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Os partos distcicos em Amato Lusitano e em Rodrigo de Castro:
fontes, doutrinas eterapias greco-romanas
Autor(es): Pinheiro, Cristina Santos
Publicado por: UA Editora - Universidade de Aveiro; Imprensa da
Universidade deCoimbra; Annablume
URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/35700
DOI: DOI:http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-0941-6_14
Accessed : 17-Jan-2018 09:19:48
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Humanismo e CinCia
Aveiro CoimbrA So PAulo
2015
Antiguidade e Renascimento
Antnio mAnuel loPeS AnDrADeCArloS De miGuel morAJoo mAnuel nuneS
torro (CooRds.)
UA EDITORA UnIvERsIDADE DE AvEIRO
IMpREnsA DA UnIvERsIDADE DE cOIMbRA
AnnAblUME
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Humanismo e CinCia: Antiguidade e Renascimento
EdIo
UA EDITORA UnIvERsIDADE DE AvEIRO
IMpREnsA DA UnIvERsIDADE DE cOIMbRA
AnnAblUME
ORgAnIzAO E cOORDEnAO EDITORIAl
AnTnIO MAnUEl lOpEs AnDRADE
cARlOs DE MIgUEl MORA
JOO MAnUEl nUnEs TORRO
DEsIgn DA cApA MEIOKIlO DEsIgn sTUDIO
DEsIgn cARlOs cOsTA
IMpREssO E AcAbAMEnTO
sERsIlITO MAIA
Isbn
UA 978-972-789-434-5
IUc 978-989-26-0940-9
Isbn DIgITAl
UA 978-972-789-435-2
IUc 978-989-26-0941-6
doI
http://dx.doi.org/10.14195/ 978-989-26-0941-6
DEpsITO lEgAl 368241/13
TIRAgEm 500 Exemplares
2015
UA EDITORA UnIvERsIDADE DE AvEIRO
IMpREnsA DA UnIvERsIDADE DE cOIMbRA
AnnAblUME
cOMIssO cIEnTfIcA
Antnio Manuel lopes Andrade
Carlos de miguel mora
Delfim ferreira leo
Henrique leito
Joo Manuel nunes Torro
Maria de ftima Reis
Maria do cu zambujo fialho
Miguel ngel gonzlez Manjarrs
TExTos
Adelino Cardoso
Ana leonor pereira
Ana Margarida borges
Antnio guimares pinto
Antnio maria martins melo
bernardo Mota
Carlos A. martins de Jesus
Carlos de miguel mora
Cristina santos Pinheiro
Donald beecher
Emlia oliveira
Isabel Malaquias
James W. nelson novoa
Joana mestre Costa
Joo Manuel nunes Torro
Joo Rui pita
Jorge Paiva
Jos slvio Moreira fernandes
Maria de ftima silva
Miguel ngel gonzlez Manjarrs
Rui Manuel loureiro
Telmo corujo dos Reis
Teresa nobre de carvalho
vinicije b. lupis
virgnia soares pereira
Este volume financiado por fundos fEDER atravs do programa
Operacional factores de competitividade cOMpETE e por fundos
nacionais atravs da fcT fundao para a cincia e a Tecnologia no
mbito do projecto de I&D com a referncia
fcOMp-01-0124-fEDER-009102.
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Humanismo e CinCia
Aveiro CoimbrA So PAulo
2015
Antiguidade e Renascimento
Antnio mAnuel loPeS AnDrADeCArloS De miGuel morAJoo mAnuel nuneS
torro (CooRds.)
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IMpREnsA DA UnIvERsIDADE DE cOIMbRA
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obrA PubliCADA
Com A CoorDenAo
CientFiCA De:
cEnTRO DE lngUAs,
lITERATURAs E cUlTURAs DA
univerSiDADe De Aveiro
cEnTRO DE EsTUDOs
clssIcOs E HUMAnsTIcOs DA
univerSiDADe De CoimbrA
cTEDRA DE EsTUDOs sEfARDITAs
AlbERTO bEnvEnIsTE
DA fAcUlDADE DE lETRAs DA
univerSiDADe De liSboA
-
5
sumRIo
PreFCio
.............................................................................................................................................................7
1) Humanismo e CinCia
.....................................................................................................................
11
1.1 Teofrasto, Tratado das plantas. no alvor de uma nova cincia
.................................................... 13
Maria de Ftima Silva
1.2 francisco de Melo e os fragmentos de teoria ptica de pierre
brissot .................................... 21
Bernardo Mota
1.3 Algumas reflexes sobre as pedras preciosas nos Colquios
dos simples de garcia de Orta
...............................................................................................................
37
Rui Manuel Loureiro
1.4 Estratgias, patronos e favores em Colquios dos Simples de
garcia de Orta ........................ 63
Teresa Nobre de Carvalho
1.5 As plantas na obra potica de cames (pica e lrica)
..................................................................
95
Jorge Paiva
1.6 nicols Monardes, John frampton and the Medical Wonders of
the new World ................141
Donald Beecher
1.7 literatura e Medicina: alguns textos de Justo lpsio e de
dois doutores lus nunes .........161
Antnio Guimares Pinto
1.8 Ontologias e idiossincrasias dos Amantes, luz da
Archipathologia de filipe Montalto ......211
Joana Mestre Costa & Adelino Cardoso
1.9 gabriel da fonseca. A new christian doctor in berninis Rome
................................................227
James W. Nelson Novoa
-
2) DioSCriDeS e o HumAniSmo PortuGuS: os Comentrios De AmAto
luSitAno
............................................................................249
2.1 lxico cientfico portugus nos Comentrios de Amato:
antecedentes e receo..............251
Ana Margarida Borges
2.2 Usos medicinais das plantas, em Amato lusitano: o blsamo
..................................................275
Antnio Maria Martins Melo
2.3 Amato lusitano e a importncia da ilustrao botnica no sculo
xvi.
Em torno das edies lionesas das Enarrationes (1558)
..............................................................303
Carlos A. Martins de Jesus
2.4 sobre la identificacin entre bano y guayaco en una
entrada
del Index Dioscoridis de Amato lusitano
..........................................................................................317
Carlos de Miguel Mora
2.5 Os partos distcicos em Amato lusitano e em Rodrigo de
castro:
fontes, doutrinas e terapias greco-romanas
...................................................................................353
Cristina Santos Pinheiro
2.6 Do carvalho ao castanheiro: usos e propriedades
medicinais
de fagceas nas Enarrationes de Amato lusitano
..........................................................................373
Emlia Oliveira
2.7 O mundo mineral nos Comentrios a Dioscrides de Amato
lusitano ....................................387
Isabel Malaquias & Virgnia Soares Pereira
2.8 Alguns comentrios de Amato: entre a estranheza e a realidade
............................................413
Joo Manuel Nunes Torro
2.9 caracterizao e usos teraputicos de produtos de origem
marinha
nos Comentrios de Amato lusitano a Dioscrides
......................................................................425
Jos Slvio Moreira Fernandes
2.10 la mandrgora de Amato lusitano: edicin, traduccin y
anotacin ...................................449
Miguel ngel Gonzlez Manjarrs
2.11 o vinho e os vinhos usos e virtudes de um dom dos
deuses
nas Enarrationes de Amato lusitano
.................................................................................................467
Telmo Corujo dos Reis
2.12 Amatus lusitanus e Didaco pirro: due ebrei portoghesi
e cerchia umanistica di Dubrovnik
....................................................................................................481
Vinicije B. Lupis
2.13 Estudos contemporneos sobre Amato lusitano
.......................................................................513
Joo Rui Pita & Ana Leonor Pereira
-
2.5 Os partos distcicos em Amato Lusitano e em Rodrigo de
Castro: fontes, doutrinas e terapias greco-romanas
353
os partos distcicos em Amato lusitano e em rodrigo de Castro:
fontes, doutrinas e terapias greco-romanas
cRIsTInA sAnTOs pInHEIRO1
Resumo:
configurando-se tradicionalmente o parto como um acontecimento
conduzido por parteiras, em que s excepcionalmente e perante
dificuldades extremas se apelava a um mdico, nos casos em que ambos
estavam presentes manifestava-se uma distino fundamental entre as
prticas m-dicas utilizadas por uns e outros. Tendo esta divergncia
em mente, analisamos nas Curationum medicinalium centuriae de Amato
lusitano e no De universa mulierum medicina de Rodrigo de castro
lusitano, as fontes gregas e romanas que os autores referem ao
descreverem os partos distcicos em especial, os tratados
hipocrticos De mulierum affectibus e De superfetatione e os
Gynaikeia de sorano e como o discurso de ambos refora a importncia
do saber mdico no contexto das dificuldades que foroso enfrentar
nestas circunstncias.
PAlAvrAS-CHAve:
Histria da Medicina; textos de ginecologia; medicina
renascentista; obstetrcia; ginecologia.
AbStrACt:
by tradition, childbirth was an event conducted by midwives,
when only exceptionally and in face of extreme difficulties a
doctor was called for. When the midwife and the doctor attended, a
fundamental distinction emerged between the medical practices used
by one and by the other. Having this difference in mind, we analyze
in Amatus lusitanus Curationum medicinalium centuriae and in
Rodericus a castro lusitanus De universa mulierum medicina the
greek and Roman sources that the authors use to treat dystocia in
particular, the Hippocratic treatises De mulierum affectibus and De
superfetatione, as well as soranos Gynaikeia and how the discourse
of these authors reinforces the importance of medical knowledge in
the context of the difficulties they must face under these
circumstances.
KeyworDS:
history of medicine; gynaecological texts; Early Modern
medicine; obstetrics; gynaecology.
1 Universidade da Madeira; Centro de Estudos Clssicos da
Universidade de Lisboa: [email protected].
http://dx.doi.org/10.14195/ 978-989-26-0941-6_14
-
Cristina Santos Pinheiro354
As dificuldades que podiam surgir no decorrer do nascimento de
uma criana so tema de exposies detalhadas nos textos gregos e
romanos sobre medicina. J no Corpo Hipocrtico2, as referncias a
fetos mortos ou em posio anormal in utero e a substncias e tcnicas
que aceleram o parto () ou que provocam a expulso da criana so
frequentes3. Se tiver-mos igualmente em considerao o pormenor com
que se descrevem intervenes cirrgicas como a que tinha como
finalidade desmembrar e extrair do ventre materno, parte por parte,
um feto morto ou invivel, podemos com alguma legitimidade concluir
que se tratava de uma situao frequente, que permitiu o
desenvolvimento de um conjunto mais ou menos consistente de tcnicas
e saberes. Nestas ocasies, em que, por alguma razo, o parto no se
desenrolava / secundum naturam, alm da parteira e das mulheres da
famlia que normalmente prestavam assistncia, apelava-se ao
mdico.
Nancy Demand considera que no sculo V a. C. os autores dos
tratados hipocrticos de ginecologia retiraram do domnio exclusivo
das mulheres as questes mdicas relacionadas com a gravidez e o
parto: () childbirth was medicalized, and male doctors came to
exercise a degree of control over female reproductivity as they
created a Hippocratic gynecology.4. Afirmaes semelhantes a esta so
frequentes para explicar o incremento notvel na publicao de obras
sobre ginecologia a que se assistiu na Europa entre as ltimas
dcadas do sculo xvi e o sculo xvii5. Este interesse masculino numa
rea tradicionalmente associada s mulheres tem sido entendido como
consequncia da divulgao dos tratados hipocrticos sobre estas
2 O Corpo Hipocrtico constitudo por cerca de seis dezenas de
tratados atribudos a Hipcrates, mas de autores incertos e com
temticas diversas. No representa, portanto, uma colectnea uniforme
ou um qualquer sistema de teorizao mdica coerente. Sobre doenas das
mulheres, o Corpo Hipo-crtico inclui De mulierum affectibus 1 e 2
(Mul.); De sterilibus (Ster.); De natura muliebri (Nat. Mul.); De
uirginum morbis (Virg.). Tm interesse tambm nesta matria os
tratados: De semine (Genit.), De natura pueri (Nat. Puer.) , De
septimestri partu (Septim.), De octimestri partu (Oct.), De foetus
exsectione (Foet. Exsect.) e o De superfetatione (Superf.).
3 Vejam-se, a ttulo de exemplo, alguns excertos que, no livro 1
do De mulierum affectibus, descrevem as propriedades de algumas
substncias: , (Mul. 1.78.35) Remdio para purificar o tero, se,
morto o feto, o sangue tiver ficado retido; (1.78.100) expulsa um
feto malformado; , (1.78.140) Outro pessrio expulsivo, se o feto
estiver morto; (Mul. 1.78.175) Para matar e expulsar um feto que no
tem movimento; , (Mul. 1.91) Expulsivo, no caso de o feto estar
morto. Todas as tradues dos textos gregos e latinos, quando no
identificadas, so da nossa autoria.
4 Nancy Demand, Monuments, midwives and gynaecology, in Ph. J.
van der Eijk, H. F. Horstmanshoff, & P. H. Schrijvers (eds.),
Ancient medicine in its sociocultural context . Amsterdam, Rodopi,
1992, pp. 285-287.
5 Michael Stolberg, A woman down to her bones: the anatomy of
sexual difference in the sixteenth and early seventeenth centuries,
Isis 94 (2003), p. 288; Helen King, Midwifery, obstetrics and the
rise of gynaecology: the uses of a sixteenthcentury compendium.
Aldershot, Hants & Burlington, Ashgate Publishing, 2007, p.
29.
-
2.5 Os partos distcicos em Amato Lusitano e em Rodrigo de
Castro: fontes, doutrinas e terapias greco-romanas
355
matrias, especialmente porque Galeno, excepo de alguns tratados
breves como o De uteri dissectione, no compusera um texto
especificamente a elas dedicado6.
Assim, se, por um lado, se apresenta nestes textos um nvel de
conhecimento de ndole popular, fundamentado principalmente na
transmisso de receitas e associado ao desempenho das mulheres
parteiras e no s , por outro lado, parece-nos evidente, na
exuberncia dos pormenores e numa certa tendncia para mostrar
capacidades tcnicas alheias ao domnio feminino, a demons-trao da
proeminncia do saber do mdico que, especialmente numa situao
desesperada como um parto difcil, se apresenta como superior e
imprescindvel. Recordemos que a presena do mdico s se tornaria
necessria precisamente quando o parto se desenrolava de forma
anormal.
Os partos distcicos so tema recorrente nos tratados mdicos da
antiguidade relacionados com as doenas femininas e, na nossa
opinio, parecem ter-se configurado como um tpico de cariz mais ou
menos estvel, que se repete quase sempre com as mesmas classificaes
e caractersticas, mas que denota um interesse e uma sofisticao
crescentes7. Nos tratados de ginecologia do sculo xvi, ttulos de
captulos como Difficultas partus (Nicholas de la Roche, De morbis
mulierum curandis liber, 1542), De praeceptis et medicaminibus
partus moram et difficultatem allevantibus (Jakob Ruff, De conceptu
et generatione hominis, 1554) ou Quibus praesidiis partum
acceleremus et foetum mortuum pellamus (Luigi Bonacciuoli,
Muliebrium liber, 1505) so indcio seguro de que se mantinha o
entendimento dos partos distcicos como uma rea fundamental na
medicina dedicada s doenas femininas.
objectivo desta pesquisa a procura de traos comuns aos tratados
mdicos antigos e a duas obras de autores portugueses as Curationum
medicinalium centuriae de Amato Lusitano e o De universa mulierum
medicina de Rodrigo de Castro Lusitano no que concerne definio e ao
tratamento dos partos difceis. No se trata de uma pesquisa
exaustiva nem diacrnica, mas apenas de uma identificao preliminar
de tpicos comuns. Tomamos, assim, como ponto de partida para este
estudo um corpus constitudo por textos gregos e romanos que se
debruam sobre partos dis-tcicos, em especial os tratados
hipocrticos De mulierum affectibus e De superfetatione8 e o tratado
de ginecologia de Sorano de feso, os Gynaikeia. Este autor de
origem grega ter exercido medicina em Roma nos principados de
Trajano e Adriano e teve uma importncia notvel, ainda que
indi-recta, na literatura acerca das doenas e condies femininas,
uma vez que o seu tratado foi cedo
6 Tambm por esta razo omitimos nesta pesquisa a obra galnica. O
facto de circular sob o nome de Hipcrates um conjunto de tratados
sobre condies femininas parece ter concedido uma certa auto-ridade
aos autores que, especialmente por influncia da traduo latina de
Calvi, publicada em 1525, invocavam o pai da medicina para
legitimar as suas obras. Veja-se, a este respeito, Helen King,
Hippocrates woman: reading the female body in ancient Greece.
London & New York, Routledge, 1998, p. 13.
7 Veja-se, por exemplo, Ann E. Hanson, A division of labor:
roles for men in Greek and Roman births, Thamyris 1.2 (1994), pp.
157-202.
8 Os partos difceis so tambm referidos em tratados mdicos de
carcter mais geral, como as Epidemias.
-
Cristina Santos Pinheiro356
abreviado e traduzido em lngua latina9. Estas verses
simplificadas, em especial a Genecia, de um autor desconhecido,
identificado nos manuscritos como Muscio ou Mustio (? c. 500),
foram muito divulgadas na Europa. Apesar da problemtica tradio
manuscrita da obra de Sorano chegou at ns um nico manuscrito, e
incompleto, dos Gynaikeia, encontrado j em pleno sculo xix10 , o
livro IV dos seus Gynaikeia, dedicado s patologias ginecolgicas a
serem tratadas pelo recurso a substncias medicinais ou a intervenes
cirrgicas, constitui uma fonte importante acerca da tradio mdica
dedicada aos partos distcicos. Autores de enciclopdias mdicas como
Acio de Amida (sc. V-VI), ou Paulo de Egina (sc. VII), retomando a
tradio, incluem tambm nas suas obras consideraes consistentes
acerca deste assunto e por este motivo os inclumos tambm aqui.
Constituem uma segunda componente do corpus em anlise as j
referidas obras de Amato Lusitano e de Rodrigo de Castro Lusitano,
ambas fundamentais na histria da medicina em Portugal: as
Curationum medicinalium centuriae, publicadas em 1556, e o De
universa mulierum medicina de Rodrigo de Castro. No contexto do
presente volume, Amato dispensa apresentaes. Dele analisamos um
conjunto de casos reais em que o autor descreve a terapia a que
recorreu quando chamado a ajudar mulheres em sofrimento devido ao
que ele designa de partus diffi-ciles. O De universa mulierum
medicina um tratado de ginecologia, publicado pela primeira vez em
1603 e em 1604, em dois tomos, em Hamburgo, onde o seu autor se
instalara para fugir da Inquisio, e que foi reeditado durante
dcadas. Os dois volumes um, De natura mulierum, especialmente
terico; o segundo, De morbis mulierum, de natureza prtica com
quatro livros cada, tratam, de forma abrangente e documentada,
condies femininas como a concepo, a menstruao, a gravidez, o parto,
o aborto, a infertilidade, etc., e constituem um reportrio
monumental acerca do estado da cincia do seu tempo, especialmente
no dilogo que estabelece entre tradies dspares, como a clssica e a
escolstica, mas tambm e no menos importante, pela proeminncia das
novas ideias que por ento enformam a medicina.
Abordamos hoje os elementos que nestas duas obras entroncam na
tradio grega e romana acerca dos partos distcicos e como a
reelaborao destes elementos no contexto da medicina dos sculos xvi
e xvii permite distinguir e fundamentar o saber mdico numa rea
maiorita-riamente reservada s mulheres.
A definio de parto distcico que hoje em dia comummente aceite
(parto difcil, causado por anomalias no feto ou na me11) no anda
muito longe das definies antigas, que associam
9 Sobre a pervivncia da obra de Sorano na medicina ocidental,
cf. Ann E. Hanson & Monica H. Green, Soranus of Ephesus:
Methodicorum princeps, ANRW II.37.2 (1994), pp. 968-1075, maxime
pp. 1042 ss., e Yves Malinas, Modernit de Soranos, in P. Burguire,
D. Gourevitch & Y. Malinas, Soranos dphse. Maladies des femmes
I. Paris, Les Belles Lettres, 20032, pp. LXVII-LXXIV.
10 Sobre a descoberta do Parisinus Graecus 2153 por Friedrich
Dietz, cf. P. Burguire, Histoire du Texte, in P. Burguire, D.
Gourevitch & Y. Malinas, Soranos dphse, op. cit., 20032, pp.
XLVII-LXV.
11 Veja-se, a ttulo de exemplo: Dystocia difficult birth, caused
by abnormalities in the fetus or the mother (). Dystocia may arise
due to uterine inertia, which is more common in a first labour;
abnor-
-
2.5 Os partos distcicos em Amato Lusitano e em Rodrigo de
Castro: fontes, doutrinas e terapias greco-romanas
357
a difficultas pariendi a trs, por vezes a quatro causas. Nos
tratados hipocrticos, de preferncia com as formas do verbo que se
designa um parto anormal12. Sorano, tomando a defi-nio de Demtrio
de Apameia, como o prprio Sorano seguidor de Herfilo de Alexandria
e da escola metdica13, define distocia como um parto penoso () ou
difcil ( ):
. (4.1)
Os seguidores de Herfilo e especialmente Demtrio dizem que parto
distcico um
parto penoso; para alguns, parto distcico dar luz entre
dificuldades.
E prossegue com uma longa recenso das causas propostas para os
partos distcicos por autores que o precederam (Docles de Caristo,
Cleofanto, Herfilo, Demtrio), que vai citando e comentando. Na
Genecia, Mscio reduz todas as consideraes de Sorano acerca das
causas propostas pelos seus antecessores, abreviando-as e
organizando-as de forma mais simplificada e acessvel:
Quot sunt enim causae quibus laboriosus vel difficilis partus
efficitur?
Plurimi duas causas esse dixerunt, unam apud eam quae parit,
alteram apud ipsum
infantem qui nasci habet. Alii vero iam tertiam causam addunt
quae extrinsecus venire
consuevit. Apud alios etiam quarta causa emergit, quae ex
omnibus praedictis causis
miscetur. (2.17.1)
Quantas so as causas de um parto penoso ou difcil?
A maioria dos autores disse que existem duas causas, uma
relacionada com a parturiente,
outra com a prpria criana que nasce. Outros, porm, acrescentam
uma terceira causa
mal fetal lie or presentation; absolute or relative
cephalo-pelvic disproportion; (), Oxford Concise Medical
Dictionary. Oxford University Press, 20108, s. v. Dystocia.
12 Cf., por exemplo: , , , . (Superf. 2.4) A mulher a quem a
criana saiu da placenta dentro do tero antes de comear a sair, tem
um parto extremamente difcil e perigoso, se a cabea no sair
frente.. Outra forma de identificar um parto difcil: , , . (Mul.
1.77) Se uma mulher grvida depois de muito tempo no capaz de dar
luz, mas tem dores durante muitos dias, jovem e forte e tem muito
sangue ().
13 Sobre a obra de Demtrio de Apameia, cf. H. von Staden,
Herophilus: the art of medicine in early Alexandria. Cambridge-New
York, Cambridge University Press, 1989, pp. 506 ss.
-
Cristina Santos Pinheiro358
que costuma vir do exterior. Na obra de outros surge ainda uma
quarta causa, que
composta por todas as causas referidas antes.
Acio de Amida (Iatricorum liber 16.22) divide em trs tipos os
factores que podem difi-cultar o parto: os que se relacionam com a
sade fsica ou psicolgica da me ( () ou por a me ter fraqueza no
corpo ou na alma ou em ambos); os que tm origem no feto ( ; um
parto difcil acontece tambm devido ao que gerado ) e os factores de
ordem externa ( ; um parto difcil acontece devido ao exterior).
Paulo de Egina (Epitomae Medicae 3.76) apresenta quatro causas:
Um parto distcico acontece ou devido parturiente, ou devido ao
feto, ou devido placenta, ou devido a causas externas.14
Nos textos em anlise, distinguem-se efectivamente e de um modo
geral as causas relacio-nadas com a sade materna, as que so
causadas pelo estado do feto e as condies externas que podem
condicionar o decorrer normal do parto, como condies climatricas
adversas ou mesmo a inexperincia da parteira ou do mdico que
orienta o parto.
Amato recorre principalmente ao vocabulrio associado difficultas
ou ao labor para designar um parto demasiado longo e penoso15.
Rodrigo de Castro, pelo contrrio, tem uma abordagem sistemtica e
fundamentada na distino entre um parto natural, assunto que explora
no primeiro captulo desta seco, e os seus opostos, que trata nos
captulos subsequentes. Esta oposio apresentada logo no incio quando
justifica a incluso de um captulo sobre partos normais no volume da
obra que dedica s condies patolgicas. Para que um parto seja
designado como um parto normal deve obedecer, segundo Castro, a
cinco condies:
14 Nas Definitiones Medicae 19.456, uma obra atribuda a Galeno,
mas de autoria duvidosa, afirma-se algo semelhante: , , , . Os
partos distcicos acontecem de trs maneiras: devido grvida, devido
ao feto, devido a causas externas..
15 Apenas alguns exemplos: () difficulter pariebat (Cent. VI,
curas 51 e 86) refere-se em ambos os casos ao parto de fetos
mortos; ut plerunque partum difficilem habentibus evenit (Cent. I,
cura 93) cum per triduum in emittendo foetu, graviter laboraret
(Cent. V, cura 34) designam o parto de gmeos.
-
2.5 Os partos distcicos em Amato Lusitano e em Rodrigo de
Castro: fontes, doutrinas e terapias greco-romanas
359
() ad naturalem partum quinque requiri conditiones. Prima est,
ut fiat profecto iam
foetu; Secunda ut debito tempore; Tertia ut debita figura;
Quarta ut levibus symptoma-
tibus; Quinta ut evacuationibus debitis. (2.4. cap. 1, pp.
445-446)
() para um parto natural so necessrias cinco condies: a
primeira, que acontea quando
o feto est formado; a segunda, que acontea no tempo oportuno; a
terceira na posio
conveniente, a quarta com sintomas tolerveis; a quinta com
evacuaes convenientes.
Qualquer parto em que no se verifique uma destas situaes um
parto que no natural: o nascimento de um feto morto ou um aborto
(no se cumprem a primeira e a segunda), o parto de um feto em posio
anormal (no se cumpre a terceira), um parto difcil e penoso (no se
cumpre a quarta), e, por fim, um parto seguido de reteno da
placenta (no se cumpre a quin-ta). Uma distino fundamental no De
universa mulierum medicina, que no est presente em nenhuma das
obras em anlise, a que o autor estabelece entre partus vitiosus e
partus difficilis et laboriosus: o primeiro o nascimento de um feto
em posio anormal, o segundo um parto com sofrimento prolongado e
que representa um risco para a me:
Dicitur autem difficilis partus ille, qui cum foetus vel matris
periculo accidit, vel quia cum
gravissimis fit symptomatibus, vel quia tardius procedit, ita ut
longo tempore prematur
mulier. (2.4. cap. 6, p. 478)
Diz-se um parto difcil aquele que acontece envolvendo perigo
para o feto ou para a me,
quer porque se desenrola com sintomas muito graves, quer porque
avana de forma muito
lenta, de modo a que a mulher seja atormentada por muito
tempo.
Entre as causas relacionadas com a sade materna, os autores so
mais ou menos un-nimes ao referir que no s a condio fsica da
parturiente, mas tambm o seu estado psicolgico podem originar
dificuldades no parto. Sorano, reproduzindo o pensamento do j
citado Demtrio, reala efectivamente a importncia do equilbrio
mental e emocional da paciente:
, , , , , ,
( )
(4.2)
O parto difcil deve-se tambm fora psquica quando acontece a dor,
a alegria, o medo,
a timidez, a fraqueza, a ira, ou uma vida de luxo exagerado
(pois algumas mulheres so
-
Cristina Santos Pinheiro360
indulgentes e no fazem esforos). Acontece tambm por falta de
experincia em dar
luz: [a parturiente] no colabora no trabalho de parto.
O bem-estar psicolgico da me factor essencial no momento em que
se prepara o parto16, mas absolutamente determinante se este se
complicar. Entre as causas de distocia relacionadas com a
parturiente, Sorano adverte a parteira para que tenha sempre
cuidado de modo a que os seus gestos, o seu olhar, as suas palavras
no assustem a parturiente, com frequncia demasiado jovem para
entender o que se passa sua volta. Esta falta de experincia , alis,
enumerada entre os factores que podem condicionar o desenrolar do
parto, por poder originar a retraco do corpo da me, que deixa de
colaborar com a parteira. A primpara , normalmente, uma pa-ciente a
ter sob vigilncia17. Veja-se, por exemplo a afirmao do tratado De
mulierum affectibus:
() .
() Sofrem mais as primparas do que as que tm experincia no
parto. (Mul. 1.72)
Sorano refere tambm a falta de experincia das primparas como um
obstculo a um parto fcil ( . (4.2) outras, por darem luz pela
primeira vez, por terem medo e por falta de ex-perincia em colocar
o corpo na posio certa), mas assinala igualmente as jovens que
casam demasiado cedo, cujo corpo no est ainda preparado para o
parto:
. (4.2).
Pois, casadas antes do tempo adequado, engravidam e do luz
quando o tero ainda
no atingiu o seu crescimento mximo nem o fundo da matriz se
abriu.
Entre os factores de ordem fsica, assumem relevo, alm das
patologias do tero ou do colo do tero, que dificultam ou
impossibilitam a passagem do feto, a extrema magreza ou, em
16 Rodrigo de Castro, por exemplo, aconselha as parteiras que
dem nimo parturiente consolando-a com a esperana de um parto de um
rapaz: Parientem obstetrix () etiam verbis consoletur cum bona spe
felicis ac masculi partus, eo enim mulieres sese gaudent (). Que a
parteira () anime a parturiente com a esperana de um parto fecundo
e de um rapaz, porque as mulheres alegram-se com isso. (II. 4. cap.
1, p. 448).
17 Cf. tambm a observao de Rodrigo de Castro: parturiens puella
() ob imperitiam corpus apte praeparare ignorat. A jovem
parturiente () por falta de experincia no sabe como preparar
convenientemente o corpo. (II. 4. cap. 6, p. 472).
-
2.5 Os partos distcicos em Amato Lusitano e em Rodrigo de
Castro: fontes, doutrinas e terapias greco-romanas
361
oposio, a obesidade da me. Os problemas relacionados com o peso
so alis frequentemente assinalados como obstculo a todo o ciclo de
procriao, j que tanto as mulheres obesas como as magras em demasia
tm, de acordo com os tratados mdicos antigos, dificuldade em
engra-vidar, ou, se engravidam, so incapazes de levar a gravidez a
termo18. Sorano refere igualmente a obesidade da me entre as causas
relacionadas com a condio fsica da parturiente19.
tambm notado por estes autores que o facto de a mulher grvida
ter uma vida sedentria e inactiva dificulta o parto, enquanto o
exerccio benfico, no apenas porque favorece um parto normal, mas
tambm porque contribui para a sade da criana.
Entre as causas relacionadas com o feto, todos os autores
referem o seu tamanho, na totali-dade ou numa parte do corpo, um
feto morto, o nascimento de gmeos ou a posio anormal no tero
materno. Veja-se o que diz Sorano:
, | ,
, ()
(
),
,
. (4.2)
Causas relacionadas com o feto: quando demasiado grande quer no
corpo inteiro quer numa das partes, como quando tem a cabea ou o
trax grandes ou o ventre inchado, como acontece nos hidrocfalos. ()
Ocorre tambm um parto distcico devido ao nmero (quando so dois e
ambos se aproximam em conjunto do colo do tero causando uma
obstruo), ou por o feto estar morto e no colaborar no parto ou por,
visto estar morto, estar intumescido, ou por se apresentar numa
posio anormal.20
18 Cf., sobre mulheres magras, Hipp. Aph.5.44: , , . As mulheres
grvidas que so anormalmente magras abortam enquanto no ficarem mais
fortes.. Ideias semelhantes em Hipp. Ster. 237 e Nat. Mul. 19.
Sobre mulheres obesas, cf. Aph. 5.46: , , , , . As mulheres que so
anormalmente gordas no concebem no seu ventre, pois a estas a
gordura pressiona-lhes a entrada do tero e, enquanto no
emagrecerem, no engravidam.. Em Hipp. Ster. 229 e Nat. Mul. 20
fazem-se afirmaes idnticas.
19 . (4.2) H ainda causas fsicas, internas ou externas, como a
parturiente ser extremamente corpulenta e gorda.. Esta ideia
repetida verbatim por Acio de Amida (Iat. 16.22).
20 As causas relacionadas com o feto no so muito diferentes nos
outros autores: , , , , . () , , , .
-
Cristina Santos Pinheiro362
Rodrigo de Castro, repetindo uma ideia que remonta aos tratados
hipocrticos, afirma que dificulta o parto um feto maior do que o
normal ou, pelo contrrio, demasiado pequeno, porque este no
consegue romper as membranas e quele o tero no consegue adaptar-se.
A criana deste modo vista como incapaz de desencadear o parto e de
fazer o seu prprio caminho em direco vida:
Ex parte foetus causae sunt, si inusitatae magnitudinis existat,
aut exiguus nimis, qui nec
vincula disrumpere queat: nec uterus ei adaequetur. Aut si magni
capitis, vel admodum
exigui, hic enim non aperit vias, nec ab obstetrice apprehendi
potest; ille difficulter egres-
sum invenit. Similiter si parvi ponderis aut debilis sit, quia
tunc seipsum adminiculantem
non praestat. (2.4. cap. 6, p. 472)
Da parte do feto as causas so: se tem um tamanho grande
inusitado ou demasiado
pequeno que nem consegue romper os vnculos nem o tero a ele se
adequa. Ou se tem
a cabea grande ou muito pequena, pois este no abre o caminho nem
pode ser puxado
pela parteira; aquele dificilmente encontra a sada. Do mesmo
modo, se tiver pouco peso
ou se for dbil, porque no capaz de se auxiliar a si prprio.
, . (Hipp., Mul. 1.33) Se a uma mulher que est gr-vida passou j
o momento do parto e sente dor, e depois de ter passado muito tempo
a mulher no foi capaz de expulsar a criana, em geral est em posio
lateral ou podlica, sendo necessrio que saia de cabea. () tambm
causa de dificuldades se sair de ps, e muitas vezes morrem as mes
ou as crianas ou ambos. Existe outra razo importante que o impede
de sair facilmente: quando est morto, ou afectado por paralisia ou
se so dois.; , (). (Mul. 1.68) No caso de, tendo ocorrido um
aborto, no se poder expulsar o feto por ser demasiado grande no
todo ou num dos membros, ou por ser pequeno, estar de lado e fraco
(); Quomodo dicunt per infantem qui nasci habet difficilimum partum
dari? Scilicet qui naturaliter grande caput habeat vel omne corpus,
vel tres manus, aut certe hydropicus sit vel gibberosus vel
languidus aut inflatus vel mortuus aut positione contra naturam.
(Mscio, Genecia 17.3) Como dizem que o parto se torna muito difcil
devido criana que vai nascer? Seguramente aquele que tem por
natureza a cabea grande ou todo o corpo, ou trs mos, ou se
hidrpico, corcovado, fraco, ou se estiver intumescido ou morto ou
em posio anormal.; , , , . (Acio, Iatr. 16.22.25) Um parto distcico
acontece tambm devido ao que gerado: ou por o feto ser todo ele
grande, ou por ter alguma parte de tamanho considervel, como a
cabea, o trax ou o ventre.; , , , , ( ) (Paulo de Egina, 3.76.1) As
causas relacionadas com o feto incluem ser demasiado grande ou
pequeno e leve, hidrocfalo ou monstruoso, como ter duas cabeas, ou
estar morto ou ter ainda vida mas ser fraco e incapaz de avanar
para o exterior, ou acontecer serem muitos fetos (Herfilo registou
cinco) ou estar uma posio anormal..
-
2.5 Os partos distcicos em Amato Lusitano e em Rodrigo de
Castro: fontes, doutrinas e terapias greco-romanas
363
A gestao de um feto monstruoso igualmente uma das causas
apontadas para um parto difcil21. Diga-se que este tema gerar
grande interesse na literatura do perodo renascentista, com a
publicao de vrios tratados, alguns com representaes de seres
deformados e entendidos como nascimentos prodigiosos ou como uma
punio divina22. Amato, por exemplo, descreve um monstro nascido no
terceiro ou quarto ms de gestao de uma me habitante de Ancona. No
certo se ele prprio o ter visto, mas descreve-o com pormenor:
Mulier Anconitana monstrum quoddam peperit: nam tertio vel
quarto mense impreg-
nationis informe quoddam carneum corpusculum emisit, quod omnino
hirsutum erat
et pilosum, quatuor habens culos, duas nares, quatuor aures,
labra vero deformia,
ut omnibus esse admirationi. (Cent. III, cura 57)
Uma mulher anconitana deu luz um monstro. No terceiro ou quarto
ms da gravidao deitou fora um corpsculo carnoso, informe,
totalmente hirsuto e cabeludo, com quatro olhos, dois narizes,
quatro orelhas e lbios disformes. A todos causava espanto.23
Diz ainda que enquanto escreve (cum haec scribo), chegou a
Ancona um rapaz da Ilria, com seis anos, aparentemente normal, mas
trazendo consigo (ou em si?) um monstro que lhe ocupava o espao
entre o umbigo e o trax e tinha a forma de outro corpo de criana,
sem cabea, mas com braos e pernas, ainda que imveis24.
A morte do feto in utero deve ter sido muito frequente.
Expresses com o significado de para expulsar um feto morto so
repetidas exausto para introduzir uma panplia de receitas e
te-raputicas que aparecem desde os textos hipocrticos a
Plnio-o-Velho25 e se mantm na tradio. Nas curas 51 e 86 da Centria
VI, Amato descreve precisamente dois casos em que fetos mortos no
ventre materno originaram partos prolongados e dolorosos.
Recordemos apenas a situao
21 Veja-se, a ttulo de exemplo: . Ocorre um parto difcil tambm
devido concepo de um monstro (Sorano 4.2); Paulo Egineta utiliza o
adjectivo , que significa monstruoso ou prodigioso. Rodrigo de
Castro refere-se a um foetus monstruosus como causa de dificuldades
no parto.
22 Veja-se Lorraine Daston & Katherine Park , Wonders and
the order of nature, 1150-1750. New York, Cambridge, Mass., Zone
Books, 1998.
23 Amato Lusitano, Centrias de curas medicinais, vol. II (trad.
Firmino Crespo). Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, s. d., p.
267.
24 Amato Lusitano, Centrias, op. cit., p. 268. Para dar
veracidade ao seu relato Amato termina o texto com a data: Fuit
autem hoc monstrum Anconae, anno 1552. Este monstro esteve em
Ancona no ano de 1552..
25 Cf. supra nota 2. De Plnio, vejam-se, por exemplo, Nat.
23.62; 24.22; 24.102; 26.152; 26.153; 26.154; 26.157; 26.158;
26.161; 27.30; 28.252.
-
Cristina Santos Pinheiro364
desesperada de Alosia, a quem s depois de trs dias de
sofrimentos atrozes e quando j todos a davam como morta,
conseguiram extrair, em pedaos, o filho sem vida. Rodrigo de
Castro, repetindo o que se escreve no De superfetatione, diz que um
feto morto se identifica se a me se deitar de lado. Se o feto j no
tiver vida, mover-se- como uma pedra26. A este assunto dedica todo
um captulo nesta seco da sua obra, que faz seguir por outro acerca
da prtica da cesa-riana, uma novidade do seu tempo, divulgada por
Franois Rousset, na sua obra Trait nouveau de l hysterotomotokie ou
enfantement Caesarien, publicada em Paris em 1581 e posteriormente
traduzida para lngua latina e includa nos Gynaeciorum libri, um
compndio monumental de obras dedicadas a doenas e condies
femininas, muito divulgado na Europa.
Tambm os partos mltiplos so enumerados entre os partos difceis.
Herfilo, citado por Sorano e Paulo de Egina, teria descrito o caso
de uma mulher que, em cada um de trs partos, tinha tido cinco
filhos, ou seja, um total de quinze crianas27.
De Amato citamos a cura 34 da Centria V, a das meninas amarelas,
as puellae luteae, irms gmeas que nasceram amarelas devido ao aafro
que era um dos ingredientes da medicao aconselhada por Amato,
depois de um parto que se prolongou tambm por dias. Os partos
26 Cognosces foetum in utero mortuum esse, si admota manu
amplius moveri non percipitur, sed decumbente foemina in latus, in
id devolvitutr etiam infans, veluti immobile quoddam saxum.
Saber-se- que o feto est morto no tero se colocando a mo [i. e. no
ventre] se perceber que j no se move, mas, deitando-se a mulher de
lado, para esse lado vira-se tambm a criana, imvel como uma
qualquer pedra.. Veja-se o texto do De superfetatione 10: , , , , .
Avaliar-se- se a criana est morta, tanto por outros sinais como
pedindo [ me] que se deite primeiro sobre o lado direito, depois
que mude para o lado esquerdo, pois a criana no tero vai para a
direco para a qual se virou a me, como uma pedra ou algo
assim..
27 Veja-se a verso de Sorano: . Herfilo, na sua obra Sobre os
Partos afirma: acontecem partos difceis devido ao nmero [de fetos]:
deu-se o caso da concubina de Smon da Magnsia que em trs vezes deu
luz cinco filhos entre dificuldades.. Cf. o texto de Paulo de Egina
, supra n. 17. Veja-se tambm o texto de Aristteles: Na maior parte
dos casos e na generalidade dos pases, as mulheres do luz uma s
criana; mas tambm frequente e ocorre por toda a parte que tenham
duas, como o caso do Egipto. Podem at ter trs ou quatro gmeos, em
certas regies bem definidas (). O mximo cinco, situao que j se
verificou vrias vezes. Hou-ve um nico caso de uma mulher que, em
quatro partos, deu luz vinte filhos; teve, de facto, cinco gmeos de
cada vez, e conseguiu criar a maior parte. Aristteles, Histria dos
Animais II (traduo de M. F. Sousa e Silva). Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2008, p. 215. De acordo com Aulo Glio, o
imperador Augusto ter mandado erigir uma esttua a uma sua escrava
que deu luz quntuplos: Sed et diuo Augusto imperante, qui temporum
eius historiam scripserunt, ancillam Caesaris Augusti in agro
Laurente peperisse quinque pueros dicunt eosque pauculos dies
uixisse; matrem quoque eorum non multo, postquam peperit, mortuam,
monumentumque ei factum iussu Augusti in uia Laurentina, inque eo
scriptum esse numerum puerperii eius. (Gel. 10.2.2). Mas tambm no
reinado do divino Augusto, dizem aqueles que escreveram a histria
do seu tempo, uma escrava de Csar Augusto deu luz no campo de
Laurento cinco rapazes e que eles viveram poucos dias; a me deles
morreu tambm no muito depois do parto. Por ordem de Augusto, foi
construdo em memria dela um monumento na via Laurentina, e nele
estava escrito o nmero dos filhos dela..
-
2.5 Os partos distcicos em Amato Lusitano e em Rodrigo de
Castro: fontes, doutrinas e terapias greco-romanas
365
de gmeos suscitaram sempre alguma surpresa, ora acolhidos como
sinal de fecundidade e prosperidade, ora interpretados como smbolo
de crise e de carestia28.
A causa de distocia mais comentada , todavia, a apresentao
anormal do feto no ventre materno, o que Sorano designa por . Se a
posio do feto no for a ceflica, unanimemente apresentada nestes
textos como a posio natural e conveniente ao parto, ou a podlica,
deve tentar-se corrigi-la, manipulando interna e externamente o
corpo da criana29. No livro 1 do De mulierum affectibus explicam-se
as dificuldades geradas por um feto em posio anormal recorrendo a
uma imagem muito sugestiva: como acontece com um caroo de azeitona
dentro de um lekytos, de um vaso de gargalo alto e estreito, que no
se consegue tirar se no estiver alinhado com a abertura, o mesmo
sucede com uma criana numa posio que no a ceflica ou a
podlica30.
As apresentaes que um feto podia assumir dentro do tero seriam
tema de uma srie de gravuras que acompanhariam o texto de Sorano.
Lamentavelmente, o nico manuscrito que o conserva, o Parisinus
Graecus, apresenta os espaos correspondentes em branco. Os
manus-critos da Genecia de Mscio, bem mais numerosos, apresentam
estas ilustraes, que foram divulgadas na Europa desde muito cedo.
De facto, circularam mesmo separadamente do texto e chegaram, por
vezes, a ser includas como anexo em textos de autores
posteriores31. Podemos observar estas imagens num manuscrito do
sculo ix, que mostra as posies secundum naturam e depois as praeter
naturam32.
Amato Lusitano aconselha o seu leitor, especialmente se for
Hispanicus e considerar sacrilgio cortar um cadver, a procurar
informaes sobre as apresentaes do feto in utero nos modernos livros
de anatomia. Esta referncia, entendida como uma aluso a Vesslio,
pode, no entanto, remeter o leitor para as muitas verses das
imagens da Genecia de Mscio que circulavam por ento tambm na obra
de autores contemporneos como Eucharius Rsslin, uma vez que na obra
de Vesslio no se representa o feto dentro do tero materno33.
Rodrigo de Castro refere-se precisamente a estas imagens ao
descrever as posies da criana:
28 Sobre os nascimentos mltiplos, veja-se V. Dasen, Multiple
Births in Graeco-Roman Antiquity, Oxford Journal of Archaeology
16.1 (1997), pp. 49-63.
29 Para algumas descries destas manobras, cf., por exemplo,
Sorano 4.4; Mscio, Genecia 2.18.11.
30 , , , , . (Mul.1.33). O sofrimento acontece pelo seguinte:
como se algum tivesse colocado dentro de um vaso de entrada pequena
um caroo de azeitona, que no tem uma forma adequada para ser
retirado de lado, assim tambm o feto, se estiver de lado, causa de
grande sofrimento para a mulher, pois no sai..
31 Cf. Hanson & Green, Soranus, op. cit., pp. 1023-1024, e
Monica H. Green, The sources of Eucharius Rsslins Rosegarden for
Pregnant Women and Midwives (1513), Medical History 53 (2009), pp.
167-192.
32 As imagens podem ser visualizadas em
http://wellcomeimages.org/indexplus/image/M0007236.html.
33 Afirma Amato: Caeterum, quomodo gemini in utero ex adversa
figura sedeant, et quo modo singulus singulis involucris et
membranis circumvolvatur, ad anatomicos libros hodiernos, miris
depictos figuris,
-
Cristina Santos Pinheiro366
() quas omnes figuras Hippocrates posuit, eas vero, ac plures ad
easdem reducendas
depinxit Eucharius Rodion. (2.4. cap. 5, p. 468)
() todas estas apresentaes foram expostas por Hipcrates, mas a
estas e a muitas que
podem ser resumidas a estas representou-as Eucharius Rsslin.
A descrio das manobras necessrias para colocar o feto na posio
indicada para nascer longa nestes textos34, mas acompanhada
normalmente pela afirmao de que, se no se consegue extrair a criana
de modo nenhum, deve recorrer-se a uma cirurgia, j descrita nos
tratados hipocrticos e que consistia em desmembrar o feto morto,
retirando-o posteriormente por partes35. Tambm Celso, que ter
vivido na primeira metade do sculo I d. C., autor do De medicina,
parte integrante da sua obra enciclopdica que abrangeria outros
assuntos, descreve com pormenor esta cirurgia, desde as partes do
corpo do feto que se devem ir amputando e extraindo at aos
instrumentos mais indicados para o fazer (7.29). Trata-se, todavia,
e todos os autores o afirmam, de uma cirurgia de riscos elevados
para a me, cuja vida se pretende salvar, e que no deve ser
realizada antes de a informar dos perigos que corre (4.9). No De
superf. 7, recomenda-se que se cubra a cabea da parturiente, de
modo a que esta no se atemorize. Na cura 51 da Centria VI, depois
de dois dias de sofrimentos intolerveis, da aplicao, aconselhada
por Amato perante a desistncia das parteiras, de fomentaes e de
substncias esternutatrias, saiu do tero da jovem Alosia o brao
enegrecido do seu filho morto. Depois de partido o brao, um dexter
chirurgus introduziu as mos no ventre da me e extraiu a criana. Diz
Amato que se isto no tivesse sido eficaz, teria de recorrer-se a um
instrumento conhecido pela designao de espculo da matriz para
retirar o feto, inteiro ou por pedaos36.
recurrite, si modo vobis praesertim Hispanis, quibus piaculum
est cadaver considere, non contingat aliter experire. (Cent. VI,
cura 51) Como que os gmeos esto colocados no tero, em posio
adversa, e como esto envolvidos cada um com as suas membranas ou
invlucros recorra-se aos modernos livros de anatomia, com gravuras
de admirvel desenho, se, no entanto (especialmente aos hispnicos,
para quem crime retalhar um cadver) no calhar experimentar de outro
modo. Amato Lusitano, Centrias, vol. IV, op. cit., p. 84.
34 Sorano 4.4.
35 Sorano 4.9-13; Mscio 2.18.26ss.; Acio 16.23. A embriotomia j
descrita nos tratados hipocrticos, por exemplo em Mul. 1.68-70;
Foet. Exsect. 1 e Superf. 7, o que atesta a antiguidade da sua
prtica.
36 Rodrigo de Castro, sobre a possibilidade de desmembrar um
feto vivo no ventre materno afirma: ac etiamsi nulla medicamenta
prosint, puer tamen vivus dissecari nulla ratione debet, quamvis
Avicenna, Atius, & Moschio id praecipiant, non enim licet unum
interficere, alterius vitae gratia, sed implorato divino auxilio
medicamentis, insistendum. (2.4. cap. 6, p. 477) E ainda que nenhum
medicamento seja eficaz, todavia por nenhuma razo se deve dilacerar
uma criana viva, mesmo que Avicena, Acio e Mscio o aconselhem. que
no lcito matar uma pessoa por causa da vida de outra, mas, depois
de implorar a ajuda divina, deve-se continuar com o uso de
medicamentos..
-
2.5 Os partos distcicos em Amato Lusitano e em Rodrigo de
Castro: fontes, doutrinas e terapias greco-romanas
367
No cabe no mbito desta pesquisa uma anlise das substncias cujo
uso se recomenda para acelerar o parto. No podemos, porm, deixar de
referir a utilizao de substncias que provocam o espirro, como o
helboro e a pimenta, especialmente porque a utilizao destas
substncias est relacionada com o muito citado Aforismo 5.35 de
Hipcrates:
, , , .
A uma mulher afectada por patologias uterinas ou num parto
difcil, se lhe sobrevier um
espirro, bom.37.
O espirro era uma forma de sacudir o corpo da paciente que
poderia levar a uma mais fcil expulso do feto. No De mulierum
affectibus afirma-se:
,
, ,
, . (1.68)
e se [o feto] querendo avanar e estando em posio normal, no sai
facilmente, nestas
circunstncias aplicar algo que provoque o espirro, fechar o
nariz e espirrar e fechar a
boca para que o espirro seja o mais forte possvel.
Amato defensor desta prtica, louvando mas nunca o bastante,
segundo o prprio Hipcrates, senex ille, naturae verus minister, e
citando o aforismo 5.35. Afirma ter ele prprio visto muitas vezes
um espirro acelerar um parto difcil38.
37 Veja-se a traduo de Celso: Quae locis laborat aut difficulter
partum edit, sternumento leuatur. (Aquela que sofre devido aos rgos
genitais ou que d luz num parto difcil aliviada por um espirro.).
Sobre as referncias hipocrticas ao espirro como forma de facilitar
o parto, cf. Ann Elis Hanson, Continuity and change: Three Case
Studies in Hippocratic Gynaecological Therapy and Theory, in Sarah
Pomeroy (ed.), Women s History and Ancient History. Chapel Hill,
University of North Carolina Press, 1991, pp. 91ss..
38 Porro interim haec agebamus, sternutationem ciebamus condiso,
hoc est, struthio, sive lanaria dicta herba, helleboro, pipere,
euphorbio, et similibus, prout, nos docuit agendum, nunquam satis
laudatus senex ille, naturae verus minister, libro quinto suorum
aphorismorum, aphor. 35. dicens mulieri, quae uterinis molestatur,
aut difficulter parit, superveniens sternutatio, bonum. Vidimus
autem nos difficulter parientes, a repetita sternutatione, brevi
parere, quia vehementiore concussu, atque fervore, partim quidem
naturam excitat, partim vero excernit, quae partibus corporis
firmiter infixa adhaerent. (Cent. V, cura 34) Entretanto, enquanto
trabalhvamos nisto, provocvamos o espirro com struthion, isto ,
saponria, a chamada erva-dos-pisoeiros (lanria), helboro, pimenta,
eufrbio e semelhantes, conforme nos ensinou a fazer aquele nunca
assaz louvado Ancio, verdadeiro ministro da natureza, no livro 5
dos seus Aforismos, aforismo 35, ao dizer: mulher que molestada por
estrangulaes uterinas ou tem parto difcil, bom sinal o sobrevir-lhe
espirro. Ns temos visto parturientes difceis darem luz
-
Cristina Santos Pinheiro368
Se isto no for eficaz, torna-se necessria uma interveno mais
violenta que consistia tambm em sacudir o corpo da paciente, mas de
forma bem mais vigorosa. o que se afirma no mesmo tratado
hipocrtico, logo de seguida: a paciente deve deitar-se numa cama
slida a que ser atada, cama que ser sacudida por dois homens. Em
Deexsect. 4, a parturiente deve ser colocada por cima de um lenol
e, agarrada pelos ps e pelos braos por mulheres, deve ser sacudida
pelo menos dez vezes. Depois ser sacudida alternadamente pelos
braos e pelas pernas. Aqui as manobras tm como finalidade fazer com
que o feto numa posio anormal tenha espao no tero para se
reposicionar de forma adequada39.
Nos casos descritos nas Centrias, por exemplo, estas duas formas
de terapia so constantes. O recurso a substncias esternutatrias
constitui, a par da sucusso, o mtodo mais utilizado por Amato para
acelerar um parto difcil. Na cura 21 da Centria VI, que se refere a
uma mulher primpara em sofrimento, ordenou que se agarrasse a
parturiente a uma corda suspensa do tecto e que fosse sacudida por
um homem robusto. Receitou igualmente substncias para provocar o
espirro, o que acabou por permitir que expulsasse a criana no espao
de um dia.
Amato parece at, por vezes, acreditar que estes mtodos causam
uma certa impresso nas pessoas que assistem, incluindo nas
parteiras. Veja-se por exemplo o parto antes citado das chamadas
meninas amarelas:
Pinta uxor Pharasii, musici insignis, cum per triduum in
emittendo foetu, graviter
laboraret, ad eam iuvandam accersiti sumus. Ac post multa ob
obstetricibus adhibita,
et machinata, hoc illi ebibendum dedimus medicamentum. () Hoc
enim epoto et
repetito medicamento, duas peperit puellas, omnino luteas, ob
quem colorem assistentes
mulieres admirabantur. Caeterum, nos colorem hunc, a croco
ebibito contractum esse
docuimus. (Cent. V, cura 34)
A esposa do insigne msico Pharasi, de nome Pinta, h j trs dias
que procurava dar luz uma criana com sofrimento e, para lhe darmos
o nosso auxlio, cha-maram-nos. Depois de muitos tratamentos feitos
e engendrados pelas parteiras, demos-lhe a beber o seguinte remdio
(). Tendo tomado e repetido este medi-camento, deu luz duas meninas
completamente amarelas. A cor causou grande admirao s mulheres
assistentes. Por isso esclarecemos que esta cor tinha sido causada
pelo croco bebido.40
rapidamente aps repetidos espirros, visto que, pela sacudidela
ou agitao mais veemente, por um lado se excita a natureza, por
outro se desagrega aquilo que aderia com firmeza a partes do corpo.
Amato Lusitano, Centrias, vol. III, op. cit., p. 224.
39 A mesma interveno no texto de Rodrigo de Castro (2.4. cap. 5,
p. 472).
40 Amato Lusitano, Centrias, vol. III, op. cit., p. 225.
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2.5 Os partos distcicos em Amato Lusitano e em Rodrigo de
Castro: fontes, doutrinas e terapias greco-romanas
369
Note-se que a relao entre o mdico e as parteiras que podemos
reconstituir a partir destes textos denota, com frequncia, uma
certa desconfiana dos mdicos em relao a estas. Ad-monies como cuida
para que as parteiras no dilacerem o tero, ou que as parteiras no
recorram a prticas supersticiosas so muito frequentes41. Tambm
Amato mostra uma certa desconfiana em relao s prticas destas, que
considera prejudiciais42. Rodrigo de Castro afirma que uma das
medidas que a grvida deve tomar antes do parto precisamente a
escolha de uma boa parteira, arte que, segundo afirma, no
conveniente para os homens:
Igitur ante partum eligenda obstetrix prudens, muliebrium
affectionum docta, & obste-
tricandi exercitatione perita, nam haec ars viros dedecet. (2.4.
cap. 1, p. 447)
Por esta razo antes do parto deves escolher-se uma parteira
previdente, instruda acerca
das condies femininas e versada no exerccio da obstetrcia, pois
esta arte no convm
aos homens.
De facto, a impercia das parteiras algo pernicioso: torna os
rapazes eunucos (1.2. cap. 6, pp. 63-64), leva-as a cortar antes do
momento certo o cordo umbilical (2.4. cap. 7, p. 478); est
associada a supersties absurdas (1.1. cap. 8, p. 32) O mesmo
afirmara Sora-no, sculos antes. Se em toda a descrio de um partus
naturalis a parteira que age e toma decises, acompanhada, quando
muito por ajudantes com experincia e que deram luz muitas vezes ou
o prprio marido da mulher [i. e. da parturiente](ministrae peritae
et quae saepius pepererunt aut ipse foeminae maritus (2.4. cap. 1,
p. 448)), quando o parto se complica o chirurgus quem desempenha as
aces mais sensveis, na presena do mdico (accersitus chirurgus,
praesente etiam medico).
Quanto mais desesperada fosse a situao, podemos afirmar, tanto
mais pessoas que no a parteira seriam necessrias para desempenhar
toda uma srie de tarefas, das mais cientficas s mais braais: do
mdico que orientava, a homens ou mulheres da famlia, robustos o
suficiente
41 Cf. Jean Le Bon, Therapia Puerperarum, in Gynaeciorum libri,
1586, vol. 2, p. 387: Dilaniari enim non paucas gravidas mulieres a
chirurgis, obstetricibus et tonsoribus, multosque semivivos
infantulos ab iisdem dilacerari, saepius quam voluissemus, vidimus.
Vimos, mais vezes do que teramos desejado, serem dilaceradas no
poucas mulheres grvidas por cirurgies, parteiras e barbeiros, e
muitas criancitas mal vivas serem desmembradas por estes.
42 Veja-se, por exemplo: () nec enim obstetrices permisimus
unquam, manibus violentum aliquod tractarent, prout illis moris
est, quando ex illa violenta attractione, multa vitia, et foedae
affectiones oriuntur. (Cent. VI, cura 21) () e no permitimos nunca
que as parteiras usassem de algo violento com as mos, conforme o
seu costume, visto que por causa dessa violenta actuao se originam
muitos males e afeces desfeantes. Amato Lusitano, Centrias, vol.
IV, op. cit., p. 33. Curabis tu, sapiens medice, ut obstetrices
omni ingenio ac arte in hanc naturalem figuram, hoc est, in caput,
foetum deducant () Tu, mdico sabedor, procurars que as parteiras
tirem o feto com o maior engenho e habilidade pela forma natural,
isto , pela cabea (). Amato Lusitano, Centrias, vol. IV, op. cit.,
p. 84.
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Cristina Santos Pinheiro370
para segurarem a parturiente e a sacudirem, passando pelo
cirurgio que operava e pela parteira que fazia a verso do feto e
examinava o corpo da paciente. precisamente no meio desta mul-tido
que sobressai o saber do mdico, baseado nas autoridades antigas que
como um alicerce fundamentam e legitimam prticas e teraputicas.
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