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JOO DE NAO REBOLO, LUIZA DE NAO BENGUELA
E O BATIZADO DO PEQUENO PEDRO: VNCULOS
PARENTAIS DE AFRICANOS EM DESTERRO, ILHA DE
SANTA CATARINA (1788/1850)1
Claudia Mortari Malavota2
Resumo
Este artigo tem como objetivo evidenciar e analisar os vnculos
parentais estabelecidos por
homens e mulheres de procedncia africana, sujeitos de diferentes
categorias sociais e origens
tnicas, no contexto de uma pequena vila porturia ao Sul do
Brasil: Nossa Senhora do
Desterro, localizada na Ilha de Santa Catarina, no contexto da
primeira metade do sculo XIX.
Partimos do princpio de que os estabelecimentos de vnculos
parentais constituem, num
contexto escravista, uma maneira de criar esperanas e de
possibilitar a sobrevivncia. Os
africanos ao criarem seus vnculos familiares, conferiram sentido
s suas vidas e marcaram de
forma significativa o espao social em que viviam. Portanto,
analisar e discutir a
multiplicidade de experincias dos africanos possibilita
compreender especificidades
histricas de Santa Catarina e, ao mesmo tempo, abranger a
complexidade dos arranjos de
convivncia, das relaes entre cor, condio social, regio de
procedncia e lugar na
sociedade do perodo.
Palavras-Chave: Populaes de Origem Africana, Vnculos Familiares,
Dispora.
1 Este artigo apresenta questes que foram desenvolvidas na minha
pesquisa de doutorado, defendido em 2007
na Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, sob a
orientao da Prof. Dr. Margaret Marchiori
Bakos, que contou com o financiamento do CNPq. A temtica
abordada continua sendo foco de pesquisa, agora
relacionada a segunda metade do sculo XIX e conta com a
participao de bolsistas de Iniciao Cientfica,
Vinicius Pinto Gomes, Bruno Carrari Costa e Mariah Amanda da
Silva. 2 Doutora em Histria pela Pontifcia Universidade Catlica do
Rio Grande do Sul. Professora Adjunta de
Histria da frica do Departamento de Histria da Universidade do
Estado de Santa Catarina (UDESC).
Desenvolve projetos de pesquisa e de extenso junto ao Ncleo de
Estudos Afro-Brasileiros (NEAB/UDESC).
Entre os projetos de pesquisa, coordena o trabalho intitulado
Homens e Mulheres de Cor e de Qualidade: um estudo acerca das
identidades/identificaes das populaes de origem africana em
Desterro/Florianpolis,
1870/1910 e integra a equipe da pesquisa O Ensino de Histria de
fricas em Santa Catarina: questes e perspectivas. Na extenso
coordena um projeto de curso de formao continuada de
professores(as) da rede pblica de ensino intitulado Introduo aos
Estudos Africanos e da Dispora. Tem experincia na rea de histria,
atuando principalmente nos seguintes temas: Histria, Histria da
frica, Dispora Africana,
Escravido, Irmandades Negras.
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JOHN OF REBOLO NATION, LUIZA OF BENGUELA NATION AND BAPTISM
OF
LITTLE PEDRO: PARENTAL BONDS OF AFRICANS IN DESTERRO, ISLAND
OF
SANTA CATARINA (1788/1850)
Abstract
This article aims to highlight and analyze parental bonds
established by men and women of
African origin, individuals from different social classes and
ethnic origins, in the context of a
small port town in southern Brazil: Nossa Senhora do Desterro,
located on the island of Santa
Catarina. We assume that establishment parental bonds
constitute, in the context of slavery, a
way to create hope and enable survival. Africans, when created
their family ties, gave
meaning to their lives and marked a significant social space in
which they lived. Therefore, to
analyze and discuss the multiplicity of experiences of Africans,
enables to understand
historical specificities of Santa Catarina, and at the same
time, to address the complexity of
the arrangements of coexistence, relations between color, social
status, region of origin and
place in society of the period.
Keywords: Populations of African Origin, Family Bounds,
Diaspora.
JOO DE NATION REBOLO, LUIZA DE NATION BENGUELA ET LE BAPTME
DU PETITE PEDRO: LIENS PARENTEAUX DES AFRICAINS EN DESTERRO,
LE
DE SANTA CATARINA (1788/1850)
Rsum
Cet article vise mettre en vidence et d'analyser les liens
parentaux tablie par les hommes
et les femmes d'origine africaine, des personnes de diffrentes
classes sociales et l'identit
ethnique dans le contexte d'une petite ville portuaire dans le
sud du Brsil: Nossa Senhora do
Desterro, situ dans l'le de Santa Catarina. Nous supposons que
les tablissements liens
parentaux sont, dans le contexte de l'esclavage, une manire de
crer de l'espoir et de
permettre la survie. Les africains au crent leurs liens
familiaux, donnait un sens leurs vies
et ont marqu un espace social important dans lequel ils
vivaient. Donc, analyser et discuter
de la multiplicit des expriences des Africains permet la
comprhension des spcificits
historiques de Santa Catarina et, en mme temps, couvre la
complexit des arrangements de
coexistence, de les relations entre la couleur, le statut
social, la rgion d'origine et place dans
la socit de l'poque.
Mots-cls: les populations d'origine africaine, liens familiaux,
la diaspora.
JOO DE NACIN REBOLO, LUIZA DE NACIN BENGUELA Y LO BATIZADO
DEL PEQUEO PEDRO: VNCULOS PARENTALES DE AFRICANOS EN
DESTERRO, ISLA DE SANTA CATARINA (1788/1850)
Resumen
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Este artculo tiene como objetivo evidenciar y analizar los
vnculos parentales establecidos
por hombres y mujeres de procedencia africana, sujetos de
diferentes categoras sociales y
orgenes tnicas, en el contexto de una pequea Villa portuaria al
sur de Brasil: Nossa
Senhora do Desterro, ubicada en la isla de Santa Catarina. Se
parte del principio que los
establecimientos de vnculos parentales constituyen, en un
contexto esclavista, una manera de
crear esperanzas y de posibilitar la supervivencia. Los
africanos al crear sus vnculos
familiares han conferido sentido a sus vidas y caracterizaron de
manera significativa el
espacio social que vivan. Por lo tanto, analizar y discutir la
multiplicidad de experiencias de
los africanos posibilita comprender puntos especficos histricos
de Santa Catarina y al
mismo tiempo, abarca la complejidad de los contextos de
convivencia, de las relaciones de
color, condicin social, regin de procedencia y rincn en la
sociedad del perodo.
Palabras-clave: Poblaciones de origen Africana, Vnculos
Familiares, Dispora.
INTRODUO
No dia quinze de agosto de 1788, Luiza, de Nao Benguela, e Joo,
de Nao Rebolo,
ambos cativos de Bartolomeu Furtado e Anna Maria, moradores da
Vila de Nossa Senhora do
Desterro, realizaram o batismo, na Igreja Matriz, do seu filho
legtimo, Pedro. No registro,
consta que os padrinhos escolhidos foram outros dois cativos,
Domingos e sua mulher Maria.
Em outra ocasio, em dezoito de outubro de 1789, os cativos Rosa
Crioula e Joo, Nao
Benguela, tambm moradores da Vila, batizaram sua filha legtima
Genoveva, neta, por parte
de me, de Florinda, uma cativa de Nao Camund. Foram padrinhos
Miguel e Maria, ambos
cativos, mas de senhores diferentes. J em dezesseis de janeiro
de 1790, a cativa Tereza,
Nao Guin, batizou sua filha Maria, para a qual escolheu como
padrinhos o casal Joaquim,
cativo de Manoel Rodrigues, e a sua mulher Maria Joaquina, uma
preta forra.3 Em outra
3 ACMF. Livro Catedral, Batismo de Escravos, Desterro,
1771-1789. Ao longo do texto so utilizadas
expresses como crioulo, nao, preto, pardo, que so especficas do
perodo histrico estudado e esto
presentes nas fontes consultadas. Essas expresses eram
categorias utilizadas para categorizar e classificar os
africanos e seus descendentes. Assim, crioulo referia-se ao
descendente de africano j nascido no Brasil e nao
aos africanos de diversas regies de procedncia da frica. Os
termos preto e pardo, alm de referirem-se a cor,
remetiam a condio social dos sujeitos: cativos ou libertos
(ex-cativos). Para compreender como os africanos e
seus descendentes vo criar novos vnculos familiares no contexto
preciso entender como eram vistos, se viam
e se reconheciam no perodo e por isso, ao invs de utilizar
categorias prvias negro ou afrodescendente de anlise utilizo
aquelas prprias do perodo histrico estudado. As referncias s
instituies de pesquisa nas
quais localizamos as fontes sero referenciadas ao longo do texto
somente com a sigla. Nas referncias
bibliogrficas ao final elas se encontram devidamente
apontadas.
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ocasio, quando do falecimento do africano forro Francisco de
Quadros, em 1853, vivo
que no deixou herdeiros, quem realizou seu enterro foi o
africano preto liberto Feliciano
dos Passos. Por sua vez, no ano de 1844, Antnio Jos Gomes e
Maria Thomazia, ambos
africanos forros, apadrinharam dois afilhados, filhos das
africanas cativas, Joaquina e Maria
Cabinda. Por sua vez, Francisca Maria do Rosrio, crioula forra,
e Joaquim, preto da costa,
este cativo de Joaquim Luis do Livramento, batizaram a sua filha
Maria, e escolheram para
padrinhos Marinho Jos Monteiro, preto liberto e Thereza, de nao,
cativa de Manoel
Francisco Pereira Neto.4 Quatorze anos depois, em 1858,
Catharina, filha da africana Rita,
ambas escravas de Catharina Rodrigues da Silva, foi batizada e
teve como padrinhos Joo
Pequeno Lobo e Maria. Em 1859, foi a vez de Simo, filho de outra
africana, Fillipa, escrava
do Tenente Coronel Jos Maria do Valle, cujos padrinhos foram
Francisco Cunha e Nossa
Senhora das Dores.5
Os fragmentos dessas histrias possibilitam indicar algumas
questes acerca dos
sujeitos que buscamos visibilizar:6 a procedncia, as diferentes
categorias jurdicas e, tambm,
os vnculos parentais7 estabelecidos pelas populaes de origem
africana no contexto da
dispora. Evidenciar e analisar esses vnculos o objetivo deste
artigo.
Parto do princpio de que os estabelecimentos de vnculos
parentais constituem, num
contexto escravista, uma maneira de criar esperanas, de
possibilitar a sobrevivncia e de
conferir sentido vida. Ao mesmo tempo a anlise da configurao dos
vnculos parentais
4 ACMF. Livro Catedral, Batismo de Escravos, Desterro,
1843-1848. 5 ACMF. Livro Catedral, Batismo de Escravos, Desterro,
1857-1861. 6 Durante muito tempo, a historiografia catarinense
invisibilizou a presena das populaes de origem africana
no Estado a partir do discurso da insignificncia numrica
(escravido) devido s especificidades da colonizao
no Sul do Brasil. Segundo Leite, o negro invisibilizado, seja
porque no intencionam revelar a efetiva contribuio destes, seja
porque os textos vo se deter na sua ausncia, na reafirmao de uma
suposta
inexpressividade. (...) Ou seja, no que o negro no seja visto,
mas sim que ele visto como no existente (Leite,1996, p. 38). Essa
perspectiva vem sendo desconstruda por inmeros trabalhos
historiogrficos a partir de
novas abordagens tericas e metodolgicas, bem como pelo uso de
diversas fontes de pesquisa, no recorte
temporal do sculo XIX e XX. O que tem sido evidenciado so as
inmeras experincias e vivncias das
populaes africanas. 7 O conceito de famlia que trabalhamos mais
amplo, sendo pensada em termos de convvio familiar: as
relaes entre mes e pais, mas, tambm, as de mes e de pais
solteiros convivendo com seus filhos; as de vivos
com seus filhos; as de avs com seus netos; as relaes
consensuais, o compadrio e outras formas de arranjo.
Essa perspectiva supera a ideia de famlia apenas como aquela
legitimamente constituda, ou seja, sancionada
pela Igreja (Florentino e Ges, 1997; Mattos, 1998; Slenes,
1999). No entanto, para o escopo deste artigo a
anlise recair nas famlias nucleares (compostas por pai, me e
filhos), no por consider-las mais legtimas,
mas por um posicionamento historiogrfico e poltico que busca
romper com uma viso preconceituosa de uma
dada historiografia que, por muito tempo, disseminou o discurso
da existncia de relaes promscuas entre as
populaes de origem africana, especialmente as cativas.
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pode indicar a reinveno das identidades na medida em que esta
implica na redefinio
cultural e histrica de pertencimento e, portanto, na criao de
novos laos a partir da escolha
de parentes. Inicialmente considero que a existncia de famlias
ora apresentadas conferiram
s populaes africanas, a despeito das limitaes e do controle
impostos por uma sociedade
escravista, sentido s suas vidas.
A ideia de reinveno das identidades est relacionada perspectiva
dos estudos
acerca do mundo atlntico, da dispora, dos processos inter e
transculturais de construo das
identidades que apontam que o processo global de formao de
sociedades multiculturais,
constitudas por diferentes grupos tnicos e culturais, iniciou-se
com a expanso e conquistas
europeias.
Para Gilroy (2001) as culturas e as identidades formadas no Novo
Mundo so
indissociveis da experincia da escravido, dos fluxos e das
trocas culturais atravs do
Atlntico. As experincias do desenraizamento, do deslocamento e
da insero dos africanos
num novo contexto resultaram num processo de reinveno das
identidades e das culturas.
Nesta perspectiva, o prprio conceito de dispora no possui a
ideia de disperso que carrega
consigo a promessa de retorno redentor. Ela representa um
processo de redefinio cultural e
histrica do pertencimento, implica, para alm do deslocamento,
mudana, transformao. As
identidades, no contexto da dispora, tornam-se mltiplas, de
forma que, junto ao elo que liga
o sujeito a sua terra de origem, outras identificaes so criadas;
portanto no so fixas e
resultam da formao de histrias especficas podendo se constituir
como um posicionamento
em relao a um dado contexto, ao que Hall denomina de conjunto de
posies de identidade:
dependem da pessoa, do momento e do contexto. Nesta perspectiva
as escolhas identitrias
so mais polticas que antropolgicas, mais associativas, menos
designadas. uma situao
ambgua e uma questo histrica; de forma que [...] cada uma dessas
histrias de identidade
est inscrita nas posies que assumimos e com as quais nos
identificamos (Hall, 2003, p. 34
e 433). Portanto, as identidades criadas ou reinventadas na
dispora no podem ser tomadas
como resultado de uma assimilao completa, pois representam novas
configuraes
marcadas pelo processo de transculturao, que, por sua vez, no
ocorre de mo nica: a
construo ou reinveno de identidades ou das diferenas dialgica e
no binria, embora,
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muitas vezes, o equilbrio seja desigual, pois so inscritas nas
relaes de poder, dependncia
e subordinao, caractersticas do colonialismo (Hall, 2003, p.
67).
Nesse sentido, preciso pensar na produo e na circulao
transnacional de ideias,
mas tambm na dinmica da leitura e da traduo por meio das quais
essas so incorporadas e
ressignificadas a partir das especificidades histricas e
culturais de cada sociedade (Hannerz,
1997, p. 121-122). Tal abordagem extremamente importante porque
considera a mtua,
embora desigual, influncia das diferentes culturas, sem,
contudo, reduzir a histria das
populaes de origem africana apenas sua vitimizao.
a partir dos pressupostos colocados anteriormente que deve ser
considerado o
processo de escravizao dos africanos e de reinveno das suas
identidades. Descobrir,
analisar e discutir a multiplicidade de experincias dos
africanos escravos e libertos possibilita
compreender as caractersticas histricas de Santa Catarina.
Permite tambm abranger a
complexidade dos arranjos de convivncia, das relaes entre cor,
condio social, regio de
procedncia e lugar na sociedade do perodo.
A anlise das experincias compartilhadas por pessoas de
diferentes procedncias e
categorias sociais permitem compreender como se criaram relaes
afetivas, vnculos
familiares que possibilitaram conferir sentidos s suas
vidas.
Evidentemente, vrias so as lacunas em relao s vidas dos
africanos e seus
descendentes. importante lembrar que as fontes de pesquisa se
constituem de produtos
daqueles que detinham o poder evidenciando, sobretudo a forma
como as elites brancas
dirigentes pensavam no perodo8. Mas na perspectiva que estou
trabalhando penso que um
olhar sobre os indcios permitem evidenciar no somente como a
sociedade se estruturava ou
as representaes existentes sobre as populaes africanas, mas
principalmente como estes se
identificavam e os laos de solidariedade que estabeleciam bem
como as relaes de conflitos
que ocorriam. Portanto, os sentidos atribudos por eles mesmos s
dimenses de suas vidas a
partir da construo de partculas de suas prticas cotidianas e das
relaes sociais
(Malavota, 2007, p. 34). possvel, a partir de alguns indcios e
de dados expressos em
variadas fontes, construir uma imagem possvel do seu passado e
das suas relaes sociais
(Lvi, 2000; Ginzburg, 1991, p. 113).
8 Com exceo feita aos processos judiciais dos quais se podem
apreender, mesmo que indiretamente, os
depoimentos de africanos e seus descendentes (Wissenbach,
1998).
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Atravs do rastreamento dos nomes destes e de seus donos, no caso
de qualidade de
cativos9, nas documentaes, tem-se o guia para a prtica do
mapeamento de relaes que
estes homens e mulheres de origem africana teciam entre si
deixadas nos documentos,
construindo suas trajetrias histricas enquanto sujeitos
ambientados no contexto da dispora.
A VILA E SEUS MORADORES: OS PRETOS DE NAO
Provavelmente o ano de 1830 foi marcante na vida de Catharina,
de Nao Benguela
cativa e de Francisco de Siqueira, homem preto forro, pois neste
ano ele conseguiu dar-lhe a
alforria, prometida h mais de oito anos, mas que somente naquele
momento estava
podendo cumprir10. Ambos eram moradores da vila de Nossa Senhora
do Desterro, espao
marcado pelas atividades do porto, local de chegada de pessoas e
de produtos. possvel
imaginar o balanar das bandeirolas das canoas que vinham de
outros portos da Ilha de Santa
Catarina como o do Contrato do Ribeiro, do Rio Tavares, da
Lagoa, de Santo Antnio e
dos barcos e navios que chegavam ao porto, vindos do Rio de
Janeiro, Rio Grande do Sul,
Pernambuco, Montevidu e Buenos Aires. Ou visualizado e ouvido o
burburinho das pessoas
que comercializavam peixes nas canoas ao longo da praia central,
o alarido de vozes de
vendedores africanos e crioulos, escravos e libertos, nas
barraquinhas que ficavam na praa,
tambm, prximo praia (Malavota, 2011, p. 43-46; Cardoso, 2008, p.
44).
Por sua vez, provvel que a Francisca Maria do Rosrio e seu
esposo Joaquim preto da
costa, citados no incio deste artigo que se dirigiam Igreja
Matriz para batizar a sua filha,
tenham passado em frente a alguma das tabernas existentes na
cidade. Nestas se vendiam uma
variedade de gneros alimentcios, secos e molhados, como por
exemplo, aguardente, acar,
algodo, imb, carne seca, cebolas, caf, erva-mate, farinha de
mandioca, feijo, fumo, figos
passados, manteiga, paios, peixe-seco, queijos do Rio Grande e
de Minas, sal, toucinho,
9 Ao longo do texto optei por utilizar o termo cativo ou
escravizado. Isto se deve ao fato de considerar que o
termo escravo, que do ponto de vista jurdico expressa a ideia de
propriedade, logo alienvel a seu proprietrio,
sendo despersonalizado, limitadora e simplificadora das
experincias empreendidas pelas populaes de
origem africana no Brasil no contexto escravista. Como bem
observa Meillassoux (1995) como um ser humano
pode ser comparado a um objeto ou um animal? no mnimo
contraditria essa comparao, pois em todas as
suas atividades h o apelo a sua razo e a inteligncia, para que o
servio seja produtivo. O que nos interessa
nessa perspectiva assinalar que, muito embora haja uma definio
jurdica para o ser escravo, ela no anula a
condio de humanidade deste. 10 CK. 1 Ofcio de Notas de
Florianpolis. Livro 4 do 2 Ofcio do Desterro. 01/1829 a
05/1833.
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vinho, vinagre e ch. Ou tivessem encontrado aqui e acol algum
conhecido que exercesse um
ofcio como o de sapateiro, alfaiate, barbeiro, ferreiro,
marceneiro, serralheiro, tanoeiro,
funileiro, entalhador e pintor. Ou poderiam ter cruzado com
Joaquina, cativa crioula,
vendendo produtos em seu tabuleiro pelas ruas da cidade
juntamente com tantos outros
homens e mulheres, africanos, crioulos e pardos, cativos,
libertos ou livres, bem como
brancos pobres.
Alis, na cidade do Desterro, as ruas, o porto e os espaos
privados das casas eram os
seus locais de trabalho e de sobrevivncia. Era comum, por
exemplo, ver africanas e crioulas,
circulando pelas ruas vendendo quitutes em tabuleiros ou em
quitandas, outras tantas lavando
roupas nos inmeros crregos e fontes de gua ou cozinhando e
cuidando das suas crianas e
das de seus donos. Homens africanos e crioulos carregavam
mercadoria ou as vendiam pelas
ruas da cidade e cais do porto, trabalhando ao ganho11 ou de
aluguel. Eram eles que
embarcavam e desembarcavam os produtos dos navios e dos barcos,
que garantiam a venda de
artigos para o abastecimento da cidade destinada ao consumo da
populao. Alguns ainda
viviam envolvidos nas atividades martimas como armadores e
mestres de embarcaes
(Malavota, 2011, p. 55-61). Algumas africanas e crioulas,
cativas e libertas, alugavam
barraquinhas na praa da cidade para vender seus produtos com a
devida licena da Cmara e
do dinheiro delas dependia a subsistncia de vrias famlias
(Pedro, 1994, p. 126-127).
Havia ainda no espao da cidade as Igrejas catlicas: a Matriz; a
Capela do Menino
Deus, anexa ao Hospital de Caridade; a de So Francisco e a de
Nossa Senhora do Rosrio.
Alm de se constiturem enquanto espaos de devoo possibilitavam,
sobretudo, o
estabelecimento de laos de amizade e de solidariedade entre os
confrades atravs das
chamadas Irmandades Religiosas. No caso dos africanos, pardos e
crioulos, esse espao era o
da Irmandade de Nossa Senhora do Rosrio sediada na igreja de
mesmo nome. Mais tarde, na
segunda metade do XIX, outras duas igrejas foram construdas: a
de Nossa Senhora das Dores
e a de Nossa Senhora da Conceio, de irmos crioulos e pardos,
respectivamente (Malavota,
11 O trabalhador escravo nas reas urbanas poderia exercer as
suas atividades junto ao seu senhor ou era alugado
ou trabalhava por conta prpria. Neste ltimo caso, levava
posteriormente uma parte da quantia que ganhava ao
seu senhor. Era o sistema de trabalho chamado de ganho. A
existncia dos escravos de ganho um dos exemplos que evidencia a
variedade de atividades desenvolvidas pelos escravos e em
contrapartida a
complexidade das relaes escravistas no contexto. Essa prtica de
trabalho permitia, em alguns casos, que o
escravo ficasse como pagamento o valor que ultrapassava o jornal
estipulado pelo seu senhor possibilitando a acumulao de um peclio
para a compra da sua alforria (Soares, 1988).
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2011, p. 80). Alis, neste perodo a cidade estava em amplo
processo de crescimento com a
edificao de novos prdios e reformas urbanas empreendidas por
inmeros trabalhadores de
origem africana como, por exemplo, Jeremias Lobo, filho do
escravo Matheos12.
neste cenrio urbano que homens e mulheres de origem africana ao
realizarem os seus
trabalhos e circularem por todos os lugares acabavam forjando
inmeras possibilidades de
sobrevivncia e, ao mesmo tempo, estabelecendo seus vnculos
parentais, de solidariedades e,
tambm, de conflitos. Importante pontuar que a Vila do Desterro
estava intrinsecamente
vinculada ao mundo atlntico no somente por ter se constitudo a
partir da atividade
comercial ligada ao porto, incluindo o trfico de africanos
escravizados, mas por possuir
andando pelas ruas e morando nas casas pessoas portadoras de
referenciais culturais e de
origens diversas. Enquanto um espao multicultural era na cidade
que pessoas se encontraram
e se reinventaram. E, entre elas, as personagens dessa nossa
histria: os pretos de nao. Mas
afinal, quem so eles?
importante compreender que, no sculo XIX, a noo de cor no
designava um grupo
racial ou nveis de mestiagem, mas delimitava os lugares sociais.
Dito de outra forma, etnia e
condio jurdica eram indissociveis. Nesta perspectiva, o termo
pardo era atribudo aos
libertos ou livres, nascidos no Brasil. Preto designava cativo e
forro, de origem africana; e
crioulos e mulatos eram termos atribudos a cativos e forros,
nascidos no Brasil. Esses
referenciais nos permitem perceber o sentido atribudo cor:
guardava relao com a
condio social do indivduo (Malavota, 2007).
Todos esses termos remetem marca africana e, especificamente no
que nos interessa,
o termo preto refere-se, na maioria das vezes, aqueles homens e
mulheres trazidos do
continente africano atravs do trfico atlntico que, na documentao
da poca, vem
acompanhada da denominao de nao.
As denominaes das naes no possuam correlao com as formas por
meio das
quais os africanos costumavam identificar-se em frica.
Geralmente, nao referia-se ou a
portos de embarque, a regio de onde eram provenientes, ou a uma
identificao dada pelos
prprios traficantes em razo de algumas semelhanas atribudas aos
africanos escravizados,
de forma que somente possvel apontar regies de procedncia destes
e no exatamente aos
12 APESC. Livro de Ofcios do Chefe de Polcia ao Presidente da
Provncia, set. 1865.
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grupos tnicos que pertenciam. Alm disso, o prprio territrio
africano marcado por
conflitos, por deslocamentos populacionais em funo de migraes
internas, por
aprisionamento de cativos antes e durante o trfico atlntico, por
deslocamento de cativos do
interior para o litoral a fim de serem embarcados para a Amrica
(Meillassoux, 1995; Silva,
2002; Lovejoy, 2002). Alguns exemplos evidenciam essa
complexidade.
O termo negro da Guin ou gentio da Guin foram as primeiras
designaes
utilizadas para marcar a origem dos africanos que chegaram Bahia
atravs do trfico ainda
no sculo XVI e representavam mais do que um registro de
procedncia, pois se referiam
condio de cativo na linguagem da poca, evidncia de que a
diversidade cultural da frica
passou a ser ignorada devido ao carter de mercadoria atribudo
aos traficados. Ao longo do
desenvolvimento do trfico, o termo guin passou a se referir aos
africanos escravizados
provenientes de vrias regies. No incio a Guin, restringia-se ao
litoral da costa ocidental
africana, que tinha como centro comercial a feitoria de Cachu,
sobretudo as Ilhas de Cabo
Verde. Com a expanso do comrcio portugus pela costa africana ao
sul, o termo passou a
ser utilizado, tambm, para se referir a partes do litoral
conhecidas como Costa da Pimenta,
Costa do Marfim, Costa do Ouro e Costa dos Escravos. Ou seja,
toda a frica Ocidental ao
norte do Equador, do Rio Senegal ao Gabo, era conhecida, ento,
como Costa da Guin.
Posteriormente, o termo passou tambm, a ser aplicado s regies
subequatorianas, tanto que,
na metade do sculo XVIII a expresso era ainda utilizada para se
referir regio do Congo e
de Angola na frica Central Atlntica. Portanto, sob a denominao
de gentio da guin e
negro da guin, foram inseridos no Brasil atravs do trfico,
africanos cativos procedentes
de toda a Costa Ocidental africana, do Gmbia ao Congo. Nessa
perspectiva, esses termos
possuam significado mais geogrfico do que indicativo de etnias
especficas (Oliveira, 1997 e
Soares, 2000).
Por sua vez, denominaes de naes como cabinda, luanda13,
benguela, designavam
portos de embarque de africanos de forma que, sob estas
denominaes misturavam-se vrios
povos, inclusive de reinos do interior. Tal fato fundamenta a
hiptese de que boa parte dos
escravos classificados como sendo de origem congo ou angola no
pertenciam sequer a
povos que viviam sob a influncia destes reinos, mas sim de
outros reinos e grupos do interior
13 Luanda foi o maior porto de exportao de africanos ao sul do
Equador, sendo exportados 204 mil cativos
entre 1723 e 1771, metade dos quais para o Rio de Janeiro
(Klein, 1978, p. 32 e 253).
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da frica subequatorial. Tal hiptese permite inferir que muitos
comportamentos, atribudos a
indivduos dessas denominaes, podiam fazer parte de outras
matrizes culturais africanas.
Assim como o termo Mina, que no sculo XIX correspondia a duas
realidades distintas na
frica: em primeiro lugar, ao Reino Achanti, da Costa do Ouro,
onde ficava situado o castelo
da Mina e em segundo lugar, o nome dado populao de Ancho
(pequeno Lobo), formada
em parte pelos ghen e pelos fantis-ane, populaes que migraram da
Costa do Ouro entre o
final do sculo XVII e o sculo XVIII e que eram, desde ento,
conhecidas como minas. O
termo era igualmente utilizado para denominar a lngua veicular,
falada em Ancho e
utilizada pela rede do trfico na regio do Golfo do Benin
(Oliveira, 1997, p. 60; Soares,
2000, p. 95-127).
Portanto, lcito considerar a extrema dificuldade em at mesmo de
se aventar uma
hiptese acerca do grupo tnico a que o africano pertencia na
frica. A frica, o africano, as
naes so construes modernas que se referem a uma multiplicidade
de povos, com lnguas
e culturas diversas, cujo ponto de origem comum est no trfico de
cativos e na escravido
como condio jurdica. Nessa perspectiva somente possvel apontar
as regies de
procedncia ou de origem dos africanos e no os grupos tnicos a
que pertenciam.
Portanto, tentar compreender o estabelecimento de vnculos
parentais ou os
comportamentos dos africanos a partir de uma busca a uma cultura
original africana pode
resultar em generalizaes. No se trata aqui de desconsiderar as
referncias culturais de
origem desses indivduos. Todos possuem histrias de famlia,
recordaes das comunidades
ou reinos em que viviam, bem como das guerras travadas, dos
rituais, das relaes de
parentesco. Mas considerar que a vinda para o novo mundo
significou apenas a passagem,
transposio de uma mesma cultura para outro lugar, parece um
paradoxo.
Por outro lado, pensar a cultura em termos de processo, ou seja,
que est sempre em
transformao torna possvel encontrar nas experincias dos
africanos no novo mundo e,
especificamente em Desterro, evidncias de uma gama de vivncias
complexas nas quais
esto expressas valores culturais ressignificados e reinventados.
Por essa razo, o termo
grupos de procedncia, parece mais apropriado para a referncia
aos africanos, mesmo porque
no pressupe uma busca a uma cultura de origem, mas como essas
culturas se reorganizaram
na dispora. Por isso, mais que etnias (no sentido de grupos
originais) trata-se aqui de
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configuraes tnicas em permanente processo de redefinio (Soares,
2000, p. 117). Nessa
perspectiva, pertinente pensar que os africanos se apropriaram
das identificaes que lhes
eram impostas e as utilizaram no processo de reinveno de suas
identidades e criao de
vnculos afetivos e familiares.
Um exemplo parece bastante pertinente neste sentido. Segundo
Oliveira, Nag foi o
nome escolhido no circuito do trfico que se organizou em direo a
Bahia para denominar os
povos de lngua ioruba, mas na frica esses grupos tinham um modo
prprio de adscrio,
referindo-se aos nomes de suas cidades de origem. No contexto da
dispora, ao mesmo tempo
em que aceitavam a pretensa unidade expressa pelo nome nag, em
suas relaes particulares,
que a autora chama de uso domstico, mantinham os nomes que
consideravam como sua
marca de origem. Tal fato aponta indcios para a existncia de uma
conscincia da diferena
presente entre os diversos grupos diante da aceitao do nome
imposto. Dito de outra forma,
os nomes de nao atribudos aos africanos acabaram sendo assumidos
por esses como
verdadeiros etnnimos no processo de organizao de suas
comunidades (Oliveira, 1997, p.
63 e 66).
Nessa perspectiva, para poder evidenciar como os africanos vo
criar seus vnculos
familiares e reinventar as suas identidades, preciso compreender
quais eram as procedncias
desses africanos14.
Em pesquisa realizada, para o perodo entre 1788 a 1850, nos
livros de batismo da
Freguesia de Nossa Senhora do Desterro, foram identificados e
sistematizados 5.245 registros
de batismos de escravos.15 Destes, 1.138 (22%) eram de adultos
africanos e apresentavam
como referncia a procedncia africana16, sendo as mais
significativas: congo (267), cabinda
14 Uma das fontes mais significativas para essa anlise o assento
de batismo, pois, para alm do seu aspecto
religioso, o assento significava um registro civil, na medida em
que identificava a populao registrando para
vrios fins, o nome do batizado, o nome dos pais e, no caso dos
cativos, o nome do proprietrio. Se o africano
recm-chegado no havia sido batizado (alguns africanos poderiam
ser batizados nos prprios portos de
embarque na frica ou nos de chegada ao Brasil), o assento
informava a nao a qual pertencia e, no caso dos
nascidos na vila, traz a informao da procedncia da me e pai,
caso houvesse. O africano no momento do seu
batismo tinha registrado a marca da sua procedncia. 15 Na
pesquisa por ora em andamento, tem-se realizado a sistematizao dos
registros de batismo de cativos,
libertos e livres para a segunda metade do sculo XIX. 16 Foi no
contexto da primeira dcada do sculo XIX que ocorreu um maior nmero
de batismos de africanos
adultos e, portanto, uma intensificao do trfico na cidade. Dos
1.138 africanos batizados, 626 tinham entre 15
e 49 anos, 211 entre 4 e 14 anos e apenas 3 deles tinham a idade
de 50 anos. Em 296 registros no foi referida a
idade do batizando e em 6 o registro encontrava-se ilegvel.
Desses dados observa-se que havia um predomnio
de africanos adultos (Malavota, 2007, p. 90-92).
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(259), moambique (197), costa (171), monjolo (59) e mina (55).
Ou seja, havia a
predominncia de indivduos, principalmente da regio da frica
Central Atlntica, seguido
pela frica Oriental e em menor presena da frica Ocidental. Por
sua vez, a procedncia dos
pais e mes africanos (famlias nucleares) nos registros tambm
acompanhou a tendncia para
os recm-chegados: em maior nmero est congo, angola, benguela,
rebolo, monjolo,
destacando-se a procedncia guin (18 vezes). Especificamente este
termo era utilizado na
metade do sculo XVIII para se referir regio do Congo e de Angola
na frica Central
Atlntica e cai em desuso ao longo deste mesmo sculo sendo
possvel supor que, uma me
de procedncia da guin j estava inserida no contexto da vila na
segunda metade do sculo
XVIII. Em relao as denominaes das procedncias ou naes das mes
africanas (famlias
matrifocais) foi possvel identificar as seguintes regies de
procedncia: 37 da frica Oriental
(Moambique); 83 da frica Ocidental (guin, calabar, mina, nag);
759 da frica Central
Atlntica. Mas o maior conjunto destas, 800 ao total, formado por
aquelas com
denominaes de procedncia gerais (costa, nao, nao africana,
africana de nao, frica,
costa da frica) que podem ser referentes a toda a costa da frica
Ocidental e Central
(Malavota, 2007, p. 89-90; 111-12; 124-127).
Como foi apontado no incio deste artigo, preciso ter presente
que os sujeitos
analisados no contexto de Desterro, especificamente os
africanos, so frutos da dispora, que
implica em um descolamento fsico, mas, sobretudo de construo de
novas configuraes de
identidades, de ressignificao cultural de pertencimento.
Portanto, considero pertinente partir
do pressuposto de que as identidades no contexto da dispora so
transformadas e
ressignificadas, sendo que os nomes de nao, embora atribudos aos
africanos, podem ter
sido assumidos por eles prprios no processo de reorientao dos
critrios de identidades.
Neste sentido, ao invs de discutir as procedncias das populaes
africanas do ponto de vista
de buscar uma reconstituio de uma cultura original, importante
identificar os grupos de
procedncia organizados na sociedade escravista (Oliveira: 95/96;
Soares: 1997 e 2000;
Souza: 2002; Gomes: 2005). Neste sentido, as procedncias
genricas ou as naes podem ter
servido como um guarda-chuva tnico que acabou por possibilitar
as reconstrues
identitrias e culturais que marcaram as estratgias escravas
frente ao poder senhorial. [...]
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Diferenas no seriam necessariamente apagadas, mas semelhanas
podiam estar sendo
construdas e redefinidas (Gomes, 2005, p. 51-56).
A vila de Nossa Senhora do Desterro, no perodo correspondente ao
final do sculo
XVIII e primeira metade do XIX, foi se configurando como uma
vila porturia, marcada pela
atividade comercial. Lugar multicultural. Seu porto e suas ruas
eram espao de trabalho e de
vivncias de mltiplos e diferentes sujeitos, escravos, forros,
homens brancos pobres. Dentro
destas categorias de trabalhadores, os africanos. Homens e
mulheres procedentes de vrias
regies da frica marcados por suas histrias e por suas diferenas,
inseridos num novo
contexto atravs do trfico atlntico. Atravs das atividades dirias
essas pessoas iam
construindo o espao da vila e criando sentidos as suas vidas.
Pelo mar eles chegaram e perto
do mar viveram e reinventaram suas identidades, estabeleceram
vnculos afetivos, criaram
suas famlias e seus laos de parentesco. Como fizeram isso?
VNCULOS PARENTAIS: AS FAMLIAS NUCLEARES
Os registros de batismo do final do sculo XVIII e primeira
metade do XIX fornecem
dados de que homens e mulheres africanos de diferentes
procedncias cativos e libertos
estabeleceram seus vnculos parentais e, portanto, conferiram
sentidos as suas vidas. Entre
esses vnculos, os de consanguinidade, resultaram na formao de
famlias nucleares,
compostas por pai e me17. Como foram organizadas? Africanos de
um mesmo grupo de
procedncia casavam mais entre si? Africanos forros tendiam a
casar com africanas ou
crioulas? Os casamentos entre os africanos tendiam para a
endogamia? A que grupos de
17 No contexto estudado, o nmero de famlias matrifocais muito
maior do que as nucleares. No entanto, esta
anlise no deve ser feita apenas do ponto de vista da quantidade
ou de uma perspectiva senhorial, pois pode
resultar num reducionismo da histria desses sujeitos. Penso que
a prpria existncia das famlias nucleares, por
si s, j significativa no sentido de criao de possibilidades e de
esperanas, no dizer de Slenes. Importante
considerar que nos registros de batismo, as crianas nascidas
entre casais unidos sob os preceitos catlicos do
matrimnio (casamento) eram consideradas legtimas, as nascidas de
unies consensuais, isto , do casal unido,
mas sem a beno da Igreja, eram naturais e, finalmente, as
crianas nascidas de mes solteiras eram tidas como
ilegtimas. Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia,
Coimbra, 1720, Livro I, Ttulo XI Em que tempo, porque pessoas e em
que lugar se deve administrar o sacramento do batismo, 40 (Venncio,
1999). Em vrios momentos deste texto estas expresses iro aparecer
na perspectiva da legislao do perodo.
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procedncia pertenciam s mes e os pais? Essas so algumas das
questes que se pretende
responder objetivando compreender a criao dos vnculos familiares
dos africanos18.
No dia dez de agosto de mil setecentos e noventa e quatro,
Domingos e Engrcia,
africanos de nao, cativos de Rita Maria da Conceio, em cerimnia
realizada na Igreja
Matriz do Desterro, batizaram a sua filha Maria, que na ocasio
estava com dois meses de
idade e que teve como padrinhos Manoel e Antnia, ambos
cativos19. No inverno de 1816
nasceu e foi batizado, aos oito dias de vida, Venncio, filho de
Joana e Joaquim Venncio
pretos da costa de condio forra20. O batismo da pequena Maria e
do inocente Venncio so
apenas dois dos muitos que ocorreram na Matriz do Desterro entre
os anos de 1788 a 1850 e
ambos tm em comum o fato dos pais serem de procedncia africana,
mas se diferenciam no
que diz respeito a condio jurdica dos envolvidos: enquanto Maria
e seus pais Domingos e
Engrcia so cativos; Venncio e seus pais, Joana e Joaquim, so de
condio forra.
Em relao a vila porturia de Nossa Senhora do Desterro, a partir
dos registros de
batismo de crianas cativas foram encontrados, entre os anos de
1788 a 1850, 196 famlias
nucleares. Destas, 68 (34,69%) eram formadas somente por
crioulos e 128 (65,31%) possuam
em sua composio africanos21. A maioria dos casamentos ocorreu
entre aqueles que tinham
em comum a procedncia africana (79,69%). No caso dos
estabelecidos entre africanos e
crioulos, os dados evidenciam que os homens de procedncia
africana tenderam mais a
contrair matrimnio com parceiras crioulas (12,5%), ao contrrio
das mulheres africanas
(5,47%). Tal tendncia ao casamento entre africanos tambm foi
apontada por Faria para
Campo do Goitacazes e Recncavo da Guanabara. Para a autora, os
cativos africanos casavam
mais entre si devido ao fato de serem mais numerosos que os
crioulos. Por outro lado, a
legalizao dos matrimnios seria uma estratgia utilizada pelos
africanos para que seus
senhores respeitassem seus grupos familiares: os africanos,
habilmente, utilizaram o cdigo
18 Para a localizao dessas famlias, tanto de forros quanto de
cativos, em primeiro lugar selecionaram-se 454
registros de crianas que traziam o nome da me e do pai. No caso
especfico dos cativos a partir da identificao
da legitimidade da criana buscou-se agrupar os registros pelo
nome do senhor, o nome da me e o do pai e as
respectivas procedncias. Em registros que no traziam a
procedncia da me ou o pai para saber se eram da
mesma famlia procurou-se observar a diferena de tempo entre o
batismo das crianas, sendo que, se este fosse
acima de um ano considerou-se sendo a mesma me e pai. 19 ACMF.
Livro Catedral, Batismo de Escravos, Desterro, 1771-1798. 20 ACMF.
Livro Catedral, Batismo de Livres, 1802-1820. 21 ACMF. Livros
Catedral, Batismo de Escravos, 1788 a 1850.
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social e ritual do homem branco para ter condies de estabilizar
sua organizao familiar
(1998, p. 335-336).
No que se refere ao contexto da Vila do Desterro, a forma como
essas relaes esto
compostas pode ser resultado da escolha dos proprietrios, das
disponibilidades de parceiros
de um mesmo senhor, bem como da escolha dos prprios africanos no
sentido de construrem
novos laos a partir de suas referncias culturais no contexto da
dispora. Embora considere a
probabilidade de alguns casamentos realizados serem resultado de
determinaes e
imposies dos senhores, preciso ter presente que muitas das
relaes estabelecidas entre
estes e seus cativos foram marcadas por negociaes, concesses,
sendo possvel que, dentro
dos limites impostos, tenham ocorrido possibilidades de escolhas
e de aceite dos parceiros a
partir de suas preferncias, desejos, vontades. Alm disso, apesar
das sociedades africanas
serem marcadas por diferenas, no que diz respeito s relaes de
parentesco, se apresentarem
tanto em formato matrilinear quanto patrilinear e ainda um sem
nmero de variantes no
interior de uma mesma regio, em todos os casos era dada
fundamental importncia
formao da famlia e ao parentesco, este baseado tanto em
afinidade quanto
consanguinidade22.
Um exemplo desta perspectiva pode ser evidenciado a partir da
configurao da
propriedade de Manoel Silveira de Sousa que possua 9 cativos: 3
africanas e 1 crioula e 5
homens africanos. Uma de suas cativas, Rita, de nao conga, foi
batizada juntamente com
mais trs africanos, Joanna e Mathias, ambos tambm de nao congo,
e o Miguel, de nao
moambique, em 1815. Dois anos depois de sua insero na vila, em
1817, Rita batiza sua
primeira filha, a pequena Joaquina e, em 1819, o Mathias, ambos
seus filhos legtimos.
Entretanto, o pai das crianas e, portanto, companheiro de Rita,
no foi nenhum dos que
chegaram com ela em 1815, mas sim outro africano: Manoel, um
preto da costa que j havia
sido traficado e batizado um ano antes da sua chegada, em 1814.
Junto com Manoel, que no
registro do batismo aparece como sendo de nao cabinda, foram
registrados Joo, de nao
congo e Luis de nao cabinda. O que a histria da trajetria desses
africanos, particularmente
de Rita e Manoel, que acabaram unindo suas vidas na dispora
indica que diante do contexto
22 Evidentemente, preciso ter cuidado para no se buscar
sobrevivncias africanas no Brasil colonial haja vista que a frica
um continente marcado por diferenas. Por isso, necessrio observar
as especificidades do
prprio continente e de suas populaes para no se incorrer em
equvocos e generalizaes (Russel-Wood,
2001, p. 11-50).
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no qual foram inseridos houve a possibilidade de uma escolha.
Rita poderia ter preferido por
companheiro um dos que chegaram com ela ou outro que j se
encontrava na vila, como por
exemplo, Joo que era da mesma nao. Por sua vez, tambm o Manoel
poderia ter
escolhido por companheira Joanna ou Theresa outra preta cabinda
que j fazia vivia na
propriedade23. Pode ser que um dos critrios da escolha de Rita
tenha sido o fato de Manoel,
por j estar inserido no contexto da vila h um ano, possuir
alguns conhecimentos ou relaes
com outros africanos ladinos ou, talvez quem sabe, por exercer
uma funo diferente de seus
outros companheiros, trabalhando ao ganho, por exemplo. Evidente
que esses critrios so
hipteses. O fato indiscutvel que eles, embora de procedncias
diferentes, se uniram e
criaram uma famlia no contexto da vila.
Um dos maiores proprietrios de cativos do perodo localizado a
partir de 37 registros
de batismo foi Manoel Antnio de Sousa Medeiros, um militar, que
somente nas trs
primeiras dcadas do sculo XIX batizou 19 africanos adultos
escravizados. Alm desses,
outros 18 adultos homens e mulheres, em sua maioria tambm
africanos, aparecem nos
registros batizando seus filhos. Ao total so 37 cativos: 13
mulheres africanas e 3 crioulas, 16
africanos e 2 crioulos. Neste montante haviam 5 famlias legtimas
constitudas: Francisca e
Vicente, pretos da costa; Andreza, preta de nao rebolo e Antnio,
crioulo; Catharina e
Antnio, pretos da costa; Luiza e Antnio, pretos da costa; e
Igncia Joaquina e Jos Antnio,
que no trazem a referncia procedncia, mas que se supe serem
crioulos e que, inclusive,
possuem um status diferenciado do restante dos cativos por
possurem sobrenome, fato
geralmente no comum entre estes24. Das mulheres e dos homens,
apenas Antnio, casado
com Andreza, Felicidade e Maria so referidos como crioulos.
Portanto, quase todos os
cativos so africanos.
Dessa configurao e da anlise de como estes africanos so
referidos nos registros se
evidenciam duas questes pertinentes. A primeira , novamente, o
indcio da existncia da
possibilidade de escolha do parceiro a partir do que se encontra
disponvel e de um critrio
particular: Andreza a nica africana que constri vnculo de
casamento com um crioulo
apesar de existir um nmero muito maior de africanos na
propriedade. A segunda a de que
23 ACMF. Livro Catedral, Batismo de Escravos, Desterro,
1798-17818, 1818-1840 e 1840-1850. 24 ACMF. Livros Catedral,
Batismo de Escravos, Desterro, 1798-1818, 1818-1840.
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diferentemente dos africanos adultos que so batizados e que
trazem a referncia a regio de
procedncia nao cabinda, nao monjolo, nao congo, nao Moambique,
etc. os pais
e as mes de procedncia africana, a exceo de Andreza que referida
como de nao
rebolo, recebem a denominao genrica de pretos da costa25. Tal
dado indica ideia da
reinveno das identidades dos africanos, expressa na hora do
registro, com o estabelecimento
de uma categoria genrica que associa procedncia e cor e,
portanto, na perspectiva que
estamos trabalhando este termo indica os grupos de procedncia
que sero construdos na
dispora. Dito de outra forma, temos vrios africanos de
diferentes regies de procedncia,
em frica, que no contexto da vila vo acabar por assumir uma
identificao genrica, como
pretos da costa, que pode se referir a indivduos provenientes de
diferentes regies de toda a
costa atlntica africana.
Embora exista uma predominncia endogamia na constituio das
famlias legtimas
dos africanos escravos no Desterro, foi possvel evidenciar na
documentao a existncia de 5
famlias cujos pais pertenciam a diferentes senhores. Thereza era
uma africana de nao
rebolo, cativa de Andr Gonalves Machado, que em 1788 batizou um
filho, Joo. Cinco anos
mais tarde ela aparece novamente nos registros batizando uma
menina, Joaquina, sua filha
com Caetano, um africano cativo de Maria Theresa26.
Caracterstica semelhante a esta em
termos de construo familiar pode ser percebida na relao
estabelecida entre os africanos
Joanna e Manoel, ambos de nao congo, ela cativa de Antnio
Martins de Mello; ele, de
Anna de vila Bitencur. Joanna j possua um filho, Thomaz, nascido
no inverno de 1790.
Trs anos depois aparecem os registros de seus filhos, fruto de
sua relao com Manoel: a
pequena Maria, nascida num inverno de 1793, Antnio, em 1795 e,
finalmente, cinco anos
depois, em 1800, outra menina, Joaquina27. Outros dois africanos
em 1790, Josefa e Antnio,
ambos de nao guin, batizaram sua filha Luiza, mas eram tambm,
cativos de diferentes
senhores: ele, de Elena Rosa de Jesus; ela, de Jos Fernando de
Sousa, sendo este o nico
registro referente tanto aos senhores quanto aos seus cativos
durante todos os anos de 1788 a
185028. Em outro exemplo, a crioula Maria era casada com Manoel
de nao congo que
tiveram uma filha, a pequena Anna, nascida em 1793. Por sua vez,
Agostinho de nao
25 ACMF. Livros Catedral, Batismo de Escravos, Desterro,
1798-1818, 1818-1840. 26 ACMF. Livros Catedral, Batismo de
Escravos, Desterro, 1771-1798. 27 ACMF. Livros Catedral, Batismo de
Escravos, Desterro, 1771-1798 e 1798-1818. 28 ACMF. Livros
Catedral, Batismo de Escravos, Desterro, 1771-1798.
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camund constituiu sua famlia com Isabel, crioula de cujo
relacionamento nasceram trs
crianas: Anna, em 1797, Adam, em 1799 e Siriaca, em 180029.
Essas histrias de formao de famlias compostas por africanos
pertencentes a
diferentes senhores indicam e reafirmam a existncia da
possibilidade de escolha dos
indivduos em relao a quem queriam por companheiro, sendo provvel
que essa seja
resultado de inmeras negociaes e trocas. Alm disso, possvel que
esses cativos fossem
trabalhadores de ganho que moravam fora da casa de seus
senhores. Neste sentido preciso
considerar, tambm, o contexto no qual essas famlias esto
inseridas: a vila do Desterro que,
como visto, enquanto espao comercial caracterizado pela
existncia de seu porto possua
muitos trabalhadores envolvidos em diferentes atividades
relacionadas s funes urbanas que
circulavam por todos os lugares: eram vendedores, quitandeiras,
carregadores, jornaleiros. Por
outro lado, mesmo os trabalhadores cativos domsticos precisavam
se deslocar pela vila para
a realizao de algum servio: lavar roupa, fazer compras no
mercado, pegar gua nas fontes.
Dessa forma, em determinado momento de suas vidas esses
indivduos se cruzaram e mesmo
pertencendo a senhores diferentes, acabaram conquistando ou
ganhando a permisso para
criarem as suas famlias.
Essas histrias mostram a capacidade de criao e apontam para a
tese que vem sendo
construda pela historiografia ao longo das duas ltimas dcadas: a
escravido e o parentesco
no so coisas excludentes. O fato de serem aviltados com a condio
jurdica da
modernidade europeia no exclua, obviamente, os africanos, da
condio, das necessidades e
dos desejos humanos. plausvel considerar que a escravido
limitou, mas no impediu a
constituio da famlia, mesmo se um dos companheiros no
pertencesse ao mesmo senhor ou
fosse de condio forra, a exemplo de Joo Dantas, africano forro,
de nao angola, que criou
sua famlia com Maria, tambm de nao angola, com a qual teve dois
filhos. Maria era cativa
do Tenente Coronel Jos da Gama Lobo Coelho30. Cativo tambm era
Joaquim, um preto da
costa, que pertencia a Joaquim Luis do Livramento. Mas sua
condio no evitou que ele
pudesse criar sua famlia com Francisca Maria do Rosrio, uma
crioula forra31. O mesmo
ocorreu em relao africana forra Thereza, de nao benguela, casada
com Joo, um crioulo
29 ACMF. Livros Catedral, Batismo de Escravos, Desterro,
1771-1798 e 1798-1818. 30 ACMF. Livro Catedral, Batismo de
Escravos, Desterro, 1771-1798. 31 ACMF. Livro Catedral, Batismo de
Livres, Desterro, 1843-1848.
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do Desterro, cativo de Paulo Lopes Falco32, cirurgio de Fragata
que exercia seu ofcio na
vila (Cabral, 1979, p. 226).
possvel considerar, portanto, a partir das evidncias que a criao
das famlias
compostas por africanos cativos decorre, sem desconsiderar a
influncia do proprietrio, da
disponibilidade encontrada no meio em que vivem e da
possibilidade de escolha em relao a
quem querem por companheiro. Neste sentido, vrios podem ser os
critrios para estas
escolhas, mas um dado apontado pela anlise da composio destas
famlias significativo: a
presena de um maior nmero destas 102 (79,69%) compostas apenas
por pais africanos. Essa
evidncia permite supor duas possibilidades acerca da existncia
das famlias formadas
apenas por africanos cativos.
A primeira a de que o estabelecimento de vnculos familiares para
esta populao
poderia representar um meio para a construo de uma nova vida na
dispora e os caminhos
para a estabilidade, algo mais importante para estes africanos
do que para os crioulos, j
socializados e inseridos em redes familiares e de amizade. A
segunda refere-se ideia de que
a procedncia africana pode ter sido um dos critrios utilizados
para as escolhas dos
companheiros de matrimnio. Isso pode ser possvel de evidenciar a
partir da anlise dos
grupos de procedncia dos pais e das mes, bem como da recorrncia
a escolha de parceiros
por outros de uma mesma procedncia.
Atravs da anlise dos registros de batismo possvel reconhecer
alguns grupos de
procedncia j referidos anteriormente: em maior nmero est congo,
angola, benguela,
rebolo, monjolo, africano de nao e, principalmente, costa.
Moambique aparece pouco, se
comparado aos africanos adultos, apenas 4 vezes; destaca-se a
referncia a procedncia guin:
18 vezes. Nesta configurao aparecem dois dados importantes em
relao s famlias
nucleares africanas: a pouca presena de pais de procedncia
moambique e, em contrapartida
um nmero significativo daqueles pertencentes a guin.
Analisando-se esses dados a partir da
questo do trfico atlntico percebe-se que Moambique aparece
pouco, porque vai ser
incorporada ao trfico, principalmente a partir de 1811
(Florentino, 1997, p. 80), e a
procedncia guin, utilizada na metade do sculo XVIII para se
referir regio do Congo e de
32 ACMF. Livro Catedral, Batismo de Livres, Desterro,
1792-1797.
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Angola na frica Central Atlntica, cai em desuso ao longo deste
mesmo sculo (Soares,
2000, p. 60).
Essas evidncias permitem considerar que j havia um nmero
significativo de
famlias nucleares de cativos africanos formadas antes do
incremento do trfico atlntico em
Desterro a partir de 1812 (Malavota, 2007). Outro dado vem a
corroborar isto: das 261
crianas filhas de famlias nucleares de africanos, 181 (69,35%)
delas foram batizadas entre
os anos de 1788 a 1812 e 80 (30,65%) aps esse perodo, at o ano
de 1841, quando foi
encontrado o ltimo registro. Portanto, mesmo com a intensificao
do trfico no houve uma
ampliao do nmero de famlias africanas33.
Em relao escolha dos parceiros percebe-se que 73 casais (71,57%)
formaram suas
famlias com do mesmo grupo de procedncia e 29 (28,43%) destes
com de procedncias
diferentes. Portanto, pode-se considerar primeiro a existncia de
uma certa regularidade nestas
escolhas e segundo que estas podem ter ocorrido a partir do
critrio da procedncia34.
Para alm de apontar indcios acerca da constituio das famlias
africanas a partir do
critrio da procedncia possvel pensar numa outra questo: a
reinveno das identidades.
Os registros de batismo trazem, quase sempre, a referncia
procedncia do pai e da me,
mas o que se observou acerca desta questo que essa procedncia
variava no caso dos pais
que batizaram mais de um filho. Tal fato explica o porqu de se
encontrarem diferentes
referncias procedncia de uma mesma me e pai. Este o caso de
Joaquina e Antnio,
cativos de Manoel Fernandes Lea. Quando Benedita, a primeira
filha do casal, foi batizada
em 1794 esses foram referidos como da guin; em 1797 na ocasio do
batismo de outra filha,
Genoveva, eles aparecem como sendo africanos de nao; quando
nasceu Maria, em 1799, a
33 Em relao a essa questo, segundo Faria, no sculo XIX, em todas
as regies brasileiras, incluindo quelas
que possuam alta legitimidade, as taxas passaram a ser
decrescentes. Esse fato resulta das transformaes
ocorridas na sociedade brasileira ao longo do sculo a vinda da
Corte portuguesa para o Brasil, os tratados com a Inglaterra, a
abolio do trfico negreiro que acabaram por reduzir a oferta de
escravos no Brasil. Consequentemente, os proprietrios passaram a
interferir mais na questo da constituio do matrimnio dos
seus escravos, haja vista que, assim procedendo, poderiam dispor
mais facilmente da sua propriedade. Por sua
vez, devido ao aumento considervel de africanos nas escravarias
devido ao trfico, possvel ter ocorrido um
aumento da influncia de prticas africanas no cotidiano dos
escravos, de forma que, o sentido atribudo ao
matrimnio pelos escravos africanos pode ter mudado (1998, p.
339-340). 34 A escolha entre parceiros de um mesmo grupo de
procedncia tambm foi encontrada por Soares (2000) para
o Rio de Janeiro e Schwartz (1998).
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procedncia volta a ser a mesma de quando batizaram a primeira
filha: guin; e, finalmente,
quando batizaram Francisco, em 1803, eles so referidos como
pretos da costa35.
O mesmo ocorreu a outro casal: Joaquina e Antnio, cativos de
Dona Anna Mauricia
Rosa de So Felix. Eles foram referidos como sem procedncia no
batismo da primeira filha
Joanna, em 1829; em 1823 e 1824, respectivamente, no registro de
Damianna e Agostinho
eles aparecem como sendo de procedncia congo; e em 1825, no
batismo de Delfino, quanto
procedncia so referidos como pretos da costa36. Ocorrncias
semelhantes encontram-se
tambm, nos registros de filhos de mes cativas e forras, de
filhos de casais africanos forros,
nas referncias aos padrinhos e madrinhas cativos africanos e
forros.
sabido que quem realizava o registro do batismo era o coadjutor
ou o vigrio da
Igreja (Soares, 2000) e que, portanto, a referncia procedncia de
forma diferenciada pode
ter sido resultado da viso desses em relao aos africanos de
diferentes procedncias e
categorias jurdicas. Por outro lado, no caso dos cativos, essa
referncia pode ter sido dada
pelo senhor. Mas possvel tambm, que os prprios africanos,
inclusive os cativos, possam
ter se autoidentificado de diferentes formas nos vrios
momentos.
Em qualquer um dos casos, a evidncia sugere que as formaes
identitrias poderiam
estar sendo avaliadas e ressignificadas tanto por parte dos
coadjutores e senhores, quanto pelo
conjunto da populao africana, escravos e forros. Evidentemente
as referncias das
procedncias foram construdas dentro de uma lgica do trfico no
contexto escravista, mas
africanos se conheciam e se identificavam para alm dos
significados atribudos pelas
autoridades e senhores. Talvez muito mais que isso: africanos
reinventavam as suas
identidades visto que no contexto da dispora essas nunca seriam
fixas ou definitivas (Hall,
2003).
Se africanos cativos estabeleciam, em sua maioria, vnculos
matrimoniais com
africanas, em relao aos forros encontrados nos registros dos
Livros de Batismo dos Livres,
esses vnculos vo se constituir de forma diferenciada. Das 58
famlias forras dos registros de
batismo, 11 so compostas somente por crioulos, 19 no aparece a
referncia a procedncia
35 ACMF. Livro Catedral, Batismo de Escravos, Desterro,
1771-1798 e 1798-1818. 36 ACMF. Livro Catedral, Batismo de
Escravos, Desterro, 1818-1840.
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dos pais e 25 famlias nucleares so constitudas por africanos37.
Os dados, provenientes dos
registros de batismo de crianas forras, indicam que houve uma
tendncia de os africanos
forros contrarem matrimnio com crioulos 18 em relao aos 6
ocorridos entre parceiros de
procedncia africana. Esse dado indicativo que, para alm da
procedncia, outros critrios,
possivelmente, foram estabelecidos pelos africanos forros para a
construo de seus vnculos
familiares. Alusiva a esta questo tambm a existncia nos
registros de trs casais em que
um dos cnjuges era cativo: uma me e um pai de procedncia
africana e um pai crioulo. No
caso desta me, mesmo sendo cativa, seu filho foi registrado como
forro38.
No possvel inferir quais os motivos que levavam homens forros a
se unirem a
mulheres cativas, visto que estas comprometiam os seus
descendentes escravido. Por outro
lado, para estas mulheres, a escolha de um companheiro poderia
significar a possibilidade de
criao de vnculos pessoais para alm da sua condio jurdica, bem
como a compra da sua
alforria. No entanto, pelo menos oficialmente, essas relaes no
eram as predominantes
nos registros de batismo. Segundo Wagner, entre 1800 a 1819 na
Igreja Matriz do Desterro,
das unies realizadas em 24 destas pelo menos um dos cnjuges era
de condio forra, mas a
escolha dos parceiros ocorria preferencialmente entre aqueles
que possuam o mesmo estatuto
jurdico, visto que em 79% dos casamentos os cnjuges eram
libertos (Wagner, 2003, p. 1-
17).
Observando especificamente as procedncias dos africanos forros
que casaram entre si
possvel apontar para a possibilidade de ter havido por parte
destes um critrio de escolha
baseado no pertencimento a um mesmo grupo de procedncia.
A tendncia dos africanos forros endogamia tambm foi percebida
por Wagner em
pesquisa realizada em Livros de Casamentos da Igreja Matriz,
entre 1800 a 1819. Segundo a
autora, dos 8 noivos africanos, 7 deles se casaram com uma
parceira africana, a exemplo de
Antnio Jos e Maria Francisca, ambos forros de procedncia
benguela, que se casaram em
1805 e de Manoel e Luiza, ambos forros da guin, que contraram
matrimnio em 1807
(Wagner, 2003).
37 ACMF. Livro Catedral, Batismo de Livres, Desterro, 1778 a
1850. Estes dados foram obtidos atravs da
leitura e transcrio de 8 livros, referente ao perodo da
pesquisa. 38 ACMF. Livro Catedral, Batismo de Livres, Desterro,
1802-1820 e 1820-1829.
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A predominncia de casamentos entre africanos e crioulos forros,
a evidncia da
existncia de casamentos entre forros e cativos, bem como a
escolha de alguns africanos em
terem parceiros do mesmo grupo de procedncia, evidenciam a forma
como criaram seus
vnculos familiares e indicam o processo de reinveno das
identidades.
Em relao aos africanos e crioulos forros que constam nos
registros de batismo,
alguns so procedentes de outras localidades e que acabam criando
seus vnculos afetivos e
familiares no Desterro, a exemplo do casal Joaquim Gonalves e
Anna Joaquina, ambos
forros, ela de So Jos (Freguesia do Continente) e ele de So
Francisco39, e de Joaquim
Ribeiro da Silva, um pardo forro natural da Ilha Grande que
acabou se casando com Anna
Maria, africana da costa, cativa de Manoel Pereira de vila, em
1804 no Desterro (Wagner,
2003, p. 4).
Uma hiptese plausvel para essa mobilidade de forros para outras
localidades pode
estar ligada a questo apontada por Faria, segundo a qual, homens
pobres permanecem pouco
tempo num mesmo lugar. Sua caracterstica marcante a extrema
mobilidade. Mover-se em
busca de melhores condies de sobrevivncia, tornava-se uma
atitude previsvel e esperada;
identificava-se para os forros e seus descendentes, como o
exerccio da liberdade (Faria,
1998, p.102).
Esse deslocamento no ocorria de maneira aleatria. Poderia ser
resultado de escolhas
individuais em contextos especficos, como por exemplo, a busca
por reas urbanas nas quais
os libertos e seus descendentes pudessem arrumar trabalho. Em
contrapartida, o deslocamento
pode, tambm ter significado uma tentativa por parte do liberto
de libertar-se da antiga
condio cativa e viver sobre si (Faria, 1998, p. 111; Mattos,
1998, p. 45). De uma ou outra
perspectiva significava, fundamentalmente, a liberdade de
escolha estendida a todas as
questes da vida.
CONSIDERAES FINAIS
As trajetrias aqui apresentadas so indicativas de um contexto
complexo,
transcultural, no qual as identidades so reinventadas e as
relaes criadas atravs de vnculos
39 ACMF. Livro Catedral, Batismo de Livres, Desterro, 1802-1820
e 1820-1829.
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afetivos e de compadrio. Essas histrias mostram a capacidade de
criao e apontam para a
tese que vem sendo construda pela historiografia ao longo das
duas ltimas dcadas: a
escravido e o parentesco no so coisas excludentes. O fato de
serem aviltados com a
condio jurdica da modernidade europeia no exclua, obviamente, os
africanos, da
condio, das necessidades e dos desejos humanos.
As trajetrias evidenciam a multiplicidade de escolhas, de
vivncias, de arranjos,
caractersticos aos africanos na dispora. Apontam para a forma
como esses criaram seus
vnculos familiares e indicam como reinventaram suas identidades
num contexto de uma
cidade porturia, multicultural. Fizeram escolhas e lidaram com
as incertezas de sua
existncia de uma forma que pode parecer ambgua para ns, homens e
mulheres do sculo
XXI, mas intrnsecas em suas vivncias, dentro de um contexto e de
um tempo.
Todas essas prticas e os vnculos sinalizam para a ideia de que o
passado no um
agregado de histrias separadas, mas uma rede de relaes e aes que
se influenciam e so
interdependentes. Nesta perspectiva, a vida, o cotidiano, a
histria sempre modificada pelo
sujeito a partir do momento em que esse toma uma deciso ou faz
uma escolha ou estabelece
um vnculo de compadrio ou de pertencimento.
Nessa perspectiva, Russel-Wood aponta algumas questes em relao
as sociedades
africanas que possibilitam compreender a fora desses homens e
mulheres em criarem
possibilidades de sobrevivncia e vnculos familiares no contexto
da dispora. Segundo o
autor, os africanos de diferentes sociedades eram marcados pela
diversidade; inventividade;
criatividade; disponibilidade para inovao; adaptabilidade e
habilidade de lidar com a
mudana; bem como, pela estabilidade e continuidade perceptvel
atravs do
compartilhamento de culturas e valores comuns (2001,
p.21-23).
Em outras palavras, o trfico atlntico, o desenraizamento e a
escravido dos africanos
destruiu os vnculos que estes possuam na frica, mas no a
conscincia que permitiu a
reinveno das identidades e o estabelecimento de novos vnculos
familiares no contexto da
dispora. Alguns desses vnculos foram relativamente longos.
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