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Il pensiero debole: Vattimo e Rorty
Moyss da Fontoura Pinto Neto*
Resumo: Este paper sintetiza alguns dos principais aspectos da
obra dos pensadores Gianni Vattimo e Richard Rorty. Para tanto,
rene, pri-meiramente, os elementos do pensamento fraco que remetem
ao nii-lismo de Nietzsche e ao Ser como evento de Heidegger,
gerando uma concepo de pensamento anti-fundacional que admite seus
limites e prope politicamente a reduo da violncia. Na mesma linha,
trabalha as influncias de Richard Rorty no seu
anti-representacionalismo e a defesa da solidariedade no lugar da
objetividade, redundando no seu liberalismo ps-moderno que recusa
as estruturas metafsicas liberais, mas, prag-maticamente, considera
a cultura liberal como aquela mais aberta aceitao tolerante s
demais.
Palavras-chave: Vattimo. Pensamento Dbil. Rorty.
Anti-representacio-nalismo.
* Doutorando em Filosofia (PUCRS). Mestre e Especialista em
Cincias Criminais (PUCRS). Professor do Curso de Direito da ULBRA.
Pesquisador e Conselheiro do Instituto de Criminologia e
Alteridade.
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Intrito
O presente texto busca ser apenas uma introduo sinttica obra
mltipla e multifacetada de dois filsofos contemporneos, o ita-liano
Gianni Vattimo e o norte-americano Richard Rorty. A aproximao entre
ambos se d a partir da noo de pensamento fraco, conceito cunhado
por Vattimo, mas que, de alguma forma, se aproxima seguramente da
fi-losofia de Rorty. Ambos articulam seus temas com alguma
simetria: ad-mitem a filiao a uma corrente de pensamento que teria
Nietzsche e Heidegger como pais na crtica metafsica, ainda que
Vattimo procure situar-se na dimenso hermenutica e Rorty reconstrua
o pragmatismo a partir de uma linguagem mais prxima da filosofia
analtica; na outra ponta, ambos tm severas preocupaes ticas e
procuram reconstruir a poltica a partir de um horizonte
ps-metafsico (ou ps-moderno) que diminua o sofrimento e se abra
para a alteridade. A seguir, traaremos alguns dos principais
aspectos de cada um dos autores.
I. Vattimo e o Pensamento Fraco
1.1. Introduo
O pensamento de Gianni Vattimo estrutura-se a partir de dois
fil-sofos decisivos para a Ps-Modernidade: Friedrich Nietzsche e
Martin Heidegger. Ambos seriam pais do pensamento ps-moderno e
decre-tam o fim da aventura metafsica. O referimento luminoso,
nico, est-vel, cartesiano do pensamento se perde sem receio,
transformando em pensamento fraco, sem um apoio fundacional
(TEIXEIRA, 2005, p. 7; VATTIMO, 1980).
O pensamento fraco formado por quatro caractersticas: a) um
tomar a srio as relaes entre evidncia metafsica e relaes de po-der,
com apoio em Nietzsche e talvez at Marx; b) um olhar amigo ao mundo
das aparncias, vendo a um possvel lugar para a experincia
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do ser; c) evitar a glorificao desse mundo, como em Deleuze,
para no cair novamente na metafsica; d) identificao entre o ser e a
lin-guagem, defendendo uma aproximao hermenutica de um ser frgil,
que se manifesta pelo recordo, pelas pegadas (TEIXEIRA, 2005, p. 8;
PECORARO, 2006, p. 192-193).
Trata-se, portanto, de uma estrutura que recusa qualquer fundao
ltima, qualquer ponto onde possvel o apoio, tal como o sujeito
durante a Modernidade. Seu pensamento marcado por um olhar
proposital-mente provisrio, marca apenas direo e rota a ser
seguida.
1.2. Nietzsche e o Niilismo
Etimologicamente, niilismo vem de nihil, nada. Filosoficamente
significa uma corrente que no aceita a possibilidade de a certeza
ser o indicativo da realidade em si, aparecendo, como em
Shopenhauer, o mundo como vontade de poder. Trata-se de uma
realidade catica, redundando em viso pessimista da realidade
(TEIXEIRA, 2005, p. 17).
Nietzsche se proclamar o primeiro niilista completo, o nico que
viveu a experincia niilista at o fim. O filsofo da Basilia ope um
nii-lismo ativo a um passivo: este se baseia no cristianismo,
defendendo um mundo alm. Aquele, por sua vez, consiste em uma
transmutao de todos os valores, sustentando a falsidade dos valores
cristos e a oposio de novos valores conforme a vida (TEIXEIRA,
2005, p. 18). O niilismo passivo um niilismo reativo, pois quando
os valores su-premos se dissolvem atua uma vontade desesperada de
restaur-los, utilizando-se de subterfgios idealistas e platnicos. O
ativo, por sua vez, aceita que Deus est morto, mas no se limita a
desmascarar as estru-turas eternas e mostrar o nada que a elas
subjaz, mas tambm produz novos valores, sentidos e interpretaes.
Julga os valores e verdades rece-bidos, ainda, a partir do seu
valor para a vida.
preciso entender que, para Nietzsche, a diferena platnica entre
o mundo verdadeiro e o mundo das aparncias foi dissolvida. Em O
crepsculo dos dolos Nietzsche descreve a queda do ideal
platnico:
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Como o Mundo-verdade tornou-se enfim uma fbula (Histria de um
erro). 1. O Mundo-verdade acessvel ao sbio, ao religioso, ao
virtuoso, vive nele, ele mesmo esse mundo.(Esta a forma mais antiga
da idia, relativamente racional, simples, convincente. Perfrase da
proposio: Eu, Plato, sou a verdade).
2. O Mundo-verdade inacessvel no momento, porm, prometido ao
sbio, ao religioso, ao virtuoso, ao pecador, que faz penitncia.
(Progresso da idia; torna-se mais sutil, mais insidiosa, mais
in-compreensvel, torna-se mulher, faz-se crist...).
3. O Mundo-verdade inacessvel, indemonstrvel, que no se pode
prometer, porm que mesmo supondo-se seja imaginrio, um consolo e um
imperativo.(O sol mais antigo ilumina no fundo, mas obscurecido
pela n-voa e a dvida, a idia se tornou plida, setentrional,
koenigsber guiana).
4. O Mundo-verdade... inacessvel? Pelo menos no alcanado em caso
algum. Logo desconhecido. Por isso nem consola, nem salva, nem
obrigada a nada; como pode obrigar a algo alguma coisa
desconhecida?(Aurora cinzenta, primeiro vagido da razo, canto do
galo do positivismo).
5. O Mundo-verdade; uma idia que no serve mais para nada, no
obrigada a nada; uma idia que se tornou intil e suprflua; por
conseguinte, uma idia refutada: suprimamo-la!(Dia claro, desjejum,
retorno do senso comum e da alegria. Plato se cobre de vergonha e
todos os espritos livres fazem um tumulto dos diabos).
6. O Mundo-verdade acabou abolido, que mundo nos ficou? O mundo
das aparncias? Mas no; com o Mundo-verdade abolimos o mundo das
aparncias!(Meio-dia, momento da sombra mais breve, termo do erro
mais demorado, ponto culminante da humanidade: INCIPIT ZARATUSTRA
(NIETZSCHE, 1988, p. 47-48).
O niilismo passivo, portanto, est ligado a uma nostalgia da
objeti-vidade perdida, a um desejo de verdade eterna e essencial,
uma vontade do dado. O niilismo ativo, por outro lado, tem
conscincia hermenutica,
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correspondendo a uma forma de vida mais rica e aberta. O
niilismo no mais encarado como uma perda das referncias ltimas,
como uma de-sesperana nostlgica, um desespero saudosista do tempo
das verdades eternas; o niilismo , antes de tudo, uma chance, uma
estrada positiva para o pensamento (TEIXEIRA, 2005, p. 19-20;
PECORARO 2006, p. 192).
Esse niilismo ativo representa um passo adiante na filosofia da
ma-nh, uma vez que eliminamos o mundo aparente (antigo
Mundo-ver-dadeiro). aqui que entra o eterno retorno como elemento
decisivo e uma espcie de redimir-se do tempo. Vattimo considera que
Nietzsche vai contra a concepo edipiana do tempo, em que cada
momento de-vora o anterior (pai), que lhe deu origem, sendo o mesmo
o seu destino. Nesse tempo, no possvel a felicidade, pois nenhum
momento tem em si a plenitude do sentido. O eterno retorno, assim,
vem de uma estrutura que no comporta apenas de construir instantes
de tal modo intensos e plenos que se passar a querer seu eterno
retorno (como havia ventilado em Humano Demasiado Humano), mas
tambm um sentido cosmo-lgico: necessria uma radical transformao que
suprima o tempo linear a partir da dissoluo do Mundo-verdadeiro e
todas as suas con-seqncias (VATTIMO, 1990, p. 70).
A filosofia da manh, que se constitui a partir de um niilismo
ativo, constri-se desde a radicalizao dos pressupostos da
Modernidade. Esse trajeto pode ser encontrado na prpria interpretao
de Vattimo da filoso-fia de Nietzsche, dividindo-a em trs perodos.
Enquanto o perodo jovem enfatizaria o artista trgico como
paradigma, o perodo mdio traria a adoo do esprito cientfico, ainda
que a cincia no fosse o valor em si, mas uma espcie de atitude
adequada, que a arte teria preparado. Trata-se, como afirma
Vattimo, do processo de auto-supresso da moral:
Auto-supresso da moral significa o processo no qual se d
des-pedimento da moral [...] por moralidade [...]. com base no
de-ver de verdade sempre pregado pela moral metafsica e depois
crist que nos fim as realidades em que esta moral acreditava Deus,
virtude, justia, amor pelo prximo so reconhecidas como erros
insustentveis (VATTIMO, 1990, p. 51).
Uma vez adotada essa atitude, chegar-se-ia concluso de que os
valores morais se auto-suprimem, abrindo a possibilidade da
terceira fase, a filosofia da manh. A filosofia mdia prepara a da
manh a partir de um contedo mais voltado instaurao de um estado de
esprito,
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sendo vazia de contedo. A partir dessa detonao dos valores
tradicio-nais a partir da sua prpria radicalizao (anlise qumica),
possvel ca-minhar com os erros, vivendo na superfcie (VATTIMO,
1995, p. 53-55). Trata-se, portanto, da instaurao de um pensamento
de errncia, em que o fundamento e a verdade se dissolveram
(TEIXEIRA, 2005, p. 24).
Esse retorno inocncia da existncia anterior ao Mundo-verda-de
descrito por Evilzio Teixeira com preciso:
O desmascaramento niilista de Nietzsche representa aquela intuio
de finitude como alteridade, pensada enquanto reserva e abertura,
dentro da qual, as coisas se deixam interpretar sem aquele
pretensioso mito da certeza do cogito. O que realmente conta a luta
pelo sentido que vontade de potncia pode trans-crever na existncia
somente des-substancializando o sujeito na abertura aos outros e ao
outro (TEIXEIRA, 2005, p. 28).
1.3. O Niilismo como fundao hermenutica
Mas como no cair no Nietzsche que Heidegger denuncia como o
ltimo dos metafsicos, aquele que encarna o fecho da metafsica na
medida que reduz finalmente o ser vontade de vontade, transformando
o mundo em espcie de plataforma tcnica e completando o total
esque-cimento do ser (VATTIMO, 1996, p. 91)?
aqui que Vattimo traz a ponte que liga Nietzsche ao pensamento
hermenutico, considerando que o niilismo pr-condio no apenas para
uma destruio total da metafsica, mas da possibilidade
herme-nutico-filosfica de deixar-se guiar pela coisa mesma do
filosofar. O niilismo denuncia a simples-presena das coisas e
mostra-se como uma nova experincia do pensamento, em que o ser doa
a condio para uma interrogao radical. Ele pe em xeque a metafsica
tradicional e seu sonho dogmtico, acelerando a paixo pelo
desencanto em relao ao estvel e eterno. Heidegger teria percebido o
potencial do niilismo de implodir a relao ser-essncia no processo
de reduo da realidade mscara, mas no dado seguimento a perceber o
niilismo como nvel ontolgico (TEIXEIRA, 2005, p. 30-31).
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A morte de Deus, assim, evento decisivo, mas no pode ser
inter-pretada dentro dos mesmos quadros metafsicos que a jogariam
em um atesmo ingnuo, espcie de teologia negativa (VATTIMO, 1990, p.
51-52). O niilismo, ao contrrio, pensaria a questo ps-metafsica a
partir de uma recusa da entificao do ser, recusando aquele que o
ente supre-mo, Deus. Mais tarde, o homem colocou-se nessa posio de
baliza teo-lgica, secularizando essa estrutura a partir da vontade
de representao e do domnio da subjetividade. A morte de Deus ,
assim, a destruio de qualquer baliza teolgica no pensamento, do
fundamento, razo, cau-sa primeira (TEIXEIRA, 2005, p. 33).
O nada aqui desempenha um papel fundamental: a porta de en-trada
para o pensamento do ser, pois possibilita a passagem do pensamento
ntico para o ontolgico, incapacitando a simples reduo impresso
imediata do cogito. O nada a possibilidade de entrar no ser do ente
para ultrapassar o ente em direo ao ser sem deixa-se iludir pela
plenitude do ente, tampouco, permanecer na superfcie annima do
ser-a (TEIXEIRA, 2005, p. 33). O pensamento niilista segue essa
trilha sem hesitar, no h salvao para a nossa civilizao seno
perceber que estamos erigidos sobre o nada. Trata-se de um
fundamento de ausncia de fundamento, ou de uma fundao do Ser
coincide com o seu des-fundamento.
Assim, a hermenutica apresentada como direo filosfica que traz
como tema central a interpretao mostra-se como base apropriada para
crtica e destruio da metafsica tradicional (VATTIMO, 1980, p. 35),
servindo de pano de fundo para a inaugurao do pensamento fraco.
1.4. Evento (Ereignis) e Pensamento Meditativo
Se o niilismo o ponto fundamental do pensamento nietzschiano que
atravessa o trabalho de Vattimo, a noo de Ereignis (evento) que ir
ser um dos principais traos incorporados do pensamento
heidegge-riano, que, como vimos, ocupa posio igualmente central
para o filso-fo italiano. A idia do evento do ser, em contraponto
entificao do ser traada pelo pensamento metafsico que ignora a
diferena ontolgi-ca, faz Vattimo recuperar a existncia de princpios
epocais detectada por Heidegger como viga-mestra para sustentao
desse seu pensamen-to sem fundo (VATTIMO, 1996, p. 115-116; 1980,
p. 73).
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A concepo de Vattimo coloca radicalmente o princpio epocal como
dado fundamental trazido por Heidegger e procura entrar em contato
com ele, evitando, assim, a condenao do passado (algo prprio do
tempo edpico que Nietzsche ajudou a corroer). A ausncia
nietzschiana de dis-tino dentre essncia e aparncia culmina a
histria do ser com a idia de vontade de potncia (momento da vontade
de vontade que encerra a metafsica), provocando uma espcie de
vertigem que mostra a ausncia de fundamento (TEIXEIRA, 2005, p. 70;
DUARTE, 2006, p. 226; VATTIMO, 1996, p. 96). Assim, pensar
[...] o evento no indica certamente uma essncia estvel do ser
vlida para todos os seus modos de dar-se na histria: o ser j no
algo de geral relativamente aos seus modos histricos de se
determinar. O ser nunca outra coisa seno o seu modo de se dar
histrico aos homens de uma determinada poca, os quais esto
determinados por este seu dar-se na sua prpria essncia, enten-dida
como o projecto que os constitui (VATTIMO, 1996, p. 118).
Diante disso, o pensamento no poder ser ingnuo a ponto de se
contrapor meramente metafsica (ou tcnica, que sua realizao1),
repetindo aquilo que pretende aniquilar, mas sua superao
(berwindung) deve vir a partir da sua dis-toro (Verwindung), por
meio da qual a metafsica retorna como diferena entre ser e ente.
Surge assim o pen-samento meditativo, que se ope ao pensamento
tcnico sem o recusar, mas sim pensando o domnio tcnico da
humanidade como algo assu-mido enquanto destino (Geschick). Pensar
o ser enquanto rememo-rao na sua diferena com os entes apresentados
historicamente no o mesmo que entificar esse ser, como fazia o
pensamento metafsico.2
1 Na idade da metafsica realizada, o pensamento d o ltimo passo
nesse caminho, pensando o ser como ser-representado, um ser
representado que depende completa-mente do sujeito re-presentante.
Representado no significa, naturalmente, imaginado, fantasiado,
sonhado, mas trazido conscincia, ao ser, mediante procedimentos
ri-gorosos, como os da cincia experimental e da tcnica, que no s
deles depende mas que a funda na sua prxima possibilidade. Se o
pensamento na idade da metafsica e da filosofia tal como
efetivamente se desdobrou, vivida da interrupo do ente quanto ao
seu ser, hoje essa pergunta, graas tcnica que tornou totalmente
explcita a essn-cia da metafsica, j no tem sentido algum (VATTIMO,
1980, p. 120-121). Ver ainda STEIN, 2002, p. 155.
2 Para uma viso crtica ver SOUZA, 2006, p. 264-265.
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Contrape-se, assim, o pensamento calculador e o pensamento
medi-tativo-rememorativo (DUARTE, 2006, p. 229; VATTIMO, 1980, p.
123; HEIDEGGER, 2007). Todo fundamento , pois, fundado numa
aber-tura abismal, sem fundo, do envio epocal do ser, gratuidade
para a qual cabe apenas um pensamento-agradecimento (DUARTE, 2006,
p. 230).
1.5. O pensamento fraco
Entramos assim na concepo prpria de Vattimo: o pensamento fraco
(pensiero debole). A radical historicidade que o evento do ser
proporciona implica o ocaso da racionalidade forte da metafsica
devastando o mito da evidncia , em direo a um pensamento fraco, que
valoriza as aparncias, procedimentos e formas simblicas. Seu trao
principal a ausncia de fundamento, derivando do pensamento de
Nietzsche e Heidegger a impossibilidade da realidade absoluta e,
com isso, situando-se na ps--modernidade. A morte de Deus no aqui
uma verdade enuncia-da metafisicamente, mas a tomada de conscincia
de um evento que significa o ser como no sendo uma estrutura
estvel, introduzindo o pensamento da diferena (TEIXEIRA, 2005, p.
113).
Estruturas fortes como a arch (SOUZA, 2006, p. 259) decaem em
direo a uma poca que aceita a incerteza e permite um horizonte mais
aberto de sentido. Com isso, a prpria filosofia perde o seu posto
de fundamento e d lugar a uma multiplicidade de saberes. O pensar
do pensamento fraco um pensar que se abre ao horizonte
histrico-lingstico em que est situado, por meio do qual as coisas
se tornam acessveis. Existir estar lanado em uma linguagem. Esta no
eterna ou imutvel, mas apre-senta acontecimentos historicamente
qualificados. A filosofia, assim, torna-se narrativa; os filsofos
contam histrias (TEIXEIRA, 2005, p. 117-118).
Trata-se, em suma, de combater a violncia do pensamento
meta-fsico: evitar lidar com a realidade em termos de estruturas
fortes como verdade, autenticidade, propriedade e fundamento, no as
substituindo por ou potncia subjetiva de controle dos desejos e do
fundamento, mas almejando o enfraquecimento da fora coercitiva da
realidade (DUARTE, 2006, p. 234). O niilismo entra como idia-chave
que per-mite uma experincia mtica da realidade, que tambm nossa
nica possibilidade de liberdade (TEIXEIRA, 2005, p. 119). Vattimo
afirma:
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Como j havia claramente intudo Nietzsche, e tal como Heideg-ger
demonstra por meio de termos ontolgicos, a tradio meta-fsica a
tradio de um pensamento violento que, ao privilegiar categorias
unificadoras, soberanas, generalizantes, no culto da ar-ch,
manifesta uma insegurana e um pathos de base a que reage com um
excesso de defesa (1980, p. 13).
O enfraquecimento do pensamento , assim, sobretudo uma chance em
vez de um risco , talvez remetendo aquele famoso dito de Hlderlin
de que ali onde mora o perigo est tambm a salvao, destruindo a
violncia metafsica a partir de um pensamento hospitaleiro com a
al-teridade de todas as interpretaes.3 O tempo , nesse sentido e
enquanto demanda de uma historicidade radical, aquilo que abre o
espao fechado da totalidade metafsica. o que afirma Ricardo Timm de
Souza:
Talvez devamos compreender a radicalidade do pensiero debole no
a partir de algum resqucio, ainda que remotssimo, de uma ontologia
primeira, mas sim atravs daquilo que, propriamente, debilita o
pensamento totalizante: a temporalidade. Pois o gran-de poder do
ser humano que tudo que ele necessita para ser humano ele j tem:
ele tem o instante, o instante que desarticu-la definitivamente a
solido violenta e reintroduz o desencon-tro original entre o Mesmo
e o Outro, condio primordial da inteligibilidade decisiva da
absolutamente necessria diferena real entre Totalidade e Infinito,
raiz do sentido e condio de todo futuro concebvel. Estaremos a
realmente, no ocaso do Ser e de suas nostal-gias, s portas de uma
humanidade ultrametafsica (2006, p. 269).
Aproveitando essa chance no-fundada, possvel a reconstruo da
pol-tica em torno de uma recusa do reconhecimento de estruturas
metafisicamen-te dadas (a referncia a essncias e direitos tornou-se
patrimnio da direita) e da genrica apologia ao pluralismo (que
possibilita a combinao entre uma cultura de supermercado e
identidades parciais vividas com fundamentalis-mo). O princpio da
dissoluo da violncia seria, assim, a viga-mestra que apoiaria uma
ao poltica de esquerda capaz de responder cultura de super-mercado
e aos fundamentalismos reativos (PECORARO, 2006, p. 195).
3 Ver, por exemplo, o artigo de Maria Clara Lucchetti Bingemer
em que aproxima o pen-samento de Vattimo do de Simone Weil a partir
da categoria da religio (BINGEMER, 2006, p. 237-253), concluindo
que nossos dias nos dizem com sua vida e seu pen-samento que a nica
verdade revelada, no fundo, o amor. Ver tambm o dilogo Da Violncia
e da Beleza, travado entre Gianni Vattimo e Jacques Derrida e no
qual a questo da alteridade brilhantemente polemizada (VATTIMO;
DERRIDA, 2006).
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II. Richard Rorty e o Neopragmatismo
2.1. Um projeto filosfico abandonado
O prprio Richard Rorty nos facilitou a tarefa de rememorar seu
pensamento ao escrever um belo ensaio nomeado Trotsky e as Orqudeas
Selvagens. Rorty narra sua histria desde os 12 anos e diz que seu
projeto inicial era reunir os temas da Verdade e da Justia,
afirmando um sistema unitrio em que fosse possvel deduzir de uma
posio filosfica uma posio poltica verdadeira, tal como Scrates e
Plato haviam concebi-do. Criado em um ambiente socialista e tendo
seus pais amigos de John Dewey, resume tudo na frase de Yeats de
captar a realidade e a justia em uma nica viso entendendo por
realidade seus momentos junto s orqudeas selvagens das montanhas de
New Jersey, quando testemu-nhava espcie de inefvel, e por justia
libertar os fracos do domnio dos fortes (RORTY, 2005, p. 35).
Rorty narra que seus professores em Chicago, em 1946, onde havia
forte influncia aristotlica, adotavam freqentemente como alvo de
escrnio John Dewey, pelo seu excessivo relativismo, sendo necessrio
algo mais profundo e consistente para explicar por que seria melhor
morrer a ser nazista (RORTY, 2006, p. 36). Esse perodo Rorty define
como dos seus 15 a 20 anos, quando realmente tentou ser
platonista.
Em seguida, comeou percebendo que a argumentao dedutiva ti-nha
problemas, dentre os quais o de remeter aos primeiros princpios que
ningum alcana. Essa preocupao foi superada com a idia de co-erncia.
Dois livros o influenciaram na mudana de atitude: Fenomeno-logia do
Esprito, de Hegel, e Em Busca do Tempo Perdido, de Proust. O
compromisso com a temporalidade era o elemento antiplatnico que o
fascinou. Foi ento que teve sua reconciliao com Dewey, vendo neste
algum que leu Hegel com Charles Darwin na outra mo, imunizando--se
contra o pantesmo. Ao mesmo tempo, teve seu primeiro encontro com
Derrida e isso o fez se aproximar de Wittgenstein e Heidegger nas
crticas ao cartesianismo. Foi nesse ambiente que construiu seu
primeiro livro A filosofia e o espelho da natureza (RORTY, 2006, p.
39-40). A par-tir desses fatos que comeou a construir seu sistema
de dissociao entre realidade e justia de uma viso nica.
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2.2. A filosofia como espelho da natureza
O principal alvo da crtica metafsica de Rorty um objeto sagrado
dentro dessa tradio: a verdade. Seguindo os passos de Nietzsche e
Heidegger, no mbito da filosofia continental, e de Wittgenstein,
Quine e Davidson dentro da tradio analtica, Rorty deflaciona a idia
de verdade-como-correspondncia que tpica da metafsica tradicional
em diversos artigos, situando-se como maior inimigo da tradio e
reivindi-cando, como ele prprio brinca certa vez, o posto de maior
dos antiplatonistas.
Rorty ataca a verdade-como-correspondncia fundamentalmente a
partir do conceito de representao. Segundo ele, a filosofia estaria
im-pregnada da idia de que se constituiria em um vocabulrio final,
trans-parente, capaz de refletir as
coisas-como-elas-so-em-si-mesmas. Essa idia fica muito clara a
partir do ttulo da sua tese, A filosofia e o espelho da natureza.
Segundo a metafsica tradicional, a filosofia poderia tornar-se
espcie de vocabulrio final, capaz de trazer no apenas representaes
que teriam algum sentido em coerncia com o restante das nossas
cren-as, mas de refletir com perfeio itens no-lingsticos. As
divergncias entre idealistas e realistas se d no interior desse
representacionalismo.
Para Rorty, no entanto, trata-se de um pseudo-problema que deve
ser dissolvido, e no resolvido. Os anti-representacionalistas entre
os quais se inclui esto prontos a admitir que a nossa linguagem se
d em conformidade com a nossa ambincia e vivncia, negando,
portanto, a hiptese do ctico (representacionalista). O que eles
negam que seja proveitoso para a explicao selecionar e escolher
algo entre os conte-dos de nossas mentes ou de nossa linguagem, bem
como dizer que este ou aquele item corresponde a ou representa o
ambiente de uma forma que algum outro item no faz (RORTY, 2002a, p.
18).
Podemos ver isso a partir de um exemplo: Rorty se prope
com-parar texto e amostra, aproveitando para cutucar aqueles que
defendem uma diviso clara entre a crtica literria e a anlise
qumica. Nesse paper Rorty alfineta aqueles que se pem como
adversrios da subjetividade e que no pode ser reduzido ao objetivo
e cientfico. Ele exemplifica dizendo que quando Galileu viu a lua
de Jpiter atravs de seu telescpio, era possvel dizer que o impacto
na sua retina foi concreto no sentido relevante do termo, ainda que
suas conseqncias pudessem ser diferentes
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para os astrnomos de Pdua, que trataria de adaptar a anomalia ao
sistema aristotlico, do que para seus seguidores, que despedaaram
as esferas cristalinas de uma vez por todas. Portanto, a concretude
desse fato apenas a concretude da concordncia de uma comunidade
sobre as conseqncias do evento.
Mas o dado, argumentar-se-ia em contrrio, ele mesmo, real e
completamente alheio interpretao. O pragmtico, diz Rorty,
[...] encontra esse ponto medida que se diferencia do idealista.
Ele concorda que h uma coisa como uma resistncia fsica bruta a
presso das ondas de luz no globo ocular de Galileu ou da pedra
sobre a bota do Dr. Johnson. Mas ele no v nenhuma forma de
transferir esse carter bruto no-lingstico para os fatos, para a
verdade das sentenas. O modo com que um espao vazio se atm forma de
uma modelagem que se forja, no possui nenhuma analogia com a relao
entre a verdade da sentena e o evento do qual a sentena trata.
[...] Dizer que precisamos ter respeito pelos fatos justamente
dizer que precisamos, se ns devemos jogar um jogo de linguagem,
jogo a partir das regras (2002a, p. 115).
O elemento qumico ouro, ele reconhece, tem certa tenacidade
bruta que inegvel, porm isso no pode significar que s pode ser
descrito de uma forma nem que imponha qualquer descrio. Para os
pragmatistas, o que est em jogo to-somente a concordncia
intersubjetiva imposta pela palavra, e no pela fora, que nos traz
algo novo sobre o ouro.
Rorty manifesta contrariedade como o projeto de transformar a
filosofia em filosofia da cincia. Para ele, lembrando Thomas Kuhn,
a cincia natural no um gnero natural. A idia de que possvel alcanar
a partir da cincia uma espcie de compreenso absoluta dos fatos,
algo que impensvel. Alm disso, o resultado da cincia natural apenas
controle e predio. O que h, afinal, de to especial nessas dimenses
que justificaria sua predominncia em relao a domnio que persegue o
belo ou o justo? (RORTY, 2002a, p. 95).
Em suma, no possvel verificar as representaes para alm do que
est estabelecido na linguagem, e tudo que podemos fazer manter a
coerncia entre o conjunto de crenas que mantemos no mbito dessa
linguagem algo como nossa viso global do mundo, aproximando-se do
internalismo de Hillary Putnam e do holismo de Donald Davidson
(RORTY, 2002a, p. 19). Trata-se de uma filosofia, como a de
Vattimo,
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Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 37, jul./dez. 201056
que recusa a fundao, no se utiliza de qualquer ponto
arquimedia-no (ou gancho celeste) para se apoiar, como se fosse
possvel alcanar o olho de Deus para julgarmos, por exemplo, se a
astronomia mais fundada que a astrologia, salvo a coerncia com as
nossas crenas e a utilidade prtica da primeira em relao
segunda.
2.3. Solidariedade em vez de objetividade
Completando sua posio holista e anti-representacionalista,
Ror-ty igualmente adepto do naturalismo, no sentido de que, desde
Da-rwin, impossvel estabelecer uma diferena qualitativa entre ns e
os brutos. Essa posio, compartilhada por Dewey, Davidson e Quine, v
espcie de impossibilidade de diferena qualitativa entre ns, bpedes
sem penas, e os outros, de forma que, por exemplo, como exemplifica
Donald Davidson, nossa linguagem no tem funo diferente da lngua do
tamandu. Trata-se de simples adaptao ao meio que pode se
redes-crita de diferentes formas.
aqui exatamente que ressurge o pragmatismo de Dewey e James,
recusando a posio que ele chamaria de realista que contm a idia de
verdade como correspondncia realidade, ou da objetividade no
sentido de que deveriam existir estruturas humanas naturais que nos
levariam reforma social, e preferindo posio pragmtica, abdicadora
de qualquer metafsica e ontologia. Para essa posio, uma crena deve
ser aceita contanto que seja boa para ns. O desejo por objetividade
, na realidade, apenas uma forma de esticarmos o pronome ns para
alm da nossa comunidade. Essa posio no quer significar que uma
crena to boa quanto outra, nem que verdade um termo equvoco
com-patvel com um sem-nmero de procedimentos de justificao. Quer
di-zer to-somente que
[...] no h nada a ser dito sobre a verdade, nem sobre a
raciona-lidade, para alm das descries dos procedimentos familiares
de justificao de uma dada sociedade a nossa emprega em uma ou outra
rea de justificao. O pragmtico toma esse terceiro ponto de vista
etnocntrico. Mas ele no sustenta a primeira viso, auto-re-futadora,
nem a excntrica segunda viso (RORTY, 2002a, p. 40).
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O que est em jogo portanto uma releitura dos procedimentos
cientficos, por exemplo, enquanto procedimentos de solidariedade
elemento que o pragmtico coloca em lugar da objetividade analisando
a investiga-o humana cooperativa apenas com base tica, sem
substituir por qual-quer epistemologia (e, portanto, sem qualquer
epistemologia relativista) (RORTY, 2002a, p. 41). Trata-se de
substituir uma descrio metafsica e epistemolgica por uma descrio
poltica e moral.
E aqui precisamente Rorty faz uma leitura otimista4 da cincia.
Apesar do seu rechao da cincia enquanto gnero natural capaz de nos
proporcionar um gancho celeste ou a perspectiva do olho de Deus,
Rorty enxerga na comunidade cientfica um ideal a ser seguido: a
tolerncia entre os seus membros, realada com a prevalncia da
palavra sobre a fora. Diz ele:
Os pragmticos gostariam de substituir o desejo por objetividade
o desejo de estar em contato com uma realidade que mais do que
alguma comunidade com a qual ns nos identificamos pelo desejo por
solidariedade com essa comunidade. Eles pensam que os hbitos de
confiana antes na persuaso do que na fora, de res-peito pelas
opinies dos colegas, de curiosidade e zelo por novos dados e idias
so as nicas virtudes que os cientistas tm. Eles no pensam que h uma
virtude intelectual chamada racionali-dade alm dessas virtudes
morais (RORTY, 2002a, p. 60).
A cincia, assim, ainda que no possa ser considerada com gnero
superior ou como uma via de acesso segura realidade-como-ela-, tal
como viam os positivistas, pode ser tida como modelo de
solidariedade humana, podendo ser copiada em suas instituies e
provendo sugestes comunitrias para o resto da cultura organizar a
si mesmo (RORTY, 2002a, p. 61). As questes tericas dariam lugar a
questes prticas sobre se devemos conservar nossos valores, teorias
e prticas presentes ou ten-tar substitu-los por outros. O desejo
por objetividade, por isso, daria lugar ao desejo por
solidariedade. E aqui caminhamos por a outra ponta do pensamento de
Rorty a filosofia poltica.
4 Que, de certa forma, contrasta com influncias evidentes no
texto, como a de Martin Heidegger. Este, ao estabelecer o ser como
Ereignis como vimos linhas atrs constatou a abertura que
possibilita a construo de diversos sentidos para alm da
simples-pre-sena. Isso visivelmente pressuposto no texto do Rorty.
No entanto, enquanto a viso de Heidegger sobre a tcnica era
pessimista, a de Rorty parece estar mais prxima do otimismo de John
Dewey.
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2.4. Pragmatismo e poltica: o liberalismo burgus ps-moderno
O que torna Richard Rorty um filsofo sui generis que, a
despei-to de estar, como ele prprio brinca, na corrida para se
tornar o mais anti-platnico dos filsofos, ou seja, de rechaar
qualquer fundao metafsica que sustente um conhecimento superior e
capaz de refletir a realidade-como-ela-, de ser um puro espelho
representacional ou um vocabulrio final que deveramos falar, Rorty
ainda um entusiasta da Modernidade e do liberalismo poltico.
Rorty faz questo de se definir como algum entre Habermas e
Lyotard, aceitando os postulados do ltimo acerca da insuficincia
das metanarrativas e da impossibilidade de uma fundao verdadeira na
filosofia poltica, de um lado, mas, pragmaticamente, estando ao
lado de Habermas quanto ao fato de que progredimos moralmente no
mundo mo-derno, no sendo o caso de abandonar esse projeto (RORTY,
2002b, p. 221). Para isso, cria uma espcie de liberalismo
pragmtico, que recusa bases metafsicas tpicas (ex. idia de uma
universalidade do sujeito racional), mas ao mesmo tempo
considera-se como uma poltica pragmaticamente adequada, pois mantm
as janelas abertas para absorver o novo e o diferente incorporado
de outras culturas.
Ele afirma, com Dewey, ser um equvoco o desejo iluminista de
objeti-vidade que poderia residir numa suposta natureza humana
fundadora de direitos e deveres. A valorizao da cincia natural,
poca, era apenas uma retrica que combatia um vocabulrio menos
aberto e tolerante. Essa retri-ca, no entanto, conservou velhas
oposies entre mente e mundo, aparncia e realidade, etc. Dewey via e
Rorty concorda que a prevalncia dessas oposi-es nos impedia de ver
a cincia moderna como nova e promissora inteno, algo que pode
simplesmente nos trazer o novo (RORTY, 2002a, p. 66-67).
O que ele postula uma prioridade da democracia para a filosofia.
Ele pe de um lado aqueles filsofos que trabalham com conceitos
for-tes como direitos humanos e respostas corretas, enxergando um
elo metafsico que poderia ser localizado na idia de dignidade
humana (posio, por exemplo, de Ronald Dworkin); de outro, aqueles
que pos-tulam o abandono desse conjunto de crenas sem deixar de
usufruir seus benefcios, restringindo-a a uma comunidade particular
(um Ns) que, ainda com esses critrios, pode distinguir o racional e
o fantico (posi-o de John Dewey e John Rawls) (RORTY, 2002a, p.
237).
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Essa concepo leva Rorty a definir o anti-anti-etnocentrismo. Por
essa posio, impossvel acessar o olho de Deus e, por isso,
sus-tentar uma posio desde um ponto acima das demais culturas. Mas
isso no nos encaminha para o relativismo cultural: simplesmente
impos-svel ser relativista, medida que sempre estamos situados
desde algum lugar que nos abre nossa perspectiva cultural. dentro
dessa rede que Rorty traa seu liberalismo burgus ps-moderno:
atribuir relativis-mo ao ps-moderno significa colocar uma
metanarrativa em sua boca, coisa que ele certamente no aceitaria;
de outro lado, desconstruir as categorias universais como dignidade
humana no significa recusar o liberalismo poltico, que aquela posio
que tem como pressuposto moral a abertura de novas janelas na mnada
cultural. Trata-se de uma espcie de etnocentrismo aberto (RORTY,
2006, p. 45; 2002b, p. 235). Em sntese:
A utopia pragmtica no , ento, aquela em que a natureza hu-mana
tenha sido liberta, mas aquela em que todo mundo tenha tido chance
de sugerir modos atravs dos quais ns pudssemos nos reunir
rapidamente e a grosso modo uma sociedade mundial (ou galctica), e
na qual todas essas sugestes tivessem sido dis-cutidas em encontros
livres e abertos (RORTY, 2002a, p. 283).
III. Uma pequena concluso...
Os trabalhos de Rorty e Vattimo so amplamente estruturados e
exi-giriam uma apreciao crtica que demandaria muito mais tempo e
espao do que essas breves linhas introdutrias. Por exemplo, a
hesitao com que Rorty pensa a filosofia de Derrida em termos
polticos (reduzindo-o condio de ironista privado, tal como
Nietzsche) o impede de perce-ber aspectos fundamentais que
proporcionaram um ponto arquimediano no-metafsico nem fundacional,
mas contingente. A ausncia de uma devida compreenso da filosofia de
Emmanuel Levinas,5 nesse sentido, pode ter sido o fator fundamental
para essa no-aproximao de Rorty de um pensamento que lhe estava to
prximo, pois coloca razo tica
5 Sobre o tema, conferir o volume Desconstruo e Pragmatismo
(1998), organizado por Chantal Mouffe, especialmente os papers de
Critchley e Rorty.
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como prioridade sobre razo tcnica (de forma muito smile construo
da cincia enquanto solidariedade do prprio filsofo anglo-saxnico)
(SOUZA, 2004a e 2004b). Aparentemente, esse pequeno rudo que
impe-diu a comunicao entre duas tendncias (pragmatismo e tica da
alteri-dade) to incompreendidas pelos seus adversrios, mas
similares nos seus objetivos (reduo do sofrimento do Outro) est em
vias de correo por meio de uma aproximao entre Enrique Dussel e
Hillary Putnam.
Cabe, antes, ressaltar as inmeras convergncias entre o
pensa-mento fraco de Vattimo e o neopragmatismo de Rorty,
especialmente na idia francamente anto-fundacional que orienta a
ambas, assim como o respectivo engajamento numa filosofia poltica
que reduza a violncia, sem, por isso, desembocar no niilismo cnico
de alguns ps-modernos. Tratam-se, a rigor, de dois pensadores
bastante prximos, diferindo ape-nas pelo estilo mais analtico de
Rorty e hermenutico de Vattimo.
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