-
Il
266 MITO ETRAGDIA NA GRCIA ANTIGA
ao evocar a infncia de seu itmo, o momento onde ele estava
tyvtupqtpOev ortov (664), "fugindo da obscuridade do seio
materno"E3.Com a maternidade, a mcula que reaparece. Etocles e
Polinice nopodem mais ser espartanos ou, se quisermos, so os ltimos
espartanos.
Uma palavra, ainda, antes de deixar squilo. No sculo V houvepelo
menos um homem que leu squilo com cuidado: foi Eurpidcs8a.Nas
Fencras, Eurpides ridiculariza a longa descrio de squilo:
751 "Ovopd, rorou tcrtprpilv nor'1v Xer.("Dar o nome de cada um
perder tempo.")
Seu Etocles, longe de estar surpreso, deseja encontrar
Polinicediante das muralhas (754-760). Depois do que,
evidentemente, quan-do a primeira parte do combate termina, o
mensageiro descreve oscombatentes. A ordem diferente da de squilo,
Polinice no mais ostimo. Os emblemas tambm so diferentes, com exceo
daquele,mudo, de Anfiarau (lll0-1112)85. Partenopeu, o primeiro
nomeado,no tem Esfinge, mas apenas o emblema familiar: Atalante
caando ojavali de Calidn (l108-1109). Hipomedonte tem no seu escudo
ArgosPnoptes (lll5). Tideu protege o seu com uma pele de leo e
segurana mo direitas "o Tit Prometeu levando uma tocha como para
incen-diar a cidade" (1122), referncia'evidente ao escudo de
Capaneu.Polinice goza de um dispositivo cinematogrfico: as guas de
Ptnias,comedoras de carne humana, que um sistema de eixos permite
animar(1123-1129). Capaneu tem um gigante que desenraza uma
cidade(1129-1133), outro exemplo de referncia a squilo. Adrasto tem
ser-pentes que levam em suas mandbulas os filhos de Cadmo (1138),
oque foi evidentemente retomado do escudo de Partenopeu.
Construiresse conjunto um exerccio que no fi2. Haveria nele um
outo,renri-do a no ser o de uma desconstruo sistemtica? De qualquer
forma,tudo leva a crer que a cena dos ,Sete formava um conjunto
suficiente-mente coerente para que Eurpides se obstinasse em
destru-lo.
83. N. Loraux aproxima, com razo, Ewnnides,65, onde se diz de
Atena;o'v ortotot w1o tepoppvq, "no tendo sido nutrida sombra de
umamatriz". o que permite a Atena presidir aos nascimentos
autctones. Dizer de Poliniceque ele escapou das trevas materns
reduzir a nada qualquer pretenso sua
- e, em
contrapartida, de seu irmo -
autoctonia.84. Nada mais petendo aqui seno levantar, em poucas
palavras, um tema de
pesquisa. Esta exigiria, para ser levada a bom termo, um estudo
sisternticodas Fenciase das Suplicantes de Eurpides, sem falar nos
versos 1309-1330 do dipo en Colonode Sfocles.
85. Anfiarau , na ordem de Eurpides, o segundo.86. O texto muio
obscuro, e no me arrisco a interpre-lo.
7. Oipo em Atenas*
OPOETAEACIDADE
"Felizardo Sfoclesl Morreu aps uma longa vida, homem de sor'te e
de talento; fez inmeras e belas tragdias, e conheceu um belo fm'sem
nunca ter sofrido mal algum." Desse modo o poeta cmico
Frnicosaudava, em 405 a.C., em sua comdia as Musas,a morte recente
(406)de sfocles, com cerca de noventa anos. A aluso clara no incio
dasTraqunias (1-3): " uma verdade admitida h muito tempo entre
oshomens que no se pode saber, de nenhum mortal, antes que morra'
sea vida lhe foi suave ou cruel", e, no final do Edipo Re:
"Evitemoschamar um homem de feliz antes que tenha atingido o termo
de suavida sem ter sofrido uma mgoa" (1529-1530). A vida de sfocles
foi,portanto, justamente o contrrio de uma tragdia' Foi tambm
umaida altamente pblica e poltica, no que Sfocles difere tant.
desquilo, esse cidado simples, combatente de Maratona' mas que
nun-.u .upou cargo algum, como de Eurpides, esse homem domsticoque
moreu, pouco antes do mais velho, Sfocles, na corte do rei
cluMacednia. A vida de sfocles acompanha a grandeza atenicnso
c:extingue-se dois anos antes da derrocada de 404. Ele nasce em 496
otr495
- uma dzia de anos depois das reformas de Clstenes (508)'
quc
emolduram a futura democracia ateniense - , filho de um rico
ateniensc,Sfilos, dono de escravos, ferreiros e carpinteiros' Seu
demo Colo-no, no limite da cidade e do campo, e ele o pintar em sua
ltima obra'Autor trgico, renuncia a representar suas obras devido
fraqueza dc
* Prefcio a Sfocles, Tragdies, trad. de Paul Mazon, Paris, 1973'
Gallimard,
col. Folio, pP. 9-37.
- MITO ETRAGDIA NA GRCIA ANTIGA ulpo ev ATENAS3AT MITO ETRAGEDIA
NA GRECIA ANTIGAIult voz. Marido de uma ateniense e amante de uma
sicinia, conheceurulgurnas dificuldades familiares: seu filho
legtimo, Iofonte, tambmnutor trgico, reprovava-o por favorecer seu
neto ilegtimo, o poetaSfbcles, o Jove, mas duvidoso que tenha sido
acusado por seus'ilhos de senilidade, como pretende um bigrafo
annimo. Seu suces-so nos concursos trgicos no teve precedentes.
Teria sido coroadovinte e quatro vezes, e nunca foi o terceiro.
squilo s foi coroadotreze vezes, e Eurpides conheceu apenas cinco
vitrias, das quais umapstuma. Ele helentamo em 443, isto ,
administrador do tesouroateniense vertido pelos "aliados" de
Atenas, estrategista em 440, aolado de seu amigo Pricles, junto ao
qual participa da expedio deSlrlos; alguns anos mais tarde, ocupa
novamente esse cargo junto ao"moderado" Ncias. Depois do desastre
da Siclia (4I3), um dos dez"c
-
270 MITO ETRAGDIA NA ORCIA ANTIGAO MITO, O IERI, A CIDADE
A tragdia tem nascimento, segundo a palavra surpreendente
deWalter Nestle, quando se comea a ver o mito com o olhar do
cidado.De fato, o poeta trgico se serve do imenso repertrio das
lendas he-ricas, que Homero e os autores dos outros ciclcs picos
haviam con-figurado e que os pintores imagistas de Atenas haviam
representadonos vasos. Os heris trgicos so todos emprestados a esse
repertrio,e podemos dizer que quando Agato, jovem contemporneo
deEurpides que encarna a Tragdia no Banquete de Plato,
escreveu,pela primeira vez, uma tragdia cujas personagens eram de
sua lavra, atragdia clssica morreu, o que no a impede de subsistir
enquantoforma literria. No h outra origem da tragdia seno a prpria
trag-dia. Que o protagonista saia do coro que canta um "ditirambo"
emhonra a Dioniso, que um segundo (com squilo), depois um
terceiroator (com Sfocles) venham sejuntar a ele no confronto entre
o herie o coro, no se pode explicar em termos de "origens". E nada
mais seexplicar ao dizermos que a palavra "tragdia" significa,
talvez, cantodeclamado por ocasio do sacrifcio do bode (trgos). No
so bodesque moem na tragdia, mas homens; e se h sacrifcio, um
sacrif-cio desviado de seu sentido.
Uma historieta relatada por Herdoto contudo esclarecedora (V67).
No sculo VI, o tirano Clstenes de Sicon, av do
revolucionrioateniense, teria abolido o culto do heri argivo
Adrasto e transferidoos coros trgicos, celebrados em sua honra, ao
culto popular de Dioniso.Adrasto era um heri da lenda dos Sete
contra Tebas, daqual squilofez uma tragdia. O heri, enquanto
categoria religiosa, uma criaoda cidade que no parece remontar
muito alm do sculo VIIL Quandouma tumba real se cerca de tumbas
mais modestas e se torna um lugarde culto, como a arqueologia nos
faz constatar no fim do sculo VIII eno incio do sculo VII, em
Ertria, na Eubia, nasce o heri. Os herisso recrutados, por assim
dizer, em qualquer lugar, aqui e ali, deusesdecados ou reis
promovidos. O importante assinalar que seu cultoest ligado sua
tumba, e que esta se inscreve no solo, em lugares quea cidade tem
como simblicos: a gora, as portas da cidade, as frontei-ras, por
exemplo. O heri "ctnio" (ligado terra) ope-se desse modoao deus
"uraniano" (celeste), mas cria-se um segundo distanciamento,que a
historieta narrada por Herdoto relata, com a cidade em vias
dedemocratizao do sculo VI e a cidade democrtica do sculo V. Oheri
e a lenda ligam-se a esse universo de famlias nobres que, detodos
os pontos de vista, prticas sociais, fbrmas de religiosidade,
com-portamentos polticos, representa o que a cidade nova rejeitou
no de-correr dessa mutao histrica profunda que comea em Atenas
comDrcon e Slon (fim do sculo VII e incio do sculo VI), para
prosse-
otpo eu ATENAS 211
guir com Clstenes, Efialtes e Pricles' Entre o mito herico e a
cidade'
distancia foi escavada, mas no o bastante para que o heri deixe
de
Dermanecer presente e at ameaador' A abolio da tirania em
Atenas
u,o up"not e 5 10, e dipo no a nica personagem trgica a ser
umi;;";;tt.o direito (adk)contesta a tradio nobilirquica e
tirnica'u, ,ru,u-r" de um direito que no est fixado ainda' A
tragdia opeconstantemen teumadkeaoutra, e vemos o direito
deslocar-se e trans-
formar-se em seu contrrio, omo nos dilogos entre Antgona e
Creonte, entre Creonte e Hmon, e como no 1dipo Rei, onde o
heri
ao mesmo tempo o inquiridor que age por delegao da cidade e
cr
prprio objeto do inqurito'O mito herico no trgico por si s' o
poeta trgico que lhc dri
esse carter. certo que os mitos comportam' tanto quanto se
quclra'essas transgresses de que se nutriratn as,tragdias: o
incestct'
-
N2 MITOETRAGDIA NA GRCIA ANTIGAnagem desconhecida do prprio
squilo, e pode assim se tornar a in-transigente guardi do lar de
Agammnon. E, voltando uma vez mais,a aipo Rei, o que a lenda ae
dipo antes dos,trgicos? a de umacriana abandonada e conquistadoa,
parc quem matar o pai e dormircom a me no tem talvez outro
significado seno o de um mito deadvento real de que h muitos outros
exemplos.
O heri se separa ento da cidade que ojulga, e, em ltima
instancia,os j uzes sero os mesmos que atribuem o prmio ao vencedor
do con_curso tgico, o povo reunido no teatro. preciso que.a
separaotenha lugar ali mesmo onde, por uma reviravolta genial,
Sfocles pin_lou, no a separao, mas o retorno, tanto no Filo ctetes
qtJanto no dipoctrr Colono, tragdia da heroicidade, em Atenas, do
velho exilado defebas. "E, portanto, quando no sou mais nada que me
torno realmen-te um homem" (393).
TRAGEDIA E HISTRIA
Herdoto um contemporneo de Sfocles, de quem foi at ami_go. E um
dos criadores do discurso histrico, do mesmo modo queliscluil. e
sbles foram os criadores do discurso trgico. Na obra deLlerdoto
encontramos no tragdias propriamente ditas, pois atrag.-dia no pode
ser separada da representao trgica, desse duplo ds_dobramento que ,
por um lado, a oposio entre o heri e o coro e, poroutro, a relao
que se estabelece entre o coro, os atores e a cidadepresente nas
arquibancadas, mas esquemas trgicos. Desse modo, ahistria de Creso,
a dos Aquemnides, Ciro, Cambises, Xerxes, se de_senrr,lam segundo
uma ordem familiar aos leitores de tragdia: orcu-los ambgu.s e
compreendidos de vis, uma escolha invariavermentem que gera uma
srie de catstrofes pessoais e polticas. por no terinterpretado
corretamente orculos que s so claros para ns, cresoperde ao mesmo
tempo seu filho e seu imprio. Mas quem so esseshcris quase trgicos,
atingidos pelo descomedimento (hjbris) e pelav i n gana div na (t
e)? Na quase total idade dos casos, esses heris sodspotas orientais
ou tiranos gregos (como polcrates de Samos e ou-tros), isto ,
homens que confiscaram a cidade em proveito prprio. Acidade, com
seus rgos de deliberao e de execuo, funciona emHerdoto como uma
mquina antitrgica, quer seja .,arcaica", comoEsparta, ou
democrtica, como Atenas nos ltimos tempos. Lenidas,rei de Esparta,
t'oi morto nts Termpilas em 490 com seus trezentossucrrciros, os
espartanos consultaram O orculo cle Delfoss antes declrrr cn
gucrra, o urilcul() n0 0l'crece cle modo algum essc carter
8, Hcrtloro, Vll, 220,
oPog4ATENAS 273de ambigidade que caracteriza o orculo trgico e
tantos orculosesparsos na obra de Herdoto. Em termos de escolha
poltica ele semostra bastante simples: ou bem Esparta subsistir,
mas um de seusreis morrer, ou bem Esparta ser vencida, mas seu rei
sobreviver. Aescolha de Lenidas uma escolha poltica, e sua morte no
umamorte trgica.
Milcades de Atenas aparece em Herdoto sob dois aspectos
dife-rentes e, inclusive, opostos. Em Maratona (490), ele um dos
dez es-trategistas eleitos de Atenas, perfeitamente integrado, por
conseguin-te, cidade demortica. Mas tambm o tirano de Quersoneso,
ondefoi vassalo do rei dos persas, e at em Atenas, aps Maratona,
seupapel mais o de um candidato tirania que o de um cidado
quearrasta os atenienses, sob pretextos ilusrios, a uma expedio
contraParos. Na vspera de Maratona, a situao antes de tudo poltica,
ade uma partilha de votos. Dos dez estrategistas, cinco so
partidriosdo ataque e cinco, da espera. O rbitro o chefe nominal do
exrcito,o "polemarca" Calmaco. Milcades vai encontr-lo e lhe diz:
"Pode-mos, Je os deuses permqnecerenx imparciais, triunfar nessa
contenda.Depende de voc que Tebas seja livre..." (VI, 109). Se os
deuses foremimparciais... os deuses da tragdia nunca so imparciais,
mesmo se soos homens que realizam todos os gestos.decisivos. A
deciso tomadaem Maratona uma deciso poltica, tomada livremente por
uma maio-ria. Mas o prprio Milcades, algumas semanas depois, pede
aos ate-nienses que lhe forneam setenta navios, homens e dinheiro,
"sem di-zer nada do pas que ele pretendia atacar". A expedio
fracassa:Milcades, guiado por uma sacerdotisa de Paros, penetra no
santurioreservado s mulheres de Demter Tesmoforos, o que um ato de
desco-medimento. Tomado de pnico, recua e sofre um ferimento que o
ma-tar. A Ptia, consultada pelos prios, fez saber que a sacerdotisa
fora oinstrumento da vingana divina: "Milcades devia acabar mal, e
Tim[a sacerdotisa] aparecera a ele, paraprend-lo sua infelicidade"
(VI,132-136). O orculo intervm depois, e no antes da ao, mas
Milca-des no deixou de ser logrado por um sinal divino enganador:
ele seconduziu como tirano, e more como uma vtima trgica.
OHEROIEOCORO
No centro da orkhstra circular, a thyml o altar redondo
def)ioniso. rumo a esse altar que se dirigem, num ritmo de marcha,
oscoreutas, por ocasio da entrada do coro, o prodos, momento
solenecla tragdia, em relao tlrynl queevoluem os coreutas,
girandoora num sentido, ora noutro, e ora permanecndo imveis.
Tangente orquestru est a.rliarr (donde vem nossa cena), tenda onde
os atores se
-
274 MITO ETRACJDIA NA ORCIA ANTIGA
preparam. Sfocles quem primeiramente a fez pintat, o que no
sig-nifica, absolutamente, a introduo de um cenrio, mas
provavelmentede um simples efeito de perspectiva. No centro: uma
porta que podesimbolizar, vontade, a porta de um palcio, de um
templo, ou a entra-da de uma caverna, como no Filoctetes. Nas duas
extremidadesl duassadas possibilitam entradas e sadas do lado da
cidade e do lado docampo. Discute-se, e discutir-se- muito tempo
ainda, sobre o lugarexato onde ficavam os atores. A arqueologia no
permite responder aessa questo, pois os teatros do sculo V eram de
madeira, e nossosteatros, remanejados nas pocas helensticas e
romanas, datam, nomximo, como o de Epidauro, do sculo IV. No
entanto, certo, se-gundo o testemunho dos prprios textos e dos
vasos, que um estreitaplataforma separava os atores do coro, diante
da rken. Alm disso,degraus permitiam o encontro e o dilogo. Desse
rnodo, no incio dcldipo em Colono, o coro convida dipo se manter
sobre o "degrlu"que o rochedo frrma. A palavra grega bma, que
designa o degrau daescadaria, mas tambm a tribuna da qual o orador
se dirige nos cida-dos reunidos. Acima dessa .r,tene-, uma rnquina
simples permite asaparies divinas, como a de Hracles no tm do
Frlocrete.r; atravs daporta central pode-se introduzir uma
plataforma mvel, que permite,por exemplo, a exposio do corpo de
Clitemnestra, no fnal da Elect ra.
A dualidade fundamental a que ope e confronta os trs atoresque
representm todos os papis hericos
- todos so homens, e o
mesmo ator que representa, nas Traqunias, os papis sucessivos
deDejanira e de Hracles
- e os quinze coreutas. O coro coletivo, e os
heris, quer sejam Creonte ou Antgona, so individuais. Tanto o
coroquanto os heris esto fantasiados e mascarados, mas os coreutas
usam,como os hoplitas da cidade, um uniforme: o prprio chefe do
coro (ocorifeu), intermedirio obrigatrio entre os heris e os
coreutas, no sedistingue pelo traje. Ao contrrio, as mscaras e os
trajes dos atoresso individualizados. O coro exprime ento a seu
modo, diante do he-ri atingido pelo descomedimento, a verdade
coletiva, a verdade m-dia, a verdade da cidade. O heri morre ou
sofre, como Filoctetes ouCreonte, uma mutao decisiva, o coro
subsiste. EIe no tem a primei-ra palavra, tem sempre, pela boca do
corifeu, a ltima, como no Edipoem Colotto. "Aqui, a histria se
fecha definitivamente".
Mas tudo o que acaba de ser dito pode ser agora revertido, e
ob-servemos primeiramente um detalhe tcnico mais significativo:
naempresa pblica que o concurso trgico, do mesmo modo que a
cons-truo dos navios de guerra, a cidade, que responsvel pela
grandeobra das trieres, prov os atores, e, assim como o trierarca
inancia,como liturgia, os aprestos do navio e o soldo da equipagem,
um ricoateniense, talvez at um meteo, que, sob o contrr:le do
arconte, recru-tar, dirigir ou mandar dirigir o coro; o conjunto
era julgado pelos
EDIPO EM ATENAS
cidados. O coro a expresso da cidade, que honra com suas
evrllu-es o altar de Dioniso, isto , do deus que, dentre todos os
deuses doOlimpo, o mais estrangeiro cidade. Entre a Iinguagem
tlavndl pe-los heris e a travda pelo coro h muitas trocas, ncl cluo
scil illcllisquando um e outro dialogam, ou modulam seus cntos, mas
ainda vlido dizer que, de unr modo geral, o coro, quando se exprime
coleti-vamente, utiliza uma lngua e uma mtrica extraordinariamente
com-plexas, enquanto os heris falam uma linguagern simples, s vezes
quascprosaica (que se leia, naAntgorln, o diltlgtl entre Creonte e
o gtrntclit).Melhor ainda, se o coro o rgo da expresso coletiva e
cvica, inteiramente excepcional que seja composto de cidados
tnditls, isto, itdultos machcls em idade de combate. Dls trinta e
dttas tragcliltsque chegaram at nrSs em nome cle squilo, Sfbcles e
Eurpides (urna,o Rcs
-
276 MITO E TRAGDIA NA GRCIA ANTIGAos nega, s vezes brutalmente,
como em Esparta, onde o antagonismocidade-famlia aparece no estado
puro, e s vezes mais sutilmente, comoem Atenas. No sculo V, as
grandes famlias, as gne, continuam evi-dentemente a desempenhar um
papel essencial; no seu seio que nu-merosos dirigentes so
recrutados. Pricles um "Bousyge", ligado,por sua me, ao gnos dos
"Alcmenidas", que representou um papeldeterminante na eliminao dos
tiranos no final do sculo VI. Mas acidade democrtica se fez tambm
contra essas grandes famlias, e aarte funerria do sculo V exprime
maravilhosamente a represso aque est submetida a expresso dos
sentimentos familiares, nem queseja apenas no momento damorte.
Apalavraokor, que s vezes tradu-zimos por "famlia", dificilmente
traduzvel. Ora designa a famliano sentido estrito do termo, ora a
casa e todos os que gravitam emtorno do lar: pais, filhos e
escravos.
A tragdia exprime essa tenso entre o okos e a cidade. Na
ilhadeserta onde se situa o Filoctetes, a escolha que oferecida aos
doisheris, escolha autenticamente trgica, deve ser feita entre o
exrcitoque combate diante de Tria, isto , a cidade, e o retorno ao
lar, isto ,a desero. Esse seria o ltimo partido que eles tomariam
se no fos-sem impedidos por Hracles. Dejanira quer integrar a seu
lar lole, acativa silenciosa, como escrava; diante do heri
pan-helnico Hracles,ela no pode dividir seu okos, admitindo a
presena de uma segundaesposa. Na Electra, a tragdia ope, levando ao
limite do assassinato,a mulher que passou para o lado dos homens,
Clitemnestra, e sua filha,que pretende perpetuar o lar paterno, mas
cujo destino "normal" seriaabandon-lo. Atravs de um jogo de
palavras caracterstico ambassa"lektroi", isto , fora do leito
conjugal.
A Atttgona o exemplo mais clebre dessa tenso, e tambmaquele que
foi quase sempre mal compreendido, apesar de algumaslinhas
luminosas que Hegel lhe consagrou na Esttica. Conflito entre
a"jovem selvagem", encarnada por Antgona, e a fria razo de
Estado,replesentada por Creonte? No fcli Sfocles, mas Jean Anouilh,
quemrepresentou esse drama. Foi na sua Antgona que Creonte (ou
PierreLaval?) reuniu o conselho dos ministros depois da morte de
todos osseus. O Creonte de Sfocles partido pela catstrofe, como a
prpriaAntgona; ele "um cadver ambulante". Apltila (o amor de
Antgonaque se exprime desde os primeiros versos: "Tu s meu sangue,
minhairm Ismene...") um sentimento que se dirige a seu okos, sua
fam-lia, que ela se recusa a dividir entre o irmtl leal cidade e o
quenloeu (assassinldo pelo irmiio e seu assassiro) atcand()-it,
mits oo/Ll.r qu cu deenclc dsmedirlnrnente o incestuoso e
monstruoso deAipo e dos Labclcidas.
"Elos vrrr cle krngc", cantil o coro, "os males que ve.jo
ubatercm-sc s(hre os vivos, riol o lct() (al/io.r) dos
l,atrrlrcidri, ttcntpre nps os
orpo Ea ete\es 2'17mortos, sem que nunca uma gerao libere a
seguinte" (594-596). Ocasamento cvico situa-se entre dois extremos:
o extremo prximo, que o incesto, quando "o pssaro come a carne do
pssaro", para retomaruma imagem de squilo, e o extremo longnquo,
que o casamnto no
. !-.estrangeiro. Edipo cometeu o incesto e Polinice desposou
uma prin-cesa argiva: "Ah! himeneu fatal de uma me! Incestuoso
abrao que,aos braos de meu pai, uniu minha me desafortunada. De que
culpa-dos provenho, miservel ! E so aqueles que hoje, malditos,
semhimeneu, vou encontrar, por minha vez. Ah! O infeliz himeneu que
tuento encontraste, irmo, j que, at morto, ainda pudeste perder
airm que sobrevivera a ti" (862-871). E o coro pode replicar a
Antgona:"Tua paixo s se aconselhou consigo mesma, e, desse modo,
ela teps a perder" (875). Mas Creonte, por sua vez, no o
magistradolegtimo de uma cidade. Provavelmente, ele definido, desde
o verso8, como o "estrategista" (o "chefe", na traduo de Paul
Mazon) deTebas, e Ismene pretende obedecer "aos poderes
estabelecidos" (maisexatamente "aos que esto encArregados",
expresso tcnica que de-signa os magistrados
- o plural caracterstico * da cidade). O prprio
Creonte faz tudo para afirmar sua legitimidade. Mas essa
legitimidade radicalmente contestada pelos mesmos que, segundo as
regras dacidade, esto em posio menos favorvel para faz-lo, a
jovemAntgona (que proclama: "Os tebanos pensam como eu, mas contm
alngua") e o prprio filho de Creonte, Hmon, um filho que enfrenta
opai, um jovem que se ope a um adulto, mas um cidado que se opeao
tirano. Creonte pode invocar "esse cidado dcil que... saber
co-mandar algum dia. do mesmo modo como se deixa comandar
hoje"(668-669), o que a prpria definio da democracia antiga, Ora,
nogrande discurso que replica ao de Creonte, Hmon responde: "Teu
sem-blante intimida o cidado simples" (690). E quando se estabelece
odilogo entre pai e filho, verso a verso, o espectador ateniense
ouve oseguinte: Creonte: "Tebas deveria ento ditar-me ordens?"
Hmon:"Ests vendo, tu respondes como uma criana". "Seria ento para
umoutro que eu deveria governar esse pas?" "No h cidade que sejabem
de um s." "Uma cidade, ento, no mais de seu chefe?" "Ah,
tuservirias bem para comandar sozinho uma cidade vazia!"
"Parece-meque esse rapaz se faz de defensor da mulher". "Se s
mulher, sim, poiss o nico a me interess,ar" (734-741).
O chefe legtimo, o homem, o adulto, um tirano, uma mu-lher, uma
criana. Acima da cidade (hypspolis), ele est fora dacidade
(cipolis\. Entre aqueles que se defrontam, o coro no pde,de
imediato, decidir: "Falou-se muito bem aqui nos dois
sentidos"(725), u lgica trgica, essa lgica do ambguo, decide,
conduzin-do ao seu termo, os dois direitos que so tambm dois
desomedi-mentos.
-
278 MITO ETRACDIA NA CRCIA ANTIGATEMPO DOS DEUSES E TEMPO DOS
HOMENS
As reflexes sobre a instabilidade dos direitos humanos so
tonumerosas e to banais nos trgicos quanto em seu
contemporneoHerdoto ou em seus predecessores, os lricos. Desse
modo, Ulissesno Ajax: "Vejo bem que no somos, ns todos que vivemos
aqui, nadamais que fantasmas ou leves sombras" (125-126), e Atena
responde:"Basta um dia para aumentar ou diminuir todos os
intbrtnios huma-nos" (l3l-132). Mas, quando dipo viu revelada sua
infelicidade, ocoro canta: "o tempo, que tudo v, descobriu-te
contra a tua vontade!"(1213). Desse modo, opem-se o tempo instvel
dos gestos humanos eo tempo soberano dos deuses, aquele que coloca
cada um no Iugar quedeve ocupar no plano divino. Tempo dos deuses e
tempo dos hclmensse encontram quando a verdade vem tona, Aps ter_se
cegado, dipopode dizer; "Apolo, meus amigos ! Sim, Apolo que me
inflige, nessahora, essas atrozes, essas atrozes desgraas que so
meu ardo, meufardo daqui em diante. M4s nenhumo outr mo alm da
minha ngiu,infeliz" ( I 329- 1333). A oposio dessas duas categorias
temporais , emsi, muito mais antiga que os trgicos, mas o palco
trgico piecisamefrteo lugar onde os dois tempos, inicialmente
disjuntos, se encontram.
Um dos modos normais de comunicao entre os deuses e os ho_mens
na sociedade grega o vaticnio oracular. A soberania do orcu-lo ,
nas tragdias, aquilo que o coro nunca contestar, Apesar
disso,Jocasta prope, por ter compreendido a verdade, o nico meio
possvel de contestar a verdade oracular; ,.Viver ao acaso, como se
pode, de longe ainda o melhor..." (979). viver ao acaso, exatamente
isso oque o heri trgico no faz. Mas entre os orculos reais, os que
conhe_cemos pelas insciies de Delfos ou de Dodona, e o orculo
trgico asdiferenas so surpreendentes. As questes colocadas pelos
consentes,individuais ou coletivos, so ambivalentes: Vou me casar
ou no? De-vemos guerrear ou no? A resposta afirmativa ou negativa.
A situa-o se inverte no caso do orculo trgico. E a pergunta que
simples.Ela pode se resumir na interrogao que a maioria dos eris
prr:pena tragdia: Que farei? dipo foi avisado por Delfos de que
,uturiu opai e desposaria a me, mas o orculo no lhe disse que o rei
e a rainhade corinto no eram seus pais. creonte retorna de Delfos
tendo sidoavisado de que um homem maculava o solo de Tebas, mas o
orculono disse quem encarnava essa mcula. A tcnica trgica permite
to-das as solues imaginveis em torno dessa ambigidade fundamen_tal.
Desse modo, no ilo ctetes, aprofecia do adivinho troiano Heenoss
revelada de modo fracionado. Ser Neoptlemo que tomar Tria?Neoptlemo
e o arco de Filoctetes? Ne.ptlemo, Filoctetes e seu arco,?S
tomaremos conhecimento disscl progressivamente, e sen esse
pro-gresso na revelao no se compleenderia o rapto clo arco clo
heri
otponttATENAS zigexilado, ordenado por Ulisses, realizado por
Neoptlemo. Em suma,gestos humanos e plano divino seguem uma ordem
inversa. Do mesmomodo que a Orstia de squilo, t Electra de Sfocles
comea ao ama-nhecer e termina noite. O amanhecer coloca em cena
Orestes e odesespero de Electra, a noite cai sobre o assassinato na
escurido dopalcio de Egisto. Nesse meio tempo, uma falsa
temporalidade, umafalsa tragdia foi introduzida na verdadeira pela
narrativa da pretensamorte de Orestes na corrida de carros de
Delfos.
Mas evidentemente no dipo rei que se mostra com a mais
ex-traordinria surpresa essa incluso do tempo humano no tempo
divino.Quando a pea comea, tudo j se realizou, mas ningum sabe
ainda.dipo interrogou o orculo, deixou seus "pais" de Corinto,
matou umviajante que barrava seu caminho, libertou l'ebas da
Esfinge. deslrosoua rainha da cidade, ocupou o troro real, sem ver
nessa succsso nurlualm de uma sucesso. A pesquisajudiciria a que
ele procede diantedo enigma que a peste prope, com os rneios
clssicos do procedimen-to ateniense (consulta do orculo, do
adivinho, das testemunhas). orevela a si prprio: "Agora, tudo se
tornou claro". O enigma plopost()pela Esfinge tem uma resposta, que
era "o homem". O enigma propos-to por dipo tem uma resposta, que
ele prprio. Cclmo observavirAristclteles (Po,ltictr, 52 e 29 e
ss.), esses dois elementos esserrc:iuisque so, na tragdia
grega,aperiplcirr, isto , a inverso da situao dapersonagem, e o
recottlrccinxento, isto , a descoberta da identidade,esto reunido s
no lldipo. Antes da clescoberta final, uma ltima hipte-se contudo
formulada. dipo nao o ilho de Plibo e Mrope deCorinto. No seria ele
o filho da fortuna (tikh) e at um homern selvir-gem? "Considero-me
filho da Fonuna, Fortuna, a Generosa, e ncl sin-to nenhuma vergonha
disso. Fortuna foi minhn me, e os inos que acom-panharam minha vida
tornaram-me, sucessivamente. ori pequeno. origrande" (1080-1083), e
cabe ao coro definir o Citron, a l'onteira sel-vagem que separa
Tebas de Atenas, como o "compatriota Oe Alpo".Mas, em ltima
instancia, no h na tragdia gegi nem Fortuna nemhomem selvagem.
ctipo, o "tirano", isto , o rei llor acuso, no irrcioda pea
venerado quise como um deus pelo povcl de 'lebrs reuniclo,jovens e
velhos confundidos, na presena de um altal quc p
-
;fcF-
280 uno e rnecuR Nn cncrA ANTTcAvamente. A lgica da contradio
entrava na Grcia do sculo V comfragor. Os trgicos
- e Sfocles em particular
- no ignoravam nem a
palavra, nem a coisa, mas o disss lgos no , neles, o duplo
discurso,o que separa o pr e o contra, mas o discurso duplo, o
discurso amb-guo. A ambigidade est presente em toda parte, no nvel
do que cha-maramos jogo de palavras; desse modo, aAntgona joga com
o nomede Hmon (em grego, Hamon), filho de Creonte, que o poeta
aproxi-ma da palavra que significa "sangue" (hama). O clebre
discurso am-bguo de Ajax (646-692) compreendido pelo coro como
sinal daresignao do heri diante da ordem dos deuses e do comando
dosAtridas. "Finalmente, encontrei a salvao", mas o espectador
com.preende que 1ax decidiu se matar. Enfim, so as prprias
estruturasdas pcas que so ambguas e enigmticas. J observamos isso a
res-peito do dipo Rei au da Electra. preciso tentar compreender
porque.
A prtica poltica, social, religiosa da cidade uma prtica de
se-parao que visa a instalar cada um no seu domnio, os homens
emrelao aos homens, os homens em relao aos deuses. Assim, o
terri-trio da cidade ope o mundo dos campos cultivados, dos quais
vivemos cidados, e o mundo selvagem, da fronteira, reservado a
Dioniso eaos caadores. O sacrifcio que coloca os homens e os deuses
em co-municao, mas que os fixa nos seus estatutos diferenciados
(para oshomens, a carne; para os deuses, a fumaa), est intimamente
ligado aomundo dos campos cultivados, sobre os quais reina Demter.
O animalsucrifical um animal domstico, o companheiro do homem no
traba-lho. Mundo selvagem e terra arvel, caa e sacrifcio no devem
inter-ligar-se.
Nessa prtica social que a guerra aparece uma polaridade domesmo
tipo. A guerra uma atividade coletiva que depende do con-junto dos
hoplitas, companheiros de fileira e intercambiveis. O lugarnormal
onde ela se realiza a plancie cultivada, prpria ao confrontodas
I'alanges, que tambm exatamente aquilo que a cidade deve de-fender.
Qualquer outra atividade guerreira, a emboscada, o combatenoturno,
a escaramua nas fronteiras, depende do mundo selvagem e confiada
parte selvagem da cidade, isto , juventude.
Atravs do espetculo trgico, a prpria cidade se questiona. Oraos
heris, ora o coro, encarnam sucessivamente valores cvicos e
valo-res arrticvicos. A tragdia tambm faz interligar-se o que a
cidade se-para, e essa interferncia uma das formas fundamentais da
transgres-so trgica. O Hracles divino do Filoctetes representa as
virtudeshoplticas, e ele que manda os dois heris da pea combaterem
ladoa lado diante de Tria. O Hracles estritamente humano
dasTraqunias bem dif'erente. Diante do rio, com "o aspecto de
touro" (509), Aquelo descrito como vindo "do pas de Baco, de
f'ebas. Ele brande, ao
nIPOet\,ATENAS
mesmo tempo, o arco que se verga na batalha [literalmente: o
arco decurvatura inversa dos citas], dardos, uma clavan' (510-512),
as armasda astcia, as do combate clssico, as da brutalidade.
euando, naElectra, Orestes entra em cena, ele foi advertido pelo
orculo de quedevia, "sozinho, sem escudo, sem armas, pela astcia,
dissimulando,prover ojusto sacrifcio que est reservado a seu brao".
Antes de sermorto por Orestes, Egisto pode fazer a pergunta: "Por
que, se o ato belo, ele necessita da sombra?" (1493-1494), e
declara ao filho deAgammnon: "Entretanto, no de teu pai que vem a
arte de que tevanglorias" (1500). Por uma ambigidade suprema, o
heri do dipoRei caador, mas a caa que ele persegue no outra seno
ele pr-prio. Ele _lavrador, mas o solo que semeou no outro seno o
campomaterno. jax acreditou caar e sacrificar homens guerreiros,
mas naverdade realizou apenas uma matana de carneiros. Seu gesto
final,realizado no diante do exrito, mas diante do mar, no limite
do mun-do selvagem, um sacrifcio humano, o de si prprio. "A faca do
sacri-fcio est ento aqui, erguida, de modo a cortar da melhor
maneirapossvel..." (815-816). Seu ltimodeus dirige-se precisamente
ao solode sua cidade, plancie onde o exrcito combate: "Solo sagrado
deminha terra natal, Salamina, que serve de base ao lar de meus
antepas-sados... E vs, fontes e rios que tenho sob os olhos,
plancie de Trade,eu vos sado, todosjuntos: adeus, vs que me
nutristes" (859-863).
SABER, ARTE, PODER
Atenas quisera afirmar sua superioridade sobre Esparta pela
pos-se de uina arte, um ofcio, umatkhne estranhaao ombate
tradicionaldo grego, atkhn naval. "O que tenge o mundo da esquadra
questode ofcio", diz Pricles em (I, l4U. tambm uma arte, um
ofcio,que os sofistas pretendiam ensinar quando se propunham como
educa-dores da democracia. Um coro clebre daAntgonaexalta os
aspectosprometicos do homem, e no por acaso que ele coloca o domnio
domar no primeiro plano das conquistas humanas: "H muitas
maravi-lhas nesse mundo, no h nenhuma maior que o homem. Ele o
serque sabe atravessar o mar cinzento, na hora em que o vento do
sul esuas tempestades sopram, e que segue seu caminho no meio dos
abis-mos que as ondas revoltas lhe abrem" (332-337). O domnio da
terra eda agricultura s vem depois. No elogio de Atenas que o coro
do dipoem Colono pronuncia, a Ordem invertida: do mundo selvagem
"queDioniso, o Bacante, ieqenta", o poeta passa terra e oliveira,
aoscavalos de Posdon e, enfim, apenas ao mar. De fato, a
ambigidadejaparecia no coro da Antgona, e a palavra que traduz
"maravilhas"(de) significa em grego, ao mesmo tempo, "maravilhoso"
e terr-
281
-
282 MITO TRACDIA NA GRCIA ANTIGAvel". A obra de Sfocles
apresenta toda uma gama de personagens queencarnam o racionalismo
humanista apoiado na tkhn, qu" un,, r-pecto' mas apenas um aspecto,
da Grcia do sculo V. Assim, no nvelmais simples, Jocasta. .'Nunca",
diz ela, ,.criatura humana possuiu aarte de predizer" (705-709, a
palavra aindaHurc). o orcur. profe-rido a Apolo emanava no do deus,
"mas de seus servidores". .,Notemas", diz ela ainda, "o himeneu de
uma me, muitos mortais j par_tilharam em sonho o leito materno"
(9g0-9g2); e, de fato, ,"guno otestemunho de Herdoto, o vaticnio
podia dar uma interpretaao oti-mista da unio com a me. A Dejanira
d,as Traqunia,
"*pr"!u urnuarte diferente pra reconquistar o amor de Hr.acles;
ela prepara o bl-samo mgico (na verdade, um veneno) cuja receita o
centauro Nessolhe indicara.
dipo situa-se num outro nvel. Atravs de um jogo fieqente como
seu nome (Oidpous) e com o verbo que significa ,,eu sei,,
(ctir),Sfbcles faz de dipo o que ele sabe. pelo ber e pela arre que
eleliberta Tebas da terrver musicista, a Esfinge. u., ,a", de cripo
querecore o sacerdote, porta-voz do povo no incio da pea: .,eue a
vozde um deus te ensine. ou qrre um mortal te instrua sobre isso,
poucoimporta" (42-43). Quando Tirsias, falando, por sua vez itrvs
de umenigma, afirma que "viu nele a bra do verdadeiro", aipo, que
colo_ca a arte do adivinho num plano inlrior ao seu saber, replica:
:,8 qu"o,lhe teria ensinado o verdadeiro? Seguramente, no bi tua
arte,, 1St;.Diante de Creonte, de volta de Delfos, dipo raciocina
como tc_nico da coisa poltica. pensa descobrir entre o adivinho e
seu cunhacloum compl destinado a expuls-lo do poder. pois, para
Oipo, saber epoder caminham lado a lado.
No entanto, s h um nico saber infalvel: o que o vaticnio
oca_siona, e dipo estr to consciente disso que ele prprio se
afirma, diantede Tirsias, como possuidor da arte do adivinho, ms os
verdadeirosadivinhos so to clarividentes quanto impotentes._
No sculo que seguir o da tragdia, plato opor frmula deProtgoras
("O homem a medida de todas as coisas',) sua prpriafrmula, que fz
de Deus a medida de todas as coisas. verdade que adivindade, nos
trgicos, tambm medida, mas medida no rermo datragdia. ento, e s
ento, que o mundo ou o plano dos deuses tor_na'se "inteligvel".
Plato na verdade no ope o mundo sensvel aomundo inteligvel; ele
explica o primeiro, simples reflexo, pelo segun-do, que o filsofo
tem a possibilidade de descobrir. Mas o mundritr-gico no comporta
filsofos aptos a classificar os seres na sua hierar-quia
verdadeira, e por isso que plato rejeita a tragdia. No Battque_te'
o poeta trgico Agato deve se inclinar, assim como Aristfanes,diante
de Scrates. O mundo trgico exclui a hierarquia dos saber.es ea unio
entre saber e poder que o firsofb prctender rearzar.poderes
EDTpOEMATENAS 283e conhecimentos se detontam nesse campo opaco
que separa o mundodos deuses do dos homens e cujo sentido necessrio
escolher a todahora. O coro daAntgo,t(I, paa a glria do homem, diz
aindal "Senhtlrde um conhecimento cujas fontes engenhosas
ultrlpassam toda espe-rana, em seguida pode tomar o caminho do mal
assim como o dobent" (364-366). O Edipo em Colotto, que nlostra o
heri telrano en-trando na eternidade a chamado dos deuses e
conduzido pelo fundadormtico da democracia iteniense, Teseu,
mostrit que ess ltima hiptite-se no inconcebvel.
ODRAMAEOLEITOR
A trilogia cla qual o Edipo Rei tttziit parte no recebeu o
primeirr:prmi0 n0 concurso das Grandes Dionsias. Este foi recebido
peltl so-brinho de squilo, Filocls, cu.ia obrt nito chegou at ns
(mas quetalvez.tenha apresentadcl uma Crbra cle seu tio). O risccl
cle perclct clitUm doS elementos do concurso trrgico. [-scritits
cln 406, no nlolnl1)da morte de Sbcles, as Rs de Aristianes
1llostrarn cclrttudcl cltre des-de essa clata squilo, Sfocles e
Eurpides gttzam de uma primazia cltreningum contesta, embora a
or.dem ua qual corrvm classil'icii-lcls sejaainda matria para
debate. No sculo IV, na Atenas de Licurgo' con-temporneo de
Aristteles, as efgies dos trs grandes trgicos so va-zadas em
bronze, e o povo financia as reprises de suas peas' Somos
osherdeiros desse primeiro classicismo, entrementes expurgado
pelosprofessores romanos.
A histria moderna do teatro de Sbcles comea em 3 e 5 demaro de
1585, quando odtpoTirano foi representado com uma sun-tuoridud"
principesca no Teatro Olmpico de Palladio, em Vicnciae'Mas, assim
como uma igreja de L. B. Alberti no um templo grego' oteatro
dePalladio no um teatlo antigo; at, num certo sentido, bento
contrrio disso. O sol colorido que domina a cena no o ar livre
dclteatro grego. A separao do palco e das arquibancadas excltti
itorkhsta, que garante a mediao entre os atoles e o.pblico'
Omecenato da Accademia Olimpica no o julgamento popular, e
itrepresentao de uma obra'prima no um concurso trgico onde
sedefrontam autores, atores e oros de trs tetralogiils.'
Evirlentemente, podemos hoje representar ,dipo /iel no teatro
dcEpidauro, mas uma leitura arquecll(lgicn permanece moderna, e
nadase pode fazer para que no seja assim, mesmo que cada
gernojulguedescobrir, por uma operao de decapagem,overdadeiro
Sfocles e o
9. Vcr LCo Schrade. kt rtprsenntion r!'Edptt-7'ranno
n.u'l'cutrtt ()linrpit rt, l'it-ris, CNRS, 1960, e lia,
PP.320'326.
-
284 MITO ETRAGDIA NA GRCIA ANTIGAverdadeirodipo. A nica
superioridade da qual a nossa pode se van-gloriar ,talvez, ser
consciente dessas acumulaes sucessivas de lei-turas.
Que leituras contraditrias tenham sido propostas (a antepenltima
a leitura psicanaltica) no deve portanto nem nos espantar, nem
nosindignar. Quando hoje tentamos compreender a tragdia grega
atravsde um confronto sistemtico entre as obras e as instituies, o
vocabu-lrio, as formas de deciso que caracterizavam a Atenas do
sculo Vno pretendemos o saber absoluto (no h segredo no dipo Rei,
enisso Freud, fascinado pelo "ilustre decifrador de enigmas", se
enga-nou), e muito menos reencontrar, de uma vez por todas, o
sentido quetinha, para seu autor e para seu pblico, a tragdia
representada nosculo V. Dispomos apenas de obras, e no existe
sentido absoluto.
Pelo menos, essa palavra, "obra", deve nos servir de
resguardo,pois a obra precisamente aquilo que no necessrio quebrar,
aquilobra do qual no temos que procurar um sentido. Talvez seja
verdadeque, para compreender o mito de dipo, seja necessrio, como
afir-mou Claude Lvi-Strauss, no sem paradoxo, reunir todas as
versesdo mito: as anteriores a Sfocles, a do poeta trgico,a de seus
sucesso-res e, dentre elas, a do inventor do "complexo de dipo',;
mas umaobra no um mito e no se deixa decompor em elementos
primeiros.O mito s facilitar a leitura de uma obra de modo
diferencial, na m-dida em que sabemos
- o que no sempre o caso
- o que o poeta
acrescenta e o que suprime. Desse modo, a Esfinge do d ipo Rei
no o monstro feminino, oriundo da terra que viola os jovens, como
outrosdocumentos permitem reconstituir, nem a filha de Laio, como
defendeuma tradio trazida por Pausnias . Ela a "horrvel cantora,'
que pro-punha o enigma e nada mais.
Isso no significa que no seja preciso esclarecer a tragdia
atra-vs de outras fontes. Espetculo ao mesmo tempo poltico e
religioso,pode ser til confrontar a tragdia com outros modelos
polticos e reli-giosos. Desse modo, pudemos lembrarro que na poca
em que surgiano teatro a figura de dipo, divino purificador e
salvador de sua ci-dade, em seguida mcula abominvel que a cidade
rejeita e exila, exis-tiam em Atenas e em outros lugares da Grcia
duas instituies, a se-gunda uma verso politizada da primeira. O
pharmaks era um ..bodeexpiatrio" (mas recrutado entre os homens)
que a cidade expulsavaanualmente do local como smbolo das mculas
acumuladas durante oano, em caso de necessidade, aps t-lo
alimentado durante um anocon'lo um rei derrisricl, s expensas do
tesour.o pblico, e ,.dipo car-
10. Cf. J.-P Vernant, "Ambigidade c leviravolto, Sobre a
Es[rutura Enigmticade lldipo Rei",.rupra, pp, 87.9u,
ppoeMATe{lsrega realmente o peso de toda a infelicidade que
oprime seusconcidados", infelicidade da qual estos, na abertura da
pea, supli-cam que ele os livre, O ostracismo, procedimento que
parece ter sidoinstitudo em Atenas por Clstenes e que foi utilizado
entre 487 e 416,visa a obter, por meios polticos, um resultado
comparvel: expulsarprovisoriamente da cidade aquele dentre os
cidados cuja superiorida-de cone o risco de atrair sobre si a
vingana divina sob a forma datirania. "O descomedimento", diz o
coro dodipo Ret,"geraatirania"(873). Aristteles dirrr: aquele que
no pode viver em comunidade"no faz parte de nada na cidade, e
conseqentemente sente-se ou umbruto animal, ou um deus". Tal o
destino da personagem de Sfocles.
Do mesmo modo, quando nos lembramos que no mito, e ainda,em uma
larga escala, ns instituies da poca arcaica e clssica, ojovem
cidado, antes de ser integrado s fileiras dos hoplitas, era
insta-lado nas fronteiras da cidade, devotado militarmente s
emboscadas,at mesmo, como em Esparta, caa e explorao astuta e
noturnaquefaz dele o inverso do cidado normal, difcil no relacionar
essasrie de fatos com a situao de Neoptlemo no Filoctetes: filho
deAquiles, futuro vencedor de Tria, mas por ora um adolescente, com
aidade de um efebo ateniense, ele desembarca numa ilha deserta e
presionado por seu chefe, Ulisses, a realizar o roubo do arco
deFiloctetes, "explorao" contra a qual protestam tanto o passado
deseu pai quanto seu prprio futuro. Na concluso da tragdia, o
homemselvagem que Filoctetes se tornara e ojovem Provisoriamente
destina-do traio reintegram o mundo da cidader2.
Essas so hipteses, e poderamos propor outras, aplicveis a
ou-tras peas de Sfocles. Digamos simplesmente, para concluir, que
elasno visam, de modo algum, substituir a leitura que cada um faz e
farem definitivo, por sua prpria conta, da obra do poeta grego.
ll. Poltk:a, I, 1253a.12. Ver P Vidal-Naquet, "O Filoctetes de
Sfocles e a Efebia", supra,pp' 132-
285