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VIDA E TRABALHO DE UMA FERROVIÁRIA: ETNOGRAFIA, MEMÓRIA E
GÊNERO
Guillermo Stefano Rosa Gómez1
Resumo: Neste artigo, intenciono seguir os passos de uma
“biografia de exceção”, que possibilita
vitalidade para a discussão de gênero, trabalho e memória. Para
tal, acompanho a narrativa de uma
operária – Neida, mãe solteira, Agente de Estação Ferroviária
aposentada –. A pesquisa baseia-se
em uma etnografia realizada na cidade de Pelotas, Rio Grande do
Sul. O aporte metodológico
considera o ato narrativo como tessitura da apresentação de si e
de construção da memória coletiva,
mediante o encontro etnográfico. O trabalho ferroviário é
caracterizado por tencionar a separação da
vida privada e da pública, assim como entre lazer e trabalho,
principalmente através das medidas
paternalistas adotadas pela Rede Ferroviária Federal,
privatizada na década de 1990. A vila operária
é um dos exemplos urbanos deste paternalismo: com a moradia
próxima ao local de trabalho e de
propriedade da empresa, produz a imobilização da força de
trabalho, assim como sua vigilância e,
por esse ângulo, a bibliografia aponta para a emergência de uma
“família operária”, com suas
características peculiares. Compreendendo que o trabalho
ferroviário é predominantemente
masculino, as mulheres são associadas ao âmbito da casa e acabam
tendo como campo de ação
iniciativas associadas a projetos de ascensão social, que se
presentificam por meio da escolarização
ou construção de vínculos sociais.
Palavras-chave: Trabalho, Operariado Feminino, Biografia,
Narrativa.
Introdução
Neste artigo tenho como objetivo apresentar uma investigação
antropológica de uma
biografia feminina, relacionada com a experiência do trabalho
ferroviário na cidade de Pelotas, Rio
Grande do Sul. O material empírico que oportunizou estas
reflexões deriva de uma pesquisa
etnográfica, que realizo em Pelotas desde 20152, com
trabalhadores ferroviários aposentados e suas
famílias. Estas reflexões se inserem nos estudos antropológicos
da memória coletiva nas sociedades
complexas (ROCHA E ECKERT, 2013), e, também, nos estudos sobre
operariado urbano.
O sistema de transporte ferroviário no Rio Grande no Sul e
também no Brasil, inicia sob o
comando de concessões estrangeiras, como a belga Compagnie
Imperial e des Chemins de Fer du
Rio Grande do Sul e a inglesa Southern Brasilian Rio Grande do
Sul Company. Em 1920 é criada a
Viação Férrea do Rio Grande do Sul (VFRGS), de caráter estatal,
até que, em 1957, esta é agregada
com diversas outras ferrovias regionais para a fundação da Rede
Ferroviária Federal Sociedade
1 Mestrando em Antropologia Social na Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Pesquisador do Núcleo de
Antropologia Visual (NAVISUAL/PPGAS/UFRGS). Porto Alegre,
Brasil. 2 Produzi meu Trabalho de Conclusão de Curso em Ciências
Sociais, na universidade Federal de Pelotas (UFPel),
orientado pela Prof Claudia Turra Magni, sob o título, “Cidade
Trabalho e Narrativa: etnografia urbana com ferroviários
aposentados em Pelotas”, disponível no link:
https://leppais.files.wordpress.com/2017/04/gocc81mez-g-s-r-cidade-
trabalho-e-narrativa.pdf . Hoje, aprofundo minha investigação,
inserido no mestrado em Antropologia Social e no
Núcleo de Antropologia Visual da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, sob a orientação de Cornelia Eckert
https://leppais.files.wordpress.com/2017/04/gocc81mez-g-s-r-cidade-trabalho-e-narrativa.pdfhttps://leppais.files.wordpress.com/2017/04/gocc81mez-g-s-r-cidade-trabalho-e-narrativa.pdf
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Anônima (RFFSA). A RFFSA se constituiu como um gigante
burocrático, espalhando suas
operações por uma grande extensão do território nacional. Em
termos analíticos, identifica-se como
empresa típica do capitalismo dos anos 60 (Boltanski &
Chiapello, 2006), incentivando uma
“experiência de profundidade” (Sennett 2015b p. 118) dos
trabalhadores, em carreiras de longa
duração. Essa “política de antiguidade” (Sennett, 2015b p.140)
era pautada por uma série de
mecanismos como a proximidade das moradias com os locais de
trabalho, as cooperativas, os clubes
ferroviários, a promoção por tempo de trabalho, etc. Como indica
a literatura (Leite Lopes, 1978;
Eckert, 2012; Lord, 2002; Sennett, 2015; Hannerz, 2015), este
modelo de trabalho, de disposição de
moradia e de serviços exerce uma forte influência sobre os
trabalhadores, mesclando o tempo de
trabalho com o de não-trabalho.
Com as medidas neoliberais dos 1990, quando a crítica à
burocratização foi levada ao
extremo (Boltanski, & Chiapello, 2006), a Rede Ferroviária
Federal foi inserida em um programa
de desestatização e extinta, em 1997. O processo, que resultou
na concessão das linhas a empresas
privadas, também provocou uma redução da malha férrea (que já
vinha diminuindo
progressivamente nas décadas anteriores) e das operações, assim
como abandono de diversas
Estações Ferroviárias. No âmbito do trabalho, a diminuição
drástica do pessoal resultou em
demissões, aposentarias forçadas e outros processos coincidentes
com a “reengenharia” empresarial.
Portanto, esta pesquisa é uma investigação sobre a memória do
trabalho de uma profissão que está
sendo desacelerada, mediante as mudanças de um “espírito do
capitalismo” (Boltanski & Chiapello,
2006). Interessa-me conhecer, mediante a etnografia, as
narrativas destas pessoas que vivenciam um
processo particular de envelhecimento e de descontinuidade
temporal.
Ao contrário de um mero resgate folclórico daquilo que “já
passou”, meu objetivo de
pesquisa é pautado por uma Etnografia da Duração (Rocha &
Eckert, 2013) e situa-se em interpretar
o “esforço de continuidade” (Bachelard, 1988) destes sujeitos,
expressos em seus atos narrativos
(Ricoeur, 1991; 1994), visando “repelir a morte social” (Rocha
& Eckert, 2013 p. 121). Aqui
apresento o resultado de uma entrevista em profundidade,
realizada com uma trabalhadora
ferroviária que vive esta “descontinuidade do tempo ritmado pelo
trabalho” (Eckert, 2012, p. 95).
Pareceu-me importante investigar uma especificidade na
construção da “identidade
narrada” (Díaz, 1991) desta senhora, uma duração particularizada
pela sua posição de gênero. Cabe
ressaltar que o próprio envelhecimento se desdobra em
particularidades mediante o gênero como
afirma Claudine Attias-Donfut (2004) “A velhice das mulheres não
é apenas um tema incongruente,
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ele também é minimizado. Em sim, pouco atraente, ele tem ainda
um estatuto científico duplamente
desvalorizado, posto que trata de mulheres e de velhice”
(Attias-Donfut, 2004, p.87).
Uma duração feminina
“De nossos pais sempre sabemos alguma coisa, um fato, uma
distinção. Eles foram
soldados ou foram marinheiros; ocuparam tal cargo ou fizeram tal
lei. Mas de nossas mães,
de nossas avós, de nossas bisavós, o que resta? Nada além de uma
tradição. Uma era linda;
outra era ruiva; uma terceira foi beijada pela rainha. Nada
sabemos sobre elas, a não ser
seus nomes, as datas de seus casamentos e o número de filhos que
tiveram. ” (WOOLF,
2014, p. 271)
Quando minha orientadora Cornelia Eckert sugeriu que eu enviasse
um escrito para o evento
Fazendo Gênero 11, visando refletir especificamente sobre a
memória de mulheres, ficou claro para
mim que estava posto um desafio. Este recorte de gênero
implicava em um exercício intelectual
que, mesmo mantendo o pertencimento temático aos estudos
etnográficos de memória coletiva e
narrativas biográficas3, por outro lado, acrescentava um
elemento disruptivo4, de uma narrativa
marcada enquanto produzida por um sujeito do sexo feminino.
Diferente de meu Trabalho de
Conclusão de curso, no qual “o fato de eu ser pesquisador e
homem, permitiu o acesso a esse
aspecto do mundo social, das “intimidades”, das piadas” (Gómez,
2015, p.70), neste contato com
uma biografia feminina, lidei com o inverso, um processo
semelhante ao narrado por Rojane Brum
Nunes (2013) em sua inserção, enquanto mulher, em espaços de
sociabilidade de homens
aposentados. Se minha referência eram espaços de
“auto-segregação espacial dos homens”, (Jardim,
1991, p.143) onde é possível apelidar as próprias locomotivas de
“Cachorronas”, “Africanas” ou
“Turbinadas” (Gómez & Magni, 2017), ao lidar com uma
narradora mulher e realizar um esforço de
tentar representa-la no texto, eu estava ciente de que seria uma
relação diferenciada5. Como destaca
Sebastien Roux, “Os objetos de pesquisa são gerados e as
condições de acesso do pesquisador a
certas esferas do mundo social variam em função de seu sexo”6”
(Roux, 2011, p.18).
3 Como explicita Anelise Guterres, “há uma longa tradição de
pesquisas, biografias e etnografias sobre trabalhadores”
(GUTERRES, 2013, p. 346), bem como um “investimento no
testemunho de vida como aporte fundamental para a
compreensão das relações interpessoais e visão de mundo desse
grupo” (idem, ibidem). 4 No sentido de que “Os estudos sobre as
mulheres não são um mero conhecimento adicional a ser acrescentado
ao
currículo. É um corpo de conhecimento de perspectiva
transformadora” (STRATHERN, 2009 p. 88) 5 Atentar para o “gênero”
das máquinas foi uma das dicas que recebi em uma das reuniões do
Núcleo de Antropologia Visual (Navisual/PPGAS/UFRGS). 6 « Les
objects de recherche sont genrés et les conditions d’acess du
chercheur à certains sphères du monde social
varient en fonction de son sexe » Em francês no original,
tradução do autor.
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Também me foi inescapável lembrar das ressalvas de Marilyn
Strathern (2009), que
evidencia a relação de tensão entre a Antropologia e a
perspectiva feminista. Na ciência
antropológica os esforços são os de conciliar, por meio da
escrita, a situação de interlocução do
trabalho de campo, permitindo que “os chamados informantes falem
com sua própria voz” (idem.
p.98), através de um texto polivocal. A perspectiva feminista
“debocha” da antropologia justamente
neste ponto, “seu lado mais vulnerável” (idem, p. 100). Segundo
Strathern, o feminismo considera
que essa metáfora da autoria compartilhada, este ideal
antropológico, não passa de uma ilusão. O
diálogo será sempre assimétrico. É claro que se merece datar o
texto de Strathern, publicado
originalmente 1984. Ele pertence a uma época, de determinado
pensamento feminista, assim como
uma determinada concepção de antropologia, especialmente a que
se preocupava com o texto. Esta
antropologia, da “virada literária”, inspirada, por exemplo,
pelos escritos de Bakhtin, estava
debruçada em criar alternativas textuais que conseguissem minar
uma autoridade do antropólogo,
construída historicamente (Clifford, 2008). Apesar de situado,
esse debate ainda incita provocações
interessantes e mereceu ser mencionado, pois, ao escrever sobre
uma mulher enquanto o “Outro”,
sempre está evidente uma relação textual de alteridade, mais
específica, neste caso, por conter
diferenciações de gênero.
Migrando para uma discussão mais contemporânea, para auxiliar na
compreensão dos
fragmentos biográficos de Neida, uma ferroviária aposentada,
busquei complementar a discussão da
duração com o pensamento de antropólogas feministas,
especialmente vinculadas a uma virada pós-
colonial na antropologia7.
O pós-colonialismo coincide com emergência de novos sujeitos com
condição de fala, que
auxiliam a desestabilizar as grandes narrativas da disciplina
antropológica (Overing, 2000). Uma
destas vozes é a de Lila Abu Lughod que, para tecer as
diretrizes de uma forma de escrita contra a
cultura8, retoma uma tradição de escritoras mulheres - as
esposas dos antropólogos - que, menos
preocupadas com colocar sua posição no texto e mais atentas a
indivíduos particulares e famílias,
despreenderam-se de um estilo de escrita tradicional das
ciências sociais no qual predominava a
“generalização e a descrição neutra” (Abu-Lughod, 1991, p. 473).
A autora sugere, portanto, uma
7 Explorando esta relação entre pós colonialismo e feminismo,
ver, por exemplo Deepika Bahrki (2013). 8 Para Abu-Lughod (1991), o
conceito de cultura engloba em si um processo de diferenciação e
hierarquização. A
cultura opera reforçando hierarquias e separações e por isso,
deve ser rejeitada completamente
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“etnografia do particular”9, baseada em “contar histórias sobre
indivíduos particulares, no tempo e
no espaço”10 (Abu-Lughod, 1991, p.475), não apagando, assim, a
dimensão temporal e conflitiva.
Outra antropóloga importante para essa discussão é Veena Das
(2011) e a peculiaridade de
sua abordagem. Se considerarmos a distinção que realiza Sherry
Ortner (2016), entre a “Dark
Anthropology”11- enquanto aquela que enfatiza “ as dimensões
severas e brutais das experiências
humanas e as condições estruturais e históricas que as
produziram”12 (Ortner, 2016, p. 49). - e as
“Anthropologies of the Good” (p.58) - que se voltam para temas
como os valores, moralidade, bem-
estar, imaginação, empatia, cuidado, a dádiva, a esperança,
tempo e mudança - entenderemos por
que a autora considera a obra de Veena Das como um exemplo de
conseguir articular estas duas
perspectivas.
A abordagem de Das (2011) consegue compreender um evento
histórico violento como a
Partição da Índia através de um mergulho nas afetividades
cotidianas de uma mulher chamada
Asha, que se encontra em sofrimento, por estar inserida em um
sistema patriarcal e de castas que
condena ambas as suas posições: a de viúva e sem filhos. Das
reabilita esta narrativa feminina
realizando reflexão sobre as tradições culturais indianas,
reconhecendo o luto e a lamentação
enquanto gêneros discursivos próprios, bem como, remetendo a
figura de Antígona. Assim, a.“
formação do sujeito como sujeito com gênero (Das, 2011, p.15)
perpassa um corpo que sofre e se
lamenta através da narrativa. São, portanto, as “complexas
transações entre corpo e linguagem”
(idem, p.11) que constituem esta mulher indiana em sua potência
narrativa. O exemplo da Veena
Das é interessante pois reconhece um corpo que sofre e o
institui enquanto narrador, focando as
situações de vivencia de violências que está nas
particularidades das vidas cotidianas, refletindo
sobre suas capacidades de narrar e sobre o próprio caráter desta
narrativa.
Tendo estas perspectivas em mente que procurei entender meu
material de campo. Dessa
forma, apresentarei fragmentos de uma biografia feminina,
buscando refletir sobre a vida e o
trabalho de Neida. Cabe destacar que esta se constitui enquanto
uma “biografia de exceção”: uma
mulher, trabalhadora ferroviária, uma profissão ocupada
majoritariamente e historicamente por
homens.
9 Mergulhar no particular, para Abu-Lughod (1991) também
significa ir contra o fazer principal da antropologia, de
generalização, que em sua opinião facilita a abstração e a
reificação (p. 474) 10 “telling stories about particular
individuals in time and place”. Em inglês no original, traduzido
pelo autor. 11 A expressão Dark Anthropolgy” é utilizada por Sherry
Ortner(2016) para definir uma antropologia que surge em um
contexto de neoliberalismo. Seus temas evidenciam o impacto
deste cenário nas vidas humanas: demissões em massa,
fechamento de fábricas, estética prisional nas cidades, controle
da população, etc. 12“the harsh and brutal dimensions of human
experience, and the structural and historical conditions that
produce them”.
Em inglês no original, tradução do autor.
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Fragmentos Biográficos - Neida
Conheci Neida durante o projeto de pesquisa, “Memorial da
Estação Férrea”, realizado pela
Universidade Federal de Pelotas em 2015, sob a coordenação da
professora Claudia Turra Magni13.
Mais tarde, quando fui procurado pela TV da Universidade
Católica de Pelotas para uma
reportagem sobre o projeto, o ferroviário aposentado Orlando,
parceiro de pesquisa de longa data,
recomendou que eu conversasse com Neida, para que ela desse um
depoimento. Assim,
conhecendo-a, mais tarde busquei um diálogo mais próximo, para
minha pesquisa de mestrado.
Neida tem 63 anos e mora em uma casa no bairro Simões Lopes, um
antigo reduto
ferroviário, como evidencia a proximidade da moradia com os
trilhos e a própria arquitetura
construída. “Faziam as casas pros funcionários morar e usavam
muito os trilhos”, conta ela, fazendo
referência à calçada de sua casa, onde estão cimentados os
trilhos ferroviários que dão base a
construções e muros da vizinhança.
Em novembro de 2016, ela me recebeu na sala de casa, cada qual
se estabelecendo em um
dos sofás, um de frente para o outro. O cômodo também contava
com uma televisão sobre um
móvel amplo, com gavetas. Na parede, atrás de Neida, um quadro
centralizado com uma fotografia
de sua filha, de toga, segurando o diploma do curso de
Biologia.
Sua narrativa opera um jogo temporal (Rocha & Eckert, 2013)
logo de início: “Nasci em
Pelotas e aí me tornei ferroviária. ” A continuidade desta
frase, conta um processo que é misto de
casualidade, perseverança e “sorte”, também marcado pelo
reconhecimento enquanto mulher nas
interações que a conduziam para a carreira ferroviária:
“Na minha família não tinha ninguém ferroviário14. E aí me
tornei ferroviária por concurso, né. Eu já tinha terminando o, hoje
é ensino médio, na minha época era o segundo grau.
Primeiro grau, segundo grau, e científico. Foi o primeiro
emprego, eu soube do concurso
por casualidade. Uma vizinha foi na casa dos meus padrinhos,
porque naquela época pra ti
fazer o concurso tu tinha que ter, ficha corrida, tinha que ir
no cartório. Ela precisava de
13 Este projeto coletivo produziu um Museu de Rua, intitulado
“Vida nos Trilhos”, composto de doze banners, que circularam pela
cidade de Pelotas e Porto Alegre. Também produziu-se um vídeo
documento, assim como ensaios
fotográficos. Os resultados desta pesquisa estão disponíveis no
site do LEPPAIS: https://leppais.wordpress.com/mef/
https://www.youtube.com/watch?v=DCs5JEa0Ghw 14 É recorrente
entre os narradores ferroviários tanto a referência a
hereditariedade na profissão e do “sangue ferroviário” (RAPKIEWICZ
& ECKERT, 2015, p.287) como de seu contraponto: a ausência de
vínculos anteriores, que
servem como crítica do familismo empresarial, enfatizando a
noção do mérito, do concurso, ou mesmo do “acaso” e da
despretensão. Um de meus interlocutores de pesquisa, o
maquinista aposentado Orlando Chagas, conta que durante o
trabalho de taxista, também se inscreveu na rede, “por acaso”:
“Numa corrida de Pelotas a Rio Grande, levou um
homem para o concurso da Rede Ferroviária Federal Sociedade
Anônima (RFFSA). Ao saber que cinco concorrentes
haviam esquecido alguns documentos, Chagas, que esperava no
táxi, decidiu inscrever-se.” (GÓMEZ, 2015, p. 31)
https://leppais.wordpress.com/mef/https://www.youtube.com/watch?v=DCs5JEa0Ghw
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duas testemunhas, foi para pegar duas assinaturas e aí que eu
fiquei sabendo do concurso.
Já tava quase assim, nos últimos dias de inscrições e eu fui. Já
tinha terminado o segundo
grau.” Fiz o concurso, passei, fiquei em Pelotas por sorte
porque eles não deixavam
ninguém na sua cidade. A gente teve que ir na sede da empresa,
em Santa Maria, para fazer
o treinamento de quinze dias. A gente foi e quem depois decidia
para onde a gente iria,
seria o chefe, que ficava em Rio Grande. Eram divididos em 4
distritos, a ferrovia no Rio
Grande do Sul. O quarto era Rio Grande, terceiro acho que Cruz
Alta, segundo Santa Maria
e primeiro Porto Alegre. O chefe aqui de Rio grande que
distribuía [os trabalhadores nos
diferentes postos de serviço daquele distrito], tinha um monte
de estaçãozinha pequenas,
né? Tinha lugares que era só a estação, não tinham nem casas. E
o pessoal me dizia, não
pensa que tu vai ficar em Pelotas.”
“Ah, meio que te apavoraram? ”, comentei. Neida assentiu e
respondeu:
“Bah! O pessoal antigo que trabalhava na estação acho que eles
não gostavam que chegasse gente nova. Eles te assustavam tudo que
podiam, que era para ti não fazer! Principalmente
mulher, né? Ah porque é só estaçãozinha.... Vai ficar sozinha.
Só fica tu e o guarda chave15.
Tem cobra e no verão elas se escondem nos trilhos. Tudo pra ti
chegar e: –Tá não quero não
vou fazer”. Pra mim foi bem assim, quando eu fui fazer minha
inscrição, já foi assim. Bom,
já tava lá, já tinha arrumado o papel, fui fazer. Mas foi bom
porque que aí eu fiz o concurso
sem aquela vontade “ah eu quero passar”, fiz bem tranquila, foi
quando eu passei.” Aí deu
certo. Depois foi a função de não ficar na cidade.[grifo meu]
Mas eu tive sorte. Eles diziam
assim, se o engenheiro, acho que era Joao Carlos, se ele
amanheceu de pé destapado te
prepara que tu não fica em Pelotas. Então, eu consegui porque
ele tinha tapado os pés!
(risos). [O Engenheiro perguntou] – De onde a senhora é? –
Pelotas. – Quer ficar em
Pelotas? – Ah eu quero! –Então tá, vai pra Pelotas. Aí fiquei 21
anos trabalhando na
estação. Entrei em 1976 e saí... Ai! Em 1997.”
Como afirma Veena Das (2011), na narrativa feminina, os signos
nocivos são inseridos em
um processo de domesticação e de “re-narração” (p.11). Para
Neida, as pressões “foram boas” para
à tornar despreocupada, mais tranquila e saindo “vitoriosa”, ao
final. Na narrativa, esta conquista é
logo seguida de um outro dilema: o de “não ficar na cidade”. Um
problema resolvido é logo seguido
do surgimento de outro. Pode-se reconhecer, neste aspecto, uma
tática narrativa, que criando uma
apresentação de si mediante “pequenos mistérios e surpresas”
(Leite Lopes & Alvim, 1999).
Na Rede Ferroviária Federal, Neida desempenhou diferentes
funções, como a venda de
passagens, o cálculo de fretes e despacho de mercadorias no
setor dos armazéns e o cálculo de horas
e trabalho de ponto dos trabalhadores da Via Permanente16. Como
retrata LeGoff “a massa do
conhecido está mergulhada nas práticas orais e nas técnicas”
(Le-Goff, 1990, p.393). As ações
narrativas que descrevem procedimentos de trabalho estão
mescladas e tencionam o pensar e o
fazer:
15 O guarda-chave, ou “manobrador” é o trabalhador que manipula
as chaves para mudança de linha, assim um trem pode trocar de uma
linha para outra, fazer desvios, etc. 16 A Via Permanente é o setor
de trabalhadores que cuidam da via em si mesma, isto é, reparam
trilhos quebrados ou
tortos, substituem os dormentes (madeiras que apoiam os
trilhos). Quase sempre caracterizado por um serviço braçal e
bastante dispendioso de força física.
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“Os bilhetes de passagem eram uns cartõezinhos. E a gente tinha
que carimbar aquilo ali
numa máquina. Cada local tinha seu cartãozinho: Pedro Osório,
Capão do Leão, Bagé
[cidades do estado do Rio Grande do Sul]. Já vinha certo, com a
numeração – que é a forma
de controlar. A pessoa chegava: “quero uma passagem para Bagé”.
Aí tu pegava o
cartãozinho de Bagé e carimbava a data. A gente botava ali, era
fácil, era legal. Botava ali,
carimbava. Todo o dia tinha que ser atualizada a data do
carimbo. Era bem legal. Aí depois
tiraram o trem de passageiros”
Neida, quando perguntada a respeito do que gostava e não gostava
no trabalho ferroviário
contou:
“Não sei, eu gostei, eles sempre me respeitaram muito. Eu lembro
que um dos meus irmãos, quando eu fui trabalhar, eu a única mulher
né? –Ah, vai ficar só tu no meio de
homem! - Tá, e aí? E, graças à deus, assim se algum, logo no
início, tentou fazer uma
gracinha, eu me coloquei no meu lugar Mas, também, aquilo foi
tranquilo E até hoje as
famílias deles também. Que aí depois entrou o plano de saúde,
‘Plansfer’, aí quem ficou
responsável pelo plano de saúde? A Neida. Parte burocrática tudo
era a Neida, né? Eu que
fui atrás dos médicos pra fazer convênios, os laboratórios, tudo
era através de mim.
Também o plano de saúde era eu que tinha que dar requisição. Aí
a família teve também
mais contato comigo. Então foi sempre muito tranquilo”
Enquanto trabalhadora ferroviária, Neida transita pelo mundo do
público e da “gracinha” e
também pelo privado, “da família”, realizando múltiplas
negociações. Quando opera
narrativamente uma distinção entre “Ela” e “Eles”, evidencia-se
um certo protagonismo de se
“colocar no seu lugar”. Cabe declarar que essa distinção era
diluída em outros momentos da
narrativa, como quando me contou brincadeiras coletivas que
fazia com seus colegas homens. Por
exemplo, quando juntos, riam de um trabalhador surdo: “Ele
ficava ao dia inteiro lá na dele, na
frente do jornal, quando não tinha anda que fazer né? E ai a
gente conversando fervendo e ele nem
aí(...)”.
Neida exerceu principalmente um trabalho burocrático, de
manipulação de documentos,
carimbos e outros artefatos característicos da burocracia de uma
grande empresa estatal. Se, de um
lado, temos o trabalho bruto, físico, ou de risco,
característico de uma formação da masculinidade
(Eckert, 1988) e para o qual se tem de ter “colhão roxo” (Gómez,
2015, p.36), Neida chama atenção
para o trabalho burocrático, o seu trabalho, que também era
dispendioso, árduo e portanto, digno
de ser valorizado. Uma das formas com que ela enfatizou isto,
foi através de uma figurava narrativa
comum do heroísmo ferroviário: os acidentes.
“Quando caiu as máquinas na ponte, não sei se já te falaram
deste acidente, não me lembro
que ano foi. Eu trabalhava na Via Permanente, já no escritório,
quando a gente viu, chegou
aquela notícia: caiu o trem no canal São Gonçalo! Foi uma
loucura aquilo. Era aquele
corre, tu sabia dos colegas que estariam [no trem] Foi bem
movimentado. O pessoal da via
permanente eles trabalharam direto, dia e noite. No acidente,
para tirar as maquinas, a
função dos trilhos. Tu imaginas a quantidade de horas que eles
fizeram. Aquelas horas
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todas foram calculadas pela Neida17. Da Via Permanente era uma
turma em Rio Grande,
uma turma em Povo Novo, uma em Pedro Osorio, uma outra em passo
dos pires e outra em
Bagé. Uma força tarefa. Mas eu fazia o ponto de Pedro Osório pra
cá, dava mais de cem
homens, para calcular. ”
Com a privatização da Rede Ferroviária Federal, Neida ficou
desempregada e sua
aposentadoria teve de ser obtida “via judicial”, o que a levou a
assumir um novo emprego, uma
característica recorrente do envelhecimento brasileiro
contemporâneo (Peixoto, 2004). Hoje, atua na
prefeitura de Pelotas. Ela contou sobre sua trajetória, pós
privatização da Rede:
“É porque tem que ter 30 anos né. Eu consegui, via judicial, uma
conversão do tempo que trabalhei na estação porque claro o pessoal
que trabalhou na estação tinha aquilo, como é
que chama aquela insalubridade. E eu na parte da Via Permanente,
não tinha isso porque
era escritório né. Mas eu cheguei a trabalhar 11 anos, como
agente de estação. Então na
aposentadoria eu consegui uma conversão. Cada 10 anos ganhava 4
e para mulher era 2. A
mulher sempre em desvantagem né? É a conversão era assim. A
função era a mesma, mas a
mulher conseguia só dois anos. Foi o que eu consegui, os 11 anos
que trabalhei na estação,
consegui dois anos. Quando eu saí eu ainda paguei um ano e meio,
de previdência.
Consegui esses dois anos da conversão então eu saí proporcional.
Quase 28 anos, mas no
fim não atingiu os 30 anos, então eu saí bem mal! Peguei o tal
de fator previdenciário esse
ai eu fiquei com um salário mínimo. Eu não tenho a média que os
ferroviários têm. Mas tá!
Pelo menos eu tenho esse seguro, né? E ai tá, tive que procurar,
por isso que eu to na
prefeitura.”
Ao longo dos anos trabalhando com burocracias e cálculos (Neida
ri da ironia de trabalhar
com ponto na prefeitura, mesma função que ocupou na Rede
Ferroviária) ela é procurada por
vizinhos para fazer o imposto de renda. Seus novos projetos,
incentivados pela filha, incluem
retomar a faculdade de ciências contábeis que iniciou durante o
trabalho na Rede, mas não terminou
devido a ter perdido a audição.
“Eu já tinha várias disciplinas da licenciatura plena. Nesse
período eu tava lutando pra
conseguir o aparelho, custei pra empresa liberar o
aparelho[RFFSA custeou o primeiro
aparelho para surdez], mas não foi muito fácil da empresa
liberar até porque não era
costume deles fazerem isso, então era muita burocracia para
liberarem, então demorei pra
conseguir o aparelho. Nesse meio tempo eu tava estudando, só que
eu ia para a sala de aula
e não escutava, não escutava as vezes nem meu nome. E ai pedi
pra sair . Mas antes de sair
ainda da matemática eu cheguei a fazer transferência pras
ciências contábeis porque era a
área que eu ia me dar muito bem. Hoje a Luana quer que eu
faça.
Assim, ela articula novos projetos, pois aproxima-se o período
de sua segunda
aposentadoria. “Não quero ficar aquelas velhas chatas, bobiando.
Eu quero movimento mesmo! ”.
Conclusões
17 Em momentos narrativos como este, a trabalhadora refere-se a
si mesma na terceira pessoa: “A Neida”. Nas
circunstancias, podemos dizer, junto com Desjarlais, que o “eu
narrador” encontra o “eu narrado” (DESJARLAIS,
2003, p.109)
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Neste trabalho busquei ressaltar a vitalidade de uma “etnografia
da duração” (Rocha &
Eckert, 2013) para compreender o fenômeno da memória e da
biografia no contexto das sociedades
complexas. Especialmente, o artigo apresenta um esforço de
problematização do gênero feminino
dentro do trabalho com memória, tentando esquivar-se de uma
perspectiva meramente
“compensatória” (Strathern, 2009, p. 91) – apenas “agregando” as
mulheres na análise – e
problematizar, a partir da antropologia, a potência de uma
narrativa feminina para a tessitura
narrativa das rememorações do mundo do trabalho.
Neida, ao se construir enquanto personagem, toma possa de um
“falar de si” (Diaz, 1999)
permeado por diferentes recortes: os de mulher, de trabalhadora,
de aposentada, de ferroviária, de
estudante. Este jogo de construção de si, que é, também,
temporal, é o que mais desperta
curiosidade em uma investigação sobre biografia: Que estratégias
a narradora mobilizou? Que
períodos de sua vida enfatizou? Quais deixou para trás? O que
fez, quando confrontou-se com o
próprio “eu-narrado”?
Contar a própria história é menos um resgate de fatos
cronológicos e muito mais uma
atividade fantástica e imaginativa. São estas criatividades
narrativas, situadas no tempo e no espaço
e marcadas pela subjetividade própria de cada narrador, que um
etnógrafo da duração tem como
material precioso.
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Work and Life of a ‘Railroadwoman’: Ethnography, Memory and
Gender
Abstract: This article follows the narrative biography of a
retired railwaywoman, based on an
ethnography conducted in the city of Pelotas, Rio Grande do Sul.
The methodological approach
considers the narrative act as fabric of the presentation of
self and of building the collective
memory, through the encounter between ethnographic subjects. The
work is characterized by
intends the separation of private and public, as well as between
work and leisure, especially through
measures paternalistic adopted by the Federal Railway Network
(privatized in the 1990s). The
working villages is one of the examples of this urban
paternalism: with the housing (propriety of the
company) close to their place of work, allows the immobilization
of the labor force, as well as their
surveillance This type of capitalist development is also
absorbed into other dimensions of everyday
life, with the creation of the Railroad Schools, cooperatives,
etc. By this angle, the bibliography
points to the emergence of a "worker family", with its peculiar
characteristics. Even so, in the
analyzes of work classes the understanding that the railroad
work is of male predominance, women
are associated with the scope of the house and end up having as
a field of action only initiatives to
projects of social ascent, through schooling or construction of
social bonds. In this way, follow the
narrative of a railroadwoman, Neida, a single mother, retired
Agent of Station, is following the
footsteps of a "biography of exception", which enables vitality
for the discussion of gender, work
and memory.
Keywords: Labour, Work Class Women, Biography, Narrative