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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC CENTRO DE ARTES – CEART DEPARTAMENTO DE MÚSICA GUSTAVO STEINER NEVES O PAPEL DOS VOCALIZES NO ESTUDO DA TÉCNICA VOCAL DO CANTO LÍRICO FLORIANÓPOLIS, SC 2010
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  • UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA UDESC CENTRO DE ARTES CEART

    DEPARTAMENTO DE MSICA

    GUSTAVO STEINER NEVES

    O PAPEL DOS VOCALIZES NO ESTUDO DA TCNICA VOCAL DO CANTO LRICO

    FLORIANPOLIS, SC 2010

  • GUSTAVO STEINER NEVES

    O PAPEL DOS VOCALIZES NO ESTUDO DA TCNICA VOCAL DO CANTO LRICO

    Trabalho de Concluso de Curso apresentado ao curso de Licenciatura em Msica como requisito parcial para a obteno do grau de Licenciado em Msica.

    Orientadora: Profa. Ma. Alicia Cupani

    FLORIANPOLIS, SC 2010

  • GUSTAVO STEINER NEVES

    O PAPEL DOS VOCALIZES NO ESTUDO DA TCNICA VOCAL DO CANTO LRICO

    Trabalho de Concluso de Curso apresentado ao curso de Licenciatura em Msica como requisito parcial para a obteno do grau de Licenciado em Msica.

    Banca Examinadora:

    Orientadora: ____________________________________________ Profa. Ma. Alicia Cupani Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC

    Membro: ____________________________________________ Claudia Todorov Preparadora Vocal, Especialista em Educao Musical Convidada externa

    Membro: ____________________________________________ Teresa Alice Pesenti Fonoaudiloga, Especialista em Voz

    Convidada externa

    Florianpolis - Santa Catarina, 09 de Novembro de 2010

  • A todos que se permitem emocionar pela msica.

  • AGRADECIMENTOS

    Aos meus pais, Airton e Trude, por todo o incentivo e apoio incondicional desde meus primeiros passos como msico, e por sempre acreditarem em minha capacidade e competncia.

    Ao Rony, por despertar em mim o interesse e o amor pelo canto e pela msica, e por ser meu grande exemplo de disciplina, dedicao e comprometimento.

    Aos amigos, colegas e professores, pela grande ajuda no crescimento e aprendizado, tanto profissional quanto pessoal.

    Profa. Alicia, pelo auxlio e pelas ideias e sugestes, tornando possvel a confeco deste trabalho. Maria Isilda, pelas primeiras direes e ensinamentos, assim como pelas primeiras oportunidades e experincias como cantor. Samira e Teresa, por me mostrarem todo um mundo de possibilidades, e por despertarem um grande crescimento e amadurecimento de minhas ideias e minha tcnica vocal.

    Rosane, pelo amor e carinho, pela ajuda, apoio, ateno e compreenso, e por estar ao meu lado, sempre, dividindo comigo meus sonhos e desejos.

  • RESUMO

    A tcnica vocal do canto lrico complexa e exige disciplina e dedicao. Uma das formas de se estud-la e pratic-la ocorre por meio de exerccios vocais especficos, os vocalizes. O presente trabalho tem por objetivo pesquisar as caractersticas dos diferentes tipos de vocalizes, assim como analisar suas estruturas e os aspectos da tcnica vocal que eles trabalham. Para tanto, feito um levantamento bibliogrfico, buscando congregar informaes sobre o estudo da tcnica e, mais especificamente, coletar e comparar sugestes de vocalizes. Assim, o primeiro captulo rene informaes a respeito do estudo da tcnica vocal, tais como indicaes sobre a prtica diria e o tempo de estudo, alm da conceituao do termo vocalize. No segundo captulo feita uma anlise mais detalhada dos vocalizes especficos para trabalhar os diferentes aspectos da tcnica. Como resultado da pesquisa, observou-se a importncia do estudo consciente e contnuo da tcnica vocal, e como um conhecimento sobre a estrutura dos vocalizes pode aprimorar o estudo da mesma.

    Palavras-chave: Vocalizes, Exerccios Vocais, Tcnica Vocal, Canto Lrico.

  • SUMRIO

    INTRODUO .............................................................................................................. 8

    1 O ESTUDO DA TCNICA VOCAL ....................................................................... 11 1.1 O CANTOR CONSCIENTE .................................................................................... 12 1.2 INCIO DOS ESTUDOS .......................................................................................... 15 1.3 TEMPO DE ESTUDO ............................................................................................. 18 1.4 A PRTICA DIRIA .............................................................................................. 21 1.5 VOCALIZES ............................................................................................................ 24

    2 A TCNICA TRABALHADA ATRAVS DOS VOCALIZES ........................... 28 2.1 VOGAIS E CONSOANTES .................................................................................... 29

    2.1.1 Vogais ............................................................................................................... 30 2.1.2 Consoantes ........................................................................................................ 34

    2.2 ESCALAS ................................................................................................................ 35 2.3 VOCALIZES DIRECIONADOS ............................................................................. 37

    2.3.1 Ataque ............................................................................................................... 38 2.3.2 Agilidade ........................................................................................................... 41 2.3.3 Articulao ........................................................................................................ 44 2.3.4 Homogeneidade de Registros ........................................................................... 47 2.3.5 Tessitura ............................................................................................................ 51 2.3.6 Sostenuto ........................................................................................................... 55 2.3.7 Dinmica ........................................................................................................... 57 2.3.8 Trinado .............................................................................................................. 60

    CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................... 62

    REFERNCIAS ........................................................................................................... 65

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    INTRODUO

    Ao admirar o trabalho de cantores envolvidos em espetculos de pera, concertos e outras manifestaes do canto lrico, alguns espectadores podem no se dar conta da complexidade da arte que esto presenciando. Os profissionais envolvidos no esto ali fortuitamente; foram necessrios anos de estudo e trabalho para poderem dominar essa arte e obter a tcnica necessria.

    No estudo da tcnica do canto lrico, necessrio mais do que apenas uma boa base terica. atravs da prtica insistente do canto que o cantor poder realizar seus estudos e aprimorar a tcnica e seus conhecimentos sobre ela, e isso feito principalmente atravs de exerccios e vocalizes.

    de vital importncia o conhecimento ntimo de como a tcnica pode ser trabalhada, assim como seus diversos aspectos (tais como agilidade, ataque, tessitura, entre outros), e quais os tipos de exerccios que podem ser utilizados para esses fins. Todo esse conhecimento poder trazer ao aluno de canto um crescimento e desenvolvimento na rea, e por isso ele essencial para o desenvolvimento da tcnica vocal. Da a importncia da pesquisa sobre os variados vocalizes e exerccios que so utilizados no estudo da tcnica.

    Pensando nisso, tomamos por objetivo deste trabalho estudar os diferentes tipos de vocalizes, analisando quais so os elementos em suas estruturas e buscando uma lgica por trs das sugestes de vocalizes, de modo a entender como cada um deles trabalha a tcnica. Procuramos identificar convergncias entre as caractersticas de exerccios voltados para trabalhar determinados aspectos da tcnica. Esses aspectos foram pesquisados de forma a serem mais bem compreendidos, possibilitando uma maior integrao entre o conhecimento da tcnica e os vocalizes que a trabalham. Atravs do material consultado na rea da tcnica vocal voltada ao canto lrico, foi feita uma reflexo sobre as caractersticas e particularidades dos vocalizes, e como os exerccios vocais podem auxiliar cantores e alunos de canto a dominar a tcnica.

    Este trabalho no tem a pretenso de listar exerccios corretos e adequados para cada situao do estudo do canto. Buscamos fazer uma reflexo acerca do material disponvel sobre o assunto, de forma a melhor entender a essncia dos exerccios e do estudo da tcnica. Apesar de existir bastante material sobre tcnica vocal e um vasto contedo abrangendo exerccios e vocalizes, neste trabalho buscamos uma maior compreenso da estrutura dos exerccios propostos no apenas sugestes de exerccios, mas o porqu de cada um ser da maneira como apresentado. Em geral, na literatura recorrente, a tcnica em si

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    mais discutida, em detrimento de se explicar a essncia dos exerccios sugeridos. Contudo, necessrio um maior entendimento dos vocalizes para que eles possam ser utilizados da maneira mais eficaz possvel.

    Apesar de no existir um conceito nico de tcnica vocal, existem diversas convergncias na literatura atual sobre quais devem ser suas caractersticas. Utilizando os conceitos sugeridos pelos autores consultados, partimos da concepo de que a tcnica consiste em educar e sensibilizar o cantor para o uso das cavidades de ressonncia e para o completo equilbrio e homogeneidade da voz em toda sua extenso, adaptando seu ato respiratrio para tais funes e sendo capaz de projetar a voz de maneira saudvel e sem nenhum esforo ou prejuzo sade vocal. Tudo isso deve atuar de forma que o aluno mantenha suas prprias caractersticas vocais. Ao longo do trabalho, faremos referncias espordicas a uma tcnica correta, que visa indicar a tcnica que possui os aspectos acima abordados. Questes estticas tambm esto envolvidas na tcnica. A tcnica vocal utilizada atualmente soaria de forma estranha h alguns sculos atrs, quando se cantava de forma um tanto diferente. Podemos tomar como exemplos a potncia vocal exigida dos cantores, que aumentou conforme as orquestras foram crescendo de tamanho ao longo dos sculos, ou as notas mais agudas dos tenores, cantadas de forma muito mais leve e tnue antigamente. Sendo assim, a tcnica aqui abordada se refere maneira atual de se estudar o canto e emitir a voz.

    Alguns conceitos e temas referentes ao estudo da tcnica como os de higiene vocal, postura, apoio, ressonncia e respirao no foram especificamente abordados neste trabalho, por no serem o foco do estudo, embora reconheamos sua importncia e papel fundamental no estudo do canto lrico. A pesquisa foi realizada pela consulta da bibliografia disponvel sobre a tcnica vocal do canto lrico, recorrendo tambm a algumas publicaes a respeito da fonoaudiologia e fontica para complementar as informaes sobre os assuntos abordados. A partir do material compilado, foram realizados fichamentos com o intuito de selecionar todo o material pertinente ao assunto deste trabalho. As informaes encontradas foram interpretadas e analisadas, e foi realizada uma comparao entre essas informaes, de forma a melhor entender o que disseminado a respeito do estudo da tcnica e dos vocalizes.

    Foram consultados autores da rea de tcnica vocal, como Richard Miller, notadamente com seu livro The Structure of Singing (1996); Claire Dinville, com A Tcnica da Voz Cantada (1993); Madeleine Mansion, El Estudio del Canto (1947); Lilli Lehmann, Aprenda a Cantar (1984), entre outros. Na rea de fonoaudiologia, utilizamos autores como

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    Daniel Boone, Sua voz est traindo voc? (1996); Paulo Louzada, As Bases da Educao Vocal (1982); entre outros. Materiais histricos e tratados da virada do sculo XIX para o XX tambm foram consultados, como as publicaes de Manuel Garcia, Hints on Singing (1894); Giovanni Battista Lamperti, The Technics of Bel Canto (1905) e Mathilde Marchesi, Theoretical and Practical Vocal Method (1886). Esse material foi retirado da internet e est referenciado conforme a data de publicao original.

    Em relao s publicaes utilizadas em outras lnguas, as tradues encontradas neste trabalho so de autoria pessoal, e os textos originais podem ser encontrados nas notas de rodap, possibilitando uma comparao entre a traduo e o texto original. As partituras e pentagramas utilizados tambm so de autoria pessoal, e as referncias cujos modelos foram utilizados esto citadas abaixo de cada um deles. A maioria dos pentagramas est sem indicaes de texto para ser cantado, pois os originais tambm esto sem tais referncias ou os autores sugeriram o uso de qualquer vogal. Apenas indicaes especficas de texto foram mantidas. O trabalho est dividido em dois captulos. No primeiro so abordados alguns temas relativos ao estudo da tcnica e como ele pode ser realizado, tratando sobre o incio de tais estudos e da importncia de uma prtica consciente e regular, alm da conceituao do termo vocalize.

    No segundo captulo est concentrada a questo essencial da pesquisa nele realizada uma anlise dos aspectos direcionados da tcnica vocal e dos vocalizes que visam trabalhar tais aspectos. A partir de leituras comparadas, foi feita uma seleo dos aspectos mais recorrentes na bibliografia referente ao estudo do canto e dos vocalizes e chegou-se a oito categorias, reunidas e estudadas no item Vocalizes Direcionados. Ainda neste captulo, discutida a importncia que as vogais e consoantes ocupam na tcnica, por se tratarem de elementos essenciais da estrutura dos vocalizes. Da mesma forma, tambm discutido o papel das escalas, amplamente utilizadas nos exerccios vocais.

    Todos esses elementos foram abordados visando a uma maior compreenso das estruturas dos vocalizes e suas caractersticas, buscando estudar e compreender seu papel no estudo da tcnica do canto lrico.

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    1 O ESTUDO DA TCNICA VOCAL

    A tcnica do canto lrico complexa e exige uma grande dose de dedicao e estudo, na busca de uma conscincia maior do cantor sobre seu corpo e seu instrumento. Uma das grandes dificuldades do estudo do canto reside no fato de que a voz um instrumento que permanece escondido (Stohrer, 2006). Ao professor no possvel tocar o instrumento do aluno para demonstrar a tcnica correta. Ele deve fazer com que o aluno, por si s, descubra, entenda e domine essa tcnica, guiando-o atravs de direcionamentos e exerccios. So diversos os fatores a serem considerados e estudados na arte do canto lrico. Alm de elementos como o repertrio e interpretao, que sero estudados em um segundo momento da aula, a tcnica vocal em si trabalhada por meio da sensibilizao, por parte do aluno, de seu instrumento, observando-se fatores como respirao, ressonncia, emisso e articulao que formam, segundo a cantora e professora Madeleine Mansion (1947), as bases do canto. Cada um desses elementos citados pela autora possui uma complexidade prpria e, individualmente, exige todo um trabalho e estudo do aluno, auxiliado e orientado por seu professor. pelo entendimento e controle do funcionamento desses elementos e seus mecanismos que o aluno, aos poucos, passar a dominar a tcnica vocal adequada ao canto lrico.

    Segundo o fonoaudilogo Daniel Boone, a voz natural requer um equilbrio natural entre os mecanismos bsicos de respirao, fonao (vibrao das pregas vocais) e ressonncia. (1996, p. 13). Esses elementos so tratados de forma ainda mais extrema no estudo do canto. A voz trabalhada para ganhar maior sonoridade, sendo utilizada de forma orgnica e de modo a evitar a fadiga e a rouquido oriundas de seu uso indevido. Graas utilizao plena das ressonncias e a uma articulao pura e sonora, teremos um instrumento dcil e dctil, suscetvel s mltiplas inflexes que constituem o encanto persuasivo da verdadeira eloquncia. (Mansion, 1947, p. 15, traduo nossa)1. O que o cantor busca o domnio da voz mais pura e musical e da capacidade total de sonoridade. (Louzada, 1982, p. 208). Deve-se educar a voz para conseguir cumprir as difceis imposies exigidas pela tcnica do canto lrico.

    1 Gracias a la plena utilizacin de las resonancias y a uma articulacin prolija y sonora, lograrn um instrumento

    dcil y dctil, susceptible de las mltiples inflexiones que constituyen el encanto persuasivo de la verdadera elocuencia. (Mansion, 1947, p. 15).

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    1.1 O CANTOR CONSCIENTE

    Ter conscincia do que ocorre com nosso corpo quando cantamos e como nossos rgos se ajustam para tal atividade um fator fundamental e indispensvel para qualquer cantor. O aluno que busca a tcnica deve, desde o incio de seus estudos, se conscientizar da importncia do conhecimento e da percepo sobre seu instrumento e sua voz. Percebendo como trabalham sua laringe, palato, lngua, como se d sua respirao, onde sua voz ressoa, entre os diversos fenmenos que ocorrem durante o ato de cantar, o aluno conseguir controlar cada vez mais esses elementos e ajust-los medida que seu professor o instrui. Decorrido algum tempo, [o aluno] perceber que o instrumento vocal j se tornou mais sensvel, mais obediente, podendo ser dominado e aperfeioado. (Louzada, 1982, p. 198). Isso s ocorrer se o aluno compreender o que est fazendo, e como o faz. Para isso, necessria constante ateno e concentrao durante a aula, focando-se em sua voz e sua emisso.

    Se, ao cantar, o aluno no prestar ateno em seu instrumento e o que ocorre com ele, dificilmente ele poder reproduzir mais tarde algo que tenha feito corretamente. O professor tambm deve condicionar o aluno a se ouvir. Segundo Lehmann, mesmo que o aluno produza inconscientemente um tom impecvel, o professor tem o dever de explicar-lhe as razes pelas quais isso aconteceu. (1984, p. 19). Com isso podemos perceber a importncia que reside na compreenso da arte do canto e sua tcnica. No basta cantar corretamente deve-se cantar conscientemente. Devemos entender como e porqu cantamos de tal maneira, para podermos controlar nossa voz e, se preciso, ter o poder de modificar alguma qualidade nela. O poder de avaliar o som emitido permitir o desenvolvimento da tcnica. Para Mansion, utilizar a inteligncia e a imaginao, especificar as sensaes vocais, so as

    maneiras mais seguras para a construo de uma tcnica vocal slida e estvel (1947, p. 14, traduo nossa)2.

    A complexidade da tcnica correta do canto lrico pode dificultar uma compreenso inicial, pois muitos fenmenos ocorrem simultaneamente quando cantamos. Ao tentar controlar todos eles em um primeiro momento, natural que o aluno fique confuso e acabe no conseguindo produzir o som que gostaria.

    Pode ser extremamente confuso em um primeiro momento lembrar de todos os diferentes aspectos de se cantar corretamente, incluindo: postura correta,

    2 Dirigirse a la inteligencia y a la imaginacin, concretar las sensaciones vocales, son los medios ms seguros

    para cimentar la tcnica vocal sobre una base slida y estable. (Mansion, 1947, p. 14).

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    articulao livre e anterior, mandbulas relaxadas, respirao calma e baixa, apoio adequado, e um tom ressonante e livre. Uma maneira de se treinar essas e quaisquer outras questes tcnicas prestando ateno em um aspecto de cada vez enquanto se repete um exerccio de aquecimento. Voc pode cantar uma escala se concentrando em uma respirao baixa, e depois se observar no espelho durante a prxima repetio para se assegurar de que sua mandbula est solta, e assim por diante. Depois de algum tempo, a maioria desses aspectos estar sob seu comando na maior parte do tempo. (Stohrer, 2006, p. 12, traduo nossa)3.

    O fato de se pedir ao aluno que se concentre em apenas um aspecto especfico da tcnica de cada vez realmente parece favorecer seu entendimento e domnio sobre tal aspecto. Por isso importante que o professor saiba o que pedir ao seu aluno, e como e quando ir pedir. As explicaes do professor podem favorecer o entendimento de determinada questo tcnica, como tambm podem dificult-lo, se explicadas de forma confusa ou vaga.

    Segundo Lehmann, as explicaes fisiolgicas do canto no so apresentadas de modo suficientemente simples para o cantor, e este tem de orientar-se principalmente por aquilo que sente ao cantar. (1984, p. 7). Essa afirmao, publicada ainda na primeira dcada do sculo XX4, nos revela a importncia que j se dava simplificao das explicaes dadas aos alunos de canto desde aquela poca.

    Ainda hoje, comum que o professor se veja obrigado a utilizar metforas e recorrer imaginao do aluno na tentativa de faz-lo compreender melhor determinados aspectos da tcnica. Com isso, procura-se facilitar para o aluno o seu entendimento sobre esses aspectos, incitando-o a despertar uma maior conscientizao sobre seu instrumento, seja atravs de sensaes e uso da imaginao, seja atravs da imitao5 de exemplos sonoros adequados.

    As duas abordagens a fisiolgica e a sensorial parecem ser incentivadas pelos autores consultados, e podemos concluir que elas se complementam, oferecendo ao aluno uma gama completa de exemplos, sensaes e informaes que lhe proporcionaro um amplo conhecimento sobre seu aparato vocal e o levaro ao domnio da tcnica.

    3 It can be overwhelming at first to remember all the different aspects of good singing, including: correct posture,

    free and forward articulation, relaxed jaw, breathing that is calm and low, adequate support, and tone that is resonant and free. One way to train yourself in these or any other technical matters is to pay attention to one at a time as you repeat a warm-up exercise. You might sing a scale focusing on your low breaths, and then watch yourself in a mirror during the next repetition to be sure that your jaw is released, and so forth. After some time, most of these aspects will be at your command most of the time. (Stohrer, 2006, p. 12). 4 O livro Meine Gesangskunst foi publicado originalmente em 1902.

    5 A imitao uma forma de se buscar entender a tcnica vocal atravs de exemplos sonoros, sejam provenientes

    do professor ou de gravaes. Apesar de comprovadamente auxiliar o aluno a melhor perceber e reproduzir a tcnica de forma mais correta, ela nunca dever alterar as caractersticas prprias da voz do mesmo. Sendo cada voz nica e individual, a imitao deve ser utilizada permitindo que suas caractersticas prprias se mantenham.

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    A conscientizao do aluno em relao arte do canto lrico ser refletida, mais tarde, no cantor profissional.

    O cantor consciente do domnio de sua emisso pode realizar o seu trabalho mesmo em condies de deficincia orgnica parcial. Pode tambm superar incidentes fortuitos e saber como atender a sugestes de maestros e crticos, no sentido de modificaes aconselhveis. (Louzada, 1982, p. 167).

    O modo como o aluno participa da aula deve estar intimamente relacionado com a sua preocupao em descobrir e sentir o que est ocorrendo com seu trato vocal6 e seu corpo. Os exerccios utilizados nas aulas de canto so, portanto, o meio para se chegar a um fim: a tcnica. Podemos, com isso, deduzir a importncia de se realizar esses exerccios de forma consciente e ativa. Esses exerccios devem ser dominados sem esforo, com o corao e com a alma, e com a mais perfeita compreenso. (Lehmann, 1984, p. 12).

    Segundo Mansion (1947), pouco importa a quantidade de exerccios realizados durante a aula de canto. O que realmente importa a forma como eles so feitos. Ainda segundo a autora,

    um nico exerccio perfeitamente realizado muito mais proveitoso do que toda uma srie de escalas e trinados cantados de qualquer maneira. [...] melhor no fazer nenhum exerccio do que faz-lo mal, j que s se conseguiria desse modo cansar inutilmente a voz. (1947, p. 127, traduo nossa)7.

    Podemos encontrar uma base slida para essa afirmao nas publicaes sobre os antigos mestres italianos do sculo XVIII, como Porpora8, que fazia seus alunos repetirem apenas alguns poucos exerccios durante vrios anos. Fica claro que a qualidade era prefervel quantidade de exerccios, e que se buscava justamente a compreenso e o entendimento, por parte do aluno, da correta utilizao de sua voz para o canto. Para tanto, no era necessria uma vasta quantidade de diferentes exerccios, mas sim alguns poucos, realizados conscientemente.

    Seria redundante salientar a importncia da compreenso e conscientizao da tcnica tambm por parte do professor. Para se ensinar essa arte to complexa, essencial que se

    6 Entende-se por trato vocal o conjunto dos rgos compreendidos entre as pregas vocais e os lbios (laringe,

    faringe, cavidades nasal e oral boca, lngua, mandbula, bochechas e dentes). 7 Un solo ejercicio perfectamente realizado es mucho ms provechoso que toda una serie de escalas y trinos

    cantados de cualquier modo. [...] es mejor no hacer ningn ejercicio que hacerlo mal, ya que solo se conseguiria de este modo fatigar intilmente la voz. (Mansion, 1947, p. 127) 8 Nicola Porpora (1686-1768) Msico italiano. Foi internacionalmente famoso em sua poca tanto como

    compositor (especialmente de msica vocal e pera) quanto como professor de canto. (Grove, 2010).

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    tenha um profundo conhecimento sobre ela e, no menos importante, um conhecimento sobre como ensin-la.

    Podemos dizer ento, sem exageros, que a compreenso e conscientizao do cantor em relao ao seu instrumento um dos fatores fundamentais e indispensveis ao domnio da tcnica vocal.

    1.2 INCIO DOS ESTUDOS

    medida que o aluno de canto vai compreendendo e assimilando o comportamento e funcionamento da sua voz, a aula de canto vai se modificando, mudando seu foco, de forma a atender as necessidades especficas do aluno naquele momento. A progresso natural do estudante ir vencendo etapas no caminho para a compreenso e domnio da tcnica vocal. necessrio que o professor saiba como tratar cada dificuldade e como explicar a tcnica para alunos com diferentes nveis de domnio da mesma. Existem exerccios que iro servir para ajudar os alunos iniciantes a comear a entender o funcionamento da sua voz, assim como outros exerccios so complexos e de tal dificuldade que no seriam eficazes nesse mesmo objetivo, sendo recomendveis a alunos com uma tcnica mais aprimorada.

    importante ressaltar que o tempo de estudo no est necessariamente relacionado com o domnio da tcnica. Pode-se estudar canto por anos. Porm, sem um entendimento e conscientizao da voz e da tcnica, possivelmente no haver um progresso ou melhora na tcnica vocal, ficando o aluno estagnado e sem mudanas significativas na sua forma de cantar. Por outro lado, um aluno consciente e atento aos aspectos trabalhados durante a aula capaz de crescer a cada encontro com seu professor. Devido s individualidades de cada estudante de canto, no se pode apontar uma ou outra forma adequada da ordem dos exerccios ou da metodologia a ser aplicada pelo professor. Lembremos que a emisso espontnea apresenta variaes tcnicas de um para outro aspirante e cabe ao professor discernir entre os defeitos e decidir sobre o roteiro a seguir em cada caso. (Louzada, 1982, p. 196). Da vem a importncia de o professor tratar cada aluno como nico, no utilizando os mesmos exerccios para todos, de forma mecnica e automatizada. Cada aluno ir conseguir entender a tcnica sua maneira, com suas dificuldades e facilidades individuais, e por isso mesmo dever realizar exerccios prprios e direcionados que o levaro a tal conscientizao.

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    Apesar disso, existe uma certa ordem natural geral das aulas de canto, onde o nvel de exigncia e dificuldade dos exerccios propostos ir crescer progressivamente medida que o aluno consegue controlar melhor sua voz. Sendo assim, algumas recomendaes podem ser feitas sobre como proceder no incio dos estudos de canto, conforme a literatura consultada.

    importante que, ao iniciar seus estudos de canto, o aluno seja devidamente esclarecido de que ser necessria muita pacincia e disciplina para conseguir resultados favorveis. Ele deve estar ciente de que a aula de canto no consiste exclusivamente em se cantar o repertrio escolhido. Alm de exerccios vocais, existem ainda diversas outras qualidades do canto que precisam de ateno.

    Quem deseja tornar-se um artista no deve iniciar o seu trabalho com exerccios prticos de canto, e sim com a prtica metdica e sria da produo de tons, de inalao e exalao, das funes dos pulmes e do palato, da pronncia clara de todas as letras e da fala em geral. (Lehmann, 1984, p. 11).

    Com isso podemos perceber que inmeras atividades ocorrem simultaneamente em nosso corpo enquanto cantamos, e que devemos levar todas elas em considerao a fim de se obter uma tcnica completa e expressiva.

    Outro aspecto discutido por alguns autores sobre o incio dos estudos de canto refere-se regio da voz que deve ser trabalhada em um aluno iniciante. comum encontrarmos, na prtica, exerccios que so iniciados em uma regio grave, subindo gradativamente para uma regio mais aguda. Podemos encontrar diversos mtodos de canto e outros exerccios propostos com essas caractersticas. Alguns autores, porm, consideram que inconveniente, no incio dos estudos, o aluno trabalhar muito a regio grave da sua voz.

    Segundo Louzada, os exerccios em um registro grave s apresentam um bom rendimento quando j se aplica aqui o melhor esquema vibratrio, isto , depois de instalado na zona central, sendo a ele estendido. (1982, p. 209). Isso significa que a nfase deve ser dada primeiramente na regio mdia. Ainda de acordo com Louzada, os graves s devem ser empregues rotineiramente, e aperfeioados, depois que as notas centrais j mostram emisso razovel e que esta, representada por boa pureza e boa amplitude, j se estendeu s notas graves. (1982, p. 197). O autor ressalta que, apesar disso, podem ser feitas tentativas e observaes, se forem inteligentes e conscientes, no setor agudo, na passagem ou nos graves. (1982, p. 209). Reforando essas afirmaes, Costa afirma que

    no setor mdio que se encontram os caminhos para a impostao. A voz se constri como uma casa: tijolo por tijolo. Nada deve ser apressado, e a

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    extenso, quer seja nos agudos ou nos graves, conquistada paulatinamente, a cada lio. (2001, p. 86).

    Em relao a como iniciar o estudo da tcnica vocal, Louzada define uma melhor forma de abordagem ao se atender primeiro aos fatores ou aspectos de importncia fundamental; depois, um a um, aos que constituem uma conseqncia desses. Enfim, atuar nas causas mais simples antes de atuar nas mais complexas. (1982, p. 195). Com isso, o autor defende que o professor dever definir o que julga ser o mais importante para o aluno e trabalhar principalmente esses aspectos durante as aulas, sabendo que outras qualidades do canto sero trabalhadas em um segundo momento, depois de solucionados os problemas prioritrios. Ainda para este autor,

    os primeiros exerccios sero obrigatoriamente dirigidos a funes especficas, simples, localizadas. Desse modo, os sons solicitados ao aluno devero induzir ao fato visado e a resposta dever satisfazer apenas a essa exigncia simples. [...] o que se buscar o som mais certo segundo o objetivo do momento. O exerccio ter carter sobretudo tcnico, corretivo, e no precipuamente esttico. (1982, p. 208-209).

    Lehmann aponta que deve-se primeiro fazer com que o aluno produza um bom tom, aprenda a julg-lo corretamente, antes que lhe seja permitido passar para um segundo tom. (1984, p. 141). Atravs desta forma de estudo, o aluno ir conquistar a tcnica progressivamente, valendo-se de pacincia e da prtica consciente. Segundo Costa, no incio dos estudos, tecnicamente, pensa-se mais e canta-se menos, at se tornar um reflexo condicionado. (2001, p. 110).

    Tratando-se de um aluno iniciante, Louzada defende que devem ser escolhidos exerccios simples, fceis e cmodos de serem realizados. Ainda assim, eles devem conter sempre certa parcela de dificuldade calculada, passvel de ser assimilada e superada. Podem ser alternados e combinados. (1982, p. 210).

    Em relao ao repertrio a ser trabalhado, Kahle defende que no se deve, de maneira alguma, iniciar o estudo com grandes rias. (1966, p. 106). Isso se deve ao fato de que as grandes rias opersticas foram compostas para profissionais que j dominavam a tcnica vocal e teriam condies de cant-las do modo como o compositor as concebeu. Ao aluno iniciante, devido s grandes exigncias tcnicas da maioria dessas rias, seria imprudente trabalh-las sem uma base adequada de tcnica vocal. Ao invs disso, diversos professores preferem indicar, aos seus alunos iniciantes, rias antigas italianas, devido a uma menor exigncia tcnica para se comear a trabalh-las.

  • 18

    Peas de extenso limitada ou transpostas e alguns dos exerccios mais fceis de mtodos de canto como os de Vaccai, Panofka, Sieber, Garcia e Lamperti tambm podem servir como transio dos vocalizes individuais para o repertrio [dos alunos]. (Miller, 1996, p. 177, traduo nossa)9.

    Em resumo, a bibliografia consultada nos aponta que, ao se iniciar os estudos, devemos tratar cada aluno de acordo com suas individualidades e recomendvel trabalhar primeiramente a regio mdia da voz. Os fatores mais importantes para cada aluno devem ter prioridade no foco do trabalho, e o aluno dever procurar produzir um tom mais correto desde o incio antes de se trabalhar outros fatores do canto. Os exerccios devem ser simples, mas sempre conter certo nvel de dificuldade que o aluno poder superar. O repertrio deve ser condizente com o nvel de aluno, e todo o estudo deve ser realizado, desde o princpio, conscientemente.

    1.3 TEMPO DE ESTUDO

    Cantar uma atividade fsica que exige esforo e energia. Segundo a soprano Claudia Muzio10, a tcnica, quando estudada com concentrao e vigor, como deve ser sempre, muito mais fatigante do que cantar um papel de pera. (Brower e Cooke, 1996, p. 96, traduo nossa)11 . Sendo as pregas vocais passveis de cansao e esforo, no devemos sobrecarreg-las.

    Durante a aula devemos prestar ateno para que no seja exigida do aluno uma dose de energia maior do que a ideal. Ao trmino da aula o aluno estar com seu aparelho vocal cansado, pois houve trabalho e seus rgos vocais foram utilizados com mais intensidade, gerando assim uma fadiga natural que se traduz por cansao. Assim, segundo Louzada, a cada exerccio,

    s pode ser imposta ao aluno, alm da fadiga normal da ginstica de rotina j realizada anteriormente, e por isso mais fcil, uma pequena dose de fadiga por novos estmulos, esforo um pouco maior que na sesso precedente. (1982, p. 215).

    9 Songs of limited range, transposed literature, and some of the easier exercises from vocalizing systems such as

    Vaccai, Panofka, Sieber, Garcia and Lamperti may also serve as transition from individualized vocalizing to the song literature. 10

    Claudia Muzio (1889-1936) Soprano italiana com uma carreira de destaque no incio do sculo XX (Grove, 2010). 11

    If technic is studied with complete concentration and vigor, as it always should be, it is much more fatiguing than singing an opera role.

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    Ao contrrio dos instrumentistas, que podem estender seus estudos por vrias horas dirias, os cantores devem utilizar seu instrumento apenas pelo tempo em que ele responde positivamente ao treino. Um estudo alm desse tempo s seria prejudicial ao cantor. Os exerccios para condicionamento vocal devem durar enquanto as respostas podem ser satisfatrias e devem ser suspensos aps cerca de uma hora ou qualquer sinal de disfonia por fadiga, fazendo-se as pausas necessrias durante as sesses. (Louzada, 1982, p. 214).

    O tempo com o qual cada cantor consegue utilizar sua voz sem sentir sinais de cansao ou fadiga pode variar de pessoa para pessoa. Entretanto, a maioria dos autores consultados indica um perodo de tempo reduzido para a utilizao diria da voz cantada, principalmente tratando-se de alunos iniciantes. Para Costa, deve-se exercitar a voz durante vinte minutos diariamente, e quando se trata de iniciantes, fracion-los dez minutos pela manh e outros dez pela tarde. (2001, p. 85). Lehmann sugere que se utilize perodos de dez a quinze minutos de cada vez. (1984, p. 123), e Mansion diz que prefervel que se divida o estudo dirio em quatro sesses de quinze minutos cada ao invs de se cantar por uma hora ininterrupta (1947, p. 128). Segundo Marsola e Ba,

    no aconselhvel executar todos os exerccios de uma s vez. [...]. Sugerimos que o iniciante comece vocalizando apenas 15 minutos para que no haja esforo demasiado, principalmente se estiver se exercitando sozinho. Caso esteja acompanhado de um professor o tempo poder se estender para 30 minutos ou mais, dependendo do mesmo. (2000, p. 85).

    A figura a seguir resume as recomendaes de alguns autores consultados, de forma a ilustrar suas sugestes de tempo de estudo para alunos iniciantes.

    Costa (2x10) Lehmann (10 a 15) Mansion (4x15) Marsola e Ba (15 a 30)

    Podemos perceber que todos os autores recomendam um estudo leve e fracionado ao longo do dia, e que a sugesto de uma prtica de poucas horas dirias consenso na literatura consultada. Para Stohrer, devemos praticar de cinco a seis dias por semana e tirar um dia de folga. Assim como o treinamento de msculos no atletismo, seu corpo ir absorver melhor as

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    novas coordenaes que voc est aprendendo se lhe for dado um tempo de descanso. (2006, p. 13, traduo nossa)12.

    Discorrendo sobre o que ocorre no nosso corpo aps uma aula de canto, Louzada explica que

    msculos, mucosas e outros tecidos, que nos exerccios realizaram contraes reiteradas ou sofreram distenso passiva (ex.: tecidos da faringe), podem apresentar algum incmodo por serem sede provvel de adaptao para atingirem novas propores e capacidade de descontrao mais pronta. Os msculos que se empenharam nas aes freqentes, s vezes foradas, apresentam hiperemia, edema e aumento de volume, passageiros. Aps o exerccio entram praticamente numa fase negativa para o trabalho, em que estmulos eventuais teriam resposta deficiente ou mesmo ausncia de resposta. [...] o conjunto fonador, logo aps a aula, estar em relativa incapacidade. Essa verdadeira inflamao asstica tem durao varivel segundo vrios fatores e, tanto aluno como instrutor, devem aguardar o retorno da capacidade funcional, para poder realizar nova aula com proveito. (1982, p. 214).

    Podemos perceber, com isso, a real importncia do repouso aps a aula ou qualquer outra atividade que exija esforo vocal. Do repouso ir depender a eficcia da aula de canto, que ser producente apenas se o aluno estiver com a voz em boas condies para tal aprendizado. Cantar de modo excessivo poder prejudicar a voz, levando o cantor a ficar alguns dias sem poder utilizar a sua voz. No a quantidade de horas estudadas que trar benefcios ao aluno, mas sim a forma como esse tempo aproveitado.

    Alm de o descanso fsico ser essencial para o bom aproveitamento das aulas de canto, ele importante tambm para que o aluno tenha tempo de assimilar em sua mente as explicaes e sensaes da aula. Uma aula muito longa no iria desgastar o aluno apenas fisicamente, mas tambm mentalmente.

    Segundo Lehmann, de vital importncia

    cantar somente durante certo tempo a cada dia, para que possam cantar novamente no dia seguinte, sem fadiga e sentindo-se prontos para o trabalho exigido pelo estudo regular. prefervel cantar uma hora por dia do que cantar dez hoje e no poder cantar amanh. (1984, p. 26).

    esse estudo regular e a prtica diria que levar o aluno ao domnio da tcnica. Kahle nos avisa: no pensem que conseguem um domnio sobre a voz cantada em pouco tempo. Por isso no treinamos horas a fio por dia. (1966, p. 106).

    12 Practice five to six days a week and be certain to take a day off. Like training muscles for athletics, your body

    will better absorb the new coordinations you are learning if given some downtime.

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    1.4 A PRTICA DIRIA

    A prtica contnua fundamental para o treinamento de qualquer cantor. Sem uma ginstica vocal diria no se pode desenvolver a resistncia dos msculos. (Lehmann, 1984, p. 123). Alm de atividades fsicas regulares, fundamentais para uma preparao adequada do cantor, deve-se praticar diariamente exerccios de respirao e alongamentos, juntamente com todo o trabalho vocal. Todas essas atividades atuam em conjunto, trabalhando o corpo e, conseqentemente, o instrumento do cantor, proporcionando-lhe uma voz com extenso maior, sonoridade mais bonita, mais flexvel, ou seja, que alcance as notas com mais facilidade, firmeza e segurana. (Marsola e Ba, 2000, p. 27).

    Depois de uma ou duas semanas sem cantar, o instrumento vocal requer um recondicionamento gradual. (Miller, 2004, p. 178, traduo nossa)13. Assim como em um atleta, o estudo contnuo e regular que ir permitir ao cantor manter seus msculos em forma para estar sempre apto a cantar com o melhor desempenho possvel. Deve-se chegar a uma quantidade ideal de tempo de estudo cotidiano, pois tanto o estudo excessivo quanto a falta dele sero prejudiciais, enfraquecendo os msculos do cantor. No devemos passar do limite confortvel do uso da voz, para que ela possa ser preservada e utilizada de forma saudvel. Ao discutir sobre a formao do hbito de se exercitar a voz diariamente, alguns autores afirmam que pode haver uma diferena na qualidade do estudo, dependendo do perodo do dia em que se trabalha. Mansion afirma que pela manh, com a voz ainda torpe e pesada, que o trabalho melhor aproveitado. (1947, p. 77, traduo nossa)14. A autora ainda sugere que podemos realizar exerccios vocais desde quando despertamos, durante nosso asseio pessoal. Segundo ela, isso deixaria o nosso som mais estvel, pois estaramos produzindo-o enquanto realizamos outras aes simultaneamente ao canto. Lehmann tambm sugere a prtica vocal pela manh, feita regularmente, utilizando-se exerccios que utilizam toda a extenso vocal. Ela refora que isto deve ser feito com toda a seriedade. (1984, p. 27). A autora ainda defende que de nada serve a prtica excessiva somente a prtica regular e inteligente pode levar ao sucesso com o tempo. (1984, p. 65). O estudo regular e constante do canto essencial no somente para o condicionamento vocal do cantor, mas tambm para o desenvolvimento da tcnica. Lehmann sintetiza a importncia de tal modo de estudo afirmando que

    13 Following a week or two of not singing, the vocal instrument requires gradual reconditioning.

    14 Es a la maana, com la voz an torpe y pesada, cuando el trabajo aprovecha ms.

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    somente atravs da prtica diria de ginsticas vocais pode o cantor tornar-se e continuar a ser senhor de sua voz e meios de expresso. Somente desta forma pode ele atingir o domnio incondicional sobre seus prprios msculos e, atravs deles, do mais delicado aparelho de controle, da beleza de sua voz e da arte do canto como um todo. (1984, p. 65).

    de extrema importncia salientar que um aluno iniciante dever realizar seus exerccios vocais sob o acompanhamento de um professor de canto, que o supervisione e se certifique que os exerccios esto sendo realizados de forma correta e sem risco de nenhum prejuzo sade vocal. evidente que o aluno no ter um professor o orientando diariamente, mas importante que haja um acompanhamento, e que no se inicie o estudo por conta prpria, correndo o risco de criar vcios e estudar de forma prejudicial sua sade vocal.

    Ao se estudar a voz diariamente, os exerccios escolhidos iro variar com cada cantor. O fato de trabalhar a voz todos os dias no significa fazer os mesmo exerccios repetidamente. Pode-se ter uma seleo especfica de exerccios que tenham ajudado o aluno durante as aulas e que, por sugesto do professor, sero eficazes no seu treino dirio. Todavia, tambm se pode variar os exerccios, mantendo-se a essncia dos aspectos vocais que se deseja trabalhar.

    Uma sequncia de exerccios, utilizada por diversos cantores de sucesso no sculo XIX e difundida por seus alunos, pode ser citada como exemplo de exerccios vocais direcionados para a prtica diria. Difundidos por Maurice Strakosch (1825-1887), empresrio e dono de uma companhia de pera, esses exerccios eram por ele referidos como os Dez Mandamentos Vocais (Brower e Cooke, 1996). Os exerccios so simples e devem ser feitos com todas as vogais.

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    Brower e Cooke, 1996, p. 116-117

    Apesar de podermos encontrar diversas outras sugestes bsicas de exerccios, o importante realiz-los de forma consciente. Trabalhando-se diariamente, porm de forma mecnica e sem ateno, perde-se o objetivo do estudo contnuo. Sendo assim, podemos dizer que o exerccio ou a sequncia deles em si no o mais importante para o estudo, mas sim a forma como eles sero realizados. Se, para o aluno de canto, os exerccios so importantes para o entendimento da tcnica, para os cantores que j a dominam esse trabalho dirio essencial para mant-la e para continuar em boa forma. praticamente unanimidade entre cantores bem-sucedidos

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    relatar que eles praticam diariamente exerccios para manter sempre o pleno domnio da sua voz. Vrios deles afirmam que realizam exerccios utilizando escalas e arpejos, variaes na velocidade dos mesmos, exerccios de respirao, entre outros. A contralto Ernestine Schumann-Heink15 faz a seguinte comparao: os exerccios vocais dirios so como o po dirio do cantor. Eles devem ser praticados to regularmente quanto se sentar mesa para comer. (Brower e Cooke, 1996, p. 108)16. Os exerccios realizados por esses cantores profissionais servem tambm para prepar-los para futuras apresentaes. A soprano estadunidense Martina Arroyo17 relata que inventa seus prprios exerccios baseando-se em passagens que considera difceis e problemticas no repertrio que ir cantar. Os exerccios contm, assim, as mesmas caractersticas e

    dificuldades dessas passagens. (Hines, 2006). Podemos observar que os exerccios dirios so fundamentais no apenas para buscar

    a tcnica, mas tambm para mant-la.

    1.5 VOCALIZES

    Aps termos considerado alguns aspectos do estudo do canto e da importncia de se exercitar a voz contnua e conscientemente, podemos agora discutir e aprofundar o termo vocalize. Especificar o que so os vocalizes uma tarefa complicada, devido variedade de definies encontradas na bibliografia relacionada. A prpria definio de vocalize no muito exata, pois diversos autores tratam o termo de maneiras diferentes a comear pela grafia da palavra. Podemos encontrar o termo como vocalize, vocalise e at mesmo vocalizo, dependendo do autor. A maioria do material pesquisado, porm, utiliza o termo vocalize, que iremos adotar tambm neste trabalho. De maneira resumida e sucinta, podemos encontrar o termo definido no glossrio do livro sobre tcnica vocal Great Singers on Great Singing como sendo um tipo de escala ou arpejo vocal usado no treinamento da voz cantada. (Hines, 2006, p. 356)18. Esta definio, porm, superficial e limita o termo a um tipo especfico de exerccio.

    15 Ernestine Schumann-Heink (1861-1936) Contralto de sucesso em sua poca. Nascida em Lieben, perto de

    Praga, atualmente na Repblica Tcheca (Grove, 2010). 16

    Daily vocal exercises are the daily bread of the singer. They should be practiced just as regularly as one sits down to the table to eat. 17

    Martina Arroyo (1937- ) Nascida em Nova York, EUA, teve uma carreira internacional de destaque (Grove, 2010). 18

    Some sort of vocal scale or arpeggio used in training the singing voice.

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    Outra definio bastante comum de vocalize a de que se trata de exerccios feitos com vogais. Para Costa, os vocalises so exerccios que desenvolvem a voz. Cantados com as vogais, todas as escalas ascendentes e descendentes, quer sejam cromticas ou no, acordes e intervalos, exercitam o canto com objetivos artsticos. (2001, p. 85). Esta classificao limita os vocalizes ao uso exclusivo de vogais e, neste sentido, um tanto inexata, pois o mesmo autor que assim define os vocalizes nos mostra exemplos de exerccios tambm com consoantes, em uma variedade bastante ampla (mei mei mei; la la la; ni-e-o e no-o). Para Marsola e Ba (2000), vocalizes so exerccios vocais que impostam a voz. Segundo as autoras,

    os vocalizes so feitos com intervalos musicais dispostos melodicamente (uma nota aps a outra) e acompanhados por um instrumento harmnico (piano ou violo) assegurando a afinao do cantor. Os intervalos musicais na vocalizao ajudam a educar o ouvido e trabalham fundo as nossas pregas vocais. [...] Os vocalizes so criados com vogais (voclicos), slabas (silbicos), palavras e frases. (2000, p. 27).

    Esta definio j amplia um pouco mais a conceituao dos vocalizes, e toma o cuidado de no os limitar s vogais. Outra definio dada por Cheng, ao afirmar que a vocalizao um exerccio de aquecimento que visa ativar e coordenar os msculos e a respirao para a produo da voz adequada. (1999, p. 33). Essa definio j leva o termo para outro caminho, sugerindo que os vocalizes seriam exerccios com o objetivo de aquecer a voz, ao invs de trabalhar a tcnica, como os autores anteriores sugeriram. Devemos lembrar, entretanto, que os exerccios podem inclusive ser os mesmos, com um objetivo diferente aquecer a voz ou estudar a tcnica. Nesse sentido, ambas as definies tratariam vocalizes como exerccios vocais, e a diferenciao estaria no propsito do exerccio. Os dicionrios Grove e Oxford de Msica (2010) nos do diversas definies de vocalizes. O Oxford trata vocalize como uma melodia cantada sem texto, mas com um ou mais sons de vogais. (The Oxford Companion to Music, 2010, traduo nossa)19. Segundo o Dicionrio Grove, os vocalizes surgiram de duas tradies. A primeira surgiu ainda no sculo XVIII, onde j se utilizavam exerccios para se trabalhar a tcnica. Em 1755 Jean-Antoine Brard utilizou diversas composies de Lully, Rameau, entre outros, selecionadas pelas exigncias tcnicas que elas apresentavam, e as publicou em seu tratado de canto como

    19 A melody sung without text but to one or more vowel sounds.

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    exerccios sem palavras, com instrues especficas sobre como solucionar cada um dos problemas ilustrados. A outra tradio do incio do sculo XIX, quando tornou-se comum a publicao de exerccios vocais com acompanhamento de piano como forma de se trabalhar a tcnica de forma mais artstica e menos mecnica. Essas publicaes continham desde exerccios com vogais at algumas peas com letra completa, e muitas delas so utilizadas at hoje so os mtodos de canto, como os de Vaccaj, Panofka, Concone, Marchesi, Ltgen, Lamperti, Garcia, entre outros. Esses mtodos tinham o intuito de oferecer ao aluno exerccios que trabalhavam todas as dificuldades do canto. Costa os considera ainda hoje valiosos auxiliares do canto, pois foram estruturados por verdadeiros mestres dessa difcil arte, que conheciam a fundo todos os segredos concernentes ao rendimento das vozes. (2001, p. 21). Uma abordagem diferenciada do termo vocalize so as peas de concerto que se utilizam apenas de vogais, como o Vocalize-tude de Faur, o Vocalise-tude en forme de habanera de Ravel, o Vocalise Op.34 No.14 de Rachmaninoff, os Trs Vocalizes para Soprano e Clarinete de Vaughan Williams, entre outros (Grove, 2010). Nesses casos, os vocalizes foram concebidos visando-se prioritariamente a apresentao artstica, acima do estudo direcionado da tcnica. Podemos perceber como os exerccios, que primeiramente visavam apenas trabalhar a tcnica, acabaram sofrendo modificaes e se transformando em obras elaboradas e peas de concerto com objetivos performticos.

    O termo vocalize, apesar disso, ainda mais comumente utilizado, na prtica, para se referir a exerccios vocais direcionados, cujos objetivos podem variar, mas esto relacionados ao estudo da tcnica20. Os vocalizes podem servir ainda para se manter a tcnica j adquirida. So comuns os relatos de cantores profissionais que afirmam vocalizar todos os dias. Com isso, esto continuamente trabalhando sua voz para deix-la sempre em boas condies para o canto.

    Com tamanha variedade de definies do termo, difcil realizar uma conceituao precisa. Os vocalizes utilizados para se estudar a tcnica podem ter as mais diferentes caractersticas. O estudo da tcnica, por muitas vezes, pode ser realizado utilizando-se apenas vogais. A prpria conceituao dos vocalizes nos mostra isso. O renomado tenor Luciano Pavarotti relata:

    Quando comecei a estudar seriamente, passei os primeiros seis meses vocalizando apenas com as vogais. Dia aps dia, ficava cantando a, e, i, o, u. No um modo muito interessante de passar seis meses, mas meu professor,

    20 Considerando-se o aquecimento vocal como parte do cuidado com a tcnica.

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    Arrigo Pola, acreditava ser essencial. E ele me convenceu. Ao longo dos anos, fiquei cada vez mais convencido da importncia disso. Quem quiser ser cantor de pera deve aprender no s a manejar a voz mas tambm a cantar palavras. (Pavarotti e Wright, 1996, p. 247).

    Essa abordagem, porm, no nica. Muitos professores acreditam ser importante tambm, desde cedo, aprender a tcnica manejando a unio de vogais e consoantes. Uma variedade muito grande de exerccios composta por slabas, e existem vocalizes formados at mesmo por frases.

    A ideia do vocalize, todavia, permanece a mesma: aperfeioar a tcnica. Cada professor ir faz-lo de uma maneira diferente, de acordo com cada aluno e suas especificidades, atravs de vocalizes direcionados. Segundo Stohrer, para cada objetivo (por exemplo, apoio) existem muitos vocalizes e alguns podem funcionar melhor para voc do que outros. (2006, p. 4, traduo nossa)21. Essa individualidade pode, inclusive, levar cada aluno a criar seus prprios exerccios, de acordo com suas necessidades. Segundo Cheng,

    voc pode achar til e estimulante criar seus prprios exerccios. Ou, ento, perceber que algumas frases de uma msica ou ria especfica destacam a qualidade da sua voz ou causam problemas que devem ser sanados. Voc pode us-los como exerccios. (1999, p. 52).

    Praticamente todos os vocalizes apresentados em livros de tcnica vocal so mostrados em um determinado tom, mas deve-se trabalh-los em diversas alturas e tonalidades. Antes de apresentar alguns exemplos de exerccios em seu livro, Costa observa que os vocalises devem continuar a cada meio-tom e condizentes com a tessitura de cada voz. (2001, p. 87).

    Se o objetivo trabalhar a tcnica, no podemos limitar o termo vocalizes apenas a exerccios com vogais, ou a exerccios com intervalos de notas e escalas. Qualquer exerccio cantado conscientemente, com o intuito de se estudar a tcnica, pode ser considerado um vocalize (existem, inclusive, exerccios com apenas uma nica nota). Embora os exerccios possuam diferenas entre si, a tcnica estar sempre presente e sendo trabalhada.

    21 For any given purpose (e.g., support) there are many vocalizes and some may work better for you than others.

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    2 A TCNICA TRABALHADA ATRAVS DOS VOCALIZES

    Ao longo dos sculos, o estudo da tcnica do canto foi sofrendo modificaes. No incio do perodo do Bel Canto 22 , os professores exigiam de seus alunos estudos que demandavam muito treinamento, mas cujos princpios eram relativamente simples tratava-se apenas de exercitar a voz em todos os seus registros, utilizando todas as vogais (Brownless in Bybee e Ford, 2004). A partir do sculo XIX, a tcnica comeou a ser abordada de forma mais cientfica os estudos de Manuel Garcia23 deram um novo rumo arte do canto. Atualmente, temos muitos recursos que nos trazem uma grande base para o entendimento de nosso corpo e nossa voz, e cada vez mais a tcnica estudada atravs de uma abordagem cientfica.

    Todos esses recursos e estudos na rea, porm, no mudam o fato de que, para se obter o domnio da voz e da tcnica, preciso muito estudo e disciplina. Segundo Canuyt (1951), so necessrios o estudo vocal e a ginstica vocal. O primeiro relativo ao aprendizado da forma correta de se utilizar a voz a favor do canto; o segundo referente ao desenvolvimento muscular do cantor, a prtica contnua que permitir ao cantor permanecer com a voz sempre em sua melhor forma.

    Tanto o estudo quanto a ginstica vocal so obtidos por meio de vocalizes e exerccios, que devem ser sempre escolhidos e realizados de forma inteligente e saudvel. Mas no apenas dos exerccios vocais que conseguiremos obter a tcnica correta. Outros aspectos esto envolvidos na arte do canto. Em primeiro lugar, cantar uma atividade fsica que exige um bom preparo por parte do cantor. de vital importncia que o cantor esteja fisicamente apto a realizar tal atividade. Outro fator essencial na tcnica do canto a respirao amplamente reconhecida como uma das bases da tcnica e diretamente considerada por alguns autores como sendo o mais importante aspecto no estudo do canto (Canuyt, 1951; Dinville, 1993; Mansion, 1947). Diversos exerccios so propostos para ganhar conscincia da respirao, control-la e utiliz-la da melhor forma possvel, em favor do canto. Ao cantarmos, pouco ar deve ser consumido esse ar, porm, deve ser bem utilizado, e seu excesso prejudicial. Para Mansion (1947), o segredo para uma voz pura e cristalina est relacionado respirao todo o ar deve se transformar em som, a partir da dosagem que deve ser feita na sua emisso. Assim,

    22 Tradio vocal e tcnica originada no sculo XVII, alcanando seu auge no sculo XIX.

    23 Manuel Garcia (1805-1906) Cantor, educador e pedagogo vocal espanhol, inventou o laringoscpio, que

    permitiu estudar as pregas vocais atravs de um pequeno espelho colocado dentro da boca do cantor.

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    observamos o quanto a respirao est ligada qualidade vocal, pois tanto a falta de ar quanto seu excesso e sua utilizao em demasia prejudicaro essa qualidade. Muito mais poderia ser discutido a respeito da respirao, tamanha sua importncia no estudo do canto. Apesar de este no ser o foco deste trabalho, importante frisar que, em todo exerccio vocal realizado, a respirao ser sempre fundamental para o seu aproveitamento, devendo-se sempre atentar para ela.

    Os conceitos de ressonncia e impostao de voz tambm merecem destaque no estudo do canto. Encontrar os pontos adequados onde a voz deve ser direcionada para obter a melhor ressonncia possvel um dos principais objetivos da tcnica vocal (Kahle, 1966). Cantar na mscara, por exemplo, um dos termos relacionados utilizao desses pontos, e significa utilizar as cavidades ressonadoras da face (Marsola e Ba, 2000). Alguns dos pontos de ressonncia que possumos mudam de forma, tamanho e posio medida que cantamos caso da boca e da faringe. Isso torna o trabalho do aluno de canto mais complexo e difcil, exigindo muito estudo para conseguir entender e controlar o funcionamento de todos esses rgos na busca da ressonncia ideal. Todos esses aspectos so levados em considerao durante o ato de cantar e no seu estudo. Os vocalizes trabalham todos esses aspectos, juntamente com outras caractersticas mais direcionadas da tcnica vocal (abordadas mais adiante). A escolha adequada de quais fonemas utilizar, qual modo de emitir a voz, velocidade dos vocalizes, regio da voz trabalhada, entre outros aspectos, ser fundamental para o crescimento do aluno e seu entendimento da tcnica.

    2.1 VOGAIS E CONSOANTES

    Vogais e consoantes constituem a estrutura primria do canto, no sentido em que suas combinaes formam as palavras e frases que sero cantadas, e com as quais o cantor poder manifestar sua interpretao e todos os aspectos de sua tcnica. Em grande parte da literatura referente ao estudo da tcnica, a parte dedicada s vogais e consoantes extremamente ampla e abrangente, refletindo, assim, sua importncia. Inmeros estudos detalhados relacionados formao de vogais em nosso aparato j foram realizados, utilizando inclusive modernos recursos tecnolgicos para se descobrir detalhadamente como nossos rgos produzem as diferentes vogais e consoantes que utilizamos na fala e no canto. Espectrogramas, anlises eletro-acsticas, tomografias, raios-x,

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    entre outros recursos, so empregados no estudo da fonao. A importncia das vogais no canto, porm, j reconhecida desde os tratados de Garcia (1805-1906), Lamperti (1839-1910), Marchesi (1821-1913) e outros mestres do canto anteriores a eles. Desde aquela poca, j se sabia que cada vogal produzida por meio de configuraes especficas de nossos rgos como a lngua, o palato e a laringe , que variam de posio e forma para produzir cada uma das vogais (Lehmann, 1984).

    Sendo assim, para dominar a tcnica do canto lrico, devemos conseguir controlar a produo de todas as vogais e consoantes. Considerando-se que cada vogal produzida de uma forma diferente pelo nosso corpo, a escolha cuidadosa e consciente de quais vogais trabalhar far com que o aluno tenha um aprendizado qualitativamente melhor. Este outro fator que explica a abundncia de material relacionado a essa parte do estudo do canto, somado ao fato de que a grande maioria dos exerccios e vocalizes que trabalham a voz so formados por vogais e consoantes. Segundo Mello, as consoantes so efeitos articulatrios, mas as vogais so efeitos vocais. (1995, p. 122). Costa afirma que se articula com as consoantes e se canta com as vogais. (2001, p. 17). A partir dessas afirmaes, podemos observar que as vogais esto relacionadas com a emisso contnua do som, enquanto as consoantes so pea fundamental para a articulao e dico.

    2.1.1 Vogais

    A produo das diferentes vogais 24 que conseguimos emitir est relacionada s diferentes posies, tamanhos e formas que os rgos de nosso trato vocal ocupam durante a fonao (lngua, palato, faringe, mandbula, lbios, epiglote e laringe) (Boone; McFarlane, 2003). Dependendo dessas caractersticas combinadas de cada rgo, nossa voz tomar as formas de cada uma das vogais que utilizamos. As vogais so, portanto, resultado da combinao complexa de vrios movimentos, inclusive das cordas vocais. (Mello, 1995, p. 123). A figura a seguir ilustra as diferentes posies que um desses rgos no caso, a lngua assume para cada uma das vogais.

    24 Na fontica acstica, o que define a qualidade das vogais so dois formantes dois harmnicos com diferentes

    frequncias emitidos durante a propagao das ondas sonoras nas cavidades farngea e oral; sendo cada formante correspondente a uma dessas cavidades (Mello, 1995).

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    Fonte: Encyclopedia Britannica http://www.britannica.com/EBchecked/topic-art/457255/3598/Tongue-position-for-several-vowel-sounds

    Acessado em 12/09/2010

    Algumas vogais no so utilizadas em todos os idiomas. Os alemes possuem, por exemplo, vogais como o [] e [] (o [u] francs) inexistentes em idiomas como o portugus e o italiano. J as vogais nasais como o [] e [] no esto presentes na grande maioria dos idiomas europeus. Para poder ter em seu repertrio obras nos mais variados idiomas, necessrio que o cantor conhea os aspectos de cada lngua e, portanto, importante o domnio da produo das vogais presentes nos mais variados idiomas. Diferentes classificaes so propostas quanto natureza das vogais. Elas podem ser classificadas como fechadas e abertas, cobertas e claras, orais e nasais, anteriores e posteriores. Essas denominaes dependem da natureza da vogal, de onde e de que forma ela produzida. Segundo a classificao sugerida por McCallion (1998), podemos classificar as vogais

    segundo seu modo de articulao (fechada/alta, mdia ou aberta/baixa), seu ponto de articulao (anterior/palatal, central ou posterior/velar), a ao do vu palatino (oral ou oronasal), a ao labial (labializada ou deslabializada), sua intensidade (tnica ou tona), e sua caracterizao acstica (aguda, neutra ou grave). (McCallion, 1998, p. 193, traduo nossa)25.

    Esta classificao detalhada e que considera todas as caractersticas da fonao demonstra o quo complexa a voz humana. Outros autores optam por simplificar essas denominaes, como Louzada (1982), que as divide em vogais fechadas (cobertas), nasais e

    25 [...] segn su modo de articulacin (cerrada/alta, media o abierta/baja), su ponto de articulacin

    (anterior/palatal, central o posterior/velar), la accin del velo del paladar (oral u oronasal), la accin labial (labializada o deslabializada), su intensidad (tnica o tona) y su caracterizacin acstica (aguda, neutra o grave).

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    abertas (claras). Entretanto, no parece haver um consenso quanto nomenclatura utilizada na classificao das vogais, e cada autor consultado opta por uma abordagem prpria. Apesar disso, unnime a utilizao da abordagem fisiolgica para comprovar que cada vogal exige uma formao especfica de nossos rgos, e que isso afeta diretamente o estudo da tcnica vocal.

    Ao emitirmos as vogais fechadas ([] e [], por exemplo), assim como as nasais ([], []), nossa laringe tende a ficar mais baixa, promovendo uma distenso do rgo e das pregas vocais, alm de admitir uma reduo da abertura anterior da boca. As vogais nasais ainda provocam intensa vibrao nas fossas nasais. J as vogais abertas ([], [], []) induzem a produo de um som larngeo mais puro, porm podem facilitar um levantamento da laringe fenmeno evitado no estudo da tcnica (Louzada, 1982). Nossa lngua tambm ocupa um papel fundamental na natureza das vogais, e sua posio ajudar a definir suas caractersticas. No [u] a base da lngua elevada, enquanto no [i] a parte da frente que levanta (Roach, 2001).

    As vogais nasais, ausentes na maioria das lnguas europeias, possuem um papel importante no estudo da tcnica. A nasalidade necessria para a boa produo vocal, e muito discutido a seu respeito. Ao se erguer e tocar a parede da faringe, o palato mole desvia as ondas sonoras para a boca, isolando-a do nariz. Este movimento est presente na maioria dos fonemas que emitimos. Quando esse ponto de fechamento se abre, o som conduzido para o nariz, formando os sons nasais (Boone, 1996).

    Atrs do nosso nariz podemos encontrar as cavidades nasais zonas de grande ressonncia da voz. Ao utilizarmos essas cavidades, estamos cantando contra o nariz, encontrando o mximo de ressonncia (Mansion, 1947). Cantar anasalado cantar na direo do nariz, o que totalmente diferente de cantar pelo nariz, jogando a voz nas fossas nasais o que ir produzir um som fanho, desagradvel e altamente evitado na tcnica vocal correta (Lehmann, 1984). Sendo assim, devemos procurar cantar de forma nasalizada (utilizando a ressonncia das cavidades nasais), mas no cantar pelo nariz. Muitas vezes, ao buscar o local correto da impostao da voz, o aluno pode acabar empregando uma nasalidade, mesmo que sutil, nas vogais abertas e que no deveriam possuir tal caracterstica. Isso no pode passar despercebido a nenhum instrutor, uma vez que perseguimos uma grande clareza e nitidez na pronncia de todas as vogais alm de um foco de ressonncia correto. Dependendo das dificuldades do aluno iniciante, a escolha da vogal pode ser decisiva no aprendizado da tcnica correta, ajudando o aluno a atingir um melhor modo de emisso e

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    de ressonncia da voz. Costa afirma que, nos primeiros meses, deve-se trabalhar com exerccios que utilizam

    as vogais i e que, por serem anteriores, facilitam o desenvolvimento da voz e so mais apropriadas para se encontrar o ponto focal dos ressoadores. Quando essas vogais j estiverem bem apontadas, trabalha-se com as posteriores a, e u, que devem ser sempre dirigidas ao mesmo ponto das anteriores, garantindo a uniformizao de todas as vogais. (2001, p. 17).

    Segundo Mansion (1947), vozes com tendncia aspereza ou muito brancas e claras se beneficiaro do uso da vogal [u], enquanto alunos com vozes opacas ou por demais escuras devero praticar com [i] e [e]. Essas sugestes levam em conta as posies e formas de nosso trato vocal, buscando as combinaes que melhor podem favorecer a soluo para tais problemas. Apesar de alguns autores afirmarem que existem vogais especficas que melhor auxiliam no desenvolvimento da tcnica como Lehmann (1984) ou Marchesi (1886), que apontam a vogal [a] como mais adequada para o desenvolvimento da voz , a maior parte dos estudiosos admite que o ideal justamente a combinao do uso de todas as vogais para alcanar o domnio da tcnica do canto.

    [...] a conjugao, o acordo, entre as vogais claras (que asseguram a firmeza gltica e a pureza do som) e as vogais escuras (que asseguram a manuteno da melhor amplitude da faringe sensao de garganta aberta , [...] um dos recursos bsicos na ttica da educao vocal. Dessa combinao inteligente, sob cuidadosa observao, atravs de improvisaes acertadas, advir gradualmente uma assimilao, uma fuso dos dois tipos de esquema fnico e respectivas sensaes e efeitos. (Louzada, 1982, p. 212).

    Louzada ainda ressalta a importncia das vogais no estudo da tcnica ao afirmar que as vogais devem ser alternadas, com inteligncia, durante os exerccios; assim se poder descobrir o modo de emitir o timbre geral que deve prevalecer ao mesmo tempo que as acomodaes certas para atingir os caracteres particulares de cada uma. (1982, p. 206). Isso significa no apenas utilizar exerccios com diferentes vogais, mas tambm utilizar diferentes vogais em um mesmo exerccio.

    As diferenas entre as vogais podem ser altamente benficas ao canto, uma vez que elas podem misturar-se e conectar-se umas s outras e, assim, emprestar a uma o colorido da outra (Lehmann, 1984). Devido a isso, diversos autores sugerem que se deve fundir diferentes vogais de forma a auxiliar o aluno a obter uma melhor emisso. Mansion (1947), por exemplo, afirma que impossvel cantar as vogais [i] e [e] em uma regio aguda, a no

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    ser que as misturemos ligeiramente com um [u]. Stohrer (2006) tambm defende essa tese, afirmando que se deve buscar a ressonncia anterior do [i] e a abertura da garganta do [o] em todas as outras vogais. Essa compensao entre as vogais pode ser utilizada em diferentes situaes, havendo uma compreenso das qualidades de cada vogal e de como as caractersticas fsicas de cada uma ser proveitosa em cada caso. Cada aluno ir demonstrar uma maior facilidade na emisso de determinada vogal, que varia de acordo com cada pessoa. Essa vogal, a chamada vogal cmoda (Louzada, 1982), ser cantada mais facilmente, com uma emisso melhor e mais correta. Devido a isso, comum que o aluno demonstre um maior rendimento quando utiliza a vogal cmoda. Se apenas essa vogal passar a ser utilizada, as outras vogais, que j no apresentavam o mesmo grau de emisso correta, sero cada vez menos trabalhadas e, consequentemente, sero emitidas cada vez mais de forma deficiente. Mesmo que uma vogal seja muito bem emitida, apresentar sempre alguns elementos que devem ser conservados e outros que devem ser modificados para cada uma das outras vogais. (1982, p. 213). Deve-se, portanto, aproveitar essa vogal cmoda para o aprimoramento da emisso das outras. O papel fundamental desempenhado pelas vogais no estudo da tcnica vocal evidente, seja pelo aspecto fisiolgico possibilitando ao cantor trabalhar a voz atravs da modificao de seus rgos por meio das diferentes vogais , seja no estudo da pronncia correta dos diferentes idiomas.

    2.1.2 Consoantes

    As consoantes resultam dos obstculos opostos emisso de sons ou ar pelos rgos da boca (Garcia, 1894). Elas alteram o equilbrio da tenso e regularidade das vibraes das pregas vocais, pois os movimentos da lngua afetam a laringe. (Marchesi, 1886, p. 9). Assim como as vogais, cada consoante ir exigir posies e movimentos prprios de nossos rgos, e esses movimentos, ao produzir as consoantes, afetaro tambm a qualidade da vogal que a suceder (Miller, 1996). Podemos encontrar as mais variadas classificaes para as consoantes dentro do material existente sobre a voz humana. Elas so classificadas como sendo explosivas ou permanentes (Garcia, 1894), ou como surdas ou sonoras (McCallion, 1998), momentneas ou contnuas (Perell, 1977) ou ainda como nasais ou no-nasais (Miller, 1996). Independentemente da classificao abordada, elas so produzidas por meio dos movimentos

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    de nossos rgos articuladores (como a lngua, lbios, etc) e das diferentes combinaes de suas interaes. Considerando o modo e ponto de articulao e sua sonoridade, temos 72 possibilidades de emitir consoantes distintas. (Perell, 1977, p. 368, traduo nossa)26.

    O texto torna-se ininteligvel se as consoantes no forem bem-articuladas. (Costa, 2001, p. 17). Servindo como um trampolim para a emisso das vogais, as consoantes auxiliam na projeo de nossa voz e so elementos fundamentais na correta articulao e pronunciao do texto, alm de auxiliar no ataque ao som e na ressonncia da nossa voz. Apesar disso, algumas consoantes quebram a fluidez da linha meldica, podendo prejudicar a correta impostao da voz em alunos inexperientes. Devido a isso, as consoantes que interrompem a voz emitida devem ter mnima durao (Louzada, 1982, p. 137), uma vez que o canto consiste na emisso ininterrupta da voz. Tendo isso em mente, no devemos pensar nas consoantes como um fator contrrio boa emisso vocal, por todas as qualidades j enumeradas das mesmas. Quando utilizadas corretamente, as consoantes unem as vogais, ao invs de separ-las.

    A utilidade das consoantes no canto, porm, vai alm da articulao e da correta formao e pronncia das palavras. Garcia (1894) confirma sua importncia enumerando suas funes: transmitem o sentido das palavras, marcam o ritmo da msica por percusso e, por intermdio de seus variados graus de energia, declaram o estado de atividade do sentimento. Alm disso, conferem ao cantor poder de propagao da voz em lugares amplos.

    2.2 ESCALAS

    As escalas ocupam um papel de grande importncia no estudo da tcnica vocal. So a base para variados tipos de exerccios, em suas verses maiores, menores, cromticas ou com extenses que ultrapassam uma oitava.

    Sempre recomendadas tanto para o estudo de alunos iniciantes quanto para os exerccios dirios dos cantores que j dominam a tcnica vocal, as escalas servem para exercitar constantemente nossos msculos para a emisso em todos os tons e alturas. Os diferentes aspectos da tcnica que so trabalhados com a utilizao das escalas demonstram sua versatilidade. Elas esto presentes em exerccios de agilidade e flexibilidade, de notas sustentadas, de dinmica, de tessitura, notas de passagem, homogeneidade de

    26 Considerando el modo y el punto de articulacin y su sonoridade tenemos 72 posibilidades de emitir

    consonantes distintas.

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    registros basicamente, podem ser aproveitadas para se trabalhar todos os elementos da tcnica. Essa importncia ressaltada por Lehmann, que considera a escala o exerccio mais necessrio para todos os tipos de vozes. Segundo a autora, quando

    devidamente praticada, a grande escala capaz de operar maravilhas: equaliza a voz, torna-se nobre e flexvel, refora seus pontos fracos, contribui para sanar quaisquer falhas ou defeitos que existam, e controla-a plenamente. Nada lhe escapa. [...] Em minha opinio, o exerccio ideal, mas o mais difcil que conheo. Dedicando-se a ele quarenta minutos por dia, o cantor pode adquirir uma segurana e fora que no adquiriria com dez horas dirias de qualquer outro exerccio. (1984, p. 146-147).

    Uma das melhores formas de se trabalhar a afinao por meio de escalas e arpejos. A alternncia entre escalas maiores e menores exige um amplo domnio da voz e da afinao, e Garcia (1894) alerta para a dificuldade de se cantar corretamente a sexta e a stima notas da escala tanto a maior quanto a menor. Nessa funo, os arpejos apresentam ainda mais dificuldades, uma vez que as notas so cantadas com intervalos maiores entre si. necessrio grande nvel de preciso para cantar um arpejo corretamente. A escala cromtica apresenta tambm alto nvel de dificuldade, pois muitas vezes os intervalos de semitons no so cantados de maneira precisa. Sua prtica frequente favorece amplamente a afinao, devendo ser estudada lenta e cuidadosamente (Garcia, 1894).

    Quando as escalas passam a ser cantadas com facilidade e agilidade, pode-se pratic-las de vrias maneiras com acentuaes, notas pontuadas, staccato, legato, crescendo, diminuendo, forte e piano. Escalas acentuadas so timas para a flexibilidade (Marchesi, 1886).

    So inmeras as maneiras pelas quais as escalas so apresentadas como forma de se trabalhar a tcnica. Nos antigos tratados de canto, como os de Garcia (1894), Lamperti (1905) e Marchesi (1886), exerccios de escala so apresentados isoladamente, como no exemplo a seguir.

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    Garcia, 1894, p. 25

    Na literatura mais atual, eles servem de base para vocalizes que visam trabalhar outros aspectos da tcnica. Todos os autores, porm antigos ou atuais reconhecem a grande importncia das escalas para a tcnica vocal.

    O principal objetivo da grande escala assegurar o uso flexvel e prolongado da respirao, a preciso na preparao da forma de propagao, a mistura correta das vogais que ajudam a colocar os rgos na posio adequada ao tom e mud-los a cada tom diferente, ainda que essa mudana seja imperceptvel. E, especialmente, o uso inteligente da ressonncia palatal e das cavidades da cabea mormente esta ltima, cujos tons, pairando acima de tudo mais, formam a conexo com a qualidade nasal de toda a escala. (Lehmann, 1984, p. 146).

    2.3 VOCALIZES DIRECIONADOS

    Embora, durante a realizao de um exerccio vocal, diversas caractersticas diferentes da tcnica vocal estejam presentes e sendo trabalhadas, normalmente se elege um aspecto especfico como o foco da ateno e do estudo. Passa-se a trabalhar, ento, categorias especficas da tcnica, atravs de vocalizes direcionados. extremamente comum, na literatura relacionada ao assunto, encontrar divises de captulos sobre aspectos da tcnica, cada um direcionado a um desses aspectos. Encontramos, ento, sugestes de exerccios especficos. Devemos ter em mente que so apenas sugestes, e que, uma vez compreendido o

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    princpio bsico por trs dessas sugestes, podemos utilizar quaisquer vocalizes com as caractersticas prprias para trabalhar o aspecto desejado.

    A maior parte do material consultado sobre tcnica vocal enumera, basicamente, os mesmos aspectos da tcnica para se estudar ataque, agilidade, registros, entre outros. Esses aspectos mais comuns foram escolhidos para integrar este captulo. Isso no significa que todos eles estejam contemplados neste trabalho. Entretanto, os principais e mais recorrentes na literatura foram pesquisados e sero discutidos a seguir. consenso entre os autores pesquisados que, sendo o aluno iniciante no estudo do canto, todos os vocalizes devem ser realizados de forma mais lenta (Brower e Cooke, 1996; Cheng, 1999; Mansion, 1947; Marchesi, 1886; Marsola e Ba, 2000). medida que o aluno demonstrar mais facilidade em manter a tcnica adquirida em uma velocidade mais rpida, pode-se, aos poucos, aumentar e variar a velocidade dos vocalizes. Mesmo quando trabalhamos uma caracterstica especfica da tcnica, alguns recursos podem ser utilizados de modo a auxiliar nesse trabalho. Entre esses recursos esto o canto em staccato27, legato28, o portamento29, a bocca chiusa30, a vibrao de lbios (brrr) e de lngua (trrr), o bocejo como forma de se encontrar uma melhor impostao da voz, entre outros. Em alguns tratados de canto, esses recursos recebem captulos especiais, onde so discutidos individualmente. Considerando a ampla utilizao de tais recursos, fica evidente a sua importncia no estudo da tcnica. Passemos, ento, a analisar os aspectos direcionados mais comumente discutidos e trabalhados no estudo da tcnica vocal.

    2.3.1 Ataque

    Tanto na fala quanto no canto, o modo como iniciamos a emisso do som chamado de ataque sonoro. O ataque se refere maneira como que as pregas vocais fecham o espao da glote. (Boone, 1996, p. 31). Apesar de o termo sugerir uma ao brusca ou de

    27 Staccato (It. destacado) separao entre as notas; forma de fraseio na qual as notas so executadas com

    suspenses entre elas, cantadas soltas. Definida por pontos acima ou abaixo da cabea das notas na partitura. 28

    Legato (It. ligado) oposto ao staccato, a ligao entre as notas, conectadas de forma a no haver separaes nem interrupes entre elas. Definida por linhas curvas que ligam as notas na partitura. 29

    Portamento (It. transporte) conexo entre duas notas, passando-se audivelmente pelos tons intermedirios. (Grove, 2010). 30

    Bocca chiusa cantar com a boca fechada.

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    impacto, existem algumas maneiras diferentes de se atacar um som. Miller (1996) afirma que elas so trs: o ataque duro, o suave e o balanceado31. O ataque duro est relacionado ao golpe de glote, fenmeno que ocorre quando as pregas vocais se fecham bruscamente, em um ataque explosivo, antes do incio da emisso do som, ocasionando uma grande presso nas pregas vocais. Esse tipo de ataque danoso e prejudicial voz, podendo, em casos extremos, levar criao de ndulos nas pregas vocais (Canuyt, 1951). O ataque suave descrito por Miller (1996) o ataque soproso, aspirado, que ocorre quando o cantor deixa escapar ar antes de iniciar a emisso da nota cantada. Esse tipo de ataque tambm considerado inadequado, impuro e emascarado (Louzada, 1982), pois deixa escapar ar e no o utiliza de forma otimizada. Em maior escala, a tenso entre as pregas vocais to fraca que no oferece a resistncia ao ar necessria para que se produza som (Canuyt, 1951). A maioria dos autores pesquisados considera que o ataque vocal correto justamente o ataque balanceado nem brusco, nem aspirado (Costa, 2001; Louzada, 1982; Mansion, 1947; Miller, 1996). O som deve comear no instante preciso em que se inicia nossa expirao, e sem a brusquido do golpe de glote. Enquanto se canta, o ar inspirado no deve sair seno transformado em som. (Mansion, 1947, p. 51, traduo nossa)32. Os exerccios destinados ao ataque do som direcionam o trabalho ao incio da emisso de cada nota. Sendo assim, podemos encontrar diversos exerccios que utilizam apenas uma nica nota, repetida diversas vezes.

    Miller, 1996, p. 11

    O staccato tambm amplamente utilizado para se trabalhar o ataque vocal, uma vez que exige um novo ataque para cada nota cantada, separando-as uma da outra. Porm, deve-se ter cuidado para no utilizar o golpe de glote para conseguir realizar um exerccio em

    31 (1) the soft onset; (2) the hard attack; and (3) the balanced onset. (Miller, 1996, p. 1).

    32 [...] el sonido debe comenzar en el preciso instante en que se inicia nuestra espiracin y sin la brusquedad del

    golpe de glotis. Mientras se canta, el aire inspirado no debe salir sino transformado em sonido.

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    staccato. Em um bom staccato o golpe de glote que inicia cada nota bem controlado e feito com uma presso mnima. (Brodnitz apud Miller, 1996, p. 13, traduo nossa)33.

    Miller, 1996, p. 16

    Devido natureza dos exerccios em staccato, eles no so recomendados para alunos iniciantes, quando estes demonstram certo nvel de esforo para realiz-los ou o fazem utilizando o golpe de glote (Lamperti, 1905). Essa dificuldade normalmente se d devido incapacidade dos msculos, sobretudo larngeos, de agirem de modo certo e em tempo certo. (Louzada, 1982, p. 99).

    Outros vocalizes de ataque utilizam escalas descendentes, iniciadas em uma regio mais aguda. Eles visam o ataque direto nessas notas agudas, por meio de rpidas repeties.

    Costa, 2001, p. 79

    Uma forma de se evitar o ataque inadequado do som a utilizao da bocca chiusa, que, quando bem realizada, impede tanto o ataque brusco quanto o soproso. O uso de consoantes tambm pode evitar o golpe de glote, mais passvel de existir no ataque direto a uma vogal (Mansion, 1947). Isso se d devido ao fato de as vogais no apresentarem os obstculos que as consoantes infligem ao fluxo de ar emitido. Com isso, nas vogais nosso trato vocal fica mais aberto e livre, possibilitando um maior fluxo de ar e, consequentemente, mais presso nas pregas vocais fator facilitador do golpe de glote.

    33 [] in good staccato the glottal stroke which starts each note is well controlled and done with a minimum of

    pressure.

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    2.3.2 Agilidade

    Passagens com notas cantadas rapidamente so consideradas passagens de agilidade ou coloratura 34 . Essas sequncias podem ter as mais variadas melodias, porm sua caracterstica de flexibilidade vocal comum a todas elas. Em relao tcnica do canto lrico, a agilidade e a flexibilidade vocais so aspectos do domnio das funes larngeas e das adaptaes da caixa harmnica s constantes variaes impostas pelo texto, mesmo que sejam em rpida sucesso. (Louzada, 1982, p. 167).

    So inmeros os exerccios que podemos utilizar para trabalhar a agilidade vocal. Diversos autores propem vrios exerccios, de forma que, consultando a literatura existente, selecionamos alguns exerccios que podem melhor resumir as sequncias propostas pelos autores.

    Stohrer, 2006, p. 23

    Mansion, 1947, p. 153

    Podemos encontrar semelhanas entre os exerccios propostos para se trabalhar a agilidade da voz na literatura consultada. Diversas variaes de escalas so apresentadas maiores e menores, de nona, dcima segunda, etc. e os exerccios utilizam, em sua maioria,

    34 O termo coloratura refere-se ao canto florido ou ornamentado, sendo utilizado principalmente pela escola

    italiana de canto, a partir do sculo XVII. Ele pode se referir a uma passagem musical de agilidade, onde vrias notas so cantadas rapidamente. O termo tambm utilizado para designar papis opersticos nos quais essas passagens so caractersticas, ou ainda categorias vocais de cantores que se especializaram em cantar tais passagens. (Grove, 2010).

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    figuras com semicolcheias e tercinas notas que j sugerem uma maior velocidade , formando sequncias que utilizam toda a extenso do pentagrama.

    Miller, 1996, p. 45

    Lehmann sugere que se utilize figuras de cinco, seis, sete e oito notas, etc., para cima e para baixo. (1984, p. 149). importante lembrar que se deve praticar os vocalizes em uma tessitura confortvel, especialmente neste tipo de exerccios que possui uma ampla extenso. Miller (1996) apresenta uma sequncia com diversos exerccios especficos para se trabalhar a agilidade da voz. Essa sequncia inicia-se com exerccios mais simples e curtos, que utilizam menos notas Miller chega a propor um vocalize inicial que s utiliza

    semnimas, e outro com apenas trs colcheias tercinadas, terminando em uma semnima. medida que a dificuldade cresce, os exerccios se tornam mais longos e com mais notas, sendo direcionados para alunos que j conseguem cantar os exerccios iniciais com facilidade.

    Miller, 1996, p. 43

    Miller, 1996, p. 45

    Das diversas categorias vocais existentes no canto lrico, existem algumas subcategorias cuja nomenclatura j indica caractersticas de agilidade vocal, como a Soprano

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    Coloratura e o Tenor Leggero. Apesar de estes cantores serem conhecidos pela sua leveza e destreza vocal, os exerccios de agilidade no devem ser exclusividade deles. Todos os cantores, no importa qual a sua categoria vocal, devem praticar regularmente exerccios de agilidade e coloratura, mantendo-se assim o adestramento vocal. (Costa, 2000, p. 86). Essa prtica essencial e ir beneficiar tanto as vozes leves quanto as mais pesadas, mesmo que o repertrio existente para determinada voz no exija agilidade (Miller, 1996). Com isso, ganha-se suavidade, beleza, fluncia e potncia na voz (Cheng, 1999; Lamperti, 1905; Miller, 1996). Miller (1996) aponta que tanto passagens de agilidade quanto de notas sustentadas se utilizam dos mesmos msculos, que participam ativamente da produo vocal e do canto. A prtica de vocalizes de agilidade ir trabalhar esses msculos, beneficiando o canto como um todo, e no apenas a coloratura.

    Cheng (1999) sugere que tambm se utilize passagens de rias com agilidade, e cita a ria Evry valley, do oratrio O Messias, de G. F. Handel. Podemos encontrar inmeras peas com passagens de coloratura, principalmente no repertrio barroco e no bel canto.

    A princpio, o melhor meio de adquirir agilidade pela lentido. (Mansion, 1947, p. 77, traduo nossa) 35 . O aluno iniciante deve realizar os exerccios devagar, em uma velocidade confortvel e que lhe torne possvel cantar todas as notas claramente. (Lehmann, 1984; Mansion, 1947). Segundo Lamperti (1905), a coloratura deve ser cantada no tempo do exerccio, nunca mais rpido antes prefervel que se cante mais lentamente. Para Marchesi (1886), deve-se cantar os exerccios de agilidade em um nico flego, e apenas quando o aluno j tiver uma base suficiente para faz-lo corretamente.

    Alguns autores recomendam que, ao se cantar exerccios de agilidade, o aluno realize o exerccio como se estivesse rindo36, e afirmam que isto pode ser til para se adquirir agilidade vocal. (Cheng, 1999; Stohrer, 2006). Apesar disso, para outros autores, importante que no se aspire a