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Teocomunicação Porto Alegre v. 40 n. 2 p. 192-212 maio/ago. 2010 AS DINÂMICAS SIMBÓLICAS E A (RE)CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DOCENTE THE SYMBOLIC DYNAMICS AND THE RECONSTRUCTION OF THE TEACHING IDENTITY Manfredo Carlos Wachs* Resumo Adotamos nesta pesquisa o princípio da teoria narrativa, formulado por Paul Ricoeur, que visa a auxiliar as pessoas a narrarem a sua própria história. A significação e ressignificação da identidade docente, na dimensão da teoria narrativa, integram a relação dialética entre a mesmidade, ipseidade e alteridade. A nossa intenção é conhecer os processos de formação da identidade docente que não se restrinjam às questões cognitivas, que são fundamentais, mas também avaliar processos que considerem outras dimensões do processo de autoconhecimento. As diferentes dinâmicas utilizadas nas atividades de formação continuada visavam à reflexão sobre a identidade e a práxis docente. Por isso, elas tinham a intenção de proporcionar às pessoas docentes a reflexão sobre si-mesmo para compreender-se melhor. Neste artigo, apresentamos algumas das dinâmicas interativas e simbólicas utilizadas na pesquisa e que permitiram verificar processos de ressignificação da identidade docente. PALAVRAS-CHAVE: Identidade docente. Ressignificação. Teoria narrativa. Práxis docente. Dinâmicas simbólicas. Teoria de símbolos. Abstract In this research we adopted the theoretical principle of the narrative theory, formulated by Paul Ricoeur, which helps people narrate their own history. The signification and resignification of a teaching identity, within the dimension of * Professor e diretor do Instituto Superior de Educação Ivoti – ISEI. Professor pesquisador da Faculdades EST. Membro do Conselho de Educação da Rede Sinodal de Educação. E-mail: <[email protected]>.
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WACHS 2010 Dinamicas Simbolicas e Reconstruçãodeidadentidade Docente Psicologia

Nov 09, 2015

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Dinamicas Simbolicas e Reconstruçãodeidadentidade Docente Psicologia
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  • Teocomunicao Porto Alegre v. 40 n. 2 p. 192-212 maio/ago. 2010

    AS DINMICAS SIMBLICAS E A (RE)CONSTRUO DA IDENTIDADE

    DOCENTETHE SYMBOLIC DYNAMICS AND THE

    RECONSTRUCTION OF THE TEACHING IDENTITY

    Manfredo Carlos Wachs*

    Resumo

    Adotamos nesta pesquisa o princpio da teoria narrativa, formulado por Paul Ricoeur, que visa a auxiliar as pessoas a narrarem a sua prpria histria. A significao e ressignificao da identidade docente, na dimenso da teoria narrativa, integram a relao dialtica entre a mesmidade, ipseidade e alteridade. A nossa inteno conhecer os processos de formao da identidade docente que no se restrinjam s questes cognitivas, que so fundamentais, mas tambm avaliar processos que considerem outras dimenses do processo de autoconhecimento. As diferentes dinmicas utilizadas nas atividades de formao continuada visavam reflexo sobre a identidade e a prxis docente. Por isso, elas tinham a inteno de proporcionar s pessoas docentes a reflexo sobre si-mesmo para compreender-se melhor. Neste artigo, apresentamos algumas das dinmicas interativas e simblicas utilizadas na pesquisa e que permitiram verificar processos de ressignificao da identidade docente.

    Palavras-chave: Identidade docente. Ressignificao. Teoria narrativa. Prxis docente. Dinmicas simblicas. Teoria de smbolos.

    Abstract

    In this research we adopted the theoretical principle of the narrative theory, formulated by Paul Ricoeur, which helps people narrate their own history. The signification and resignification of a teaching identity, within the dimension of

    * Professor e diretor do Instituto Superior de Educao Ivoti ISEI. Professor pesquisador da Faculdades EST. Membro do Conselho de Educao da Rede Sinodal de Educao. E-mail: .

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    the narrative theory, integrate the dialectical relationship between sameness, ipseity and alterity. Our intention is to become acquainted with the processes of teaching identity formation that are not restricted to cognitive issues, which are fundamental, but also to evaluate processes that consider other dimensions of the self-knowledge process. The different dynamics used in the continuous formation activities were aimed at reflecting upon teaching identity and praxis. Therefore, they had the intention of providing teachers with a reflection about themselves for greater self-knowledge. In this article, we present some of the interactive and symbolic dynamics which are used in the research and that allowed to verify the processes of re-signifying teaching identity.

    Keywords: teaching identity, re-signification, narrative theory, teaching praxis, symbolic dynamics, theory of symbols.

    Introduo

    Elaborar uma reflexo sobre a identidade docente pode representar apenas uma recordao de acontecimentos e nem sempre uma reflexo sobre a prxis educativa. Se ficar restrita somente recordao, ento esse processo se limitar s lembranas do passado e a um ato de saudosismo. Entretanto, se ocorrer uma identificao de situaes marcantes, que foram determinantes na trajetria educativa inicial da pessoa e na formao como educador, acompanhada de uma reflexo sobre as mesmas, ento esse movimento poder se transformar num momento de interpretao e reinterpretao da trajetria histrica e do processo de formao da identidade docente.

    O educador portugus Antnio Nvoa, ao teorizar sobre a formao de docentes, afirma que

    [...] urge (re-)encontrar espaos de interao entre as dimenses pessoais e profissionais, permitindo aos professores apropriar-se dos seus processos de formao e dar-lhes um sentido ao quadro das suas histrias de vida. [...] A formao deve estimular uma perspectiva crtico-reflexiva, que fornea aos professores os meios de um pensamento autnomo e que facilite as dinmicas de autoformao participada. [...] A formao no se constri por acumulao, mas sim atravs de um trabalho de reflexividade crtica sobre as prticas de (re-)construo de uma identidade pessoal.1

    1 NVOA, Antnio. Formao de professores e profisso docente, p. 25.

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    fundamental que, na formao do docente, seja no perodo da formao bsica, seja no da continuada, ocorra uma anlise reflexiva crtica sobre a sua prpria formao pessoal e acadmica. Entretanto, esse processo no pode ficar restrito a uma dimenso individual e nem a uma ao isolada, mas deve ser realizado em espaos comunitrios.

    Na dimenso da percepo da identidade pessoal, o filsofo e telogo Paul Ricoeur afirma que o outro mais prximo do eu o si-mesmo do eu, o eu reflexivo, o si-mesmo como um outro ou o outro de si mesmo.2 A dimenso mais prxima da pessoa a reflexo que a prpria pessoa faz de si mesma e isto se torna mais efetivo na reflexo sobre a relao de si mesma com o outro. A pessoa docente se conhece melhor quando olha a si mesma diante do outro e quando tem conscincia da sua trajetria de formao profissional na relao direta com a formao de outros docentes. O telogo e pedagogo Roberto Daunis, apropriando-se da concepo de Ricoeur, afirma que identidade pressupe autoconhecimento, capacidade de perceber-se e de tornar-se consciente de si mesmo.3 Esse processo de identificao da identidade se d especialmente atravs do processo narrativo, porque ao narrar, a pessoa elabora um duplo caminho, o de uma perspectiva retrospectiva e prescritiva. Ou seja, a ressignificao da identidade docente se elabora na dupla dimenso da retrospeco e da prospeco.

    Paul Ricoeur aponta para os traos marcantes da sua teoria narrativa, destacando que ela faz a mediao entre a descrio e a prescrio4 na construo da identidade pessoal. Esta se faz essencialmente atravs da narrativa da trajetria pessoal e profissional, consubstanciada por uma reflexo crtica. Nessa perspectiva, Ricoeur afirma que a tarefa do hermeneuta, na teoria da identidade narrativa, pr em equilbrio os traos imutveis que esta deve ancoragem da histria de uma vida num carter e os que tendem a dissociar a identidade do si da mesmidade do carter.5 O processo de ressignificao da identidade docente no pode limitar-se reflexo crtica e nem narrao da histria pessoal. O processo narrativo tem a inteno de ajudar a pessoa do docente a conhecer-se melhor para prescrever a dimenso de identidade pessoal e profissional mais consciente e autnoma.

    2 Apud DAUNIS, Roberto. Jovens: desenvolvimento e identidade, p. 102.3 Ibid., p. 101.4 RICOEUR, Paul. O si-mesmo com um outro, p. 139.5 Ibid., p. 148.

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    1 A proposta metodolgica

    1.1 Princpios e caminhos metodolgicosO processo metodolgico de compreenso da identidade docente

    essencialmente uma ao hermenutica, porque implica interpretar a prtica educativa, a narrao da autocompreenso e a elaborao terica do embasamento da sua prxis. Nessa perspectiva, optou-se pelo referencial terico do pensamento de Paul Ricoeur, de uma hermenutica simblica, embasada no entendimento do duplo sentido ou de mltiplo sentido, cujo papel consiste em mostrar ocultando,6 onde o processo de compreenso das narrativas necessita de interpretao e que consiste em decifrar o sentido oculto no sentido aparente, em desdobrar os nveis de significao implicados na significao literal.7

    Paul Ricoeur afirma que toda hermenutica , explcita ou implicitamente, compreenso de si mesmo mediante a compreenso do outro.8 Esta sua compreenso fica ainda mais evidente ao verificarmos a sua anlise sobre os autorretrato de Rembrandt:

    Rembrandt s se conhece ao pintar o seu retrato e ao olhar-se no seu retrato. Quer dizer, o exame dele mesmo d-se no ato de se pintar a si mesmo. Mas ao decifrar, ao ler o quadro, de certo modo, leio Rembrandt, mas tambm me leio a mim como semelhante e distinto de Rembrandt.9

    Isso vai significar que, ao narrar a sua concepo de prxis educativa e, especificamente, da ao docente, pode-se desencadear uma reflexo pessoal sobre si mesmo. E a pessoa passa a se conhecer melhor. O autoconhecimento vai sendo aprimorado quando a pessoa estimulada ao exerccio de organizar e reorganizar o seu pensamento para poder descrever a sua prtica educativa.

    Nessa perspectiva de investigar como o docente compreende a si mesmo e a sua docncia, realizamos atividades educativas que envolviam dinmicas simblicas. As dinmicas e a investigao foram realizadas com pessoas que participavam em seminrios e cursos de formao 6 RICOEUR, Paul. O conflito das interpretaes: ensaios de hermenutica, p. 14.7 Ibid., p. 15.8 Ibid., p. 18.9 Apud HELENO, Jos Manuel M. Hermenutica e ontologia em Paul Ricoeur,

    p. 221, nota 1.

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    continuada, em seminrios organizados por escolas no incio do perodo letivo e em cursos de especializao lato sensu. Os seminrios ou jornadas pedaggicas acontecem, periodicamente, em muitas escolas, no incio de cada ano e/ou no recesso escolar de julho, e promovem, nos docentes, uma disposio positiva para reflexes e desafios. A minha participao como docente, nesses seminrios, ocorreu a partir de convites da prpria escola. Os cursos de especializao so frequentados por profissionais de diferentes reas. A participao das pessoas nos cursos j revela uma predisposio para a reflexo e qualificao profissional e para uma ressignificao da sua prxis educativa. Construmos uma metodologia de pesquisa baseada na integrao entre a ao docente a atividade de pesquisador, integrando a academia com a cotidianidade docente.

    A metodologia utilizada nesses seminrios foi repetida em outras ocasies, recebendo, obviamente, alguns ajustes conforme as caractersticas e as necessidades de cada atividade de formao docente. A repetio das dinmicas, seja com o mesmo grupo de pessoas ou em outros contextos, visava verificar a eficcia da dinmica. A temtica desses seminrios girava em torno da identidade docente e as atividades duravam, em mdia, quinze horas de atividade reflexiva, sendo realizados em dois dias. Esse tempo de durao e o nmero de participantes permitiam uma interao com as pessoas do grupo docente e um dilogo nos perodos livres. A reflexo realizada pelos participantes nas atividades de formao continuada, durante os seminrios de capacitao, foi aprofundada pelas contribuies tericas, principalmente do pensamento dos telogos e filsofos Paul Tillich e Paul Ricoeur e do psiclogo Carl Gustav Jung.

    Como procedimento metodolgico de apropriao da compreenso da identidade docente, desenvolvemos dois exerccios distintos de reflexo simblica nas atividades de formao continuada de docentes. A inteno bsica desses exerccios simblicos criar um espao de interao e expresso da compreenso que o docente tem sobre a identidade docente. Os dois exerccios simblicos, realizados nas atividades em sala de aula, esto relacionados com interpretao de imagens. Alm disso, h tambm a compreenso epistemolgica de que a expresso do pensamento da pessoa no pode ficar restrita dimenso textual.

    No primeiro exerccio, os docentes faziam um desenho sobre a sua compreenso de identidade docente. No segundo, os docentes interpretavam pinturas, gravuras ou fotos com representaes simblicas.

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    Iniciamos com o exerccio do desenho, pois queramos proporcionar espaos para as pessoas expressarem o seu pensamento antes de lhes trazer alguma concepo ou teoria elaborada por algum pensador. Aps esse primeiro momento didtico, foi integrado o exerccio de interpretao de imagens e representaes simblicas.

    1.2 Dinmicas simblicas1.2.1 Dinmica do desenho

    A dinmica do desenho, como um dos exerccios de interpretao da identidade do prprio docente, transcorre da seguinte maneira: a) as pessoas so convidadas a produzirem um desenho simblico, no qual elas representam, atravs de uma imagem simblica, como elas compreendem a sua docncia; b) num segundo momento, as pessoas so convidadas a deixar o seu desenho onde esto sentadas, a percorrer o lugar e a observar o desenho das demais pessoas; c) em seguida, pede-se que escrevam, nas costas do desenho da colega, a sua interpretao do desenho; d) cada pessoa retorna ao seu lugar e analisa o que foi escrito no seu desenho; e) as pessoas compartilham, em voz alta e em plenrio, as interpretaes dos desenhos.

    Na primeira vez em que se realizou essa dinmica, apareceram com destaque as representaes das imagens do caminho, da mo, do sol ou da luz de velas, da montanha, da montanha com sol, da espiral, do crculo. Destes, o que mais aparece so os desenhos do caminho e da mo com diferentes configuraes. A partir disso, desenvolvemos exerccios de interpretao com grupos, utilizando a dinmica de representaes simblicas do caminho e da mo. Procuramos no ficar restritos interpretao oral e escrita, mas tambm realizamos atividades de expresso corporal, em que as pessoas apresentavam as suas interpretaes das imagens simblicas. Pretendia-se, assim, que as pessoas pudessem revelar o seu pensamento das mais variadas formas interpretativas.

    1.2.2 Dinmica de imagens simblicasA dinmica da interpretao de imagens simblicas transcorreu

    da seguinte maneira: a) as pessoas observam a imagem simblica, em silncio, procurando perceber cada detalhe da gravura. Elas tambm so estimuladas a fixar o seu olhar e a interpretar os detalhes e o conjunto da imagem; b) so convidadas a relatar o que consta na gravura. Neste

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    segundo passo da dinmica, as pessoas so convidadas a relatar somente o que veem e no a interpretarem a imagem. A inteno dessa orientao metodolgica dar destaque ao conjunto da imagem e permitir que as diferentes percepes sejam relatadas. Aqui, as pessoas tambm podem ser convidadas a mencionar o elemento que mais lhes chama a ateno ou que elas querem realar na obra; c) so convidadas, no terceiro momento da dinmica, a interpretar a imagem simblica, relacionando-a com a atividade docente. importante criar condies para expressem livremente o seu pensamento e necessrio considerar relevante todas as falas e interpretaes.

    A metodologia de trabalho pressupe a leitura e anlise do pen- samento de docentes e sua significao na construo da identidade docente. Adotamos o princpio de interpretaes compartilhadas, em que as pessoas socializam as suas opinies umas com as outras, procurando aprofundar a reflexo e deixar evidente a compreenso pessoal e grupal e a confrontao com a contribuio de pensadores. Na interpretao grupal, realizada atravs de manifestaes livres do pensamento, possvel perceber as interpretaes mais significativas para o grupo e evitar a interpretao isolada e individualizada.

    1.2.3 Espelho retrovisorNesta dinmica, foram apresentadas diversas fotos e/ou figuras

    com imagens em espelho retrovisor. Aqui, as pessoas so convidadas a refletir sobre o significado do espelho retrovisor e o que ele poderia significar simbolicamente. Aps a anlise da figura simblica em si, cada pessoa desafiada a realizar um exerccio de simbolizao a partir do espelho retrovisor como smbolo da trajetria docente, relacionando com a sua trajetria de formao docente e com sua identidade docente.

    Nas respostas, h pessoas que descreveram experincias positivas que, ao relatar a sua histria de vida, fortalecem o sentido que elas do para a sua prxis. H manifestaes em que as pessoas, ao relatarem a sua histria, revelam o seu processo de ressignificao. H tambm relatos que apontam para a importncia da ressignificao. H as que revelam a importncia da narrativa da trajetria profissional, pois, ao faz-lo, tomam conscincia da sua construo identitria.

    Atravs da redao da trajetria pessoal e no somente na narrativa oral, podemos perceber a importncia da narrao para a construo da identidade docente. Os depoimentos que apresentamos

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    abaixo10 constituem uma amostra do processo de tomada de conscincia da construo e ressignificao da identidade docente.

    Depoimento n 1No caminhar da educao, fui formada por profissionais de

    reaes diferentes e de cada um deles trouxe comigo um pouquinho. O jeito srio de muitos, a arrogncia de outros, a falta de humildade de alguns. Fui educada nos primeiros anos com professoras as quais tenho admirao e carinho, pois tiveram grande significncia em minha vida seguinte.

    No caminhar do trem fui parar em uma cidadezinha, quase vilarejo no interior, no serto da Bahia; foi muito diferente e estranho para mim. Meu professor era homem, e era uma pessoa que se achava melhor que todos; os alunos eram sempre medocres para ele (para no citar burros). Durante esse perodo senti muita dificuldade, mas, venci. Durante o ensino fundamental e mdio tive um professor narcsico; ele sentia-se o melhor, apenas as colocaes dele eram corretas e ns no tnhamos sequer o direito de questionar. Apenas absorver seus contedos.

    Hoje, em minha caminhada educacional, carrego um pouquinho de cada um deles em minha mala, pois foram e so pessoas assim que fazem o meu caminhar positivo e diferente.

    Esta educadora trouxe a imagem do trem e os seus diversos pontos de parada e incluiu a mala de viagem como uma figura simblica e a relacionou com a bagagem da vida e como elemento simblico do que levamos junto e do que descarregamos no transcorrer da vida. A sua reflexo promoveu a reflexo sobre o que podemos e devemos nos desfazer e agregar na prtica docente. Cada nova experincia, cada nova reflexo, algo mais que acrescemos nossa trajetria de vida. Cada nova vivncia interpessoal nova influncia que recebemos e acrescentamos nossa vida. Verificamos, nesta dinmica, que as pessoas conseguem mais falar de forma indireta do que direta de certas experincias marcantes da vida. Elas se sentem protegidas psicolgica

    10 O uso dos relatos foi autorizado pelos declarantes nas atividades em sala de aula. Mantemos o anonimato dos mesmos para, por um lado, preserv-los e, por outro lado, transformar os relatos pessoais em textos reflexivos e simblicos de uma atividade letiva. Estes no foram os nicos relatos. Escolhemos estes, pois foram os que provocaram maior impacto nos grupos e promoveram reflexes intergrupais. A nossa escolha j um ato interpretativo, porque selecionamos o que tem relao com a nossa reflexo.

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    e emocionalmente ao se exporem simbolicamente. Isso tambm ocorre quando relatam algo de si de forma indireta.

    Depoimento n 2

    Outra pessoa, na dinmica de olhar-se no espelho e contemplar retrospectivamente a sua trajetria pessoal, elaborou o seguinte texto11:

    O meu tempo de escola iniciou no segundo semestre de 1962, quando minha me e meu pai decidiram que eu deveria ser uma espcie de aluno visitante na escola que ficava perto da casa deles. O motivo: eu no sabia falar portugus. [...] Naquele tempo fui com medo para a escola. Medo de ser repreendido por no saber falar, medo de no saber o que me perguntariam. [...] Mas, olho para a escola de 1 a 4 srie como um tempo bem aproveitado, muito estudo, muita dedicao, muita recomendao para ser bem educado e no desobedecer professora, no fazer baguna. Sempre me senti reprimido diante da professora. [...] O que eu escrevi at aqui, na verdade nunca coloquei no papel, nem refleti sobre isso, mas percebo que isso me marcou profundamente: eu vou para a escola para aprender, para cumprir com as exigncias da escola, sinto-me aflito, medo de no corresponder s expectativas, de no tirar nota suficiente, de no passar de ano. [...] Aprendi nesse processo a gostar das aulas em que o professor d a aula, faz a preleo, eu escuto e anoto. Responder a perguntas, participar de dinmicas deixava-me aflito. Sempre preferi ser ouvinte e de preferncia sentar nas ltimas classes para me sentir mais seguro, poder observar o todo. [...]

    Alguns dias aps receber o relato acima, eu me encontrei com esta pessoa e tivemos oportunidade de conversar, em particular, sobre o teor do texto. Eu lhe agradeci pela sinceridade e pela transparncia do seu relato, pois havia diversos dados de bastante significao pessoal. Na ocasio, a pessoa compartilhou que tinha sido a primeira vez que conseguira falar da sua trajetria de vida e que esse fato estava lhe fazendo bem.

    Afirmou que o conjunto de figuras simblicas utilizadas na atividade da sala de aula o ajudou a redigir o texto. Para esta pessoa, foi 11 Nesta transcrio, exclumos partes do texto que relatam elementos da vida pessoal e

    mantivemos elementos relacionados a sua formao e que foram determinantes para a constituio da identidade profissional. Em dilogo pessoal, na poca do curso, o declarante autorizou o uso do texto para esta pesquisa, contanto que se preservasse o seu nome. Este relato foi escrito em janeiro de 2002, num curso de especializao em Aconselhamento Pastoral e Psicolgico.

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    marcante a reflexo sobre a foto de um caminho com uma porteira. Esta figura foi especialmente significativa, pois a fez lembrar-se de imagens e situaes da vida do campo que conhecia muito bem. Tambm, tinha sido significativa a reflexo sobre a importncia de atravessar barreiras, de ultrapassar a porteira para poder prosseguir no caminho da vida profissional e o quanto essa ao fundamental para a constituio de uma identidade profissional. Durante nosso dilogo, recordou o quanto foi importante o comentrio do grupo de colegas de que a porteira da foto abre para os dois lados, podendo a pessoa, dessa maneira, entrar ou sair, prosseguir ou retornar.

    Nesse relato, podemos retomar a reflexo apresentada por Paul Ricoeur sobre a dimenso de que narrar a sua trajetria de vida representa uma autointerpretao dos fatos ocorridos. Da mesma forma, no fato de retomar e reescrever o texto, ocorre uma reinterpretao, uma reflexo sobre a sua prpria trajetria de vida. Ns podemos dizer que, no momento em que o redator do texto olha o seu autorretrato, seja uma gravura ou uma autodescrio, ocorre uma interpretao e, com isso, inicia-se uma atividade hermenutica. Por isso, to importante quanto ter escrito o texto, foi o fato de poder t-lo analisado oralmente alguns dias depois.

    Depoimento n 3

    Um participante escreveu o seguinte texto:12

    Olhando para o espelho, para o passado, desde o meu primeiro dia de aula no Jardim de Infncia, acredito ter recebido um bom ensino escolar. Penso ter tido a sorte de ter em meu currculo escolar, bons professores e boas professoras. Pessoas que tinham amor pelo seu trabalho, pela sua misso de ensinar. Desde pequena, acredito que pela motivao recebida de minha me e de meu pai, sempre tive vontade de aprender, de saber mais. O ir para escola sempre foi um prazer. No importava a forma que eram ministradas as aulas, o que importava era saber mais, conhecer o desconhecido. Se analiso a maneira como eram ministradas as aulas, acredito que eram da forma mais tradicional, sem muitos recursos didticos criativos, com raras excees. Mesmo assim, lembro que a turma participava com interesses e os que tinham mais dificuldades eram, na maioria das vezes, vistos com carinho e ateno. As escolas onde estudei eram

    12 Este texto foi escrito no curso de especializao e a autorizao de uso foi dada oralmente.

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    do Municpio ou do Estado, mesmo assim escolas que recebiam algum destaque pelo seu ensino e organizao. Vejo, hoje, que por ter recebido a minha educao fundamental de forma tradicional, mas cativante, tenho muitas vezes dificuldades de ser diferente. Hoje parece que essa maneira de ensinar no cabe mais, os jovens parecem querer saber mais de forma diferente. Os interesses so outros [...] Isto fica bastante evidente quando preciso realizar/ministrar as aulas de ensino confirmatrio. Muito ainda preciso aprender e, sobretudo, ter a coragem de arriscar novas formas de ensinar.

    A dinmica de mirar-se no espelho, olhando para a sua trajetria de vida, ajudou essa pessoa a compreender melhor a sua atual prtica educativa. Olhando para trs e recordando a metodologia de ensino vivenciada, ela reconheceu a influncia da sua vivncia como estudante de educao bsica na sua atual forma de ensinar. Ao mesmo tempo em que ela percebeu que esse perodo de aprendizagem poderia ser considerado como uma educao tradicional, ela tambm reconheceu o seu valor e manteve os elementos que considerava importantes. O seu mirar-se no espelho no foi uma mera recordao, mas uma ao reflexiva sobre a sua prpria formao bsica e sobre a sua prxis atual. Outro elemento importante da sua autorreflexo foi a distino realizada entre o ato de ensinar e a relao interpessoal com o professor. Nessa ao comparativa, fica destacada a influncia da postura de um determinado professor. Ela reproduz essas marcas consciente e inconscientemente na sua atividade educativa.

    1.3 O movimento simblicoTranscrevendo a dinmica, relatando as vozes significativas,

    compartilhando as representaes simblicas dos desenhos e registrando os processos de significaes, est-se realizando uma ao hermenutica, porque se est dando uma significao ao ato reflexivo e transformando-o em referencial reflexivo. Ricoeur afirma que a reflexo a apropriao de nosso esforo para existir e de nosso desejo de ser, atravs das obras que atestam esse esforo e esse desejo.13 Portanto, tanto a narrativa quanto a prpria reflexo so uma afirmao da existncia humana, so uma manifestao do desejo de querer ser ouvida, so uma construo do direito de falar e de ouvir. Segundo Paul Ricoeur, a narrativa de um fato carregado de valor simblico no uma simples descrio do

    13 RICOEUR, Paul. O conflito das interpretaes, p. 277.

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    mesmo, mas uma interpretao, uma restaurao de sentido.14 E toda nova narrativa por si s j se torna uma reinterpretao.

    As situaes marcantes e os smbolos fundantes de uma identidade pessoal e profissional passam a ser percebidas no momento em que se proporciona um processo de mirar-se no espelho, se oportuniza a reconstruo da memria significante, se desenvolve uma retrospeco narrativa da trajetria pessoal e uma perspectiva futura de aes significativas. Nem sempre o processo de ressignificao ocorre no tempo e no espao em que se deseja e nem quando se provoca uma dinmica de ressignificao e ressimbolizao. Por isso, as dinmicas de operacionalizao simblica devem permitir a tomada de conscincia das transformaes pessoais. Ao mesmo tempo, na maioria das vezes, as transformaes s so percebidas quando j efetuaram mudanas ou quando esto em pleno processo de ressimbolizao e no no momento em que se inicia o processo. Entretanto, devemos reconhecer que a autonomia de significao da pessoa relativa, pois ela provocada e desafiada e as lembranas significativas so despertadas e conectadas com o consciente pessoal.

    Carl Gustav Jung afirma que os contedos psquicos transpessoais no so inertes ou mortos.15 Eles permanecem no inconsciente pessoal e operam transformaes nas pessoas, na mesma proporo em que as vivncias marcantes se tornam smbolos fundantes, pois se incorporam construo da personalidade e da identidade da pessoa. Os smbolos fundantes, conforme Jung, no podem ser manipulados vontade.16 Os processos de significaes e de mudanas no so manipulveis pela pessoa proponente de uma dinmica e nem pelo consciente pessoal. Ou seja, eles no esto sujeitos e nem atrelados vontade da pessoa e nem esto presos vontade do consciente pessoal como se fosse um fichrio no qual se acessa quando bem se deseja. essa independncia e esse movimento de ao dinmica dos smbolos fundantes que se encontram no inconsciente que cria a possibilidade de autonomia da pessoa e permite que ela se torne sujeito de si mesma.

    A sensao da revelao de situaes difceis provoca um constrangimento e uma profunda dificuldade para acessar os objetos simblicos que se encontram no fundo do inconsciente. E quanto maiores 14 RICOEUR, Paul. Da interpretao, p. 19.15 JUNG,Carl Gustav. O eu e o inconsciente, 230.16 Ibid., 225.

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    forem as evidncias de situaes dolorosas, tanto mais se manifestam as atitudes de resistncia e de recolhimento devido ao sentimento temeroso e cauteloso. Segundo o pensamento de Paul Tillich, nesse ponto se manifesta mais a ansiedade diante do desconhecido17 do que o medo de encontrar algo desagradvel, pois o medo se refere a algo concreto e a ansiedade ao desconhecido, ao imprevisvel, ao no controlvel, negao do objeto. O fato de se ter conscincia do medo e o ato de enfrent-lo j devem ser considerados como uma faanha extraordinria, mas no so as nicas condies para que se possa chegar verdadeira experincia de si-mesmo.18 Jung afirma que, psicologicamente, no se possui o que no se experimenta na realidade,19 do mesmo modo que as situaes existenciais s podem ser elucidadas base da experincia20 e da vivncia de ressimbolizao.

    Nem os sculos da nfase na racionalizao e do iluminismo, nem a percepo meramente intelectual so capazes de produzir a ressignificao ou o processo de equilibrao, pois os smbolos tradicionais no exprimem o que o inconsciente quer ouvir.21 A anlise crtica das situaes marcantes e simblicas pode encontrar inmeros defeitos e variantes na construo da identidade docente. Contudo, a mera intelectualizao no proporciona ressignificao. Os mitos so narrativas maravilhosas, pois permitem a expresso de realidades simblicas que revelam e ocultam situaes existenciais. O telogo Paul Tillich afirma que o mito a associao de smbolos que exprimem o que nos toca incondicionalmente.22 Portanto, a ressignificao de situaes existenciais s ocorre num processo de elucidao interpretativa e vivencial de smbolos fundantes da identidade docente, daquilo que nos toca incondicionalmente, daquilo que se encontra na profundeza da existncia humana. Hubertus Halbfas afirma que o smbolo a janela que d acesso profundeza da alma, que traz superfcie o que se encontra nas profundezas.23

    Jung afirma que h pessoas que se abalam excessivamente com as descobertas dolorosas, esquecendo que no so as nicas a possurem

    17 TILLICH, Paul. A coragem de ser, p. 29.18 JUNG, Carl Gustav. AION Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo, 62.19 Ibid., 61.20 Ibid., 63.21 Ibid., 67.22 TILLICH, Paul. A dinmica da f, p. 37.23 HALBFAS, Hubertus. Das dritte Augen, p. 3.

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    um lado sombrio.24 Diante disso, importante ajudar essas pessoas a realizar uma descentrao pessoal, para que se vejam inseridas num contexto em que vivem pessoas com problemas semelhantes ou distintos do seu. Nesse sentido, a realizao de dinmicas e de jogos simblicos pode produzir uma reconstituio de equilbrio psicoemocional, alm de uma relao mais saudvel com as outras pessoas e, ao mesmo tempo, proporcionar um sentimento de alvio da carga e da sobrecarga emocional e da culpabilidade ao descobrir pessoas vivendo situaes semelhantes.

    A tarefa do hermeneuta que procura compreender a identidade docente interpretar as manifestaes do prprio docente e analisar criticamente as suas narraes, verificando se ocorre um processo de construo da individuao ou uma projeo da persona. fundamental que possa ocorrer esse discernimento interpretativo. Contudo, essa descoberta no se d numa primeira manifestao e nem numa primeira narrao da trajetria pessoal. necessrio ocorrer uma maior inter-relao pessoal e grupal.

    2 Identidade docente abertura para novos olhares

    A narrao no uma mera apresentao de fatos, acontecimentos ou situaes, mas uma exposio interpretativa, porque, ao narrar, a pessoa organiza e reorganiza a sua experincia pessoal. A pessoa que narra seleciona detalhes, excluindo ou incluindo aspectos considerados mais ou menos importantes e esse processo j implica, por si s, uma atividade de reinterpretao. O processo de seleo uma atividade interpretativa que, contudo, nem sempre tem critrios claros e opera tanto com o consciente quanto com o inconsciente. Na perspectiva da anlise junguiana, entende-se que o inconsciente libera para o consciente o que est em condies de ser narrado, de ser ressignificado e ressimbolizado, possibilitando, assim, a dinamizao da identidade docente. Nessa relao dialtica entre o consciente e o inconsciente ocorre uma autorregulao do self.

    O processo de ressignificao pode ser desencadeado atravs de dinmicas de simbolizao e de ressimbolizao, em que se utilizam de narrativas simblicas, mticas e onricas, figuras simblicas, relatos de poesias, expresso de artes como desenho, pintura, foto e corporalidade 24 JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente, 225.

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    dramtica, entre outras. As dinmicas devem estar permeadas de narrao e reflexo interpretativa crtica, tanto individual quanto comunitria. Para tanto, deve-se tambm respeitar e reconhecer as diferentes redes de conexes nas relaes inter e intrapessoais das pessoas que integram as dinmicas de simbolizao e perceber que nem todos os momentos e vivncias so oportunos para uma ressimbolizao.

    O telogo Paul Tillich afirma que os smbolos no podem ser inventados. Eles surgem e desaparecem como seres vivos.25 Nesta mesma direo, Tillich afirma que os smbolos provm do inconsciente individual ou coletivo e s tomam vida ao se radicarem no inconsciente do nosso prprio ser.26 Considerando e analisando estas afirmaes de Tillich, podemos dizer que, da mesma forma, a ressimbolizao no se d por uma deciso externa e nem pode ser imposta de fora e nem sempre ocorre quando uma pessoa proponente a realiza. Ela se d quando o integrante ou grupo est em condies de vivenci-la exterior e interiormente. Ou seja, quando h uma predisposio e quando a pessoa j est inserida num processo pessoal e grupal de narrativa da trajetria docente. A ressimbolizao se d quando os smbolos e os mitos tomam vida e quando revelam profundezas ocultas do nosso prprio ser.

    Paul Tilich afirma que aquilo que toca o homem incondicional-mente precisa ser expresso por meio de smbolos, porque apenas a lingua-gem simblica consegue expressar o incondicional.27 A reflexo sobre a identidade docente vai implicar o desenvolvimento de uma anlise sobre smbolos e mitos que tocam as profundezas da alma humana, que tocam incondicionalmente a existncia humana. A linguagem simblica uma das formas expressivas para manifestar o que move a existncia e que d sentido prxis educativa e fundamenta a identidade docente. Dessa for-ma, podemos afirmar que a hermenutica da identidade docente envolve a reflexo sobre os smbolos e mitos fundantes da identidade docente.

    Ao desenvolver a reflexo sobre a dimenso simblica na formao de professores, a educadora Ecleide Furlanetto aponta para a construo do self grupal que se constitui no processo comunitrio de construo de identidade. Ecleide Furlanetto se apropria do conceito junguiano de self, que representa a totalidade do ser e que integra tanto a expresso do consciente quanto do inconsciente. Enquanto Jung utiliza o conceito 25 TILLICH, Paul. Dinmica da f, p. 32.26 Ibid., p. 31.27 Ibid., p. 30.

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    de self mais para dimenso individual, Furlanetto amplia o conceito para uma dimenso inter-relacional e grupal. Ela baseia a sua reflexo no conceito de self grupal, elaborado por Carlos Byington, destacando que o self grupal expressa a totalidade das foras conscientes e inconscientes, subjetivas e objetivas, atuando num grupo e sendo coordenadas pelos mesmos arqutipos que o self individual.28

    Ecleide Furlanetto afirma que o self grupal no se constitui pela simples justaposio dos indivduos, mas sim pelo encontro de sujeitos que, por meio de suas trocas conscientes e inconscientes, compem uma totalidade na qual as partes funcionam articuladas.29 Quanto mais a narrativa dos processos pessoais da identidade docente for realizada de forma comunitria e as pessoas puderem interpretar e reinterpretar comunitariamente ao narrarem a trajetria pessoal de vida e a compreenso da sua identidade docente, tanto mais poder ocorrer eficaz e efetivamente um processo de individuao e a constituio de um self grupal. Isso tambm significa que, quanto maiores forem os processos de interao entre as pessoas do mesmo grupo, maior ser o grau de confiana e, consequentemente, de revelao do inconsciente.

    Procurando relacionar a reflexo psicopedaggica de Byington e Furlanetto com a compreenso teolgica de Tillich, podemos dizer que o self grupal ocorre quando os smbolos e os mitos que tocam a existncia humana no so expresses somente de uma nica pessoa, mas representao de um grupo de pessoas. Isso significa que, para se tornar possvel a concretizao do self grupal, preciso que ocorram relaes simblicas, tanto conscientes quanto inconscientes, entre as pessoas componentes de um grupo. Os smbolos e mitos expressados comunitariamente, em atividades grupais, precisam ser significantes para a maioria das pessoas do grupo e no somente para uma delas. Entretanto, devemos recordar a posio de Tillich que afirma que os smbolos no podem ser manipulados. Portanto, nas relaes do self grupal, haver simbolizaes e significaes grupais, mas os smbolos podero ter significados distintos entre as pessoas do mesmo grupo. A questo do self grupal no significa uma uniformidade de interpretao, mas uma inter-relao significante entre as pessoas do grupo.

    28 BYINGTON, Carlos Amadeu Botelho. Pedagogia simblica: a construo amorosa do conhecimento do ser, p. 29.

    29 FURNALETTO, Ecleide Cunico. A formao de professores: aspectos simblicos de uma pesquisa interdisciplinar, p.76.

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    Nas significaes que ocorrem nas narrativas interpretativas e reinterpretativas, h um fortalecimento da individuao de cada pessoa e, consequentemente, um fortalecimento da identidade docente. No fortalecimento da individuao, tambm se processa uma dimenso de singularidade, pois cada pessoa e se torna mais singular em relao a outra pessoa. Os smbolos fundantes, apesar de terem uma significao grupal, tm uma interpretao distinta e particular para cada pessoa. Nas significaes grupais e nas partilhas interpessoais, pode tambm se constituir uma singularidade plural ou uma pluralidade singular, quando as partilhas e as experincias significativas e significantes da identidade docente se tornam uma singularidade plural, porque, na perspectiva ricoeuriana, a mesmidade e a ipseidade dos componentes do grupo se fortalecem na relao da alteridade e formam uma unidade e no uma dissonncia. Isso significa que cada self grupal ser singular, apesar de ser constitudo pela pluralidade de pessoas singulares, e, portanto, distinto de outros selfs grupais.

    Na sua anlise sobre singularidade e pluralidade, Sara Pain afirma que somente a liberdade pode nos levar da singularidade pluralidade e da pluralidade singularidade.30 Dessa forma, devemos dizer que no possvel constituir um self grupal sem um claro processo dialtico da relao entre singularidade e pluralidade e sem um claro processo dialgico, em que h uma atitude de ouvir a manifestao do self individual da outra pessoa. A constituio do self grupal s ser consistente e se consolidar quando estiver presente a dimenso de intersubjetividade dialgica,31 em que sujeitos falantes e ouvintes consideram a subjetividade das suas relaes e interpretaes e quando, numa atitude dialgica e emancipatria, revelam as suas impresses e interpretaes. Seguindo a interpretao de Paulo Freire, que reflete sobre a intercomunicao amorosa, podemos salientar que necessrio que haja uma intercomunicao ntima entre duas conscincias que se respeitam.32 Ou seja, a individuao e, consequentemente, a construo do self grupal se faz numa construo de relao direta com a alteridade, integrado pela sabedoria do ouvir e do dialogar, e com as relaes interpessoais das intercomunicaes amorosas.

    30 PAIN, Sara. Aspectos filosficos e socioantropolgicos do construtivismo ps-piagetiano II, p. 49.

    31 WACHS, Manfredo Carlos. O Ministrio da confirmao, p.87-89, 151-155.32 FREIRE, Paulo. Educao e mudana, p. 29.

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    Ecleide Furlanetto afirma que o

    [...] resgate das histrias de vida nos permite entrar em contato com nossas vivncias, bem ou mal elaboradas, e construir novos significados para elas. Essa posio de cooperao que assume o ego, centro da conscincia, com a personalidade total, o self, proporciona um sentido de inteireza e uma possibilidade de existncia mais profunda. uma entrega a caminho.33

    So os processos de resgate da trajetria de vida, tanto de sua prpria histria quanto de outros docentes, que proporcionam uma individuao e permitem compreender e ampliar a conscincia de como foram se constituindo as matrizes pedaggicas e a formao da sua identidade docente, atravs das construes simblicas e mticas.

    A reflexo e as dinmicas de ressignificao e ressimbolizao, propostas por algum que conduz as atividades de formao continuada, no provocam uma ao significante apenas nas outras pessoas, mas podem provoc-la, inclusive, na prpria pessoa que coordena a atividade de simbolizao e de ressimbolizao. Entretanto, esse processo somente possvel quando a pessoa que conduz a dinmica se considera integrante do grupo que vivencia a dinmica, quando assume uma atitude de intersubjetividade dialgica e quando faz da ao reflexiva sobre a atuao docente um momento de aprendizagem e de troca de saberes. O processo de ressignificao e ressimbolizao no uma relao e nem uma ao puramente objetiva; ele tambm uma objetivao subjetiva e uma subjetivao objetiva. Essa relao dialtica entre objetivao e subjetivao faz parte do processo, porque a pessoa que coordena a dinmica de ressimbolizao precisa reconhecer-se como um sujeito em processo permanente de formao e de ressignificao da sua identidade docente e, ao mesmo tempo, como algum que acompanha e auxilia as demais pessoas nos seus processos de significao e ressignificao.

    Isso significa desencadear um processo de mirar-se no espelho. Essa possibilidade implica que a prpria pessoa que coordena a dinmica de significao e simbolizao tambm pode assumir a condio de mirar-se no espelho e, simbolicamente, pode realizar um processo de retrospeco, percebendo os elos de conexo entre os fatos marcantes e fundantes de uma identidade docente com as caractersticas atuais da sua identidade docente. Alm de tomar conscincia da motivao, 33 FURLANETTO, Ecleide Cunico. A formao de professores: aspectos simblicos

    de uma pesquisa interdisciplinar, p. 73.

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    consciente e inconsciente, da atuao docente, da opo metodolgica e dos recursos pedaggicos utilizados. Isso significa criar espaos e oportunidades para as pessoas se mirarem no espelho e desvestirem-se e revestirem-se de suas roupas identitrias e implica estabelecer conexes entre o passado e o presente, entre as experincias e reflexes fundantes de uma realidade identitria com a configurao atual da identidade, num processo de ativao da memria.

    Sara Pain,34 referindo-se aos processos de aprendizagem cognitiva, afirma que permanece na memria o que realmente foi significativo. Ela ainda afirma que se algum no tem memria, porque tem dificuldade de trazer para o presente, de conectar o presente com seu passado. Ou seja, apropriar-se de si mesmo, apropriar-se de suas prprias experincias no passado.35

    Ou seja, realmente tornam-se parte da memria aquelas situaes, aquelas vivncias, experincias, leituras, palavras, que obtiveram um significado simblico e que tiveram uma dimenso significante. No entender do telogo Paul Tillich,36 tornam-se simblicas as questes que possuem um carter ltimo, que tocam incondicionalmente a pessoa, ou seja, que se relacionam com a existncia e com o sentido de ser, proporcionando a coragem de ser que d condies para enfrentar ansiedades e conflitos. Portanto, resgata-se da memria o que se tornou significativo, sejam marcas positivas ou negativas, o que se tornou mar-ca referencial de uma identidade. Isso significa que, para se ter melhor conscincia da identidade pessoal e profissional, importante mirar-se no espelho e descobrir o seu prprio processo de construo identitria.

    Concluso ou intervalo numa jornada

    Ao compreendermos a constituio da identidade docente como algo dinmico e em constante formao e reformulao, entendemos que a narrativa de si mesmo e de sua trajetria pessoal e profissional um elemento fundamental para o fortalecimento tanto da identidade docente quanto da reflexo sobre a sua prxis educativa. A atividade de dinmica simblica proporciona um processo de revelar e ocultar, de se expor e se proteger.

    34 PAIN, Sara. Aspectos filosficos e socioantropolgicos do construtivismo ps-piagetiano III, p. 51.

    35 Ibid., p. 50.36 TILLICH, Paul. Dinmica da f, p. 5, 31 e 37.

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    Os processos de simbolizao e ressimbolizao da identidade docente podem proporcionar um processo de significao e ressignificao de si mesmo de sua ao docente e promover um sentido do ser docente. Entretanto, estes processos somente ocorrem num ambiente favorvel, em que haja um ambiente saudvel, em que a pessoa e o prprio grupo estejam predispostos a mexer com as marcas ocultas em nossas vidas.

    Os smbolos fundantes do nosso ser e do nosso fazer podem ser ressignificados quando ocorrem uma inter-relao pessoal e grupal com o self.

    Referncias

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