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Victor Ribeiro Villon
A Histria em Desconcerto: As Ankdota de Procpio de Cesareia e
a
Antiguidade Tardia
Tese de Doutorado
Tese apresentada como requisito parcial para obteno do grau de
Doutor pelo Programa de Ps-Graduao em Histria Social da Cultura, do
Departamento de Histria da PUC-Rio.
Orientadora: Prof. Flvia Maria Schlee Eyler
Rio de Janeiro Agosto de 2014
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1011847/CA
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Victor Ribeiro Villon
A Histria em Desconcerto: As Ankdota de Procpio de Cesareia e
a
Antiguidade Tardia
Tese apresentada como requisito parcial para obteno do grau de
Doutor pelo Programa de Ps-Graduao em Histria Social da Cultura do
Departamento de Histria do Centro de Cincias Sociais da PUC-Rio.
Aprovada pela Comisso Examinadora abaixo assinada.
Prof Flvia Maria Schlee Eyler
Orientadora Departamento de Histria PUC-Rio
Prof Dulcileide Virginio do Nascimento Departamento de Letras
Clssicas e Orientais UERJ
Prof Maria Elizabeth Bueno de Godoy Departamento de Histria -
USP
Prof Miriam Sutter Medeiros Departamento de Letras - PUC-Rio
Prof. Antonio Edmilson Martins Rodrigues Departamento de Histria
PUC-Rio
Prof. Mnica Herz Vice-Decana de Ps-Graduao do Centro de Cincias
Sociais
PUC-Rio
Rio de Janeiro, 07 de agosto de 2014
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1011847/CA
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Todos os direitos reservados. proibida a
reproduo total ou parcial do trabalho sem
autorizao da universidade, do autor e da
orientadora.
Victor Ribeiro Villon
tradutor; graduado em Histria pela PUC-Rio;
Mestre em Histria Social da Cultura pela PUC-Rio.
Ficha Catalogrfica
CDD: 900
Villon, Victor Ribeiro A histria em desconcerto: as ankdota de
Procpio de Cesareia e a antiguidade tardia / Victor Ribeiro Villon
; orientadora: Flvia Maria Schlee Eylerl. 2014. 162 f. : il.
(color.) ; 30 cm Tese (doutorado)Pontifcia Universidade Catlica do
Rio de Janeiro, Departamento de Histria, 2014. Inclui bibliografia
1. Histria Teses. 2. Ankdota. 3. Procpio de Cesareia. 4.
Antiguidade tardia. 5. Cristianismo e Paganismo. 6. Justiniano
imperador. 7. Histria bizantina. 8. Histria grega. 9. Teoria da
histria. I. Eyler, Flvia Maria Schlee. II. Pontifcia Universidade
Catlica do Rio de Janeiro. Departamento de Histria. III. Ttulo.
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memria do professor Edson Nery da Fonseca
(*6. XII. 1921-22. VI. 2014)
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Agradecimentos
professora Flvia Schlee Eyler pela orientao, pelo incentivo e
por ter sempre
acreditado neste projeto.
Aos professores que aceitaram fazer parte da banca de defesa:
Miriam Sutter;
Antonio Edmilson Martins Rodrigues; Dulci Nascimento; Elizabeth
Bueno de
Godoy.
Aos professores que aceitaram fazer parte da banca como
suplentes: Euncia
Fernandes e Mrcio Luiz Mointinha Ribeiro.
A professora Slvia Patuzzi, que participou da banca de
qualificao desta tese,
por suas inmeras sugestes.
Aos professores das disciplinas do programa de ps-graduao:
Ricardo
Benzaquen, Marcelo Gantus Jasmin. E, tambm, aos colegas da turma
de
doutorado que deram sugestes durante os Seminrios de Tese,
especialmente, no
que tange o captulo Uma Leitura Literria das Ankdota.
Aos professores: Berenice Cavalcante; Ilmar Rohloff de Mattos;
Isabela
Fernandes; Joo Masao Kamita; Luiz Reznik; Masa Mder; Margarida
de Souza
Neves; Marco Antnio Pamplona que acompanharam em diversos
momentos o
meu j longo percurso na PUC-Rio.
Ainda na PUC-Rio: Edna Timb, secretria da Ps-Graduao, sempre
to
solicita e gentil. Aos outros funcionrios do Departamento de
Histria, Anair
Oliveira dos Santos, Claudio Santiago de Arajo, e Cleusa Ventura
de Souza
Silva.
Mais do que especialmente s minhas tias Ivanita Villon e Ivone
Villon, que com
pacincia revisou cada uma destas pginas, a ambas agradeo por
todo carinho,
compreenso e apoio incondicional, seguramente posso dizer: sem
elas nada seria
possvel! Aos meus pais Luci Ribeiro e Victor Villon por todo o
carinho, desvelo,
amizade e ateno ao longo de todos esses anos.
Ao Bruno Moreira-Leite por toda a sempre fiel amizade.
A Barbara Cassar por nossas odisseias editoriais.
Giselle, Karinna e Lvia Marques Cmara, com quem tenho o
privilgio e a
sorte de compartilhar uma grande amizade.
s to queridas Priscylla Klein e Suellen Napoleo, que conheci nos
idos e
saudosos tempos do segundo grau, eternas confidentes e grandes
amigas.
Ao querido trio primordial: Louise Medeiros Comte Novais, Simone
Bernardo
de Castro e Vanessa Crouzet, por toda nossa vasta e
inquebrantvel amizade.
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A Raphaella Perlingeiro que acompanhou e compartilhou, firme e
fielmente, as
aventuras e desventuras que circundaram a elaborao desta
tese.
A Maria De Simone Ferreira por dividir, ao longo desses anos, as
questes
existenciais da vida de mestrando e doutorando.
Professora Jenny Elfriede Kellner (In memoriam) e a Susanne
Khawaja, pela
constante alegria e incentivo.
Annie Simone Verrier pela amizade, de todos esses anos, que
vence as longas
distncias atlnticas.
Catherine (Cathy) Vivis, professora que tive a sorte de se
transformar em
amiga, e que revisou o Rsum desta tese.
Ao professor Antonio Mattoso pelas aulas de grega e pela indicao
bibliogrfica
de Bakhtin.
Ao Dr. Nelson Goldenstein, que acompanhou as minhas angstias
redacionais,
por suas palavras de encorajamento.
Ao CNPq que me proporcionou, ao longo de dois anos, bolsa de
mestrado para a
realizao deste trabalho.
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Resumo
Villon, Victor Ribeiro; Eylerl, Flvia Maria Schlee. A histria
em
desconcerto: as ankdota de Procpio de Cesareia e a
antiguidade
tardia. 2014, 162p. Tese de Doutorado Departamento de
Histria,
Universidade Catlica do Rio de Janeiro.
Procpio de Cesareia foi um historiador de expresso grega que
viveu no sculo V.
Sua obra uma das principais fontes para conhecer a histria do
reinado do imperador
Justiniano. Ele escreveu trs obras: Histria das Guerras; as
Ankdota ou Histria Secreta;
e Dos Edifcios. Esta tese concerne s Ankdota. Nesse texto,
Procpio de Cesareia
pretendeu relatar as causas e os acontecimentos que no pde dizer
nos seus livros de
histria oficial. Nas Ankdota, Procpio de Cesareia mostra o
imperador Justiniano e sua
mulher Teodora como a encarnao do mal, chegando mesmo a dizer
que o casal imperial
seria, em realidade, demnios. Esta tese est dividida nos
seguintes captulos, abaixo
nomeados: Os Desconcertos de um Texto - apresentamos a
descoberta do manuscrito
das Ankdota no sculo XVII; por Nicolau Alemmani, na Biblioteca
Vaticana, a estrutura e
os temas que a so abordados por Procpio de Cesareia; assim como
a repercusso que a
publicao das Ankdota desencadeou nos sculos que se seguiram. A
Antiguidade
Tardia: primeiramente, analisamos o conceito de Antiguidade
Tardia e, depois, detemos
nosso olhar, mais especificamente, na poca em que Procpio de
Cesareia desenvolveu sua
obra. Uma leitura Literria das Ankdota: Com o auxlio do
instrumental terico
elaborado pelo crtico literrio alemo Ernest Auerbach, tentamos
discernir a presena de
caractersticas estilsticas crists na escrita procopiana. Em um
segundo momento, ainda
nesse captulo, utilizamos tambm os conceitos do crtico literrio
russo, Mikhail Bakhtin,
que tratam da Stira Menipeia, para fazer uma aproximao entre
esse gnero e as
Ankdota. Outono da Histria Clssica ou Primavera da Mundividncia
Crist na
Histria?: Nesse ltimo captulo, mostramos como as Ankdota podem
ser percebidas
como uma obra caracterstica desse perodo de importantes mudanas,
a Antiguidade
Tardia. Nesse texto de Procpio de Cesareia, cruzam-se os
elementos caractersticos da
historiografia grega clssica, mas tambm elementos que
compartilham de uma viso de
mundo crist, logo, as Ankdota nos conduzem a refletir sobre as
diferenas entre uma
viso de mundo pag e uma viso de mundo crist.
Palavras-Chave
Ankdota ou Histria Secreta; Procpio de Cesareia; Antiguidade
Tardia;
cristianismo e paganismo; Justiniano imperador; Histria
Bizantina; historiografia
grega; Teoria da Histria.
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Resum
Villon, Victor Ribeiro; Eylerl, Flvia Maria Schlee. (Advisor)
L'Histoire
en Drglement: Les Ankdota de Procope de Csare et l'Antiquit
Tardive. 2014, 162p. Tese de Doutorado Departamento de
Histria,
Universidade Catlica do Rio de Janeiro.
Procope de Cesare fut un historien d'expression grecque qui vcut
au Ve sicle.
Son uvre est une des principales sources pour connatre
l'histoire du rgne de l'empereur
Justinien. Il crivit trois ouvrages : Histoire des Guerres; les
Ankdota ou Histoire Secrte
; et Les difices. Cette thse concerne les Ankdota. Dans ce texte
Procope de Csare
prtendit rapporter les causes et les vnements qu'il ne put pas
dire dans ses livres
d'histoire officielle. Dans les Ankdota, Procope montre
l'empereur Justinien et sa femme
Thdora comme l'incarnation du mal, il arrive mme dire que le
couple imprial serait,
en ralit, des dmons. Cette thse se rencontre divise dans les
chapitres suivants : Les
Drglements d'un Texte : nous prsentons la dcouverte du manuscrit
des Ankdota
au XVIIe sicle par Nicolas Alemanni dans la Bibliothque Vaticane
; la structure et les
thmes abords par lauteur ; ainsi que la rpercussion que la
publication des Ankdota
dclencha dans les sicles qui se suivirent. L'Antiquit Tardive :
D'abord, nous
analysons le concept d'Antiquit Tardive et ensuite, nous
arrterons plus spcifiquement
notre regard sur la priode dans laquelle Procope de Cesare
crivit son uvre. Une
lecture littraire des Ankdota : l'appui des concepts labors par
le critique
littraire allemand Ernest Auerbach, nous essayons de dceler la
prsence des
caractristiques stylistiques chrtiennes dans l'criture
procopienne. Dans un second
moment, dans ce mme chapitre, nous utilisons les concepts du
critique littraire russe
Bakhtin, concernant la Satyre Menipe, pour faire un
rapprochement entre ce genre et les
Ankdota. Automne de l'Histoire Classique ou printemps d'une
vision chrtienne
du monde dans lHistoire ? : Dans ce dernier chapitre, nous
montrons comme les
Ankdota peuvent tre perue comme un ouvrage caractristique de
cette priode
charnire, l'Antiquit Tardive. lintrieur de celles-ci se croisent
les lments
caractristiques de l'historiographie grecque classique, mais
aussi des lments qui
puisent dans une vision chrtienne du monde, donc les Anekdota
nous mnent rflchir
sur les diffrences entre une vision paenne et une vision
chrtienne du monde.
Mots clefs Ankdota ou Histoire Secrte; Procope de Csare;
Antiquit Tardive;
Justinien Empereur; Histoire Byzantine; christianisme et
paganisme;
histriographie Grecque; Thorie de lHistoire.
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Sumrio
1. Introduo 12 2. Desconcertos de um texto 21
2.1. A anedota das Ankdota 21 2.2. Nicol Alemanni e a pesquisa
antiquria 23 2.3. Entre o Estado e a Igreja 27 2.4. Peripcias de um
texto incmodo 29
2.4.1. As Ankdota: temas e estrutura da obra 31 2.4.2. Fortuna
crtica 56
3. A Antiguidade Tardia 67
3.1. Definies de um termo 67 3.2. Procpio de Cesareia 70 3.3.
Procpio espelho do historiador ou a Histria s avessas 74 3.4.
Justiniano e sua poca 77
3.4.1. Guerra Persa 80 3.4.2. Guerra Vndala 81 3.4.3. Guerra
Gtica 82 3.4.4. Cdigo Justiniano 83
4. Uma leitura literria das Ankdota 85
4.1. As ankdota reflexos de uma mundividncia crist? 85 4.2.
Tentativas de uma leitura auerbachriana das Ankdota 87
4.2.1. A cicatriz de Ulisses 87 4.2.2. O Trimalcio 92 4.2.3. A
negao de Pedro 101 4.2.4. Teodora: entre a Histria e o Sermo
Humilis 103 4.2.5. Sermo humilis 107
4.3. Quando a Stira Menipeia adentra a Histria 109 4.3.1. O
srio-cmico 110 4.3.2. A Stira Menipeia 114
5. Outono da Histria Clssica ou primavera da mundividncia crist
na Histria? 121
5.1. O tribunal de Cristo ou a vigilncia interior 121 5.2. A
hbris e o pecado 134 5.3 A (phsis) e a transcendncia 136 5.4. O
Prncipe dos demnios 138
6. Concluso 143 7. Referncias bibliogrficas 148 8. Anexos
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Lista de Figuras
Figura 1: O Imprio Romano do Oriente, quando da ascenso de
Justiniano, em 527, (laranja); as guerras de reconquista, com os
respectivos anos (setas em vermelho); assim como os territrios
conquistados (amarelo) 80
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Aunque rompimos sus estatuas,
Aunque los expulsamos de sus templos,
No por eso murieron del todo los dioses.
Oh tierra de la Jonia, a ti te aman todava,
A ti sus almas te recuerdan an.
Cuando sobre ti amanece una maana de agosto,
[]
Konstandinos Kavafis,
Jnico.
Traduo de Miguel Castillo Didier
[...] que a vida
mltipla e todos os dias so diferentes dos
outros,
E s sendo mltiplos como eles
Staremos com a verdade e ss.
Fernando Pessoa,
No a ti, Cristo odeio ou te no quero,
Odes de Ricardo Reis.
Musa,
Memora mihi causas
Virglio,
Eneida
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1. Introduo
Essa ideia, que constitui o ponto essencial do paradigma
indicirio ou semitico,
penetrou nos mais variados mbitos cognoscitivos, modelando
profundamente as
cincias humanas. Minsculas particularidades paleogrficas foram
empregadas
como pistas que permitiam reconstruir trocas e transformaes
culturais [...]. A
representao das roupas esvoaantes nos pintores florentinos do
sculo XV, os
neologismos de Rabelais, a cura dos doentes de escrfula pelos
reis da Frana e da
Inglaterra so apenas alguns entre os exemplos sobre o modo
como,
esporadicamente, alguns indcios mnimos eram assumidos como
elementos
reveladores de fenmenos mais gerais: a viso de mundo de uma
classe social, de
um escritor ou de toda uma sociedade.
Carlos Ginzburg1
Sinais: Razes de um paradigma indicirio
Diz o provrbio francs que avec des si on mettrait Paris en
bouteille
(Com os se colocaramos Paris dentro de uma garrafa), ressaltando
as situaes
absurdas s quais somos conduzidos quando resvalamos nos encantos
sedutores
da conjuno se. Com essa simples conjuno, podemos construir
grandes
empreitadas no mundo da imaginao ou a nos manter sempre na
esfera
imagtica dos provrbios e expresses podemos construir castelos no
ar. A
imagem das construes imaginrias tem um dos seus mais slidos
alicerces no
simples se. preciso admitir que a pequena conjuno libertadora,
pois
proporciona abrir as mais diversas janelas da experincia,
permite traar novas
linhas do horizonte e vivenciar realidades que, de outra forma,
no seriam
impossveis. Ilusria panaceia a qual podemos recorrer contra a
monotonia da
realidade presente.
Mas a referida conjuno no deixa de possuir um lado mais perigoso
e este
se relaciona escrita da Histria. Caso existam pecados do
historiador,
certamente, aventar realidades que no aconteceram seria um
deles. E tais pecados
principiam, na maior parte das vezes, com uma pergunta
introduzida por se.
Mas a pergunta ainda que tentadora no conduz necessariamente a
um
pecado do historiador, desde que no seja respondida
historicamente. E se o
Imprio Romano do Ocidente no tivesse cado? E se a Amrica no
tivesse sido
1 GINZBURG, Carlos: Mitos, emblemas e sinais. 2001. p.p.
177-178
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descoberta? E se Constantinopla no tivesse sido tomada pelos
turcos em 1453? E
se a fuga de Luis XVI no tivesse sido frustrada, em Varennes,
naquela noite de
21 de junho de 1791? Formular tais perguntas no , em si mesmo,
um erro
histrico. Basta que tenhamos conscincia de que simplesmente no
poderemos
respond-las historicamente. Mas esse tipo de questionamento pode
se tornar
salutar, quando nos estimula a analisar com mais ateno e desvelo
as foras que
esto em jogo em determinado momento do passado; a refletir sobre
as tenses,
diferenas e semelhanas dos atores sociais de uma poca. O desejo
em prever
realisticamente como teria sido aquele futuro do passado que no
ocorreu afina
o olhar e desperta o anseio de conhecer os homens e suas
sociedades, na esperana
de podermos reconstituir o desdobramento da ao hipottica. Caso
perguntemos
fazendo uso, a ttulo ilustrativo, de um dos exemplos mencionados
acima : o
que teria acontecido se a fuga de Luis XVI no tivesse sido
frustrada em
Varennes? E se Luis XVI nem mesmo tivesse colocado o plano da
fuga em
prtica? Essas perguntas podem nos estimular a refletir sobre os
objetivos do rei,
sobre as ideias polticas que circulavam na Frana ou, ento, sobre
o poder de
ao dos migrs que se refugiavam alm das fronteiras da Frana
confabulando
contra a Revoluo. Mas jamais saberemos qual teria sido o destino
de Lus XVI e
de sua famlia, se a Revoluo teria se radicalizado com o Terror,
tampouco se os
migrs teriam xito em seus propsitos. As perguntas poderiam
seguir ad
infinitum; respond-las seria sobrepor umas s outras, como
pequenos tijolos que
formariam vastos castelos de possibilidades que no aconteceram,
todos eles
assombrosa e unicamente alicerados na conjuno condicional
se.
O historiador francs Paul Veyne intitulou um dos seus livros
Acreditavam
os gregos em seus mitos?, sugestivo ttulo que faz uso de toda
enfatizao que
uma interrogao pode conceder. O mesmo historiador, mais
recentemente,
intitulou outro de seus livros com ttulo no menos expressivo,
Quando nosso
mundo se tornou Cristo. Ousado seria quem viesse a se inspirar
em Veyne e,
conjugando o ttulo de ambas as obras, intitulasse seu escrito de
E se o nosso
mundo no tivesse se tornado Cristo?.
Hei de fazer um mea culpa, ou melhor, um fere mea culpa, um
quase mea
culpa, e confessar que, em parte, esta tese nasceu de uma tentao
ao pecado do
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historiador. A tentao de responder: E se o nosso mundo no
tivesse se tornado
Cristo?. Mas ressalto, desde j, que no ca em tentao, pois,
responder a tal
pergunta seria sair dos domnios de Clio e seguir pelos domnios
de sua irm
Euterpe musa da poesia lrica, outra filha dessa grande deusa da
Memria,
Mnemsine, que tanto nos fascina e assombra , seria sair das
searas da Histria
e seguir por aquelas da Literatura. No cabe Histria imaginar o
que teria
acontecido se certa situao no tivesse ocorrido. Mas cabe sim
Histria refletir
sobre diferenas de modo de apreenso do mundo do passado e sobre
isso que
estas linhas tratam.
A minha dissertao de mestrado, intitulada Konstandinos Kavafis e
o
Mundo Greco-Romano: dilogos entre a Histria e a poesia abordou
as relaes
entre o poeta grego moderno de Alexandria e a cultura clssica da
qual sofrera
grande influncia. Mais especificamente, tentei apontar a ideia
de Histria que
Kavafis desenvolveu perdoem-me a redundncia em seus poemas
de
temtica histrica, ideia essa a meu ver que foi fortemente
influenciada/reinventada com base no topos da historia magistra
vit da
Antiguidade. Chegada a hora de buscar um objeto de pesquisa para
o doutorado,
decidi que gostaria de continuar na esfera dos textos
proveniente da cultura
Greco-romana, mas dessa vez no pelo intermdio de um autor
contemporneo,
mas sim atravs do contato direto com um autor da poca. Mas qual
autor? Iniciei
a busca e foi atravs da pgina eletrnica da clebre editora
francesa Les Belles
Lettres que, pela primeira vez, tomei conhecimento da existncia
de Procpio de
Cesareia. A primeira sensao que tive ao ler a sinopse das
Ankdota foi
desconcertante. Mas no imaginava que o texto que acabava de
encontrar viria a
se relacionar com a questo que diversas vezes passara-me pelo
esprito: E se o
nosso mundo no tivesse se tornado Cristo?.
Tempos depois o livro chegava s minhas mos e a pesquisa para a
redao
do projeto comearia. Logo, descobri que as Ankdota eram um texto
que durante
muitos sculos fora dado como perdido e que s seria redescoberto
na Biblioteca
Apostlica Vaticana, j no sculo XVII e que tal descoberta
causaria grandes
polmicas, tanto a respeito da veracidade contida nesse
documento, como, at
mesmo, a respeito da sua autenticidade autoral. Descobriria
ainda que a palavra
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anedota, corrente na lngua portuguesa e, pelo menos, nas
principais lnguas
ocidentais, teve seu sentido cunhado por influncia do prprio
livro de Procpio.
Estava diante de um texto rico de significados. Mas foi somente
durante o correr
do doutorado que comecei a considerar as Ankdota como um texto
representativo
da Antiguidade Tardia, esse perodo que se configura a partir de
uma dimenso
geogrfica, o Mediterrneo, e temporal, as fronteiras entre o
perodo da
Antiguidade e o da Idade Mdia. A maneira e a intensidade com que
Procpio de
Cesareia redigiu e estruturou o seu texto era algo sui generis o
que me levou a
indagar sobre as razes disso. Fazendo uso ainda das palavras do
historiador
italiano, Carlo Ginzburg, o faro, golpe de vista, [e] intuio
indicavam-me que
essa obra de Procpio de Cesareia estava entre dois mundos: o dos
clssicos da
Antiguidade e aquele da f crist. A invectiva que Procpio de
Cesareia lanava
contra Justiniano, Teodora, Belizrio e Antonina seria a
denunciao de seus
pecados. Mas um problema levantou-se contra a minha hiptese: a
exacerbada
crtica aos desregramentos morais da ordem do privado j haviam
sido
denunciados na Antiguidade por autores pagos: Demstenes contra a
hetaira
Neera, Suetnio contra Calgula e Tcito contra Messalina.
Mas a questo no era a denunciao moral em si mesma, mas a
forma
como esta se dava e de onde provinha segundo o historiador de
Cesareia, isto , a
origem dos males. Procpio transformara Justiniano e Teodora na
encarnao de
demnios. A concepo adotada por Procpio tratava-se de uma
concepo
eminentemente crist. O meu interesse em refletir sobre as
diferenas entre as
vises de mundo do paganismo e do cristianismo, fizeram com que
visse que
estava em minhas mos um texto convidativo a tal reflexo e foi
por esse caminho
que segui em minha pesquisa.
Tentei apreender o texto das Ankdota como um sugestivo indcio
para
penetrar em duas diferentes mundividncias, com o mesmo esprito
das palavras
de Ginzburg que encimam como epgrafe esta introduo. Considerei o
texto
procopiano como revelador da adoo de elementos caractersticos
da
mundividncia e/ou sensibilidade crist na escrita de um texto que
se prope ser
eminentemente um texto de Histria, e que mimetiza os
considerados padres da
historiografia clssica greco-romana. Por conseguinte, atravs
desse ngulo
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analtico, as Ankdota configuram-se como um texto revelador de um
fenmeno
mais geral, o triunfo de elementos tipicamente cristos na forma
de percepo dos
homens e mulheres que viveram na Antiguidade Tardia, o que logo
conduz a
refletir no somente sobre o cristianismo, mas tambm sobre o seu
contraponto, o
paganismo.
preciso, no entanto, fazer uma importante ressalva, a ideia de
um
cristianismo e de um paganismo perenes, coesos e que se
contrapem no se
sustenta. Bem sabemos que entre o paganismo de Homero, o dos
estoicos e o dos
mitrastas, por exemplo, h vrias e grandes diferenas; do mesmo
modo, no
podemos falar de um cristianismo impermevel variabilidade dos
grupos que o
compem e s mudanas de ordem histrica. Mas sem enfrentar o medo
de buscar
pontos em comum, de aproximar significados, de agrup-los e de
tecer
comparaes, o trabalho do historiador torna-se uma mera sucesso
montona e
infinita que se compraz em constatar a idiossincrasia
impenetrvel de cada
elemento do passado, podendo chegar, at mesmo, tautolgica
afirmao de que
cada minuto um minuto diferente do outro. O passado torna-se
assim irredutvel
a qualquer anlise e resvalamos na impossibilidade de
interpretao, em situao
que se aproxima quela descrita por Ginzburg, ao comentar a
anlise feita por
Foucault sobre as memrias de um criminoso francs do sculo XVII:
A
possibilidade de interpretar esse texto foi excluda de forma
explcita, porque
equivaleria a alter-lo, reduzindo-o a uma razo estranha a ele.
No sobra mais
nada, alm de estupor e silncio 2. A percepo das diferenas que
subjazem
sob os termos essencial, mas lev-la a extremos to prejudicial
escrita da
Histria como as grandes generalizaes que no levam em conta as
sutis
diferenas, sejam elas temporais, espaciais ou sociais. O
historiador jaz entre a
tenso de buscar continuidades e especificidades. Resvalar no
excesso das
continuidades interpretar de forma embrutecida e anacrnica,
resvalar no
excesso das especificidades a prpria incapacidade de
interpretar. Consciente
dessa dificuldade, desse delicado equilbrio ao qual o
historiador deve se manter,
espero ter seguido sempre a recomendao de Horcio, que to bem
expressa o
2 GINZBURG, Carlo: O Queijo e os Vermes. p.17
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ideal de moderao to caro Antiguidade: Dum vitant stulti vitia,
in contraria
currunt (Os tolos, ao evitarem os vcios, correm para os vcios
opostos) 3.
ttulo introdutrio, importante ainda dizer certos aspectos
que
concernem estruturao formal desta tese. Esta se divide
essencialmente em
quatro captulos excluindo a introduo e a concluso. Gostaria de
apresentar
brevemente as razes que me levaram a compor cada um desses
captulos:
Os Desconcertos de um Texto - Visto que penso ser de grande
importncia a relao que um texto estabelece com a sua tradio
de
interpretaes e/ou apropriaes, decidi no me limitar somente ao
perodo da
Antiguidade Tardia, mas abordar tambm a descoberta das Ankdota
por Nicol
Alemmani, na primeira metade do sculo XVII, as implicaes que
esse texto, at
ento considerado perdido, desencadearam, assim como ele foi
interpretado por
determinados intelectuais nos sculos que se seguiram. No
entanto, interpus entre
a apresentao da descoberta das Ankdota e a sua fortuna crtica,
uma
apresentao da estrutura da obra, na qual expus o mais
objetivamente possvel
uma sntese de cada um dos trinta pequenos captulos. Essa ordem
justifica-se,
aps inteirar-se das circunstncias que envolveram a descoberta, o
leitor poder
inteirar-se, de maneira mais consubstancial, sobre o que tratado
propriamente
nas Ankdota, podendo assim acompanhar s constantes referncias
que lhes so
feitas do desenvolvimento subsequente da tese.
A Antiguidade Tardia esse captulo pretende oferecer
primeiramente
um breve histrico do desenvolvimento do conceito de Antiguidade
Tardia, assim
como definir o que a historiografia atual entende a respeito
deste. Em seguida,
adentro mais especificamente o ambiente do reinado do imperador
Justiniano com
a sua poltica de reconquistas, cenrio no qual Procpio de
Cesareia desenvolveu
toda a sua obra, sendo, por isso, necessrio para uma perfeita
compreenso das
Ankdota.
Uma leitura literria das Ankdota A partir do instrumental
terico
oferecido pela obra de dois crticos literrios, o alemo Ernest
Auerbach e o russo
3 HORCIO apud TOSSI, Renzo: Dicionrio de Sentenas Latinas e
gregas. Trad. Ivone
Castilho Benedetti. So Paulo, Martins Fontes, 2010. (3
edio).
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18
Mikhail Bakhtin, tentei deslindar algumas caractersticas
textuais do texto
estudado. Primeiramente, mostro como certos traos atribudos por
Auerbach a
uma maneira judaica e posteriormente crist de abordar os temas
se faz presente
nas Ankdota, diferenciando esse texto da tradio historiogrfica
grega, ainda
que Procpio a mantenha como modelo. A presena de personagens
pertencentes
s classes mais baixas, em um texto de gnero srio, assim como a
abordagem de
temticas cotidianas, consideradas baixas, aproximam as Ankdota
do sermo
humilis cristo. Em um segundo momento, empreendo uma aproximao
entre o
gnero da Comdia Menipeia, conforme apresentado por Bakhtin, e
as
Ankdota.
Outono da Histria Clssica ou Primavera da Mundividncia Crist
na
Histria? No ltimo captulo, pretendo mostrar como as Ankdota so
um
texto em que se conjugam os parmetros da historiografia grega
com uma viso
de mundo tipicamente crist, o que me levou a refletir sobre as
diferenas bsicas
entre uma mundividncia crist e uma mundividncia pag.
Gostaria tambm de comentar a respeito da escolha do ttulo, A
Histria em
Desconcerto. A meu ver as Ankdota desconcertam a histria em dois
sentidos. O
mais patente aquele de um historiador que tece afirmaes que vo
em direo
contrria quelas que ele mesmo afirmou em outras obras; o de um
historiador
que confessa ter omitido propositalmente determinadas informaes
que seriam as
verdadeiras causas dos acontecimentos. Por esse motivo, as
Ankdota
desconcertaram e ainda desconcertam o restante da obra de
Procpio. Esse seria o
primeiro sentido, mas outro menos aparente se faz igualmente
presente: as
Ankdota desconcertam a histria clssica. Procpio pretendeu que as
Ankdota
fossem um complemento a sua obra maior, que fossem o nono livro
da Histria
das Guerras um livro que, por sua vez, tem como modelo a Histria
da
Guerra do Peloponeso de Tucdides. Procpio teve o cuidado de
manter um grego
que se assemelhasse ao estilo de seus predecessores clssicos e a
justificativa que
apresentou no comeo de seus livros, explicando o porqu de
escrever seus
relatos, uma razo caracterstica da historiografia clssica:
perpetuar os feitos do
passado, fazer com que a gesta dos homens no fosse tragada pelo
tempo,
possibilitar que os homens do futuro pudessem aprender e se
orientar atravs do
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conhecimento das experincias pretritas. No entanto, Procpio
escreveu as
Ankdota para denegrir o imperador. Ora, para que a sua crtica
fosse eficaz
calando fundo na alma daqueles que viessem a l-la era preciso
lidar com
parmetros e valores que pertencessem realmente ao grupo dos seus
futuros e
potenciais leitores, foi por isso que deslegitimizou o imperador
ao afirmar que ele
e sua mulher, Teodora, eram na verdade demnios. Ora, a viso
crist que se
insere dentro das Ankdota alheia historiografia clssica, dessa
forma,
podemos dizer que as Ankdota desconcertam os padres clssicos da
histria
antiga, sem, entretanto, que Procpio deixe de t-la como
modelo.
Para finalizar, retomo o argumento com o qual dei incio a esta
introduo, a
afirmao de que um dos pecados do historiador tentar supor o que
teria
acontecido, caso determinado fato tivesse ou no ocorrido.
Repito, o problema
no reside propriamente em formular a pergunta com a conjuno se,
mas sim
em tent-la responder. Aos historiadores tal resposta afigura-se
como um
pecado, simplesmente porque ao diz-la eles saem dos seus
domnios, mas no
literatura. As Ankdota acabam nos estimulando, no final das
contas, a pensar a
respeito das diferenas entre uma mundividncia crist e uma pag e,
sem querer,
escapole de nosso pensamento a pergunta: E se o nosso mundo no
tivesse de
tornado cristo?. E ainda que a Histria frustrada nesse ponto
tenha que se
conformar com o fato de que somente a literatura capaz de
fornecer uma ou
vrias respostas, no deixa de ser interessante notar que Euterpe
pode mostrar a
Clio que o futuro do passado j esteve um dia em aberto, tal qual
hoje o nosso
futuro. difcil para a Histria assim como , talvez, para a
maioria dos
Homens a sensao de que o acontecido no necessariamente era o
nico
possvel. Aproveito o ensejo e recordo aqui as palavras da
historiadora francesa,
Mona Ozouf ao comentar o episdio da fuga de Varennes:
Do movimento inesperado que podem tomar os destinos, os
romancistas se
encantam: o infinitamente improvvel que constitui para eles,
como para Hannah
Arendt, a prpria textura do real. Eles esto habituados a
substituir os
acontecimentos que aconteceram pelos imaginrios, a sonhar com a
infinitude de
desenlaces possveis. Os historiadores, em compensao, procuram
sempre extrair
da profuso de fatos a necessidade que os ordena. Para eles,
impermeveis ao que
fortuito, aplicados em reduzir o intervalo entre o possvel e o
real, o que aconteceu
tinha que acontecer. Conhecer o fim da histria um privilgio
ambguo: esto
inclinados a dobrar os acontecimentos que realmente aconteceram,
em encontrar-
lhes uma racionalizao, a apagar a reflexo sobre o que poderia
ter sido. E
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enquanto o romancista no est nem um pouco inquieto com as
discordncias de
testemunhos [...] o historiador procura sempre concili-los,
reduzi-los a parte de
incertezas, sobre uma verso unificada4. (A traduo nossa)
4 Du tour inattendu que peuvent prendre les destins, les
romanciers senchantent : cest
linfiniment improbable qui constitue pour eux, comme pour Hannah
Arendt, la texture mme du
rel. Ils sont rompus substituer les vnements imaginaires ceux
qui ont eu lieu, rver
linfinit des dnouements possibles. Les historiens, en revanche,
cherchent toujours dbusquer
sous le foisonnement des faits la ncessit qui les ordonne. Pour
eux, impermables ce qui est
fortuit, appliqus rduire lintervalle entre le possible et le
rel, ce qui est arriv le devait.
Connatre la fin de lhistoire est un privilge ambigu : ils les
incline plier les vnements ce
qui est effectivement advenu, leur trouver une rationalisation,
teindre la rflexion sur ce qui
aurait pu tre. Et alors que le romancier nest nullement inquiet
de la discordance des
tmoignages [...] lhistorien cherche toujours les accorder,
rduire la part des incertitudes,
camper sur une version unifie. OZOUF, Mona : Varennes : La mort
de la royaut (21 juin
1791), 2005. pp. 20-21
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2. Desconcertos de um texto
2.1. A anedota das Ankdota
Um monge italiano, em meados do sculo XV, devotava especial
apreo
pelos livros e no media esforos para colecion-los. Esse jovem e
erudito
sacerdote recebera sobre a pia batismal o nome de Tommaso
Parentucelli. O amor
e o interesse pela preservao das antigas fontes eram
dispendiosos e difceis,
visto que a oportunidade de aquisio de um raro manuscrito
poderia ser nica e,
por tal, de valor inestimvel. Alm disso, a produo de um exemplar
consumia
dias a fio do atento trabalho de um copista. Diferentemente de
nossa poca,
quando a multiplicidade de meios de reproduo cada vez maior, no
sculo XV
a sobrevivncia de uma obra, ou at de um autor, poderia
resumir-se na dramtica
preservao de um s manuscrito. Adquirir, copiar e guardar velhos
escritos eram
aes determinantes: tratava-se de legar para a humanidade futura
as obras do
passado ou, ento, perd-las para todo o sempre, deixando para a
posteridade a
aflitiva sensao de imaginar o que se poderia conhecer e jamais
se conhecer.
Mas Parentucelli foi um desses homens teimosos que, direta
ou
indiretamente, assumiu a quase sempre inglria luta contra a
corroso do tempo.
Jacob Burckhardt chega a dizer que Parentucelli: endividou-se
para comprar
manuscritos ou mandar copi-los 5; e, logo em seguida, o
historiador suo
interpreta a irresistvel paixo biblifila como a genuna expresso
de uma poca:
ele [Parentucelli] professava abertamente as duas grandes paixes
do
Renascimento: os livros e as edificaes 6. Anos depois, em 6 de
maro de 1447,
Tommaso Parentucelli tonava-se o Papa Nicolau V e entraria para
a Histria como
o primeiro papa do Renascimento7.
A ascenso do j ento Cardeal Parentucelli ao trono de So Pedro
fez com
que seu interesse pelas letras pudesse tomar perspectivas ainda
maiores. Nicolau
V empreendeu um verdadeiro projeto humanista de valorizao das
artes e das
5 BURCKHARDT, Jakob: A cultura do Renascimento na Itlia: um
ensaio. p. 150
6 Idem
7 Cf. MCBRIEN: Santos e Pecadores.
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letras. Enviados papais vasculharam as antigas bibliotecas da
Europa para copiar e
adquirir manuscritos. A abandonada cidade de Roma passaria por
uma srie de
reformas; o Vaticano transformou-se na residncia dos papas e a
velha baslica
constantina de So Pedro, prestes a ruir, foi reformada e recebeu
uma vasta praa
sua entrada, no centro o obelisco do circo de Nero seria
colocado e at hoje l
permanece triunfante.
Nicolau V decretara 1450 como ano do jubileu. Entretanto, as
peregrinaes se fizeram difceis, pois a peste iria assolar a
cidade de Roma.
Nessa ocasio, o papa deu mais uma prova do af biblifilo. Ao
refugiar-se em
Fabrino, fugindo da peste, fez com que os copistas e tradutores
a seu servio
tambm o acompanhassem. Burckhardt, ainda outra vez, que
interpreta tal gesto
como um testemunho da devoo papal sua estimada coleo, o que nos
parece
bastante plausvel, porque, talvez, a mais importante obra desse
papa tenha sido
realmente sua biblioteca. Ao morrer em 1455:
Nicolau V deixou 5 mil volumes ou 9 mil, dependendo da maneira
como se
calcula para uma biblioteca criada para o uso efetivo de todos
os membros da
cria, biblioteca esta que se tornou o ncleo da biblioteca do
Vaticano8 e que
seria instalada no prprio palcio, na qualidade de seu mais nobre
adorno, como
outrora fizera o rei Ptolomeu Filadelfo de Alexandria9.
Mais de um sculo e meio depois da morte de Nicolau V, em
1614,
nomeado, como custode da Biblioteca Apostlica Vaticana, Nicol
Alemanni10
.
Este era um sacerdote, de origem grega11
, nascido, em 1583, em Ancona, cidade
da pennsula itlica, que pertencia ento aos domnios papais.
Estudara no Colgio
Grego de Roma e, desde cedo, manifestara interesse pelas lnguas
clssicas. Ainda
8 John Larner, em verbete consagrado ao papa Nicolau V, no
Dicionrio do Renascimento Italiano,
endossa a afirmao de Burckhardt ao dizer: Um colecionador
compulsivo de livros, pode ser
considerado o verdadeiro criador da biblioteca do Vaticano
Larner, John in Hale, John R.:
Dicionrio do Renascimento Italiano. p. 250. J Jeanne Bignami
Odier considera [...] que os
projetos de Nicolau V no foram realizados, e que o verdadeiro
fundador da biblioteca Vaticana
foi Sixto IV (A traduo nossa) Odier, Jeanne Bignami: La
Bibliothque Vaticane de Sixte IV
Pie XI, 1973. p. 9-10. Richard P. Mcbrien concorda em ver
Nicolau V como o fundador da
Biblioteca Apostlica Vaticana, pois afirma a respeito desse
papa: Acumulou uma grande
biblioteca pessoal de livros e manuscritos (807 em latim e 353
em grego), que depois da sua morte,
formou a base da biblioteca do Vaticano Mcbrien, Richard: Os
Papas: os pontfices de So Pedro
a Joo Paulo II, 2000. p.266 9 BURCKHARDT, Jakob: A cultura do
Renascimento na Itlia: um ensaio, p. 150
10 A grafia prenome de Alemanni pode ser encontrada das
seguintes formas Nicol ou Niccol.
Optamos por Nicol, grafia adotada pelo Dizionario Biografico
degli Italiani. 11
Cf. MAZZARINO: La Fine Del Mondo Antico: Le cause della caduta
dellompero romano, p.
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que muito jovem, foi professor particular de grego do futuro
cardeal Cobeluzzi12
.
Cobeluzzi indicou Alemanni para ser secretrio do Cardeal
Scipione Borghese13
.
Tanto Borghese como Cobeluzzi ocuparam sucessivamente o posto de
Cardeal
Bibliotecrio14
.
dos fundos da biblioteca vaticana que Alemanni traz luz um texto
de
Procpio de Cesareia que, at ento, era dado como perdido;
tratava-se das
Ankdota, que passariam a ser conhecidas igualmente como Histria
Secreta,
devido traduo latina. Em 1623, foi publicada em Lyon a edio
bilngue de
Alemanni, o original grego seguido da traduo em latim. Na folha
de rosto dessa
editio princeps, l-se: De Procpio de Cesareia: Ankdota, Histria
Secreta, que
o nono livro das Histrias. Da Biblioteca Vaticana, Nicol
Alemanni publicou,
em latim traduziu e com notas esclareceu. Agora, pela primeira,
vez trazida luz
e enriquecida com um triplo ndice.15
Essa descoberta desencadearia uma grande
polmica que haveria de percorrer todo o sculo XVII e se
perpetuaria ainda por
alguns sculos. Como afirma Santo Mazzarino a respeito das
Ankdota [...] sem
dvida, foi a obra mais atormentada e discutida da literatura
tardo-romana.16
2.2. Nicol Alemanni e a pesquisa antiquria
O mesmo af renascentista pela descoberta de textos antigos que,
mais de
um sculo antes, incentivara Nicolau V a constituir o ncleo da
Biblioteca
Vaticana, havia sido despertado e continuava a gerar seus
frutos. A histria da
descoberta das Anekdota representativa desse movimento em relao
ao
passado, que surge no Renascimento e prossegue at bem depois
dele. O fato de
Alemanni ser custode na biblioteca que se originara daquela de
Nicolau V no
vazio de significado.
12
Cf. Pgina electronica do Archivum Secretum Vaticanum:
http://www.archiviosegretovaticano.va/scipione-cobelluzzi-1618-1626/
(Consulta em 23.05.2014) 13
Cf.: MERCATI, Silvio Giuseppe: Alemanni, Nicol (verbete):
Dizionario Biografico degli
Italiani - Volume 2. 1960. 14
Lembremos que foi durante a administrao do cardeal Borghese que
Alemanni (4.7.1607 at 8-
7-1609) foi nomeado custode e foi durante a de Cobeluzzi
(17.2.1618 at 29.6.1626) que foi
publicada a edition princeps da edio de Alemanni das Ankdota.
(Em relao s datas Cf. Odier,
Bignami Jeanne: La Bibliothque Vaticane de Sixte IV Pie XI,
1973. p. 328). 15
PROCOPII CSARIENSIS V.I. ANEKOTA. ARCANA HISTORIA, Qui est liber
nonus
Historiarum. EX BIBLIOTHECA VATICANA Nicolaus Alemmanus
protulit, Latin reddidit.
Notis illustrauit. Nunc primm in lucem prodit triplici Indice
locupletata Alemanni,1623, p.2 16
Santo Marino: La Fine Del Mondo Antico, 2009. p104
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Uma das importantes figuras intelectuais que se desenvolveram
nesse
perodo foi aquela do antiqurio, espcie de colecionador e de
pesquisador que foi
identificada pelo historiador italiano Arnaldo Momigliano.
Acreditamos que
Alemanni possa ser considerado um tpico antiqurio na acepo de
Momigliano.
Como um bom antiqurio, Alemanni tem por misso agrupar e
classificar a maior
quantidade possvel de vestgios do passado. Vestgios esses que
possam aportar
informaes sobre o que aconteceu. A descoberta das Ankdota haver
de
desestabilizar a verdade histrica em diversas direes. So os
antiqurios que
indiretamente parecem modificar a ideia de histria.
Antes da construo do baldaquino de Bernini, no interior da
Baslica de S.
Pedro, em Roma, o papa Urbano VIII solicitou a Alemanni um
parecer visando a
preservao dos antigos vestgios que ali poderiam ser encontrados.
Foi somente
aps a emisso deste que o Sumo Pontfice deu ordem para que as
escavaes se
iniciassem. Alemanni foi igualmente designado para acompanhar as
escavaes
da referida obra, praticando o que chamaramos nos dias de hoje
de arqueologia
preventiva. No entanto, no pde seguir adiante com as atividades,
visto que,
segundo nos informa a tradio, contrara justamente durante as
escavaes uma
febre que logo o levou morte17
. Foi ainda Alemanni que recebeu um dos maiores
tesouros bibliogrficos de todos os tempos, a Biblioteca
Palatina, que fora
ofertada por Maximiliano Eleitor da Baviera ao papa Gregrio XV.
Como
podemos constatar, Alemanni era eminentemente um homem que
lidava com o
acmulo e catalogao dos mais variados tipos de achados do
passado, fssem
eles textuais ou arqueolgicos.
Ao descobrir as Ankdota, Alemmani acaba por modificar o
relato
histrico, ao que remete no somente ao papel que foi desempenhado
pelos
antiqurios, mas, tambm, viso de Histria e de historiador que
era
compartilhada nesse perodo. Esse ponto essencial para que
possamos apreender
o significado da repercusso que haveria de ser desencadeada pela
edio de
Alemanni. Devemos, ento, com esse intuito, adentrar, mesmo que
de forma
breve, dois conceitos que se relacionam: o de antiqurio,
desenvolvido por
Momigliano e o topos de historia magistra vita.
17
Cf. NEVEU, Bruno : Biographie et historiographie : le Dizionario
biografico degli Italiani
(tomes I-X). In: Journal des savants. 1971, N1. p.38
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25
Momigliano assinala que haveria uma diferena na forma e no mtodo
de
abordar o passado; por um lado haveria os antiqurios e, por
outro, os
historiadores. A histria teria tido suas matrizes definidas a
partir de Tucdides,
isto , uma narrativa dos acontecimentos polticos e contemporneos
ao
historiador. J os antiqurios tentariam acrescentar informaes ao
passado,
atravs do estudo das moedas, das runas, dos costumes, da
descoberta e da edio
de textos. Os textos clssicos como os de Tucdides, Polbio e Tito
Livio no
poderiam ser questionados pelos historiadores modernos, a estes
caberia
simplesmente coment-los, sintetiz-los e da retirar os
ensinamentos oferecidos
pela historia magistra vit na melhor das acepes, como nos
explica
Momigliano:
Quando a histria antiga era estudada em si mesma,
independentemente da
pesquisa arqueolgica e da histria universal, a inteno era no s
pesquisar
materiais para a reflexo moral e poltica, como tambm facilitar a
compreenso
de textos lidos em primeiro lugar por razes estilsticas. A
exatido e o carter
exaustivo das narrativas tradicionais eram dificilmente
colocados em questo. At
onde se saiba, a ideia que se podia escrever uma histria de Roma
capaz de
substituir Tito Lvio e Tcito no havia ainda nascido no comeo do
sculo XVII.
O primeiro titular da cadeira de histria (Camden Professorship)
na
Universidade de Oxford tinha a obrigao estatutria de comentar
Florus e outros
historiadores antigos (1622). [...] Em Cambridge, o primeiro
professor de histria
foi despedido porque seus comentrios sobre Tcito foram julgados
politicamente
perigosos18
. (A traduo nossa).
A anedota que nos narrada por Momigliano rica em significado,
ela
expressa toda uma ideia de Histria que era compartilhada at
meados do sculo
XVIII. Estamos a falar da Histria como Ktema termo grego
empregado por
Tucdides, ao dizer que a Histria era uma aquisio, um bem
precioso para o
futuro. Mas foi na expresso latina, cunhada por Ccero, que tal
conceito se
cristalizou de forma mais consistente, isto , a historia
magistra vit. O fato de
um professor de Histria no poder fazer comentrios a uma fonte
histrica
afigura-se a nossos olhos contemporneos como algo de difcil
compreenso. O
18
Quand lhistoire ancienne tait tudie pour elle-mme, indpendamment
de la recherche
archologique et de lhistoire universelle, lintention tait soit
dy chercher des matriaux pour la
rflexion morale et politique, soit de faciliter la comprhension
des textes lus en premier lieu pour
des raisons stylistiques. Lexactitude et le caractre exhaustif
des rcits traditionnels tait peine
mis en question. Autant que je sache, lide que lon puisse crire
une histoire de Rome capable de
remplacer Tite-Live et Tacite ntait pas encore ne au dbut du
XVIIe sicle. Le premier titulaire
de la chaire dhistoire (Camden Professorship) luniversit dOxford
avait lobligation
statutaire de commenter Florus et dautres historiens antiques
(1622) [] Cambridge, le
premier professeur dhistoire fut renvoy parce que ses
commentaires sur Tacite ont t jugs
politiquement dangereux. MOMIGLIANO: Lhistoire ancienne et
lAntiquaire. p. 254
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26
objetivo principal da Histria no seria propriamente atingir o
idealizado ncleo
do real, a verdade do que ocorreu. Qual seria ento a funo do
historiador?
Ao historiador caberia a preservao em letra dos feitos do
passado e caso
fsse bem sucedido em seus propsitos que esse passado, que fora
deitado em
letra, proporcionasse, em tempos futuros, uma espcie de guia de
como se
portar diante das adversidades da existncia. Para que tal
concepo atingisse
plenamente seu objetivo, era necessrio ter por premissa que a
natureza humana
fosse sempre a mesma. Desfile das imutveis paixes humanas, a
Histria
ofereceria assim as ferramentas para saber como os homens
dever-se-iam portar
face s mais diversas situaes. Cabia ao historiador deslindar o
emaranhado de
fatos e paixes que conduziram os acontecimentos, e a partir da,
extrair um
conhecimento de ordem eminentemente moral. No futuro, os que se
pusessem a
estudar os seus textos no teriam por preocupao primeira colocar
em dvida o
que fora narrado, mas sim obter o mximo de ensinamentos sobre a
natureza
humana, conhecendo os vcios, virtudes e paixes. A funo da
Histria era
essencialmente ensinar aos homens do futuro a no cometer os
mesmo erros
daqueles que os precederam, visto que a natureza humana era
imutvel, o
repertrio das possibilidades de desdobramentos da Histria, em
essncia,
tambm o seria. Os homens do presente deveriam saber extrair o
que era ensinado
pela Histria e transform-lo em uma verdadeira aquisio para a
vida. Essa forma
de perceber a narrativa histrica como estvel e como fonte de
ensinamentos
morais , em linhas gerais, a concepo do topos da historia
magistra vit.
Quando a Historia considerada magistra vit, leva-se para um
segundo plano a
preocupao com a veracidade dos fatos, o principal que ela possa
insuflar de
sabedoria o esprito dos seus leitores.
Para Koselleck, o topos da historia magistra vit foi constante
at meados
do sculo XVIII, quando este comeou a se dissolver. O historiador
alemo
recorre ao testemunho da prpria lngua alem para endossar a sua
tese. Antes de
meados do sculo XVIII, predominava o vocbulo Historie, palavra
plural, para se
referir Histria. A progressiva dissoluo do topos da historia
magistra vit
acompanhado tambm da ascenso de um outro termo Geschichte. A
histria
agora no mais seria um conjunto de relatos dos feitos dos homens
do passado,
um conjunto de situaes que se repetiriam. Agora, a Histria era
vista como
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27
irrefrevel, a indomvel inauguradora de um processo temporal
sempre novo. J
no mais serviria saber como os que nos precederam se comportaram
diante de
determinada situao, pois os homens sentiam ento o tempo como
irrepetvel.
Como nos explica Jasmin, a respeito das ideias de Koselleck:
Se a histrias (no plural) guardava a sabedoria acumulada pelos
exemplos do
passado para servir de guia conduta presente, evitando a repetio
dos erros e
estimulando a reproduo do sucesso, a Histria (como singular
coletivo) tornou-
se uma dimenso inescapvel do prprio devir, obrigando toda ao
social a
assumir horizontes de expectativa futura que a inscrevam como
um
desdobramento consoante com o processo temporal. No se trata to
somente de
uma alterao nos significados tradicionais, mas de uma verdadeira
revoluo nas
maneiras de conceber a vida em geral, de imaginar o que nela
possvel ou no,
assim como o que dela se deve esperar 19
.
Levando em conta essa forma de apreenso da funo da Histria
fazem-se
mais claras as razes que levaram o professor de Cambridge a ser
demitido, ele
sara dos limites atribudos a sua funo. Mas Alemanni no era um
historiador,
enquadrava-se, sobretudo, na acepo de um antiqurio. O trabalho
do antiqurio
consistia no lento e sistemtico acmulo, catalogao e anlise das
fontes,
vestgios e documentos do passado, o que acabaria incidindo sobre
o olhar com
que os textos cannicos da historiografia eram vistos, em suma, o
relato da
Histria viria a se modificar, influenciado indiretamente pelo
trabalho dos
antiqurios. E foi tal processo que se deu com a descoberta das
Ankdota.
O trabalho de Alemanni no seria vazio de grandes consequncias.
A
publicao das Ankdota iria desestabilizar a imagem consagrada do
Imperador
Justiniano. Era o antiqurio, como descrito por Momigliano, que
atravs do seu
metdico ofcio modificava o conhecimento que os homens tinham a
respeito da
Histria. Mas quais eram as implicaes polticas de tal descoberta?
O que
continham essas pginas que por tanto tempo permaneceram
desconhecidas? E
quem havia sido Procpio de Cesareia?
2.3. Entre o Estado e a Igreja
A descoberta das Ankdota ia contra toda uma imagem positiva que,
at ento,
se formara a respeito de Justiniano. Essa imagem se cristalizara
como aquele
19
JASMIN, Marcelo: Apresentao in Koselleck, Reinhard: Futuro
Passado: contribuio
semntica dos tempos histricos. p.11
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imperador que empreendera um gigantesco e sistemtico trabalho de
unificao
jurdica das leis e que tentara concretamente, pela ltima vez,
reconstituir a
unidade territorial do Imprio Romano. Mas a descoberta de
Alemanni se d
inteiramente por acaso, ela ocorre no seio da corte papal. Aos
interesses polticos
do papado convinha um documento histrico que destitua Justiniano
da sua
grandiosidade. Como diz Santo Mazzarino:
Alemanni, natural de Ancona, de origem grega, formou-se em
estudos de histria
eclesistica, no seio de uma tradio inaugurada pelo cardeal
Baronio com os
Annali, publicados de 1588 a 1607. Essa tradio baroniana no
podia ter
excessiva simpatia por Justiniano; esse grande imperador,
realmente preocupado
em conservar a todo custo o Egito, havia tentado conciliar a
ortodoxia com os
rebeldes ao Conclio da Calcednia, e por isso tivera que manter
um conflito, s
vezes spero, s vezes moderado, com os papas. A descoberta das
Ankdota
aparece aos historiadores de tendncia baroniana como uma bno:
agora,
finalmente, vinha luz um novo perfil de Justiniano, prncipe
dominado pela
demonaca Teodora. E, na verdade, Alemanni foi, em certo sentido,
um pequeno
Lwenklav abatendo o mito de Constantino, assim o novo livro de
Procpio
levou a uma reviso do juzo sobre a personalidade de Justiniano.
(As descobertas
de novos textos so, em certo sentido, menos casuais do que
parecem
primeira vista; h, pelo menos, um qu de necessrio no encontro
entre o
pesquisador e sua a descoberta)20
.
Como podemos constatar, Santo Mazzarino filia Alemanni
escola
historiogrfica fundada por Cesare Baronio (1538-1607), este que
foi Cardeal
Bibliotecrio da Biblioteca Vaticana e considerado como pater
histori
ecclesiastic, pai da histria eclesistica21
. Atravs dos seus Annales ecclesiastici
a Christo nato ad annum 1198 (Anais eclesisticos do nascimento
de Cristo at o
ano de 1198), ou simplesmente Annales, organizou a resposta
historiogrfica da
Contra Reforma Ecclesiastica Historia, mais conhecida como
Centrias de
Magdeburgo. As Centrias eram o primeiro grande esforo
historiogrfico que
20
Alemanni era un anconoteano di origine greca, formatosi agli
studi di storia ecclesiastica, nel
segno di una tradizione inaugurata dal Cardinale Baronio con gli
Annali, pubblicati dal 1588 al
1607. Questa tradizione baroniana non poteva avere eccessive
simpatie per Giustiniano; quel
grande imperatore, infattipreoccupato di conservare a tutti i
costi l'Egitto, aveva cercato di
conciliare l'ortodossia con i rebelli al Concilio di Calcedonia,
e perci aveva dovuto sostenere un
conflitto aspro or moderato, coi papi. La scoperta delle Ankdota
parve, agli storici di tendenza
baroniana, una benedizione: ora, finalmente, veniva alla luce un
nuovo volto di Giustiniano,
principe dominato dalla demoniaca Teodora. Ed in verit, Alemanni
fu, in un certo senso, un
piccolo Lwenklav. Come la tradizione di Zosimo aveva indotto
Lwenklav ad abbattere il mito di
Costantino, cos il nuovo libro di Procopio indusse Alemanni ad
una revisione del giudizio sulla
personalit di Giustiniano. (Le scoperte di nuovi testi sono, in
un certo senso, meno "casuali" di
quel che sembra a prima vista; c', per li pi, un che di
"necessario" nell'incontro tra il
ricercatore e la sua scoperta.) SANTO, Mazzarino: La Fine del
Mondo Antico: le cause della
caduta dellimpero romano, 2009. p.104 21
Cf. KLANICZAY, TIBOR (Org.) et alii: Histoire compare des
littratures de langues
europennes Lpoque de la Renaissance, 1996-2000. p. 25
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29
tentava dar conta da histria da Igreja, desde os seus primrdios
at o sculo XII,
a partir do ponto de vista da Reforma Protestante. O trabalho de
Baronio era
eminentemente antiquarista, peritissimus antiquaritatis tinha
uma grande
preocupao na recolha de documentos desempenhando importante
papel na
definio do perfil cientfico inicial da Arqueologia crist 22
.
A publicao das Ankdota foi percebida pelos defensores do
fortalecimento do Estado, em sua maioria juristas das regies
protestantes, e, por
tal, contrrios a interveno da Igreja, como um ataque a seus
ideias. No nos
esqueamos de que a edio de Alemanni publicada em plena Guerra
dos Trinta
Anos (1618-1648). Conflito desencadeado pela tenso entre
catlicos e
protestantes no seio do Sacro Imprio Romano Germnico,
refletindo, em grande
parte, a aspirao poltica de autonomia dos prncipes protestantes
face aos
imperadores Habsburgo, que, por sua vez, eram endossados pelo
desejo poltico
de hegemonia do papado ainda que esse desejo de hegemonia viesse
a ser
frustrado pelo esprito da realpolitik do tratado da Vestaflia
que ps fim aos
conflitos. Logo, quando da publicao das Ankdota, a defesa da
veracidade do
seu contedo e/ou autenticidade autoral era percebida como
papista. Como
sntese, mais uma vez Santo Mazzarino:
A questo de fundo era moderna. O problema que estimulou a
polmica
procopiana foi aquele das relaes entre Estado e Igreja. A
Alemanni, e
geralmente aos baronianos, Justiniano aparecia como o adversrio
do papado.
Aos juristas adversrios de Alemanni, Justiniano aparecia como o
defensor do
direito do Estado.
2.4. Peripcias de um texto incmodo
I. 1. Tudo o que aconteceu at o presente, nas guerras, nao dos
romanos, eu
contei, tanto quanto pude faz-lo, apresentando todos os
acontecimentos segundo
os tempos e lugares. O que segue, contrariamente, no mais ser
exposto desta
maneira, pois a ser descrito tudo o que aconteceu em todas as
regies do
Imprio Romano. 2. A razo que me afigurava impossvel, enquanto os
atores
dessa histria ainda estivessem vivos, de escrev-la da maneira
que convinha.
No era de fato possvel escapar da multido de espies, tampouco,
caso fosse
descoberto, de perecer de uma morte cruel; nem mesmo aos mais
ntimos dos
meus prximos poderia confiar. 3. Bem mais, nos livros que
precedem, pela fora
tive que calar as causas de vrios acontecimentos que contava.
Necessrio ser
ento revelar ao mesmo tempo o que ficou dissimulado at agora e
as causas dos
22
SPERA, Lucrezia: Cesare Baronio, peritissimus antiquitatis, e le
origini dellarcheologia
Cristiana. p. 393
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30
acontecimentos que contara anteriormente em meu texto. 4.
Entretanto no
momento em que me ponho nesta nova tarefa, rdua e
inacreditavelmente difcil
a vida de Justiniano e Teodora eis-me aqui a tremer e a hesitar
no mais alto
grau ao me dar conta que o que agora escrevo no haver de parecer
verdadeiro,
nem digno de f para a posteridade. Temo particularmente, quando
muito tempo
tiver passado e tiver feito do meu texto algo um pouco antigo,
de receber a
reputao de um contador de histria e de ser colocado entre os
poetas trgicos. 5.
No entanto, no hei de recuar diante da amplido da tarefa, tendo
a certeza de que
os meus dizeres no sero sem respostas. Os homens de hoje que so
os mais
srios testemunhos dos fatos, sero garantias suficientes, para os
tempos
vindouros, do crdito que lhes devem conceder23
. (A traduo nossa)
So com essas palavras que Procpio de Cesareia abre o mais
intrigante de
seus livros: as Ankdota ou Histria Secreta. Devemos nos deter
com um pouco
mais de ateno na anlise do que nos diz o historiador bizantino.
No prlogo, so
abordados diversos temas que geram questes particularmente
pertinentes ao
trabalho do historiador. Procpio faz referncia a escritos
anteriores, nos quais
no fora possvel expressar toda verdade pelo menos no relatara o
que
acreditava ser a verdade. A razo de seu silncio justificada pelo
prprio risco de
perder a vida, pois vivia em tempos de opresso e temor. Diramos
que parece
surgir nas entrelinhas uma espcie de pedido de perdo. Perdo ao
leitor, mas,
sobretudo, idoneidade da Histria. Talvez, Procpio tenha
conscincia de que
falhou, pois no exps todos os fatos e causas que estavam ao seu
alcance para
compor o texto. Nas Ankdota, o historiador de Cesareia constri
uma narrativa
em que o reinado de Justiniano visto como paroxismo dos piores
vcios cristos,
como a luxria, a cobia, a corrupo e a injustia. Teodora, mulher
do imperador,
23
I. 1. Tout ce qui est arriv jusqu prsent, dans les guerres, la
nation des Romains, je lai
racont, autant que jai pu Le faire, en prsentant tous les
vnements suivant les temps et les
lieux. Ce qui suit, en revanche, ne sera plus expos de la manire
susdite, car y sera dcrit tout ce
qui est arriv dans toutes les rgions de lEmpire romain. 2. La
raison en est quil ne mtait pas
possible, tant que les acteurs de cette histoire taient encore
en vie, den crire de la manire qui
convenait. Il ntait possible en effet, ni dchapper la multitude
des espions, ni, si jtais
dmasqu, de ne pas prir dune mort cruelle ; mme aux plus intimes
de mes proches je ne
pouvais faire confiance. 3. Bien plus, dans les livres qui
prcdent, force ma t de taire les
causes de bien des vnements que je racontais. Il me faudra donc
rvler la fois ce qui est reste
dissimule jusqu prsent et les causes des vnements que jai
raconts auparavant dans mon
texte. 4.Au moment pourtant ou je me mets cette nouvelle
besogne, ardue et incroyablement
difficile la vie de Justinien et de Thodora , me voici trembler
et hsiter au plus haut
point en me rendant compte que ce que jcrirai prsent ne paratra
ni vrai, ni digne de foi la
postrit. Je crains en particulier, quand Le long temps qui se
sera coul aura fait de mon rcit
quelque chose dun peu antique, de gagner la rputation dun
conteur dhistoires et dtre range
parmi les potes tragiques. 5. Je ne reculerai pourtant pas
devant lampleur de la tache, ayant
lassurance que mes dires ne seront pas sans rpondants. Les
hommes daujourdhui qui sont les
plus srieux tmoins des faits seront des garants suffisants, pour
le temps venir, de la crance
leur accorder. Csare, Procope de: Histoire Secrte. Traduo e
Comentrios de Pierre Maraval.
Paris : Les Belles Lettres, 2009.
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31
afigura-se como a grande eminncia parda que a tudo controla, em
uma sucesso
de planos maquiavlicos.
Mas antes que possamos analisar o autor, o momento de redao
das
Ankdota, assim como as implicaes histrico-culturais levantadas
por esse
texto, essencial, em primeiro lugar, esboar o contedo da obra.
Em segundo,
devemos tecer uma anlise, ainda que brevemente, da fortuna
crtica das
Ankdota, assim como da mudana semntica pela qual a palavra
anedota
derivada do ttulo do livro de Procpio passou.
2.4.1. As Ankdota: temas e estrutura da obra
Segundo Mihescu, existem quinze manuscritos das Ankdota, mas
somente
trs deles so considerados importantes para o estabelecimento do
texto, visto que
os outros treze restantes so cpias mais recentes. Os trs
manuscritos principais
so conhecidos pelas letras iniciais de seus codex, a saber, G;
P; e S.
Mihescu assim os descreve respectivamente:
G= Vaticanus Grcus 1001 (olim [antigamente] 709) foi descrito
por M.
Kraeninnikov e j. Haury24
. Data do sculo XIV, possui 151 folhas, escritas em
duas colunas de aproximadamente 25-30 linhas. O comeo e o fim da
Histria
Secreta esto faltando, e alguns captulos 1, 1-13 e 30, 2-34. O
texto da Histria
Secreta encontra-se nas folhas 1-50. Esse manuscrito foi seguido
por N. Alemanni,
que fez sobre as amrgens anotaes e emendas, teis at hoje 25
. (A traduo
nossa)
P= Parisinus suppl. Gr 1185 data do sculo XIV, possui 64 folhas,
cada uma com
26-28 linhas. A Histria secreta encontra-se s folhas 1-26v, mas
falta-lhe o
comeo, isto , os cinco primeiros captulos. O manuscrito est
conservado, possui
umas notas nas margens, mas no contm desenhos ou figuras. Jacob
Haury
acredita que ele nos tramsitiu a mais fiel cpia da Histria
Secreta26
. (A traduo
nossa)
S= Ambrosinus G 14 sup (olim [antigamente] T 73 I), do sculo
XIV, possui 176
folhas, cada uma com 25-34 linhas, escritas pela mesma mo,
encontrou-se por
24
Cf. subcaptulo Fortuna Crtica 25
G=Vaticanus Graecus 1001 (olim 709) a fost descris de M.
Kraeninnikov i J. Haury. El
dateaz din secolul al XVI-lea, are 151 foi, scrise pe dou
coloane de aproximativ 25-30 de
rnduri. nceputul i sfritul Istoriei secrete lipsesc, i anume
capitolele 1,1 - 13 i 30, 2-34. Textul
Istorie secrete se afl pe foile 1-50. Acest manuscris a fost
folosit de N. Alemannus, care a fcut pe
margine adnotaii i emendaii, astzi. MIHESCU, H. Introducere,
1972. p.6-7 26
P=Parisinus suppl. Graecus 1185 dateaz din secolul al XIV-lea,
are 64 foi, fiecare de 26-28
de rnduri. Istoria secret se afl pe folie 1-26v, dar i lipesete
nceputul, adic primele cinci
capitole. Manuscrisul este ngrijt, are unele nsemnri pe margine,
dar nu conine desene sau
figuri. Jacob Haury, crede c el na-a transmis cea mai fidel
copie a Istorie secrete. Idem p. 7
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32
algum tempo na posse de I. V. Pinellus. Esse manuscrito foi
descrito
primeiramente por M. Kraeninnikov, depois por J. Haury. O comeo
est
mutilado27
. (A traduo nossa)
As edies das Ankdota, at onde sabemos, so inexistentes em
lngua
portuguesa, por conseguinte, podemos consider-las de difcil
acesso. Assim
sendo, para que o leitor possa acompanhar de forma mais eficaz a
pesquisa que
aqui expomos, acreditamos ser essencial a apresentao de um
resumo da obra.
Desde logo, estamos conscientes de que todo esforo de sntese
implica uma
seleo subjetiva. Porm, tal constatao no fez com que desistssemos
da
elaborao de uma sntese que fosse a mais objetiva possvel,
oferecendo ao leitor
uma ideia da estrutura e dos temas principais tratados nas
Ankdota. Nosso
resumo estruturar-se- a partir dos captulos e de seus
respectivos ttulos,
conforme constam na edio francesa de Pierre Maraval28
. Naquelas passagens,
que acreditamos ser de maior relevncia para a interpretao da
obra, abrimos
mo da sntese feita com nossas prprias palavras e preferimos
citar diretamente o
texto das Ankdota. Resumimos igualmente alguns episdios que
podem,
primeira vista, parecer de carter secundrio. Entretanto,
acreditamos que estes
por serem eminentemente anedticos, so mais do que
representativos do esprito
da obra e, por tal, importantes para serem transmitidos ao
leitor. Em todo caso,
preciso lembrar que aqui demos maior destaque aos trechos e seus
respectivos
contedos que no foram citados e analisados em outros captulos ou
subcaptulos
desta tese, pretendendo assim ter evitando desnecessrias
repeties.
importante ainda lembrar o carter no linear das Ankdota, mesmo
que
no seu prlogo o autor declare que se trata de um complemento sua
Histria das
Guerras e que iria estrutur-lo simplesmente mostrando as causas
verdadeiras dos
acontecimentos que contara anteriormente. Isso, em um primeiro
momento, pode
levar o leitor a pensar que as Ankdota organizam-se basicamente
a partir de
constantes referncias Histria das Guerras. certo que Procpio
remete o
leitor, em vrios momentos, a essa sua obra. No entanto, quanto
mais as Ankdota
27
S=Ambrosianus G 14 sup. (olim T 73 I) din secolul AL XIV-lea are
197 foi, fiecare de 25-35
de rnduri, scrise de aceeai mn, aflat pe veremuri n posesia lui
I.V. Pinellus. Acest manuscris a
fost descris mai nti de M. Kraeninnikov, apoi de J. Haury.
nceputul e mutilat. Idem. 28
Pierre Maraval (1933-), historiador e tradutor francs, professor
emrito da Universidade de
Paris IV-Sorbonne. Suas pesquisas so dedicadas histria do
cristianismo antigo e da
Antiguidade Tardia.
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33
avanam, mais elas se tornam uma crtica ampla e geral ao reinado
de Justiniano,
deixando de lado a remisso Histria das Guerras, como conclui
Maraval: E a
obra no aparece mais como um complemento s Guerras, mas como
uma
releitura negativa, pelo historiador, de 32 anos de reino
(518-550), uma crtica
generalizada e feroz dos soberanos e de todos os aspectos de sua
poltica29
.
Prlogo
Procpio demonstra o grande temor que possui em escrever as
Ankdota.
Justifica, entretanto, o que o conduziu a isso.
I. A m conduta de Antonina
Breve descrio da histria e do carter de Antonina mulher de
Belizrio, importante general de Justiniano a quem Procpio de
Cesareia serviu
a me era prostituta no teatro e o pai cocheiro.
Em Cartago, Belizrio encontra Antonina, em um quarto
subterrneo,
tendo relaes extraconjugais com Teodsio, seu filho adotivo.
Entretanto
Belizrio acredita nas falsas desculpas de sua mulher: alega que
estaria a
simplesmente escondendo um tesouro.
Em Siracusa, na Siclia, uma criada chamada Macednia conta a
Belizrio
sobre a infidelidade de Antonina. Belizrio manda matar Teodsio,
mas este foge
para feso. Antonina, como um escorpio, que esconde sua maldade
sombra
[...] persuade seu marido ou por artifcios mgicos, ou por
adulao, a acredita que
a acusao dessa mulher no tinha fundamento. Belizrio permite que
Teodsio
volte e manda cortar a lngua da criada Macednia. Em seguida,
ordena que seja
esquartejada aos poucos. Teodsio teme que Belizrio descubra
realmente a
traio e foge outra vez para feso, fingindo que se tornara
monge.
II. Belizrio em Campanha contra os persas
Belizrio enviado em campanha contra os persas. Antonina
permanece
em Constantinopla, o que no era habitual: visto que tinha medo
de que seu
29
MARAVAL, Pierre: Introduction in CSARE, Procope de: Histoire
Secrte. p. 11.
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34
marido, ficando a ss, casse em si e, sem mais temer seus
sortilgios, tomasse no
seu lugar alguma deciso necessria, tinha o cuidado de
acompanh-lo por todos
os lugares 30
.
Fotios, filho de Antonina, denuncia a prpria me a Belizrio.
Belizrio
pede que o enteado prenda Teodsio. Fotios de fato no tinha
nenhuma
confiana no carter sem firmeza, pelo menos no que dizia respeito
mulher de
Belizrio e vrias coisas o incomodavam, especialmente o destino
de Macednia
31. Aps juramentos que para os cristos so os mais solenes,
combinam que
esperariam que Antonina viesse ao encontro do marido e Fotios
prenderia
Teodsio quando ele chegasse a feso. Belizrio toma o Forte de
Sisaurana, mas
resolve recuar o exrcito, pois sabe que Antonina chegar:
Belizrio foi acusado
por todos os romanos de ter subordinado os interesses mais
importantes do Estado
a seus assuntos domsticos 32
.
III. Belizrio, Antonina e Teodora
Belizrio mantm Antonina presa. Novas acusaes de prticas
mgicas.
Teodsio refugia-se no Santurio do Apstolo Joo para no ser
capturado por
Photios. A imperatriz Teodora ao saber do que ocorria com
Antonina, manda que
Belizrio retorne a Constantinopla. Teodora submete Fotios a
terrveis torturas,
encerrando-o nos seus quartos secretos totalmente desconhecidos,
obscuros e
isolados, nos quais no era possvel distinguir a noite do dia
33
e, por fim, entrega
Teodsio aos braos de Antonina. Fotios consegue fugir e
refugia-se,
primeiramente, no templo da Me de Deus, mas Teodora viola o
templo e o
detm. Fotios, pela segunda vez, escapa da priso, refugiando-se
agora no
santurio da Sabedoria, mas mesmo l a mulher [Teodora] consegue
arranc-lo,
pois nenhum lugar inviolvel foi por ela respeitado. Pelo
contrrio, violar tudo
que era sagrado parecia no ser nada diante dos seus olhos 34
. Fotios passa trs
anos preso, at que lhe aparece em sonho o profeta Zacarias. O
profeta diz que
poderia fugir, pois iria proteg-lo: Impulsionado por essa viso,
fugiu e de l
30
CSARE, Procope de: Histoire Secrte. Traduo para o francs de
Pierre Maraval. (II:2)
p.32-31 31
Ibid., (II:12) p.34 32
Ibid. (II: 21) p.35 33
Ibid. (III: 21) p.39 34
Ibid. (III: 25) p.39
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35
atingiu secretamente Jerusalm, enquanto milhares de homens o
procuravam.
Nenhum reconheceu o jovem, mesmo quando eles o encontravam
35
.
IV. Desgraa e volta s graas de Belizrio
A peste assola Constantinopla. O Imperador Justiniano fica
gravemente
doente. Justiniano se recupera. Pedro, o General, e Joo, o
Gluto, dizem ter
escutado Belizrio e Buzs afirmar que, caso Justiniano viesse a
morrer, no
reconheceriam Teodora como sua sucessora; a imperatriz Teodora
ficou louca de
raiva [...]. Logo os chamou a Bizncio e instaurou um inqurito
sobre esses
rumores 36
. Buzs encarcerado na priso subterrnea de Teodora e a passa
dois
anos e quatro meses sem ver a luz do dia. Quanto a Belizrio,
ainda que no
tenha sido provado nenhum dos erros que lhe eram atribudos, o
imperador
destituiu-lhe sob presso da imperatriz e de seu cunhado, e em
seu lugar
estabeleceu Martinho como general do Exrcito do Oriente 37
.
Belizrio perde todas as honras de general e se arrasta pelas
ruas com medo
de ser morto a mando da imperatriz. Teodora mantm-se amiga de
Antonina,
porque esta ltima era necessria aos seus planos. Belizrio
humilha-se ao receber
uma carta de perdo da imperatriz:
[Belizrio] subiu at seu quarto com esses sentimentos de temor,
ficou sentado,
sozinho sobre a cama, sem nenhuma coragem, esquecendo o homem
que ele fora,
constantemente molhado de suor, totalmente consternado, tomado
por um grande
tremor, atormentado por medos de escravo e preocupaes totalmente
covardes
por sua vida. Quanto Antonina, como se ela ignorasse tudo o que
havia
ocorrido, e no duvidasse do que ia acontecer, passeava sem
cessar pelos lugares,
fingindo ter problemas de estmago [sic], pois eles tinham uma
atitude de
suspeita mtua. Naquele momento, quando o sol j se pusera, chegou
um homem
do palcio chamado Quadratus. Aps atravessar a porta do ptio,
deteve-se
repentinamente naquela do apartamento dos homens, dizendo que
era enviado
pela imperatriz. Quando Belizrio ouviu isso, estendeu os braos e
pernas sobre a
cama e a ficou estendido pronto para ser morto, de tanto que a
coragem viril o
havia abandonado. Ento, Quadratus entrou, aproximou-se e mostrou
uma carta
da imperatriz. A carta exprimia-se nesses termos: O que nos
fizeste, tu sabes.
Mas eu, porque tenho muitas obrigaes em relao a sua mulher,
decidi perdoar
todos esses seus erros se tu fizeres dom da tua vida a esta
ltima. A partir de
ento, tu poders estar seguro da tua vida e dos teus bens; mas o
que tu sers em
relao a ela, saberemos por teu comportamento futuro. Belizrio
leu a carta, ao
mesmo tempo transido de alegria e no mesmo instante querendo dar
uma prova de
35
Ibid. (III: 28) p.39 36
Ibid. (IV: 5-6) p.40 37
Ibid. (IV: 13). p.41
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36
seus sentimentos, logo se levantou e se jogou de rosto aos ps da
mulher.
Segurando as duas pernas, com cada uma das mos, no parava de
passar a boca
sobre os calcanhares da mulher, chamando-a de razo da sua vida e
de sua
salvao e assegurava que, a partir daquele momento, no mais seria
seu marido,
mas seu fiel escravo.38
Belizrio reabilitado e enviado pela segunda vez Itlia para
combater.
V. Segunda Campanha da Itlia. Intrigas de Teodora.
Na Itlia, Belizrio durante cinco anos consegue desembarcar
somente
onde havia fortalezas. Totila deseja enfrentar o exrcito romano,
mas Belizrio
teme a guerra do lado de fora, desprotegido das muralhas.
Teodora quer que seu neto se case com a nica filha de Belizrio
e
Antonina, pois tem o objetivo de se apropriar das riquezas que
ela viria a herdar.
Os pais, para retardar o casamento, alegam que esto na Itlia e
no poderiam
comparecer cerimnia. Teodora, obstinada em seu propsito, obriga
os dois
jovens a viverem juntos. O casal acaba por se apaixonar, mas,
aps a morte de
Teodora, Antonina impediria que o casamento fosse
oficializado.
VI. Histria de Justino. Seu sobrinho Justiniano
Na poca em que o imperador Leon reinou, trs jovens pobres vo
para
Constantinopla tentar a vida e se alistam no exrcito. Em
seguida, so convocados
para a guarda do palcio. J sob o reinado de Anastcio, o general
Joo, o
38
Etant mont dans sa chambre dans ces sentiments de crainte, il
tait assis, seul, sur son lit,
sans aucun courage, oubliant quel homme il avait t, constamment
trempr de sueur, tout
boulvers, saisi dun grand tremblement, tourment par des peurs
desclave et des proccupations
tou fait lches pour sa vie. Quant Antonina, comme si elle
ignorait tout de ce qui stait pass
et ne se doutait pas de ce qui allait arriver, elle se promenait
sans cesse dans les parages en
feignant davoir des maux destomac, car ils avaient encore une
attitude de suspicion mutuelle.
Sur ces entrefaites, alors que le soleil tait dj couch, arrivait
un homme de palais, nomm
Quadratus. Ayant pass la porte de la cour, il se tint soudain
devant celle de lapartement des
hommes, en disant quil tait envoy l para limpratrice. Quand
Blisaire entendit cela, il
tendit bras et jambes sur sa couche et y resta tendu, tout fait
prt ce quon le tue, tant lavait
abandonn tout courage viril. Alors Quadratus, entr l auprs de
lui, lui montra une lettre de
limpratrice. La lettre sexprimait en ces termes: Ce que tu nous
as fait, trs cher, tu le sais.
Mais moi, parce que jai beaucoup dobligations envers ta femme,
jai dcid de te pardonner tous
ces griefs si tu fais don de ta vie celle-ci. Dsormais, tu peux
avoir confiance pour ta vie et tes
biens ; mais ce que tu seras envers elle, nous le saurons par ta
conduite venir Quand Blisaire
eut lu cela, la fois transport de joie et voulant linstant mme
donner une preuve de ses
sentiments, il se leva aussitt et tomba sur le visage aux pieds
de sa femme. Tout en tenant ses
deux jambes de chaque main et en ne cessant de promener sa
bouche sur les chevilles de sa
femme, il lappelait cause de sa vie et de son salut et assurait
qu partir de ce moment, il ne
serait plus so mari, mais son fidle esclave. Ibid
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37
Corcunda, condena Justino morte, mas um sonho acaba fazendo com
ele mude
de ideia. O Imperador Anastsio nomeia Justino chefe da guarda do
palcio.
Justino apresentado como sem nenhuma espcie de preparao para
exercer a
funo imperial, alm de ser facilmente manipulvel:
Ele j era um velho prximo do tmulo, totalmente ignorante das
letras e, como
se diz, analfabeto, o que jamais acontecera anteriormente, pelo
menos entre os
imperadores romanos. O costume pedia que o imperador colocasse
sua prpria
assinatura nos documentos que transmitiam suas ordens, mas ele
no era capaz
de dar ordens tampouco de verificar o que fora feito. Mas quele
que coube a
tarefa de conselheiro, certo Protocolos, que exercia o ofcio a
que chamamos de
questor, decidia tudo segundo a sua vontade. Para ter, no
entanto, um atestado
feito pela prpria mo do imperador, aqueles a quem cabia essa
tarefa
imaginaram a seguinte coisa.
Mandaram furar em um pequeno pedao de madeira na qual havia
recortado o
desenho das quatro letras que significavam, em lngua latina,
lido,
mergulhavam a pena na tinta que era utilizada habitualmente
pelos imperadores
para escrever, e a colocavam na mo desse imperador. Colocavam
ento esse
pequeno pedao de madeira sobre o documento, e segurando a mo
do
imperador, eles passavam a pena pelo recorte das quatro letras,
seguindo todos os
pequenos entalhos da madeira, conseguindo dessa forma obter as
assinaturas do
imperador.39
VII. Os tumultos provocados pelas faces
A populao estava dividida em duas faces opostas: os azuis e
os
verdes40
. Justino apoiava os azuis, esse apoio incitou ainda mais as
paixes das
39
Il tait alors dj un vieillard proche du tombeau, totalement
ignorant des lettres et, comme on
dit, analphabte, ce qui ntait jamais arriv auparavant chez les
Romains du moins. Alors que la
coutume voulait que lempereur appose sa propre signature sur les
documents qui transmettaient
ses ordres, lui ntait pas capable de donner des ordres ni de
vrifier ce qui avait t fait. Mais
celui qui chut la tche de conseiller, un nomm Proclos, qui
exerait loffice de celui quon
appelle le questeur, dcidait de tout selon son gr. Pour avoir
cependant une attestation de la
main de lempereur, ceux qui incombait cette charge imaginrent la
chose suivante. // Ayant fait
creuser dans un petit morceau de bois travaill le dessin des
quatre lettres qui signifient, en
langue latine, quon a lu, ils plongeaient la plume dans lencre
dont les empereurs se servent
habituellement pour crire et la mettaient dans la main de cet
empereur. Plaant alors ce morceau
de bois dont jai parl sur le document et prenant la main de
lempereur, ils passaient avec la
plume dans la marque des quatre lettres et suivaient toutes les
encoches du bois, russissant ainsi
obtenir des signatures de lempereur. Ibid (VI : 11-16) p. 50
40
A respeito das duas faces do hipdromo, que incitavam verdadeiras
paixes em
Constantinopla, traduzimos aqui a nota explicativa de Maraval,
na sua edio das Ankdota: As
duas principais faces do circo, designadas segundo a cor dos
cocheiros que elas apoiavam, os
Verdes e os Azuis (Venetoi e Prasinoi) desempenharam no imprio
bizantino, e em Bizncio
[Constantinopla] em particular, um papel poltico importante.
Procpio falou delas em seu relato
da revolta d