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Famlia como Grupo?
Poltica como agrupamento?
O Serto de Pernambuco no mundo sem solidez
Jorge Mattar Villela1
Universidade Federal de So Carlos
RESUMO: Proponho neste artigo discorrer sobre um problema muito
pon-tual: o modo como, num municpio do Serto de Pernambuco, certos
cole-tivos fazem e desfazem famlia, fazem e desfazem agrupamentos
polticos.Tentei ainda inspecionar o modo como um determinado nmero
extensode pessoas capaz de mobilizar certos conceitos, emoes,
memrias e obje-tos para si mesmas e para os outros, visando fazer
famlia e fazer poltica.
PALAVRAS-CHAVE: poltica, eleies, famlia, nepotismo,
Pernambuco,Serto.
I. Introduo
Proponho neste artigo discorrer sobre um problema muito pontual:
omodo como, num municpio do Serto de Pernambuco, certos coleti-vos
fazem e desfazem famlia, fazem e desfazem agrupamentos polti-cos.
Tema pontual, com desdobramentos muito amplos, entre os
quaisencontra-se o do Nepotismo. Evocador tambm de mltiplas
entradastericas que envolvem as discusses presentes numa literatura
acerca dafamlia e do parentesco, sobretudo aquela que se ocupou das
relaes
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poltica-famlia. Pretendi expor a associao entre poltica
eleitoral (con-seqentemente, as formaes de grupos partidrios no
sentido amplodesta expresso) e a produo de famlia por meio do
arsenal conceitualdisponvel para os interessados em ambos os
processos. Tentei ainda ins-pecionar o modo como um determinado
nmero extenso de pessoas capaz de mobilizar certos conceitos,
emoes, memrias e objetos parasi mesmas e para os outros, visando
fazer alguma coisa: fazer famlia efazer poltica.
A esse respeito vale dizer que todas as discusses tericas e os
dadosetnogrficos decorrentes no comportam uma inteno comparatista
eno obedecem ao princpio das reas culturais. Eles visam antes
evoca-es (Tyler apud Strathern, 1991, p. 7 ss.), ou seja, a
capacidade de etno-grafias ressoarem umas nas outras a despeito das
circunstncias geogr-ficas ou culturais em que se localizem ou que
as envolva. Portanto,referncias a Fiji, a Creta, aos amerndios, aos
africanos, no so compa-raes. Elas so, antes, meios de promover
dilogos em zonas cegas, pro-vocar conversas (em lnguas
desconhecidas) de dados etnogrficos ex-ticos uns aos outros, de
modo a permitir que se olhe o problema dasrelaes familiares e das
relaes polticas existentes entre ns desvincu-lados dos seus
pressupostos universais, decorrentes de duzentos anos debiologia e
de democracia representativa. Mas podem tambm decorrerde discusses
em torno a problemas de abordagem terica (mas recor-rente ao
etnogrfico) concernentes s relaes entre poltica e famlia;como o
caso, por exemplo, de Bourdieu, de seus objetos
empricosprivilegiados e dos que partilham da vasta inspirao de sua
obra.
Os dados exticos ao meu ambiente de pesquisa devem-se ainda auma
outra questo, para alm da procura de ferramentas
conceituaisdistantes: por que admitimos que, por exemplo, os
Tenetehara fazemfamlia, que os Zumbagwa e os malaios de Langkawi
formam parentespor fluxo de substncia e por contgio, mas
consideramos que a nossa
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famlia biolgica e que deve ser para a poltica (para a democracia
re-presentativa) um elemento moralmente impermevel e aparece-lhe
nohorizonte como um poluente, por um lado, como um
instrumentodiscursivo, por outro, para efetivar relaes provenientes
de outras regi-es sociais? Mesmo quando sabemos que isso nunca
acontece em partealguma. Mesmo quando desde h tempos se fala em
metforas do pa-rentesco para o Estado-nao (como o fez Herzfeld,
1992, p. 28-34), equando essas metforas so levadas to a srio a
ponto de milhares po-rem em risco as suas vidas em seus nomes,
conforme lembrou Carsten(2004, p. 162). No fazemos famlia,
considera-se. Apenas aproveita-mos retoricamente um objeto natural
ou a usamos em ambientes nopertencentes a ela de direito, para
ajudar os parentes. Por conseguinte,tanto numa quanto noutra
situao, a famlia entre ns entendidacomo um dado, por certo biolgico
(ainda que essa palavra assuma mes-mo entre ns uma boa variedade de
sentidos), que em determinadassituaes conspurcada pelas prticas
poluentes da poltica, da econo-mia, da violncia.
Os dados de campo concernentes ao meu caso especfico de
pesquisaso provenientes de duas modalidades de aquisio: uma delas
decor-rente de permanncias minhas, intermitentes por certo, desde h
dezanos numa regio que recobre trs municpios do que
genericamenteconsiderado Serto de Pernambuco chamado por Marques
(e.g. 2002) e adotado por mim (e.g. 2006) de Monte Verde, Monsanto
eJordnia. Os dois primeiros situam-se propriamente na mesorregio
doSerto e na microrregio do Vale do Paje, centro do estado. O
terceirolocaliza-se na mesorregio do So Francisco, microrregio de
Itaparica,centro-sul, portanto, do estado. Meus conhecimentos
acerca destes lu-gares circunscrevem-se majoritariamente ao que
tange ao urbano, em-bora uma diviso rural/urbano naquelas
localidades seja delicada e sutil(tema que no abordarei aqui).
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Os trs municpios, em que pese a pouca distncia que os
separa,diferem muito entre si, para alm das dessemelhanas evidentes
de di-menses, populaes, colgios eleitorais, produo econmica,
clima,vegetao, arrecadao etc. Essas diferenas comentei-as em outros
lu-gares (e.g. Villela, 2008). Para a diferena relevante neste
artigo, sufi-ciente mencionar outra fonte de dados, mais especfica:
trs visitas a cam-po, com durao de 40 dias cada, durante o que se
chama localmentede poca da poltica. Por outras palavras, o perodo,
certamente flutu-ante e de marcao imprecisa, durante o qual fala-se
e vive-se intensa-mente o problema da escolha de candidatos para
cargos eletivos. Nastrs visitas (2000, 2004, 2008), estive em campo
nos trinta dias queantecederam e nos dez que sucederam as eleies
municipais. Minhasdescries, portanto, recorrem a estes trs perodos,
imersas numa expe-rincia de dez anos de campo que me permitiu
isolar Jordnia como umcaso especial para discutir os problemas que
aqui se colocam: a impossi-bilidade de se falar, relaxadamente, de
nepotismo; a fabricao da fam-lia como atualizao de uma
semi-existncia (virtualidade) familiar; aparticipao da poltica para
a atualizao dos vnculos familiares semi-existentes (virtuais).
Dentre todos os municpios, Jordnia dos quemais cola (ou ao menos o
que o faz mais explicitamente, com mais sin-ceridade) a poltica
partidria fabricao da famlia.2
Perguntar-se- com justia se em meu campo de pesquisa a produ-o,
a circulao e o consumo, o que se poderia chamar de economia,tambm
no fazem famlia. Apenas os votos, os partidos, as eleies, oque
poderia ser chamado de poltica ou as vinganas, os tribunais,
asacusaes, ou o que poderia ser chamado de violncia, fazem
famlia?Os arranjos concernentes s confrarias, s irmandades, s
prefernciasdeste ou daquele credo, as diversas relaes de compadrio,
ou o que secostuma chamar de religio, no fazem, enfim, famlia?
Certamente,sim. Porm, este artigo pretende mostrar alguns modos de
se fazer fa-
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mlia e poltica no serto de Pernambuco. No mais, no menos, doque
isso.
Finalmente, uma palavra de elucidao acerca do que chamo de
oscolaboradores locais de pesquisa que me permitiram refletir
parcialmen-te acerca deste problema. Quando me refiro livremente
que as pessoas,as populaes, os coletivos do serto fazem ou pensam
tal ou qualcoisa, talvez no seja indispensvel lembrar que no falo
de todos oshabitantes do Vale do Paje, de Itaparica ou de quaisquer
dos municpi-os isoladamente ou em conjunto; e tampouco de todos os
momentosda vida de quem quer que seja. Refiro-me a certas pessoas
que tm apoltica como foco (embora no sejam necessariamente polticos
profis-sionais, e nem sequer ocupantes de cargos pblicos, de
confiana oupor concurso), que padecem da sua ao e que agem sobre
ela. Falo dosque, em alguns momentos (mais longos ou mais breves e
so dessesmomentos que este texto trata), participam da poltica,
sendo esta par-ticipao muito diversa (candidatura, trabalho
partidrio ou eleitoral,cargo pblico, dependncia ou usufruto dos
recursos pblicos, ajudarecebida por algum candidato, memria
familiar que se prende de al-gum modo a um passado poltico etc.).
Eles ou elas, normalmente, enos momentos de intervenincia, costumam
ligar, sobretudo em Jord-nia, poltica e famlia, tornando-as
indissociveis a tal ponto que se podefalar numa co-produo de uma na
outra e vice-versa.
I.1. Breve resumo do Argumento
A poltica no Serto de Pernambuco aparece como um amlgama
dediversos aspectos: memria, violncia, famlia, territrio. Este
trabalhopretende mostrar que, a rigor, eles mais que interferem na
poltica, sen-do, em certo nvel, um produto seu, assim como seus
produtores.
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Nos municpios do serto de Pernambuco onde fao pesquisa de cam-po
desde 1999, muito embora a famlia no seja um a priori, ela
,paradoxalmente, um dos elementos fundamentais para seus
habitantes.Elemento fundamental, precisa ser fabricada, embora
compreendida,simultaneamente, como elemento dado. So prticas
discursivas que ela-boram cuidadosamente a tecitura de uma trama
complicada e frgil,sujeita a rompimentos temporrios, aberta a
costuras, alvo de perma-nente cuidado e de uma poltica atenta.
Famlia3 deve ser alvo de ocu-pao e ateno de todos e de cada um que
pretende fazer parte de umagrupamento deste tipo, para todo aquele
que pretende fazer de seuagrupamento uma teia extensa e de cada fio
uma regio de intensidade.Precisamente porque no existe, no Vale,
famlia como dado. Por outraspalavras, embora os sertanejos como os
norte-americanos consideremque os laos de famlia baseados no sangue
no so extinguveis ou mo-dificveis (cf. Schneider, 1980, p. 24),
sabido, ao mesmo tempo, queeles podem ser desfeitos.
II. Os problemas
Em cincias sociais, filosofia e histria parte-se no raro de um
princ-pio, oculto em certos casos: existem universais como o
Estado, talvez amatriz ou a fundao de toda idia de universal, e
algumas derivaesde totalizao e unificao que se apresentam de modo
variado, sempresob a forma de um centro de poder.4 Ademais,
posicionamos o Estado(entendido a partir deste ponto neste trabalho
como um rearranjo espe-cfico das relaes de foras) ou um centro de
poder similar, ou aindaoutro universal, como a chave de
inteligibilidade de todos os fenme-nos sob anlise.
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No caso dos estudos acerca das relaes de poder, ao menos se
leva-das a srio as anlises de Michel Foucault, o estabelecimento de
um cen-tro, de um motor imvel ou de uma realidade transcendente
como meioe fonte de compreenso dos fenmenos polticos, no que toca
moder-nidade ocidental, remonta Idade Mdia e percorre os tempos at
hoje,sob a forma de uma teoria jurdico-poltica que teria como
protagonistaa figura do soberano e como ponto de partida a
interdio, a lei. Assim,tanto na Europa quanto nas Amricas, toda a
reflexo acerca da polti-ca, at pouco mais de trinta anos foi feita
em torno da e submetida figura de um centro de poder poltico para
onde confluam todas asobedincias e desde onde emanavam todos os
poderes. Figura do sobe-rano, fantasma da centralidade, contraparte
slida para a poltica do queo dado biolgico para a famlia. Teoria
jurdico-poltica, por certo,mas igualmente filosfico/religiosa:
teoria neoplatnica, plotiniana, dasrelaes de poder, cuja imagem
formulada a de um centro desde ondeemana um poder que perde
intensidade e eficcia na medida em queruma para suas franjas. Toda
a interpretao do pensamento polticoresponsvel pela idia de
isolamento, da ausncia de Estado e de Esta-do paralelo devedora
deste ponto de vista que depende, decerto, dacriao de um ncleo
slido, seja ele sob a forma de um lder, de umchefe, de um patro, de
um coronel, de um senhor, de um aparelho, deum modelo estatal.
Tudo se complica para os antroplogos, defronte que esto de
for-maes cujo pensamento dispensa (ou no se elaborou sob) as
mesmasmatrizes filosficas. Criaturas hbridas, forjados entre a
episteme que nosformou e a fonte de nossa prpria seduo, os
antroplogos escolhemoss vezes o conforto de casa, mesmo assumindo o
risco de nos levantar-mos da poltrona e depois sairmos da varanda.
Se, como j se mencio-nou (Palmeira & Goldman, 1992, p. 3) a
antropologia social britnica
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pde efetuar desde a dcada de 1940 um deslizamento em relao a
esseponto de vista, ou seja, se foi capaz de conceber a existncia
de sistemaspolticos na ausncia do Estado, curvando a perspectiva
estatal aos da-dos provenientes da experincia de campo na frica, no
muitas vezesaventurou-se a pensar o poder desde o exterior da
perspectiva jurdico-poltica. Costumou-se tratar os fenmenos
polticos das sociedades ex-ticas e o das prprias sociedades dos
pesquisadores, tanto sob o pontode vista do Estado, quanto sob o
ponto de vista da interdio. Mesmoquando deslindaram os mistrios de
sociedades que podiam regular-se asi mesmas sem um Estado central,
os antroplogos obrigaram-se a colo-car em seu lugar alguma outra
coisa, um outro slido, capaz de cumpriras suas funes. Por muito
tempo, as excees foram raras e honrosas.5
Encarcerada no interior da perspectiva estatal, a teoria poltica
brasi-leira recorreu, desde a Primeira Repblica, figura do coronel
e, poste-riormente, desde h sessenta anos, ao conceito de
coronelismo.6 Querdizer, uma variante local da noo de patronagem,
da idia decentralidade do poder, de um centro slido emissor ou
retransmissor demeios de poder. Esta formao poltica, a despeito das
variaes de suadescrio e das tentativas de definio e sntese
formuladas ao longo dasdcadas, teria sido capaz de conjurar em seu
nome, em nome dos seuslaos de parentesco, do seu cl (a faceta do
sangue correlativa solidezdo centro poltico), para lembrar Oliveira
Vianna (1987), toda umamassa amorfa de seguidores e um conjunto
ilimitado de recursos. Nateoria poltica brasileira, desde h vrias
dcadas at hoje, a famlia, sobo nome de cl patriarcal, famlia
patriarcal, nepotismo ou seja l o ape-lido que se lhe empreste
quando se lhe quer atribuir capacidade criado-ra de poder poltico,
esteve no centro das discusses.7 Ela foi tratadatanto como grade de
inteligibilidade, quanto como agente exgeno, in-filtrado, ilegtimo,
que se deve expulsar deste domnio.
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Em outro lugar (Villela, 2005), discuti longamente o problema
dafigura do coronel e da noo de coronelismo tomando como
objetoemprico o serto de Pernambuco durante a Primeira Repblica e
emnosso tempo. Claro que torna apenas vaga a silhueta de uma
multidode agentes cuja fora e heterogeneidade uma conjugao visa
interrom-per ou canalizar, a figura do coronel e a noo de
coronelismo obstru-ram durante algum tempo anlises fecundas no
campo da poltica noBrasil, assim como a famlia patriarcal bloqueou
a compreenso daheterogeneidade e diversidade da formao das famlias
brasileiras.Observou-se (Fortunato, 2000), a figura do coronel
apenas uma ten-so, um efeito de superfcie, um dispositivo, uma
construoimagtico-discursiva, um smbolo ou simulacro do poder
(ibid.,pp. 5 e 9) que pode ter triunfado aqui e ali e ter sido
desmanchado emoutros momentos, em outros lugares, em outros nveis
da existncia.Tal simulacro foi considerado com freqncia em estado
de promiscui-dade com a famlia.
A menos no que toca a meu caso de pesquisa, o mundo da polticano
nem mais e nem menos povoado de corpos slidos do que o
doparentesco. H, se assim me posso expressar e para usar um
conceito dafsica das partculas, foras-fortes que solidificam aqui e
acol as forma-es sem solidez. Embora esta anlise seja extensvel a
diversas regiesbrasileiras, para diversos nveis da poltica e para a
etnografia da polticade outros pases, o que ser exposto a seguir so
os modos como, emalguns municpios do serto de Pernambuco, sobretudo
Jordnia, a fa-mlia objeto de fabricao, de solidificaes
impermanentes, do mes-mo modo como o a poltica. Mais do que isso,
que a poltica um doselementos atravs do qual se faz, desfaz-se e se
mantm famlia.
O tema e, at certo ponto, a abordagem deste artigo no so
novos.8
Por certo, desde h 25 anos a produo antropolgica acerca da
famlia
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no Brasil no apenas proliferou em nmero, mas ampliou-se em
quali-dade e sofisticao de um modo que seria intil e injusto citar
algumque outro exemplo e deixar tantos outros na excluso. No
obstante, naconjuno do campo da famlia propriamente dita com o da
poltica,especificamente da poltica eleitoral, ou seja, no campo da
democraciarepresentativa, os trabalhos foram menos prolficos. Mas
valer enfatizarque este texto, tema e abordagem no seriam possveis
sem a inspiraode diversos trabalhos produzidos ao longo de
aproximadamente 15 anosno mbito no NuAP.9
A constituio da poltica envolta nos ideais da democracia
represen-tativa nos acostumou a compreend-la como um conjunto de
teorias ede prticas idealmente puras uma espcie de ideal que jamais
se realizaem parte alguma, como diria Veyne (1984) da democracia
grega des-garradas das coletividades em que estavam, ou esto,
embebidas. Assim,sempre que nos deparamos com aspectos
classificados como no pol-ticos (inclusive a Cincia, para lembrar
as purificaes modernas queapenas fazem proliferar os hbridos que
acabamos por escamotear ouignorar, para lembrar a j clebre tese de
Latour, 2000) somos foradosa denunci-los como espcies de poluies ou
a entend-las como cam-pos. Uma delas, a intromisso da famlia na
poltica, recebe o nomecorriqueiro de nepotismo. Conforme j
apontaram alguns cientistas so-ciais (e.g. Herzfeld, 1992; Kuper,
1982; Fabian, 1983; Carrier, 1995;Donzelot, 1986 e Nathan, 2001,
muito recentemente, Jullian, 2008ae 2008b), desde pontos de vista
bastante distintos e com objetivos mui-to diferentes cada um deles,
o ocidente moderno tentou livrar-se daagncia das coletividades
familiares em suas outras zonas de atividade,como, por exemplo, a
poltica. Tentou, com xito, se aderirmos s tesesde Donzelot (ibid.,
p. 47 e passim), desenraizar a famlia de suas co-nexes coletivas,
acompanhando a fabricao do indivduo moderno.Esforou-se, enfim, para
reduzir sua ao poltica a um grau prximo de
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zero, assim como minimizar a ao poltica dos indivduos, agentes
po-lticos intermitentes nas democracias modernas, circunscrevendo-a
regio em que podia atuar a Razo, este grande soberano na Idade
Mo-derna. Produziu uma ideologia segundo a qual supe-se mais
liberdadena medida em que somos capazes de desatar os laos que nos
ligam aosdemais (Nathan, 2001, p. 52).
Se verdade que diversos antroplogos brasileiros, como
Marques(2002), Heredia (1996), Palmeira (1992, 1996), Comerford
(2003), porexemplo, assumiram a positividade da participao da
famlia na polti-ca, o problema que pretendo tratar aqui o da condio
de dado ou desujeito de contornos, qualidades e funes pr-definidas
desse agente.
II.1. A poltica, a famlia, os antroplogos
No caso da poltica eleitoral, a famlia aparece, na generalidade
dos es-tudos, como um campo subterrneo (nos dois sentidos da
palavra: por-que escondido, em virtude da disjuno que o ocidente
moderno criouentre os dois domnios; porque base e fundamento, na
juno ilegti-ma de um divrcio institucionalmente exigido) que
garante a formaode grupos polticos. Mesmo em autores contemporneos
ou posterioress crticas de Schneider (1972, 1984) aos estudos
parentesco, comoAbls (2001, 2002), a insero de muitos dos agentes
polticos, mastambm a explicao de seu xito, na disputa por cargos
eletivos dademocracia representativa dada pela famlia. Parece
ter-lhe passadoao largo a reflexo acerca da consanginizao (bem
sintetizada porCarsten, 2004, pp. 136-162). Abls quem sugere a noo
de polti-co-herdeiro: num certo sentido (o outro apenas metafrico)
o pol-tico que obtm sua legitimao como candidato junto ao
eleitorado porser filho ou membro de uma famlia. A possibilidade de
a poltica pro-
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vocar herana tratada separadamente, como uma transmisso de
outranatureza, no propriamente familiar. Nenhum trao de poltica
comofabricante de parentesco. Ainda quando, como em Briquet (1997),
cons-tata-se o aspecto em rede da famlia, retorna-se a ela como
substrato.Mas sempre possvel que se considere tambm o pertencimento
comoprodutor do grupo e no o grupo como gerador da pertena.
Isso,Briquet e outros so capazes de observar. Mas em geral esta
afirmaono levada a efeito na anlise, pois se considera tambm que os
mem-bros de um mesmo grupo de parentesco devem partilhar as mesmas
li-gaes partidrias (ibid., p. 46), assim como o partido entendido
porBriquet como conglomerados de famlias aparentadas entre elas
(ibid.,p. 44).
Diferente dessa abordagem a de Herzfeld, ao falar das relaes
en-tre parentesco e poltica em Creta. Segundo sua anlise (Herzfeld,
1985,pp. 92-105), a tradio e a agnao podem ou no ser acionadas
politi-camente segundo a modulao dos argumentos polticos. Em
Creta,existe uma potica da interao social em ato (ibid., p. 94) que
permi-te que o passado, ou seja, o parentesco agntico, para este
caso, funcio-ne como uma espcie de recurso escasso em disputa
poltica de modoque o agnatismo seja o alvo constante da
sobrecodificao poltica (ibid.,pp. 95 e 98). O parentesco dado
contingencialmente, por meio derecursos retricos, que possibilitam
a labilidade das relaes de famliaque, portanto, no so um dado:
devem ser fabricadas ou podem serdesmanchadas. Tudo isso franqueado
pelo ponto de vista segmentardo parentesco agntico que permite
fazer famlia pela segmentao po-ltica (ibid., p. 103).
Os antroplogos seguidores de Bourdieu consideraram a formaodos
laos de parentesco decorrentes das exigncias polticas e econmi-cas.
No custa lembrar que Bourdieu levou a efeito a tentativa de
deses-sencializar as relaes familiares. A argumentao bourdiana
(Bourdieu,
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1963; 1972) da lgica prtica versus a lgica estrutural no caso do
cle-bre casamento rabe com a bint elamm, a prima paralela
patrilateral,girava em torno das estratgias que permitiram ver em
cada casamentodeste tipo um efeito de funes externas s estruturas
do parentesco.Por outras palavras, seu interessa girava em torno
fabricao das rela-es de parentesco e conseqente uso delas, mas
tambm de seu uso eda fabricao decorrente. O parentesco, como se
sabe, aparece em seustrabalhos como portador de um sentido prtico
ou, ainda melhor, deum sentido do jogo. Retornarei a esse ponto do
parentesco em Bourdieupara mostrar as diferenas da sua argumentao
para aquela decorrentedo que meu trabalho de campo me forneceu.
Pois, luz de meus dadosde pesquisa, o esforo de Bourdieu corre o
risco de redundar numa com-preenso da famlia como quimera ou
disfarce de outras relaes sociais,alm de sustentar uma posio
instrumentalista do parentesco quetende a ignorar as qualidades
emocionais com as quais as relaes deparentesco esto imbudas, para
retomar o argumento de Carsten(2004, p. 24). Parece-me, e reconheo
que minha elaborao aqui muito esquemtica, a substituio da famlia
como essncia pela essen-cializao da prtica, da utilidade e do
interesse.
Com alguma freqncia esqueceu-se, contudo (embora esse no
sejapropriamente o caso de Bourdieu), de mostrar como a poltica,
entreoutros elementos, capaz de compor e de decompor a famlia.
Esque-ceu-se, de forma contumaz, de mostrar que a famlia vetor de
polticae produto da poltica. Persistiu em certos casos a idia
insidiosa de umafamlia natural (em transformao, por certo, mas
natural) cujos laosestariam dados partida, sem necessidade de
fabricao e manuteno.Desde uma abordagem bastante mais ampla, Ingold
diz, com sentidocritico: o sangue o material real que pulsa nas
veias das pessoas e pen-sado como algo como o que flui de pais para
filhos. Consanginidade,ao contrrio, uma abstrao ao menos no
contexto da teoria do pa-
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JORGE MATTAR VILLELA. FAMLIA COMO GRUPO?...
rentesco (Ingold, 2007, p. 111). Tratar-se-ia, seguindo Ingold,
da in-sistncia na concepo que separa substncias reais, dadas,
verdadeiras,de relaes simblicas, imaginrias, fabricadas. Insistncia
em dividir omundo humano em mundo natural e mundo artificial, mundo
naturale mundo cultural. Uma distino semelhante a que aparece nas
defi-nies de famlia e household, correlativa ao sangue e
contingidade,respectivamente (Yanagisako, 1979, p. 162). Parentesco
real e parentescofictcio, como se sabe, uma diviso cmoda para um
problema grave.Trata-se de imaginar um parentesco uno biolgico e
real que represen-tado diferentemente pela diversidade das
culturas; de pensar a metforae o idioma do parentesco. O problema
coloca-se quando os intervenien-tes consideram isso que chamamos
metforas e idiomas como realida-des vivas (cf. Carsten, 2004, p.
162).10
III. O serto, a famlia, a poltica
Pois os resultados de minhas pesquisas de campo me fazem pensar
que,se a famlia no Vale do Paje um elemento central nos modos de
ver,viver e avaliar o mundo e as aes de cada um, ela aparece como o
resul-tado de uma montagem que tem diversos efeitos e outros tantos
sinto-mas. Um mundo sem solidez na exigncia de foras-fortes que o
solidi-fiquem. Em primeiro lugar, famlia para as pessoas entre as
quais efetueimeu trabalho, plural e nunca uniforme. A polissemia do
termo chegaa ser irritante para algum que, como eu, pretendia
apreender-lhe o sen-tido nativo. Famlia o sobrenome. Portanto, cabe
aos genealogistasidentificar as longas cadeias arborescentes que
remontam ao sculoXVIII. As genealogias assim montadas fazem, no
limite, que uma gordafatia da populao estabelea com um concidado
algum grau de paren-tesco. Neste sentido, as relaes de parentesco
podem se espraiar para
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todas as direes, j retomarei esse ponto. Famlia a linhagem, que
per-mite recortar a partir de um tronco, quer dizer, um fundador
situado halgumas poucas geraes acima, um agrupamento que se
reconheacomo tal. Famlia a casa: o conjunto que rene os pais, a
irmandade,ou seja, os sibblings e, no passado, alguns moradores,
como mes pretase seus filhos.11 Cada um destes sentidos fruto da
atividade dos mem-bros que reiteram a sua pertena cotidianamente ou
assumem rupturasque desfazem o sentimento de pertena.
Qualquer famlia aos pedaos. Pedaos atuais que aparecem comouma
totalidade virtual nas reflexes ou nos escritos mnemnicos
dosgenealogistas, os especialistas das rvores. Eles so os
responsveis pelaexposio de uma realidade contnua e, vez por outra,
pr-formal dafamlia. tudo parente ou tudo braiado so duas das
frmulas quebem revelam estas condies. Elas so repetidas sempre que
se pretendeconhecer o parentesco de algum que sabe genealogia. A
rvore ge-nealgica, em sua realizao plena, tende a tornar-se um
peiron queabarca o que as aes cotidianas tendem a individuar e
distinguir. Evans-Pritchard disse da genealogia dos Sanusi uma
frase que ressoa naetnografia do serto de Pernambuco: ela concebida
como uma fam-lia gigantesca que descende de um ancestral comum de
quem a tribogeralmente assume o nome (Evans-Pritchard, 1973, p.
55). Todos sonossos parentes (Franklin, 2001, p. 312 e passim,
acerca de Haraway,1997). Anterior aos atos e s palavras vividas, a
rvore em estado puro um percurso de nomes hierarquicamente
indistintos. Ela no contminteresse poltico e nem econmico. Sua
condio virtual neutraliza adiferenciao. No h cortes nem segmentos.
Ela contnua e indistin-ta. No obedece aos cortes das alianas nem o
dos sobrenomes. E, noentanto, a rvore genealgica no uma quimera.
Porque ela a todomomento chamada para operar no cotidiano que a
corta, recorta, seg-menta, liga suas pontas. Em uma palavra, a
fazer o contnuo virtual da
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rvore atualizar-se. A rvore, nesse ltimo sentido, no apenas o
ins-trumento analtico usado pelos que estudam parentesco. Ela
tambmum instrumento usado pelos atores que operam, e no meramente
ob-servam, os sistemas de parentesco (Barnes, 1967, p. 103), no
sendo,ao mesmo tempo, uma quimera, nem muito menos o objeto
exclusiva-mente calculista dos indivduos. No , ainda, um agente
essencializa-dor e purificador das relaes de parentesco til sua
constituio comocampo da antropologia (Bouquet, 2001, p. 98).
Aqui se pode retornar diferena entre o que o trabalho de campome
apresentou e a forma como Bourdieu encara o peso da genealogia.No
Vale, a genealogia no apenas o parentesco oficial e imutvel e quese
distingue do uso e da vivncia do parentesco. Ela no tambm oplano
artificialmente discursivo (dizer o parentesco) em funo das
exi-gncias de um pesquisador vido em arrancar dados de nativos que
nose interessaram em diz-la e muito menos em refletir sobre ela, em
faz-la funcionar em proveito de determinadas situaes muito
concretas ereais. Ela no , por conseguinte, como tambm pretendeu o
bourdianoBensa (2003), um discurso de ocasio. E ela no , enfim,
somente oefeito da fabricao do interesse. No Vale a rvore opera,
funciona, arquivo, estoque filiativo12 de onde so retiradas as
estratgias e as tti-cas que fabricam a famlia. A genealogia
pesquisada, dita, escrita,publicada, digitalizada e disponibilizada
para todos os que a quiseremconhecer.13 No Vale h mestres da
verdade genealgica.
Mas os genealogistas no so apenas estes, porque a famlia no Vale
um fenmeno segmentar. Termo que roubo da teoria antropolgica, no
aquela apenas encontrada em sistemas de parentesco unilineares.
Tra-ta-se do modo como l se pensa a famlia e o parentesco para
formarem-se precisamente grupos familiares. Muitos signos,
materiais, derivadosda transmisso do patrimnio mvel e imvel, mas
tambm discursivos,nos relatos acerca da constituio do parentesco
(termos como tronco,
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linhagem etc.) explicitam esse modo de distribuir as pertenas no
mun-do.14 Segmentar a famlia, segmentares os genealogistas. H
especialis-tas em sua prpria linhagem. Pessoas que sabem
destrinchar o seu paren-tesco. Quer dizer, recuperar no discurso, e
por meio de uma certamnemotcnica, o seu parentesco. Puxar os fios
da genealogia at chegara si mesmos e a seus prximos. Ou seja, saber
como que sou parentedesta ou daquela pessoa. Destrinchar o processo
discursivo que retirada genealogia o seu aspecto braiado, quer
dizer, misturado, embaralha-do, indeterminado, indiferenciado.
Pode-se fazer isso recuando no pas-sado geraes suficientes apenas
para atingir o seu ancestral mais cle-bre, para retirar de sua
histria pessoal, municipal, poltica, o quantumnecessrio para sua
glorificao pessoal e de seus prximos. Segmenta-seo sobrenome por
meio de uma determinada memria. Mas tambm, eno menos importante,
por amor; por amor memria de um ou devrios ancestrais.
A glorificao pode ser feita por meio da idia de sangue ou pela
idiade territrio. Porque famlia, para as pessoas entre as quais fao
pesqui-sa, costuma ser, segundo minha formulao, uma
famlia-territrio. Umaface no pode ser compreendida sem o anverso
que a complementa.Apenas uma e outra, juntas, valem como uma
descrio do carter e dotipo de pessoa com a qual falamos. Algum de
tal sobrenome e estesobrenome segmentado e simultaneamente
complementado pelo ter-ritrio ao qual pertence. Por exemplo: um dos
sobrenomes mais cle-bres nos municpios estudados em minha pesquisa
Santana. Mas San-tana apenas um dentre vrios segmentos do contnuo
arborescente.Ele capaz de se segmentar quase indefinidamente. Um
dos modos desegmentao a ligao do sobrenome, filiao, portanto, ao
territrio,como acontece no grupo a que sou mais prximo: os Santanas
do Imbu-zeiro. Eles so braiados, quer dizer, misturados, ligados na
rvore genea-lgica, aos Santanas de Jordnia. Isso de um certo ponto
de vista, que
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sempre segmentar, de um dado genealogista. Mas de outra
perspectivaeles so os Santanas puros ou da gema, ou ainda um tronco
dosSantanas (essa outra acepo da palavra tronco, de fundador geral
de umdado sobrenome e no apenas o de uma linhagem) os que esto na
raizmesmo da apario da famlia Santana. Mas sofrem um processo
desegmentao se se acrescenta ao sobrenome o territrio. S a partir
dameus colaboradores locais de pesquisa so capazes de tecer
comentrios,fazer especulaes, reflexes, avaliaes e juzos acerca de
uma pessoa oude um grupo de pessoas. E sofrer ainda um novo
processo de segmen-tao se se acrescenta ao sobrenome e ao territrio
o prenome de umalinhagem: Clemente. Clemente Santana, antigo chefe
do Umbuzeirodeixou atrs de si uma linhagem, quer dizer, descentes
que se localizamno mundo por meio desta ascendncia comum que j no
apenasSantana, que no apenas Santana do Umbuzeiro. Que tudo isso
jun-to, acrescentado do prenome sobrenomizado (um patronmico,
portan-to): Clemente. Clemente , doravante, suficiente para resumir
e simpli-ficar a acumulao de sobrenome e territrio.15
a ligao, como s vezes se diz l, da fora atvica da filiao
residncia que torna possvel reconhecer algum; que lhe confere,
diga-mos, previsibilidade. Assim, por exemplo, um stio pode ser
considera-do violento, subsumindo as pessoas que l vivem ou
nasceram e que, porsua vez, so todas aparentadas. Elas so do mesmo
sangue e da mesmaraa. Uma tal caracterstica, chamada localmente de
fama para os casosem que o sangue confere atributos violentos aos
membros de uma deter-minada raa, atribuda muitas vezes
ancestralidade, mas no podeser dissociada do territrio. De modo
que, se algum habitante deste s-tio hipottico insultado, sabe-se ou
espera-se que se vingar. Isso por-que ele descendente de um
coletivo agrupado pelo sangue e que habitaum dado territrio.16
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A ascendncia, portanto, um suporte de relaes, ela capaz
deconstruir subjetividades: torna reconhecvel, previsvel, regular,
desej-vel, condizente, o comportamento desta ou daquela pessoa. A
ancestra-lidade, associada ao territrio, forma pessoas e indivduos.
Torna aceit-veis e exigidas certas performances. Faz reputao. Algum
semprefabricado como um composto daquilo que os olhos dos outros
fazemdele. E os olhos dos outros o fazem segundo a sua genealogia e
asegmentao que o cotidiano opera no contnuo da rvore. Uma
seg-mentao que no exclusivamente, mas necessariamente,
territorial.
A rvore da genealogia, indistinto virtual, , por certo, o
celeiro ou oestoque de parentesco onde a poltica vai buscar seus
pedaos de famliae atualizar as suas alianas. Mas ela, dispensvel
dizer, tambm no nenhum dado. Tem que ser fabricada pela memria oral
ou escrita. decerto uma superfcie de inscrio, mas de forma alguma
no sentidode um dado, de um a priori. Ela, como superfcie de
inscrio, deve serantes de tudo fabricada. E esse processo o fruto
da ratificao e dafixao do trabalho dos memorialistas, dos
historiadores locais e dosembates de suas verses arborescentes da
ancestralidade que se mistura histria poltica e municipal dos
lugares.
III.1. Fazer Poltica e Famlia
Filiao, territrio e aliana: nessa fronteira trplice, apenas
analtica eportanto no cotidiana, que se joga o jogo dos
agrupamentos polticos efamiliares. Poderamos pensar, ento: se na
famlia que a poltica sele-ciona seus quadros e forma seus partidos,
seria tambm na famlia, comodado filiativo, que se produziria o dado
colateral (em ambos os sentidosda palavra, tanto o da terminologia
do parentesco quanto no de efeito,
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de conseqncia) das alianas polticas.17 E, no entanto, no
assim,parece-me, que as coisas se passam.
Em poltica e em famlia, uma palavra, ou sua ausncia, podem
blo-quear solidariedades, desmontar alianas, promover outras. Em
polticae em famlia, no Vale, a expresso a lngua mata o corpo no
usadaapenas no sentido diettico. A famlia, no mais nem menos do que
apoltica, padece de impermanncia. Por exemplo, uma professora e
seumarido, primos legtimos18 (chamemo-los Carlos e Mara), sempre
vota-ram num partido em Jordnia: aquele com quem se afinavam do
pontode vista do parentesco, embora ostentassem outro sobrenome e
sua as-cendncia apenas tocasse vez por outra a histria os
ancestrais dos atuaiscandidatos que escolhiam.
Na verdade, e como sempre, as coisas so complicadas. Seu
sobreno-me foi central na histria remota da poltica jordanense, mas
passou asegundo plano e assim permaneceu ao longo de dcadas. H
alguns anos,contudo, uma revitalizao poltica do sobrenome tem sido
reivindica-da por algumas pessoas. Porque, vale sublinhar embora j
evidente, emJordnia a poltica se faz pela via da famlia. Poderia
deduzir-se a pr-existncia da famlia para que uma corrente, faco ou
agrupamentopoltico qualquer se forme. Mas no assim que as coisas se
passam.Vejamos, rapidamente, e como um parntese do caso de Carlos e
Mara,como elas se do.
Uma famlia que tenha pretenses polticas (concorrer a cargos
ele-tivos) precisa, em primeiro lugar, se constituir, formar grupo,
atualizar-se como sobrenome. Em contraposio, qualquer agrupamento
polti-co precisa ao menos at minha ltima estadia de campo em
2008,embora houvesse para alguns intervenientes da poltica uma
sensaode mudana cujos desdobramentos ainda no eram capazes de
elaborarclaramente criar-se a si mesmo como famlia. Mesmo um
pretendente poltica como atividade profissional precisa incluir-se
num agrupamen-
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to familiar com tradio na poltica. Ou ento famlia capaz de
cons-tituir-se em torno de um pretendente ou de formar com ele uma
esp-cie de dupla captura, um funcionamento em que cada parte retire
umnaco de vantagens do seu parceiro e agregue ao bolo uma poro
espec-fica de ingredientes. Em ato, essas exigncias no so
formuladas sobum discurso voluntrio. Muitas vezes elas no aparecem
sequer proferi-das de modo unvoco, porque se compem de aes
dispersas e a custounificveis o que no quer dizer que elas superem,
no ao menos ne-cessariamente, a reflexo dos intervenientes.
Vejamos, portanto, umexemplo evidente que acompanhei ao longo de
alguns anos de uma talconstituio e vejamos de que expedientes este
agrupamento, originriode um antigo distrito de Jordnia, lanou mo
para, simultaneamente,alar-se na condio de sobrenome e na condio de
pretendente polti-co. Chamemo-los Arnaldos.
Os expedientes so diversos, mas os Arnaldos foram capazes de
acio-nar apenas alguns que, aparentemente, foram suficientes:
emergnciade um indivduo com chances reais de candidatura e eleio;
constitui-o de uma genealogia, quer dizer, de um conhecimento
acerca de umgrupo que, por vias deste mesmo conhecimento, recebia a
sua indivi-duao.19 A constituio de uma genealogia exige, por certo,
capacidadede pesquis-la, de escrev-la. Era preciso, portanto, que
houvesse pessoasletradas na famlia. Entre os Arnaldos, elas
comearam a aparecer nagerao que agora ao cabo da primeira dcada
deste sculo entra na ter-ceira ou na quarta dcada de vida. Essas
pessoas criaram um jornal anu-al da famlia que divulga novidades a
respeito dos seus membros. Elaspublicam tambm as notcias acerca da
festa que a famlia realiza todosos anos para celebrar-se a si
mesma, parece-me (embora nunca tenhatido a oportunidade de estar em
campo nestas ocasies). Ela produziupara si uma genealogia publicada
num dos nmeros deste jornal e afixa-da por um de seus membros numa
das paredes de seu local de trabalho.
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Mas em Jordnia a genealogia montada no apenas no escrito e
nooral. montada tambm por imagens visuais. Em muitas das casas deum
dos sobrenomes, os cantos da sala principal so dedicados exposi-o
das fotos de ancestrais em cuja linhagem cada casal se inclui.
Nestecaso que aqui tento descrever, um dos lados pertence esposa,
umaSantana, cuja famlia tem uma longa tradio na poltica e cuja
genea-logia foi solidificada pelos diversos livros publicados por
memorialistaslocais desde h dcadas. No outro canto esto as fotos da
famlia domarido. Fotos cuja existncia remonta a um passado muito
mais recen-te, porque, enfim, a tentativa de fabricao da famlia e
sua histria re-montam a uma origem mais humilde e de possibilidades
menores depagar um fotgrafo na poca em que este expediente era
necessrio paratirar retratos. Os Arnaldos precisam das fotos
dispostas no canto dasala, em confronto com as outras, da esposa
Santana. As raras reticn-cias desta ltima em relao ao esforo da
famlia de quem parenteafim e que admira, fruto de uma convivncia
que simultaneamenteavaliza os Arnaldos, pelos laos colaterais que
ela mesma teceu pelo ca-samento com eles, a almejarem uma condio de
famlia tradicional eque serve de modelo, ao menos, para a exposio
das fotografias dosancestrais. Mas serve ainda como suporte
propriamente poltico-parti-drio para o candidato Arnaldo postular
seu almejado cargo.
Esse desejo de genealogia deveu-se, entre outras razes,
constataode que sob esse sobrenome se podia congregar uma
quantidade signifi-cativa de pessoas e de grupos. Era preciso,
ento, uma demonstrao doseu nmero elevado, mas tambm do afeto que
fazia deles uma famliaunida, uma das qualidades mais reverenciadas
quando se fala, no Valedo Paje, de famlia. Da a criao de um evento,
uma festa que congre-gasse todos aqueles que, de alguma forma,
entrassem na classe dos pa-rentes por sangue, por afinidade, por
simpatia, por compadrio. Por-
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que o nmero e a unio so essenciais para formar uma famlia
forte;mas tambm para a poltica, essa tcnica de montar colees de
votos.
Finalmente, marcao final e vista com irriso pelos membros
dasfamlias cuja tradio fora montada h mais tempo, era preciso criar
parao sobrenome um braso. O braso talvez seja entre todos o alvo
preferi-do da derriso dos genealogistas consagrados, alguns deles
com passa-gens pelos estudos da Histria, seja como estudantes
universitrios, sejacomo estudantes diletantes. O braso o contrario
do nmero e da fama:uma famlia grande ou pequena; forte ou fraca;
frouxa ou valente; brava ou mansa. Assim se considera ali. quase um
dadonatural. No h muito a se fazer a esse respeito. Sua fora reside
no seunmero que, por sua vez, construdo por tantos outros critrios
quepodem ser sintetizados pela unio. No outro extremo, sustentam
alguns,o braso parece uma aberrao, uma inveno sem sentido e sem
efic-cia, tanto quando aproveitado de um sobrenome que realmente
temum braso, quanto quando inventado na hora, agregando ao
acasodiversos elementos no interior de um conjunto. No primeiro
caso, osbrasonados tentam, parece-me, atrair para si uma ascendncia
nobre,por mais distante que ela lhes parea. No segundo, trata-se
antes de umemblema cuja fora a do contorno e que funciona como um
conjuntono interior do qual habitam todos os elementos da famlia;
semelhan-te ao escudo que se inventa para uma equipe esportiva
cosido em lugarconsiderado inadequado: a famlia; l onde no
permitida (posto que um dado) nenhuma inveno. Em todos os dois
casos, o braso assu-me para muitas pessoas do lugar o aspecto de
uma falsificao.
A construo do parentesco, o agrupamento, , assim, uma espciede
conjurao de foras absolutamente heterogneas em torno de doisgrandes
eixos: a poltica e a famlia, sob o aglutinador da memria,
comoreforo da convivncia; essa curiosa memria do dia-a-dia, essa
mem-ria-contrao dos coletivos humanos.
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Posto isso, voltemos ao caso de Carlos e Mara. A reivindicao
polti-ca de sua famlia, por um lado, alimentada pela refaco do
passado deliderana e, por outro, pela insatisfao destas pessoas
pelo modo comovm sendo tratadas pelos agrupamentos polticos que
disputam efetiva-mente os cargos eletivos do municpio e pelas feies
que a longa dis-puta entre Santanas e Gouveias imprimiu na poltica
do municpio.Ao contrrio do exemplo acima, o seu sobrenome precisa
de constru-o, mas que esta ltima receba o sentido de re-construo,
re-ativaode uma fora pr-existente ou adormecida. Quer dizer, mais
uma vez, afamlia no propriamente uma base pr-existente para a
reivindicaopoltica. Mas tampouco uma quimera ou um idioma que
legitima for-as que se mascaram para lutar pelo poder. Talvez o
nosso caso, por sesituar bem no centro deste problema, possa
elucidar melhor e ao mes-mo tempo servir de exemplo.
Tratava-se de um casal, portanto. Carlos genealogista, Mara
pro-fessora (uma espcie de marcador que a credenciaria para a
candidaturapoltica, segundo seu prprio entendimento do processo
eleitoral). Paraambos, o tratamento que recebiam de seus aliados um
dia resultouinsatisfatrio: a sorte que Carlos sabe genealogia.
Porque toda vez quea gente ia falar com ele tinha que explicar
cinco geraes pra trs. Ele,neste caso, era um dos chefes da
famlia/partido em quem votava o nos-so casal. Este partido/famlia,
expresso que cunhei aqui, mas que emJordnia recebe o nome de
poltica (assim, a poltica dos Santana, umdos agrupamentos que
disputa a liderana do municpio, se ope poltica dos Gouveia) o
agrupamento que a famlia, no sentido desobrenome, do nosso casal
acompanha nas eleies e em que os doisvotaram em vrios pleitos. E
isso, claro, era justificado pela ancestra-lidade comum dos dois
sobrenomes, o do casal e os polticos da famliaGouveia. Mas tambm
por um hbito: as famlias dele e dela, agora nosentido de casas,
sempre votaram nos Gouveias.
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Um dia, porm, encontraram um dos lderes dos Santanas
(Adal-berto, para ns), seus adversrios at ento. Para a sua
surpresa, foramrecebidos com entusiasmo, chamados pelos nomes sem
necessidade deaide-mmoire genealgico. Foram lembrados que seu av
(Carlos e Mara,sendo primos, tinham os mesmos avs paternos) ajudou
o av deAdalberto a construir o hospital municipal. Por meio deste
dilogo, dascordialidades, da etiqueta, das atenes que circularam
pelas bocas dosinterlocutores, foram ativadas, em torno desse
pequeno fragmento dememria esquecido, solidariedades antigas,
alguns casamentos entre asduas famlias foram lembrados. O
parentesco foi ativado, a famlia foifabricada. Mas no apenas em
torno de um mero idioma, porque o es-toque filiativo, a cadeia
contnua e no individuada da rvore genea-lgica, garantia a
veracidade das relaes e dos enunciados para a con-cepo local de
famlia e de parentesco, alm de oferecer-se comosuperfcie de
inscrio, simultaneamente considerada dado e fabricao.Mara, na
seqncia, foi convidada e aceita como candidata a vereadorana
coligao que elegeu este mesmo lder prefeito de Jordnia no man-dato
2004-2008.
Nada disso, por outro lado, implica a ausncia de clculo
poltico-eleitoral por parte de Adalberto. Havia sempre a conversa
de que Maraera uma candidata laranja, ou seja, daquelas que
inscrita e cuja candi-datura aceita para engordar os nmeros da
legenda, com o objetivo deampliar as vagas abertas para um partido
ou para uma coligao no totalde assentos na Cmara dos Vereadores, e
criar mais uma candidaturafeminina, dado que a legislao prev um
percentual mnimo de mu-lheres em cada partido ou coligao. Mas
tampouco Mara deixara decalcular, ao aceitar a candidatura com o
pensamento nas vantagens quepoderia tirar dela. No se trata de
negar a existncia de clculos. Mas derejeitar a sua primazia e
determinao, ao menos para o meu caso espe-cfico de pesquisa. E
porque o clculo no serve para fabricar famlia.
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JORGE MATTAR VILLELA. FAMLIA COMO GRUPO?...
Ele no seria capaz de faz-lo, sem ser uma falsificao, no fosse a
exis-tncia de um estoque de parentesco existente na rvore
genealgica, naslongas cadeias indistintas de filiao.
Porque a totalidade da rvore virtual baseia-se no
parentescocogntico, por conseguinte, nas leis do Estado nacional.
Donde, per-mitido garatujar nessa superfcie de inscrio uma
infinidade de agru-pamentos. Os filhos so descendentes e portadores
dos sobrenomes dospais e das mes. Cada casal, cada casa, os filhos
de cada uma, associam-se aos agrupamentos polticos que mais lhe
convierem segundo suasnecessidades, os seus destinos, sua
convivncia, a cotidianidade que pro-duz contgio. bem verdade,
conforme foi elaborado mais detidamen-te noutros lugares (Marques,
2002; Villela, 2004 e Villela & Marques,2006), as escolhas dos
sobrenomes dos descendentes obedecem a v-rios quesitos, esto
submetidas a uma diversidade importante de crit-rios. A rigor,
sequer se pode falar de escolhas. Falar-se-, como Palmeira(1992)
disse a respeito do modo como os eleitores oferecem seus votosnas
eleies, de adeses. Porque, assim como entendo este termo,
cadaagrupamento familiar, cada casa, cada linhagem, so arrastados
para estee para aquele sobrenome ou para cada segmento seu, por um
universointeiro de motivaes que so econmicas, afetivas, polticas,
guerrei-ras,20 simultaneamente ou em diferido. A rigor, tambm,
atualmente nomais se omite, como se fazia antes, alguns sobrenomes
dos nomes dofilhos. Todos aparecem, embora nem todos sejam
atualizados. Quer di-zer, nem todos valem como signos de pertena e
muitas pessoas, embo-ra tenham sobrenomes nas certides de
nascimento e de batismo, seassinam, apenas com um dos sobrenomes
que compem os seus no-mes. Os prprios Mara e Carlos, numa conversa
que tivemos em recen-te permanncia em campo, queixavam-se magoados
dos sobrinhos queno assinam o sobrenome, que eles dois ostentam com
orgulho histri-co, em proveito de um dos dois atualmente em voga no
municpio de
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Jordnia. Alguns amigos que tiveram filhos ou netos recentemente
fru-tos de casamentos de duas famlias diferentes, no sentido do
sobreno-me, costumam discutir a qual delas pertencero os pequenos.
Pude vera preocupao de avs, mas tambm de primos, com a
permannciadestes novatos da vida familiar nas casas dos pais de um
dos cnjuges:eu no deixava no, dizia uma prima lamentando-se no seio
de suaimpotncia, uma vez que seria ingerncia palpitar nos negcios
inter-nos de uma casa, a menina ficar tanto tempo na casa da av
[materna,um outro sobrenome, de resto, antagonista do da av
paterna]. Deixemesmo, pra ver o que acontece.... Num outro dos
tantos dilogos quepude presenciar a esse respeito, um casal de
jovens discutia, primeiroem tom de brincadeira, mas depois
seriamente, e finalmente com algu-ma aspereza, se seu beb seria
membro dos Ips ou de seria de Apareci-da, sendo que ambos os nomes
diziam respeito a territrios. Um delesuma fazenda e o outro, uma
vila. Ambos os nomes correspondiam apertenas familiares.
IV. Algumas reflexes finais e um ltimo exemplo
No Vale, portanto, tal como Irvine (1978) e Peters (1978)
notaram en-tre os Wolof e para os bedunos, respectivamente, famlia
tempo, ter-ritrio, poltica e histria. Em meu caso de pesquisa,
todos os quatroaspectos so relevantes para a constituio de uma
histria poltica mu-nicipal. um composto, um efeito, e no um a
priori. , no custa re-petir, concebido como dado, mas vivido como
fabricao. Mas, sempreconvm assinalar, ele s pode ser vivido como
fabricao porque con-cebido como dado e no como uma falsificao, uma
iluso, ideologia,um idioma, uma metfora. curioso notar como a
multiplicao dashistrias municipais no serto corresponde
intensificao e ampliao
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dos conhecimentos genealgicos. Desde h alguns anos, como j
foidito, possvel freqentar na internet um stio de genealogia
pernam-bucana com instrumentos de busca que permitem ao usurio
localizarcom apenas dois cliques os diversos graus de parentesco
existentes entreduas pessoas. Portanto, o parentesco virtual tambm
digital, on line.O que se pode fazer com ele, uma coisa que talvez
se possa aprendercom o dilogo que o cineasta Jim Jarmusch criou
para os atores AlfredMolina e Steven Coogan.21
A poltica pode ser um acontecimento que enceta e que desfaz
fa-mlia realimentando-se dessa fabricao para formar agrupamentos
po-lticos. Assim como a violncia, nos municpios onde fao pesquisa,
apoltica sempre foi constituinte de parentesco. No h propriamente
pa-rentesco dado, o parentesco no se inscreve no sangue de uma vez
parasempre, mas o sangue suporte cognitivo para as relaes serem
costura-das, o que no desprezvel; ao contrario, fundamental. A
histria dapoltica municipal capaz de efetuar os cortes, fazer as
colagens, despre-gar outra vez o que estava pregado, desde as
longas cadeias contnuas epr-formais da genealogia. A genealogia,
por sua vez, traz inscrita em siessa possibilidade, uma vez que
formada pela filiao cogntica, pelaaliana, pelo parentesco chamado
ritual e pelo de contgio. Teia que seespraia em todas as direes, em
tudo semelhante aos laos polticos,s ligaes dos bandos pela
violncia, colagem mnemnica dos cladosde parentesco. o rizoma, sem
contornos, anis quebrados e capazes deentrar uns nos outros, de
fazer conexes por todos os lados, presente empleno corao da rvore
(Deleuze & Guattari, 1980, pp. 13, 14 ss).22
As inmeras ligaes decorrentes dos casamentos, da filiao
indiferen-ciada, e das adeses a um ou outro sobrenome segundo as
inclinaesdos cnjuges e de seus filhos, so as prprias condies de
possibilidadepara os cortes, recortes e ligaes das pontas quebradas
das linhas ge-
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nealgicas. Os grupos de parentesco no so, por conseguinte,
gruposcorporados, ou seja, isolados a englobar a totalidade das
pertenas deseus indivduos. So, antes, para aproveitar a formulao de
Favret emseu trabalho no Magreb, feixes de relaes especficas e
condicionais(Favret, 1968, p. 26).
Entre meus colaboradores locais de pesquisa, o parentesco, a
famlia,a genealogia precisam ser inscritas e reinscritas sobre
alguma superfcie.Elas no existem em si mesmas. Melhor ainda, elas
no tm funciona-mento autnomo. Porque so feitas de tinta que se
apaga com o tempoe s se atualiza no cotidiano. Todos so capazes, se
instados, de reconhe-cer e mudar de opinio acerca de quem e de quem
no seu parente.Para que um indivduo ou uma coletividade seja capaz
de aderir a estaidia, preciso que ela seja inserida no domnio do
ordinrio, dos flu-xos de convivncia, da ao, dos enunciados, enfim.
preciso que agenealogia, dita ou escrita, seja tornada um ato de
palavra. Para usar aterminologia da teoria etnogrfica da linguagem
de Malinowski (1978,v. 2, pp. 6-8), preciso que ela seja pragmtica,
que ela faa coisas. E por isso que , de fato, necessrio falar, com
Zonabend (1979; 2000),de guardies da genealogia. Todavia, estes no
so apenas os especialis-tas que falam famlia, como ela diz acerca
de seu objeto emprico nazona rural da Frana. So tambm os que agem
famlia ou que fazem dafala uma ao e transpem a ao para a fala.
A idia de intransitividade eleitoral, quer dizer, que lderes
polticosde certas instncias (comunitrios, sindicalistas, tnicos) tm
dificulda-de de transformar sua representatividade em votos, foi j
suficientementetratada pelos antroplogos da poltica. Tambm se notou
que a transfe-rncia de votos problemtica, mesmo quando se trata de
pais para fi-lhos. Observou-se mesmo que as famlias rurais ou
urbanas nem semprejustapem as suas relaes familiares s suas
escolhas eleitorais. Mas es-
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queceu-se com freqncia de enfrentar o problema seguinte: o da
fabri-cao da famlia em termos polticos em geral e em termos
especifica-mente poltico-eleitorais.23
Esse ltimo enunciado implica em reconhecer que a construo
dopassado, conforme lembrou Toren (1988, p. 696, 712 ss), arrasta
consi-go a construo do presente, dada a alta mutabilidade da
tradio, queno Vale sistema, conforme referiu Godi (1998), para
outra circuns-crio territorial de pesquisa. Ou seja, agir segundo
os modos do lugar,no havendo, portanto, distino entre tradio e
histria processual.
Pois as construes dos grupos e do passado so essenciais para a
exis-tncia material e no material dos habitantes. Porque situar-se
numafamlia contar com sua solidariedade, compartilhar suas
virtudes, seuscrditos, mas tambm seus vcios e suas dvidas, seu
prestgio essa cate-goria de que meus colaboradores locais lanam mo
com tanta recor-rncia e que um dos componentes de o que cada
indivduo , do queele capaz de obter, do que lhe possvel, ou ao que
lhe desacon-selhvel, performar. E, no Vale, os olhos dos demais
olham e ao mesmotempo produzem a imagem que cada um faz de si
segundo as relaesde famlia de cada um. Relaes de famlia que, de
acordo com o quevimos, no so fixas nem dadas. So fabricadas, por um
lado, e alvo dedisputa e interpretao, por outro. Ainda mais prximo,
embora maisdistante, do meu caso de pesquisa o que diz Toren (1996,
p. 4; 1999,p. 266) acerca de Fiji: uma criana fijiana deve viver o
parentesco comoo prprio meio de existncia. Esta criana (...)
torna-se o que ela emrelaes recprocas entre parentes. Trata-se,
para os fijianos de Toren,de um processo ontogentico que envolve a
constituio do parentesco.Se me fosse necessria uma imagem distante
e extica, diria que a fam-lia no Vale como a pessoa Melansia, mas
tambm como a pessoaKerala, tomando-se as distines estabelecidas por
Busby (1997, p. 264e 273). Ela um microcosmo de relaes que exige
performances es-
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peciais para se atualizar e manter; mas tambm um todo interno
pr-existente a qualquer relao.
A disputa, a fabricao e a interpretao so foras capazes de
com-por e decompor famlia e, por conseqncia, agrupamentos
polticos.As pessoas, ao menos para alguns casos em Jordnia, so
capazes de vi-rar Santana ou de virar os seus opositores polticos,
segundo os pr-prios termos de uma jordanense cujos primos tiveram
extirpados de seusnomes o sobrenome Santana por conta mesmo de
disputas polticas.Neste caso, as mulheres receberam como sobrenome
o nome da me eos homens, o do pai.
Ainda a esse respeito vejamos apenas um caso, dentre todos que
aetnografia e a documentao me mostraram ao longo de dez anos
depesquisa. O ex-prefeito de Jordnia, Incio Santana, j em seu
segundomandato, h poucos anos, deveria fazer seu sucessor. O
candidato dafamlia prefeitura era prestigiado no municpio. Queria
fazer seu de-putado federal, estadual, seu prprio vice. Incio
tornou-se alvo de ata-ques de seus prprios aliados, de seus
parentes e do eleitorado em geralque o acusavam de m gesto e
corrupo a cu aberto. Agravaram-se astenses quando Incio insinuou a
nomeao de um vice para a chapado candidato a prefeito, seu primo.
E, dois anos aps, a aliana acaboude ruir quando aquele tentou
inserir seu prprio candidato a deputadofederal em Jordnia. Pano
rpido: o ex-prefeito foi excludo do processoeleitoral pelos atuais
e pelos futuros parentes. Futuros, porque sua mu-lher se assina com
o sobrenome do marido (Santana), que adquiriupor casamento, mas
tambm com o sobrenome que herdou por filia-o (Gouveia). Caso muito
comum, conforme j sublinhei, no Serto.Havia durante muitos anos
aderido ao sobrenome do marido, o mesmoque disputava com xito a
liderana em Jordnia j h algumas eleies.
Situao e oposio colocam-no na geladeira. Durante um lapso
dealgumas semanas, o prefeito no pertencia a uma poltica, assim
como
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no pertencia a uma famlia. Era uma espcie de semi-vivo. Jamais
ti-nha visto uma tal cena: a poucos dias das eleies um prefeito
peram-bulando sozinho e abandonado pelas ruas da cidade. No era
convida-do para os palanques, nem da situao, nem da oposio. Passado
umano, o prefeito est no espao exterior de seus antigos laos de
parentescoe de suas alianas polticas anteriores. Agora parente dos
parentes desua esposa, ligados que so aos opositores de seus
antigos primos.Mesmo que no precise se assinar com este novo
sobrenome.
Os coletivos dos municpios circunscritos em minha pesquisa,
massobretudo os de Jordnia, entendem-se constantemente como
formaesde parentesco, como famlias, a despeito da amplitude que
elas venhama ter, da polissemia deste termo, da condio precria e
impermanentede existncia de tais agrupamentos. Mas as famlias
comportam-se antescomo microgrupos de base familiar (Villela, 2005)
que formam liga-es rizomticas (Deleuze & Guattari, 1980), no
como facesexclusivistas. Uma tal abordagem oblitera, portanto, um
certo vocabu-lrio nativo das cincias sociais acerca das relaes
polticas no Brasil.
Esse trabalho vale para o municpio de Jordnia, mas no ser
difcilestender essa reflexo para outros lugares, guardando-se
sempre as suasespecificidades. Sua reflexes no so exclusivas para
lugares considera-dos distantes, para populaes consideradas mal
informadas. Poderoservir para pases que so os fundadores da
democracia representativa.Ao contrrio do que se supe geralmente, os
que colaboram para a feiturade minhas pesquisas so brilhantes
operadores deste regime poltico.Porque eles conhecem bem o seu
funcionamento por conta de sua lon-ga convivncia com ele.
Ao ser feita essa operao j no se falar de nepotismo a no ser
comose fala, descuidadamente que o sol desceu atrs das nuvens. Ser
poss-vel um ajuste na compreenso de certas prticas e de outras
palavras,muito prximas de ns sem que nos dobremos aos sentidos
hegemni-
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cos que nelas costumam ser colados pelos nossos atavismos
nocionais.Mas, e esse dos mais frutuosos resultados da etnografia,
ser possveldesfazer a solidez de certos objetos e mostrar as
foras-fortes que fazemos slidos. possvel, por conseguinte,
verificar que sem tal solidez tal-vez seja mais complicado procurar
em sua essncia esses centros de po-der. Ser possvel reconhec-los
como solidificaes ou tenses desolidificaes, do mesmo modo que as
famlias no Serto de Pernam-buco so estabilizaes atualizadas de um
conjunto heterogneo e difi-cilmente delimitvel de componentes.
Notas
1 Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social e Departamento
de CinciasSociais da Universidade Federal de So Carlos. Esse artigo
se inscreve no mbitodo projeto Memria: poltica, violncia e famlia,
financiado pela Fapesp. Umaprimeira verso deste texto foi
apresentada na I REA. Uma segunda, nas QuartasIndomveis, evento
mensal do PPGAS/UFSCar. A todos os participantes agradeoas crticas
e os comentrios. Agradeo as leituras e os comentrios feitos por
AnaClaudia Marques, Karina Biondi, Luiz H. de Toledo, Piero Leirner
e Uir Garcia.Os equvocos e imprecises so, no entanto, de minha
responsabilidade. Agradeoainda a Otvio Velho, cuja leitura e
sugestes deram mais equilbrio a este artigo.No tenho, contudo, a
certeza de t-las seguido competentemente. Agradeo so-bretudo aos
meus colaboradores locais de pesquisa, meus amigos e amigas
sertane-jas, que me toleram h dez anos entre eles.
2 Populao de ca. 27 mil habitantes (2007). Colgio eleitoral de
ca. 20 mil eleitores(2008). rea: ca. 3,5 mil km2. A arrecadao
excede em 1/3 seu os gastos pblicos(2006). A impreciso dos dados
relaciona-se inveno dos nomes para os municpios.
3 Todas as palavras em itlico so termos ou categorias nativas,
salvo pelos casos depalavras em lngua estrangeira. As expresses
entre aspas, exceto para os trechos decitaes de outros autores e
aquelas em que explicitamente fao referncia mi-
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nha terminologia (vide supra, I) so expresses usadas pelas
pessoas entre as quaisfao pesquisa.
4 A esse respeito ver Foucault (1975, 1976, 1977, 1981); Deleuze
e Guattari (1980).Ver tambm o recente trabalho de Veyne (2008) que
insiste na rejeio de Foucaultpelos universais, pela totalidade,
pela transcendncia e pelo transcendental.
5 tambm Foucault (1994, p. 184) quem aponta Clastres com a
expectativa dequem espera ver em sua obra uma exceo regra do
juralismo em antropologia.Para uma crtica interna da antropologia
acerca do ponto de vista juralista, ver Leach(1971 , pp. 9-10) ou,
mais modesta e recentemente, Saltman (1985).
6 Para um primeiro exemplo da paternidade da figura do coronel
como o signo lti-mo do arcasmo da poltica brasileira e como o seu
mais grave problema, ver Torres(1982), constituindo uma crtica
contempornea Primeira Repblica. A esse res-peito ver tambm
Fortunato (2000). E tambm os clssicos Leal (1949) e Pereirade
Queiroz (1976). Para uma sntese das abordagens do coronelismo, ver
Carva-lho (1997) e tambm Avelino Filho (1994).
7 Para uma sntese do problema, ver Corra (1994)8 H 63 anos
Lvi-Strauss publicava um artigo cuja penltima pgina punha em
questo precisamente o estatuto natural do parentesco humano,
pois, dizia ele, umsistema de parentesco no consiste nos laos
objetivos de filiao ou deconsanginidade dados entre indivduos [...]
um sistema arbitrrio de represen-taes, no o desenvolvimento
espontneo de uma situao de fato (Lvi-Strauss,1958, p. 61). Alm
disso, desde h cerca de 20 anos novas formas de lidar com afamlia e
com o parentesco tornaram-se comuns em antropologia e nas
atividadesque a cercam de perto (e.g. Strathern, 1992; Haraway,
1997; Carsten, 2001 e2004).
9 Ncleo de Antropologia da Poltica. Pronex coordenado por Moacir
Palmeira queagregou inmeras pesquisas individuais, muitas delas
publicadas na coleo An-tropologia da Poltica (Rio de Janeiro,
Relume Dumar). Alguns dos ttulos apa-recero citados ao longo deste
trabalho.
10 Para uma exposio muito recente das controvrsias no interior
dos estudos de pa-rentesco em torno do problema da psicologia
evolutiva e do anti-evolucionismoneodarwinista, ver Parkin (2009).
A esse respeito, mas com outros objetivos, verLatour (2005, p. 90 e
passim). Em virtude da abundncia dos trabalhos que man-tiveram em
mente as relaes dinmicas e recprocas entre poltica e famlia no
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Brasil (Caedo, 1998; Carvalho, 1966; o estudo clssico de Costa
Pinto, 1943;Heredia, 1996; Marques, 2002a; 2003, 2006; Marques et
al., 2007; Palmeira,1997; Lanna 1996) e dos limites que estabeleci
para este texto, limitar-me-ei aexpor aqui como estas se expressam
e funcionam no Vale do Paje. Entre elesh, por certo, uma enorme
variao de abordagens e apenas o tema das pesquisasos aproxima.
11 O sentido nativo que se empresta palavra casa em tudo
acoplvel definio deLvi-Strauss (1979; tambm Carsten &
Hugh-Jones, 1995). Ela , em certos ca-sos, o ltimo avatar da
segmentao, uma unidade. Ela assemelha-se tambm noo de mnage, tal
como a apresenta Sgalen (1980), mas que aparece ainda emBourdieu
(1962). Ela une um princpio territorial a uma de descendncia, a
umade aliana. Ela carrega um nome e mtodos prprios e visveis de
separao dossegmentos superiores. Faz parte integrante de uma
sociedade de descendnciaindiferenciada. Ela o ncleo das mais slidas
ligaes de solidariedade, cuja trans-gresso negativamente
valorizada. Pela casa a que pertence, um membro podeser distinguido
de outras pessoas que lhes so aparentados. Ele recebe as suas
ca-ractersticas emprestadas da casa. O problema da segmentao, ainda
obscuro nestetexto, ser tratado a seguir. Para uma exposio
panormica de outros contextoseuropeus, ver Augustins (1989).
12 A noo de estoque filiativo tomada de emprstimo aqui a Deleuze
e Guattari(1972, p. 171 ss). O sentido que imprimo aqui a ela muito
semelhante ao dosautores: a filiao como contnuo no individuado que
cortado, segmentado,codificado pelas relaes de aliana. Aliana
aparece em Deleuze e Guattari (aomenos em 1972) como um princpio de
individuao. Aqui, a noo de estoquefiliativo aproxima-se tambm da
noo de filiao intensiva (ibid., p. 183), ouseja, uma espcie de
contnuo pr-formal, de onde todas as alianas podem serretiradas e de
onde os segmentos filiativos so extrados.
13 O serto de Pernambuco tem a sua verso do Burkes Peerage and
Gentry que sechama Genealogia Pernambucana
(http://www.araujo.eti.br/araujo2.asp).
14 Descries mais pormenorizadas e reflexes mais prolongadas
acerca da segmen-taridade no serto de Pernambuco aparecem em
Villela (2004, 2008) e Marques(2002a, 2003).
15 Os processos de segmentao no param neste nvel. Eles
acompanham as forma-es das casas nas escolhas da residncia
ps-matrimonial e, portanto, esto pre-
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sentes nos modos de sucesso do patrimnio imvel. No que toca ao
patrimniomvel, os animais, a segmentao expressa pelos sinais
recortados com tesouraou faca nas orelhas dos bodes e pelos ferros
dos bovinos. Muito rapidamente, quan-to s orelhas dos bodes embora
a variao local seja grande e haja quem, nummunicpio ou outro, tambm
fizesse as assinaturas nas orelhas dos bovinos: nocaso da
Imbuzeiro, a orelha direita reservada ao sinal da fazenda: cruz,
que no exatamente uma cruz. A esquerda divida em duas metades. Na
superior, recorta-se o sinal da casa do pai, digamos que fosse um
coice de porta. A metade inferiorera reservada ao herdeiro que
recebia sua parte da herana mvel na poca da pri-meira assinatura,
quando dos filhotes ainda pequenos, o tempo propcio, seco,para
evitar-se doenas nas feridas. Assim, cada filho herdava no apenas
os ani-mais, mas tambm a assinatura indita que fora criada para ele
e que dever passarpara as suas prprias casas e para as dos seus
filhos, no futuro, quando tiverem deinventar sobre a combinao de
nove diferentes sinais, uma assinatura indita paracada um deles. A
esse respeito ver ainda Villela (2005), mas tambm, com direitoa
desenhos dos sinais, embora com alguns nomes diferentes e com menor
varieda-de de sinais existentes no Serto de Pernambuco, Barroso
(1956, pp. 185-191).
16 A esse respeito ver, tambm, Comerford (2003); Marques (2002a)
e Villela (2005).17 Assim como famlia, tambm poltica, para as
pessoas entre as quais fao pesquisa,
como de resto entre ns, recebe muitos sentidos. Os mais
empregados e os maisrelevantes mesmo para os tantos que a ignoram,
a desprezam, a ridicularizam e arejeitam so os concernentes ao que
eleitoral e, em menor grau e em menorextenso, ao que partidrio.
18 Primos cujo pai ou a me so irmo. Distingue-se de primos
carnais relao quesupe a irmandade entre pais e mes dos primos.
19 Neste sentido o parentesco no Vale exibe um aspecto
semelhante ao autopoiticoreferido por Gow (1997, p. 43), dispensvel
dizer, certamente a um universoetnogrfico absolutamente diferente
do meu.
20 Guerreiras porque, conforme foi analisado e descrito em
outros lugares, os agru-pamentos onde fao pesquisa constituem o que
em antropologia se convencionouchamar, e uso a expresso apenas por
economia de discurso, de feuding societies(Marques, 2003; Villela,
2005).
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21 Cousins? em Coffee and Cigarettes, de Jim Jarmusch (2003).
Molina descobrepor pesquisas genealgicas, seu hobbie, que um primo
distante de Coogan. MasCoogan rejeita a relao at que um
acontecimento o faz desej-la. Mas este mes-mo acontecimento afasta
Molina. Um mesmo acontecimento que produz e desfazuma mesma cadeia
virtual da rvore genealgica. Essa relao virtual/atual da
ge-nealogia poderia talvez ser pensada na mesma chave do que Tarde
chama de teo-ria dos abortos no que toca oposio entre possvel e
real, sendo este to realquanto aquele, embora no o esgote (Tarde,
2007, p. 199).
22 Para uma abordagem antropolgica da rvore no ocidente como
mtodo de expo-sio do parentesco (a rvore invertida que cresce pela
copa) e suas relaes com aidia de progresso, ver Ingold (2007, p.
105 e passim).
23 Esses temas podem ser vistos em Goldman (2006), Villela
(2004b), Villela &Marques (2006). Sobre o ltimo aspecto Marques
(2002a) j o havia sugeridoacerca do mesmo objeto emprico.
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ABSTRACT: I propose in this article to think about a very
specific pro-blem: how, in a municipality in Pernambuco Backlands,
certain collectivesmake and break family, make and break political
groupings. I tried also toinspect how long a certain number of
people can raise certain concepts,emotions, memories and objects to
themselves and others, aiming to buildfamily and politics.
KEY-WORDS: politics, elections, family, nepotism, Pernambuco,
Serto.
Recebido em novembro de 2008. Aceito em maio de 2009.
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