsessivo muito grave, era praticamente
insuportvel.Eu me sentia muito mal em relao a isto at que a anlise
deu uma guinada epassou a ser possvel gostar dele, e entoeu me dei
cont de que o fato de queera impossvel sentir amor por ele era na
verdade um sintoma inconsciente-
279
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280 D. W. WINNICOTT
mente determinado. Foi realmente um dia maravilhoso para mim,
quandopude contar a ele (muito tempo depois) que eu e seus
conhecidos o detest-vamos, mas que ele estava muito doente para que
lhe dissssemos isso. Essedia foi importante para ele tambm,
representando um tremendo avano emseu ajustamento realidade'.
Nas anlises mais comuns no dificil para o nalista administrar o
seuprprio dio. Esse dio mantm-se latente. O ponto importante aqui,
obvia-mente, que atravs de sua prpria anlise o analista tenha se
livrado de am-plos estoques de dio inconsciente pertencente ao
passado e aos seus conflitosinternos. H outras razes pelas quais o
dio permanece oculto e mesmo des-percebido enquanto tal:
A psicanlise a profisso que escolhi, o modo pelo qual posso
lidar me-lhor com a minha prpria culpa, atravs dela que posso
expressar-me damaneira mais construtiva.Sou pago, ou estou em
formao a fim de conquistar um lugar na sociedadeatravs do meu
trabalho psicanaltico.Estou fazendo descobertas.Tenho gratificaes
imediatas ao identificar-me com meu paciente que estmelhorando, e
espero gratificaes ainda maiores no futuro, quando o trata-mento
terminar.Alm do mais, enquanto analista, eu tenho meios de
expressar meu dio. Odio expresso pela existncia do final da
'sesso'.
Acredito que isto verdade mesmo quando no ocorre dificuldade
algu-ma e o paciente fica contente em ir embora. Em muitas anlises
tudo isto bvio, e portanto poucas vezes mencionado, e o trabalho da
anlise se fazpor meio de interpretaes verbais da transferncia que
emerge do incons-ciente do paciente. O analista assume o papel de
uma ou outra figura confi-vel da infncia do paciente. Ele fatura o
sucesso daqueles que fizeram o tra-balho braal, quando o paciente
era um beb.
Tudo isto faz parte da descrio do trabalho psicanaltico
rotineiro, quena maioria dos casos lida com pacientes cuj os
sintomas so de natureza neu-rtica. Na anlise de psicticos, porm, o
analista est sujeito a uma tensocuja qualidade e dimenso so
inteiramente diferentes, e precisamente essa
. diferena que estou procurando descrever.
Relembrando: Este trabalho de 1947. Foi s em 1952 que a idia do
falso-eu, que pe em ques-to a idia mesma de um "ajustamento
realidade", tornou-se clara para Winnicott ("Psicose eCuidados
Maternos", apresentado em maro de 1952) (embora em "A Reparao
Relativa De-fesa Organizada da Me contra a Depresso", de 1948, j
seja possvel vislumbrar seus primr-dias) N.T.
DA PEDIATRIA PSICANLISE 281
Recentemente ocorreu que, durante alguns dias, tive a sensao de
estartrabalhando mal. Cometi erros a respeito de cada um de meus
pacientes. Adificuldade era minha, e era em parte pessoal, mas
estava associada em suamaior parte a um clmax ao qual eu havia
chegado com uma de minhas pa-cientes psicticas (de pesquisa). A
dificuldade esclareceu-se quando tive umsonho que chamamos de
'curativo'. (Diga-se de passagem que durante a mi-nha anlise e nos
anos seguintes ao seu trmino tive uma longa srie dessessonhos
'curativos', que apesar de serem muitas vezes desconfortveis,
mar-caram cada um a minha chegada a um novo patamar de
desenvolvimentoemocional. )
Nesse episdio especfico percebi o significado do sonho assim
queacordei, ou talvez mesmo antes de acordar. O sonho tinha duas
fases. Na pri-meira fase eu estava no alto da galeria de um teatro,
olhando para as pessoasna platia muito l embaixo. Senti uma forte
ansiedade, como se fosse perderum dos membros. Isto associava-se
sensao que tive no alto da Torre Ei-fel, de que se eu pusesse minha
mo para fora da amurada ela cairia ao solodistante. Esta seria uma
ansiedade de castrao comum.
Na fase seguinte do sonho percebia que as pessoas na platia
estavamassistindo a uma pea, e eu me conectava atravs delas com o
que ocorria nopalco. Surgiu um novo tipo de ansiedade. O que eu
sabia era que simples-mente no tinha o lado direito do corpo. Este
no era um sonho de castrao.Tratava-se da sensao de no ter aquela
parte do corpo.
Quando acordei, percebi que eu havia compreendido num nvel
muitoprofundo qual era a minha dificuldade naquele momento
especfico. A pri-meira parte do sonho representava as ansiedades
comuns que podem surgir arespeito de fantasias inconscientes dos
meus pacientes neurticos. Eu corriao risco de perder minha mo ou
meus dedos, se esses pacientes viessem a seinteressar por eles. Com
esse tipo de ansiedade euj estava acostumado, eera comparativamente
tolervel.
A segunda parte do sonho, porm, referia-se ao meu
relacionamentocom a paciente psictica. Essa paciente exigia que eu
no me relacionasse demodo algum com seu corpo, nem mesmo na
imaginao. Ela no tinha umcorpo reconhecido como seu, e se de algum
modo ela existia, era-lhe poss-vel sentir a si mesma apenas como
uma mente. Qualquer referncia ao seucorpo provocava ansiedades
paranides, porque afirmar que ela tinha umcorpo equivalia a
persegui-Ia. O que ela precisava de mim era que eu tivesseapenas
uma mente falando com a sua mente. No auge da minha dificuldadena
noite anterior ao sonho, eu fiquei irritado e disse a ela que o que
ela preci-sava de mim no passava de ninharias. A conseqncia foi
desastrosa, e v-
-
282
rias semanas se passaram at que a anlise recuperou-se do meu
erro. O pon~to crucial, entretanto, era o de que eu tinha que
compreender a minha prpriaansiedade, e esta estava representada em
meu sonho pela ausncia do ladodireito do meu corpo no momento em
que tentei entrar em contato com apea que as pessoas da platia
assistiam. Esse lado direito do meu corpo era olado que tinha uma
ligao com essa paciente especfica, sendo conseqen~.temente afetado
por sua necessidade de negar totalmente at mesmo uma re~lao
imaginria entre os nossos corpos. A negao estava provocando emmim
essa ansiedade de tipo psictico, muito menos tolervel que a
ansieda,de de castrao comum. Fossem quais fossem as outras
interpretaes cab-.veis a esse sonho, a conseqncia de eu t-lo
sonhado e t-lo recordado foi ade me ser possvel retomar essa anlise
e fazer com que se recuperasse do'dano causado pela minha irritao,
cuja origem era uma ansiedade reativa deum tipo compatvel com esse
contato com uma paciente que no tinha corpo ..
O analista deve estar preparado para suportar a tenso sem
esperar que .'!__paciente saiba coisa alguma sobre o que ele est
fazendo, talvez por um lon-go perodo de tempo-Para consegui-lo ele
deve ter facilidade em dar-se con-"ta de seu medo e de seu dio. Ele
se encontra na mesma posio da me -deum beb recm-nascido ou ainda no
nascido. Mais cedo ou mais tarde po-der contar ao paciente por que
coisas ele passou a fim de ajud-lo (ao pacien-te), mas nem sempre
as anlises conseguem chegar a esse ponto. Em certos.. ~casos o
paciente teve to poucas experincias positivas em seu passado
que
, no h muito sobre o que trabalhar. O que acontece quando no
houve expe-rincias satisfatrias no incio da vida que o analista
possa utilizar na transfe-rncia?
H uma enorme diferena entre os pacientes que tiveram experincias
po-sitivas no incio, pois estas podem ser descobertas na
transferncia, e aquelescujas experincias iniciais foram to
deficientes ou distorcidas que o analistater de ser a primeira
pessoa na vida do paciente a fornecer certos elementosessenciais do
ambiente. No tratamento de pacientes deste ltimo tipo, muitascoisas
normais da tcnica analtica tomam-se de importncia vital, coisas
quepassam por bvias no tratamento de pacientes do tipo
anterior.
Perguntei a um colega se ele fazia anlise no escuro, e ele
disse: 'Ora,no! Nosso trabalho consiste certamente em proporcionar
um ambiente co-mum, I e a escurido seria um elemento singular.' Ele
ficou surpreso com aminha pergunta. Sua orientao dirigia-se anlise
da neurose. No entanto,
No fossem as inevitveis ressonncias do termo, eu teria traduzido
aqui a palavra 'ordinary' por'normal'. N.T.
DA PEDIATRIA PSICANLISE 283
essa proviso e manuteno de um ambiente rotineiro pode ser em si
mesmade importncia vital na anlise de psicticos, e de fato pode
revelar-se, porvezes, mais importante at que as interpretaes
verbais que tambm devemser feitas. Para o neurtico, o div, o calor
e o conforto podem simbolizar oamor da me. Para o psictico seria
mais correto dizer que essas coisas so aexpresso fsica do amor do
analista. O div o colo ou o tero do analista,eo calor o calor vivo
do corpo do analista. E assim por diante.
Espero que esteja havendo uma progresso no modo como formulo
aquesto. O dio do analista fica em geral latente, e pode continuar
assim commuita facilidade. Na anlise de psicticos o analista
encontra-se sob umapresso muito maior para manter o seu dio
latente, e s poder faz-lo se es-tiver plenamente consciente do
mesmo. Gostaria de acrescentar que em cer-tos estgios de certas
anlises o dio do analista na verdade buscado pelopaciente, e nesses
momentos necessrio expressar um dio que seja objeti-vo. Quando o
paciente est procura de um dio legtimo, objetivo, ele deveter a
possibilidade de encontr-lo, caso contrrio no se sentir capaz de
al-
. canar o amor objetivo.Aqui seria talvez relevante mencionar os
casos de crianas que vm de
lares desfeitos ou que no tm pais. Uma criana nessas condies
vive in-conscientemente em busca de seus pais. A idia de levar Uma
criana dessaspara casa e am-Ia notoriamente inadequada. Ocorre que
aps algum tem-po a criana assim adotada readquire a esperana, e
passa a testar o ambientepor ela encontrado a fim de reunir provas
de que os que dela cuidam so ca-pazes de odiar objetivamente. Ao
que parece, a criana poder acreditar que amada somente depois que
conseguir sentir-se odiada.
Durante a Segunda Guerra Mundial um menino de nove anos foi
inter-nado numa instituio para crianas, tendo sido mandado para
fora de Lon-dres no em razo das bombas mas por vadiagem. Eu
esperava poder trat-I ominimamente durante a sua estada na
instituio, mas seus sintomas vence-ram e ele fugiu, como sempre fez
em todos os lugares desde que fugira decasa aos seis anos. No
entanto, eu havia estabelecido um contato com elenuma dada
entrevista, em que pude perceber e interpretar atravs de um
de-senho seu que, ao fugir, ele estava inconscientemente tentando
salvar o inte-rior de seu lar e protegendo a sua me de ser
agredida, ao mesmo tempo emque procurava fugir de seu mundo interno
cheio de perseguidores.
No fiquei muito surpreso quando ele apareceu na delegacia de
polciamais prxima minha casa. Essa era uma das poucas delegacias em
que eleainda no era um velho conhecido. Minha esposa trouxe-o para
casa genero-samente e o manteve conosco por trs meses, trs meses de
inferno. Ele era a
-
284 D. W. WINNICOn DA PEDIATRIA PSICANLISE 285
mais encantadora e a mais enlouquecedora das crianas, e muitas
vezes pa-recia completamente louco. Felizmente sabamos o que
esperar. Lidamoscom a primeira fase, dando-lhe total liberdade e um
shilling sempre que elesaa'. Ele precisava apenas telefonar para
que ns fssemos apanh-l o na de-legacia para onde tinha sido levado.
..,
Logo ocorreu a esperada mudana, e o sintoma da vadiagem
transfor-mou-se numa dramatizao do assalto ao mundo interno. Isto
acarretavauma trabalheira em tempo integral, e quando eu estava
fora aconteciam ospiores episdios.
Era preciso interpret-lo a qualquer minuto do dia ou da noite, e
muitasvezes a nica maneira de resolver a crise era encontrar a
interpretao corre-ta, como se o menino estivesse em anlise. A
interpretao correta era o queele valorizava acima de tudo.
O ponto importante em relao a este trabalho o modo como o
desen-volvimento da personalidade do menino provocava dio em mim, e
o que eufiz a esse respeito.
Bati nele? A resposta no, nunca. Mas eu teria tido que bater
nele se--no soubesse tudo a respeito do meu dio, e se no o fizesse
saber tambm.Nas crises eu o pegava com toda a minha fora fisica,
sem raiva ou acusa-es, e o colocava para fora pela porta da frente,
fosse qual fosse o tempo queestivesse fazendo de dia ou noite.
Havia uma campainha especial que elepodia tocar, e ele sabia que se
a tocasse ns o traramos para dentro e nenhu-'ma palavra seria dita
sobre o que se passou. Ele tocava a campainha, assimque o ataque
manaco amainava.
O importante que sempre que eu o punha para fora eu lhe dizia
algo. Eulhe dizia que o que ele havia feito levou-me a sentir dio
por ele. Isto era fcilporque era a pura verdade.
A meu ver, essas palavras eram importantes do ponto de vista do
seuprogresso, mas elas eram importantes principalmente porque me
permitiamtolerar a situao sem me descontrolar, sem perder a cabea e
sem assassi-n-lo de vez em quando.
A histria completa desse menino no pode ser contada aqui. Ele
foi in-ternado num reformatrio. Seu relacionamento profundamente
enraizadoconosco ficou sendo uma das poucas coisas estveis em sua
vida. Esse epis-dio da vida cotidiana pode servir para ilustrar o
tema geral do dio legtimo nopresente. preciso distinguir esse
fenmeno do dio que s se justifica numoutro contexto, mas que
deflagrado por algum ato de um paciente.
Dada a grande complexidade do problema do dio e suas razes,
gosta-ria de resgatar um determinado aspecto, pois acredito que ele
seja especial-
.mente importante para os analistas de pacientes psicticos.
Sugiro que a meodeia o beb antes que este a odeie, e antes que ele
possa saber que sua me oodeia.
Antes de prosseguir, gostaria de mencionar uma idia de Freud. Em
OsInstintos e suas Vicissitudes (1915), onde apresenta tantas
coisas originais eesclarecedoras sobre o dio, ele diz: "Somos
capazes de dizer sem pensarmuito que o instinto 'ama' o objeto pelo
qual anseia para fins de satisfao,mas se dissermos que o instinto
'odeia' um objeto isto nos soar muito estra-nho, e assim percebemos
que as atitudes de amor e dio no podem caracte-rizar o
relacionamento do instinto com o objeto, mas devem ficar restritas
ao
_ relacionamento do ego como um todo com os seus objetos ... "
Acredito queesta uma afirmao verdadeira e importante. Significaria
isto que a perso-
_ nalidade deveria estar integrada antes que possamos dizer que
o beb odeia?T1Io cedo quanto possa ocorrer a integrao - e talvez
ela acontea antes
- num auge de excitao ou raiva - h um estgio teoricamente
anterior noqual o que quer que o beb faa que seja capaz de machucar
no feito a par-tir do dio. Utilizei a expresso amor impiedoso para
descrever esse estgio.Seria isto aceitvel? medida que o beb
torna-se capaz de se sentir umapessoa inteira, o termo 'dio' passa
a ter sentido para descrever um certoconjunto de seus
sentimentos.
A me, no entanto, odeia o seu beb desde o incio. Acredito que
Freudachava possvel que a me, em determinadas circunstncias,
sentisse apenasamor por seu beb do sexo masculino. Mas disto
podemos duvidar. Conhe-cemos o amor da me e o admiramos por ser to
forte e to real. Permi-tam-me apresentar certos motivos pelos quais
a me odeia o seu beb,mesmo que seja um menino:
a beb no uma concepo (mental) sua.a beb no aquele das
brincadeiras da infncia, um filho do papai, ou do ir-mo etc.a beb
no produzido magicamente.a beb um perigo para o seu corpo durante a
gestao e o parto.a beb interfere com a sua vida privada, um
obstculo para a sua ocupaoanterior.Mais ou menos intensamente, a me
sente que o beb algo que a sua prpriame deseja, e ela o produz para
aplac-Ia.a beb machuca os seus mamilos mesmo quando suga, o que
inicialmenteimplica em mastigao.Ele impiedoso, trata-a como lixo,
uma serva sem pagamento, uma escra va.Ela tem que arn-lo, com suas
excrees e tudo omais, pelo menos no incio,at que ele venha a ter
dvidas sobre si prprio.
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286 D. W. WINNICOn
Ele tenta machuc-Ia, volta e meia a morde, e tudo por amor.Ele
se decepciona com ela.
Seu amor excitado um 'amor de tigela', significando 'amor
interesseiro'),de modo que ao conseguir o que queria ele ajoga fora
como uma casca de la-ranja.No incio o beb dita a lei, preciso
proteg-Io de coincidncias, a vida devefluir no ritmo dele, e tudo
isso exige da me um contnuo e detalhado estudo.Por exemplo, ela no
deve ficar ansiosa quando o segura etc.No incio ele no faz idia
alguma do quanto ela faz por ele, do quanto ela sa-crifica por ele.
impossvel para ele suportar principalmente o seu dio.Ele
desconfiado, recusa a comida to boa que ela preparou e Jaz com
que.ela duvide de si mesma, mas com a tia ele come tudo.Depois de
uma manh horrvel, ela sai com ele e ele sorri para um estranho,que
diz: 'No uma gracinha?' "-Se ela falha com ele no incio, sabe que
ele se vingar para sempre.Ele a excita mas a frustra - ela no pode
devor-lo nem fazer sexo com ele.
Creio que na anlise de psicticos e nas ltimas fases da anlise de
pa-cientes normais o analista ir encontrar-se numa posio comparvel
dame de um beb recm-nascido. Numa regresso profunda o paciente
notem como identificar-se com o analista ou apreciar o seu ponto de
vista, damesma forma que um feto ou um beb recm-nascido incapaz de
sentir-simpatia pela me.. A me deve ser capaz de tolerar o
sentimento de dio contra o beb semfazer nada a esse respeito. Ela
no pode express-Io para ele. No caso de te-mer a sua prpria reao,
ela no conseguir odiar adequadamente quandomachucada, e poder cair
no masoquismo, e a meu ver isto que leva falsateoria de um
masoquismo natural s mulheres. O ponto mais interessante arespeito
da me a sua capacidade de ser to agredida e sentir tanto dio porseu
beb sem vingar-se dele, e sua aptido para esperar por recompensas
quepodem vir ou no muito mais tarde. Quem sabe recebe alguma ajuda
das can-es de ninar que ela canta e que felizmente o beb no pode
compreender?
'Rockabye baby, on the tree top,When lhe wind blows the cradle
will rock,When the bough breaks lhe cradle will fali,Down will come
baby, cradle and ali. '
Nana nenm no galho l em cima,Se o vento sopra o bero se
inclina,Se o galho se parte o bero despenca,
O beb cai no cho e o bero arrebenta.
DA PEDIATRIA PSICANLISE 287
Penso na me (ou no pai) brincando com o beb. O beb adora a
brinca-deira, e no sabe que o pai ou a me esto expressando dio com
suas pala-vras, por vezes em termos de smbolos ligados ao
nascimento. No se tratade uma cano sentimental. O sentimentalismo
no tem utilidade para ospais, pois consiste numa negao do dio, e do
ponto de vista do beb o senti-mentalismo na me muito
prejudicial.
No creio que uma criana humana ao desenvolver-se seja capaz de
to-lerar toda a extenso de seu dio num ambiente sentimental. Ela
precisa dedio para poder odiar. Se isto verdade, no podemos esperar
que um pa-ciente psictico em anlise consiga tolerar o seu dio pelo
analista a no serque o analista possa odi-lo.
Se tudo isto for aceito, fica para ser discutida a questo de
como interpre-tar o dio do analista pelo paciente. Trata-se
obviamente de um problema queimplica em perigo, exigindo o mais
cuidadoso timing possvel. Creio, porm,que uma anlise permanecer
incompleta, enquanto mesmo em sua ltimafase no seja possvel ao
analista contar ao paciente o que ele, analista, fez semque o
paciente soubesse, por estar to doente nas fases iniciais. Enquanto
estainterpretao no for feita, o paciente permanecer de algum modo
na condi-o de uma criana - incapaz de entender o que ela deve sua
me.
O analista deve dispor de toda a pacincia, tolerncia e
confiabilidadeda me devotada ao beb. Deve reconhecer que os desejos
do paciente sonecessidades. Deve deixar de lado quaisquer outros
interesses a fim de estardisponvel e ser pontual e objetivo. E deve
parecer querer dar o que na verda-de precisa ser dado apenas em
razo das necessidades do paciente.
_Pode ocorrer um longo perodo inicial no qual o ponto de vista
do analis-ta no poder ser apreciado (mesmo inconscientemente) pelo
paciente. No possvel esperar por reconhecimento porque, na
primitiva raiz do pacienteque est sendo pesquisada, no existe a
capacidade para a identificao como analista. E obviamente est fora
do alcance do paciente perceber que o diodo analista muitas vezes
deflagrado precisamente por aquilo que o pacien-te faz a partir de
seu modo bruto de amar.
Na anlise (de pesquisa) ou no manejo rotineiro de pacientes de
tipo psi-ctico, uma forte tenso imposta ao analista (psiquiatra,
enfermeira psiqui-trica), tomando importante o estudo dos modos
pelos quais as ansiedades denatureza psictica e tambm o dio so
provocados nos que trabalham compacientes psiquitricos gravemente
doentes. Somente desta maneira podere-mos evitar as terapias que se
adaptam mais s necessidades do terapeuta doque s necessidades do
paciente.