Verbo-visualidade e argumentação em discursos jurídico-processuais Maria Helena Cruz Pistori Resumo O objetivo deste estudo é a descrição, análise e interpretação das relações entre linguagem, argumentação e verbo-visualidade, especialmente na esfera de atividade jurídica, em discursos que constituem parte de dois processos jurídicos: o primeiro, da área penal e o segundo, da área trabalhista. A análise dialógica do discurso, advinda das obras do Círculo de Bakhtin, assim como a retórica (antiga e nova) são os aportes teórico-metodológicos que fundamentam o trabalho. Assim, a análise examinará os textos jurídico- processuais selecionados como enunciados concretos que aliam verbal e visual num projeto discursivo único, e neles buscará como imagens e palavras conjuntamente constroem efeitos de sentido persuasivos. Os resultados da análise mostram ganhos teóricos e práticos não apenas na compreensão das relações entre linguagem, argumentação e visualidade, mas ainda em termos das relações entre o próprio Direito e a sociedade. Palavras-chave: Retórica - Bakhtin - Discurso jurídico - Verbo-visualidade. Abstract This study aims at describing, analyzing and interpreting the relations between language, argumentation and verbal-visuality, especially in the legal practice sphere, in discourses that are part of two law process: the first one is from the penalty area and the second one is from the labor area. The dialogic analysis of discourse, based on Bakhtin and the Circle’s work, as well as on the (ancient and new) rhetorical studies are the theoretical and methodological framework of this study. Hence, the analysis will scrutinize the selected law process texts as concrete utterances that combine verbal and visual dimensions in a single discursive project and it will seek how images and words together promote persuasive meaning effects. The analysis results show theoretical and practical gains not only in understanding the relations between language, argumentation and verbal-visuality, but also in terms of the relations between the Law itself and the society. Key-Words: Rhetoric - Bakhtin - Juridical discourse - Verbal-visuality. Introdução A utilização da imagem, associada ao texto verbal, é realidade presente na comunicação atual. Todas as facilidades de reprodução, impressão e divulgação que temos hoje permitem que ela constitua parte das mensagens que circulam em diferentes gêneros de discurso, com a mais ampla gama de finalidades, próprias de cada esfera de atividade humana. Mesmo discursos que, há pouco, usavam praticamente apenas a linguagem verbal - quer oral, quer escrita -, como é o caso do discurso jurídico, foco deste trabalho, vêm se aproveitando cada vez mais da possibilidade de “retratar” fatos, personagens, ações, espaços... Na realidade, sabemos que todo discurso expressa visões de mundo e adesão a pontos de vista e valores. Logo, o mesmo ocorre com o discurso jurídico-processual, cujas partes num processo buscam convencer o julgador acerca da justeza e/ou razoabilidade de seus posicionamentos axiológicos e solicitações; e, posteriormente, a própria instância julgadora, ao dar a conhecer à sociedade a decisão acerca das diferentes demandas, deve justificá-la (ou motivá-la) de modo adequado para torná-la aceitável, provocando um efeito de sentido de que é Pós-doutorado em andamento. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP; FAPESP (2010-2013); CNPq (2014).
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Verbo-visualidade e argumentação em discursos jurídico ... · entre linguagem, argumentação e verbo-visualidade, especialmente na esfera de atividade jurídica, em dois processos
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Verbo-visualidade e argumentação em discursos jurídico-processuais
Maria Helena Cruz Pistori
Resumo
O objetivo deste estudo é a descrição, análise e interpretação das relações entre linguagem, argumentação
e verbo-visualidade, especialmente na esfera de atividade jurídica, em discursos que constituem parte de
dois processos jurídicos: o primeiro, da área penal e o segundo, da área trabalhista. A análise dialógica do
discurso, advinda das obras do Círculo de Bakhtin, assim como a retórica (antiga e nova) são os aportes
teórico-metodológicos que fundamentam o trabalho. Assim, a análise examinará os textos jurídico-
processuais selecionados como enunciados concretos que aliam verbal e visual num projeto discursivo
único, e neles buscará como imagens e palavras conjuntamente constroem efeitos de sentido persuasivos.
Os resultados da análise mostram ganhos teóricos e práticos não apenas na compreensão das relações
entre linguagem, argumentação e visualidade, mas ainda em termos das relações entre o próprio Direito e
A utilização da imagem, associada ao texto verbal, é realidade presente na comunicação
atual. Todas as facilidades de reprodução, impressão e divulgação que temos hoje permitem que
ela constitua parte das mensagens que circulam em diferentes gêneros de discurso, com a mais
ampla gama de finalidades, próprias de cada esfera de atividade humana. Mesmo discursos que,
há pouco, usavam praticamente apenas a linguagem verbal - quer oral, quer escrita -, como é o
caso do discurso jurídico, foco deste trabalho, vêm se aproveitando cada vez mais da
possibilidade de “retratar” fatos, personagens, ações, espaços...
Na realidade, sabemos que todo discurso expressa visões de mundo e adesão a pontos
de vista e valores. Logo, o mesmo ocorre com o discurso jurídico-processual, cujas partes num
processo buscam convencer o julgador acerca da justeza e/ou razoabilidade de seus
posicionamentos axiológicos e solicitações; e, posteriormente, a própria instância julgadora, ao
dar a conhecer à sociedade a decisão acerca das diferentes demandas, deve justificá-la (ou
motivá-la) de modo adequado para torná-la aceitável, provocando um efeito de sentido de que é
Pós-doutorado em andamento. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP; FAPESP (2010-2013); CNPq (2014).
justa e equitativa. Posto de outra forma: o discurso jurídico é essencialmente argumentativo. As
imagens, caso ocorram no texto, estão a serviço dos posicionamentos e valores assumidos e das
solicitações expressas; mais ainda, estão a serviço da persuasão do outro.
Considerando especialmente a realidade desse alto nível de persuasão e
argumentatividade no discurso jurídico, não podemos, neste trabalho que busca a compreensão
da verbo-visualidade e argumentação em discursos jurídico-processuais, nos esquecer dos
estudos da antiga retórica, cuja finalidade, segundo Aristóteles, era “a descoberta do que, em
cada caso, é capaz de gerar a persuasão” (Retórica, 1356a). No ensino da construção do discurso
persuasivo desde o séc. V aC, a retórica buscava modos de levar o auditório à tomada de
posição diante de situações de conflito. Aliás, a importância da antiga disciplina aqui se avulta
ao lembrarmos que sempre esteve ligada ao Direito, já que seu ensino surge da necessidade de
defesa da propriedade na antiga Sicília (cf. Barthes, 1975: 151). Retomada na atualidade, antes
de tudo por Chaïm Perelman, que publicou seu Tratado da argumentação. A nova retórica, em
colaboração com Lucie Olbrechts-Tyteca, em 1958, novamente percebemos que o primeiro
olhar que o jusfilósofo belga a ela dirige parte também de suas preocupações com o direito.1
Hoje, porém, parece consensual afirmar que a retórica e a argumentação constituem partes
integrantes e essenciais das disciplinas da linguagem como um todo.
Nesses estudos, um dos importantes aspectos já levantados pela retórica antiga é a
questão do auditório (ouvinte, destinatário). Aristóteles dedica todo o segundo livro de sua Arte
retórica ao ouvinte, aos modos de persuadi-lo expressamente por meio das paixões. Também
Perelman e Olbrechts-Tyteca reafirmam essa importância: “É em função de um auditório que
qualquer argumentação se desenvolve” (1996, p.6). Com uma preocupação discursiva diferente,
que esclarecemos adiante, e sem tratar propriamente da retórica, as palavras de Mikhail Bakhtin
ampliam essa questão quanto tratam da compreensão responsivo-ativa do outro:
A consideração do destinatário e a antecipação da sua atitude responsiva são
frequentemente amplas, e inserem uma original dramaticidade interior no enunciado (em
algumas modalidades de diálogo cotidiano, em cartas, em gêneros autobiográficos e
confessionais). Esses fenômenos são de uma índole aguda, porém mais exterior nos gêneros
retóricos (Bakhtin, 2006, p.302; sem itálicos no original).
Assim, a obra de Bakhtin e o Círculo completam a abordagem teórica deste trabalho;
isto é, a aliança da retórica com noções do que tem se denominado análise dialógica do
discurso, encontrada na obra de Mikhail Bakhtin, Valentin N. Volochínov e Pavel Medeved,
todos componentes do Círculo, oferece-nos as lentes com que vamos ler e buscar a compreensão
e análise da verbo-visualidade nos discursos jurídicos que selecionamos. Tal aliança constitui-se
coerentemente principalmente se nos lembrarmos que, no pensamento bakhtiniano, a abordagem
1 Cf. “Da justiça”, primeiro capítulo de Ética e direito (São Paulo: Martins Fontes, 1996) na edição brasileira, cuja primeira
publicação é de 1945, na coleção das Actualités Sociales, Nova série, Universidade Livre de Bruxelas, Institut de Sociologie Solvay,
Bruxelas, Office de Publicité.
do discurso é proposta em sua integridade concreta e viva, o discurso situado espacial e
temporalmente, com um autor e um destinatário, cujo sentido é dado na interação do verbal com
o extraverbal (Cf. Bakhtin, 2008: 207); esse também o foco da antiga retórica, que tratava do
discurso situado, cada gênero se dedicando a situações, interlocutores, tema e finalidades
concretas e definidas (ainda que devamos lembrar que as retóricas grega e latina tratam
inicialmente apenas de três gêneros de discurso: o deliberativo, o judiciário e o epidítico).
O objetivo deste trabalho, pois, será o estudo, a análise e a compreensão das relações
entre linguagem, argumentação e verbo-visualidade, especialmente na esfera de atividade
jurídica, em dois processos jurídicos: o primeiro, da área penal e o segundo, da área trabalhista,
seguindo a abordagem teórico-metodológica já citada, que detalharemos no próximo item. A
seguir, apresentamos as duas breves análises e, depois, nossas considerações finais. Destacamos
que partimos do princípio de que é na conjugação de texto e imagem, consideradas como um
todo - um discurso verbo-visual, que os sentidos e os efeitos de sentido emergem.
1. Breves apontamentos teórico-metodológicos
Inicialmente é preciso observar que a obra do Círculo não se pretende uma teoria
acabada do discurso ou da linguagem, nem mesmo uma teoria linguística. Aliás, é importante
também afirmar que o trabalho do Círculo é obra de pensadores – filósofos, linguistas, músicos,
estudiosos da literatura, etc. - que construíram conhecimento e produziram obras importantes a
partir de debates comuns realizados em “círculos” na década de 1920-1930 – o que explica
posições, conceitos e noções familiares a todos os seus membros, particularmente Mikhail
Bakhtin, Valentin N. Voloshínov e Pavel Medviédev. A obra que produziram, algumas delas
cuja autoria ainda é disputada2, constitui-se num aparato teórico-epistemológico que, num
primeiro momento se julgou adequado sobretudo aos estudos literários; hoje, no entanto, se
percebe que, por tratarem da palavra e do discurso não apenas na arte ou na poesia, mas também
na vida, expressam noções e conceitos de grande força heurística para a compreensão da língua
e da linguagem de modo geral. E é a este conjunto teórico-metodológico que têm se referido os
estudiosos do discurso quando se referem à Análise Dialógica do Discurso (ADD).
Sem a pretensão, neste curto espaço, de uma exposição extensiva da teoria dialógica do
discurso inspirada na obra de Bakhtin e o Círculo, começamos com as palavras de Brait, que
bem a resumem:
2Citamos aqui apenas Marxismo e filosofia da linguagem; problemas fundamentais do métodos sociológico na ciência da
linguagem, que aparece sob a autoria de Mikhail M. Bakhtin e/ou Valentin N. Voloshínov em publicações de diferentes países, ou mesmo em publicações de um mesmo país em diferentes edições; e O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma
poética sociológica, cuja autoria é disputada entre Pavel N. Medviédev e Mikhail Bakhtin, entre outros. Não vamos nos deter na
questão da autoria neste texto, questão que já rendeu numerosos e polêmicos estudos.
Sem querer (e sem poder) estabelecer uma definição fechada do que seria essa análise/teoria
dialógica do discurso, uma vez que esse fechamento significaria uma contradição em relação
aos termos que a postulam, é possível explicitar seu embasamento constitutivo, ou seja, a
indissolúvel ligação entre língua, linguagens, história e sujeitos que instaura os estudos da
linguagem como lugares de produção de conhecimento de forma comprometida,
responsável, e não apenas como procedimento submetido a teorias e metodologias
dominantes em determinadas épocas. Mais ainda, esse embasamento constitutivo diz respeito
a uma concepção de linguagem, de construção e produção de sentidos necessariamente
apoiadas nas relações discursivas empreendidas por sujeitos historicamente situados (Brait,
2008: 10).
Restringimo-nos aqui à exposição de aspectos que consideramos de importância maior
no todo teórico, destacando categorias que servirão para análise das peças processuais
escolhidas: a dialogia inerente a todo discurso,3 ao lado da noção de relações dialógicas; a
noção de signo ideológico e os fundamentos teórico-metodológicos de análise
Bastante conhecida entre os estudiosos da linguagem, a dialogia é provavelmente o
conceito do Círculo mais amplamente divulgado. Compreende, como está em Marxismo e
filosofia da linguagem (Bakhtin/Volochínov, 1981 [1929]), o “‘diálogo’ num sentido amplo,
isto é, não apenas a interação face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que
seja”, na medida em que qualquer enunciação sempre “responde a alguma coisa, refuta,
confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio, etc.” (p.123). A interação
verbal é o fenômeno social que constitui o locutor e o interlocutor, sujeitos da enunciação, e o
diálogo é a verdadeira substância da língua.
Já as relações dialógicas, conforme as palavras de Bakhtin em Problemas da poética de
Dostoiévski [1929;1963], podem ocorrer a “qualquer parte significante do enunciado, inclusive
a uma palavra isolada, caso esta não seja interpretada como palavra impessoal da língua, mas
como signo da posição semântica de um outro, como representante do enunciado de um outro,
ou seja, se ouvimos nela a voz do outro” (2008: 210; grifos nossos). Destacamos, daí, o fato de
que tais relações acontecem entre posições. Além disso, na continuidade do texto, Bakhtin
afirma que elas “são possíveis também entre outros fenômenos conscientizados, desde que
estejam expressos numa matéria sígnica” (p.211), como, por exemplo, entre “imagens de outras
artes” (grifo nosso). Na análise, então, o reconhecimento das relações dialógicas entre os
discursos vai nos permitir a compreensão do nexo e da inter-relação necessária entre o verbal, o
visual e o extraverbal dos enunciados concretos, todos compreendidos como expressão de
posicionamentos. Mas as relações dialógicas, alerta ainda o filósofo russo, embora pertençam ao
3 É importante notar a concepção bakhtiniana de discurso, exposta com muita clareza no cap. O discurso em Dostoiévski, de
Problemas da poética de Dostoiévski: “a língua em sua integridade concreta e viva e não a língua como objeto específico da
linguística, obtido por meio de uma abstração absolutamente legítima e necessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso” (2008, p.207), afirmando ainda que, porque o discurso envolve as relações dialógicas - extralinguísticas, não pode ser estudado
apenas pela linguística, propondo a “metalinguística” como o estudo dos aspectos que ultrapassam os limites daquela disciplina, sem
ignorá-la, mas aplicando seus resultados (cf. 2008, p.207-211).
campo do discurso, não pertencem a um campo puramente linguístico do seu estudo (Bakhtin,
2008, p.208). Assim, o sentido do discurso depreende-se também das condições em que é
produzido, do modo como dialoga com as condições sociais, históricas, políticas e culturais, e
das próprias condições da interação verbal, da esfera de atividade em que é produzido, da
relação entre falantes – de hierarquia, igualdade, familiaridade, etc..
Aprofundando a reflexão sobre o conceito de matéria sígnica como componente do
enunciado, a que Bakhtin se refere no excerto acima, devemos retomar outra importante noção
elaborada pelo Círculo: os autores não tratam exatamente da noção de signo, mas de signo
ideológico, sempre “sujeito aos critérios de avaliação ideológica” (Bakhtin/Volochínov, 1981:
32). Porque é ideológico, o signo remete às diferentes esferas ideológicas em que surge, como
aquelas do conhecimento científico, da literatura, da moral, da religião, do direito, da estética,
cada uma com “seu próprio modo de orientação para a realidade” (p.33); quer dizer, cada esfera
ideológica reflete e refrata a realidade a seu próprio modo. Isso está bastante claro em Marxismo
e filosofia da linguagem (Bakhtin/Volochínov, 1981) e também no capítulo em que Medviédev
trata dos elementos da construção artística em O método formal nos estudos literários [1928],
detendo-se no problema do gênero (2012: 193-207). Acrescentamos ainda que, examinando-se o
todo da obra bakhitiniana, isto é, o arcabouço teórico-metodológico que se depreende da obra do
Círculo, é importante notar que todos os conceitos estão interligados: neste caso, não se
compreende o signo ideológico sem relacioná-lo com as esferas ideológicas (ou da atividade
humana), ou mesmo com a noção de gênero, já que o uso da linguagem em cada uma delas está
ligado a tipos de enunciados relativamente estáveis (Bakhtin, 2006: 261-262).
Assim, ao tratar da palavra, “o modo mais puro e sensível de relação social” e
“fenômeno ideológico por excelência” (1981: 36), Bakhtin/Volochínov afirmam que sua
realidade é a função de signo. Então, as relações dialógicas, que ocorrem entre fenômenos
expressos em qualquer matéria sígnica, podem ocorrer entre palavras e imagens de diferentes
esferas da criatividade ideológica, pois “todas as manifestações da criação ideológica - todos os
signos não-verbais - banham-se no discurso e não podem ser nem totalmente isoladas nem