VEREDAS DE SAGARANA: LINGUAGEM, MEMÓRIA E VERDADE Por Raquel de Castro dos Santos Mestrado em Ciência da Literatura - Poética Dissertação de Mestrado em Poética apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura. Orientador: Professor Dr. Antonio Jardim Rio de Janeiro/ UFRJ 2007
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VEREDAS DE SAGARANA: LINGUAGEM, MEMÓRIA E … · Professor Doutor Adauri Silva Bastos ― UFRJ ... entre significante e significado não ... se na linguagem. É mais que conferir
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VEREDAS DE SAGARANA:
LINGUAGEM, MEMÓRIA E VERDADE
Por
Raquel de Castro dos Santos
Mestrado em Ciência da Literatura - Poética
Dissertação de Mestrado em Poética apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura. Orientador: Professor Dr. Antonio Jardim
Rio de Janeiro/ UFRJ 2007
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DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
SANTOS, Raquel de Castro dos. Veredas de Sagarana: Linguagem, memória e verdade. Dissertação de Mestrado em CIÊNCIA DA LITERATURA, apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. Rio de Janeiro, 2007. 126 fls.
BANCA EXAMINADORA __________________________________________________ Professor Doutor Antonio Jardim ― Orientador ― UFRJ __________________________________________________ Professor Doutor Adauri Silva Bastos ― UFRJ __________________________________________________ Professor Doutor Manuel Antonio de Castro ― UFRJ __________________________________________________ Professora Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva ― UFRJ __________________________________________________ Professor Doutor Luís Alberto Nogueira Alves ― UFRJ Examinada a Dissertação
Em: 23 / 08 / 2007.
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Dedicatória
Dedico esta dissertação aos meus pais, Atanisio e Maria Amélia.
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Agradecimentos
Aos meus pais, pela ajuda infinita. Aos meus irmãos e irmãs, pelos momentos de compreensão.
Aos meus avós maternos, Maria Hostiana dos Santos e José Lourenço Filho, por
serem o que são.
Aos meus tios, tias, padrinho e madrinhas, primos e primas, pela.confraternização.
Ao meu Deus, por princípio.
O meu muito obrigado aos meus amigos que com palavras fortificantes me impulsionaram à frente.
Aos meus professores, pela doação do saber.
Ao Antonio Jardim, pelo incentivo de sempre.
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In memoriam
Maria Solidade de Castro e Manuel Pedro dos Santos
“As pessoas não morrem, ficam encantadas.” Guimarães Rosa
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SANTOS, Raquel de Castro dos. Veredas de Sagarana: Linguagem, memória e verdade. Dissertação de Mestrado em Ciências da Literatura, apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. Rio de Janeiro, 2007. 126 fls.
RESUMO
Os temas da linguagem, memória e verdade perpassam a narrativa de Sagarana. Por meio deles busca-se, nesta dissertação, a articulação com os contos. A linguagem, desvinvulada da mera função comunicativa, evidencia, também, a instauração do ser. O ser mostra-se desvelando-se, revelando-se. Verdade. O vigor do revelar-se, desvelar-se se encadeia pela presença experienciável. Memória.
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SANTOS, Raquel de Castro dos. Veredas de Sagarana: Linguagem, memória e verdade. Dissertação de Mestrado em Ciências da Literatura, apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. Rio de Janeiro, 2007. 126 fls.
ABSTRACT
The subjects of language, memory and truth elapse Saraganas narrative. Throughthese it is seeked in the present dissertation the articulation with the short stories. The language, disentailed from mere communicative task, turns also into evidence the instauration of the individual. The individual shows itself unveiling, revealing itself. Truth. The revealing, unveiling oneself is chained by the presence of the experienceable. Memory.
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SANTOS, Raquel de Castro dos. Veredas de Sagarana: Linguagem, memória e verdade. Dissertação de Mestrado em Ciências da Literatura, apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. Rio de Janeiro, 2007. 126 fls.
RESUMEN
Los temas del lenguaje, memoria y verdad se encuentran el la narrativa de Sagarana. Através de ellos se busca uma articulación con los cuentos. El lenguaje, alejada de la función comunicativa, certifica la instauración del ser. El ser se muestra, desvelándose, revelándose. Verdad. El vigor del revelarse, del desvelarse se encadena por la presencia experienciable. Memoria.
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SINOPSE
Dissertação sobre Sagarana em seus interstícios com a linguagem, memória e verdade. O dizer e o narrar. Experiência e linguagem. Memória como presentificação. A estória contra história. Fundação, poiesis. A verdade como alétheia. Ruptura do verossímil. A verdade e a narrativa.
Nesta dissertação, a linguagem, a memória e a verdade aparecem como constantes e
funcionam como elo de ligação entre os contos do livro Sagarana, de João Guimarães Rosa.
Cada grupo de três contos será conduzido por um dos três temas, sem obedecer à ordem em
que os contos se apresentam no livro.
No capítulo relacionado à linguagem serão enfatizados os contos “Conversa de bois”,
“São Marcos” e “O burrinho pedrês”, respectivamente. Como um movimento introdutório
tem-se, primeiramente, “Os desígnios da linguagem”. Em “O dizer dos bois”, a articulação de
pensamento torna-se narrativa. O pensar dos bois é narrado. Os bois se mostram no dizer da
saga. A possibilidade de pensar deles torna-se possível devido à imersão na linguagem. O
pensar se presentifica com a linguagem e por intermédio do narrar. Estabelece-se uma relação
entre dizer, narrar e linguagem. A palavra com seu vigor de nomear aparece em “São Marcos
e a palavra”. E a experiência prodigiosa pelo experienciar a linguagem é suscitada em
“Linguagem e experiência de um burrinho pedrês”.
No capítulo seguinte, é a memória o vínculo de unidade. De início, há a apresentação
do tema central em “No âmbito da memória”. Em “A vigência da memória em ‘Sarapalha’”, a
memória aparece como fio condutor também da narrativa. A relação entre estória e história é
apresentada em “A estória e a história de Lalino Salãthiel”. A possível oposição entre os dois
termos evidencia-se, pelo projeto narrativo de João Guimarães Rosa, em detrimento do
conceito de estória. A estória apresenta um caráter inventivo não catalogado pela história. A
memória está, também, em “Minha gente, meu lugar”. O povo funda memória com as
vivências, experiências, mitos, narrativas e espacializa a memória no habitar, de modo que
constrói espaços. Pois, é através deles que a terra torna-se habitada.
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Por fim, o último capítulo se refere à verdade. Sobre a verdade não será adotado o
conceito corrente, corriqueiro e anteposto ao fato inverídico. Em “Sobre a verdade na
narrativa” a verdade apresenta-se introdutoriamente na narrativa. A verdade na conjuntura em
que abrange a alétheia será conduzida à narrativa em “A verdade em Augusto Matraga”.
O verossímil como comprovação da verdade desvincula-se da narrativa no conto
“Corpo fechado”. Tem-se “A ruptura do verossímil em ‘Corpo fechado’”. Tão pouco a
desconstrução da narrativa é um movimento niilista. Mas sim, opõe-se a uma ordem vigente.
A narrativa, sem obrigação de servir a uma fórmula, que funcione como um molde narrativo,
abre-se mais ao caráter inventivo presente no narrar. Longe de sintetizar a narrativa a um
resumo, apresenta-se “A (des)construção narrativa em ‘Duelo’”.
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CAPÍTULO I
DESÍGNIOS DA LINGUAGEM E A NARRATIVA DE SAGARANA
A linguagem não se reduz a uma expressão. Para ela não pode haver a remissão do
fazer de uma exteriorização palpável, objetivável, devido ao simples fato de que ela não pode
ser objeto. A concretude da linguagem advém da língua manifestada em doação. Assim, a
linguagem não é abstração.
A exteriorização de um eu que fala arbitrariamente não condiz com a abertura
proporcionada pela linguagem. Pois, a linguagem não possui um sentido figurado ou
simbólico. Se ela assim fosse configurada seria uma representação de si mesma. A linguagem
não possui a função de auto-representação. A metalinguagem a referencia por ser a tentativa
de dizer o já dito por ela.
Contudo, o dizer da linguagem deve ser inaugural, por apresentar e mostrar o advento
da língua como existência instauradora. A esta possibilidade não deve ser atribuído o falar
novo. O caráter de novidade não se deve ligar intrisecamente à linguagem por causa da
possibilidade do dizer inaugural, posto que o dizer inaugural não quer fazer-se novo, mas
fazer-se presente enquanto vigência que diz. Na narrativa, a vigência do dizer inaugural
ocorre independente da quantidade de vezes em que foi feita a leitura.
Caso o dito atinja no dizer sua plenitude, a linguagem, então, inaugura-se. O poema
tem no dizer, em plenitude, a vigência da linguagem. As palavras que compõem o poema não
exteriorizam um eu, elas são o dito inaugural, por fundarem mundo pelo dizer. No entanto,
não é somente no poema que há linguagem, na obra de arte a linguagem vigencia-se, não em
variadas formas, mas, em desocultamento de sua essência, o dizer. Este dizer muitas vezes é
relacionado ao aprazimento obtido diante da obra.
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A articulação da língua não desemboca de cheio na linguagem. Ou seja, da articulação
entre significante e significado não resulta linguagem, apesar da possibilidade de haver
comunicação. A linguagem, antes, é primordial e anterior a qualquer convenção lingüística.
Na narrativa de Sagarana, a convenção narrativa é inexistente, pois é a experimentação da
língua no âmbito da linguagem o fundamento. Portanto, a narrativa apresenta-se
experiencialmente. Logo, ela será experienciação do narrar.
O vigor da linguagem permeia todos os contos, sem exceção. A sua eminência
fomenta o nascedouro de novas palavras e o revigoramento de outras, usadas longinquamente
de seu sentido esteriotipado pelo uso da língua. O neologismo considerado como marca, não
somente de Sagarana, especificamente, trata do viçor da linguagem, o vigor nomeador, e não
indica, somente, aumento lexical na narrativa.
O apelo da linguagem não é um chamamento simplesmente, ou seja, uma convocação.
Na conjuntura, o real em oferta se doa disponível em linguagem. Assim, apreender o real é
adentrar-se na eminência da linguagem. A intercessão ao apelo desencadeia uma unidade.
Nessa unidade há a escuta da linguagem que fala. Disponível, o real é linguagem. A
linguagem desencobre o real, apesar de que também não deixa de encobri-lo.
A palavra nomeia. E por nomear mundifica. Cada palavra dita, em desígnios da
linguagem, traz à presença. Assim, as orações estabelecem diálogo com Deus. Pois, as
palavras são veículos que trazem à presença Deus. Não possuem a finalidade de chegar a um
destinatário, e, assim, nomeá-lo partícipe, mas possibilitam que haja mundo. O nomear, mais
que uma referência a um objeto, é tornar presença o que ainda estava oculto, por não articular-
se na linguagem. É mais que conferir um nome a algo. O nomear é, também, existência.
O clarão da linguagem alumia. Revela o que é. Na narrativa, o dizer do narrar não
deve ser entendido, unicamente, como uma seqüenciação de frases ou de uma logicidade
narrativa. O dizer do narrar é, antes de tudo, inaugural, a praticidade não faz parte dele. Para
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narrar não é preciso ser prático, mas tem que ter o que dizer. O dizer que se mostra na
narrativa é essencial porque é linguagem que se dá.
A consideração de que o modo como o dizer se dá seja importante não pode ser
tomado como assertiva, em vistas que será favorecida a intenção de formatar o dizer em
estruturas. Ou seja, a maneira como as palavras são dispostas não é mais valiosa do que é dito.
Não significa que a disposição das palavras na narrativa é trivial, mas o indispensável é o
dizer que se mostra narrando. Ao favorecer o encadeamento das palavras, coloca-se a
interpretação, o valor da mensagem à frente do dizer. No entanto, o dizer não pode ser prático,
caso o fosse, iria contra a si próprio. A linguagem não pode ser formatada porque é a
dinâmica do real. Caso não o fosse seria executável, praticável.
A linguagem é consoante ao real. Ela o revela. Não no sentido de deciframento de um
enigma, ou de um esclarecimento de dúvidas ou de ambigüidades, mas, sim porque confere ao
real o fulgor do que se revela, se desoculta, se mostra. Este mostrar não é, meramente, a
indicação de algum fato notório ou de adequação a um conceito. É o dizer primordial que
tanto diz quanto se está inserido na linguagem. A relação de balança é impraticável, neste
caso, para se atribuir ao dizer um valor igualitário com a linguagem. Trata-se de perceber que
o dizer primordial será desocultado se da linguagem se tiver percebido o seu mostrar-se. A
consonância com o real não se resume aos fatos cotidianos e corriqueiros, mas aquilo que,
surpreendentemente, instaurou-se e, sem delongas, revela-se.
Na relação com o real, a experiência é linguagem. Portanto, a vivência da linguagem é
experiência. Distanciada de limitações impostas pela não vivência da linguagem, a
experiência funciona com reduto de ocorrências da linguagem. Não funciona como um
depósito de utensílios quardados para o uso futuro, mas como ponto convergente de doações
da linguagem. Assim, experienciar é adentrar-se nos desígnios da linguagem.
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1.1 O DIZER DOS BOIS
Sem mais a ofertar, a linguagem é oferta de si mesma. E quem estiver disponível a seu
apelo adentra em seus desígnios. Aberto à linguagem o homem se inaugura inaugurando-a.
Ela torna possível o homem. Por ser possibilidade de existência através da linguagem, o
homem articula-se na língua, sem ater-se unicamente à função código. Ao ultrapassar os
limites impostos pela codificação e decodificação, a linguagem permite, na saga, o acesso ao
apelo.
Em Sagarana tudo é dotado de linguagem. O dizer da saga não se resume somente aos
personagens humanos. Os animais, sertanejos e a natureza estão imersos na saga. E por meio
dela eles se apresentam a nós. Especificamente, em “Conversa de bois”, os bois dialogam ao
longo do percurso do carro-de-bois. Eles carregam o corpo morto do pai de Tiãozinho ao lado
de rapaduras. O fato dos bois poderem falar e conversar entre si, enquanto levam o morto, é
acentuado pela possibilidade de pensarem o que acontece ao redor. No decorrer da caminhada
percebem a tristeza de Tiãozinho pela morte do pai. Não são bois quaisquer, mas bois
pensantes, isto é: bois que cuidam da linguagem. O pensar está ligado à linguagem. Ao
perceberem-se na linguagem os bois adentram-se no pensamento. Eles questionam e refletem,
sobretudo, sobre si e o homem. Eles indagam o porquê deles aprenderem a pensar:
― Oung! Moung! ― bufa Canindé, monótono, arrepiando o fio branco do dorso, e repuxando, dos ilhais às primeiras costelas, a pelagem conjugada ―de cada lado uma risca preta e uma risca vermelha, muito largas, salpicadas de branco, na descida do flanco e na corda do flanco, pois que é muito bonito um boi jaguanês. Bufa e fala, pé por pé para caminhar: ― Os bois soltos não pensam como o homem. Só nós, bois-de-carro, sabemos pensar como o homem!... Mas Realejo, pendulando devagar fronte e chifres, entre os canzis de madeira esculpida, que lhe comprimem o pescoço como um colarinho duro, resmunga:
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― Podemos pensar como o homem e como os bois. Mas é melhor não pensar como o homem... ― É porque temos de viver perto do homem, temos de trabalhar... Como os homens... Por que é que tivemos de aprender a pensar?...1
Na saga, a capacidade de percepção é possível a todos que estão imersos na
linguagem. Estar atento à linguagem requer percepção do apelo latente e imanente. Pois, a
linguagem simplesmente inexiste como vertente única e estática. A linguagem é reunião,
comunhão. O compartilhar-se com a (na) linguagem permite ver-se como apelo ao vê-la. Estar
atento ao apelo da linguagem nada mais é que se encontrar no dizer-se. Desse modo, em A
caminho para a linguagem temos que
Toda a questão relativa à causa do pensamento, toda interrogação que concerne à sua essência já estão sustentadas pelo consentimento daquilo que deve ser colocar-se em questão. Por isso, o gesto próprio do pensamento atualmente necessário não é tanto questionar, mas escutar esse consentimento. Como no entanto a escuta é uma escuta da palavra que nos vem ao encontro, a escuta do consentimento do que se dá a pensar aparece freqüentemente como uma pergunta em busca de respostas. Caracterizar o pensamento como escuta é algo que soa muito estranho e também não chega a atingir a clareza necessária. Mas justamente o que constitui o próprio da escuta é de só receber definição e clareza daquilo que pelo consentimento apresenta um sentido. Algo já se mostra aqui: a escuta assim descrita é o consentimento entendido como o que se apropria no dizer e sua saga, com a qual a essência da linguagem está aparentada. Conseguindo visualizar a possibilidade de uma experiência pensante com a linguagem, poderemos adquirir mais clareza sobre em que sentido o pensamento é escuta do esclarecimento.2
Envolvidos pelo apelo do dizer-se os bois tornam-se escuta. É através da saga do boi
Rodopião que os bois-de-carro escutam o apelo que fala, não de modo imediato, mas sim,
paulatinamente. Os bois experienciam um apelo na linguagem que requer uma escuta. Em
certo meado da narrativa,
Mas os bois estão caminhando diferente. Começaram a prestar atenção, escutando, a conversa de boi Brilhante.
1 ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001a. p.333- 334 2 HEIDEGGER, Martin. A caminho para a linguagem. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 139
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[...] Então, boi Rodopião ainda ficou mais engraçado de todo. Falava? ― A gente deve de pensar tudo certo, antes de fazer qualquer coisa. É preciso andar e olhar, p’ra conhecer o pasto bem. Eu conheço todos os lugares, sei onde o capim é mais verde, onde os talos ficam quase o dia inteiro molhados de orvalho, p’r’a gente poder pastar mais tempo sem ter sede. Sei onde é que não dá tanto mosquito, onde que a sombra, e o limpo do chão e, pelo jeito do homem, sei muitas vezes o que é que ele vai fazer... Olho p’ra tudo, e sei, toda hora, o que é melhor... Não tenho nunca dor-de-barriga, porque não pasto por engano capim navalha-de-mico, no meio do jaraguá... Vocês não fazem como eu, só porque são bois bobos, que vivem no escuro e nunca sabem porque é que estão fazendo coisa e coisa. Tantas vezes quantas são as nossas patas, mais nossos chifres todos juntos, mais as orelhas nossas e mais? É preciso pensar cada pedaço de cada coisa, antes de cada começo de cada dia...3
Os bois adquirem originalidade pela linguagem. Carneiro Leão diz que “a obra de arte
é a revelação do mundo da existência na força da linguagem”.4 O dizer que fala é a
linguagem. A linguagem, no entanto, não é somente o que é pronunciado. Na linguagem, além
da fala há a escuta. Ou melhor, no falar está também a escuta. Conforme Melo e Souza:
Conhecemos a fala como a verbalização articulada do pensamento por meio dos órgãos da fala. Mas falar é ao mesmo tempo escutar. É hábito contrapor a fala e a escuta: um fala e o outro escuta. Mas a escuta não a pensa acompanha e envolve a fala que tem lugar na conversa. A simultaneidade de fala e escuta diz muito mais. Falar é, por si mesmo, escutar. Falar é escutar a linguagem que falamos. O falar não é ao mesmo tempo, mas antes uma escuta.5
Também,
É a clareia e a não clareira, porque a clareira é todo o seu mundo. Todas as coisas presentes e ausentes, todos os casos reais e irreais, todas as combinações possíveis e imagináveis, todas as sentenças verdadeiras ou falsas, toda a realidade e toda a possibilidade, o ser e o não-ser pertencem à clareira [...] Só pode haver a suspeita da não-clareira enquanto a Floresta, retraindo-se como nada, deixa a clareira clarear-se como tudo. [...] Assim o grande desafio, que o grilo sente no Silêncio, é desafio de libertar-se de todos não, impostos pela mecânica da clareira: o não-saber, o não-sentido, o não-ser. 6
3 GUIMARÃES ROSA, op. cit., 2001a: 348-349 4 CARNEIRO LEÃO, Emanuel. “Existencialismo e a literatura”. In: Aprendendo a pensar. São Paulo: Vozes, 1977. p. 168 5 MELO e SOUZA, Ronaldes. Ficção e verdade. Brasília: Clube de Poesia de Brasília, 1978. p. 203. 6 CARNEIRO LEÃO, op. cit., 1977: 168
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O não-dito torna-se importante na linguagem porque é também um dizer. Nem sempre
estamos abertos a esse dizer impronunciável. E escutá-lo, portanto, torna-se mais difícil. O
sofrimento de Tiãozinho não é pronunciado por ele. Mas é sentido pelos bois que mencionam
o fato de que “já babou muita água dos olhos... Muita...”7
O mostrar-se do dizer propõe um encaminhamento feito pela própria linguagem.
Portanto,
o que nos concerne como linguagem determina-se pela saga do dizer, essa que tudo en-caminha e movimenta. Acenar é passar de um para outro. As palavras-guia acenam, fazendo-nos passar das representações corriqueiras da linguagem para a experiência da linguagem como a saga do dizer.8
Como não poderia deixar de ser, é através d’“A conversa de bois” que a saga de
Rodopião (em microcosmo) se plenifica não como história, mas como apelo da linguagem: a
procura, o questionar. Nela, o apelo da linguagem, o mostrar-se em escuta, aparece totalizado:
o dizer-se que narra.
O dizer-se da saga torna tudo um. Recolhimento. Heráclito já percebera o inaugurar-se
outro. De modo que não seja um outro destoante ou um duplo que seja mimético. Inaugurar-
se outro é adentrar-se no apelo da linguagem, que não está contido em nenhum corpo em
particular. Recolher-se na saga do dizer é compartilhar a linguagem, não no sentido de haver
divisão em partes, mas, a unidade do apelo. Dialogando com Heidegger temos que “o próprio
Έν, porém, como Έν Πάντα é o λόγος, a postura recolhedora. Na condição de λόγος, só Έν é
το Σοφον, o envio sábio, como o próprio destino: o recolhimento do envio à vigência [...] Mas
nunca será o próprio destino: Έν Πάντα como ο λόγος.”9 Em si é-se o mesmo e o outro. É o
que, também, instiga Octavio Paz,
Somos un diálogo, y quiere decir: podemos los unos oír de los otros. Somos un diálogo, y esto viene a significar además: somos siempre um diálogo. La unidad del diálogo consiste, por outra parte, em que la Palabra esencial se hace patente lo Uno y lo mismo en que nos unificamos, sobre lo que fundamos la unanimidad, lo que nos hace propiamente uno mismo. El diálogo y su unidad soporta nuestra realidad de verdad.10
Em “Conversa de bois”, através do diálogo, os bois inauguram um dizer. O dizer dos
bois faz com que apareça a unidade no diálogo. No diálogo, os bois tornam-se pensantes e
linguagem. Enfim, os bois são linguagem. Ao se tornarem um pelo diálogo do dizer, os bois-
de-carro percebem-se diferentes dos demais. Portanto, no diálogo há a unidade e a diferença.
Ambos não se anulam, mas apresentam-se complementariamente. Ao se verem iguais,
pecebem-se distintos. Pela linguagem tornam-se um. Tiãozinho e os bois são um mesmo.
Nesse dialogar instauram-se os bois:
[...] ― Bhúh!... Não me chamem, não sou mais... Não existe boi Brabagato!... Tudo é forte. Grande e forte. Escuro, enorme e brilhante... Posso mais do que seu Agenor Soronho!... Que estão falando, todos? Estão loucos?!... Eu sou o boi Dançador... Boi Dançador... Mas, não há nenhum boi dançador!... Não há o-que-tem-cabeça-grande-e-murundu-nas-costas... Sou mais forte do que todos... Não há bois, não há homem... Somos fortes... Sou muito forte... Posso bater para todos os lados... Bato no seu Agenor Soronho, de cabresto, de vara de marmelo, de pau... Até tirar sangue... E ainda fico mais forte... Sou Tião... Tiãozinho!... Matei seu Agenor Soronho... Torno a matar!... Está morto esse carreiro do diabo!... Morto matado... Picado... Não pode entrar mais na nossa cafua. Não deixo!... Sou Tiãozinho... Se ele quiser embocar, mato outra vez... Mil vezes!... Se a minha mãe quiser chorar por causa dele, eu também não deixo... Ralho com a minha mãe... Ela só pode chorar é pela morte do meu pai... Tem de cuspir no seu Soronho morto... Tem de ajoelhar e rezar o terço comigo, por alma do meu pai... Quem manda agora na nossa cafua sou eu... Eu, Tiãozinho!... Sou grande, sou dono de muitas terras, com muitos carros de bois, com muitas juntas... Ninguém pode mais nem falar no nome do seu
9HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão et alii. Petrópolis:Vozes, 2001a. p. 198 10 HEIDEGGER, op. cit., 1994: 126
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Soronho... Não deixo!... Sou o mais forte de todos... Ninguém pode mandar em mim!... Tiãozão!... Oung... Hmong... Mûh!... 11 ‘Bhu! Muff”... De repente, boi Brilhante projetou a cabeça, que sai do enquadramento ― canga, canzis e brocha ― como o pescoço de um jaboti que se desencaixa para beber chuva. E fanha, e funga: ‘Achei a coisa, aquilo!... Foi o boi que pensava de homem, o-que-come-de-olho-aberto...’ Era o boi Rodopião...12
A escuta instalada pelo apelo da linguagem no real ultrapassa os sons, a fala
característicos para ganhar vigência unificadora. Há um pôr do apelo da linguagem em aberto,
há espera para o desencoberto. Portanto, “pertencer ao apelo da fala não é senão deixar o real,
que se de-põe em conjunto, dispor-se, como um todo, em sua disponibilidade. Este deixar põe
o disponível, como disponível. E o põe, como ele mesmo. Pois, põe um e o mesmo na unidade
de um só.”13 Como diz Heidegger em “Logos”:
Deixar é deixar o real disponível num conjunto que, recolhido, acolhe. O que será, então, ouvir, se esta é a essência de falar? Sendo λέγειν, a fala não se determina pelo som que se expressa com sentido. Ora, se dizer não se define pela articulação de sons, o ouvir correspondente também não poderá consistir, primordialmente, em se apreender o som, que entra pelos ouvidos, nem em transmitir os tons, que estimulam a audição. Se ouvir fosse, sempre e primordialmente, apreender e transmitir sons, ao que se viriam juntar outros processos, os sons entrariam por um ouvido e sairiam pelo outro, e ficar-se-ia nisto. É o que de fato acontece se não nos recolhermos ao apelo da fala. Ora, o apelo, que, nos chega na fala, é, em si mesmo, o que se dispõe e propõe recolhido numa reunião. Ouvir é propriamente auscultar, uma escuta concentrada. Na ausculta, vige e vigora um conjunto de escutas. Ouvimos quando somos todo ouvidos. Mas “ouvido” não é o aparelho auditivo. Como aparelho dos sentidos, os ouvidos fisiológicos e anatômicos nunca vão provocar uma escuta, nem mesmo se reduzirmos a escuta à percepção de ruídos, sons e tons. 14
Os bois como personagens principais do conto escutam e são apelo através da
experienciação da linguagem. Os mugidos onomatopéicos (Bhu, Bhúh, Muff ,Mûh, Muung,
Oon, Oung) adquirem valor na saga dos bois, pois mostram o ser dos bois e servem, inclusive,
como marcas onomatopéicas de sons bovinos para a língua cristalizada. Inclusive, o mugido
11 ROSA, op. cit., 2001a: 359-360 12 Ibidem, p. 341 13 HEIDEGGER, op, cit., 2001a: 190 14 Ibidem, p. 188-189
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oon é o próprio verbo ser em grego on. E bhu, o verbo ser em sânscrito. Desta relação
depreende-se que não são apenas signos, já que o signo é projetado por uma relação
estipulada entre significado e significante. Na medida em que a linguagem é, os signos
perdem-se em seu estatuto lingüístico porque não conseguem acompanhar o desprendimento
proporcionado pela linguagem. Tampouco, fora dos desígnios da linguagem, podem projetar-
se como instâncias instaladoras e reveladoras do real.
Na saga é o dizer-se o plantador do Real e da linguagem. A conversa traçada entre os
bois suscita uma escuta, e assim percebem-se bois pensantes e bois linguagem, ao perceber o
apelo (o sofrimento de Tiãozinho) surgido que os instiga a um agir. Incorporados à fala do
menino (imersos no chamado da linguagem), os bois falam:
― Se o carro desse um abalo maior... ― Se nós todos corrêssemos, ao mesmo tempo... ― O homem-do-pau-cumprido (Agenor Soronho) rolaria para o chão. ― Ele está na beirada... ― Está cai-não-cai, na beiradinha... ― Se o bezerro, lá na frente, de repente gritasse, nós teríamos de correr, sem pensar, de supetão... ― Namorado, vamos!!!...Tiãozinho deu um grito e um salto para o lado, e a vaca assobiou no ar... E os oito bois das quatro juntas se jogaram para diante, de uma vez... E o carro pulou forte, e craquejou, estrambelhado, com um guincho do cocão. ― Virgem, minha Nossa Senhora... Ôa, ôa, boi! ... Ôa, meu Deus do céu!... Agenor Soronho tinha o sono sereno, a roda esquerda lhe colhera mesmo o pescoço, e a algazarra não deixou que se ouvisse xingo ou praga ― assim não se pôde saber ao certo se o carreiro despertou ou não, antes de desencarnar. Tanto mais que, do cabeçalho ao chão, a distância é pequena; e uma rodeira de carro, bem ferrada, chapeada nas bandejas e com o aro ondulado de gomos metálicos, pesa no mínimo setenta quilos, mormente se, para cantar direito, foi feita de madeira de jacaré ou de peroba-da-miúda, tirada no espigão...15
A morte de Agenor, tal como a do boi Rodopião, foi uma das possibilidades da escuta
e da fala. Delineou-se a partir de um dizer-se, da saga, do apelo. Nesta consideração não há a
intensão de pugnar as possibilidades como infinitas ou finitas por ocorrências, mas a de
15 ROSA, op. cit., 2001a: 360-361
23
mencionar o acontecer possibilitado pela imersão na linguagem, do apelo manifestado na
saga. Já que a escuta e a fala são decorrências da linguagem, o diálogo dos bois ocorre devido
à imersão dos bois no plano da linguagem. Os bois pensantes instaurados e acionados pela
linguagem, ainda, compadecidos com o sofrimento do menino Tiãozinho, tornaram-se um e
desencadearam uma ação única ao estancarem, fazendo a carroça parar abruptamente e
derrubar Agenor Soronho que tratava o menino com vileza e hostilidade.
1.1.1 O DIZER E O NARRAR: A SAGA DO DIZER
O narrar de Sagarana se refere, de antemão, à própria etimologia do título do livro.
Saga vem do alemão sagen dizer. Além de remeter-se à narrativa lendária oriunda dos países
nórdicos. Enquanto que rana, sufixo tupi, refere-se a igual, semelhante, da mesma família.16
Desse hibridismo temos o dizer que diz pelo narrar em consonância. E assim, dizer o mesmo
sem dizer a mesma coisa. O narrar traz em si o dizer, já que é a manifestação do dizer pelo
contar. Em Sagarana fica patente essa percepção do narrar pela nascitividade narrativa de
cada conto. O narrar é a principal fonte do dizer. O que é dito se diz pelo narrar. A cada
narrativa há uma experiência do dizer que se delineia.
Uma das características do narrar é a possibilidade de dizer o novo. A reinvenção do
narrado. A narrativa da saga não pode dar-se como um elemento estático e fechado. Deve
apresentar-se em aberto. Para assim possibilitar a (re)criação.
Desde o início da “Conversa de bois” fica patente a saga do dizer:
Que já houve um tempo em que eles conversavam, entre si e com os homens, é certo e indiscutível, pois que bem comprovado nos livros das fadas carochas. Mas, hoje-em-dia, agora, agorinha mesmo, aqui, aí, ali, e
16 Grande dicionário etimológico - prosóico da língua portuguesa. SILVEIRA BUENO, Francisco da. 7º Volume, 2ª Tiragem. São Paulo: Saraiva, 1968. p. 3.615
24
em toda parte, poderão os bichos falar e serem entendidos, por você, por mim, por todo o mundo, por qualquer um filho de Deus?! ― Falam, sim senhor, falam!...― afirma o Manuel Timborna, das Porteirinhas, ― filho do Timborna velho, pegador de passarinhos, e pai dessa infinidade de Timborninhas barrigudos, que arrastam calças compridas e simulam todos o mesmo tamanho, a mesma idade e o mesmo bom-parecer; ― Manuel Timborna, que, em vez de caçar serviço para fazer, vive falando invenções só lá dele mesmo, coisas que as outras pessoas não sabem e nem querem escutar. ― Pode que seja, Timborna. Isso não é de hoje:... ‘Visa sub obscurum noctis pecudesque locutae. Infandum!...’ Mas, e os bois? Os bois também?... ― Ora, ora!... Esses é que são os mais!... Boi fala o tempo todo. Eu até posso contar um caso acontecido que se deu. Só se eu tiver licença de recontar diferente, enfeitado e acrescentado ponto e pouco... ― Feito! Eu acho que assim até fica mais merecido, que não seja.17
A trajetória do carro – de – bois é narrada por uma irara a Manuel Timborna que, por
sua vez, a narra ao narrador que a narra no conto. Há, portanto, uma nascitividade narrativa. A
cada narrar a história se revigora. Assim, os acontecimentos remetidos a um narrar adquirem
vigor pelo próprio contar.
Essa licença de narrar estabelecida é própria da linguagem. Temos a seguinte referência
de Heidegger:
No vigor da linguagem mostra-se uma multiplicidade de elementos e referências. Elas foram contadas mas não enumeradas em séries. Percorrendo-as, ou seja, contando-as no sentido originário de contar, que não conta com números, mostrou-se o anúncio de um mútuo pertencer. Contar é contar contos...18
Por certo, contar contos não é somente a simples remissão a fatos e ao uso da estrutura
da língua. Requer apreensão do caráter originário da saga. Em A caminho para a linguagem
temos que “a saga do dizer significa: mostrar, deixar aparecer, deixar ver e ouvir.”19. A saga é
um indício de que o narrar prevalece sobre o falatório, no sentido de que o mostrar-se do dizer
propõe um encaminhamento feito pela própria linguagem. O narrar não se restringe a contar
um enredo somente. Caso haja a compreensão da narrativa pelo viés do enredo, diminui-se o
próprio narrar, por encurtar toda a completude e complexidade do narrar ao encadeamento de
fatos numa circunstância narrativa. Desse modo, a saga não é um discurso, nem se divide em
enunciado e enunciação. Mas é o vigor da linguagem que doa linguagem ao narrar.
26
1.2 “SÃO MARCOS” E A PALAVRA
Não há como desvincular a palavra da linguagem. A palavra chama, clama, canta. A
palavra é dobra. Traz da ausência o aparente. A cada palavra proferida objetos surgem:
cadeira, árvore, prato, escova, livro etc. Heidegger diz o seguinte sobre o fragmento VIII de
Parmênides:
O mesmo é pensar e o pensamento de que o é é; pois sem o ente em que é, enquanto o que se exprime, não podes encontrar o pensar. Nada é e nada será outro fora do ente, pois a Moira o concatenou de modo a ser todo e imóvel. Por isso haverá de ser mero nome o que os mortais constataram, convencidos de ser verdadeiro: tanto ‘devir’ como ‘perecer’, ‘ser’ como ‘não-ser’, ‘deslocamento’ como mudança da cor brilhante.20
A relação entre pensamento e sentido está inserida na palavra. Longe da trivialidade
reina a palavra. Desse modo, em “São Marcos”, o descrédito inicial do narrador e personagem
José (no caso relatado pelo próprio narrador) demonstra sua descrença da feitiçaria, e,
conseqüentemente, do poder da palavra. O narrador relata que “naquele tempo eu morava em
Calango-Frito e não acreditava em feiticeiros”.21 Descrente de qualquer valia que possa ter
um feitiço, José, ao passar pela casa do feiticeiro, João Mangolô, em mais um de seus
passeios domingueiros pela mata, zomba dele, enfurecendo-o com o escarmento. Não atende
ao conselho de Nhá Rita Preta: “_ Se o senhor não aceita, é reino seu, mas, abusar, não deve-
de!”22.
No entanto, José, seguindo seu caminho mata adentro, fica cego. O acometimento da
cegueira ultrapassa os limites impostos por um olhar conceitual e lógico e põe, no mínimo,
uma interrogação à sua negativa.
20 Tradução feita a partir da tradução de W. Kranz, citada por Heidegger. HEIDEGGER,op. cit, 2001a: 205 21 ROSA, op. cit . 2001a: 261 22 Ibidem, p. 263
27
Sua experiência se dará sob o âmbito do indizível, no sentido de que não pode ser
simplesmente dito. Melo e Souza faz a seguinte menção ao indizível:
o que está para além do que é ou existe não é reconhecível, não é dizível. Pelo contrário, é a condição transcendental de todo conhecimento e de toda linguagem possível. Conseqüentemente, não é comunicável. Somente o caminho para o que está além de tudo que é ou existe pode ser preparado.”23
Por esse caminho indizível, o narrar, as palavras mostram-se em transcendência. Estão
para além do que existe.
Se as palavras causam feitiço, José não está muito certo. Como exemplo de casos de
feitiçaria, o narrador cita um relatado pela empregada:
Para escarmento, o melhor caso-exemplo de Sá Nhá Rita Preta minha criada era este: ‘... e a lavadeira então veio entrando, para ajuntar roupa suja. De repente, deu um grito horrorendo e caiu sentada no chão, garrada com as duas mãos no pé (lá dela!)... A gente acudiu, mas não viu nada: não era topada, nem estrepe, nem sapecado de tatarana, nem ferroada de marimbondo, nem bicho-de-pé apostemado, nem mijacão, nem coisa de se ver... Não tinha cissura nenhuma, mas a mulher não parava de gritar, e... qu’é de remédio?! Nem angu quente, nem fomentação, nem bálsamo, nem emplastro de folha de fumo com azeite-doce, nem arnica, nem alcanfor!... Aí, ela se alembrou de desfeita que tinha para a Cesária velha, e mandou um portador às pressas, para pedir perdão. Pois foi o tempo do embaixador chegar lá, para a dor sarar, assim de vôo... Porque a Cesária tornou a tirar fora a agulha do pé do calunga de cera, que tinha feito, aos pouquinhos, em sete voltas de meia-noite: ‘Estou fazendo fulana!... Estou fazendo fulana!...’, e depois, com a agulha: ‘Estou espetando fulana!... Estou espetando fulana!...’24
Mostrar-se ascético, não facilita a legitimidade de uma convicção (isso é possível!),
nem a simples negativa (isso não acontece!). Anterior a qualquer posição o adentrar-se no
caminho das palavras é veredas. O enigma, ao mesmo tempo em que chama uma resolução,
impele a um afastamento. As palavras carregam em si a recusa e a aceitação, também, o
condizer das coisas. De certo, é um mistério. E,
23 MELO E SOUZA, op. cit., p. 88 24 ROSA, op. cit., 2001a: 263
28
Sendo mistério, é distante. Sendo experiência de mistério, a distância é próxima. O suporte que sustenta distância e proximidade é o não recusar-se ao mistério da palavra. Para esse mistério não há palavras, ou seja, não há um dizer capaz de trazer à linguagem a essência vigorosa da linguagem.25
É o mistério das palavras acentuado pelo fato de que elas podem trazer a coisa para o
ser. A coisa chega a ser pela incandescência da linguagem. Ela não é sinônimo de escuridão,
posto que não depende de sinalizações esclarecedoras para seu abrasamento, mas depende da
eclosão da linguagem. A coisa é na linguagem. Na linguagem ela se apresenta como o que é.
O ser se ilumina ao habitar a linguagem. Pela linguagem, “a palavra disponível é o que
confere ser à coisa.”26 As palavras propõem vigência, articulam mundo e linguagem.
Afrânio Coutinho indica que “São Marcos”:
Constitui a primeira teorização de Guimarães Rosa a respeito da linguagem. O sentido prisco dos vocábulos é o seu sentido puro, originário; mas, além deste, existe o ileso gume, que pode ser compreendido como as conotações novas, originais, criadas pelo poeta, ou seja, a exploração que este faz das potencialidades do vocábulo. O sentido denotativo dos vocábulos, é como vimos, o conceito apenas, que se limita a refletir o fenômeno, o lado aparente da realidade. A fim de se aprender a essência das coisas (aquilo que se encontra oculto atrás da aparência exterior), é preciso transcender e explorar o ileso gume dos vocábulos. 27
Por certo, José lançar-se-á ao reino das palavras e faz uma ontologia sobre as palavras:
E não é sem assim que as palavras têm canto e plumagem. E que o capiauzinho analfabeto Matutino Solferino Roberto da Silva existe, e, quando chega na bitácula, impõe: ― ‘Me dá dez ‘tões de biscoito de talxóts!’ ― porque deseja mercadoria fina e pensa que “caixote” pelo jeitão plebeu deve ser termo deturpado. E que a gíria pede sempre roupa nova e escova. E que o meu parceiro Josué Cornetas conseguiu ampliar um tanto os limites mentais de um sujeito só bidimensional, por meio de ensinar-lhes estes nomes: intimismo, paralaxe, palimpsesto, sinclinal, palingenesia, prosopopese, amnemosínia, sublimal. E que a população do Calango-Frito não se edifica com os sermões do novel pároco Padre Geraldo (‘Ara, todo o mundo entende...’) e clama de saudades das lengas arengas do defunto Padre Jerônimo, ‘que tinham muito mais latim’... E que a frase ‘Sub lege
25 HEIDEGGER, op. cit., 2003: 187 26 Ibidem, 174 27 COUTINHO, Eduardo F. (Org.). “Guimarães Rosa e o Processo de Revitalização da Linguagem”. In: Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
29
libertas!’, proferida em comício de cidade grande, pôde abalar um motim potente, iminente. E que o menino Francisquinho levou susto e chorou, um dia com medo da toada ‘patranha’ ― que ele repetira, alto, quinze ou doze vezes, por brincadeira boba, e, pois, se desusara por esse uso e voltara a ser selvagem. E que o comando ‘Abre-te Sésamo etc.’ fazia com que se escancarasse a porta da gruta-cofre... E que, como ia contando, escrevi no bambu. 28
Este trecho, de certo modo, representa a teoria de linguagem da narrativa de
Guimarães Rosa. A gíria renova as palavras. O neologismo é experiência de linguagem, e
como tal mundifica o mundo, palavra que opera sentido. Por dar sentido ao mundo a palavra
tem poder. É um agir.
A metáfora do pássaro para a palavra alça vôo longínquo e, ao mesmo tempo, tão
próximo. Pois, ao ser pássaro, a palavra, na physis, é manifestação de si própria e da physis. A
physis não é uma entidade. Daí a ineficácia da palavra para dar-se exclusivamente com
funções. A palavra é doação da physis, não é propriedade humana. Tem canto e plumagem. É
physis e fala a physis, tal como o pássaro que está na physis. A palavra é um pássaro.
As palavras na saga não são meras palavras. Estão em transe constante apesar da
imutabilidade aparente. Enquanto parte de um sistema de língua, as palavras se apresentam
em expressões, contudo, enquanto linguagem, dizem mostrando, instaurando.
As palavras carregam mais que simples efeitos sonoros. Trazem consigo possibilidade
de presença. Como atestamos em Gênesis 1:3: “Disse Deus: Haja luz; e houve luz.”29 Há um
porquê, portanto, da aversão de Aurísio Manquitola à reza de São Marcos. Pois, as palavras
nomeadas evocam, já que “nomear é evocar para as palavras”.30 Ao nomear tornamos
próximos, presença o que falamos. Receoso com a força do nomear, Aurísio Manquitola diz
28 ROSA, op. cit., 2001a: 274-275 29 A BÍBLIA SAGRADA. Trad. João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. p. 3 30 HEIDEGGER, op. cit., 2003: 15
30
que “é melhor esquecer as palavras... Não benze pólvora com tição de fogo! Não brinca de
fazer cócega debaixo de saia de mulher séria!...”31
A palavra é imagem. A imagem torna-se presença na saga pela palavra. De valor
incalculável é saber que a imagem é physis. E, que, por isso, a vigência imagética na saga não
pode ser mera representação da natura, já que é operar. Inclusive, a palavra não representa,
mundifica. Outro fator importante é considerar que a imagem diz e mostra a physis.
E as superfícies cintilam, com raros jogos de espelho, com raios de sol, espirrando asterismos. E, nas ilhas, penínsulas, istmos e cabos, multicrescem taboqueiras, tabuas, taquaris, taquaras, taquariúbas, taquaratingas e taquaraçus. Outas imbaúbas, mui tupis. E o buritizal: renques, aléias, arruados de buritis, que avançam pelo atoleiro, frondosos, flexuosos, abanando flabelos, espontando espiques; de todas as alturas e de todas as idades, famílias inteiras, muito unidas: buritis velhuscos, de palmas contorciadas, buritis-senhora, e, tocando ventarolas, buritis-meninos.32
A saga é imagem. Octavio Paz menciona o seguinte sobre a imagem:
Toda frase possui uma referência a outra, é suscetível de ser explicada por outra. Graças à mobilidade dos signos, as palavras podem ser explicadas pelas palavras [...] O sentido da imagem, pelo contrário, é a própria imagem: não se pode dizer com outras palavras. A imagem explica-se a si mesma. Nada, exceto ela, pode dizer o que quer dizer. Sentido e imagem são a mesma coisa. Um poema não tem mais sentido que suas imagens.33
Podemos abranger o sentido da imagem do poema feito por Octavio Paz à prosa da
saga de Rosa. Já que as imagens, nesse caso, também falam por estar imersas na linguagem.
De certo, em “São Marcos”, há um desabrochar poético paralelo ao percurso pela
physis. A junção imagem e sonoridade dão-se na saga do dizer. O não ver, (acometimento da
cegueira) não impede a abertura de José a physis. O seu caminhar será travado pelo ouvir-
olhar, a ausculta da physis (sertão). Desnorteado pela falta de um sentido ― a visão, os sons
31 ROSA, op. cit., 2001a: 268 32 Ibidem, p. 278 33 PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p. 128 -133
31
tornam-se agudos, maiores e mais exteriorizados. A melodia advinda da physis norteia, ao
menos, indica um onde. Já que “µύθος é dizer, mas dizer no sentido de um, num apelo, fazer
aparecer” 34 A sonoridade do sertão acionará o espaço em que se encontra, trazendo consigo a
imagem. Dessa forma, ao perceber-se cego, abre-se à escuta da physis que, por sua vez,
mostra-se em variedades:
Continuava, porém, a debulha de trilos dos pássaros: o patativo, cantando clássico na borda da mata; mais longe, as pombas cinzentas , guaiando soluços; e, aqui ao lado, um araçari, que não musica: ensaia e reensaia discursos irônicos, que vai taquigrafando com esmero, de ponta de bico na casca da árvore, o pica-pau-chanchã. E esse eu estava adivinhando: rubro-verde, vertical, topetudo, grimpando pelo tronco da imbaúba, escorando-se na ponta do rabo também. Taquigrafia, sim mas, para tempo não perder, vão comendo outrossim as formiguinhas tarus, que saem dos entrenós da imbaúba, aturdidas pelo rataplã. E, pois, se todos continuavam trabalhando, bichinho nenhum tivera o seu susto. Portanto... Estaria eu... Cego?!... Assim de súbito, sem dor, sem causa, sem prévios sinais?... 35
Não adianta qualquer tipo de metodologia para traçar algum caminho que se apresente
como vigor, travessia quando inexiste experienciações. Mas, na physis, há a poiesis. O operar
da poiesis trará o vigor da linguagem, da palavra para o duelo poético entre José e Quem-
Será. Portanto, através do operar poético, José fará sua experienciação poética no bambual.
Ao travar a peleja poética contra “Quem-Será”, o originário da palavra torna-se
latente, o poetar, o nomear, já que é “poeticamente que o homem habita” e
Os nomes são palavras que apresentam. Os nomes são palavras que apresentam o que já é, entregando-o para a representação. Mediante essa força de apresentação, os nomes testemunham seu poder paradigmático sobre as coisas. O próprio poeta poetiza a partir de uma reivindicação de nomes.36
Neste ponto, José torna-se poeta tal como “Quem-Será” pelo poder nomeador das
palavras, no caso, os nomes dos reis. O nomear é conferir presença ao que se mostra pela
linguagem. Assim,
E eu, que vinha vivendo o visto mas vivando estrelas, e tinha um lápis na algibeira, escrevi também, logo abaixo: Sargon Assarhaddon Assurbanipal Teglattphalasar, Salmanassar Nabonid, Nabopalassar, Nabucodonosor Belsazar Sanekherib. E era para mim um poema esse rol de reis leoninos, agora despojados da vontade sanhuda e só representados na poesia. Não pelos cilindros de ouro e pedras, postos sobre as reais com as riçadas, nem pelas alargadas barbas, entremeadas de fios de ouro. Só, só por causa dos nomes. Sim, que, à parte o sentido prisco, valia o ileso gume do vocábulo pouco visto e menos ainda ouvido, raramente usado, melhor fora se jamais usado. Porque diante de um gravatá, selva molhada em jarro jônico, dizer-se apenas drimirim ou amormeuzinho é justo; e, ao descobrir, no meio da mata, um angelim que atira para cima cinqüenta metros de tronco e fronde, quem não terá ímpeto de criar um vocativo absurdo e bradá-lo ― Ó colossalidade! ― na direção da altura?37
A linguagem constitui o real, mas não o detém. Apesar dessa impossibilidade,
“nenhuma coisa é sem a palavra”38. O real é nomeado a partir de palavras, proposições,
orações etc. Difícil se torna apreender a linguagem em sua poeticidade, consentir com a
palavra poetizante. Carneiro Leão menciona o seguinte:
Falar a partir da Linguagem da poesia não é indicar uma outra linguagem dentro ou fora da estrutura de língua e discurso. Pois assim operando, já de-finimos a Linguagem como um objeto dentro ou fora de outro objeto, já de-finimos o dentro e o fora juntamente com sua indicação, como função de um objeto para com outro objeto. Ora, definir como objeto ou de-finir como função entre objetos, é a objetivação própria da representação. Sem dúvida desta mecânica não podemos prescindir. Mesmo quando falamos do mistério do homem, sempre operamos com signos e funções tais que vita e
vital, pessoa e pessoal, vivência e vivencial, existência e existencial, estrutura e estrutural etc.39
O jogo poético com “Quem-Será” é o vigor e, por que não, a vigência da poesia, a
vigência da linguagem, posto que
entre a revolução e a religião, a poesia é a outra voz. Sua voz é outra porque é a voz das paixões e das visões; é de outro mundo e é deste mundo, é antiga e é de hoje mesmo, antigüidade sem datas. Poesia herética e cismática, poesia inocente e perversa, límpida e viscosa, aérea e subterrânea, poesia da capela e do bar da esquina, poesia ao alcance da mão e sempre de um mais além que está aqui mesmo. Todos os poetas, nesses momentos longos ou curtos, repetidos ou isolados, em que são realmente poetas, ouvem a voz outra. É sua e é alheia, é de ninguém e é de todos. 40
E, no momento em que precisava de um guia, José lembrou-se da peleja poética no
bambuzal:
E assim,
para esquerda fui, contigo. Coração soube escolher. 41
Se, o momento é de cegueira, a palavra recolocada (oriunda do embate ocorrido no
bambual) leva-o ao caminho da luz. As palavras de um poeta não possuem um dono, nem
função pré-determinada. Pertencem àquele que, ao ouvi-las, torna-a sua. As palavras são na
linguagem.
Ainda na mata, José entoa a reza de São Marcos. Após entoar a reza, ele chega à casa
de João Mangolô. E volta a enxergar. Encolerizado, José esmurra João Mangolô, que se
explica, antes de travarem a paz:
39 CARNEIRO LEÃO, op. cit.,1977: 178-179 40 PAZ, Octavio. A Outra Voz. Trad. Wladir Dupond. São Paulo: Siciliano, 1993. p. 140 41 ROSA, op. cit., 2001a: 288
34
— Não quis matar, não quis ofender... Amarrei só esta tirinha de pano preto nas vistas do retrato, p’ra Sinhô passar uns tempos sem poder enxergar... Olho que deve de ficar fechado, p’ra não precisar de ver negro feio... Havia muita ruindade mansa no pajé espancado, e a minha raiva passara, quase por completo, tão glorioso eu estava. Assim, achei magnânimo entrar de acordo, e, com decência, estendi a bandeira branca: uma nota de dez mil réis. ― Olha, Mangalô: você viu que não arranja nada contra mim, porque eu tenho anjo bom, santo bom, reza-brava... Em todo o caso, mais serve não termos briga... Guarda a pelega. Pronto!42
Através do processo de auscultamento da physis, já com a visão recobrada, as cores
tornam-se mais perceptíveis, com as distinções de tons mais detalhadas do que antes da perda
da visão, para José:
Mas recobrara a vista. E como era bom ver! Na baixada, mato e campo eram concolores. No alto da colina, onde a luz andava à roda, debaixo do angelim verde, de vagens verdes, um boi branco, de cauda branca. E, ao longe, nas prateleiras dos morros cavalgavam-se três qualidades de azul.43
O trilhar de José convoca a experiência com a palavra. Octavio Paz expõe que “la
experiencia poética no es outra cosa que revelación de la condición humana, esto es, ese
trascenderse sin cesar en el que reside precisamente su libertad esencial”.44 Por certo,
na dobra que rege assim a Φάσις, o dizer enquanto o que convoca, reclama um fazer-aparecer. O que o dizer faz aparecer? O vigorar do que é vigente. O dizer que domina na dobra, que nela acontece apropriando-se do seu próprio, é a reunião integradora do que é vigente, em cujo brilho o vigente pode aparecer. O que Parmênides pensa como Φάσις, Heráclito chama de λόγος, o deixar propor que reúne e integra.45
Se a questão é quem sai vencedor, se a feitiçaria de João Mangolô ou o cepticismo
empírico de José, a grande vencedora, o grande galardão, é a palavra poética, pois “la palabra
42 ROSA, op. cit., 2001a: 291 43 Ibidem, p. 291 44 PAZ, Octavio. El arco y la lira. México: Fondo de Cultura Econômica, 1990. p. 191 45 HEIDEGGER, op. cit., 2001a:219
35
poética jamás es completamente de este mundo: siempre nos lleva más allá, a otras tierras, a
otros cielos, a otras verdades.”.46 A palavra poética não pode ser resumida como
representação de um mundo imediatista, fechado na pragmaticidade da vida circundante. Ela
deve ir mais longe. Para onde os caminhos são vastos e o trilhar experienciável.
No âmbito da linguagem, a palavra poética deve distanciar-se da pragmaticidade e
automatização. O vínculo unívoco e cristalizado entre forma e conceito imediataliza o uso da
língua e descaracteriza a possibibilidade de existência da linguagem e, portanto, delimita a
prodigiosidade da língua. E o nomear confere presença ao inaparente, inclusive, lança a
palavra para além do uso corrente, quando a palavra é utilizada em sentido inusual.
46 PAZ, Octavio. “La consagración del instante”. In: El arco y la lira. México: Fondo de Cultura Econômica, 1990. p. 190
36
1.3 LINGUAGEM E EXPERIÊNCIA DE UM BURRINHO PEDRÊS
Como experiência da linguagem insurge a saga. O dizer-se que, em si, traz o
narrar que revela. Portanto, a saga dimensiona-se para além do contar simplório e permite o
surgimento de um caminho narrativo experienciável. A palavra experienciação já transmite o
intento contido na saga: para além do limite. Da etimologia de peras temos “termo, fim, nó,
articulação, atravessar o limite”.47 Saber o limite, tal como o ilimitado, não é tarefa simples. A
linguagem é fonte para transmitir o experienciável.
No entanto, o experienciável torna-se presença enquanto linguagem na saga. A
linguagem, como a saga, mostra-se em vigência, em doação. Ambas ofertam possibilidade de
ser, de manifestar-se, de experienciar. Através da linguagem, a doação do homem, do ser pode
ser experienciável.
Da mesma forma, há o experienciável do burrinho pedrês ― Sete-de-Ouros. Em “O
burrinho pedrês” temos o relato de um dia da vida do burro Sete-de-Ouros. Após negócios,
donos e apelidos, o burro está na fazenda da Tampa de Major Saulo. Lá vive sua velhice:
O burrinho permanecia na coberta, teso, sonolento e perpendicular ao cocho, apesar de estar o cocho de-todo vazio. Apenas, quando ele cabeceava, soprava no ar um resto de poeira de farelo. Então dilatava ainda mais as crateras das ventas, e projetava o beiço de cima, como um focinho de anta, e depois o de baixo, muito flácido, com finas falripas, deixadas, na pele barbeada de fresco. E como os dois cavos sobre as órbitas eram bem um par de óculos puxado para a testa, Sete-de-Ouros parecia inda mais velho. Velho e sábio: não mostrava sequer sinais de bicheiras; que ele preferia evitar inúteis riscos e o dano de pastar na orilha dos capões, onde vegeta o cafezinho, com outras ervas venenosas, e onde fazem vôo, zumbidoras e mui comadres, a mosca do berne, a lucília verde, a varejeira rajada, e mais aquela que usa barriga azul.48
47 DICTIONAIRE ÉTYMOLOGIQUE DE LA LANGUE GRECQUE. Émile Boisacq. 3e édition. Livrarie C Klincksieck: Paris; Carl Winter: Heidelberg, 1938. p. 747 48 ROSA, op. cit., 2001a: 31
37
Em “O caminho para a linguagem” tem-se que “a linguagem, que fala à medida que
diz, cuida para que nossa fala, escutando o não-dito, corresponda ao seu dito”.49 Assim, o não-
dito se mostra, por confluência ao dito na linguagem. Devido ao fato de que este não-dito diz
também, sua depreensão é possível para quem esteja nas instâncias da linguagem. O não-dito
é perceptível, portanto. O dizer do não-dito necessita de ampla vivência e experiência da
linguagem.
A sabedoria, conhecimento do sertão, ligado à experiência e à vivência, também, à
retidão e à prudência, confere singularidade ao burrinho pedrês. Será através da sabedoria que
o burrinho pedrês conseguirá vivenciar o sertão e a si próprio. O burrinho pedrês não possui a
fala, no sentido de exteriorizar em língua oral ou escrita o pensamento, mas a todo o tempo
está imerso na linguagem, na experienciação do sertão. O não-dito torna-se dito, e é a
sabedoria, sua experimentação da linguagem, que o safará nos momentos difíceis. Em
nenhum momento Sete-de-Ouros se pronuncia, mas vivencia sua vida com sabedoria. Assim,
a linguagem fala no não-dito.
O atributo à vivência e à experimentação do circundante impede a concessão de
valoração pelos predicativos, em prol das ações. Não é de adjetivações e nomeações que uma
existência torna-se experienciável, como demonstra a saga do burrinho pedrês e se convalida
no seguinte fragmento do conto:
Mas nada disso vale fala, porque a estória de um burrinho, como a história de um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida. E a existência de Sete-de-Ouros cresceu toda em algumas horas ― seis da manhã à meia-noite ― nos meados do mês de janeiro de um ano de grandes chuvas, no vale do rio das Velhas, no centro de Minas Gerais. 50
O acréscimo de histórias relatadas, ao longo da narrativa, pelos boiadeiros são
experienciações vigentes no mundo sertanejo. São as estórias contadas por Raymundão: as
duas do boi Calundú e a do Leôncio Madurêra. E a contada pelo vaqueiro João Manico: do
pretinho saudoso da terra natal. Assim como a própria narrativa que vai tecendo-se. Contar
um conto torna-se tão importante quanto o conto em si, “a linguagem fala dizendo, ou seja,
mostrando”51. Dessa forma, ao escutar (tomar perceptível) aquilo que se diz mostrando-se, o
burrinho torna sua existência experiência, comporta todas as falas do mundo por ser
experienciação do real. É um burrinho em travessia. E disso sabe muito bem. Para levar a
boiada de 460 bois para a estação do arraial para que sigam viagem, o burro Sete-de-ouros
serve também como montaria:
Mas tinha cometido um erro. O primeiro engano seu nesse dia. O equívoco que decide do destino e ajeita caminho à grandeza dos homens e dos burros. Porque: ‘quem é visto é lembrado’, e o Major Saulo estava ali: ― Ara, veja, louvado tu seja! Hô-hô... Meu compadre Sete-de-Ouros está velho... Mas ainda pode agüentar uma viagem, vez em quando... Arreia este burro também, Francolim! 52
Como parte do real, o burrinho pedrês não apresenta resposta e nem pergunta. O seu
caminho é o experienciar. Como integrante da physis, o burrinho interage com o meio
circundante. Nesta ação integradora, ele se diz no narrável do não falado. Em seu agir próprio
mostra-se:
Já encabrestado, Sete-de-Ouros não está disposto a entregar-se: ‘Vai, mas custa’!, quando outros o irritam, é a divisa de um burricoque ancião. Com rapidez, suas orelhas passam à postura vertical, enquanto acompanha o homem, com um olho de esguelha, a fito de não errar o coice. João Manico anda-lhe à roda, aos resmungos. Põe-lhe o baixeiro. Depois, pelo certo, antes de arrear, bate na cabeça do burrinho, como Deus manda. Sete-de-Ouros se esquiva à clássica: estira o queixo e se acaçapa, derreando o traseiro e fazendo o arreio cair no chão. Então o vaqueiro se convence de que precisa de mostrar melhores modos: ― Eh, burrinho, acerta comigo, meu nego. Assim, Sete-de-Ouros concorda (...)53
A doação da linguagem é caminho (hodós). Caminho que se faz ao andar,
experienciar. O percurso de Sete-de-Ouros é marcado pela sabedoria do burrinho. O caminho
a ser percorrido tem seus passos certeiros, que são medidos pela sabedoria, a retidão prudente.
O burrinho se manifesta através de sua experimentação do sertão, ou seja, de seu caminho
traçado. Mas, para seguir um caminho, não existe medida, pois o caminho não deve
apresentar-se como uma trilha intransponível, mas de acordo com a experiência desmedida,
tal como assinala os seguintes versos de Hölderlin:
Deve um homem, no esforço mais sincero que é a vida, levantar os olhos e dizer: assim quero ser também? Sim. Enquanto perdurar junto ao coração a amizade, pura, o homem pode medir-se sem infelicidade com o divino. É deus desconhecido? Ele aparece como o céu? Acredito mais que seja assim. É a medida dos homens. Cheio de méritos, mas poeticamente o homem habita esta terra. Mais puro, porém do que a sombra da noite com as estrelas, se assim posso dizer, é o homem, esse que se chama imagem do divino. Existe sobre a terra uma medida? Não há
Nenhuma.54
Linguagem é experiência, não é uma medida precisa, não possui fórmula, nem
forma, nem funcionalidade. A linguagem é ilimitada, tal como a experiência. O conto em
questão ergue o narrar como experiência de vida, do sertão. A experienciação da vida oferta
um caminho ao burro. Com seu método, a existência não é vã. Não só sua vida é narrada,
como todo o sertão como morada. O mundo sertanejo também lhe é experienciado. Se cada
um tem seu caminho (hodós), a doação dá-se a partir da linguagem, da experiência. Sete-de-
Ouros revela-se sempre “alheio” em sua trajetória por já possuir o seu caminho:
Enquanto isso tudo, na coberta do Reynéro, ali perto, afrouxadas as barrigueiras e tirados os freios, os cavalos descansavam. Longe dos outros,
54 Apud HEIDEGGER, op. cit., 2001a: 171
40
deixado num extremo, no canto mais escuro e esquerdo do telheiro, Sete-de-Ouros estava. Só a sério. Sem desperdício, sem desnorteio, cumpridor de obrigação, aproveitava para encher, mais um trecho, a infinda lingüiça da vida. 55
Ter caminho é ser sábio. Porque se supõe que houve um momento de escolha. Através
da compreensão da experienciação, a trajetória se define. Apreender aquilo que foi, o que é e
o que será intercede na própria vivência, no trajeto que é formado e que partiu de um
momento inicial. O caminho leva sempre a um destino. Pois, o caminho é acontecimento
apropriador. Pelo trilhar, percebe-se, de antemão, que algumas vias surgem para serem
atravessadas. Neste caso, necessita-se de escolhas. Quando se adota um método, o agir
direciona-se. Essa necessidade de direção não deve ser confundida com a adoção de um
dogma. Cada um que possui um caminho próprio é dotado de sabedoria. É o que ocorre com o
paciente Sete-de-Ouros ao movimentar-se em meio à enchente anunciada:
[...] Pequenas ondas davam sacões, lambendo Badú. Escurão. O burrão pára. O mundo bóia. Mas Sete-de-Ouros esperou foi para deixar passar, de ponta, um lenho longo, que vinha com o poder de uma testa de touro. Desceu, sumiu. Em cima, no céu, há um pretume sujo, que nem forro de cozinha. Noite ruim. Agora, atrás, passa um bolo de folhas e galhos, danisco, que ainda agarra Badú, com uma porção de braços, empurrando. Força de mão, para jogar para lá essa coisama! Paz, que já virou, graç’a a deus, também. ― ‘Me molhou todo, rasgou minha roupa, diabo!... Goiabeira, pelo cheiro... Fosse um imbaré ou um pau de espinho, me matava!’... ― Lhó...lhó...lhó... ―vão devagar, as braçadas de Sete-de-Ouros. Vestindo água, só saído o cimo do pescoço, o burrinho tinha de se enqueixar para o alto, a salvar também de fora o focinho. Uma peitada. Outro tacar de patas. Chu-áá! Ch-áa... ― ruge o rio, como chuva deitada no chão. Nenhuma pressa. Aqui, por ora, este poço doido, que barulha como um fogo, e faz medo não é novo: tudo é ruim e uma só coisa, no caminho: como os homens e os seus modos, costumeira confusão. É só fechar os olhos. Como sempre. Outra passada, na massa fria. E ir sem afã, à voga surda, amigo da água, bem com o escuro, filho do fundo, poupando forças para o fim. Nada mais, nada de graça; nem um arranco, fora de hora. Assim. [...] Aí, nesse meio-tempo, três pernadas pachorrentas e um fio propício de corredeira levaram Sete-de-Ouros ao barranco de lá, agora reduzido a margem baixa, e ele tomou terra e foi trotando. Quando estacou, sim, que não havia um dedo de água debaixo dos seus cascos. E, ao fazer alto, despediu um mole meio-coice. Francolim ― a pé, safo. Badú agora dormia de verdade, sempre agarrado à crina. Mas Sete-de-Ouros não descansou. Retomou a estrada, e, já noite alta, quando chegaram à
55 ROSA, op. cit., 2001a: 76
41
Fazenda, ele se encostou, bem na escada da varanda, esperando que o vaqueiro se resolvesse a descer. Ao fim de um tempo, o cavaleiro acordou. Bradou nomes feios, e começou a cantar um ferra-fogo ― dança velha, que os negros tinham de entoar em coro, fazendo de orquestra para o baile dos senhores, no tempo da escravidão. Aí, os camaradas que dormiam no paiol grande despertaram com algazarra, vieram desmontá-lo, e carregaram com ele, para curtir a bebedeira num jirau. Depois, desarrearam o burrinho.56
. Saga é o dizer que se mostra. No entanto, o experienciável nem sempre, está dito:
Assim também o silêncio, que se costuma considerar como origem da fala, é prontamente um
corresponder. O silêncio corresponde à consonância do quieto, ela mesma sem som, inerente à
saga do dizer, que repousa no acontecimento apropriador, é o modo mais próprio de tornar
próprio. O acontecimento apropria em dizendo.57
É o acontecimento que diz, que traz o mostrar-se como plenitude (telos), o símbolo da sabedoria. Assim, Sete-de-Ouros circunscreve-se em um resguardo que culmina num “acontecimento apropriador”. A sabedoria “surge da plenitude do homem frente ao real, à vida.58
No ensaio “A poética de Wolfgang Borchet e a experiência da guerra”, a sabedoria
designa a experiência vivida e a narrada como alicerces para a existência. Walter Benjamin,
ao fazer considerações sobre o narrador, refere que “o conselho tecido na substância viva da
existência tem um nome: sabedoria”59. De modo que “a vida com sentido se apreende e
compreende como sabedoria. O mergulho da narrativa sempre se dá num fluxo rico de
vivências.”60 Neste imbricado narrar não é somente um ato locutório, pois confere sentido à
existência, através da eclosão da linguagem com a existência. Por ver a vida e literatura como
um, Guimarães Rosa acentua sua opção pela saga em entrevista a Günter Lorenz:
56 ROSA, op. cit., 2001a: 94-95 57 Ibidem, p. 211 58 CASTRO, Manuel. “A poética de Wolfgang Borchert e a experiência da guerra”. In: Caderno de Letras. No. 13. UFRJ. pp. 81-93. p.87. 59 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 200 60 CASTRO, op. cit, p. 84.
42
Descobri que a poesia profissional, tal como se deve manejá-la na elaboração de poemas (visão da poiesis como algo acabado, longe da essência do agir), pode ser a morte da poesia verdadeira. Por isso, retornei à ‘saga’, a lenda, ao conto simples, pois quem escreve estes assuntos é a vida e não a lei das regras chamadas poéticas. Então comecei a escrever Sagarana.61
A saga faz aparecer, mas o simples ato de pronunciamento não encontra sempre um
mostrar. Devem existir diálogo e interpretação para que isso ocorra: saber o quanto nos cabe
do sertão (da linguagem). Assim,
O não dito é o ainda não mostrado, o ainda não chegado ao aparecer. Mas graças ao dizer, o ente presente ascende à aparência (i. é; ao aparecer): está presente e como; e no dizer vem também à aparência o ausente como tal. Todavia, o homem não pode verdadeiramente dizer, isto é, mostrar e fazer aparecer senão aquilo que se mostra a ele de si próprio, que aquilo que de si próprio aparece, se manifesta e se dirige a ele.62
Desse modo, a sabedoria de Sete-de-Ouros se explicita antes mesmo da enxurrada,
quando ainda estava no início da viagem e a consideração de que era um velho burro era
descartada:
E certo: Sete-de-Ouros dava para trás, incomovível, desaceitando argumentos e lambadas de Piraí. Que, também, burro que se preza não corre desembestado, como um qualquer cavalo, a não ser na vez de justa pressa, a serviço do rei ou em caso de sete razões. E já bastante era a firmeza com que se escorava nas munhecas, sem bambeio nem falseio ― ploque-plofe, desferrado ―, ganhando sempre a melhor trilha.63
A trajetória de Sete-de-Ouros é uma aprendizagem. O burrinho pedrês é um aprendiz
de mundo. Heidegger menciona que
,61 LORENZ, Gunter W. Diálogo com a América Latina: panorama de uma literatura do futuro. Trad. Rosemary Costhek Abílio e Fridey Souza Rodriguez. São Paulo: E. P. U., 1973. p. 326 62 HEIDEGGER, Martin. Língua de tradição e língua técnica. Trad. Mário Botas. Lisboa: Veja, 1970. p. 34-35 63 ROSA, op. cit., 2001a: 60
43
Aprender significa tornar-se quem sabe. Quem sabe é em latim qui vidit, quem viu e entreviu alguma coisa, de modo a não perder de vista o que viu. Aprender significa: alcançar essa visão. Para isso é preciso alcançar, estando a caminho, numa travessia. Fazer uma travessia, atravessar na ex-periência significa: aprender. 64
Portanto, em meio às dificuldades que se impunham a sua fronte, Sete-de-Ouros, pelo
ver e entrever faz de seu caminhar um caminho de aprendizagem.
O real entendido tecnicamente não dimensiona a physis. Esta, enquanto Real, vela e
desvela, como demonstra o seguinte trecho em que a cheia se anunciava:
Mas o Major Saulo largava, sem responder, rindo longe, rumo aos vaqueiros: lá junto á cerca, com os cavalos formados em fileira, com um esquadrão de lanceiros. ― ‘Olha sô, vai trovejar...’ E Leofredo mostrava o gado: todos inquietos, olhos ansiosos, orelhas erectas, batendo os parênteses das galhas altas. ― ‘Não é trovoada não. São eles que estão adivinhando que a gente está na horinha de sair...’ Mas, nem bem Sinoca terminava, e já, morro abaixo, chão a dentro, trambulhavam, emendados, três tons de trovões. Aí, a multidão se resolveu, instantânea, e uma onda de corpos cresceu, pesada, quebrou-se num dos lados do curral e refluiu para a banda oposta. Em pânico, procuravam a saída. 65
Por certo, a recusa dos bois em seguir adiante se revelava pela escuta da fala da physis,
do sertão. Pois, “a renúncia aprendida não é simplesmente a recusa de uma reivindicação e
sim a transformação do dizer e sua saga na ressonância, quase velada, extasiante e cancioneira
de um dizer indizível.”66 Apesar das insinuações da enxurrada vindoura, nem todos abriram-
se ao dizer : “a palavra, a linguagem pertencem ao âmbito dessa paisagem misteriosa onde a
saga poética do dizer delimita a fonte cheia de destino de linguagem”67. Não experienciar a
linguagem é não ter destino, caminho, nem sabedoria. É evadir-se pelo turbilhão das águas:
Hora de não olhar o imenso vulto montanhoso, máquina de trem-de-ferro ― terra tremendo e ar tremendo ― para não ver a cabeça, vertiginosa, que aumenta de volume, com um esboço giratório e mil maldades na carranca. Olhar para a ponta da vara, apenas...68
Traçado seu caminho, encontra-se o burro na mansidão, longe do turbilhão das águas,
sereno:
Folgado, Sete-de-Ouros endireitou para a coberta. Farejou o cocho. Achou milho. Comeu. Então, rebolcou-se, com as espojadelas obrigatórias, dançando de patas no ar e esfregando as costas no chão. Comeu mais. Depois procurou um lugar qualquer, e se acomodou para dormir, entre a vaca mocha e a vaca malhada, que ruminavam, quase sem bulha, na escurdão. 69
A experienciação do sertão pelo burro, bem com a sabedoria, o livrou de ir tomado
pela enxurrada. Com a retidão prudente, o burrinho deu seus passos. Seu método almejou o
alvo, pois se pôs à margem das águas. Sete-de-Ouros,“velho e sábio”, deambulante do sertão,
tem sua saga apreendida por um dia de vida. Sua sabedoria não é atribuída à velhice, ou seja,
à passagem dos anos, mas é decorrente da experiência adquirida ao longo de sua vivência e de
suas ações ponderadas frente às ações. A saga mostra pelo narrar o burrinho pedrês, antes de
qualquer consideração, dotado de sabedoria.
68 ROSA, op. cit., 2001a: 64 69 Ibidem, p. 97
45
CAPÍTULO II
NO ÂMBITO DA MEMÓRIA
A memória não se refere unicamente a um fato passado, esquecido, ausente, que se
torna presente. Não se adequa a uma aparelhagem funcional. Não é um mero dispositivo à
disposição para qualquer hora do dia ou para qualquer vontade. Mais que a relação intrínseca
ao fato ocorrido no passado, a memória possibilita que o passado se faça presente, e possa
encadear um futuro. Por não se estagnar no passado, e permear os tempos verbais,
desprendida de conceito temporal separador e segmentado, a memória agrega consigo não
somente o passado, o presente e o futuro, também, a possibilidade de manifestação em
plenitude. A memória, portanto, mostra o desvelo do ente e o revela.
Se a escrita pode tornar a memória obsoleta, por cogitar-se que a letra pode condizer a
tudo que se deu no âmbito da memória, entendido somente aos feitos de outrora, como indica
o mito de Toth, não condiz, contudo, a toda a dinamicidade do articular-se da memória.
Esquecido o dinamismo, a presentificação da memória nada mais seria que um simples
retorno de um fato fechado em si mesmo. Nada mais seria que a remissão a um fato, quem
sabe até perdido, ou seja, não esquecido, que simplesmente surge a fim de suprir a
necessidade de aparecer como passado, fato consumado. A abertura à possibilidade de
presentificação e desenvolvimento em um futuro, antes atemporal, não se triparte em
momento algum.
A dinâmica da verdade não é segregadora, pois objetiva a instauração como presença.
Se a remissão aos atos passados é finalidade, a memória seria somente o resgate do
acontecido, sem consideração ao presente que se dá e ao futuro que se projeta. O presente
também não pode ser entendido somente como o tempo de agora, mas também como a
presentificação da memória, já que ela não apresenta, necessariamente, ruptura com o fato que
46
acontece, que está ocorrendo. O futuro não está tão longe assim como se possa imaginar. Ele
se encontra tão perto que chega a esbarrar no passado. Da presentificação, a memória vigora e
presentifica-se enquanto instância originária pelo desvelar incandescente.
A memória funda mundo. Não é antes um fundamento por conhecimento. Mas uma
instauração que mostra e permite a aparição em tempo-espaço. Sem desejo de dicotomizar o
tempo e o espaço, a aparição da memória pode confundir-se com a noção de história, esta
ligada aos fatos passados. Contudo, a memória espacializa o tempo e temporaliza o espaço.
Por possibilitar a presença, o espaço do tempo não é deslocamento, mas instauração. O tempo
do espaço não é cronológico, mas vivencial.
O fundamento da memória não se estagna pelo número de vezes em que ocorre a
instauração da presença, tampouco pela distância existente entre a espacialização e a
temporalização. Como presença, a memória configura espaço e tempo além de espaço
percorrido e tempo passado. No âmbito da memória, a segregação temporal não encontra
fundamento de existência separatista. Passado, presente e futuro se unem em vigência da
memória, em cujo lugar a atemporalidade não significa ausência, mas presença instauradora.
A história de um povo, entendida como mundo instaurado, é a revelação deste povo. O
fundamento poético, vivenciado, é possibilidade de existência, no sentido de que a
fundamentação não possui como preocupação o acabamento, o esgotamento, o encerramento.
Em vistas que Sagarana revela um mundo de existência poética, no vigor da linguagem, a
história aqui não se apresenta como um firmamento atribuído ao fato passado. E o próprio
Guimarães Rosa, em seu livro Tutaméia, considera que escreve estórias, faz um legado,
portanto, de sua criativa narrativa.
A memória, longe de uma convenção estabelecida para contrapor-se ao esquecimento,
é vigoramento do acontecimento. Não no sentido de trazer de volta o elemento ido, mas de
presentear com o desocultamento a possibilidade de existência. A contraposição entre
47
recordação e esquecimento, não é dado, unicamente, subjetivo, se há consideração de que o
povo institue memória em suas fábulas, mitos, poemas, músicas, narrativas, obras de arte. A
memória é, portanto, instância inaugural. Onde ela converge ergue-se um monumento, a fim
de que a lembrança seja uma marca de sua presentificação.
48
2.1 A VIGÊNCIA DA MEMÓRIA EM “SARAPALHA”
Rio profundo. Ascende da profundidade à superfície. Transparece-se. Agora é
superfície. A memória instaura-se na medida em que surge não um novo mundo, mas aquele
adormecido que sempre lá esteve. Mostrar-se a um tempo é estar na memória, já que para
adentrar-se nela ser e tempo são um. 70 Ademais, em Heidegger temos que “Ser e tempo
pertencem um ao outro de maneira originária.”71 Originária também é a memória. E por
origem não entendemos um início fixo, mas a capacidade de inaugurar-se continuamente,
não, necessariamente, fazendo-se outro. Tornar presença aquilo que outrora se mostrava
ausente.
A presentificação traz à tona aquilo que um dia foi percebido. A memória presentifica-
se. À seguinte citação de Octavio Paz sobre a imagem: “imagem reproduz o momento de
percepção e força o leitor a suscitar dentro de si o objeto um dia percebido”72, relaciona-se
imagem à memória. Esta leva a uma reinauguração. Este reinaugurar-se é mais que uma
reprodução sistemática e um vir à mente porque não condiz com a reprodução de um fato.
Mas liga-se aos sentidos. A sinestesia da memória não é reprodução, mas linguagem
sensorial.
A questão da imagem é abordada, também, por Henri Bergson em Matéria e
Memória73. Em todos os capítulos a questão da imagem mostra-se relevante em Bergson
relacionando-a à memória. Ele considera o corpo uma imagem e, como tal, recebe ainda
70 GUIMARAENS, Maluh. “A conversão proustiana do tempo perdido no tempo redescoberto”. In: Revista da Faced. No 05. 2001. p. 178. 71 HEIDEGGER, Martin. Heráclito: a origem do pensamento ocidental: lógica: a doutrina heraclitica do logos. Rio de Janeiro: Relume Dumará,1998. p. 74 72 PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p. 132 73 BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Trad. Paulo Neves. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Coleção tópicos.
49
imagens que lhe são exteriores. A imagem-corpo sofre influência das imagens exteriores,
que “lhe transmitem movimento”74.
A memória instaura o Real. Como corpo-imagem torna-se presença. A mobilidade das
imagens externas junto à imagem-corpo apresenta-se na memória, pois a memória não é
estática, no sentido de que não é um feixe de situações planeadas, mas sim de articulações
interpostas ou não por ações. Bergson ao considerar que as imagens exteriores, o mundo,
transmitem movimento ao corpo, que também é considerado uma imagem, deixa a indicar
que a memória não se move no âmbito da estaticidade. É dinâmica. E as relações marcadas
pelos tempos presente, passado e futuro tornam-se complexas.
Em “Sarapalha” a passagem da malária pelo lugarejo deixa marcas. Assim:
E aí, então, taperização consumação, quando o fedegoso em touças e a bucha em latadas puderam retomar seu velhíssimo colóquio, o povoado fechou-se em seus restos, que nem o coscorão cinzento de uma tribo de marimbondos estéreis. 75
As marcas da sezão são reminiscências. Lembranças. Os primos Ribeiro e Argemiro
despertarão o vigor da memória a partir de Luísa. Temos, então, a memória em um lugar
privilegiado no conto “Sarapalha”. A memória, portanto, não se extingue, no sentido de que
seu vigoramento a torna presente apesar das interrupções de tempo e espaço.
A memória estende a lembrança. Como pilar que se projeta, a lembrança se instaura no
vigor da memória. Não adentraremos na questão da origem da lembrança. Tampouco lhe
será atribuído nomenclatura especial ou significado científico. Somente a relacionamos à
memória por dela ser parte integrante, já que a lembrança é entificação da memória, posto
que se projeta como um pilar construído pela memória que preserva sua dinamicidade
devido à memória ser sempre passível de instaurá-la. Ao ser entificada pela memória, a
qual, como presença constituidora, se estende fora de uma adequação temporal, a lembrança
se projeta e se irrompe. Por ser revigoramento da memória, a lembrança é prontificada pelo
surgimento do imanente naquilo que a memória espacializa.
A malária temporaliza-se e espacionaliza-se. A imagem espacializada da malária é
memória. Em seu próprio vigorar, a memória se torna presença no tempo e no espaço. A
memória não deve ligar-se ao pretérito somente, mas ao tempo presente, no sentido de que
torna presença. Ela não é um instrumento em que o passado ressurge simploriamente. É
presente. É futuro. Presentificação. Os tempos verbais não apreendem a memória
isoladamente, já que ela escapa de qualquer ordem. Seja cronológica. Seja física. Pois, a
memória antecede o passado, resgata o presente e ultrapassa o futuro. Compará-la a uma
máquina de volta ao passado somente menoscaba o seu vigor.
Mnemósine, mãe das musas, é memória encarnada. Recitando Hesíodo, ela sabe o que
foi, o que é e o que será.76 Por certo, sendo a memória onisciente, sua fragmentação em
passado, presente e futuro mostra-se irrisória. Antonio Jardim, em Música: vigência do
pensar poético, menciona que Mnemósine, unida a Zeus, o auxilia na vitória obtida sobre
Cronos. E possibilita a imortalização de Zeus e de seus feitos. Assim,
A memória, no mínimo, passa a ser condição de possibilidade da constituição de um tempo que se conforma para além de uma noção de tempo mais imediata, mais comprometida com plano meramente ôntico. A memória se configura, nesse caso, numa dimensão ontológica e transcendente, e significa também sinal ou monumento comemorativo (µνη�µα), assim se coloca na dimensão do extra-ordinário, isto é do que foge ou rompe com a ordinariedade. É essa medida que a memória é por excelência um constituidor de mundo. Ela é capaz de mundanizar e mundaniza, precisamente, na medida em que é possibilidade de transcendência de uma imersão completa no âmbito da natureza. É pela memória que se configura a possibilidade do estabelecimento da cultura.
76 HESÍODO. Apud JARDIM, Antonio e. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005. p. 127
51
É colhendo e recolhendo que se estabelece a possibilidade da vigência do habitar.77
A memória como vigência do habitar propicia a instauração espaço-temporal. No
entanto, é a temporalização ontológica que se faz presença. Em Ser e tempo, Heidegger
explicita sobre a questão que envolve o tempo e o ser. No ensaio “O que quer dizer
pensar?”, Heidegger menciona que a “memória é a concentração do pensar da lembrança
daquilo que, antes de tudo e antes de mais nada, cabe pensar.”78 A memória condensa o
pensar, por ser reunião do pensado como aponta a etimologia da palavra alemã para
memória: Gedächtnis, formada pelo prefixo ge que se refere à concentração, reunião e
dächtnis, que é composta pelo particípio do verbo pensar denken, gedacht.79 Para a memória
converge o passado que se presentifica na dinâmica do pensamento.
A imagem é espaço-temporalidade. Afirmamos que o homem enquanto imagem
também assinala tempo e espaço. Ser do homem ocorre em tempo e espaço. Não o
cronologicamente marcado, mas sim o ontológico. Nesta ontologia, o não-ser, o culto
mostra-se também. A “imagem se confunde com o próprio ser: ela é irrevelada, porém
manifesta, o nada que é tudo, o que se desoculta, ocultando-se, e se oculta, desocultando-
se”. A imagem, portanto, ao tornar-se memória traz consigo o caráter indelével contido em
alétheia. Longe de tachar a memória como um ato constituinte de verdade, contraposto à
mentira, quer-se ater atenção para o desocultamento presente na memória. JAA Torrano
menciona que
Como desocultação é que os gregos antigos tiveram a experiência fundamental da Verdade. A palavra grega alétheia, que a nomeia, indica-a como não-esquecimento, no sentido em que eles experimentaram o
77 CASTRO, op. cit., p. 127-128 78 HEIDEGGER, op. cit., 2001a: 118 79Etimologia apresentada em nota por Gilvan Fogel na tradução de Ensaios e conferências de Heidegger. p. 118
52
Esquecimento não como um fato psicológico, mas como uma força numinosa de ocultação, de encobrimento.80
O não esquecimento é, por excelência, um dos atributos principais atribuídos à idéia de
memória. A quem não está imerso no rio Lete, subentende-se que leva consigo a memória,
por não ter esquecido o que havia passado. Não encobrir o passado é um modo de trazer
para a presença, para a desocultação. Ao mover-se no âmbito da experiência da verdade, a
memória desvela. Assim, o caráter desvelador, de desocultar da memória é muitas vezes
ligado aos sonhos segundo determinadas vertentes teóricas. O estudo dos sonhos é
preconizado por determinados teóricos. No entanto, não adentraremos nesta questão.
Da relação estabelecida entre memória e esquecimento, Antonio Jardim menciona que
“é na dinâmica estabelecida por esquecimento e memória, na intermitência e nos interstícios
deixados abertos por essa dinâmica, que pirilampeja a verdade, o ser, a própria vida.”81 De
modo que a memória é vida para os primos Argemiro e Ribeiro do conto “Sarapalha”.
Assim como, a lembrança de Luísa, ex-mulher de Ribeiro chega à narrativa, demonstrada no
seguinte trecho:
— Escuta, Primo Ribeiro: se alembra de quando o doutor deu a despedida p’ra o povo do povoado? Foi de manhã cedo, assim como agora... O pessoal estava todo sentado nas portas das casas, batendo queixo. Ele ajuntou a gente... Estava muito triste... Falou: — “Não adianta tomar remédio, porque o mosquito torna a picar... Todos têm de se mudar daqui... Mas andem depressa, pelo amor de Deus!”... — Foi no tempo da eleição de seu major Vilhena... Tiroteio com três mortes...
— Foi seis meses em-antes-de ela s’embora...
— De branco a mais branco, olhando espantado para o outro, Primo Argemiro se perturbou. Agora está vermelho, muito.
Desde que ela se foi, não falaram mais no seu nome. Nem uma vez. Era como se não tivesse existido. E, agora...
80 TORRANO, JAA. “O mundo como função das musas”. In: Teogonia. A origem dos deuses. Estudo e tradução: JAA Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1992. p. 25 81 JARDIM, op. cit., p. 132
53
— É isso, Primo Argemiro... Não adianta mais sojigar a idéia... Esta noite sonhei com ela, bonita como no dia do casamento... E, de madrugadinha, inda bem as garrixas ainda não tinham pegado a cochichar na beirada das telhas, tive notícia de que ia morrer... Agora mesmo, ’garrei a ’maginar: não é que a gente pelejou p’ra esquecer e não teve nenhum jeito?... Então resolvi achar melhor deixar a cabeça solta... E a cabeça solta pensa nela, Primo Argemiro...
— Tanto tempo, Primo Ribeiro...
— Muito tempo...
— O senhor sofreu muito! E ainda a maldita da sezão...
— A maleita não é nada. Até ajudou a gente a não pensar...82
Antes de trazerem à memória a figura de Luísa, o sentimento de ambos mantinha-se
encoberto, velado. Encontrava-se em esquecimento. Após a volta, a presença de Luísa
graças à memória, recordação, desvela-se o sentimento dos primos.
A memória ao presentificar-se como imagem suscita história. Os fatos ocorridos em
um espaço de tempo passam, mas deixam vestígios, reminiscências. Como a anunciada
chegada da malária no arraial, que é narrada longe de uma historiografia. Assim,
Tapera de arraial. Ali, na beira do rio Pará, deixaram largado um povoado inteiro: casas, sobradinho, capela; três vendinhas, o chalé e o cemitério; e a rua, sozinha e comprida, que agora nem mais é uma estrada, de tanto que o mato a entupiu.
Ao redor, bons pastos, boa gente, terra boa para o arroz. E o lugar já esteve nos mapas, muito antes da malária chegar.
Ela veio de longe, do São Francisco. Um dia, tomou caminho, entrou na boca aberta do Pará, e pegou a subir. Cada ano avançava um punhado de léguas, mas perto, mais perto, pertinho, fazendo medo no povo, porque era sezão da brava — da ‘tremedeira que não desamontava’ — matando muita gente.83
À historiografia não cabe suscitar o que é possível pela memória. É importante
ressaltar que “tapera” no tupi significa aldeia extinta. Ainda, a insuficiência à ordenação dos
fatos está presente em “Sarapalha”. Manuel de Castro em O acontecer poético: a história
82 ROSA, op. cit., 2001a: 160 83 Ibidem, p. 151
54
literária menciona que é próprio da historiografia enumerar e ordenar os fatos. A pesar da
aparente enumeração cronológica em “Sarapalha” (narra-se a chegada da malária em um
povoado e a vivência de dois primos), há a quebra de qualquer ordem ou enumeração de
fatos no conto. Há um caminhar aparentemente retilíneo, que, no entanto, é suplantado pela
memória, a qual funde ao tempo da narrativa o tempo passado rememorado.
Manuel de Castro, no referido livro, menciona que a noção de epistamai (“saber com
orientação prática”84) fundida à noção de historiografia, empobrece o entendimento de
história. A história feita a partir do ocorrido adquire os olhares de quem a vê, no sentido de
que o conto de Guimarães Rosa, possui o sentido de história adotado por ele, o qual quis
demonstrá-lo. Ao contrário de demais historiadores que seguem a vertente histórica que
escolheram para si.
No âmbito da memória a linguagem aparece. O dizer que nem sempre fala chega-nos
pela linguagem. A memória diz. O dizer da memória desvela-se como linguagem. Retira a
bruma que envolve a paisagem. Nítida, esta transparece a si mesmo. É em si. Torna-se
aparição.
Na saga narrar é memória e linguagem. A experiência do narrar possibilita o advento
da memória. Platão nos apresenta, no Fedro85, o deus Toth detentor da escrita. Na escrita
nada seria esquecido. No entanto, a escrita não é a única forma em que se dá a memória. E
fica patente o quanto se perde com a escrita como única detentora da memória. O aedo, “no
contexto da cultura grega pré-alfabética, [...] era o principal e mais eficiente veículo de
manifestação da memória”86. Antonio Jardim, no livro referido, contrapõe as figuras do
aedo e do historiador. Além da oposição entre oral e escrita, respectivamente, estabelece o
seguinte: 84 CASTRO, Manuel Antonio de. O acontecer poético: A história literária. Rio de Janeiro: Antares, 1982. 2ª ed. p. 39 85 PLATÃO. Fedro. Trad. Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães Editores, 1994. 86 JARDIM, op. cit., p. 107
55
O historiador é talvez o primeiro portador dos pressupostos de um discurso da certeza, de um discurso científico, de um discurso demonstrativo, de um λόγος α�ποφαντικος, um discurso de conhecimento. Em contrapartida ao aedo, que se caracteriza por trazer consigo o discurso das musas, da memória, da verdade, entendida como des-esquecimento, um discurso que tinha a virtude de criar, de produzir, de estabelecer uma outra densidade do real, em que este não se apresenta como uma série de acontecimentos encadeados por causas que produzem efeitos que se convertem em causas de novos efeitos e assim por diante, o historiador é a presença e a instauração de uma outra modalidade de compreensão do real.87
O aedo traz consigo a possibilidade de instauração da memória por servir a instauração
da poiesis. Sob o jugo da memória o aedo instaura o real.
O sentido originário da saga é possibilidade de abrangência do real. O sertão, em
Sagarana, em sua totalidade de vigência faz eclodir o inaugural poeticamente, feito a
mencionada chegada da malária no povoado sertanejo em “Sarapalha”:
Mas chegou; nem dilatou para vir. E foi um ano de tristezas. Em abril, quando passaram as chuvas, o rio ― que não tem pressa e
não tem margens, porque cresce num dia mas leva mais de mês para minguar ― desengordou devagarinho, deixando poços redondos num brejo de ciscos: troncos, ramos, gravetos, coivara; cardumes de mandis apodrecendo; tabaranas vestidas de ouro, encalhadas, curimatãs pastando barro na invernada; jacarés, de mudança, apressados; canoinhas ao seco, no cerrado; e bois sarapintados nadando como búfalos, comendo o murirê-de-flor-roxa flutuante, por entre as ilhas do melosal. Então, houve gente tremendo, com os primeiros acessos da sezão.88
O narrar como des-esquecimento traz consigo o que é digno de ser recordado. A
linguagem ao encadear presença, permite a aparição do não-presente, do esquecido, do não-
aparente. A irrupção da linguagem é memória na saga, pois resguarda o aparecer e o
esquecer, de modo que, no âmago da memória, o aparecimento ou esquecimento diz respeito
a abertura que se dá à linguagem. Pois, quanto mais estivermos atentos à linguagem, mais
poderemos perceber a aparição do não aparente, a recordação do esquecido. JAA Torrano
alude que
A linguagem, — que é concebida e experimentada por Hesíodo como uma força múltipla e numinosa que ele nomeia com o nome Musas, — é filha da memória ou seja, deste divino Poder trazer à presença o não-presente, coisas passadas ou futuras. Ora ser é dar-se como presença, como aparição (alethéa), e a aparição se dá sobretudo através das Musas, estes poderes divinos provenientes da Memória O ser-aparição portanto dá-se através da linguagem, ou seja: por força da linguagem na linguagem. O ser-aparição é o desempenho (= a função) das Musas. E o desempenho das Musas é ser-aparição. É na linguagem que se dá o ser-aparição — e também o simulacro, as mentiras (v. 27). É na linguagem que se dá o ser-aparição (alethéa) — e também o esquecimento (lesmosyne)... Enquanto filhas de Memória é que as Musas fazem revelações (alethéa) ou impõem o esquecimento (lesmosyne). Este poder sobre o ser e o não-ser, este poder decidir entre a revelação e o esquecimento, — é em verdade a raiz originante de todo poder, porque este é o poder que configura o mundo e que em cada momento e em cada situação configura portanto todas as possibilidades de existência do homem no mundo assim configurado.89
O narrar, portanto, é memória. O perdurar do dito é posto sob a dinâmica estabelecida
entre o que vai pelo caminho do esquecimento e o que deambula na via da lembrança e da
revelação. O narrar revigora a memória. A cada proferida do narrar profere-se a memória,
no sentido de que o que foi dito, ou se mostra encoberto, é trazido pelo narrar ao
conhecimento.
Na saga, a memória é compatível com o advento do narrar, pois ambos mostram o
velado, seja pelo esquecimento, seja pelo não-dito. Deste modo, temos em “Sarapalha” uma
articulação entre a memória e a saga. Heidegger diz que “saga, sagan significa mostrar:
deixar aparecer, liberar clareando-encobrindo, ou seja, propiciando o que chamamos mundo.
89 TORRANO, op. cit., 1992: 29-31
57
O auspício do mundo, que clareia encobrindo e velando, oferece o vigor do dizer em sua
saga.”90 O encoberto nem sempre é atributo do esquecimento. No entanto, subentende-se
que é não revelado. A clareação se dá pela saga através do dizer, do mostrar. E em
“Sarapalha” também pela memória. A memória traz consigo o dito, o mostrado, tal como
ocorre com a saga. Instaurando-se a memória propicia a rearticulação de mundo, já que a
tensão entre clarear e encobrir presente na saga se dá na memória. Ao trazer para a claridade
Luísa, o sentimento encoberto de primo Argemiro é revelado. Desta forma, primo Ribeiro
fica ciente do amor de seu primo por sua ex-mulher:
... (— ‘Nem um irmão, nem um filho!’...) ele está mas é enganando o companheiro!... Há quantos anos que esconde aquilo... Não! É hoje!... Não está direito... Tem de confessar...
— Primo Ribeiro... eu nunca tive coragem p’ra lhe contar uma coisa... Vou lhe contar uma coisa... O senhor me perdoa?!...
— Chega aqui mais p’ra perto e fala mais alto, Primo, que essa zoeira nos ouvidos quase que deixa a gente escutar...
— Não foi culpa minha... Foi um castigo de Deus, por causa de meus pecados... O senhor me perdoa, não perdoa?!...
— Que foi isso, Primo? Fala de uma vez!
— Eu... eu também gostei dela, Primo... Mas respeitei sempre... respeitei o senhor... sua casa... Nós somos parentes... Espera, Primo! Não foi minha culpa, foi má-sorte minha...91
Mas, o tempo da memória não é linear. Pois, não pertence a uma cronologia.
Tampouco se desencadeia segundo regras de representação. Em “Sarapalha” já fora
mencionado que o tempo marca a sezão, além da espacialização da mesma.
Os advérbios e locuções adverbiais de tempo (“em abril”, “de-tardinha” “de
madrugadinha”, “seis meses” “dois meses depois” “três meses antes” “uns dias depois”,
“amanhã”, “hoje”, “depois”) carregam a noção de tempo. No entanto não são os únicos que
marcam o tempo no conto. Há frases como “O sol cresce, amadurece.”92, “ Nem resto de
brumas na baixada. O sol caminhou muito.”93.
Heidegger considera que “o tempo temporaliza. Temporalizar significa: amadurecer,
deixar surgir”94. Temporalizar o que advém de um surgimento, experienciação. Tempo de
vida. Ontologicamente, a memória é presente vital. E o tempo transcorrido é experiência.
Temporalizar é amadurecer, pois tempo vivido é tempo experienciado. Tempo é
amadurecimento. O tempo é a espacialização da experiência.
O tempo poético é ontológico. Não pode ser apreendido pela cadeia cronológica.
Ontologicamente, o tempo poético instaura-se independete da concatenação temporal.
E,
Ontologicamente, a memória não re-corda o acontecido, mas faz acontecer o que é trazido ao coração (= recordado). Ela não refaz o passado, ela faz o tempo; ela não recompõe o que foi, ela compõe o que é e sempre será; ela não restaura um todo perdido, mas instaura, não propriamente um novo cosmos, mas a possibilidade permanente de haver khosmoi. 95
A instauração da memória sempre pode advir. Não se projeta segundo os desígnios de
uma demarcação temporária. Inclusive, a memória não obedece a uma linearidade temporal.
Ao ser tempo, a memória permite que advenha o que já foi outrora advindo. Com o
potencial de trazer à presença, ela infunde um revigoramento do já ido. Esse revigoramento
possibilita não uma repetição mecânica somente e exclusivamente, mas a recordação
passível de fazer-se nova, por ser um feito novo, tempo novo, inaugural.
Como já foi mencionado, o advento da malária no vilarejo serve como a marcação do
tempo cronológico e ontológico. A vivência cronológica-ontológica confunde-se com os
sintomas da sezão. Assim, “Sim, d`aqui a pouco vai ser a sua hora. Aqui a febre serve de
relógio.”96
Além da malária, o que serve de ponto de contato vivencial e experiencial entre os
primos Ribeiro e Argemiro é Luísa. E, ao se lembrarem dela, revigoram-na, recordam-na.
Ontologicamente, a memória e amor de ambos os primos ressurgem ao trazer-lhe, a Luísa, à
vista. A evocação de Luísa, ex-mulher de Primo Ribeiro e amada também por Primo
Argemiro, é vigenciada pela memória de ambos. Não queremos dizer que a memória possa
ser compartilhada, e sim que eles possuem a vigência da memória cada um a seu modo. As
recordações (memória) de Luísa pelos primos Argemiro e Ribeiro trazem-na à presença. E,
após tanto tempo de silêncio, os primos trazem Luísa à lembrança:
— Foi seis meses em-antes-de ela ir s’embora...
De branco a mais branco, olhando espantado para o Primo Argemiro se perturbou. Agora está vermelho, muito.
Desde que ela se foi, não falaram mais no seu nome. Nem uma vez. Era como se não tivesse existido. E, agora...
— É isso Primo Argemiro... Não adianta mais sojigar a idéia...
Esta noite sonhei com ela, bonita como no dia do casamento... E, de madrugadinha, inda bem as garrixas ainda não tinham pegado a cochichar na beirada das telhas, teve notícia de que eu ia morrer... Agora mesmo garrei a`maginar: não é que a gente pelejou p`ra esquecer e não teve nenhum jeito? ... Então resolvi achar melhor deixar a cabeça solta... E a cabeça solta pensa nela, Primo Argemiro...97
Presos na malária Primo Argemiro e Primo Ribeiro, perto da morte trazem de volta ao
coração a figura dela. Apesar de ter sido esposa de Ribeiro, Argemiro também lhe nutriu
afeição. Essa recordação propicia o rever caminhar de Argemiro que tem sua vivência ligada
a de seu primo por ela (que fugiu com um boiadeiro). Pois, resolveu ficar ali, em casa de seu
primo, para poder vê-la e ali permaneceu, talvez, esperando sua volta que não ocorreu. O 96 ROSA, op. cit., 2001a: 168 97 Ibidem, p. 160
60
ponto de contato entre os primos, Luísa, torna-se importante no desenvolvimento de
“Sarapalha”, pois por causa da revelação de Argemiro ao primo, em que dizia do seu amor
pela ex-mulher do Ribeiro, a amizade estabelecida entre eles é rompida. Primo Argemiro é
impelido a retirar-se da fazenda, onde eles viviam.
Na saga, a memória mostra em plenitude sua unidade. Não há antes, agora ou depois,
separadamente, cronologicamente, mas, o tempo que emana, se engendra, se mostra. A
vivência contada e a experienciada imbricam-se. Assim, acontecimentos passados
ressurgem, não acometidos a qualquer força de repetição da experiência, mas sim de
reinauguração, quem sabe de reinterpretação. Primo Argemiro, desejoso de que seu amor
por Luísa pudesse ter sido falado a ela, recorda do momento em que ele supôs ter sido um
momento propício para falar-lhe do seu sentimento:
Aquilo tinha sido três meses antes de ela fugir. Mas, antes, bem em-antes disso, teve uma vez que ela desconfiou. Foi logo que ela chegou à fazenda, uns dias depois. Estava olhando, assim esquecido, para os olhos... olhos grandes escuros e meio-de-quina, como os de uma suaçuapara... para a boquinha vermelha, como flor de suinã...
— Você parece que nunca viu a dente, Primo!... Você precisa mas é de campear noiva e caçar jeito de se casar... dissera ela, rindo.
Ele tinha ficado meio palerma, um ter nada para responder... Teria ela adivinhado o seu querer-bem?... Não, falara aquilo por brincadeira, decerto. Mas, quem sabe... Mulher... E que bom que seria, se ela tivesse ficado sabendo! Ao menos, agora, de vez em quando se lembraria dele, dizendo: “Primo Argemiro também gostou de mim...”98
A memória em seu vigor realiza-se, pois “nada seria esquecido quando dito por
alguém gerado no seio dela”99. Uma medida de apreensão da realidade é a escrita como
detentora da linguagem (e da memória). Mas, tal como a memória, a linguagem (da saga)
98 ROSA, op. cit. 2001: 164 99 Apud JARDIM, op. cit., p. 127
61
faz-se presente no contar, narrar. Assim, a escrita obsoleta, nada pode fazer para trazer um
vir a ser presença, um vir a ser memória.
Rosa diz dispor das palavras em seu estado original. A disfunção da língua na saga
relaciona-se ao fator código. Obviamente, torna-se inviável dizer sem língua. No entanto, a
língua não consegue abarcar o que se dispõe pela linguagem. Contudo, a funcionalidade
comunicacional desaparece no mostrar-se da saga, pois o dizer-se da saga não é funcional.
Bem como a memória também não é uma mera função à disposição.
62
2.2 A ESTÓRIA E A HISTÓRIA DE LALINO SALÃTHIEL
As narrativas de Sagarana não podem ser classificadas pelo critério de historicidade.
Não servem a um feixe ou método históricos. Até porque o texto literário não é sinônimo de
história. Um possível meio de estabelecer essa desvinculação do fazer narrativo da história foi
a oposição estabelecida por Guimarães Rosa entre a história e o termo estória adotado em
Tutaméia.
Portanto, em “Traços biográficos de Lalino Salãthiel...” não teremos fatos
historiográficos acerca da personagem Lalino. Os embustes por ele praticados são tecidos pela
narrativa que demonstra a ele, com o mínimo, para não se dizer ausência, de caráter. Assim
caracterizado Lalino não possui uma biografia digna de se perpetuar pelo heroísmo. O ladino
Salãthiel é caracterizado pelos embustes feitos.
Através do título, “Traços biográficos de Lalino Salãthiel ou A volta do marido
pródigo”, são suscitadas referências à biografia e à parábola. No desenvolvimento da
narrativa, também está presente a parábase, o meta-texto que é o coro dos sapos. A biografia
se remete à história, pois, quando se faz biografia atém-se aos fatos. Incluindo a remissão à
cronologia, ou seja, aos fatos decorridos em períodos de tempo passado. No entanto, os traços
biográficos de Lalino Salãthiel, Eulálio de Souza Salãthiel, não se mostram precisos, ou, ao
menos indiciados cronologicamente. Ao início, aparece a medição de tempo, que, logo após,
torna-se irrisória, não exata no parágrafo seguinte:
Nove horas e trinta. Um cincerro tilinta. É um burrinho, que vem sozinho, puxando o carroção. Patas em marcha matemática, andar consciencioso e macio, ele chega. De sobremão. Pára, no lugar, justo onde tem de parar, e fecha imediatamente os olhos. Só depois é que o menino, que estava esperando, de cócoras, grita: — ‘Íssia!...’ — e pega-lhe na rédea e o faz volver esquerda, e recuar cinco passadas. Pronto. O preto desaferrolha o taipal da traseira, e a terra vai caindo para o barranco. Os outros ajudam, com as pás. Seis minutos: o burrinho abre os olhos. O preto torna a aprumar o tabuleiro no eixo, e ergue o tampo de trás. O menino
63
torna a pegar na rédea: direita, volver! Agora nem é preciso comandar: — ‘Vamos!’... — porque o burrico já saiu no mesmo passo, em rumo reto; e as rodas cobrem sempre os mesmos sulcos no chão.
No meio do caminho, cruza-se com o burro pêlo-de-rato, que vem com o outro carroção. É o décimo terceiro encontro, hoje, e como ainda irão passar um pelo outro, sem falta, umas três vezes esse tanto — do aterro ao corte, do corte ao aterro — não se cumprimentam. 100
Portanto, a biografia de Lalino não está pautada pelos moldes tradicionais, com
ordenação crescente cronológica. De antemão, percebe-se que não segue um fluxo histórico-
narrativo, no sentido de pautar datas ou ocorrências tidas como importantes de sua vida em
uma ordem cronológica. Os traços biográficos de Lalino Salãthiel não se resumem aos fatos
históricos simplesmente.
Guimarães Rosa, no mencionado livro Tutaméia, utiliza-se do termo estória em um de
seus prefácios, “Aletria e Hermenêutica”101, para fazer uma exposição sobre seu fazer
narrativo. De certo modo, essa idéia de estória, presente nas narrativas de Rosa, mostra-se
antagônica a idéia irrefletida de história. Além de que a estória não possui nenhum vínculo
com a comprovação dos fatos, ou seja, com a comprovação da veracidade narrativa.
Eduardo Coutinho, em “Guimarães Rosa e o Processo de Revitalização da
Linguagem”, menciona que “a estória, segundo o autor, deve ser distinta da história, pois
enquanto esta é a narração de fatos que supostamente ocorreram, aquela é pura invenção, uma
criação que tem própria lógica.”102 Ao ater-se à criação inventiva de Rosa, Coutinho acentua a
originalidade da estória. E, por sinal, do fazer literário de Rosa. Ele ainda expõe acerca dos
contos de Tutaméia que segue o mencionado prefácio:
Os contos que seguem a este prefácio são uma demonstração das teorias do autor. Trata-se de uma série de episódios, circunstâncias ou situações, sem enredo ou seqüência, e nenhum tipo de compromisso com qualquer forma de racionalismo. São rápidos flashes, miniaturas de vida, e o seu movimento se dá inteiramente pela linguagem em que são criados. Estes
100 ROSA, 2001a: 99 101 ROSA, João Guimarães. Tutaméia (Terceiras estórias). 8 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001b. p. 29-40 102 COUTINHO, 1991:230
64
contos pouco ou nada têm a ver com a história — entendida como qualquer narração da realidade objetiva — e a sua linguagem também é independente das normas impostas pela gramática.103
Como podemos perceber há uma relação entre os contos de Guimarães Rosa em
detrimento de seu pensar a estória oposta à história.
A invenção na narrativa é apontada também por Eduardo Portella, em “A estória
cont(r)a História”, como fundamento da obra de arte. Assim, ainda ele menciona as seguintes
frases de Guimarães Rosa, as primeiras de Tutaméia: “a estória não quer ser história. A
estória, em rigor, deve ser contra a História.”104 A capacidade inventiva da narrativa não pode
ser aprisionada pela pragmaticidade da história. A estória narra, portanto, segundo sua
propriedade criadora, não segue, necessariamente, o rumo histórico.
Como ponto crucial, a não obediência linear torna-se fundamental para a compreensão
do que venha a ser estória. Não se trata apenas da não linearidade cronológica, mas também a
da narrativa, de modo que o contar estória se sobreponha à exposição de um ocorrido
histórico. Fazer história não é necessário. Mas, a estória é.
Desse modo, “Traços biográficos de Lalino Salãthiel ou A volta do marido pródigo”
não apresenta a biografia simplória de Lalino, apesar de que o próprio título indica que são
traços, ou seja, não é uma continuidade historiográfica. Mas, o realce recai sobre a
irrelevância biográfica adquirida no desenrolar do conto.
Para desfazer o perfil positivo imediato que se possa ter de Lalino, visto através do
título do conto como o protagonista da estória, em uma primeira instância, temos o seguinte
trecho acerca de sua chegada no trabalho e de sua descrição física e da vestimenta, enfim, do
Agora seu Marra fecha a cara, Lalino Salãthiel vem bamboleando, sorridente. Blusa cáqui, com bolsinhos, lenço vermelho no pescoço, chapelão, polainas, e, no peito, um distintivo, não se sabe de quê. Tira o chapelão: cabelos pretíssimos, com as ondas refulgindo de brilhantina borora.
Os colegas põem muito escárnio nos sorrisos, mas Lalino dá o aspecto de quem estivesse recebendo uma ovação:
— Olá, Batista! Bastão, bom dia! Essa força como vai?... — Boa tarde! Lalino tem um soberbo aprumo para andar. — Ei, Túlio, cada vez mais, hein? — An-han... 105
Lalino não se apresenta como alguém digno de possuir uma biografia, até pelo perfil
apresentado, se comparado a um protagonista tradicional. Antagonista e protagonista da
própria biografia, Lalino não possui méritos honrosos para que sejam expostos. Sua “desonra”
evidencia-se ao longo da estória.
Assim, é comparado à grei dos sapos. Inclusive, a estória do sapo e do cágado ilustra
os “Traços biográficos de Lalino Salãthiel ou A volta do marido pródigo”. Nesta estória, uma
variante contada, como assinala o narrador, o cágado e o sapo, para poderem ir à festa no céu,
se esconderam na viola do urubu. No entanto, não conseguiram esconder-se para voltar. Por
isso foram descobertos. E São Pedro jogou a ambos do céu. O cágado foi o primeiro. Ao cair
chocou-se com uma laje, não antes de pedir-lhe que saísse de seu caminho porque a
fragmentaria e sua carapuça se fez em pedaços. O sapo vendo o que sucedia, pediu a São
Pedro que não o jogasse na água, dizendo-lhe não saber nadar. São Pedro jogou-o na água.
— Mas, quando o sapo caiu no poço, esticou para os lados as quatro mãozinhas, deu uma cambalhota, foi ver se o poço tinha fundo, mandou muitas bolhas cá para cima, e, quando teve tempo, veio subindo de-fasto, se desvirou e apareceu, piscando olho, para gritar: ‘Isto mesmo é que sapo quer!...’
E essa é que era a variante verdadeira da estória, mas Lalino Salãthiel nem mesmo sabia que era da grei dos sapos, e já estava cochilando, também.106
105 ROSA, op. cit., 2001a: 101 106 Ibidem, p. 124
66
Lalino, integrante da grei dos sapos, tem sua estória relacionada aos sapos. Em sua
partida para o Rio de Janeiro, os sapos fizeram um prenúncio do que estaria por vir. De modo
que, “nos pântanos da beira do Paraopeba, também os sapos diziam adeus. Ou talvez
estivessem gritando, apenas: — Não! Não! Não!... Bão! Bão! Bão!... — em notável e aquática
discordância.”107
À parábase do coro dos sapos, se junta a parábola do filho perdido, também conhecida
como filho pródigo. Pois, ao partir para o Rio de Janeiro, Lalino deixa sua esposa, com quem
vivia bem e a qual passa a morar com o espanhol. Ao voltar do Rio de Janeiro, tenta
reconquistar sua mulher. Tanto faz que finalmente consegue reconquistá-la. E, ainda consegue
que o major Anacleto expulse os espanhóis da região.
Lalino, de fato, não se apresenta como o herói de cavalaria nem o romanesco,
tampouco suas lembranças são retratadas segundo um paradigma fortuito, de presunção
elogiosa. Reiteradamente, Rosa nos diz que “a estória não quer ser história. A estória, em
rigor, deve ser contra a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à
anedota.”108 Lalino, realmente, não possui uma biografia longínqua à anedota. E continua
Guimarães Rosa em “Aletria e hermenêutica”:
no terreno do humour, imenso em confins vários, pressentem-se mui hábeis pontos e caminhos. E que, na prática de arte, comicidade e humorismo atuem como catalisadores ou sensibilizantes ao alegórico espiritual e ao não-prosáico, é verdade que se confere de modo grande.109
Seus feitos narrados encontram-se à margem de qualquer qualificação moralizadora.
Mas, como estória, exposta por Guimarães Rosa, transparece seu caráter anedótico.
107 Ibidem, p. 116 108 ROSA, op. cit., 2001b: 29 109 Ibidem, p. 29
67
Lalino Salãthiel, protagonista e antagonista de si, figura como um das personagens
emblemáticas de Guimarães Rosa, tal como temos Augusto Matraga em “A hora e a vez de
Augusto Matraga”, cada um a seu modo.
Lalino Salãthiel descontrói o protótipo contido na parábola do filho pródigo, o qual
pede ao pai o quinhão de seus bens e parte. Ao sentir-se necessitado e arrependido, volta
para casa e, subentende-se que não mais fará o que fez.110 Apesar do possível
arrependimento de Lalino Salãthiel ao voltar para sua mulher, a mudança não é aparente.
Ele viajou para o Rio de Janeiro sem despedir-se de Maria Rita. Pegou dinheiro emprestado
com o espanhol, Ramiro, para poder viajar. E ainda pede para Miranda avisar à Maria Rita
que não voltará mais. “(...) Vou sair por esse mundo, zanzando. Como eu não presto, ela não
perde... Diz a ela que pode fazer o que entender... que eu não volto, nunca mais.”111
Ao voltar da viagem ao Rio de Janeiro, Salãthiel procura por Ritinha que foi morar
com Ramiro três meses após a partida dele. Lalino torna-se cabo eleitoral de Major
Anacleto. Ao caminharem em frente às chácaras dos espanhóis, terras de Ramiro,
antagonista de Lalino por querer, também, a Ritinha, Major Anacleto, Tio Laudêncio, Oscar
e um “camarada”, ouvem do espanhol Ramiro, que foi ao encontro deles, o seguinte:
Passaram em frente da chácara dos espanhóis. Seu Ramiro baixou à estrada, convidando-os para uma chegada. Mas isso era contra os princípios do Major. Então seu Ramiro, ali mesmo, fez suas queixas: que o senhor Eulálio, apadrinhado pelo Estevão, viera por lá, a cavalo, somente para o provocar... Não o saudara, a ele, Ramiro, e dera um ‘viva o Brasil!’ mesmo diante da sua porta. E, como a Ritinha estivesse na beira do córrego, lavando roupa, o granuja, o sem-vergonha, tivera o atrevimento de jogar-lhe um beijo... Ele, mais os outros patrícios, podiam haver armado uma contenda, pois se achavam todos em casa, na hora. Mas, como o maldito perro agora estava trabalhando para o senhor Major, não quiseram pegá-lo com as cachiporras... Agora, todavia, tinha que pedir-lhe justiça, ao distinguido Senhor Major Dom Anacleto...
Nisso, o Major, vendo que Tio Laudônio fazia esforços para não rir, ficou sem saber que propósito tomar. Mas o espanhol continuou:
110 BÍBLIA SAGRADA. Nova Tradução na Linguagem de Hoje. Barueri (SP): Sociedade Bíblica do Brasil, 2000. 864 pp. Lucas, 15: 11-31 111 ROSA, op. cit., 2001a: 115
68
— E creia, senhor Major, não o quero molestar, porém o canalha não lhe merece tantas altas confianças... Saiba o senhor, convenientemente, que ele se há feito muito amigo do filho do senhor Benigno. Foram juntos à Boa Vista, todos acá o hão sabido... Com violões, e aguardente, e levando também o Estevão, que vive, carái! o creio, à custa do senhor Major... 112
As ações de Lalino são desaprovadas segundo um critério de moral. Major Anacleto,
perplexo, escuta o espanhol. Após a “excursão eleitoral”, uma semana depois do relato do
espanhol ao Major Anacleto, Lalino se justifica ao Major:
— Seu Major, escuta, pelo valor do relatar! Eu juntei com o filho do seu Benigno foi só p’ra ficar sabendo de mais coisas. P’ra poder trabalhar melhor para o senhor... E mais p’ra uma costura que eu não posso lhe contar agora, por causa que ainda não tenho certeza se vai dar certo... Mas, seu Major, o senhor espere só mais uns dias, que, se a Virgem mais nos ajudar, o povo de Boa Vista todo, começando por seu Cesário, vai virar mãe-benta para votar em nós... (...)
— Seu Major, só se aqueles estrangeiros acham que a gente dar viva ao Brasil é mexer com eles. Mas nunca ouvi ninguém dizer isso... A gente na política tem de ser patriota, uai! O senhor também não é?! (...)
— Ora, seu Major, o senhor não acha que a gente vendo a mulher que já foi da gente, assim sem se esperar, de repente, a gente até se esquece de que ela agora é de outro? Foi sem querer, seu Major. Agora, o senhor me deixa contar o que foi que eu fiz nestes dias...113
Após a explicação de Lalino, Major Anacleto se apazigua. No entanto, Lalino continua
o mesmo da grei dos sapos. Por fim,
Major Anacleto chama Lalino, e as mulheres trazem Maria Rita, para as pazes. O chefão agora é quem ri, porque a mulherzinha chora de alegria e Lalino perdeu o jeito. Mas, alumiado por inspiração repentina, o Major vem para a varanda, convocando os bate-paus:
— Estêvam! Clodino! Zuza! Raymundo! Olhem: amanhã cedo vocês vão lá nos espanhóis, e mandem aqueles tomarem rumo! É para
112 ROSA, op. cit, 2001a: 133-134 113 Ibidem, p. 134-135
69
sumirem, já, daqui!... Pago a eles o valor do sítio. Mando levar o cobre. Mas é para irem p’ra longe! (...)
No alto, com broto de brilhos e asterismos tremidos, o jogo de destinos esteve completo. Então, o Major voltou a aparecer na varanda, seguro e satisfeito, como quem cresce e acontece, colaborando, sem o saber, com a direção-escondida-de-toas-as-coisas-que-devem-depressa-acontecer. E gritou:
— Olha, Êstevam: se a espanholada miar, mete a lenha!
— De miséria, seu Major!
— E, pronto: se algum quiser resistir, berrem fogo!
E, no brejo — friíssimo e em festa — os sapos continuavam a exultar.114
A figura de Lalino, de certo modo, ao mesmo tempo em que se desmitifica mitifica-
se. A parábola do filho pródigo não lhe cai como luva, se consideramos que o filho pródigo
da parábola bíblica não cometeu mais os erros de outrora ao regressar para a casa do pai. Ao
regressar do Rio de Janeiro, Lalino continua o mesmo ladino de sempre.
Lalino Salãthiel, de acordo com o critério criativo, tem seu caráter mitológico.
Roland Barthes, em Mitologia115, levanta um questionamento acerca dos mitos. Roland
Barthes considera o mito uma fala, ou seja, um código. Diz ainda ele: “Mas o que se deve
estabelecer solidamente desde o início é que o mito é um sistema de comunicação, uma
mensagem. Eis por que não poderia ser um objeto, um conceito ou uma idéia: ele é um
modo de significação, uma forma.”116 Desse modo, o mito tem algo a dizer. No entanto, esse
dizer se serve de convenções, e é uma convenção. Ao conceituar o mito como código,
prioriza-se a forma, o sistema lingüístico ao invés de deixar o aberto da linguagem em
evidência. O mito é linguagem. Ambos são doadores de criatividade.
Em “Traços biográficos de Lalino Salãthiel ou A volta do marido pródigo” a figura
de Lalino Salãthiel evidencia-se a partir do próprio título do conto, pois o título refere-se a
114 ROSA, op. cit, 2001a: 149-150 115 BARTHES, Roland. Mitologia. Trad. Rita Buongermino, et. alli. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003. 116 Ibidem, p. 199
70
seu nome. E, ao decorrer do conto, ratifica-se a presença marcante dele. Inclusive, Lalino
Salãthiel se diz em atitudes, pensamentos narrados e falas. O dizer de Lalino Salathiel é um
mostrar-se. Mostra-se Lalino no conto, do modo que é concebido na narrativa.
A apreensão de Lalino é também parabaseado pelo coro dos sapos. Em instâncias da
narrativa, os sapos narram, ou seja, corroboram a noção de Lalino narrada e mostram o que
vai sendo narrado, numa tessitura de Lalino. Antes da reconciliação final entre Maria Rita e
Lalino, é relatada a estória do sapo velho, sapo-rei:
morrendo e propondo o testamento à saparia maluca, enquanto que, como todo sapo nobre, ficava assentado, montando guarda ao próprio ventre.
— ‘Quando eu morrer, quem é que fica com os meus filhos?’...
— ‘Eu não... Eu não! Eu não!... Eu não!’...
(Pausa, para o sapo velho soltar as últimas bolhas, na água de emulsão.)
— ‘Quando eu morrer, quem é que fica com a minha mulher?’
— ‘É eu! É eu! É eu! É eu! É eu!’...117
Esta estória do sapo velho, como os outros coros dos sapos, serve à narrativa como um
introdutório e uma confirmação, afirmando a estória e figura de Lalino. No exemplo, a
disputa por Maria Rita.
Mircea Eliade, em Mito e realidade 118, expõe logo inicialmente que o mito é criação.
Há, também, o criar literário. Neste caso, ambos têm na criação seu ápice gerador. A criação
de Lalino Salãthiel dá-se ao longo do conto, pois no decorrer da narrativa ele mantém-se em
criação.
A cosmogonia do mito adquire correspondência com a criação da personagem. Já que
a criação da personagem é um percurso deambulado no conto. Literariamente, Lalino se
117 ROSA, op. cit., 2001: 149 118 ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.
71
cria. Esse criar-se é um mostrar-se a um tempo o que é. Mesmo em momentos diferentes da
narrativa, Lalino se mostra, o integrante da grei dos sapos.
Mircea Eliade indica a possibilidade de reaparição do mito. O mito revigora-se ao
tornar-se presença. No entanto, o autor menciona que a reiteração da cosmogonia simboliza
também a aparição de mundo novo.119 Lalino Salãthiel não se faz novo, nem quando se
espera dele tal atitude, ao voltar para sua esposa. Marido pródigo, ao tempo que,
praticamente, deixa sua mulher com o espanhol Ramiro, pega-a de volta depois com sua
chegada do Rio de Janeiro.
Por fim, JAA Torrano, em O sentido de Zeus120 e sua tradução de Teogonia: A
origem dos deuses121, compreende a relação existente entre o mito e os deuses. O subtítulo
de O sentido de Zeus, O mito do mundo e o modo mítico de ser no mundo, sintetiza o
empenho do trabalho desenvolvido ao longo do livro. A vigência do deus é mundificada e
como tal mundo e deus torna-se um, assim é o Olimpo, mundo dos deuses. Indissociável, o
vigor de deus é presença no mundo. No entanto, não há mundificação de Lalino, pois é um
pária. Apesar de todos seus empenhos articulatórios, o redor não compactua com ele, no
sentido de que ocorra uma simbiose. Mas Lalino Salãthiel não é um deus. É um marido
pródigo. E sua estória não é uma exegese cosmogônica, apesar do vigor instaurador do
narrar. São traços biográficos.
119 ELIADE, op. cit., p. 31-32 120 TORRANO, JAA. O sentido de Zeus: O mito do mundo e o modo mítico de ser no mundo. São Paulo: Iluminuras, 1996. 121 HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Trad. JAA Torrano. 2ª ed. São Paulo: Iluminuras, 1992.
72
2.3 MINHA GENTE, MEU LUGAR
O sertão é cosmos. Aquilo que dele provem adquire singularidade por ser parte
integradora de uma totalidade cosmogônica. Inseparavelmente, o homem, os animais, os
vegetais, os minerais, enfim, a natureza (enquanto physis), intercalam-se na (com) vivência
plural, sem constar a unidade separatista, mas sim a harmônica proliferante, pois, paralelo ao
cosmos sertanejo, está o caos.
Em Sagarana, a mundividência do sertão se dá pela sacralização de um novo mundo
mito-poético. O homem sertanejo está intimizado com o sertão como força cósmica. No
entanto, todos que presenciam ao cosmos sertanejo participam deste mundo poeticamente,
pois o sertão se transforma em iniciativa de linguagem. Em “Conversa de bois”, os
protagonistas da história são os bois. Os quais têm a visão poetizada dos acontecimentos por
si: “Mas eu já vi o homem-do-pau-comprido correr de uma vaca... De uma vaca. Eu vi.”122
O sertão é linguagem originária. Assim, Sagarana surge como “a obra de arte [que] é
a revelação do mundo da existência [do sertão] na força da linguagem”123. A linguagem
sertaneja suplanta o cotidiano, fundando sua vigência mito-poética por apresentar-se como
instância inaugural. O sertão se configura sob o plano mítico-poético e a linguagem vigora na
manutenção desse brotar novo, poético das palavras. Essa originalidade da linguagem vincula-
se à cultura pelo fazer novo, pelo invencionar-se.
Em palavras de Guimarães Rosa, “o caráter do homem é seu estilo, sua linguagem”.124
Através da linguagem expressada pode-se chegar ao caráter do homem, de modo que o
conhecimento de suas aspirações, agir e pensar se tornem perceptíveis aos que assim desejam
e possuam a poeticidade latente. Portanto, há uma relação estabelecida entre o homem
sertanejo e sua linguagem. É a linguagem sertaneja (mito-poética) que ao originar-se confere
originalidade ao sertão. “Primo Argemiro dos Anjos” tem seu momento anterior à morte
demonstrado pela linguagem da natureza (physis):
Estremecem, amarelas, as flores da aroeira. Há um frêmito nos caules rosados da erva-de-sapo. A erva-de-anúm crispa as folhas, longas, como folhas de mangueira. Trepidam, sacudindo as suas estrelinhas alaranjadas, os ramos da vassourinha. Tirita a mamona, de folhas peludas, como o corselete de um cassununga, brilhando em verde-azul. A pitangueira se abala, do jarrete à grimpa. E o açoita-cavalos derruba frutinhas fendilhadas, entrando em convulsões.125
A realidade instaurada poeticamente, na qual se manifesta o homem, apresenta-se em
sintonia com ele. É o que nos diz Rosa: “E este pequeno universo do sertão, este mundo
original e cheio de contrastes, é para mim o símbolo, diria mesmo o modelo de meu
universo.”126 O escritor Rosa não está além do homem Rosa, mas em comunhão. O homem,
instalado poeticamente, abre-se ao mundo como partícipe. É o que simboliza o seguinte trecho
de “Minha gente”:
― Minas Gerais... Minas principia de dentro para fora e do céu para o chão...
Santana ouviu, e corrigiu:
― Por que você não diz: o Brasil?
E era mesmo. Concordei.
Em vôo torto, abrindo sol e jogando sol para os lados, passou um gavião-pinhé. Em dois minutos, com poucos golpes de asas, sobrecruzou a crista da cordilheira, mudando de bacia: viera de rapinar no campo das águas que buscam o ocidente, e agora se afundava nas matas marginais dos arroios que rojam para leste. Estava tosando ar alto, mas nós olhávamos o vôo como quem se inclina para espiar um peixe no aquário.127
Guimarães Rosa, em diálogo com Lorenz menciona o seguinte:
Cada homem tem seu lugar no mundo e no tempo que lhe é concebido. Sua tarefa nunca é maior que sua capacidade para poder cumpri-la. Ela consiste em preencher seu lugar, em servir à verdade e aos homens. Conheço meu lugar e minha tarefa, muitos homens não conhecem ou chegam a fazê-lo quando é demasiado tarde. Por isso tudo é muito simples para mim e só espero justiça a esse lugar e a essa tarefa. Veja como o meu credo é simples. Mas quero ainda ressaltar que credo e poética são uma mesma coisa. Não deve haver diferença entre homens e escritores, isto é apenas uma maldita invenção dos cientistas, que querem fazer deles duas pessoas totalmente distintas. Acho isso ridículo. A vida deve fazer justiça à obra, e a obra à vida.128
Por certo, Rosa considera sua poética na vida, no “homem do sertão”. Ao contrário de
muitos que posicionam a obra fora do âmbito da vivência humana. A poética não é exterior ao
homem, pois “o interior e o exterior já não podem ser separados”129. A unidade estabelece a
consonância homem-mundo. Aclara a seguinte passagem de “Minha gente” de Sagarana:
E cantou (Bento), alto, para abafar os lamentos do outro (sabiá): ‘Ouvi um sabiá cantando na beira do ribeirão... Ô pássaro que canta triste! Não me traz consolação...’ Então o sabiá calou o bico e foi-se embora, porque a cantiga do Bento
ainda era mais melancolizante. Agora é córrego que parece triste. Trocou outra vez de toada. Deve ter
uma lavandeira lavando roupa e chorando, lá longe, lá longe, lá para trás dos morros frios, onde há outras roças, outra gente, outro sabiá...130
A poética, o ser do homem no tempo e no espaço, permite que haja a instauração do
mundo pelo homem. O homem vivifica o seu redor pela linguagem, precisamente, poética.
Hölderlin aponta para essa questão em:
128 LORENZ, op. cit., p. 330 129 Ibidem, p. 343 130 ROSA, op. cit., 2001a:. 233
75
Lleno de méritos está el hombre;
mas no por ellos, por la Poesía
hace de esta tierra su morada.131
Se “a linguagem e a vida são uma só”132, a poética insurge como unidade do homem. A
poesia não tem por finalidade expurgar o homem da realidade, mas, permite a integração dele
à realidade como manifestação, pois “ideas en estado serio con lo real son ideas poéticas: las
que han vuelto habitable, vivible la tierra”133.
De certo modo, isso nos complementa Heidegger:
El hombre es el heredero de todas las cosas, y el aprendiz de todas. Mas las cosas se mantienen en Combate; y lo que en el combate las mantiene separadas y a la vez unidas llama Hölderlin “internato”. Y el testimonio de que se pertenece a este internato se da y acaece por crear un mundo, sea por hacerlo surgir, bien por destruirlo o hundirlo en ocaso. Tanto el testimonio de sí da el Hombre como la autenticidad de su plenaria realización, acontecimientos históricos son que de la libertad de la decisión provienen. La decisión se apodera de la necesidad, y la trueca en ligadura hacia una exigencia suprema. El testificar el hombre su pertenencia al ente en conjunto constituye el advenimiento mismo de la historia. Y, para que la Historia resulte posible, se le ha dado al hombre la Palabra.134
Com a palavra o conto é narrado. No conto “Minha gente”, o lugar-sertão é narrado,
consonantemente, à gente do narrador-personagem. Logo ao início do encontro com
Santana, e do embate do jogo de xadrez, o narrador-personagem reage ao lugar, em meio a
um diálogo entre ambos:
131 HEIDEGGER, Martin. Hölderlin y la esencia de la poesía. Trad. Juan David García Bacca. Barcelona: Anthropos, 1994. p. 8 132 ROSA, João Guimarães. In: LORENZ, op. cit., p. 339 133 HEIDEGGER, 1994: 80 134 Ibidem, p. 28
76
— Olha que beleza, ali!
Na serra, verde-malaquita, arquipélagos de reses, muito alvas, pastando, entre outras ilhas, vermelhas, do capim barba-de-bode. E, nos pontos mais ínvios da encosta, tufos do catinga-de-bode florido, em largas manchas azuis.
Do lado esquerdo, não havia tapume: era mesmo o mato mau, rehenchido e imprensado, Numa escarpa de folhagens e troncos. À direita, porém, a cerca de arame, meio quilômetro de pasto plano, depois o morro. E, do alto do morro até à base do morro, e da base do morro até à beira da estrada, boi e mais boi. Até encostados na cerca, indiferentes à nossa presença, havia. Alguns, de pé, estavam virados para cá, ruminando. Nós passávamos bem por debaixo do bafo. E o espesso cheiro bovino, morno, o bom boium — leite-sombra-capim-couro — melhor que o aroma de selva da outra margem, era um amor.135
Em Sagarana, o mostrar-se do sertão indica o lugar onde tudo converge. A partir do
seu mostrar-se, o sertão abriga um mundo, é um mundo. A gente do sertão está consoante a
este sertão que se mostra em Sagarana. Em “Minha gente” esta fusão entre gente e lugar
encontra-se explicitamente já no título do conto. Pois, há a expectativa que surja, no
decorrer da narrativa, a identidade entre o narrador–personagem com a sua gente e, também,
com o lugar. Isso evidencia-se pela narrativa tecida.
A identidade compartilhada não se refere à mesmice, no sentido de que são seres
idênticos, massificados, mas, sim sertanejos. Sertanejos por compartilharem o mundo sertão
de Sagarana.
A trivialidade da vida aparece em “Minha gente”. Não é somente seu tio que mudou.
Diz o doutor:
Já estou aquí há dois dias. Já revi tudo: pastos, algodão, pastos, milho, pastos, cana, pastos, pastos. E, dos chiqueiros às turbinas, do pomar ao engenho, tudo encontro transformado e melhorado. Mas o mais transformado e melhorado é mesmo o meu grande e bondoso tio Emílio
135 ROSA, op. cit., 2001a: 213
77
do Nascimento, que assina “do Nascimento” porque nasceu em dia de natal.136
Ao chegar em casa de seu tio Emílio, constata que o tio outrora amuado está
mudado. E seus novos ares dão-se pela participação política desempenhada pelo tio que
está, “em cheio, de corpo, alma e o resto, embrenhado na política.”137
No entanto, o sentido político não suplanta o poético. Pois, as vicissitudes do político
não abarcam o poético, a consideração do narrador-personagem da sua gente. Entendemos
que o título, mais que uma crítica ao ser político, é uma consideração favorável ao ser
sertanejo. A gente do narrador. A atividade política do tio não acentua nem diminui o
habitar do narrador-personagem, a pesar de que evidencia-se a política com um sentido
pejorativo. Não é através da política que se forma a gente do narrador-personagem. O
esquema político em que seu tio Emílio participa é exposto da seguinte forma:
Política sutilíssima, pois ele faz oposição à Presidência da Câmara no seu Município (n° 1), ao mesmo tempo que apóia, devotamente, o Presidente do Estado. Além disso, está aliado ao Presidente da Câmara do Município vizinho a leste (nº 2)), cuja oposição trabalha coligada com a chefia oficial do municipio nº 1. Portanto, se é que bem o entendi, temos aqui duas enredadas correntes cívicas, que também disputam a amizade do situacionismo do grande município ao norte (nº 3). Dessa trapizonga, em estabilíssimo equilíbrio, resultarão vários deputados estaduais e outros federais, e, como as eleições estão próximas, tudo vai muito intenso e muito alegre, a maravilhas mil.138
A atividade política exercida por tio Emílio é intensa. Imerso na política, tio Emílio
articula-se e desarticula-se conforme as necessidades. Sua participação é ativa. Como nos
indica o seguinte trecho:
136Ibidem, p. 222 137 ROSA, op. cit., 2001a: 224 138 Ibidem, p. 224
78
Tio Emílio não cessa de receber gente. Expede portadores, e, até fora d’horas na noite, costumam cegar emisarios. O número de camaradas e agregados aumentou: na fazenda atualmente, não se recusa trabalho, nem dinheiro, nem nada, a ninguém.
Há conciliábulos, longas conversas com sujeitos da vila, paseando na varanda. E daí eu esperar notáveis coisas para o depois.139
No entanto, a gente de “Minha gente” está em sintonia com o sertão. A linguagem do
sertão é comunhão. Explicita-se o narrador-personagem em relação ao ser político presente
em tio Emílio e a relação estabelecida pelo narrador-personagem com o sertão do seguinte
modo:
Santana costuma dizer: — Raspe-se um pouco qualquer mineiro: por baixo, encontrar-se-á o político…
Para mim, não é bem isso. Tanto mais que ninguém raspou Tio Emílio. Mas, acontece que ele sempre gostou de caçar e de pescar. E, de tanto ver a paca apontar da espumarada do poço, bigoduda e ensaboada como um chinês em cadeira de barbeiro… E de se emocionar com a ascenção esplêndida da perdiz, levantada pelo perdigueiro, indo ar acima, quase numa reta, estridulante e volumosa, para se encastelar… E de descair o anzol iscado, e ficar caladinho, esperando o arranco irado da traíra ou os puxões pesados do bagre… Bem, afinal, pode ser que seja Santana quem tenha razão.140
A gente do doutor narrador-personagem de “Minha gente” não é formada
politicamente. A pesar de todo o empenho político do tio, a política não é apontada como
uma totalidade na vida dos demais personagens do conto. Como expõe Aristóteles acerca da
formação política e seus meandros em Política141. Onde aparece a máxima: “o homem é por
natureza um animal político”.142 Não se pode utilizá-la para o conto no caso em questão.
Mas, podemos dizer, poeticamente. Essa gente compartilha o viver sertão.
139 ROSA, op. cit., 2001a: 225 140 Ibidem, p. 225 141 ARISTÓTELES. Política. Trad. Pedro Constantin Tolens. São Paulo: Martin Claret, 2006. 142 Ibidem, p. 122
79
A política de tio Emílio estende-se ao cotidiano do lugarejo. Como se expressa a
seguir:
Tio Emílio pediu-me que redigisse um telegrama ao Secretário do Interior, solicitando a substituição do comandante do destacamento policial da vila, que, por sinal, já foi cambiado duas vezes, nestes seis meses derradeiros. Porque, lá na Capital, sabem montar à cosaca, em dois ginetes, e as duas facções atendidas rotativa e relativamente. Enquanto isso, o tempo passa, o pau vai e vem, e folgam os filhos da sabedoria. Mas, às vezes, meu tio bate com o rebenque na bota, e fala em ‘compressão e suborno’; depois, suspira e comenta a degenerescência dos usos e a sua necesaria regeneração.143
Entre mandos e desmandos, tio Emílio articula-se. O ofício de político não se
apresenta de modo virtuoso, como acentua Aristóteles em Política em relação aos cidadãos.
Para Aristóteles “a lei é a razão não afetada pelo desejo”.144 Os interesses particulares
políticos não devem sancionar-se. Tio Emílio, em contrapartida, fundamentaliza-se a fim de
conseguir seu alvo. Pratica a política segundo suas vontades, desejos e anseios. No entanto,
mais que uma crítica à política de tio Emílio, há uma crítica à política de Aristóteles, esta
cristalizada por tempos. Em “Minha gente” há a consideração de que a política não é
intrínseca ao homem, já que alguns personagens são alheios ao meio político. Já que o
doutor-narrador não possui como objetivo embrenhar-se na política, mas sim encontrar-se
com os seus. Ele quer sua gente e quer também seu lugar. Ele chega a estranhar de início a
concupiscência do tio com a política.
Pela noção de lugar há a refência possível a um habitar. O lugar torna-se habitação
quando nele o partícipe interage com o meio. José Carlos Michelazzo expõe acerca do lugar
da habitação humana — oiko-tópos, no livro Do um como princípio ao dois como
unidade145. O habitar requer mais que uma simples fixação em um lugar. Há uma
143 ROSA, op. cit., 2001a: 226 144 ARISTÓTELES, op. cit., p. 143 145 MICHELAZZO, José Carlos. Do um como princípio ao dois como unidade. São Paulo: Anna Blume, 1999.
80
instauração no lugar. Michelazzo utiliza o exemplo da ponte para aclarar a irrupção do
lugar:
Há, entretanto, na ponte, um outro significado todo particular que ela possui como coisa: o de fazer aparecer o lugar. Antes da ponte não havia um lugar. Havia, ao longo do rio, uma série de espaços ocupados por uma outra coisa. Com o surgimento da ponte, um desses espaços torna-se um lugar. Assim pensado, não é a ponte que toma um lugar no rio, mas, antes, é da ponte que brota um lugar. Neste sentido, o ser da coisa ponte funda um lugar, e como tal ele abre um espaço que tanto acolhe a quaternidade quanto faz aparecer uma variedade de referências, com as quais emergem outros lugares ou outras coisas que podem ser tomados como próximos ou distantes, importantes ou desprezíveis, atraentes ou desagradáveis.146
O sertão, às vezes representado somente pelo seu sentido geográfico, adquire outra
conotação nas obras de João Guimarães Rosa. Pois, o lugar sertão não é o mesmo para o
estudo de um geógrafo e para Rosa. O lugar da habitação humana, sertão rosiano, é
construção de um habitar engenhoso, frutificado pela reunião.
Juan David García Bacca, em sua tradução e edição de Hölderlin y la esencia de la
poesía, em seus comentários tecidos, enfatiza a relação entre poeta e povo. E, para povo, dá
a seguinte explicação:
Un pueblo es una colectividad de hombres que han conseguido poblar todo, hasta la tierra — sus ríos, montañas, cuevas, bosques, picos, árboles…—, de leyendas, historias, mitos, apariciones, fantasmas, poemas, música, religión… Tono a un tono. Ese tono único es el que las voces individuales suenan concertadas.147
O sertão de Rosa é o povo e o lugar. E acrescenta Bacca: “Ideas en estado de
compromiso serio con lo real son ideas poéticas: las que han vuelto habitable, vivible la
tierra.”148 O lugar sertão encontra-se em consonância com o povo sertão.
É também um habitar o amor. O amor funda mundo. O amor mundifica. Kierkegaard
menciona que “o amor edifica… O amor é o fundamento, o amor é o edificio, o amor 146 MICHELAZZO, op. cit., p. 189 147 HEIDEGGER, op. cit, 1994:. 78 148Ibidem, p. 80
81
edifica. Edificar é construir o amor, e é o amor que edifica.”149 Em “Minha gente”, o doutor-
narrador percebe-se enamorado de sua prima Maria Irma, filha de tio Emílio e irmã mais
nova de Helena. E de amor há, também, a história trágica de Bento Porfírio, casado com
Bilica, a “prima de-Loudes”, casada com Alexandre. Bento, a pesar de considerar Alexandre
um paspalho, e com plano de fugir com Lourdes, é morto por ele.
Enamorado por sua prima, o doutor tenta conquistá-la:
Dormi mal, acordei de saudades, corri para junto de Maria Irma. Antes não o tivesse feito: quanto mais eu pelejava para assentar o idílio, mais minha prima se mostrava incomovível, impassível, sentimentalmente distante.
Não importa, no começo é assim mesmo — pensei. Devo mostrar-me caído, enamorado. Ceder terreno, para depois recuperá-lo. É boa tática… Um “gambito do peão para Dama”, como Santana diria… Por onde andará Santana?
— Você não teve saudade de mim, Maria Irma?
— Que pregunta! Nós estamos na mesma casa, estivemos separados só nas horas de sono…
— Pois, para mim, já é demais, Maria Irma… Preciso da tua presença…
— Me diz outra coisa: você é ambicioso?
— Eu?
— Pois não é? Não é ambicioso?
— Não sei. Uma coisa, sim, eu ambiciono…
— Um automóvil?
— Maria Irma!
— Que cor de automóvil você prefere? Talvez o papai compre um…
Não ouvi o resto. Tudo saiu pior que eu esperava! Maria Irma despreza a minha submissão. Tenho de jogar um “gambito do peão da Dama, recusado…”150
149 KIERKEGAARD, Soreen. “O amor de Deus fundamenta e edifica o amor humano”. In: O amor segundo os filósofos. Maurizio Schoepflin (ed.) Bauru, SP: EDUSC, 2004. p. 143. 150 ROSA, op. cit., 2001a: 246-247
82
No jogo do amor, doutor perde e empata, mas não se recusa a continuar jogando. Ao
contrário da surpresa suscitada no seguinte fragmento contido em Fragmentos de um
discurso amoroso, de Roland Barthes:
Um mandarim estava apaixonado por uma cortesã. ‘Serei sua, disse ela, quando tiver passado cem noites e me esperar sentado num banquinho, no meu jardim, embaixo da minha janela’. Mas, na nonagésima nona noite, o mandarim se levantou, pôs o banquinho embaixo do braço e se foi.151
Envolto pelo amor deambula. O misterio do amor é apreendido por Novalis em
Hinos à noite152. A noite é inebriante como o amor a quem ama. O inexplicável do amor
transparece no sentimento do doutor pela prima. E, posteriormente, a Armanda. O doutor
chega a mencionar, após especular se Maria Irma tivesse namorado, que “não vim aqui para
a roça para amar ninguém”153. O que é contraposto no decorrer da narrativa, com as próprias
tentativas do doutor de conquistá-la.
No Fedro, o amor ao belo é trazido para o diálogo. E, no mencionado conto de
Sagarana, o doutor pontua a beleza de Maria Irma em distintos percursos narrados:
[...] não deixa de ser bastante bonita. Em outros tempos, fomos namorados. Desta vez me recebeu coma ar de desconfianza. Mas é alarmantemente simpática. Principalmente graciosa. A própria Pessoa de graça. Graciosísima. O perfil é assim meio romano: camafeo em cornalina… Depois, cintura fina, abrangível; corpo triangular de princesinha egípcia… Mas a sua beleza está nos olhos: olhos grandes, pretíssimos, de fenda ampla e um tanto oblíqua, electromagnéticos, rasgados quasemente até às têmporas, um infinitesimalzinho irregulares; lindos! Tão lindos, que só podem ser os tais olhos Ásia-na-América de uma pernambucana — pelo menos de uma filha de pernambucanos, quando nada de meia ascendencia cegada do Recife…154
E reparei que os olhos de Maria Irma são negros de verdade, tais, que, para demarcar-lhe a pupila da íris, só o deus dos muçulmanos, que vê uma formiga preta pernejar no mármore preto, ou o gavião indaié, que, ao
151 BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. 15°ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2000. 152 NOVALIS. Hinos à noite.Trad. Fiame Hasse Pais Brandão.Lisboa: Ed. Assírio & Alvim, 1988. 153 ROSA, op. cit., 2001a: 227 154Ibidem, p. 225-226
83
lusco-fusco e em vôo beira nuvens, localiza um anu pousado imóvel em chão de queimada.155
As potências telúricas, originárias das Musas, produzem as forças germinativas. O
fazer-se contínuo da physis relaciona-se ao poderio das musas, já que ambos retêm em si o
caráter originário. O sertão aparece desmedido, independente de limites geograficamente
verídicos, pois, retêm o territorio poético. A physis como unidade proliferante, geradora da
harmonia entre contrários, é sertão em sua nascitividade e brotação incesante originária. Por
tanto, o poder germinativo da terra vincula-se ao da linguagem em Sagarana. Nesse obrar, o
sertão demonstra sua força telúrica protuberante.
Na força telúrica da natureza aparece a erótica. Segundo Ronaldes de Melo e Souza,
a deusa Calipso, “canta tecendo ou tece cantando os filtros de sedução”. O canto de Calipso
simboliza a criatividade poética, na qual, “manifesta o seu poder creativo no encanto do
vigor da Physis, da nascitividade em que se alberga a brotação incesante das coisas”156. Para
a tradição grega Eros é força cosmogônica, harmonizadora. Neste sertão, também regido por
Eros, o carater erótico é dotado de poeticidade. Assim, o doutor:
Eu tinha cochilado na rede, depois de um almoço gostoso e pesado, enquanto Tio Emílio, na espreguiçadeira, lia sua pilha de jornais e uma semana. A varanda era uma praia de ilha, ao mar de chuva. Meu espírito fumaceou, por ares deminha só posse —e fui, por iglas de Inglaterras, e marcas de Dinamarca, e landas de Holanda e Irlanda. Subi à visão de deusas, lentas apsaras de sabor pétalas, lindas todas: Dária, de Circássia; Ragna e aase; e Gúdrun, a de olhos cor dos fiordes; e Vívian, violeta; e Érica, sílfide Loira; e Varvára, a de belos feros olhos verdes; e a princesa Vladislava, císnea e junoniana; e a princesinha Berengária, que vinha, sutil, ao meu encontro, no alternar esvoaçante dos tornozelos preciosos…
Quem veio foi Maria Irma, num vestido azul-marinho, um tanto corada e risonha.157
155Ibidem, p. 227 156 SOUZA, Ronaldes de melo e. “Acriatividade da memória”. In: Francisco Venceslau (Org.). Historicidade da memória. Rio de Janeiro: Caetés, 2001. p. 14 157 ROSA, op. cit., 2001a: 238
84
Da beleza de Maria Irma que encanta o doutor às artimanhas da prima para que ele
conheça Armanda, ao retornar à fazenda do tio, quando finalmente se conhecem, Armanda e
o doutor se enamoram:
Armanda jogou fora o botão de bogari, e entrecruzou os dedos. E disse:
— É com você que eu vou casar.
— Comigo!?...
— Então, por que você não me beija? Porque aqui na roça não é uso?158
Essa certeza do amor encontrado, compartilhado e habitado é apontado por Martin
Buber no seguinte trecho:
Somente quem comprende o outro como um ser humano, dirigindo-se a ele enquanto tal, a través ele acolhe o mundo. Somente o ser cuja alteridade é acolhida pelo meu ser e vive diante de mim na dimensão da sua existencia pode trazer-me o brilho da eternidade. Somente quando duas pessoas, com toda a sua realidade pessoal, podem dizer uma à outra: ‘É você!’, podem encontrar morada entre elas.159
A união do doutor com a prima não se concretiza. A pesar de todas as tentativas do
doutor, nenhuma atinge as expectativas.No entanto, outra se mundifica. O doutor enlaça-se
com Armanda, a amiga de Maria Irma e ex-namorada de Ramiro. Esse mostrar-se do amor é
recordação em Sagarana, pois é tecer da narrativa. Desse modo, o conto se finaliza:
158 ROSA, op. cit., 2001a: 260 159 SCHOEPFLIN, Maurizio (ed.). O amor segundo os filósofos. Trad. Antonio Angonese. Bauru, SP: EDUSC, 2004. p. 158
85
E foi assim que fiquei noivo de Armanda, com quem me casei, no mês de maio, ainda antes do matrimônio da minha prima Maria Irma com o moço Ramiro Gouveia, dos Gouveias da fazenda da Brejaúba, no Todo-Fim-É-Bom.160
O lugar do doutor não é somente o lugarejo, contudo o amor também. O doutor
habita o amor e por ele é fundado. Ao habitar o amor, o doutor deambula por paragens
não conhecidas, a ponto de ter-se apaixonado por Armanda quando cria estar amando a
prima Irma. E assim é narrada sua gente.
160 Ibidem, p. 260
86
CAPÍTULO III
SOBRE A VERDADE NA NARRATIVA
À consideração de limite imposta aos contos, em relação aos números de páginas,
comparada ao romance, o escritor Julio Cortázar faz a seguinte comparação:
En este sentido, la novela y el cuento se dejan comparar analógicamente con el cine y la fotografía, en la medida en que una película es en principio un ‘orden abierto’, novelesco, mientras que una fotografía lograda presupone una ceñida limitación previa, impuesta en parte por el reducido campo que abarca la cámara y por la forma en que el fotógrafo utiliza estéticamente esa limitación.161
O conto, se por um lado, possui limites técnicos, portanto não pode ser uma narrativa
longa, por otro, apresenta a verdade, como constituidor de si, não pode ser limitado em uma
forma ou pelo sistema lingüístico. Por convenção de língua, arbitrariedade dos signos, a
verdade da obra não se dá. A verdade entendida aqui não será a usada como antagonista do
falso nem como conhecimento considerado verdadeiro por um enunciado, mas, a noção,
diga-se de passagem, atribuída à palavra grega alétheia.
Em alétheia o não esquecimento é presença. Possibilidade de vir a ser. Não há
almejo de uma simples demonstração ou constatação de veracidade. Há um mostrar-se que
diz e torna presença o dormido, não-dito, o esquecido. A verdade e a memória articulam-se
em conjuntura, à medida que é possibilidade de presença. No conto que narra, a verdade
permite a desocultação da narrativa e o desocultar-se do ente. O ente não é somente um
objeto físico, ou metafísico, mas aquele que, sob o âmbito da linguagem, encadeia-se na 161 CORTÁZAR, Julio. Obra crítica 2. Edición: Jaime Alazraki. Madrid: Santillana, 1994. P. 371
87
verdade, no seu desocultamento. O oculto não significa, necessariamente, qualquer
vinculação doutrinária. Mas sim, simplesmente, ao que não está aparente sob a apreensão da
verdade. Inclusive, o não aparente dificilmente pode ser verossímil, de modo que a
verossimilhança, praticamente, não participa da conjuntura de alétheia.
A relação entre a parte entre si, cada conto, e cada parte com o todo, Sagarana, une-
se pela linguagem, memória e verdade. Da verdade o eclodir da língua, afastada da noção de
que a língua é um veículo de idéias, conceitos e significados pré-estabelecidos, possibilita a
inserção da originalidade e procura do desvelamento que ocorre na narrativa.
A verdade não é estanque, ou seja, não pode estar praticamente, somente, escrita nas
letras do conto, ou sub-escritas por ambigüidades incessantes. A depreensão de letras,
sílabas, palavras, sintagmas e frases, e a escolha pelo melhor significado, não são
suficientes, de modo único, para que na narrativa a verdade vigore. O vigorar não pode ser
entendido como uma porção temporária. E sim, como presentificação. A prévia intenção de
busca pela verdade não indica que se consiga a obtenção dela, apesar de ser uma forma de
focalizar o olhar. Adentrar-se no conto com uma intenção formatada pode ser um equívoco,
se o almejo da revelação é latente e independe, em certa medida, de anseios.
A espera do desocultamento não pode ser dicotomizada em breve ou longínqua,
posto que ocorre no tempo oportuno. Nem ao certo, há espera. Há a plenitude, o cume do
desobstrução, desvelado, memória, linguagem, verdade. Se a incandescência consegue
alumiar o redor, a verdade se põe. Iluminando, a verdade incendeia clareando onde antes era
escuridão. Escuridão que vigora não pelo não conhecimento de uma prática, mas pelo ainda
oculto.
A narrativa é ilimitada pelo alcance da verdade, já que esta não apresenta um começo
e fim formal, estruturados. Inclusive, a verdade não advém do nada. Mas o nada constitui a
88
verdade, pois o nada contém em si próprio a possibilidade de presença, de ser nada e de ser
tudo. O nada é anúncio de incandescência porque prenuncia –se a si e permeia o tudo. Este é
plenitude. Desvelamento.
89
3.1 A VERDADE EM AUGUSTO MATRAGA
Desocultar o que se oculta. Trazer à superfície o se que encontra na profundidade.
Apesar da aparente dicotomia, os movimentos contrários (velar-desvelar) ocorrem
harmonicamente, ser; “é neste movimento complexo de encobrimento, ocultação,
esquecimento e latência que se edifica a experiência originária e radical que os gregos
chamam, com toda propriedade, de a-leth-eia: descobrimento, revelação, desocultação,
patência”.162 Não são instâncias díspares, mas, unificadoras do ser, linguagem, memória e
verdade. A presença de uma cala e fala a ausência da outra. Quando advém o desvelamento,
surge o descobrimento, um achado, um encontro. É o que simboliza, em “A hora e a vez de
Augusto Matraga”, a frase “cada um tem a sua hora e a sua vez, você há de ter a sua”163.
Augusto Matraga, “Augusto Estêves, filho do Coronel Afonsão Estêves, das Pindaíbas
e do Saco-da-Embira. Ou Nhô Augusto(...)”164 Logo ao início da narrativa, Augusto, em meio
ao leilão, arremata a Tomázia, também conhecida como Sariema e enamorada por um capiau
chamado Tião, que deu o primeiro lance para levá-la consigo. No entanto, a caminho da casa
do Beco do Sem-Ceroula, Augusto ao olhar Sariema, diz:
— Que é?!... Você tem perna de manuel-fonseca, uma fina e outra seca! E está que é só osso, peixe cozido sem tempero... Capim p’ra mim, com uma sombração dessas!... Vá-se embora, frango-d’água! Some daqui! E, empurrando a rapariga, que abriu a chorar o choro mais sentido da sua vida, Nhô Augusto desceu a ladeira que a gente tinha de descer quase correndo, porque era só cristal e pedra solta.165
162 CARNEIRO LEÃO, Emanuel. “A experiência grega da verdade”. In: Revista Tempo Brasileiro. N. 150, julho-setembro. 2002. p. 74 163 ROSA, op. cit., 2001a: 380 164 Ibidem, p. 363 165 Ibidem, p. 367
90
Augusto não mediu esforços para arrematar Sariema no leilão, mas, após já ter logrado
não encontra resistência alguma para desfazer-se da mulher adquirida. O ímpeto de ver um
objetivo alcançado, sem medir conseqüências, o levar a praticar atos tempestivos.
Sua esposa Dionóra manda-lhe um recado para que Augusto volte para casa para que
partam. No entanto, ele não atende seu pedido. Assim, renegada, a caminho de Morro Azul
encontra Ovídio, seu amor no brechão do Bagre. Com ele partem ela e a filha. Abandonam
Augusto.
Quim Recadeiro, que estava com a esposa e a filha dele quando resolveram partir com
Ovídio, relata o ocorrido a Augusto. Ainda, quatro capangas de Matraga resolveram passar à
fazenda do Major Consilva. Assim,
Mas Nhô Augusto era couro ainda por curtir, e para quem não sai, em tempo, de cima da linha, até apito de trem é mau agouro. Demais, quando um tem que pagar o gasto, desembesta até ao fim. E, desse jeito, achou que não era hora para ponderados pensamentos.166
Duplamente traído, Matraga resolve matar Ovídio e a esposa depois, pois primeiro quer
tirar satisfação na chácara do Major.
Ao chegar na chácara de Major Consilva, Matraga é surpreendido pelos capangas
quando se aproximava e tentava travar conversa com Consilva. Major ordena que levem
Matraga para longe de suas terras, marquem Matraga como um gado seu e matem-no. Os
capangas só não conseguem matar Matraga, pois, quando já iam matá-lo, após uma surra
tremenda, Matraga se atira em um barranco. Pensando que Matraga estivesse morto, não
descem para procurá-lo e abandomam o corpo. Lá, Matraga é encontrado pelo preto que, com
a ajuda da mulher, carrega Matraga para a casa do casal.
166 ROSA, op. cit., 2001a: 373
91
“A hora e a vez de Augusto Matraga” vai delineando-se paulatinamente. É sob os
cuidados de “mãe preta Quitéria” e “pai preto Serapião” que Matraga melhora. No entanto,
sua situação não é uma das melhores. Assim,
Deitado na esteira, no meio de molambos, no canto escuro da choça de chão de terra, Nhô Augusto, dias depois, quando voltou a ter noção das coisas, viu que tinha as pernas metidas em toscas talas de taboca e acomodadas em regos de telhas, porque a esquerda estava partida em dois lugares, e a direita num só, mas com ferida aberta. As moscas esvoaçavam e pousavam, e o corpo todo lhe doía, com costelas também partidas, e mais um braço, e um sofrimento de machucaduras e cortes, e a queimadura da marca de ferro, como se o pobre corpo tivesse ficado imenso.167
Antes desejoso de morrer, agora Matraga já considera que é melhor viver. E, em meio
à situação ruim que o rodeia, o padre, após uma visita, lhe diz: “Cada um tem a sua hora e a
sua vez: você há de ter a usa.”168 Essa frase do padre será recorrente para Matraga.
E de ter conhecimento de que possui uma hora e uma vez, Matraga opõe-se a figura de
outrora, agora imerso na religiosidade. A devoção de Matraga infunde-lhe novo ânimo. Nesse
caminhar entre Augusto anterior e o posterior, a ambivalência é notória:
— Eu vou p’ra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal!... E a minha vez há de cegar…P’ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!... E os negros aplaudiram, e a turminha pegou o passo, a caminho do sertão.169
Mas todos gostaram logo dele, porque era meio doido e meio santo; e comprender deixaram para depois.170
Matraga deambula. À procura de seu caminho, vai vivendo seus dias. E,
Trabalhava quem nem um afadigado por dinheiro, mas, no feito, não tinha nenhuma ganância e nem se importava com acrescentes: o que vivia
167 ROSA, op. cit., 2001a: 377 168 Ibidem, p. 380 169 Ibidem, p. 381 170 Ibidem, p. 382
92
era querendo ajudar os outros. Capinava para si e para os vizinhos do seu fogo, no querer de repartir, dando de amor o que possuísse. E só pedia, pois, serviço para fazer, e pouca ou nenhuma conversa.171 [...] Também, não fumava mais, não bebia, não olhava para o bom-parecer das mulheres, não falava junto em discussão. Só o que ele não podia era se lembrar da sua vergonha; mas, ali, naquela biboca perdida, fim-de-mundo, cada dia que descia ajudava a esquecer.172
Ao encontrar Tião da Thereza, Matraga nem quer saber do ocorrido com os tão
conhecidos anteriores; que sua ex-esposa continua com Ovídio, que sua filha perdeu-se na
vida, que seu Major Consilva comprou duas fazendas de Matraga e manda em Murici, que
Quim morreu com vinte balas no corpo. Mostrar-se outro e diferente é o que Matraga deseja.
O eclodir daquilo que cada um é está presente naquilo que não é. Pois, a possibilidade
de ser permeia o não-ser. Ao início já vem dito: “Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga
é Esteves.”173 No deambular entre ser e não-ser, Matraga não é nada, pois ao ser e não-ser não
pode apresentar-se sempre o mesmo. No entanto, ele é o que é.
Em um mundo de revés, Matraga caminha à procura de si. Cada um possui sua
alcunha. Resta saber qual é. Matraga à espera de seu dia, do desvelo articula-se em ocultação
e desocultação. A antítese de si não pode ser Matraga, pois o ser não anula o não-ser, nem
vice-versa. Estes são confluências de um mostrar-se não unificado. Mas, de um ser único.
Matraga é o emblema de revelação, já que em si ele carrega o ser e o não-ser de modo
conflitante. O conflito entre o Matraga de antes à descida do barranco e o Matraga da pós-
descida confluem para delinearem quem é Matraga. Assim, sente um lampejo de pena de si:
— Tem horas em que fico pensando que, ao menos por honrar o Quim, que morreu por minha causa, eu tinha ordem de fazer alguna vantagem… Mas eu tenho medo… Já sei como é que o inferno é, mãe Quitéria… Podia ir procurar a coitadinha da minha filha, que talvez esteja sofrendo, precisando de mim… mas eu sei que isso não é eito meu, não é não. Tenho é de ficar pegando minhas culpas, penando aquí mesmo, no sozinho. Já fiz penitência estes anos todos, e não posso ter prejuízo deles!
171 ROSA, op. cit., 2001a: 382 172 Ibidem, p. 383 173 Ibidem, p. 363
93
Se eu quisesse esperdiçar essa penitência feita, ficava sem uma coisa e sem outra… Sou um desgraçado, mãe Quitéria, mas o meu dia há-de cegar!... A minha vez…
Conflitante, ser Matraga é ser si mesmo, carregando consigo o que lhe é próprio. O que lhe
pertence não pode ser encaminhado a outro, já que
Para os relacionamentos criadores, i. e, para as relações originárias de ser e realizar-se, ocorre precisamente o contrário (de nemo dat, ‘quod non habet’: ‘ninguém dá o que não tem’) ‘nemo dare potest, quod habet’: ‘ninguém pode dar o que tem’. Pois, se desse o que tem não daria e sim tiraria do outro a possibilidade de ser outro e, com isso, qualquer condição tanto de receber como de receber nada. Pois é o nosso próprio ser que constitui tal possibilidade.174
A chegada dos valentões do bando de Joãozinho Bem-Bem não afugentou Matraga,
mas o incitou a convidá-los a comer em sua casa o tempo enquanto durar a estadia do bando
na cidade. Joãozinho alimentado, ao partir, na manhã seguinte, ainda convida Matraga para
juntar-se a seu bando. Apesar de não aceitar o convite de Joãozinho, Matraga se inclina a
aceitar a proposta: “O convite de seu Joãozinho Bem-Bem, isso, tinha de dizer, é que era
cachaça em copo grande! Ah, que vontade de aceitar e ir também...”175 No entanto, Matraga
fica decidido a não ir com o bando.
Matraga decide partir de sua casa e não deixa de ir montado em um jumento, apesar da
relutância em levá-lo consigo, como bem lhe diz mãe Quitéria, é “um jumento um
animalzinho assim meio sagrado, muito misturado às passagens da vida de Jesus”. Encontra
Joãozinho Bem-Bem, que caminhava rumo a Bahia, em uma fazenda. Nesta, Joãozinho estava
com um serviço a fazer. Queria vingar-se de uma família.
Mas Matraga, em desacordo com Joãozinho Bem-Bem, por não aceitar que a família
do matador pagasse pelo mal cometido, o repreende e os dois travam uma peleja, que se
tornaria mortal para ambos.
O encobrimento de Matraga é descoberto com a sua morte no duelo com Joãozinho
Bem-Bem. O intento de Matraga mostrar-se outro não pode ser totalmente desvinculado por
sua morte, pois morreu em defesa da família, por princípio. Sua atitude é enaltecida pelo pai
do matador que lhe inflama: “Traz meus filhos, para agradecerem a ele, para beijarem os pés
dele!... Não deixem este santo morrer assim... P’ra que foi que foram inventar arma de fogo,
meu Deus?!”176 Já a questão do Matraga anterior é latente, posto que é comparado a um
demônio na peleja:
E a casa matraqueou que nem panela de assar pipocas, escurecida à fumaça dos tiros, com os cabras saltando e miando de maracajás, e Nhô Augusto gritando qual um demônio preso e pulando como dez demônios soltos. — Ô gostosura de fim-de-mundo!...
Vemos, então, que o Matraga é Matraga. É nada. É Esteves. Matraga oferta aquilo que
não possui, sua morte. Chegou a sua vez:
Então, Augusto Matraga fechou um pouco os olhos, com sorriso intenso nos lábios lambuzados de sangue, e de seu rosto subia um sério contentamento.
Daí, mais, olhou, procurando João Lomba, e disse, agora sussurrado, sumido: — Põe a benção na minha filha... seja lá onde for que ela esteja... E, Dionóra... Fala com Dionóra que está tudo em ordem!
Depois morreu.177
176 ROSA, op. cit., 2001a: 412 177Ibidem, p. 413
95
A morte de Augusto Esteves é o ápice da vivência, revelação, descobrimento, desvelo
dele.
A vigência desobstrui a latência e instaura-se. O verdadeiro é o achado, “já não traz
consigo apenas o seu contrário; o ocultamento, é o que já se livrou de uma total
latência.”178.Assim, o verdadeiro Matraga é o Matraga desvelado, desoculto, eminente. Ainda,
segundo Carneiro Leão, “a verdade realiza sempre um já não estar oculto, diz um já não estar
mais encoberto, é um já não ter mais véus e vendagens.”179 Matraga sem vendas, desvendado.
Apesar da aparente disparidade, ser e não-ser, necessariamente, não são oposições, “a verdade
abrange a totalidade do real e o universo das realizações, atingindo a própria realidade como
tal, em sua dinâmica de dar-se na medida e enquanto se recusa e atrai.”180
O extraordinário habita a verdade por não pertencer à dinâmica do certo e errado.
Matraga é Matraga, e por tal é Matraga. Independente do modo como se apresente, Matraga
não deixa de ser ele, Matraga. A noção de certo ou errado, possivelmente presente na
articulação entre o Matraga de antes da descida do barranco e a de depois, não chega a
nulificar a instauração da verdade. A dicotomia não integra a verdade. Ser e não-ser não são
paradoxos. Matraga, ao não-ser, é ele. Ao ser ele, Matraga, não é outro. E, por ser inabitual, a
verdade é presença extraordinária. Sua presença se apresenta extraordinariamente, percebida
diferente. Não é indiferente. O resgate do thaumátzein grego para o extraodinário evidencia a
abertura existente.
A verdade, portanto, não pode ser um método objetivo ou subjetivo. Descartes adequa
a percepção à verdade, e assim ao sujeito. É o que menciona o seguinte trecho:
178 LEÃO, op. cit. p. 74 179 Ibidem, p. 75 180 Ibidem, p. 76
96
É certo, porém, que jamais viremos a tomar o falso pelo verdadeiro se dermos assentimento somente àquilo que percebemos clara e distintamente. Digo que é certo porque, como Deus não é enganador, a faculdade de perceber que nos deu não pode tender ao falso, nem tampouco a faculdade de assentir, quando se estende somente àquilo que é percebido claramente. E, ainda que de maneira alguma o provássemos, isso está de tal sorte impresso pela natureza nos ânimos de todos [nós] que, todas as vezes que percebemos algo claramente, lhe damos espontaneamente o nosso assentimento e de nenhum modo podemos duvidar que não seja verdadeiro.181
Heidegger em “A superação da metafísica”182 aponta que a verdade para Descartes
está impregnada de metafísica. É o que comprova o fragmento a seguir:
Em todas as cogitationes, o ego cogito é para Descartes o que já se apresenta pro-posto e im-posto, sendo o vigente, o inquestionável, o indubitável, o que, cada vez, já está no saber, o certo e sabido em sentido próprio, o previamente consolidado, o que põe tudo em referência a si deste modo se contra-põe a todo outro.
Ao objeto pertence tanto o teor de consistência (o quid) do que se contrapõe (essentia-possibilitas) como a posição do que se opõe (existentia) O objeto constitui a unidade de persistência dessa consistência. Em sua insistência, a consistência refere-se essencialmente ao pôr da re-presentação como uma posse asseguradora que põe algo diante de si, que pro-põe. O objeto originário é a objetividade em si mesma. A objetividade originária é o “eu penso”, no sentido do “eu percebo”, que já se apresenta e já se apresentou, é subiectum. Na ordem da gênese transcendental do objeto, o sujeito é o primeiro objeto da re-preentação ontológica.
Ergo cogito é cogito: me cogitare.183
A verdade metafísica não considera a ambivalência contida em alétheia. O dizer e não
dizer, velar e revelar, encobrir e desencobrir. Ao ponderar que a verdade é um contínuo
intransponível, sua reta atinge um alvo vigente por imposição. A representação, por sinal,
proposição, é um simulacro da verdade. Vai de uma percepção a um objeto sem apresentar a
dinâmica incutida por alétheia.
181 DESCARTES, René. Princípios de filosofia. Trad. Guido Antônio de Almeida et alli. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002. p. 59 182 HEIDEGGER, op. cit., 2001a: 61-86 183 Ibidem, p. 64
97
Augusto Matraga não é uma representação de sujeito, mas, sim, está condizente com
alétheia. A verdade assinalada em Matraga não aparece como uma faculdade apreendida e
inerente a ele, não é uma formulação acabada e inamovível, Matraga revela-se à medida que
se mostra. Desse modo, não é uma personagem formada e acabada. Desde o início ao fim da
narrativa, Matraga pratica e sofre ações revelando-se sem apresentar qualquer determinação
indutória de ser o bem ou o mal, até quando quer apresentar-se como um homem santo, como
assinala a própria frase do conto: “Matraga não é Matraga, não é nada.”184
A passagem vivencial encoberta de Nhô Augusto tem seu ápice no momento de
incandescência, “iluminar é conduzir algo para o livre, é conceder vigência”185, ao duelar com
Joãozinho Bem-Bem, em plenitude na morte. A imanência do regrado não predispõe a
abertura à vida. Contrariamente ao seu descobrimento, a tentativa de esquecer de Matraga é
uma forma de “manter-se encoberto”186:
E assim nesse parado Nhô Augusto foi indo muito tempo, se acostumando com os novos sofrimentos, mais meses. Mas sempre saía para servir aos outros, quando precisavam, ajudava a carregar defuntos, visitava e assistia gente doente, e fazia tudo com uma tristeza bondosa a mais não ser.187
Matraga, em via do esquecimento, queria encobrir-se. Tornar-se outro poderia ser um
modo de esquecer o antigo. Sobre esquecer, Carneiro Leão menciona o seguinte:
Esquecer é um acontecimento ontológico em que o homem se realiza, na medida em que os descobrimentos e revelações lhe encobrem sua própria realização. Isto significa: o homem também se vela para si mesmo sempre que consegue revelar-se num empenho de ser e desempenho de não ser. Para realizar-se, o homem tem tanto de esquecer como de recordar.188
184 ROSA, op, cit., 2001a: 363 185 Ibidem, . p. 244 186 Ibidem, p. 233 187Ibidem, p. 387 188 CARNEIRO LEÃO, op, cit., 2002: 74
98
Na dinâmica do esquecimento, o velamento também é revelação. Ao ser Matraga, não
se quer dizer que ele deva ser sempre o mesmo. Assim, o esquecer de Matraga correlaciona-se
à dinâmica da verdade.
A apreensão da escuta provoca o esclarecimento. Este é a possibilidade manifestada e
presentificada de um velamento desvelado. Ao instaurar-se na dinâmica do que se mostra, o
oculto vela para desocultar-se em momento oportuno, de escuta, de incandescência, como na
mencionada passagem reiterada do conto “São Marcos”:
E agora? Como chegar até à estrada? Quem sabe: se eu gritar, talvez alguém que escute, por milagre que seja. Grito. Grito. Nada. Que posso? Nada. E daí? Por mim mesmo, não sou homem para acertar com o rumo. Tomo fôlego. Rezo. Me enfezo. Lembro-me de “Quem-Será”. E então?!
‘para esquerda fui contigo
Coração soube escolher.’
Nesse desocultar Matraga se mostra frente ao duelo com Joãozinho Bem-Bem. O
desoculto emerge e traz consigo a claridade. Assim, Matraga é Matraga e é nada. O desocultar
não é uma pré-figuração do que seja a verdade ou uma unidade de valor do conceito de
verdade. Em “La doctrina de Platón acerca de la verdad” (“A doutrina de Platão sobre a
verdade”), Heidegger, ao relacionar a alegoria da caverna ao invólucro da verdade para
Platão, expõe o seguinte:
La verdad como desocultación, no es más el rasgo fundamental del ser mismo, sino que, por haber ella devenido justeza bajo la sujeción de la idea, es, desde esse momento, la característica del conocimiento del ente.
A partir de allí, hay ya uma tendência a la ‘verdad’ en el sentido de la justeza del mirar y de la posición de la mirada, siendo desde entonces decisiva para todas las posturas fundamentales com referencia al ente, la obtención de la recta visión de las ideas. La reflexión sobre la paideía y la mutación de la esencia de la alétheia se corresponden como se ve en la misma historia del tránsito de morada en morada, expuesta en la alegoría de la caverna.
99
(...) La historia que narra la alegoria de la caverna proporciona una visión de lo que ahora y en lo futuro será lo que propiamente acontece en la historia de lo humano acuñado por Occidente, o sea que el hombre piensa en el sentido de la esencia de la verdad, como justeza del pensamiento, todo ente de conformidad con las ‘ideas’, y estima toda efectividad conforme a los ‘valores’. Determinar qué ideas y qué valores son asentados no es solo y primordialmente decisivo sino que en general lo real es pensado conforme a las ‘ideas’ y el ‘mundo’ sopesado según los ‘valores’.189
Por certo, Matraga, com sua hora e sua vez, ultrapassa qualquer taxação de valor e
formulação de protótipo acerca da verdade. Matraga não é uma personagem regida pela
indução metafísica. Não está envolto pelo invólucro do sujeito. Dá-se transgredindo os
valores que lhe são impostos ao longo do conto. Não é uma personagem de representação do
bem ou do mal, é antes, sim, uma personagem imbuída pelos desígnios da verdade. Tampouco
aparece como representante de uma idéia ou um dogma que quer ser exposto na narrativa.
189 HEIDEGGER, Martin. “La doctrina de Platón acerca de la verdad”. Disponível em http://www.heideggeriana.com.ar/textos/platon.htm Acesso em 17/01/2007.
100
3.2 A RUPTURA DO VEROSSÍMIL EM “CORPO FECHADO”
A composição da saga rosiana permite o aparecimento de novos parâmetros
narrativos. O itinerário vitorioso e glorioso do cavaleiro Manuel Fulô dá lugar a uma trajetória
tensionada pelo dual unitário, paradoxal em “Corpo fechado”, bem como caminha Dom
Quixote à procura de aventuras. Apesar de figurar-se como um a mais na estirpe de valentões
do lugarejo, a ascendência e apresentação de Manuel Fulô não são dignas de uma estirpe de
valentões, embora se considerasse da “raça de Peixoto”, digna de uma boa peleja:
Agora, o Manuel Fulô, este, sim! Um sujeito pingadinho, quase menino — ‘pepino que encorujou desde pequeno’ — fazenda tem o seu bôbo, que é, ou um velhote baixote, de gago, glabro e alvar. Mas gostava de fechar a cara e roncar voz, todo enfarruscado, para mostrar brabeza, e só por descuido sorria, um sorriso manhoso de dono de hotel [...] Era de uma apócrifa e abundante família Véiga, de uma veiguíssima veigaria molambo-mazelenta, tribo de trapeiros fracassados, que mexiam daqui p’r’ali, se queixando da lida e da vida: — ‘Um maltírio’...190
Vale a ressalva de que Manuel Fulô não é jagunço, tipo retratado posteriormente em
Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa. Tampouco há alguma preocupação ética em
Manuel. Antes, é tipo singular. Manuel Fulô, como é chamado pelo doutor, “Manuel Veiga —
vulgo Manuel Flor, melhormente Mané Fulô, às vezes Mané das Moças, ou ainda, quando
xingado, Mané-minha-égua”191, relata a sucessão de valentes do lugarejo ao doutor. Por ora é
Targino o valentão. No entanto, ali faltavam “nacidos sob o signo de Marte”. Contrapondo-se,
assim, ao que lhe fala ao doutor Fulô: “Isto aqui é uma terra terrível, seu doutor… Eu
mesmo…O Senhor me vê mansinho deste jeito, mas eu fui batizado com água quente.”192
190 ROSA, op. cit., 2001a: 300-301 191 Ibidem, p. 301 192 Ibidem, p. 297
101
A particularidade narrativa do escritor João Guimarães Rosa incide neste conto pela
incisão do não convencional na narrativa. Fulô, crente em parecer ser descendente dos
Peixotos relata ao doutor seus possíveis ganhos na vida. Esmera-se em contar o caso da
barganha na troca dos dois cavalos seus com os dos ciganos. Mas não contava que Targino
nutrisse afeição por sua noiva das Dor, decidisse por fazer-lhe uma visita e ainda prometer-lhe
nada fazer se não se intrometesse. Fulô, ao invês de lutar pelo honra de sua noiva, de início,
fraqueja. Ao ver o estado do amigo, que já havia bebido, doutor tenta ajudá-lo e convida-o a
dormir em sua casa. Assim:
— Você dorme aqui, Manuel eu vou agir...
Mas o infeliz, desmesurando os olhos, e numa vozinha aflita, que vinha de lá de mais baixo do que a cachaça, do que o gálico, do que a taba — voz que vinha de tempo fundo — suplicou.
— Não faz nada não, seu doutor... Ele é o demônio... Não respeita nada e não tem medo de ninguém...
— Mas, Manuel! É até uma vergonha você dizer isso...
— Eu... Eu?
— Não fazer nada seria uma infâmia... Temos de defender a das Dor! Há momentos em que qualquer um é obrigado a ser herói...
— Uma osga!
— E o amor, Manuel? Ela é tua noiva! Esta história...
— Que história, que mané-história! O senhor está é caçoando comigo...
— Não, porque...
— Porque-isquê!
— A minha...
— Que-inha?
— Cala a boca!
— Que-ôca?
— Manuel, se você não dominar um pouco essa bebedeira, eu jogo um josé na rua!...Ah, melhorou, não é? Precisamos de pensar... Por que você não vai pedir proteção ao Nhô Peixoto?
— Ele é pirrônio... Não amarro cavalo com ele...
102
— Bem, mas se o sangue de Peixoto é bom mesmo para ferver, você vai preparar as armas, para enfrentar o Targino amanhã, na hora da baderna, não vai?
— Pois será que nem o senhor não é mais meu amigo? Está querendo ver a minha morte? Qualquer um outro eu escorava mesmo, mas o senhor não sabe que esse Targino é o valentão?!... (...)193
Neste diálogo, a valentia, tão presente nos jagunços, faz falta a Manuel. Receoso de
enfrentar Targino, Manuel Fulô esquiva-se de um possível duelo. E somente o afronta após
Antonico das Pedras ir a sua casa e fechar-lhe o corpo, para tal utiliza “agulha-e-linha, um
prato fundo, cachaça e uma lata com brasas”, em troca pede a mula Beija-Fulô. Garantia de
nenhuma arma atingir-lhe o corpo. Manuel, armado com um canivete, desfacela Targino “pela
altura do peito”. Acaba, então, com a vida do valentão.
“Corpo fechado”, posterior ao “São Marcos” que também articula a feitiçaria,
apresenta um importante tema, o verossímil, na medida que o conto suscita o questionamento
acerca do tema, seja em sua construção narrativa, seja no referente à feitura do fechamento do
corpo contra as adversidades.
Quanto à construção narrativa, o narrador aponta, pelo menos, três inícios em
momentos diferentes na narrativa. Há uma ruptura da verossimilhança da construção
narrativa. A primeira refere-se ao surgimento da noiva de Manuel Fulô na casa do doutor para
pedir ajuda monetária para o casamento, o “adjutório”. Logo antes, na narrativa, falava-se
sobre os valentões do lugarejo. Em seguida surge:
Ora pois, um dia, um meio-dia de mormaço e modorra, gritaram “Ó de casa!” e eu gritei “Ó de fora!”, e aí foi que a história começou. Bom, fui ver. Era uma rapariguinha risonha e redonda, peituda como uma perdiz. Bonita mesmo, e diversa, com sua pele muito clara e os olhos cor de
193 ROSA, op. cit., 2001: 318-319
103
chuchu. Pasmou parada e virou pitanga, pois não contava decerto encontrar gente de cidade e gravata.194
Adiante, no conto, quando já relatara o caso da troca com os ciganos, Manuel Fulô
falara sobre sua indisposição para a pessoa de Toniquinho das Águas, feiticeiro do lugarejo,
dono da sela mexicana, que ansiava para ficar com sua égua Beija-Fulô e continua a prosa
com doutor na venda, a história refaz-se, surge um novo começo para o conto:
E Manuel Fulô desceu cachoeira, narrando alicantinas, praga e ponto e ponto e praga, até que… Até que assomou à porta da venda — feio como um defunto vivo, gasturento com faca em nervo, esfriante como um sapo — Sua Excelência o valentão dos Valentões, Targino e Tal. E foi então que de fato a história começou.195
Após todo o prenúncio da defronta armada entre Targino e Manuel Fulô, recomeça a
história novamente. Primeiramente, o surgimento das Dores na casa do médico rearticulou a
narrativa. Depois, a presença de Targino na venda com seu defrontamento com Manuel Fulô.
Por fim,
Mas, de fato, as cartas dadas, a história começa é aqui. Porque: era uma vez um pedreiro Antonico das Pedras ou Antonico das Águas, que tinha também uma sela mexicana, encostada por falta de animal, e cobiçava ainda a Beija-Fulô, a qual, mesmo sendo nhata, custara um conto e trezentos, na baixa, e era o grande amor do meu amigo Manuel Fulô. Pois o Antônio curandeiro-feiticeiro, a pesar de meu concorrente, lá me entrou de repente em casa, exigindo o Manuel Fulô a uma canto — para assunto secretíssimo.196
No entanto, Antonico das Pedras, ou Toniquinho das Águas, já havia aparecido
anteriormente na narrativa. E Manuel Fulô havia dito da vontade de Antonico querer sua égua
194 ROSA, op. cit., 2001a: 303 195 Ibidem, p. 316-317 196 Ibidem, p. 321
104
Beija-Fulô, que acaba cedida ao feiticeiro por causa da mandiga feita e estipulada por um
pacto entre ambos. O pactário é um tema que está presente, também em Grande sertão:
veredas. Em Manuel Fulô deu-se da seguinte maneira:
Aí, de chofre, se abriu a porta do quarto-da-sala, onde os dois davam suas vozes, e o Antonico das Pedras surgiu, muito cínico e sacerdotal, requisitando agulha-e-linha, um prato fundo, cachaça e uma lata com brasas. E Manuel Fulô repareceu também, muito mais amarelo do que antes, dizendo ao povo Véiga, funebremente:
Podem entregar a minha Beija-Fulô p’ra o seu Toniquinho das Águas, que ela agora é dele…
[…] E nisso, abriram outra vez a porta do quarto-da-sala, e Manuel Fulô saiu primeiro. Surgiu como uma surpresa, transmudado, teso, sonambúlico. Abrimos caminho, e ele passou, para a rua. Ia do jeito com que os carneiros investem para a ponta da faca do matador. Vi-lhe um brilho estricto, nos olhos.197
A verossimilhança é atribuída por Aristóteles ao universal.198 Mas a aceitação de algo
como verdadeiro por ser universal não considera a particularidade inerente a cada
descobrimento, e sendo aproximação feita por semelhança deixa escorregar a essência, por ser
simulacro. A narrativa de Rosa não segue a verossimilhança narrativa. Pois, ao considerar a
verossimilhança sob o plano do universal e verossímil como o verdadeiro, a universalização
mostra-se como o critério para que a aceitação ocorra. Não é isso que ocorre nas sagas de
Sagarana. Cada saga apresenta sua particularidade na construção narrativa e, inclusive, não
estrutura-se para estar de acordo com o verossímil. A construção narrativa não obedece a uma
fórmula de narrativa lógica. Vai de oposição ao que dizia Aristóteles ao considerar que a
verossimilhança deve ocorrer, pois seria imprescindível.
O pactário segundo o caráter de verosssimilhança quer ser crível, realizável. No
entanto, o pacto feito por Manuel Fulô, a pesar de ser indicado na narrativa, não desperta
197 ROSA, op. cit., 2001a: 322 198 ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Sousa. Lisboa: Guimarães Editores, [s.d]. p. 117
105
qualquer vínculo com a realidade, com o verossímil ao real. Aristóteles, na parte XV da
Poética, menciona que buscar a verossimilhança é necesario para o representação dos
caracteres ou o enredo das ações. Para ele a coerência verossímil não descarta os desígnios de
deuses e deve correlacionar as partes do todo. Logo, são cabíveis as inferências de deuses na
narrativa, já que a cultura grega cultuava aos deuses do Olimpo e criam em seus desígnios.
Portanto, a interferencia divina é tida como cabível.
No conto, ironicamente, o vencimento de Targino, o valente do momento, é atribuído
ao feitiço. A indagação da possibilidade de Fulô vencer Targino não estando com o corpo
fechado não deve ser remetida à questão do verossímil e/ou do inverossímil, a pesar de existir
a possibilidade desta leitura, porque está longe do propósito narrativo que é narrar, contar
contos, sem guiar-se por critérios baseados pelo verossímil. A verossimilhança narrativa,
portanto, não se aplica a este conto. Além do que Guimarães Rosa escreve o desenredo ao
invés do enredo.
A ironia também é uma forma de desconstrução narrativa e de quebra da noção de
verossímil. A ironia possui, portanto, função imprenscindível ao estruturar-se, no caso, no
conto. Melo e Souza menciona o romance de Sterne como destruidor das formas romanescas
convencionais.199 A ironia, destruidora da narrativa convencional, implementa o conto, ainda
que de modo sutil. Ela proporciona que o pacto seja mais um elemento servil à estrutura da
saga.
Vale a ressalva de que da poética clássica de Longino, “Do sublime”, Manuel Fulô
não é um representante, porque ele não circunscreve-se no sublime. De sublime nada é
vinculado a Fulô. A grandeza não faz parte desta personagem, que tampouco é digna de
imitação, pois não se apresenta segundo um protótipo de grande valente, herói, cavaleiro
dotado das mais belas e grandiosas qualidades e caracteres elevados. No entanto, não só as
199MELO E SOUZA, Ronaldes. “Introdução à poética da ironia”. Linha de pesquisa (2000) 1: 27 -48. p. 43
106
qualidades estão em desacordo, se comparadas ao sublime, tampouco a estrutura do conto está
condizente com ele. Por certo, “Corpo fechado” não se articula sublimamente.
A“Arte poética” de Horácio, a pesar das aparentes divergencias, apresenta
convergências que podem ser relacionadas, no caso, não somente com o conto “Corpo
fechado”, mas também com Sagarana. Assim, nos mostra o seguinte trecho de Horácio
comparado ao ileso gume das palavras:
Outrossim, se, empregando-se delicada cautela no encadeamento das palabras, um termo surrado, graças a uma ligação inteligente, lograr aspecto novo, o estilo ganhará em requinte. Se acaso idéias nunca enunciadas impuseram a criação de expressões novas, será o caso de forjar termos que não ouviram os Cetegos de túnica cintada. Tomada com discrição, tal liberdade será consentida e palabras novas em folha terão curso quando pingarem da bica grega, numa derivação parcimoniosa. Ora, que regalia consentirá o romano a Cecílio e Plauto, mas negará a Vergílio e Vário? Se eu sou capaz dumas minguadas aquisições, por que mesquinar-se esse direito, uma vez que a linguagem de Catão e Ênio enriqueceu o idioma nacional lançando neologismos? Era e sempre será lícito dar curso a um vocabulário de cunhagem recente. Como, à veloz passagem dos anos, os bosques mudam de folhas, que as antigas vão caindo, assim perece a geração velha de palabras e, tal como a juventude florejam, viçosas, as nascediças. Somos um haver da morte, nós e o que é nosso. Pode Netuno, gasalhado em terra, abrigar dos aquilões nossas esquadras —uma obra de rei; pode um paul, por longo tempo improdutivo e praticável aos remos, alimentar as cidades ribeirinhas e sentir o peso do arado; pode um rio aprender um caminho melhor e abandonar um curso fatal às searas; as obras humanas passarão. Muito menos se há de manter de pé, vivedoura, a voga prestigiosa das expressões. Reviverão muitos termos que haviam caído e outros, hoje em voga, cairão, se assim reclamar a utilidade, de cujo arbítrio exclusivo pende o justo e o normal numa língua.200
Horácio, no entanto, considera que os gêneros literários não podem estruturar-se na
narrativa interpondo-se. Para ele deve existir uma linealidade no uso da forma literária. Em
Sagarana, a unidade formal não é pretendida, já que cada conto apresenta sua própria
200 HORACIO. In: ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A poética clássica. Trad. Jaime Bruna. 3ª ed. São Paulo: Cultrix, 1988. p. 56-57
107
estrutura narrativa. Contudo, a poética de Horário não é, totalmente, condizente com a poética
de Rosa.
Em sua postulação em Poética, Aristóteles pondera que deve ser considerada a
“imitação praticada”201 e não a forma. No entanto, a relevância de uma imitação praticada
envolve a ocorrência de uma moldura. Assim, a arte, também, a literatura, seria uma moldura,
até da realidade. O que foge à genuinidade do narrar. Narrar é lenguagem que conta e diz-se.
Ao comparar Homero e Empédocles, um poeta e outro fisiólogo, Aristóteles evidencia a
dualidade de conteúdo, do tratamento diferente, a pesar da forma parecida, metrificada.
Aristóteles salienta que as artes são diferentes segundo os “meios de imitação”.202
Assim, não há uma unidade para todas as artes em relação aos meios dispostos. Ao considerar
que a arte possui meios de imitação diferentes, salienta-se que não há unicidade entre as
diferentes artes. O que não quer dizer que os meios não podem apresentarem-se em diferentes
artes. Aristóteles pondera que há, para a imitação, três traços diferenciais: o modo, os objetos
e os meios.
A forma como se dá a imitação é um caráter distintivo para Aristóteles, o qual
menciona o seguinte: “O imitar é congênito no homem (e nisso difere dos outros viventes,
pois de todos é ele o mais imitador, e, por imitação, apreende as primeiras noções) e todos os
homens se comprazem no imitado.”203 O imitar adquire importancia por possibilitar que o
homem mostre a realidade, não totalmente de acordo com a que está circunscrita, mas sim
com aquela que apresenta uma nova dimensão. Entendido o imitar como a não realidade de
ações, suspende-se o valor contido no agir, empenho da ação (imitativa). Considerando que
foi do imitar e ritmo e harmonia que originou-se a poesia, Aristóteles avalia que a imitação foi
essencial para o advento da poesia, não somente dela, mas da comédia e tragédia também.
201 ARISTÓTELES, op. cit., [s.d]: 102 202 Ibidem, p. 103 203 Ibidem, p. 105
108
O verossímil é importante para a noção de arte de Aristóteles. Pois, para ele a arte
apresenta a verossimilhança como elemento constituidor de si. Também, a oposição entre o
historiador e poeta, como um servil ao particular e outro ao universal, adquire valorização por
insinuar que a poesia, necessariamente, não deve ser histórica. O seguinte trecho de Poética
menciona o seguinte:
Pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício de poeta narrar o que realmente acontece; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível, verossímil e necessariamente. Com efeito, não diferem o hitoriador e o poeta, por escreverem em verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postas em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa), —diferem sim, em que diz um as coisas que sucederam, e o outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é mais filosófica e mais elevada do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular. Referir-se ao universal, quero eu dizer: atribuir a um indivíduo de determinada natureza, pensamentos e acções que, por liame de necessidade e verossimilhança, convém a tal natureza; e ao universal, assim entendido, visa a poesia quando põe nomes às suas personagens; particular, pelo contrário, é o que fez Alcebíades ou o que lhe aconteceu..204
Apesar de não seguir a proposta aristotélica da verossimilhança narrativa, contra o
conceito de história, na literatura, também se expôs Rosa ao considerar que estórias são seus
escritos que, necessariamente, não são história.
Universalizar a personagem, ou seja, permitir que o âmbito dela não seja medido por
seu caráter histórico, nem geográfico, é cabível ao considerar a inexistência de fronteiras para
a literatura. O sertão de Rosa não é um mero espaço geográfico. O advento da personagem
não se prende à vivência histórica, unicamente. Várias personagens narradas, primeiramente,
há tempos passados comprovam, na atualidade, que a historicidade não é um traço marcante
para que advenham, no sentido de que essas personagens sirvam a um diálogo, ainda que em
dissonância, com o presente. 204ARISTÓTELES, op. cit., [s.d]: 116-117
109
3.3 A (DES)CONTRUÇÃO NARRATIVA EM “DUELO”
O edifício ergueu-se em um espaço que antes nada construído havia ou onde foi
demolido algo para que o edifício surgisse. A construção pode provir de um espaço não
aproveitado até então ou de um reerguimento, reconstrução, reedificação. Aliás, a construção
pressupõe um fundamento necessário e calculado desde as bases até a mais alta torre.
A narrativa apresenta consistência edificante. À construção narrativa não se remete
somente o ato de escrever, a escritura. Refere-se, também, à linha não escrita da narrativa. E
as linhas escritas anteriormente e posteriores, visto que o diálogo traçado é erigir.
“Duelo”, conto de Sagarana, desconstrói-se narrativamente sob os desígnios
construtivos. Turíbio Todo, que havia avisado à esposa que não dormiria em casa, pois iria ao
pesqueiro das Quatorze-Cruzes e pernoitaria na casa do primo Lucrécio, no Dêcamão, mudou
de idéia e voltou para casa. Ao chegar em casa viu a esposa, dona Silivana, com Cassiano
Gomes “em pleno adultério”205. O mais honroso seria que Turíbio Todo defendesse sua honra
no ato. No entanto, ele resolve vingar-se depois. Assim,
Todavia, como o bom, o legítimo capiau, quanto maior é a raiva tanto melhor e com mais calma raciocina, Turíbio Todo dali se afastou mais macio ainda do que tinha chegado, e foi cozinhar o seu ódio branco em panela de água fria.206
Na manhã seguinte, quinta-feira, Turíbio Todo decide então ir de tocaia à casa de
Cassiano Gomes. Ele, da janela, atira e pensa acertá-lo. Mas, a contra-tempo, acerta o irmão
dele. Turíbio parte então fugitivo. Cassiano Gomes deve vingar a morte do irmão. Inicia-se,
assim, o duelo construído por desencontros.
205 ROSA, op. cit., 2001a: 177 206 Ibidem, p. 178
110
As peripécias de ambos desenvolvem-se com a narrativa que vai tecendo-se. O duelo
traçado, fabulosamente simples, motivo de vingança, constrói-se pela desconstrução de uma
possível narrativa tradicional que não se concretiza. A morte direta de um dos dueladores pelo
opositor. Cassiano Gomes, mesmo que seja considerada sua morte indiretamente causada por
Turíbio, falece de malefício da saúde. Já Turíbio Todo morre por mãos do capiau Timpim
Vinte-e-Um.
Surgem as estratégias de cada opositor para conseguir matar o adversário. Logo após a
morte do irmão e da fuga de Turíbio, a trajetória de Cassiano, para emboscar o adversário,
revela-se:
Cassiano pensou, fumou, imaginou, trotou, cismou, e, já a duas léguas do arraial, na grande estrada do norte, os seus cálculos acharam conclusão: Turíbio Todo tinha uns parentes em Piedade do Bagre, ou ali por menos longe… Para lá batera, direitinho, ainda assustado por conta do malfeito. Não podia ter tomado outro rumo, e, de seguro, dando o mais que pudesse, teria vindo a galope. Quando ele chegasse na Piedade — para diante não havia terras aonde um cristão pensasse ir, — descansado, junto de gente sua, tornaria a ter raiva e tratava de voltar nos passos.
E estava muito certo disso tudo:
— Ele vai como veado acochado, mas volta como canguçu... No meio do caminho a gente topa, e quem puder mais é que vai ter razão...
Não precisava, portanto, de pressa, e podia ir na marcha estradeira, sem estropiar a bestinha. E, nem que só para não deixar que se esgotassem as suas reservas de ódio, punha ele a idéia em assuntos amenos, e se relaxava para caçar o jaó nas capoeiras e, nos campos, a codorna e a pomba torcaz.207
Adiante, na narrativa, o trajeto estipulado de Cassiano para Turíbio é retificado. Mas
não o encontra ainda em Piedade do Bagre. Neste ínterim duelístico, a busca pelo opositor se
escreve pelas trajetórias de ambos que não se cruzam em momento algum.
A técnica utilizada no duelo serve para demonstrar a perspicácia de cada um. A
estratégia e a tática deles ressalta-se no seguinte trecho:
207 ROSA, op. cit., 2001a: 180
111
E Cassiano Gomes, por ter vinte e oito anos e, pois, ser estrategista mais fino, vinha pula-pula, ora em recuos estúrdios, ora em bizarras demoras de espera, sempre bordando espirais em torno do eixo da estrada-mãe. Mas Turíbio Todo, sendo mais velho, tinha por força de ser melhor tático, e vinha vai-não-vai, em marcha quebrada, como um vôo de borboleta, ou melhor falena, porque se fizera noctâmbulo; e levava além disso estupenda vantagem, traquejado no terreno, que lhe era palma das mãos.208
Na verdade, esta técnica é contraditória na medida em que não ocasiona o encontro entre
ambos. A maestria é ressaltada pelo narrador para ser negada na narrativa. Chegam a
caminhar paralelamente, um em relação ao outro, sem se cruzarem:
E quando Turíbio Todo riscou um arco, do Aruá ao cedro, Cassiano Gomes vinha precisamente em reta acelerada, e tocou-lhe, amanhã e ontem, a trajetória, em tangente atrasada e em secante adiantada demais. Depois, viajaram quase de conserva, perfeitamente paralelos, e ambos sentindo que estava chegando a hora da missa-cantada, e o fim de tanta cacetação.
Até que, bruscamente, as duas paralelas convergiram, no porto da balsa, onde um barqueiro transportava animais e pessoas a quatrocentos réis por cabeça, e onde rolava, sujo e sem sombras, mugindo no descampado, o Paraopeba — o rio amarelo de água chata.209
A probabilidade de se encontrarem é enorme, mas não é o que acontece. Quebrada
esta perspectiva, fica postergado o encontro. O duelo do drama de vingança desconstrói-se no
plano narrativo. A narrativa de “Duelo”, como as demais narrativas de Sagarana, não servem
a esquematizações estruturais, caso seja de vontade não estruturar a poeticidade em uma
fórmula.
A narrativa, a saga, o conto, instala mundo. Como obra que opera, o conto mundifica-
se. A obra é mundo. O mundo do sertão é o elo constituidor das sagas. Ao se considerar que
“ser obra quer dizer: instalar um mundo”210 não se deve descartar o operar provocante da
208 ROSA, op. cit., 2001a: 183 209 Ibidem, p. 186 210 HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Trad. Maria da Conceição Costa. Lisboa, Rio de Janeiro: Edições 70, [s.d]. p. 39
112
obra. O mundo mundifica tal qual a narrativa põe em palavras o sertão. A narrativa, em
Sagarana, desvela sertão. Verdade sertaneja é a narrativa reveladora poética. A narrativa de
“Duelo”, se simplificada ao enredo de vingança, simploriamente, não leva em consideração a
instauração do mundo sertanejo, nem o artificio e engenho narrativo, que desconstrói a
narrativa tradicional de vingança, ao construir-se.
A obra, o conto, a saga deixa a linguagem dizer. Ultrapassa o plano meramente
estrutural-narrativo ao permitir que a linguagem diga, a obra não será um mero sistema de
códigos, prontos para a decodificação. O dizer da linguagem desperta na obra a não serventia.
Pois, a obra não possui nem serve a um propósito metódico. A obra deve provocar o agir, a
ação, o operar. Não há um desprezo pelo sistema de língua, já que é a partir dele que a
linguagem diz, articulando-se. Mas, a linguagem não se dá, exclusivamente, graças à língua,
em visto que há linguagem não-verbal. Contudo, para a obra veiculada à escrita, a língua,
além de possuir serventia, possibilita que a linguagem se mostre dizendo.
No conto, a relação do escritor com a língua e a técnica narrativa, mais que um lidar
tecnicista, é um enveredamento pelo pensar a palavra, a linguagem. Guimarães Rosa diz
“chocar as palavras”, ou seja, pensá-las desde o a formação e o nascimento. Conhecido pelos
neologismos, Rosa com a palavra, instaura o novo, a linguagem que não cessa de dizer
sempre, nem sempre o mesmo. O ser útil da língua, a codificação de um sistema lingüístico, é,
assim, suplantado pela incessante linguagem que diz e em silêncio.
O operar, o agir da obra é a verdade. Não se quer dizer que a estrutura narrativa,
encadeada pela língua a forneça, mas sim pela linguagem, o agir, o dizer da linguagem. “É o
ser-obra da obra”211 a verdade. Ao pôr-se a operar, a verdade não se permite enquadrar-se em
um módulo, protótipo e modelo. Assim, captar o verdadeiro não torna-se possível na obra. A
211 HEIDEGGER, op. cit., [s d], p. 44
113
verdade é o embate do desocultar-se no ente em sua totalidade.212 A verdade, portanto, não
está fechada nas palavras que o conto contém. A essência do criar e da verdade é desoculatção
do ente. A verdade da obra é o operar. O verdadeiro da obra, inexistente, se visto como
enunciado, é objeto. Longe de uma adequação, díspare em falso e verdadeiro, a verdade não
cria parâmetros para si. Não pode ser representada, posto que não se forma por cadeias
nomeadoras entre falsas e verdadeiras.
A coisificação da narrativa não permite que ao ente seja colocado em obra a sua
verdade. A obra não pode ser apetrecho, substância, sensação ou modelo. Deve proporcionar
que ocorra o desvelamento do ente (oculto), o qual era conhecido pelos gregos como alétheia.
O desvelamento do ente, em obra, na obra, é mais que a identificação entre leitor e livro ou
simpatia de leitor com o autor. No entanto, a identificação pode suscitar o desvelamento do
ente, enquanto presentifica sua verdade. A simpatia entre idéias pode, quem sabe, um dia,
provocar o desocultamento das palavras adormecidas por uma leitura mecanicista. A verdade,
como já foi enunciada, não possui fórmulas mágicas e não foge à ambigüidade que pode
tensionar. A tensão entre falar e silenciar, ocultar e desocultar, velar e desvelar, dizer e
ausentar-se dá-se em verdade.
A verdade, como acontecer, não se estagna, está em operação. Na obra, a verdade não
é adequação ao entendimento da mensagem explicitada. Mas, o movimento resultante do
florescimento propiciado pelo operar da obra. Não resumida à sentimentalidades despertas, a
narrativa tece verdade. A verdade entrelaçada pela linguagem afeta, na medida em que ao
adentrar-se na narrativa, deixa desocultar-se. Mais que simples afetação, o desvelamento do
ente se dá. No entanto, a obra não é suporte da verdade ou da linguagem. A linguagem por si
só é linguagem e pode dizer por ser linguagem. A verdade, também, não possui suporte algum
para que se faça presente. Por trazer consigo o seu caráter de elemento produzido, como
212 HEIDEGGER, op. cit., [s d], p. 44
114
acentua Heidegger em A origem da obra de arte213, a obra é, muitas vezes, desvirtuada do seu
caráter de agir incessante, posto que ela não se esgota em uma leitura nem em uma vigência
de tempo determinado.
É, para Heidegger, a técnica depreendida e entendida como desencobrimento que
possibilita a inserção do termo técnica para a arte. De outro modo, a técnica não serveria à
obra de arte. A entificação da obra segundo as quatro causas (matéria, forma, fim e eficiente)
impede que o caráter criador e originário da obra ocorra. Segundo esses critérios, a obra
desvirtualizaria o desencobrimento da linguagem, do narrar, da verdade para processos de
entificação da obra. A obra, no entanto, não é uma entidade. A obra é obra à medida que
opera a linguagem, desencobrindo-a no narrar. As entrelinhas da obra é, também, o espaço do
desencobrimento da linguagem, onde se revela o que não é dito. A obra não é uma produto
pronto ou semi-pronto à espera de um uso lingüístico ou crítico. Heidegger considera que
A partir da consideração da delimitação da essência (Wesensumgrenzung) da obra que foi alcanzada, segundo a qual na obra está em obra o acontecer da verdade, podemos caracterizar a criação como o deixar-emergir (das Hervorgehenlassen) num produto (das Hervorgebrachtes). O tornar-se-obra da obra (das Werkwerden) é um modo do passar-a-ser e de acontecer da verdade. Na essência dela reside tudo.214
Ao pôr-se como obra e ao ocupar seu lugar, a obra desoculta-se como obra. Instaura-se
obra. A obra não é produto, não apresenta a verdade na forma, porém a verdade se articula na
linguagem. A obra nos retira do habitual e nos lança na eclosão de verdade que ocorre. A obra
não é específica, mas, sim, em cada obra há uma eclosão de verdade. A verdade contida e que
eclode em uma obra não ocorre em uma outra, pois, a eclosão da verdade não possui módulos.
213 HEIDEGGER, op. cit., [sd]: 46 214 Ibidem, p. 48
115
Assim, cada conto pode apresentar o seu desocultamento de verdade, a pesar de apresentarem
uma unidade, a linguagem que o tece.
A verdade é, portanto, operar, poetizar. Pelo operar, a verdade não se estagna.
Contínua irrompe a estaticidade de letras, formas e sintagmas. Ultrapassa o “ileso gume” das
palabras. E mantém-se além da simples remissão de um significado expendido. Por poetizar a
verdade instaura mundo. Por vezes, a instauração de um mundo confunde-se com dogmas.
Mas, a verdade não é dogmática, posto que não é doutrina. Por experiência de verdade não se
deve atribuir, confusamente, a adoção por sistema considerado verdadeiro, contraposto ao
falso. A experiencia de verdade não busca elucidar, posto que no operar da linguagem no
desvelamento não há procura por um objeto.
Da obra ao âmbito da arte, a verdade vigora. A arte é, segundo as palabras de
Heidegger, “um devir e um acontecer da verdade”215. A tessitura da obra, enquanto, vigor da
verdade, desobstrui a linguagem da sincronidade com o tempo cronológico e com a
compatibilidade para o habitual. A ruptura com o tempo cronológico se refere a possibilidade
de engendro da presença da verdade como memória. A inserção temporal e histórica da obra
de nada dizem sobre a verdade que emana da obra, pois, senão, a validade da obra estaria
condizente com o tempo em que foi posta em obra. A arte que encadeia o vir a ser e o
acontecer da verdade poetiza e permite que a poesia constitua-se atemporal.
A ressonância da verdade é poesia, saga. Onde palpita a verdade clarifica a poesia. E
“o dizer projectante é Poesia”216. A narrativa que se faz presente, Sagarana, clarifica-se
poeticamente. A ressonância poética permite à narrativa instaurar-se e, enquanto linguagem
que é abertura, abre-se à verdade. A linguagem, na obra, em Sagarana, não deve ser
entendida somente como uma expressão escrita ou oral da língua. O dizer da Poesia é o dizer
215 HEIDEGGER, op. cit., [sd]: 57 216 Ibidem, p. 59
116
da saga. O dizer que mostra, projetante. O dizer funda mundo. A relação do dizer com a
linguagem é primordial, pois
[...] cada língua é o acontecimento do dizer, no qual, para um povo, emerge historicamente o seu mundo e se salvaguarda a terra como reserva. O dizer projectante é aquele que, na preparação do dizível, faz ao mesmo tempo advir, enquanto tal, o indizível ao mundo. Num tal dizer é que se cunham de antemão, para um povo historico, os conceitos da sua esencia, a saber, a sua pertença à história do mundo.217
A língua pensada além da pragmaticidade e praticidade do sistema lingüístico se
permite caminhar nas veredas da linguagem, memoria e verdade. A consideração de que “a
própria linguagem é Poesia em sentido essencial”, transmite o quanto a poesia é
imprescindível para o lidar com o mundo. A poesia funda mundo, por instaurar realidade. A
realidade instaurada pela poesia não simplifica o redor, e sim o advento da verdade em sua
dinâmica. A linguagem não se torna um veículo para o advento dela, porque é essencialização
poética, como se dá em Sagarana, e nas demais instâncias originárias. A narrativa originária
não se resume àquela que permite um recomeço nem um outro fim. Mas é aquela que carrega
consigo o construir-se no dizer que mundifica.
A desconstrução narrativa em “Duelo”, referida à desconstrução da provável narrativa
de vingança tradicional não concretizada, permite a percepção de que o conto não precisa
seguir manual de estrutura narrativa para que se torne um conto, uma obra.
O pacto feito entre Cassiano Gomes e Timpim Vinte- e- Um só é evidenciado quando
este avisa a Turíbio Todo que vai matá-lo. Os favores que Cassiano Gomes, antes de morrer,
fizera a Timpim não foram em vão. Ao saber da morte de Cassiano, ex-amante da sua mulher,
Turíbio resolve voltar para sua casa e esposa. No caminho de volta, ele encontra o capiau
217 HEIDEGGER,op. cit., [sd]: p. 59
117
Timpim, o qual nada tem de parecido com Cassiano Gomes, o antigo rival. Eis Timpim um
capiau
Com um sorrisinho cheio de cacos de dentes, ficou olhando Turíbio, que também o examinava, com uma vontade doida de rir.
Porque o outro, à guisa de capote, trazia um saco de aniagem cujas costuras laterais desfizera, enfiada a cabeça por um buraco ao fundo; e a bizarra roupagem caía-lhe à frente e às costas, como a casula de um padre a dizer missa. Estava descalço, mas com enormes esporas nos calcanhares, e, para bater, trazia um galho de uvatinga na mão.
O cavalinho pampa — era mesmo um cavalo — com o rabo amarrado e a crina cortada rente, funga-funga, magrelo, se afinava pela mesma petição-de-miséria: o freio era de barbicacho; e sela um ombilho quase cangalha, faltando-lhe um estribo; e não tinha rabicho e nem peitoral218
Ambos caminham pelo mesmo trajeto. Na altura de Quilombo, tal é a surpresa de
Turíbio, quando o capiau, totalmente desfigurado de uma protótipo de duelador, confessa a
morte por vingança, como havia prometido cometer a Cassiano Gomes, no tempo em que este
estava moribundo no Mosquito. A pesar de tentar persuadir seu opositor, de nada vale as
tentativas de Turíbio. Ao tentar atirar em seu opositor, como última maneira de salvar-se,
Turíbio Todo é atingido “com uma bala na cara esquerda e outra na testa”219 e morre.
218 ROSA, op. cit., 2001a: 203 219 Ibidem, p. 208
118
CONCLUSÃO
Veredas de Sagarana articula linguagem, memória e verdade. Este articular coincide
nos contos de Sagarana, trazendo à dissertação uma relação harmoniosa. Da relação
estabelecida entre a linguagem e os contos, surgiram três temas bastante produtivos. A
linguagem ganhou parâmetros que possibilitaram o desenvolvimento da dissertação. Seja o
dizer dos bois, o vigor da palavra ou a experiência de um burrinho possibilitou que a
linguagem se presentificasse, de modo que a exteriorização, a formatação não foi almejada,
em detrimento do vigor da linguagem.
A memória é tema recorrente na narrativa, já que o narrar é também memória. Na
presente dissertação, a memória presentificou-se porque não foi entendida como um fato
estanque do passado, de modo que a lembrança de Luísa, para os primos Argemiro e Ribeiro,
em “Sarapalha”, desencadeiou fatos do presente da narrativa. A estória e a história são
contrapostas se há a consideração de que a estória não quer ser história, na medida em que
não quer ser somente feitos de um contexto socio-políticico e econômico nem representante
fiel de um modelo de representação. Por esse viés, a estória se unirá à memória enquanto
narrativa de engendro. O povo funda memória, não no sentido de memória coletiva, mas sim
por tornar habitável a terra, no sentido de povoar com mitos, lendas, músicas, contos,
narrativas, enfim.
No âmbito da verdade, o desocultamento não tem como princípio revelar o não-escrito
ou esquecido, mas o velado, resguardado. Este não surge simplesmente, porém advém da
escuta. Ao se enfocar a verdade em uma personagem como Augusto Matraga, a ênfase recai
não na figura representada, mas na dinâmica que confere existência à personagem em seu
ocultar e desocultamento. É irrelevante a comprovação da vida verídica da personagem, ou de
sua possibilidade, posto que, a narrativa, por si só é existência. Narrar é existir quando o
dizível é mais que uma combinação de fonemas e letras. Já ultrapassa os limites tecnicistas
119
por não se enquadrar em fórmulas que, muitas vezes, são confundidas com as técnicas
narrativas de cada autor. Assim, o verossímil não é almejado pelo narrar de Sagarana. A obra,
o conto não almeja ser objeto de representação. A obra é o operar do narrar, doação da
linguagem, desencoberta pelo desvelo da verdade.
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