Rompendo o século: uma aventura entre vanguardas literárias no Brasil, México, Portugal e Espanha Resumo: Este texto analisa comparativamente poemas brasileiros, mexicanos, portugueses e espanhóis da transição do século XIX para o XX, buscando compreender continuidades e rupturas, e reavaliar conceitos clássicos no estudo das vanguardas ibero-americanas, tais como o de “modernismo”. Resumé: Ce document analyse comparativement plusieurs poèmes de Brésil, Mexique, Portugal et Espagne de la transition du XIXe au XXe, cherchant à comprendre les continuités et les ruptures, et réévaluer des concepts classiques de l'étude des avant-gardes d'Amérique- ibérique; par exemple, “modernisme”. Palavras-chave: modernismo; vanguarda; Ibero-América, produção poética, estudos comparados. Mots-clés: modernisme, avant-gard, Amérique-ibérique, production poétique, études comparatives. 201 0 Ana Luiza de Oliveira Duarte Ferreira – [email protected]Historiadora – Doutoranda pelo PROLAM/USP 2010
Texto NÃO PUBLICADO sobre vanguardas literárias brasileira, mexicana, portuguesa e espanhola, numa perspectiva comparada.
Welcome message from author
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
Rompendo o século:
uma aventura entre vanguardas literárias
no Brasil, México, Portugal e Espanha
Resumo: Este texto analisa comparativamente poemas brasileiros, mexicanos, portugueses e espanhóis da transição do século XIX para o XX, buscando compreender continuidades e rupturas, e reavaliar conceitos clássicos no estudo das vanguardas ibero-americanas, tais como o de “modernismo”.Resumé: Ce document analyse comparativement plusieurs poèmes de Brésil, Mexique, Portugal et Espagne de la transition du XIXe au XXe, cherchant à comprendre les continuités et les ruptures, et réévaluer des concepts classiques de l'étude des avant-gardes d'Amérique-ibérique; par exemple, “modernisme”.Palavras-chave: modernismo; vanguarda; Ibero-América, produção poética, estudos comparados.Mots-clés: modernisme, avant-gard, Amérique-ibérique, production poétique, études comparatives.
vento, luz, as mãos sedosas da namorada, os lábios úmidos dela, suas
canções de poeta). Há também referência a temas “clássicos”, como rouxinóis,
rosas, pérolas, ouro, ninfas, musas e deuses helenos, cálices de vinho com
adornos gregos.
Na terceira parte do poema, Auntumnal, apresenta um cenário pálido,
tranqüilo, suspirante. Fala, ali, de uma luz dourada, delicadas rosas, uma suave
harpa tocando ao longe, e de uma fada amiga, a quem ele pede que o leve ao
reino da mais pura e vívida inspiração poética; ela, então, o apresenta primeiro
i Tais reflexões foram parcialmente publicadas. Cf. FERREIRA, Ana L.O.D. Diálogo, crítica e diversidade nas vanguardas literárias mexicanas e brasileiras. In: Revista Intellèctus. Ano 06. Vol I – 2007. http://www.intellectus.uerj.br/Textos/Ano6n1/Texto%20de%20Ana%20Luiza.pdfii Em entrevista a Rafael Cariello, publicada na Folha de São Paulo, em 14 de novembro de 2006, sobre seu livro O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche (Jorge Zahar Editor), e sobre o trabalho do filósofo brasileiro, hoje.iii Outros clássicos-parnasianos brasileiros são: Raimundo Correia, Alberto de Oliveira, Vicente de Carvalho.iv Outros clássicos-simbolistas brasileiros são: Augusto dos Anjos, Alphonsus de Guimarães e Olegário Mariano.v Outros poetas portugueses inspirados pelo simbolismo são: Eugênio de Castro e Antonio Nobre.
uma noite estrelada, depois a aurora, flores, e, por fim, o vento (repleto de
rumores, ecos de gargalhadas e de músicas); a fada lhe pergunta se deseja
conhecer mais prazeres, e o poeta permanece atônito, encantado, com os
olhos perdidos no “azul”.
A segunda e a quinta partes do poema são um tanto distintas, e
trabalham a temática das estações mais à maneira simbolista. Mantêm um
certo padrão formal, e muitas figuras e lugares-comuns da poesia ocidental
então difundidos, mas apresentam um conteúdo novo, criativo, e abordagem
surpreendente.
Em Estival, Darío aborda o aspecto físico e o comportamento de um
casal de tigres de bengala: sua força, sua agilidade, sua ferocidade e sua
paixão selvagem, sob “el sol, inmensa llama”. Para descrever os dois animais,
estabelece algumas interessantes associações, como quando, por exemplo,
denomina a fera-fêmea “reina que exige vassallaje”, ou a fera-macho “don Juan
felino”; quando fala da importância da morada do tigre – “la caverna” – como
elemento constituinte de sua identidade, de sua figura, de seu significado,
apresenta os siguintes pares de relação como equivalentes: “caimán” e
“tranquilas aguas”, “elefante” e “estepa”, “víbora” e “juncos”, “ave dulce” e
“árbol”.
Importante destacar: sobre o verão, Darío opta por abordar ícones de
uma das localidades do planeta mais quentes: “la selva africana”; porém, ao
final introduz um terceiro personagem, “el príncipe de Gales”, e mais uma vez
embaralha qualquer possibilidade de definição geográfica precisa. O nobre
caçador irá atirar e tirar a vida da fêmea, fazendo fugir o macho, que,
atordoado, longe, sonha um sonho interessantíssimo, de vingança: “que
enterraba las garras y los dientes/ en vientres sonrosados/ y pechos de mujer;
y que engullía/ por postres delicados/ de comidas y cenas,/ - como tigre goloso
entre golosos -/ unas cuantas docenas/ de niños tiernos, rubios y sabrosos”.
Na última parte do poema, Invernal, Darío apresenta um quadro mais
contemporâneo, fala de seu estado de espírito na estação mais fria do ano, e
no ambiente que ele provavelmente considerava o mais frio, a cidade moderna.
Ainda assim, cita vento, brisas glaciais, chuva, neve, ombros e gargantas
12
cobertos, fogareiros e chaminés acesos, tremores, e também carros,
vendedores que oferecem, nas ruas, aos berros, suas mercadorias; e não nos
permite saber ao certo de que cidade está falando.
Uma nova concepção de “sonho” se projeta, em seguida: não mais Darío
recorre à construção de paisagens paradisíacas, ou ao inconsciente, mais à
elaboração de um ideal de mulher. O poeta desenha o perfil físico, psicológico,
comportamental, da mulher cujos beijos aplacariam o frio desta noite de
inverno.
Salvador Rueda, um dos grandes representantes espanhóis da poesia
de fins dos oitocentos e inícios dos novescentosvi, inspirado em postulados
parnasianos teria proposto a estética do “colorismo”. Há, em meio a sua
trajetória poética, versos sobre a brancura e perfeição dos cisnes (El cisne), o
canto da cigarra (La cigarra) e sobre o corpo feminino ideal, formoso e
generoso (Discurso de Afrodita).
Mais tarde, vivendo na América e dialogando com os autores locais,
imprimiu a seus poemas um tom caracteristicamente simbolista. No poema
Coplas (em português, “quadras” – nele estão contidos 50 agrupamentos de
quatro versos), tece uma série de associações entre fenômenos da natureza e
relações amorosas. Por exemplo: a amendoeira que se fortalece quando
podada, tal como a paixão que arde quando há dor. As folhas das árvores
cairiam todas, como se chorassem, por ocasião da morte de sua namorada;
mas, se ela saudável cruza o campo, as ramagens balançam ao vento, como
se, alegres, batessem palmas. Lembrando o conhecido poema do simbolista
brasileiro Alphonsus de Guimaraens, Ismália, em Coplas Rueda fala sobre o
reflexo da lua na lagoa, e afirma que se sua amada é a lua, ele é o cisne que
flutua sobre a imagem dela refletida.
3. O parnasianismo e o simbolismo no México
No México, inauguraram uma literatura semelhante (dialogando
parnasianismo e simbolismo) os poetas Manuel Gutiérrez Najera (1859-1895),
Salvador Díaz Mirón (1853-1928) e Manuel Puga y Acal (1860-1930).
vi Outros poetas espanhóis deste período são: Alvarez de Cienfuegos Cobos, Ramón de Valle-Inclén, Francisco Villaespera, Manuel Machado, Eduardo Manquina, Emilio Carnère.
13
Creio que a poesia de Najera sofreu grande influência do parnasianismo;
seus versos têm a métrica perfeita, suas rimas são ricas, o vocabulário é
erudito, e eles são quase sempre sobretudo descritivos. No poema De blanco
Najera lista lírios, círios, flores de laranjeira, acácias, açucenas, neblina, névoa,
neve, pombos, ovelhas, cisnes, plumas, espumas, catedrais e altares góticos
de mármore, as velas dos oratórios, hóstias, as velas latinas de uma
embarcação, pentes árabes de marfim, a asa dos anjos, o manto que envolve a
criança quando nasce e que cobre o rosto da mulher amada no dia do
casamento, o rosto de sua namorada.
Entretanto, Najera quase sempre é puro sentimento, que explode em
exclamações e em metáforas belíssimas). Em Madre naturaleza, fala do desejo
de retornar a um universo bucólico, onde residem o ar puro, as planícies
verdes, a “virtud”; afastado da “ansia inmensa que [al poeta le] consume”.
Trata-se de uma natureza “atemporal”, sem história e imperecível, e por isso
acolhedora. Mas neste lugar encantado não existiria apenas gozo e alegria. Na
realidade, é também onde o poeta crê poder chorar com sinceridade, ter fé,
esquecendo, assim, “el tedio [!] abrumador de las ciudades”, que faria com que
os homens se tornassem apáticos, impassíveis. Tal caracterísitca da poesia de
Najera, como vimos em análise da literatura em português das últimas décadas
dos oitocentos, é típica da vertente simbolista.
Seu poema Ondas muertas aborda nascentes de água, cachoeiras,
riachos caudalosos, mares. As costas litorâneas são pintadas com tintas de
sonho: há flores, ninfas, terra fértil, e o barulho agradável das marolas. Lindas
imagens pipocam aqui e acolá: compara fontes de água a uma “traviesa” “niña
que en régio palacio/ sus collares de perlas desgrana”, e fala dos rios como “un
espejo movile de plata,/ [que] va copiando los astros del cielo/ o los pálidos
tintes del alba”.
Porém, nas últimas estrofes toma como tema as águas submersas, que
habitam regiões que nem a luz nem qualquer tipo de vida alcançam. Estas
águas, diz o poeta, não soluçam de tristeza nem cantam em razão de qualquer
felicidade. São como sua alma, que habita o mais fundo de si, desconhecida e
intocada.
14
Deste poema, deve-se destacar ainda a maneira alternativa com que
seus versos rimam.
Díaz Mirón, em Pinceladas, apresenta uma bela paisagem, por sobre a
qual sua alma (“el ala parnáside”) anseia alçar vôo: três casebres, rosas,
vegetação abundante, um poço, montes, um vulcão, neve, nuvens, o mar, a lua
e o brilho do planeta Vênus. Há uma atmosfera mística, religiosa, bem ao gosto
parnasiano.
Já em A una araucária, tal poeta mexicano descreve a enorme árvore
típica das regiões frias (sua alta ponta, suas folhagens, o melro que vem nela
pousar). Contudo, diferentemente do poema anterior, neste Mirón intercala as
referências à planta com considerações sobre seu estado de espírito: trata-se
de um homem orgulhoso, rancoroso, mas firme. Passa um vento forte,
carregando folhas em direção às nuvens do céu, enquanto ele sente a dor da
ofensa sofrida, a dor que ele, forte, não permite que ninguém perceba. Quando
a chuva cai, sobre a copa da árvore, o poeta deseja que seja uma mensagem
de Deus.
Num segundo momento, já na virada do século XIX ao XX, destacam-se
no México, em uma linhagem poética semelhante à de Najera e Mirón, os
nomes de Enrique González Martínez (1871-1952), Amado Nervo (1870-1919),
Ramón López Velarde (1888-1925), e José Juan Tablada (1871-1945).vii
Entretanto, nota-se nestes autores uma série de inovações importantes, tanto
na forma como nos temas e no tom.
González Martínez é autor de um dos poemas mais analisados da
História da Literatura no México: Tuércele el cuello al cisne. Para nós
brasileiros, a despeito de se apresentar em forma de soneto e em métrica
perfeita, pela crítica à geração de poetas mexicanos mais claramente
inspirados pelo parnasianismo lembra-nos Os sapos, de Manuel Bandeira
(1886-1968).
Importante destacar que, no caso deste poema mexicano, a escolha do
símbolo não é aleatória: a beleza, a perfeição, a brancura, a graciosidade, a
vii Outros importantes literatos mexicanos do período são: Manuel José Othón, Francisco González Martínez, Maria Enriqueta Camarillo de Pereya, Rafael López, Alfredo R. Placencia, Efrén Rebolledo, e Porfírio Barba Jacob.
pureza de tais aves era sempre reverenciada em poemas classificados
“parnasianos”. Mas vale pontuar que o poeta aqui também destaca
características subjetivas dos cisnes: são impassíveis, “no sienten el alma de
las cosas ni la voz del paisaje”. Então a coruja é exaltada como novo símbolo
poético: ela não é bela, vive na escuridão das florestas, na noite, mas está
sempre buscando mistérios a desvendar ao seu derredor. Quer dizer: pode-se
argumentar que nesse segundo momento, no México, vai-se abrindo mais
claramente caminho para a gestação de alguns elementos que, poucos anos
mais tarde, serão bastante característicos da vanguarda literária.
Nervo, de sua parte, apresentava rimas que seguiam uma estrutura
muito pessoal, e versos exortatórios, envolventes, carregados de sentimento
(tal como o farão, mais tarde, expoentes das vanguardas literárias). No poema
Oremus, lamenta que as novas gerações sejam tão apáticas; e declara sua
admiração e ao mesmo tempo preocupação com a gente que enfrenta com
firmeza as dificuldades da vida (a multidão de camponeses submetida a
arbitrários poderes, o remador que investe contra a força do mar). Lamenta a
geração de “neuróticos”/“nostálgicos de sombra” que contestam a existência de
Deus; e declara sua admiração e ao mesmo tempo preocupação com os
sábios, artistas, miseráveis e enfermos, que suportam, esperançosos e com
fervor, cada qual o seu destino.
A la católica Majestad de Paul Verlaine (que Nervo dedica a Ruben
Darío), tal como Oremos, tem uma estrutura que remete a preces, rezas,
orações; seu último verso termina com a expressão “Así sea.”. Aqui Nervo fala
sobre a importância do referido simbolista francês para sua poesia. Começa
por descrever-lhe fisicamente: o rosto envelhecido e sorumbático; o ar distante,
nobre, altivo. Em seguida, evocando-o como “pai”, como guia (“tu que hallaste
por fin el sendero”), fala da inspiração que tem-lhe sido na busca por uma
poesia elevada, pura, radiosa (que dissesse respeito à “alma”) e ainda sábia,
humana (que dissesse respeito à “carne”).
Velarde também inovou consideravelmente. O poema Las desterradas,
por exemplo, é composto ora por quadras, ora por tercetos, ora por estrofes de
dois, cinco, sete, seis, oito versos.
16
Há também um quê de “desordem” na maneira como Velarde se
expressa. Fala de Rut e Rebeca, duas camponesas que partiram para viver e
trabalhar em uma grande cidade (onde há “caducas avenidas”), depois de
terem passado por diversas regiões mexicanas historicamente célebres.
Velarde cita a capital de Michoacan (Morelia, à Oeste do território mexicano), a
capital do estado de México (Toluca, no coração do país), o estado de Durango
(ao Norte) e de San Luis (pouco mais ao Sul); como se pode perceber, não
traça uma rota muito precisa, ordenada... a lista de locais pelos quais teriam
passado Rut e Rebeca não compõe uma seqüência muito lógica.
Estrofes mais adiante, propõe imagens belas, bastante ousadas, através
da associação de elementos aparentemente desconexos. Filhas de grandes
proprietários rurais, Rut e Rebeca hão de ter abandonado a terra natal por
ocasião da Revolução Mexicana. Transitariam entre o velho e o novo sem
apresentar uma postura muito clara, de reação ou tampouco de adequação.
Usariam roupas antiquadas e brincos enormes, dormiriam em hospedagens
miseráveis e trabalhariam vendendo frutas e flores em uma tenda improvisada.
O tumulto da vida urbana, da miséria e as manifestações populares descritos
nos versos acima referidos, ainda que às desterradas lhes tenha transformado
a vida, não lhes causa sobressaltos. A vida segue.
As estrofes finais são menos herméticas: o poeta expressa a
identificação com Rut e Rebeca; por essas duas mulheres, que foram expulsas
de seus lares, de suas vidas, o poeta nutre sentimentos fraternais, solidários,
“hospitalarios”. Eis uma outra visão da “mulher”: bastante distinta daquela que
Bilac desejava mas que mantinha sensualmente inalcançável, para que
servisse de alimento para sua poesia; e também diferente daquela típica da
obra dos simbolistas brasileiros e dos primeiros simbolistas mexicanos.
No poema La niña del retrato Velarde também aborda o elemento
feminino não em face de um apelo sexual ou por desejo de culto respeitoso de
sua figura. Velarde aqui, como em Las desterradas, contempla e divaga.
Observa o rosto da menina que reza em uma fotografia antiga; nota sua
expressão, suas sobrancelhas, seus olhos, sua testa, sua boca; fala de suas
17
mãos, dos ombros, do cotovelo. Não a descreve: como ele mesmo pontua no
poema, a “lê”, quer dizer, busca “interpretá-la”.
4. O modernismo hispano-americano e o modernismo brasileiro
Neste momento é preciso estar-se atento. Essa literatura – inspirada no
parnasianismo e depois mais claramente no simbolismo – de Ruben Darío e de
tantos outros poetas hispano-americanos e, posteriormente, espanhóis, foi
denominada “modernista”. Corresponde, então, a uma produção
consideravelmente distinta daquela realizada pelo modernismo brasileiro – que
equivale a um movimento de vanguarda no Brasil.
Por ora, dedico-me a perceber de que maneira poemas tidos como
caracteristicamente vanguardistas, no Brasil, se diferenciam ou se aproximam
do “modernismo” hisplanohablante há pouco analisado.
Oficialmente, diz-se que a crítica vanguardista iniciou suas
manifestações no Brasil com a Semana da Arte Moderna, no ano de 1922.viii
Este evento caracterizou-se pela postura de radical condenação aos padrões
literários vigentes em nosso país. É deste período o já citado “poema-piada” Os
sapos, de Manuel Bandeira.
Costuma-se dizer que Bandeira foi leitor assíduo de Baudelaire, mas a
principal influência em Os sapos talvez tenha vindo de outro simbolista francês
– Tristan Corbière (1845-1872), autor do poema El crapaud. El crapaud fala do
luar, do sombrio, de tons prateados e esverdeados na noite, dos barulhos da
noite sufocados e repetitivos, da umidade, da pedra fria onde um casal
descobre um animal que desperta pavor, medo: o sapo. Este animal, que antes
insistia em cantar, agora, diante dos dois presentes, se esconde. Ele é o
próprio poeta: “Ce crapaud-lá c’est moi”, diz um último verso da composição,
separado do restante por uma linha pontilhada. Diz-se que Corbière era
horrendo e vestia-se de maneira esdrúxula, e sentia-se, como revela aqui,
como um “rossignol de la boue” (“rouxinol do lodo”), um “poète tondu, sans aile”
viii Dentre os literatos presentes na Semana, estavam: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Sérgio Milliet, Plínio Salgado, Ronald de Carvalho, Álvaro Moreira, Renato de Almeida, Ribeiro Couto e Guilherme de Almeida.
18
(“poeta tosquiado, sem asa”). São versos bem tipicamente simbolistas:
obscuros, emocionais.
Assim, pode-se propor que, a despeito deles terem possivelmente
inspirado Bandeira na composição de Os sapos, o brasileiro acabou por
construir uma alegoria bem mais complexa. Dirige-se à geração de
parnasianos designando-os “sapo-boi”, “sapo-tanoeiro”, e “sapos-pipas”. Eles
todos, atentos ao ritmo, à métrica, às rimas ricas, a um vocabulário erudito,
acabariam por apresentar uma literatura “aguada”, patética; além disso (através
dos versos “–Sei! –Não sabe! –Sabe!”) Bandeira expressa sua indignação com
o poder que os representantes do parnasianismo no Brasil, integrantes da ABL,
tinham de determinar o que seria correto ou incorreto para a poesia nacional.
Atento a este cenário, o “sapo-cururu” (o próprio eu lírico), tal como a coruja de
González, esconde-se na escuridão, triste, solitário e desconfiado.
Os poemas publicados neste momento, no Brasil, pelos expoentes da
vanguarda, também trouxeram como tema as cidades, os conflitos sociais, a
modernidade. É em homenagem à cidade de São Paulo que Mário de Andrade
publica, em 1922, o livro Paulicéia desvairada.
Mas tal grupo, dantes aparentemente coeso, com o passar dos anos foi
revelando conflitos de idéias e ações – Mário de Andrade (1893-1945) e
Oswald de Andrade (1890-1954) romperam com Graça Aranha (1868-1931);
depois, Mario e Oswald romperam entre si; Oswald lançou dois manifestos
literários com concepções um tanto diversas (Pau-brasil, em 1924, e
Antropófago, em 1928); os integralistas Plínio Salgado (1895- 1975), Menotti
del Picchia (1892- 1988) e Cassiano Ricardo (1895 – 1974) fundaram o grupo
Anta/Verde-amarelo.
Todos esses grupos entregavam-se à abordagem e problematização de
uma Literatura brasileira, em “língua brasileira”, sobre a história e a gente
brasileira. Questão conflituosa, em relação a qual muitos ousaram se
posicionar de maneira pouco flexível, e que por isso fez romper antigos
vínculos de amizade.
Mas havia também aqueles que decidiram não privilegiar a questão da
“brasilidade”. São exemplo disso artigos e poesias publicadas nas revistas
cubismo”, assim como “andar de automóvel” corresponderiam a empecilhos ao
“namorar”, ao amor, à beleza, à poesia. O eu lírico deseja, assim, ser livre para
construir, fazer, sonhar o que tiver vontade.
Em 1935 publicou Tempo e eternidade, em que explorava um tema que
lhe foi bastante caro – a fé católica. Em alguns poemas, abordava os
misteriosos desígnios divinos, e o desejo de, através da poesia, alcançá-los.
Em outros, ansiava que sua Poesia, tal como a fé, fosse elemento integrador,
num “mundo mutilado”. E falava do mundo em que vivia, o mundo “concreto”:
capitalista, tecnológico e socialmente fragmentado. Em Salmos, por exemplo,
enumera benesses criadas por Deus, tais como o sol, as estrelas, os frutos do
campo, as flores, o mar e os animais e plantas marinhos... e inclui na lista
cinemas, locomotivas e submarinos. Nos versos de Meu novo olhar, percorre
sentimentos caracteristicamente modernos: o pessimismo, a angústia frente à
fugacidade das coisas, a dissimulação das pessoas, as superficialidades, os
conflitos sociais.
E creio que é de sua obra Poemas, de 1930, uma de suas composições
mais expressivas: Mapa. Murilo define sua personalidade poética como
multifacetada, fluida, dinâmica, angustiada, porém ardente e contagiante – bem
ao modo de tantos outros poetas vanguardistas. Diz: “estou no ar,/ (...) no
pensamento dos homens que movem o mundo,/ nem triste nem alegre, chama
com dois olhos andando/ sempre em transformação.”
Aborda sua infância e convenções (seu próprio corpo, o medo, a religião,
a formação familiar e escolar) que “limitavam” seu desejo de expressão e
desde então iam definindo seu caráter e seu inconformismo. Quando se torna
homem maduro, têm de aprender a lidar com situações ambíguas, o riso que
se confunde com o choro, o gostar e não-gostar do Outro, o bem e o mal.
Também julga importante falar de sua família fincada em origens rurais; assim
como de um passado que antecede a ele próprio, de uma ancestralidade
espanhola que talvez explique esse impulso (quixotesco) de lutar contra o
“irreal”, contra um inimigo impalpável.
É indispensável refletir, aqui, sobre uma questão que remete à análise
de poemas parnasianos e simbolistas, acima desenvolvida por mim. Como
21
disse anteriormente, sob o rótulo do parnasianismo e do simbolismo muitos
autores, ainda que dedicando-se à mera descrição de paisagens, optaram por
não delinear espaço e tempo – eles quase sempre falavam de um
idílico/abstrato/indeterminável. No poema O filho do século Murilo lamenta o
fato de que “tempo e espaço firmes” o haviam “abandonado” – o passeio de
bicicleta, as conversas no portão, as tardes preguiçosas ou mesmo o “puro
amor”. Enfim, uma vida mais “real” teria perdido a vez para o urgente debater
das questões sociais (a fome, a miséria) ou teria sido silenciada pela
irracionalidade da guerra. Como se pode notar, a ausência de referências mais
precisas acerca do espaço e do tempo, conforme o entendimento deste último
autor, não se daria em face de um escape ou de uma alegoria – tal como um
parnasiano-típico, tal como um simbolista típico. Se daria em face da maneira
como o vanguardista percebe a “realidade” e a recria, poeticamente.
Em Mapa a perda das referências espaço-temporais, tão característica
da atualidade, reaparece. O eu declara ao final que está escrevendo de seu
quarto, na praia de Botafogo, tal como também o faz Drummond no poema A
bruxa. Mas a despeito desta informação precisa, o poeta está confuso. A
facilidade com que temos acesso a informações sobre países de qualquer um
dos cantos do planeta (“me desespero porque não posso estar presente a
todos os atos da vida”), os contatos que ocorrem de maneira cada vez mais
corriqueira e veloz, e com uma intensidade, uma profundidade cada vez menor
(“o mundo vai mudar de cara”), tudo isso faz com que o autor declare: “Viva eu,
que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente”. A própria
maneira com que constrói os versos deste poema nos ajuda a penetrar seus
sentimentos, sua sensação de viver o indefinido; dados supostamente
incongruentes aparecem lado a lado, separados por uma enxurrada de
vírgulas.
Assim, o poeta deseja não um mundo mais “verdadeiro”, e sim um
mundo mais “delicado”. Não confia em nenhuma técnica e não se inscreve em
qualquer linha teórica, detesta os homens práticos, porque sabe da
impossibilidade de se formular respostas únicas, planos perfeitos, para
remediar os males da sociedade contemporânea. Na contra-mão, ama os
22
desesperados, os insatisfeitos, os amantes, os suicidas, os derrotados, os
transfigurados, os criminosos.
Faz-se mister atentar para o fato de que uma visão trágica do mundo,
uma abordagem angustiada de questões tais como justiça social, fraternidade e
realização pessoal, um interesse pelo “real” que se confronta e se mistura com
o “sonho”, aparece também em poemas de Carvalho, Meireles, Couto,
Bandeira e Drummond.
É momento de perceber se também aparece na poesia de vanguarda de
Portugal.
5. Modernismo português, em Portugal
É comum se dizer que o vanguardismo “português” (digo, nascido em
Portugal) surgiu com o lançamento da revista Orpheu, em 1915, por Mario de
Sá-Carneiro (1890-1916). O desenvolvimento inicial das propostas estéticas
apresentadas pelos poetas associados a esta revista,x classificados então
como orphistas, foi marcado por críticas severas e debates acirrados, mas
terminou por logo abrandar-se, após o suicídio do referido fundador e
responsável pelos custos da dita publicação, que foi, então, encerrada.
Mesmo tento sido breve, contudo, é de fundamental importância
destacar o esforço de atualização da literatura portuguesa impingido pelos
autores ligados a Orpheu. Vivendo em um Portugal caracterizado por
constantes reviravoltas políticas desde 1910 (ano de proclamação da
república), problemas econômicos e desenvolvimento científico e tecnológico
precários, tais expoentes da intelectualidade lusa pontuavam a importância de
se relembrar que os portugueses são também europeus, e que por isso não se
deveriam negar a um diálogo maduro com as propostas de “rompimento”
estético-literário apresentadas, então, nas mais diversas nações da Europa
(BARRETO: p. 58, 61, 62).
Daí se poder observar em território luso uma realidade de certa forma
semelhante à brasileira, de então: críticos em relação a uma burguesia
reacionária e conformista com força aparentemente inquebrantável em
x Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa, Aquilino Ribeiro, Teixeira de Pascoaes, António Ferro, Arnaldo Pereira, Joshua Benoliel, Stuart Carvalhaes, Almada Megreiros.
23
Portugal, estes pensadores e escritores de vanguarda foram subestimados por
alguns dos nomes de maior expressão no universo intelectual português do
período, tal como Julio Dantas, cuja apreciação acerca da importância do
primeiro número de Orpheu apresento a seguir:
Alguns rapazes, com muita mocidade e muito bom humor, publicaram, há dias, uma revista literária em Lisboa. Essa revista tinha apenas de notável a extravagância e a incoerência de algumas, senão de todas as suas composições. Como a recebeu a imprensa diária? Com o silêncio que merecia? (...) Não. A imprensa recebeu essa revista com artigos de duas colunas – na página primeira. (...) [Sendo assim] é justo confessar que os loucos não são precisamente os poetas, mais ou menos extravagantes, que querem ser lidos e comprados; quem não tem juízo é quem os lê, quem os discute e quem os compra (Apud. BARRETO, 60).
Em Manifesto Anti-Dantas, lançado em 1917, o poeta Almada Negreiros
(1893-1970) criticou tais apreciações, defendo a necessidade de uma ruptura
brusca com o passado da literatura portuguesa, da qual Julio Dantas foi figura
emblemática. Pode-se dizer, assim, com base no trabalho do brasileiro
Eduardo José Paz Ferreira Barreto e na leitura do referido manifesto, que os
argumentos de Negreiros correspondiam à inovadora defesa orphista de um
“ódio transformador” (BARRETO: P. 68). Senão, vejamos:
Uma geração, que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi. É um coio d’indigentes, d’indígnos e de cegos! É uma resma de charlatões e de vendidos, e só pode partir abaixo de zero! (...)Morra o Dantas, morra! Pim!Uma geração com um Dantas à proa é uma canoa em seco!O Dantas é um cigano!O Dantas é meio cigano!O Dantas saberá gramática, saberá sintaxe, saberá medicina, saberá fazer ceias pra cardeais, saberá tudo menos escrever que é a única coisa que ele faz!(...)O Dantas é o escárnio da consciência!Se o Dantas é português eu quero ser espanhol!O Dantas é a vergonha da intelectualidade portuguesa! O Dantas é a meta da decadência mental!E ainda há quem lhe estenda a mão!E quem lhe lave a roupa!E quem tenha dó do Dantas!(...)Morra o Dantas! Morra! Pim!
Após o encerramento da divulgação de Orpheu, algumas novas revistas
foram criadas com o objetivo de incorporar este primeiro projeto vanguardista
24
português, e estampar textos de autores interessados na renovação dos
paradigmas estético-literários em Portugal; são exemplos: Centauro (1916),
Exílio (1916), Ícaro (1917) e Portugal Futurista (1917). Contudo, ainda que
tenham revelado nomes hoje tidos como importantes para a Literatura lusitana,
tais como Aquilino Ribeiro (1885-1963) e Florbela Espanca (1894-1930), estas
publicações não alcançaram uma significativa projeção, nem nacional e muito
menos internacional.
A vanguarda literária de Portugal intentará ainda compor um grupo de
relevo com o lançamento de Presença (1927). Mas um movimento mais
ordenado, com propósitos mais bem definidos, apenas apareceu na década de
1940, sob a liderança de Alexandre O’Neil (1924-1986) e inspiração surrealista.
Note-se: 25 anos depois do lançamento do manifesto de André Breton, 1896-
1966, na França; e quase 15 anos após o lançamento do Manifesto Pau-Brasil.
Pode-se dizer, portanto, que, da vanguarda portuguesa, a obra poética
mais característica não é a de um grupo, mas a de uma “personalidade”:
Fernando Pessoa (1888-1935). Pessoa iniciou sua carreira publicando versos e
artigos de Crítica Artística e Literária em Águia, uma revista ligada a setores
portugueses tradicionais, e atenta a uma percepção do nacionalismo voltada à
valorização do passado, dos grandes feitos lusitanos do século XVI. Entretanto,
com o passar dos anos o autor renovou seu estilo, desenvolveu outras facetas
estéticas, e passou a integrar o corpo de colaboradores das mais diversas
revistas com propostas diversas. Como é sabido, assinava com diversos
heterônimos, dentre os quais se destacam Ricardo Reis, Alberto Caeiro e
Álvaro de Campos.
Associados na imprensa de então a biografias, descrições físicas e
personalidades específicas, cada um desses nomes correspondia a um corpo
de publicações bastante particular: o primeiro era monarquista e trabalhava
com referências à Literatura clássica greco-romana, o segundo exaltava a
natureza e as formas simples de viver, e o terceiro refletia sobre a modernidade
e foi classificado “futurista”. O que nos leva a pensar que, ainda que poemas de
alguns de seus ditos “heterônimos” não apresentem forma e conteúdos típicos
Mesa Rosales (1878-1929), Ramón María del Valle-Inclán (1866-1936), e
Antonio Machado (1875-1939).
Já a geração seguinte, denominada também novecentismo, preocupou-
se com o fato de que a Espanha vinha há séculos perdendo seu expressivo
papel de metrópole cultural; desejou, então, que seu país voltasse a ser sentido
como “europeu”, moderno e próspero filosoficamente, literariamente,
artisticamente. Foi, destarte, intelectualista, erudita e cosmopolita. Dela fizeram
parte os ilustres ensaístas José Ortega y Gasset (1883-1955) e Eugenio d’Ors
(1881-1954). No que diz respeito à criação poética, tal como os parnasianos,
valorizaram a forma; e, tal como simbolistas menos “sentimentais”, fizeram uso
de simbologias, metáforas, jogos de palavras. Seus poetas mais citados
comumente são: Ramón Gómez de la Serna (1888-1963), Rafael Cansinos-
Asséns (1882-1964), Juan Ramón Jiménez (1881-1958), Josep Carner (1884-
1970).
Não é comum classificar Gómez de la Serna como poeta vanguardista.
Porém, é possível argumentar que já apresentava uma poética bastante mais
“solta” que a dos modernistas hispanohablantes, tal como Salvador Rueda, já
aqui por mim analisado. Gómez de la Serna foi o criador das “greguerias”, que
ele dizia corresponderem a um novo gênero literário, e que definia como uma
mistura entre “humorismo” e “metáfora”. São, a bem da verdade, pequenas
sentenças cômicas – jogos de palavras, associação de imagens, e/ou
estruturação irreverentemente lógica de idéias – bem ao modo dos poemas-
piadas de nossos modernistas/vanguardistas brasileiros. Tomam como tema
não apenas a língua (escrita e falada) – o que é bastante típico da vanguarda,
auto-crítica por excelência –, mas elementos da natureza e as cidades, os
conflitos sociais e afetivos. Creio ser de grande valor citar alguns belos
exemplos:
Escribir con lápiz es marcar sólo la sombra de las palabras. Ballena se escribe con elle por los dos surtidores líquidos que lanza a lo alto por la nariz. Lo peor al incendiarse el teatro es que se queme el cartelito de Salida. La media luna mete la noche entre paréntesis. El arcoiris es la cinta que se pone la naturaleza después de haberse lavado la cabeza.Al mar le gusta la impunidad y por eso borra toda huella en la playa.
El viento es torpe: el viento no sabe cerrar una puerta.¿Qué está haciendo en realidad la luna? La luna está tomando el sol.En la noche de los vagones solitarios vamos con dos mujeres: la nuestra y la que se refleja en el cristal.Entre los carriles de la vía del tren crecen las flores suicidas. Tenía orejas ideales para sostener el lápiz, y por eso hubo que dedicarle al comercio. Tenía tan mala memoria que se olvidó que tenía mala memoria y comenzó a recordarlo todo.
Bom lembrar que há também greguerias que compõem quadros
absolutamente inesperados: “El poeta miraba tanto al cielo que le salió una
nube en un ojo.” e “El polvo está lleno de viejos y olvidados estornudos.” Neste
sentido, se relembrarmos a crítica de González Martínez aos lugares comuns
do modernismo/parnasianismo mexicano, no poema Tuércele el cuello al cisne,
vale a pena também transcrever uma gregueria na qual figuram as tais aves:
“De la nieve caída en los lagos nacen los cisnes.” Aqui o poeta não cria um
universo idílico, não manifesta sensações através de um símbolo; ele
simplesmente dá asas à sua imaginação, e exterioriza um universo que se cria
em sua mente, em seu coração.
Já Rafael Cansinos-Asséns, apesar de ser um dos mais comemorados
escritores espanhóis de princípios do século XX, não apresenta uma vasta obra
poética. Quer dizer: mesmo tendo sido o autor do primeiro manifesto de
vanguarda literária espanhol, o Manifiesto Ultraísta (1919)xi, não é reconhecido
por ter apresentado, em seguida, ousados (na métrica, na temática, na
composição) poemas, e sim por ser autor de um romance sobre as relações
profissionais e afetivas dos integrantes do referido movimento vanguardista –
El movimiento V.P., de 1921.
O principal poeta do ultraísmo é, na verdade, Guillermo de Torre (1882-
1914).xii Seus versos brancos não seguem qualquer padrão métrico e as
estrofes não obedecem a qualquer tipo de modelo tradicional. No mais, seus
poemas em geral são construções de imagens bastante curiosas, improváveis
mesmo. Por exemplo: em Naturaleza extática – bem distinto da referida
segunda parte do poema El año lírico, de Darío – podemos contemplar a
xi Assinado por: Guillermo de Torre, Xavier Bóveda, César A. Comet, Fernando Iglesias, Pedro Iglesias Caballero, Pedro Garfias, J. Rivas Panedas y J. de Aroca.xii Como ensaísta e acadêmico (De Torre foi professor de Literatura na Universidad de Buenos Aires), destacam-se seus estudos comparados.
associação, por Torre, de diversas imagens, aleatoriamente, ilogicamente: “Un
segmento de luna/ sobre la bandeja/ El corazón de la granada/ es un abanico
del iris/ La guitarra la pipa el periódico/ disecados como loros/ Palpando entre
el mosaico/ el vidrio canta sus reflejos/ A través de la ventana bastidor
del sol/ el viento afina sus cordajes/ Desconsolada una guitarra/ con las
clavijas sueltas/ enmaraña su testa.”
Já em Pararrayos temos uma descrição um tanto mais convencional, de
uma noite de chuva. Ali Torre compara os relâmpagos intercalados a cada um
dos olhos de Argos, gigante da mitologia grega que possuía cem olhos, e que,
enquanto dormia, podia fechar alguns e manter outros abertos, atentos,
vigiando. Os trovões, nos versos de De Torre, são tiros de pistolas
automáticas. À luz sucede a sombra; ao silêncio, estrondos. O tempo passa,
veloz, sem que se possa perceber ao certo que horas são, até que, como trens
desgovernados, as horas se descarrilam: o poeta está parado, estático, na
contemplação de um momento trivial e encantador. Há, nos versos finais, a
construção de mais uma imagem “teogônica”: a tempestade seria como a ira de
Deus (“pirotécnico celeste”) contra os homens.
Em outra composição, Autorretrato, De Torre intercala a associação de
imagens inusitadas e o descritivo com a exploração do modo de ver e pensar
do artista de vanguarda. Apresenta ícones da cidade contemporânea, como
trens, arranha-céus, jornais, e os utiliza não para falar da cidade propriamente,
mas, de uma maneira muito peculiar, para descrever a si mesmo. Ali, seus
cabelos são como velozes trens em movimento, e seu rosto, de tão altivo,
parece se erguer à altura dos prédios mais altos da cidade; um biombo próximo
à sacada, parte de sua vida cotidiana, lembra um jornal aberto, “gigante”. Ele
utiliza, para falar de si, ainda, uma série de conceitos e lugares-comuns da
pintura cubista, nascida na Espanha e explorada por expoentes tanto de
centros culturais europeus, como a França, como da Hispano-América. Ele se
questiona “como” é (“¿Pero como soy yo?”) e apresenta possíveis respostas a
serem dadas por pintores cubistas como o francês Robert Delaunay, o
espanhol Vázquez Díaz, o uruguaio Rafael Barradas e, por fim, Norah Borges.
31
Norah Borges foi sua esposa – irmã de Jorge Luís Borges (1899-1986) – e,
segundo De Torre, o descreveria como “un paisaje de feria urbana”.
Neste mesmo poema fala ainda de aspectos subjetivos de sua
identidade: “Del barroquismo a lo jovial/ Un síncope de esdrujulos/ acelebra mi
vida mental”. Em outras palavras, o poeta se considera um misto de
sentimentos sombrios e de entusiasmos, o que é bastante característico das
vanguardas de todo mundo – críticas mas ativas.
Outros dois importantes expoentes do ultraísmo são o espanhol Gerardo
Diego (1896-1987), e o já citado (e sempre celebrado) Borges, poeta argentino.
Faz-se mister lembrar, aqui, que o movimento de vanguarda que mais
teria influenciado o ultraísmo não foi, como se pode imaginar, o cubismo (já
que este teve grande expressão entre as artes plásticas, na Espanha); nem o
futurismo ou o dadaísmo, tão aclamados internacionalmente. O movimento de
vanguarda que mais teria influenciado o ultraísmo foi concebido em língua
espanhola, mas não na Europa e denominava-se creacionismo. Foi inaugurado
em uma conferência no Ateneo de Buenos Aires, pelo poeta chileno Vicente
Huidobro (1893-1947), no ano de 1916. Como veremos através da leitura de
alguns de seus poemas mais expressivos, Huidobro (diferentemente dos
modernistas hispanohablantes) não foge do mundo ao redor em direção a um
passado glorioso (bem ao gosto parnasiano), nem tampouco à noite, ao sonho
(bem ao gosto do simbolista González Martínez). Simplesmente não crê que
este mundo lhe baste, e deseja inventar, com os elementos que se lhe
oferecem, um mundo inexistente. Não constrói simbologias: apresenta novos
elementos. Realiza, assim, uma fusão entre as “palavras” e as coisas
(matérias, idéias, sentimentos). Faz associações fortuitas que comumente os
pesquisadores têm denominado “humor branco”.
Em Primavera, por exemplo, – lembrando muitos dos poemas de De
Torre, a quem Huidobro certamente influenciou, e de maneira bastante distinta
do Primaveral de Darío – não apresenta sequer um dos elementos mais típicos
desta estação do ano, como o sol, as flores, a brisa quente. Trata de abordar
situações e/ou relações surpreendentes. Tomemos a título de exemplo três
imagens compostas ali por Huidobro, numa seqüência: primeiramente, refere-
32
se a um pássaro que antes cantava como um coágulo de sangue, mas que
agora cochila; depois, refere-se a um violinista morto “esta mañana”; por fim,
identifica os elementos violino e janela, e trata de abordar o canto produzido
por ele/ela. Apresenta, assim, um quadro bastante surpreendente, visual, de
uma maneira tal, que emociona quem lê.
Em Puerto trabalha com uma série de elementos típicos deste que é um
dos locais-ícones da modernidade: fala em velas, mastro, instrumentos de
pesca, naves, piloto, o ancorar, o naufragar, o flutuar. Mas aqui tampouco
apresenta uma descrição convencional. Falando do porto, o poeta aborda, em
última instância, mas especialmente, o aleatório, o desconhecido, o incerto; há
“el azar de los dados”, “una selva”, “un escojo”. Uma outra figura presente em
Puerto é recorrente em muitos outros poemas escritos por Huidobro, e, da
maneira como aparece, aqui, serve para reiterar este meu argumento: as
estrelas. Diferentemente do que pudemos observar nas composições
parnasianas, nesta composição específica do dito autor chileno surgem como
mais um elemento da pintura escrita por Huidobro, e não sob um viés místico,
de anunciação ou guia – elas que no céu brilham, mas já não estão lá.
No que diz respeito à concepção de “temporalidade” implícita nos
poemas de Huidobro: o poema se desenha dentro de uma moldura de tempo,
que fixa o momento; mas ele permanece latente, prismal, e multifacetado. Esse
momento, em geral, é um ponto determinado no movimento da vida, do mundo,
do universo, os quais no desenho do poeta têm um funcionamento mecânico,
ainda que não cumpram estágios lineares de desenvolvimento. Focando no
poema, portanto, vemos um instante dinâmico; ampliando o olhar, entendemos
que, para o poeta, tudo se move confusamente, e tudo está pronto para
recomeçar.
Na composição Arte poética, todas estas questões aparecem mais
evidentes. Ali Huidobro conclama outros escritores a darem vida às palavras,
através da criação de jogos associativos sem regras pré-estabelecidas. Ali ele
deixa bem claro que sua preocupação não é falar das “coisas em si” (Elas
existem? Vivem?), mas dar vida às palavras. Ele deseja é elaborar “figuras”
que causem impressões na mente do leitor, justamente pelo fato de a mente do
33
leitor nunca as ter concebido. Note: “Que el verso sea como una llave/ Que
abra mil puertas./ Una hoja cae; algo pasa volando;/ Cuando miren los ojos
creado sea,/ Y el alma del oyente quede temblando./ Inventa mundo nuevo y
cuida tu palabra;/ El adjetivo, cuando no da vida, mata./ Estamos en el ciclo de
los nervios./ El músculo cuelga,/ Como recuerdo, en los museos;/ Mas no por
eso tenemos menos fuerza:/ El vigor verdadero/ Reside en la cabeza./ Por qué
cantáis la rosa, ¡oh Poetas!/ Hacedla florecer en el poema;/ Sólo para nosotros/
Viven todas las cosas bajo el Sol./ El poeta es un pequeño Dios.”
No que tange aos aspectos formais, Huidobro também não parece se
importar com qualquer tipo de convenção. Além de não compor versos ou
estrofes com medidas precisas, as rimas por vezes não chegam a ocorrer, e
por vezes ocorrem no meio dos versos. Pode-se dizer, em alguns casos, que o
autor parece menos preocupado com os padrões de escritura do que com o
ritmo dos poemas e do que com as imagens que eles compõem.
Entretanto, como é sabido, isso não deve ser entendido como mero
descaso, e sim como experimentação. Huidobro é por muitos considerado um
dos criadores do cubismo literário, que ganharia força e expressão nos
trabalhos de Guillaume Apollinaire (1880-1918). Em seus poemas, o chileno já
explorava medidas distintas de parágrafos, espaços entre estrofes, espaços em
branco entre determinadas palavras, frases inteiras em maiúsculas, colunas,
enfim, os aspectos gráficos. O francês, de sua parte, é o dito criador dos
“caligrames”.
No que diz respeito à geração de intelectuais espanhóis de 1927,
também chamada “generación de la dictadura”, “generación de la Revista de
Occidente” e “nietos de 1898”, sabe-se que renovaram seus versos através de
um diálogo mais claro e plural com as propostas vanguardistas. Foram, então,
mais criativos e inventivos os poemas de: Frederico García Lorca (1898-1936)
e Luis Cernuda (1902-1963).xiii
Lorca foi poeta magistral, criativo. Tomou a seu dispor, ao longo da vida,
diversos tipos de construções poéticas: romances, noturnos, gazeis (poesias
xiii Além de: Pedro Salinas, Jorge Guillén, Vicente Aleixandre, Damaso Alonso, Rafael Alberti, Emilio Prados, Manuel Altolaguirr, Fernando Villalón, Rafael Laffón, Juan Larrea, José Maria Hinojosa, Juan Domenchina, Antonio Oliver, Miguel Valdivieso, José Bergamín