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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
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Maria Helena Damascene e Silva Megale
Paulo Sergio Lacerda Beirao Silvana C6ser r. .
J l
1
FREDERIC VANDENBERGHE
TEORIA SOCIAL REALISTA UM DIALOGO FRANCO-BRITANICO
Belo Horizonte Editora UFMG
2010
Rio de J aneiro IUPERJ
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!!:> 2010, f'red(;ric Vandenberghe
2010, Editora UFMG
Este Jivro ou parte dele nao podc scr reproduzido por qunlqucr
meio scm nutoriut~iio cscrita do Editor.
Vandenberghe, Fn! deric. V227t Teoria social rcalistn : l tm
di~logo francobriti\nico I
Frederic Vandenberghe. Belo Iiol"izontc : Eclitora UFMG ; Rio de
Janeiro : IUPERJ, 2010. 365 p. : - (1-Iumanitas)
Colctilnea de anigos do autor sobrc o assunto.
lnclui bibl iograna. !SON: 978-85-7041 -809-8 (Ecl itora UFMG)
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1. Sociologi:t - Franp. 2. Sociologia - lnglatcrra I. T itulo.
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que sugeriu o titulo "Teoria social realista", e Marcus
Figueiredo, o diretor de divulga~ao cientffica (bern como AI
Heimer, seu assistente), tamb~m merecem uma mencao especial. Quero
agra-deccr, a lem disso, a Claudia Boccia pela edi~ao do manuscrito
e a Felipe Dutra pela organiza~ao da bibliografia. Sou gra.to a
jesse Souza, a quem considero urn dos melhores soci6logos da minha
gera~ao, por escrever a "orelha" deste livro. Por fim, fui mais do
que af01tunado com os tradutores. Enquanto Estela Abreu e Ana Liesi
Thurler traduziram do frances com dedica~ao, diligencia e
competencia, meu amigo Gabriel Peter$, que e tambem meu assistente
de pesquisa, traduziu do ingles'e revisou o Jivro inteiro com um
senso notavel de perfei(:ao. Este livro e, liLeralmenLe, nosso
livro, embora eu assuma total responsabilidade pelo seu
conteudo.
Tradu~iio de Gabn"e/ Peters
42
CAPITULO
I
110 REAL E RELACIONAL11
UMA ANALISE EPISTEMOLOGICA DO ESTRUTURALISMO GERATIVO DE PIERRE
BOURDIEU
Por meio de conceitos e simbolos, buscamos fazer com que uma
ordem temporal de palavras corresponda a uma ordem
relacional de coisas.
S. Langer. Philosophy in a new key.
"Entidades do mundo-relacionai-vos!" (Emirbayer, 1997: 312).
Esse poderia ser o lema de uma sociologia relacional. 1 Bourdieu
optou por urn outro, que contem uma ironica referencia a Hegel, ao
inves de Marx. Em Meditafoes pasca#anas, uma medita~ao sociol6gica
sobre as filosofias do nosso tempo (de Searle a Habermas e Rawls),
Bourdieu descreveu a si mesmo como urn pascaiien (Bourdieu , 1997a:
9). No entanto, acredito que, na meclida em que seu "estruturalismo
gerativo"2 (Harker; Mahar; Wilkes, 1991: 3) pode ser mais bern
compreendido como uma tentativa de transpor sistematicamente a
concep(:ao relacional das ciencias naturais "para o terrene das
ciencias sociais - uma tentativa que toma a forma de uma sintese
original entre a sociologia (Weber; Marx; Durkheim; Mauss
[Brubaker, 1985: 747-749), mas tambem Elias, Mannheim e Goffman), a
fenome-nologia (Husserl, Heidegger, Mei"leau-Ponty), a filosofia
linguistica (Wittgenstein e Austin) e, por ultimo, mas nao
menos-irnportante, a epistemologia racionalista neokantiana
(Bachelard e Cassire r,
-
mas Lambem Panofsky e Levi-Strauss) -. poderfamos tambcm, e
talvez de modo ainda mais adequaclo, clescreve-lo como um
bacbelardien.3 Ainda que a influencia de Gaston Bachela rcl sobre
Bourclieu tenha frequentemen te escapade a aten~ao dos academicos
anglo-americanos, os quais nao estao bem informados a respeito cia
tracli9ao frnncesa de hist6ria e ftlosofia cia ciencia, podendo tc
r encontrado os nomes de l3achclarcl, Koyre, Canguilhem ou
Cavailh~s apenas incliretamente, atraves de seu inte resse em
AJthusser, Foucault ou Kuhn - cujo famoso livro A estrutura das
reuolufoes cientificas (Kuhn, 1970) foi direta-mente influenciado
por Bachelarcl -. pretendo voltar aos anos formativos do soci6logo
frances (final dos anos 1960 e infcio dos 1970, quando suas ideias
seminais estavam em gesta~ao) para mostrar que a sua tcoria social
pode ser mais bcm entendicla como uma tentmiva de transpor, de modo
sistematico, o "racionalismo aplicaclo" de Bachelard do reino das
ciencias naturais para o domlnio das c iencias humanas.4
Entretanto, o foco sobre Bachelard nao dcve obscurecer o quanta
Bourdieu deve as analises protoestruturalistas do prindpio
relacional nas ciencias modernas (da matematica a ffs ica e a
lingulstica) rcalizadas por Ernst Cassirer.5 De fato, o "nucleo
duro" (Lakatos) melacientlfico e nao fa lseavel do programa
progressive de pesqu isa de Bourdieu e formado por uma sofisticada
sfntese entre o racionalismo de Bachelard c o rclacionismo de
Cassire r. Juntas, tais perspectivas formam a metateoria do
conhecimento sociol6gico que fundamenta e gera a teoria sociol6gica
dos campos de produ9ao, circula9ao e consume de bens culturais.
Essa metateoria estruturalista do co nhecimento e naturalista, mas
nao positivista. Assim como representantes contemporaneos do
realismo crltico (Harre, Bhaskar, Arche r e tc.), Bourdieu aclvoga
uma i nterpreta~ao nao positivista da epistemologia das ciencias
naturais, reformula nclo-a sistematicamente de modo tal que uma cie
ncia social naturalista se torne p osslve l.6 Apesa r de seus
ataques nominais a filosofias realistas (empiricistas) e
substan-cia listas (nao relaciona is) cia c iencia, as quais nao
levam a cabo a ruptura epistemol6gica com as concep~oes espontaneas
cia realiclade,7 gostaria de mostrar que sua metaciencia
sociol6gica representa uma versao racionalista do realismo
crftico.
Ainda que eu seja, de modo geral, simpatico a abordagem de
Bourdie u, gostaria de formu la r uma crftica positiva do
44
racionalismo e tentar argumentar a favor da necessidade de uma
conve rsao filos6fica do racionalismo para o realismo na
apropria9ao da obra desse autor. Uma vez que a base filos6fica
esteja esclarecida, passare i a uma reconstru~ao sistematica cia
conccp~ao relacional que forma o nuclco do estruturalismo gerativo,
de modo a investigar em maio r de talhe corno, na trilha de
Bachelard, Bourdieu cliz adieu a relates empiricistas da ciencia e
conquista, constr6i e verifica os fatos cientlficos. Nesse
contexte, tambem exporei o famoso conceito de habitus -: o qual, ao
atualizar as estruturas, relaciona os campos 1'\s a9oes e
estabelece a media~ao entre ambos _ como uma tentativa
bache-lardiana de transcender antinomias filos6ficas, tentando
conferir a este conceito luna inflexao voluntarista mais alinhada a
inten9ao politica e moral que anima a teoria critica bourdieusiana.
Partindo desta analise metate6rica da teoria do conhecimento
sociol6gico. ana lisa re i em seguida a teo ria geral dos campos de
Bourdieu como uma aplica~ao do modo relacional de pensamento,
apresentando um relato altamente formalizado dos prindpios e
proprieclades gerais dos campos e subcampos. Para ilustrar como a
sua teoria clos campos representa uma aplica~ao sociol6gica cia
conjun~ao entre as metateorias racionalista e relacionista das
ciencias naturais de Bachela rd e Cassirer respectivame nte,
reconstruire i os primeiros estuclos dos campos re ligiose e
cientifico realizados por Bourdie u, examinanclo suas ressonancias
weberianas e mannheimianas. Finalmente, concluirei com uma
avalia~ao gernl do programa de pesquisa do Centro de Sociologia
Europeia e uma questao final sobre etica .
A POSSIBILIDADE DO NATURALISMO
Em que medicla a socieclade pocle ser estudada cia mesma forma
que a natureza? Sem exagero, e possfvel afi rmar que a questao
acerca cia possibiliclade do naturalismo nas ciencias sociais
constitui o problema central da filosofia das cicncias sociais
(Bhaskar, 1989). Oesde a dupla funda9ao da sociologia por Auguste
Comte e Whilhelm Dilthey, a hist6ria deste assunto te m sido
polarizada em torno de uma disputa entre duas tracli96es, geranclo
respostas rivais ao e nigma. Uma tradi~o naturalista, cujos
antecedentes filos6ficos imediatos estao nos trabalhos de Hume,
45
-
Comle, Mill, Mach e do Clrculo de Viena, defende que as ciencias
estao (efetiva ou idealmente) unificadas na sua concordancia com os
prindpios positivistas, baseados, em ultima instancia, na no~ao
humiana de lei como a sucessao regular de clois. eventos
observaveis. Em oposi~ao ao positivismo, uma tracli~ao
antinatu-ralista, que encontra sua ancestraliclacle filos6fica em
Vico, Kant, Hege_l, Dilthey, Husser! e Wittgenstein, postulou uma
clivagem de metoda entre as ciencias naturais e sociais, funclacla
em uma diferencia~ao de seus objetos. Para esta tradi~ao
hermeneutica, o dominic de investiga~ao das ciencias socials
consistc essencial-mente em objetos significativos, senclo seu
objetivo a elucida~ao do significado de tais objetos. 0 grande erro
que une esses clois amagonistas e, como afirma Bourclieu, sua
"falsa representa~ao cia episremologia das ciencias naturais"
(Bourdieu; Chamboderon; Passeron, 1973: 18), i.e., a aceita~ao de
um retrato essencialmente positivista das ciencias cia natureza,
ou, pelo menos, de uma onto-logia empiricista. De fato,
clesenvolvimentos recentcs na filosofia da ciencia, em parricular
aqueles exemplificaclos no trabalho de Rom Harre (1970), os quais
Roy Bhaskar (1978) sistematizou sob o titulo de "realismo
transcendental", demonstraram convincen-temente que a ciencia
efetivamente praticada pelos cientistas e reflexivamente
reconstrufda pela epistemologia nao e conforme o dinone
positivista.8
As ciencias nao pretenclem chegar a leis universais por meio cia
generaliza~ao indutiva cia sucessao regular de fenomenos
observaveis, mas antes inteligir o que esta "por tras" ou "alem"
clos fenomenos revelaclos pela experiencia sensorial, de modo a
oferecer-nos conhecimentos das "estrururas numenicas" (Bachelard)
ou "mecanismos gerativos" (Harre) que, de algum modo, necessitam
esses fenomenos. Nessa perspectiva anti-humiana, as leis nao mais
se referem a conjun~ao regular de eventos, mas sao analisadas em
tcrmos disposicionais, i.e., como poderes causais ou, mais
precisamente, tenclencias causais de mecanismos gerativos
subjacentes. As tendencias combinadas dessas estruturas "profundas"
e mecanismos transfactuais podem gera r eventos passfveis de
observa~ao, mas os eventos podem ocorrer indepe ndentemente de
haver ou nao alguem para observa-los, sendo que as tenclencias das
estruturas numenicas permanecem as mesmas mesmo quando se
contrapoem umas as outras de modo tal a nao produzirem qualquer
mudan~a
46
observ{tvel na realidade. No Iugar da ontologia da experiencia e
de eventos atomfsticos constamemente conjugados, o realismo
tnmscendental estabelece, assim, uma ontologia de poderes e
mecanismos causais nao observaveis. De modo semelhante, no Iugar de
uma analise de leis como conjun~oes constantes de eventos, esta
perspectiva analisa leis em te rmos das tendencias dos mecanismos
subjacentes que geram os e ventos, os quais podem otl nao ser
percebidos. "Tendencias podem ser possufdas, mas nao exercidas;
exercidas, m4s nao realizadas; realizadas, mas nao percebidas (ou
detectadas) pelos homens"9 (Bhaskar, 1978: 184).
De modo a combater o retrato humiano das cH!ncias e superar sua
fixa~ao empiricista na percep~ao e nos dados sensoriais, Bhaskar
(1978: 56-62) propoe a substitui~ao d:.t "ontologia plana" clos
empiricistas por uma visao mais estratiflcacla d~ realidade , capaz
de distinguir e ntre os clomfnios sobrepostos do real, do atual e
do empfrico. Se o domfnio do real e composto de mecanismos e
estruturas gerativas transfactuais que normal-mente escapam a
observa~ao direta, os domfnios do atual e do empfrico abarcam,
respectivamente, padroes de eventos que sao gerados por esses
mecanismos e estruturas e as experiencias an-aves das quais aqueles
padroes sao apreendidos. Dado que o dominio do real nao pode ser
reduzido ao dominic do empfrico, o bispo Berkeley e os realistas
empiricos estao simplesmente enados: ser nao e ser percebido. 0
faro de que a realidade existe indepenclentemente das observa~oes e
descri~oes que possufmos acerca deJa nao significa, e ntretanto,
que possamos conhecer a realiclade inclepenclenremente de tais
observa~oes e (re)descri~oes. A realidade s6 pode ser conhecida
g1-a~as a inter-ven~ao de categorias, teorias e quadros
conceituais, mas -pace Kuhn, Foucault e Rorty - eles nao determinam
a estrutura do mundo. Obsetva~oes sao sempre sobredeterminadas pela
teoria, e as teorias sao sempre subdeterminadas pelas observa~oes,
mas, se quisermos evitar a "falacia epistemica" (Bhaskar, 1978:
36-38) que consiste na redu~ao de questoes omol6gicas a questoes
epistemol6gicas, temos de distinguir categoricamente entre os
"objetos transitivos" e os "obfetos intransitivos cia ciencia"
(Bhaskar, 1978: 17): entre nossas categorias, teorias e quadros
conceituais, de um !ado, e as entidades, mecanismos, estruturas e
reht~oes reais que compoem o mundo natural e social, de ourro.
47
-
Sem esta clistin~ao entre o nivel epistemico (ou transitive) e o
nlvel 6ntico (ou intransitive) do conhecimento, nos arriscamos a
projetar nosso conhecimento s6cio-historicamcnte cleterminado clos
objctos nos pr6prios objetos do conhecimento, substitu inclo estes
por aquele e tomando o objeto projetaclo pela coisa em si, com o
resultado de que o mundo torna-se literalmente (a reifi-cat;ao cia)
mjnha vontade e representat;ao. 10
Uma vez superaclo o retrato essencialmente positivista das
ciencias naturais, companilhado tanto pelos defensores positi-v
istas do naturalismo quanto pelos seus crfticos hermeneutas, a
questao concernente a possibilidacle do naturalismo nas ciencias
sociais pode ser levantada de modo refrescantcmente novo. Agora que
o positiv ismo foi recusaclo e refutado, as contribuit;oes das
tradic;:oes hermeneuticas e fenomenol6gicas poclem ser apropriadas
e, assim, pode ser explorada a possibilidade de uma tcrceira
posic;:ao ou (com as clevidas clesculpas a Giddens) uma "terceira
via", nomcadamente, aquela de urn naturalismo nao positivista
qualificado, fenomcnologicamente informado e hem1eneuticamenre
sensfvel. 11 Como outros soci6logos e fil6sofos franceses cia sua
gera
-
quanto o emptnCISrno ingenuo das caracteriza~oes positJVIstas
das ciencias. A epistemologia de Bachelard e sintetica, ou, como
ele mesmo diz, "dialetica" e "discursiva". E dialetica, nao porque
proceda de modo hegeliano em clire~o a uma totalidade. fechada que
abarque tudo, mas porque o movimemo do pensamemo e visto . como urn
infindavel "movimento de englobamento" (mouvement d'enveloppement;
Bachelard, 1988: 137), no qual as limila~oes de um quadro
conceitual particular sao descobertas, superadas e integradas em
urn qua9ro rnais amplo que inclui o aspecto previameme
exclufdo.
Na mesma vda dialetica, Bachelard busca mostrar que a 16gica
pratica do cientista imerso em seu trabalho transcende naturalmente
as oposi\;oes filos6ficas entre o racionalismo iclealista e o
realismo enlpiricista. 13 Cientistas praticantes nao sao
incornoclaclos por disputas e antinomias filos6ficas. Espon-tanea e
ecleticarnente, eles combinam a imagina~ao construtiva dos
iclealistas (racionalismo) com a experiencia instrufda dos
empiricistas (realismo), as quais os fil6sofos tendem a separar,
declaranclo-as incompatfveis. Assim, a filosofia sintetica com base
na qual eles agem, e que combina a teoria abstrata (racionalismo) e
a pesquisa concreta (empiricismo), e aquela que Bachelard denomina
"racionalismo aplicado" (Bachelard, 1986) ou "materialismo
racional" (Bachelard, 1990). Eles nao coletarn fatos simplesmente,
mas constroem elaborados modelos te6ricos abstratos de estruturas
numenicas que necessitam os fatos feno-menicos, montando
experimentos que "realizam" tecnicamente e tornam concretamente
manifesto o fenomeno que a teoria aponta hipoteticamente como urn
efeito possfvel das estruturas numenicas. Portanto, instrufclo pela
teoria abstrata e aplicanclo a "fenomenotecnica", o cientista cria
ou "realiza" tecnicamente o fenomeno. De modo a acentuar a ruptura
com o realismo ingenuo dos empiricistas, entretanto, e essencial
clestacar que Bachelard nao deixa cluvicla quanto a "dire~ao do
vetor episte-mol6gico", que vai do "racional ao real" e "nao do
real ao geral" (Bachelard, 1991: 8), como tem siclo professado
portodos os fll6sofos desde Arist6teles ate Bacon. A primazia e
clara mente concedida a reflexao te6rica e a constru~ao do objeto
te6rico, nao a "percep-\;UO imaculada" (Nietzsche) dos
empiricistas. Sendo a "realiza~ao" cia teoria (Bachelard, 1991:
98), o real e, assim, para todos os efeitos, racionalizado.
Paradoxalmente, e para tornar o contato
so
com a realidade mais preciso e peneu-ame que a ciencia e for~ada
a realizar, como Gilles-Gaston G1-anger diz de modo tao belo, "urn
clesvio pelo rei no da abstra~ao" (Granger, citado por Hamel, 1997:
16). Na medicla em que os fatos nao sao imediatamente dados, mas
consistem, propriamente falanclo, no resultaclo mediado cia
realiza~ao tecnica cia reoria, o realismo de Bachelarcl pode ser
caracterizaclo como urn "rcalismo de segunda posi~ao, um realismo
que reage contra a realidade usual, urn realismo fe ito de razao
realizada e experimentada" (Bachelard, 1991: 9).
Se este realismo de segunda posi~ao fo r comparado com o
realismo transcendental de Bhaskar (pam uma comparn~ao, ver
Bhaskar, 1989: 41-48), podemos ver claramente quP. ambos rejeitam e
reagem cont1
-
de que o scr pode ser analisado em termos do conhecimento do
ser, de que e suficiente para a filosofia "tratar apenas da rede e
nao do que a rede clescre ve" (Wittgenstein, 1961: 6.35), resu lta
na d issoluc;ao de um munclo indepenclente cia cicncia .- como pode
ser visto, por exemplo, no problematico enunciado de Kuhn segundo o
qual "quando os paradigmas mudam, o pr6prio munclo mucla com eles"
(Kuhn, 1970: 111).
Nao obstante o pesado investime nto de Bourclieu na pesquisa
empfrica e o fato de que objetos sociais nao cxistem
inclependen-temente clas ciencias sociais, poclenclo aincla ser
causalmente afetaclos por elas, penso que ele comete a mesma
falacia epistemica. Como seus predecessores estruturalistas
(Levi-Strauss, Althusser e Foucau lt), entretanto, e le tende a se
situar ambiguamente entre uma interpreta~ao realista e uma
interpreta~ao convencionalista cia ciencia.> Ainda que Bourdieu
sugira algumas vezes que as re presentat;oes cientificas cia
realiclade tenham seu fundamen-tum in re, a dire~ao principal de
seus argumentos epistemol6-gicos aponta para a aclo~ao de uma
posi~ao mais racionalista, na qual as representac;oes cientlficas
nao est.ao tanto fundadas na realidacle, mas a "realidade" e que
esta fundada nelas (como indicado pelo fato de que palavras como
"real", "realidade" e "realiza~ao" sao sempre colocadas entre
aspas). Neste ponte, gostaria de notar que minha crltica ao
racionalismo de Bourd ieu nao pretende ser uma acusac;~to final a
sua metaciencia, mas um convite para a retomada do "movimento de
englobamento" clialetico do pensamento na dire~ao do realismo
critico. Em outras palavras, gostaria que Bourdieu tivesse
abanclonaclo seu ceticismo a respe ito cia existencia de um mundo
indepencle nre de teoria e aceitado a icle ia de que o mundo, o
qual de fato s6 pode ser conheciclo atraves de difcre mes
(re)descric;oes, existe, na vercladc, indepenclenteme nte de tais
(re)descric;oes; ou, melhor ainda, que estas (re)descric;oes
alternativas do munclo oferecem retratos alternatives do mesmo
mundo. Esse convite e mais do que u ma escaramuc;a filos6fica. Dado
que a pressuposi~ao realista segundo a qual as (re)descric;oes da
realidade refere m--se ao mesmo munclo e uma preconclic;ao necessa
ria para a compa rac;ao racional e ntre teorias e, assim, para uma
escolha racional de teoria, a ideia de desenvolvimento cientffico
depende eventualmente (a Iongo prazo) cia superac;ao do
racionalismo cientlfico. Em uma fonnu lac;:ao algo paradoxal,
poderfamos
52
dizer que a racionalidade cia ciencia pressupoe o abanclono do
"su rracio nalismo" cientifico (Bachelard, 1988: 28).
Em 0 estruturalismo e a teoria do conhecimento sociol6gico,
Bourdieu clesenvolve uma teoria estruturalista do social na qual a
realidade empirica e concebicla como urn reflexo anal6gico das
rclac;oes entre elementos que formam, segundo postula o modele
te6rico, uma estrutura hipotetica, porem invisfvel. "A teoria, como
um sistema de signos o rganizados de modo a re presentar, auaves
clas suas pr6prias relac;oes, as relat;oes e ntre os objetos, e uma
tracluc;ao, ou mclhor, um sfmbolo articulado aquilo que e lc
simboliza por meio de uma le i de analogia" (Bourclieu, 1968: 689).
Assim, na medida e m que as rela~oes reais entre os e lementos sao,
de certo modo, recluzidas a un~ reflexo ai1al6gico cbs relac;oes
te6ricas estabelecidas entre os elementos da estrutura te6rica, a
ontologia do mundo e, de fato, derivada de uma epistemologia
estrutural do munclo. Entretanto, como e le esta ciente do risco
cia ontologizac;ao de proposic;oes epistemol6gicas, Bourclieu muda
de dire~ao no (dtimo memento e recorre a estrategia kantiana de
imunizac;ao pelo recurso ao ficciona lismo analrtico: "Todas as
proposi~oes do cliscurso sociol6gico deveriam ser precedidas por
urn signo que poderia ser lido como 'tudo se passa como se ... "'
(Bourdieu, 1972: 173; Bourdieu , 1980: 49).16 Como resultaclo deste
estratagema convencionalista, as proposic;:oes socio l6gicas nao
sao mais ticlas como capazes de apreender o mundo tal como e le e,
mas ceticamente reduzidas ao status de (re)descric;oes da
"realiclacle" que nao pocleriam ser nunca mais do que artiffcios
heurfsticos desenvolvidos para representar ou "salvar"
analogi-camente os fenomenos.
Grac;:as a esta vigilfmcia e pistemol6gica, Bourd ie u evita o
risco da reificac;:ao cia teoria, mas apenas ao prec;o da covardia
onto16gica, se eu pucler ousar me expressar nesses termos. 0
movimento reificador do modele cia realidacle para a realidade do
mocle lo e efetivamente evitado, mas, como resultado clesta
inflexao convencionalista, a relac;:ao referendal entre o modele e
a realidade torna-se o nto logicamente obscura. Quando o movimento
referencial do modelo cia realidacle para a realidade do mode le,
ou do significance para o significado, e rejeitaclo a priori e
denunciaclo como urn movimento re ificaclor que vai cia hip6tese a
hip6stase, nao c mais possfvel testar racionalmente as pretensoes
ontol6gicas do mode le. Em nome de urn medo
53
-
"ontof6bico" cia "fa lacia cia falsa concretude" (White head,
1930: 65), nao e mais pennitida a investiga~ao das possibili-dades
de que o modelo efctivamente refira-se a realidade e a capture ou ,
ao contn1rio, apenas !eve a sua reifica~a9. Nesse sentido, uma
interpreta~o realista coloca em jogo do que uma convenciona lista,
pois, se o cientista possui o conceito de um re ino ontol6gico d
istimo das suas reivindica~oes correntes de conhecimento, sua
pesquisa pode efetivamente mosrrar que sua hip6tese sobre a coisa
real era, na r~alidade, apenas uma hip6s-tase real cia coisa . 0
pragmatismo epistemol6gico, por ourro lado, evita o risco da
reifica~ao, mas apenas ao pre~o do re larivismo e pisremico, po is,
se a conexao entre os nfveis ontol6gico e e pistemol6gico e
elastica, i.e., se utilizamos modelos anal6gicos cia realiclacle
sem produzir afirma~oes acerca da realidade, chegamos, do ponto de
vista 16gico, a uma situacio anarco-daclafsra em que "vale tudo"
(Feyerabend, 1978: 28, 186, 296). Com Bhaskar, penso que uma teoria
tern de ser ontologicamente ousada, ma is do que e
pistemologicameme cautelosa (Outhwaite, 1987: 19-44).17
Ao inves de fazermos afirma~oes convencionalistas a respe iro de
necessiclades conceituais ou clas caracterfsticas que precisamos
necessa riamente atribuir as coisas, clevemos utilizar defini~oes
rea is das coisas e tenta r captar sua estrutura real. Ace itamos o
faro (quiniano) de que a realidade s6 pode ser conhecida au-aves de
diferentes descri~oes, mas, na ausencia de uma teoria cia
cones-pondencia entre o modelo e a realidade, nao podemos averiguar
o que a realidade e e rerminamos na absurda situa~ao em que existem
ramos mundos quantas sejam as clescri~oes sob as quais a realidaclc
pode ser conhecida. Com o realismo crftico, podemos conclui r,
assim, que e apenas se possuirmos o conceito de um re ino
onrol6gico distinro de nossas reivinclica~oes correnres de
conhecimento que poderemos pensar na possibilidade cia crltica
racio nal de nossas afirma\=Oes.
REMOVENDO OBSTACULOS EPISTEMOL6GICOS
Re tornando das grandiosas alturas da crftica fi los6fica,
podemos proceder a uma analise cia transposi~ao da episte-mologia
bache lardiana para o reino do social realizada por Bourclieu. Como
Bachelard, Bourdieu recomenda a "vigilancia epistemol6gica". A
ciencia precede apenas por meio de e nos, cia corre\=ao de enos. 0
primeiro erro e o erro empiricista do
54
realista ingenue que toma os fatos como dados e nao como um
resultado, como algo a ser conquistado e sistematicamente
construfdo. Com Bachelard, Bourdieu afirma, em suas "pre
li-tninares epistemol6gicas" a sociologia, que 0 "fato cientifico e
conquistado, construldo (e) verificado" (conquis, construit,
constat(}, Bourdieu; Chamboderon; Passeron, 1973: 24, 81).
Consequentementc, a hierarquia epistemol6gica dos atos cien-tificos
suborclina a verifica~ao do faro a sua constru~ao e sua constn.1~ao
a ruptura com as concep~oes espontaneas do social.
0 "primeiro obstaculo epistemol6gico" (Bachelard,1993: 23-54) a
ser supe rado, caso a sociologia pretenda ser uma
. ciencia rigorosa, e a adesao_ espontanea do soci6logo a
"experiencia d6xica" imediata do senso corilum e as explica\=oes
senso-comunais (comon-sensica l explanations) do social avan-~adas
por teorias sociol6gicas traclicionais. 18 Na medida em que a obje
tividadc cie ntlfica s6 e posslvel se rompennos com 0 objeto
imediato, 0 primeiro impe rative da sociologia e a "ruptut-a
epistemol6gica" (Bachelard, 1986: 104) e ntre a concepr;ao de senso
comum (doxa) e a concep~ao cientifica (episteme) do social.19 A
partir desra perspecriva, o "postulado de adequa~ao" de Schutz, que
estipula que conceitos cientificos (de segunda ordem) devem sempre
permanecer entrela~ados aos conceitos do senso comum (de prime it-a
ordem) e ser traduzlveis para estes (Schutz, 1974: 289, 324 et
seq.; Schutz, 1962: 44), deve ser categoricamente rejeitaclo.20 Na
opiniao de Bourdieu, uma ciencia s6 pode ser cienrifica se aplica,
do inicio ao fun, o prindpio determinista da "razao suficiente".
Transposto para o dominic da sociologia, o prindpio do determinismo
toma a forma do "prindpio da nao cons_ciencia" durkheimiano
(Bourdie u; Chamboderon; Passeron, 1973: 31): a vida social tern de
ser explicada nao pelas concepr;oes clos seus parricipanres, mas
por causas estruturais que escapam ~~ sua consciencia, explicando e
necessitando os fenomenos observados. Toda vez que nos referimos a
explica~oes psicol6-gicas ou inte racionistas de fatos sociais,
poclemos estar certos de que invertemos as causas e os e feitos.
Bourdieu nao deixa duvidas a respeito clisso: "E a estrutura das
rela~oes que constituem o espar;o do campo o que coma~da a forma
assumicla pelas rela~oes vislve is de interar;ao" (Bou rclieu,
1982a: 42)_21
Os fatos sociais s6 podem, portanto, ser explicados por fatos
sociais (Durkheim, 1977: 109), deveoclo estes ser
sistematicamente
55
-
construfdos contra o sense comum, bem como objetivados em um
sistema de relac;;oes de modo ta l que as relac;;oes estrutura is
objetivas entre os elementos fenomenicos necessitem e expliquem o
comportamento dos elementos cia rela9ao construlcla entre os
elementos.22 A analise estatistica das rela~oes numericas entre os
elem_entos e (Jtil na medida em que permite ao soci6logo romper com
as redes ilus6rias de relar;.:oes que sao espontane-amente teciclas
na vida cotidiana, mas estas rela~oes numericas sao apenas um
primeiro passe e rem de ser inseridas em uma rede relacional de
ordem mais elevada, capaz de garantir uma explicac;;ao racional das
relac;;oes estatfsticas observaclas.23 A rcsistencia que a c iencia
socio l6gica gera quando priva a experiencia imecliata de seu
privilegio gnosiol6gico e inspirada por uma filosofia humanista da
a.\o social, que toma o sujeito como referenda ontol6gica ultima
sem notar que o sistema objetivo, embora invislvel, de relac;;oes
entre os indivfcluos tern "mais realidade" do que os sujeitos que
ele articula. Ou, dizenclo o mesmo na linguagem escolastica tao
cara a Bourdieu: nao sao os indivlduos visfveis, mas e o espac;;o
invisfvel de relac;;oes entre i ndivlduos o ens realissim.um
(Bourdieu, 1994: 53). No entanto, este sistema real de rela~oes,
embora invisfvel, nao flutua simplesmente no ar clas ideias
platonicas. Ele nao cxiste em si mesmo, mas, similarmente aos
"habitantes" do "mundo 3" de Popper Co "mundo dos sistemas
te6ricos"), s6 se manifesta empiricamente no mundo real ("mundo 1",
o mundo clos eventos observaveis, cujas regulariclacles objetivas
sao sistemati-camente capruradas por dados estatlsticos) grac;;as a
intervenc;;ao do babitus, que pertence ao "mundo 2" ("o mundo dos
estados de consciencia, ou dos estados menta is, ou talvez de
disposi~oes comportamentais"), mas estabelece a mediac;;ao entre o
mundo 3 e o munclo 1, "realizando" assim o sistema te6rico das
relay6es construfdas (ver Popper, 1979: 106-90).
A PRIMAZIA DAS RELA
-
conceito nao mais descarta desdenhosameme os particulares que
especificam os conteudos que ele subsume, mas, ao contdirio, busca
clescobrir a necessiclacle da manifesta~ao c a conexao dos pr6prios
particulares. 0 que o conceito propoe, assin~. e uma regra
universal que nos permite compor e combinar o elememo particular em
pessoa" (Cassirer, 1994: 25) .27
Por exemplo, para tomannos uma ilustra~ao do campo da geometria:
inicianclo por uma f6rmula matematica geral, podemos formar as figu
ras geometricas particulares do d rculo, cia e lipse e assim po r
cliante, apenas moclificanclo os parametres qu e constituem a
figura, de tal maneira que ela descreva e atravesse uma serie
continua de valores. Tomanclo um exemplo mais sociol6gico,
consistentemente desenvolviclo em A distinfiio (a obra-prima de
Bourdieu que ja e um ch1ssico cia sociologia (Bou rdieu, 1979al):
come~ando porum volume e uma estrutura particulares de capital,
podemos variar os pa rametres e proceder conti nuamente cia regiao
mais e levacla do espa~o construfdo de posi~oes sociais,
constitufda pela fra~ao dominante da classe dominante (a burguesia
industrial), p assando pela regiao inter-mediaria, constituida pela
fra~ao dominacla cia classe dominante (profissionais liberais e
academicos) e pela fra~ao dominante cia classe dominada (os come
rciantes e artesaos), ate a regiao mais baixa , constitufcla pela
fra~ao clominacla cia classe clominacla (camponeses, trabalhadores
manuais nao qualificados e excluf-clos28). Como resultado da
aplica~ao do modo de pensamento re lacional, "os conceitos
cientificos nao mais aparecem como imita~oes de existencias
coisificaclas, mas como sfmbolos repre-semanclo orclens e
articula~oes funcionais presentes na realiclacle" (Cassire r, 1971:
3). Na medida em que a realidade dos objetos se dissolve u em um
muncie de re lac;oes racionais, poclemos de fate clizer, com
Bachelarcl e Hegel, que "o real e racional" (Hegel, 1971: 24), bern
como, com Cassire r e Bourclieu, que "o real e relacional"
(Bourdieu, 1987b: 3; Bourclieu; Wacquant, 1992: 72, 203; Bourclieu,
1994: 17).
RELACIONISMO APLICADO
Embora o objeto pare~ preceder o ponto de vista, Bourclieu
compartilha cia pressuposi~ao construtivista de Saussure, segundo a
qual, na verclade, e "o ponto de vista (que) cria o
58
objeto" (Saussure, 1985: 23). A clelimita~o do campo e,
po11anto, analftica.29 Grac;as a constru~ao metodol6gica de urn
sistema fechado, aut6nomo c auto rreferencial de rel:lc;oes
internas e ntre conceitos, um mocle lo coerente cia realidade pode
ser criado c tomaclo comq estruturalmente hom61ogo a mesma. Como
vimos acima, entretanto, Bourdieu nao deseja avan~ar urn argumento
ontol6gico sobre a realiclade; afirmando que "fun~oes sociais sao
ficc;oes" (Bourdieu 1982a: 49), ele recorre em ultima instancia ao
gesto convencionalista do "como se". Para construir o sistema de re
lac;oes e ntrelac;aclas, cluas coisas sao importances: em primeiro
Iugar, o sistema te rn de ser complete, 1'. e., tocla a popula~ao
de e lementos re levances tern de ser levada em considera~ao; em
segundo, os elementos tern de estar ligadosuns aos outros por meio
de relac;oes internas, ou seja, de tal modo que nao possam ser
definidos independentemente uns dos outros, portanto de maneiJa que
estejam mC1tua e conceitualmente implicados uns nos outros. A
escala musical e as melodias oferecem bons exemplos de sistemas
paradigm~ticos e sintagmaticos de relac;oes internas, ou, para
falar como Saussure, de diferen~as arbitrarias, porem intcrnamente
relacionadas: as notas formam um sistema para-digm{ttico complete,
o valor de cacla uma sendo rigorosamente cletenninaclo pela posi~ao
de todas as outras; a meloclia, por sua vez, que reordena
sintagmaticamenre as notas, nao e nada senao a realiza~ao
contingente de uma serie inte rnamente re lacionada de
possibilidades musicais. Outra boa ilustra~ao e a descri~ao do
ciclo econ6mico por Marx (Marx, 1973: 81-11): proclu~ao, consumo,
distlibui~dO e troca de bens econ6micos estao mutua-mente
implicados em um silogismo dialetico. Como "membros cia
tot~liclade", representam apenas "distin
-
quanto ao faco de que a ciencia scmpre almeja o conhecimento do
oculto (l3achelard, 1986: 38; Bourdieu, 1996: 16). De modo a
descobrir o que est.a encoberto, a ciencia tem de construir
"modelos anal6gicos" do mundo social, ou, dito talvez. de uma
melhor forma, do espa\=O social, modelos que "recuperem os
prindpios ocultos subjacentes as realiclades que eles interpretam"
(Bourdieu; Chamboredon; Passeron, 1973: 76). A constru~ao de um
modele icleal-tfpico do espac;o de re lac;oes estruturais entre as
rela\=oes fenomenicas permite _que tratemos as cliferentes fo rmas
sociais como varias realizacoes distintas da mesma funcao
(simb6lica). Nessa perspectiva, "oreal" aparece, como diz Bachelard
e gosta de repetir Bourclieu, como "um caso particular do possfvel"
(Bachelard, 1991: 62), o que pressupoe, e clare, que o caso
particular seja relacionaclo as propriedacles mais gerais clns
quais e le e uma fun\=ao. Assim, para tomar um exemplo do campo
academico, quando sabemos a posic;ao exata de urn "indi-vfduo
epistemico" (Bourdieu, 1984a: 36), definida pela totalidacle das
propriedades re lcvantes - como trajet6ria, volume e estru-tura dos
cliferentes tipos de capital (economico, cultural, social, simb6Uco
etc.), -que podem ser atribufdas a eta e que sao tomadas como
eficazes na explica\=ao cia varia\=ao das posic;oes no campo, nao
importa realmente se consideramos diferentes "individuos empiricos"
como Levi-Strauss, Braude! ou Foucault, pois, do ponto de vista do
analista que considera-os como "realizac;oes do possfvel" (ou
"personificac;oes" de estruturas, como diria Marx), eles apenas
representam "casos similares do posslvel", sendo, como tais, quase
indistingufveis. Uma vez que as propriedades invariantes (illusio,
interesses, !uta pelo monop61io cia autoriclade, volume e estrutura
do capital, oposic;ao entre fra\=oes dominantes e dorninaclas das
cliferentes classes, estmtegias de conservac;ao e subversao etc.)
de um dado campo de praticas sejam conheci-das, e uma vez que os
prindpios gerativos e unificadores de um sistema de relac;oes
estejam codificados e formalizados no modele te6rico, tal modele
pode ser transposto para, e comparado com, outros campos de
praticas, visando-se a descobetta de homologias estruturais e fu
ncionais.
Esta transposic;ao de moclelos de urn campo a outro nao implica,
no entanto, que Bourdieu nao reconhe\=a a diferencia-;ao funcional
que caracteriza a socieclade moderna (Bohn, 1991: 133-139;
Alexander, 1992J57-164).__Embora os campos tenham
60
emergido historicamente e adquirido certa autonomia, eles estao
interconectados de maneiras complexas, e a aplica\=ao comparativa
cia f6rmula gerativa de sua estrutura e funcao mostra precisamente
como a invariancia "formal" ou estrutural e a varia\=ao "material"
ou empfrica podem ser pensadas conjuntamente, de modo que a
tendencia em dire~ao a redu-;ao de urn campo a outre, casu quoao
campo economico, possa ser evitada.31 Entretanto, mesmo que o
reducionismo cia infame "ultima instancia" possa ser evitaclo dcste
modo, o problema do reclucionismo reemerge sob uma outra forma,
qual seja, como uma "cspecie de reducionismo de campo" (Swartz,
1997: 293) no qual os produtores culturais tenclem a ser vistos
como emanac;oes cia 16gica do campo intelecrual, sendo seus
produtos concebidos como varies epifenomenos etas respectivas
posi~oes que ocupam naquele. Como um te6rico--pesquisador de
campo(s), Bourdieu multiplicou sua pesquisa comparativa em
diferentcs campos cia pratica (haute couture, lite-ratura, atte,
esporte, filosofia, politica, mercados imobiliarios e, por ultimo,
mas nao menos importante, a midia [Bourdieu, 19961 e a economia
[Bourdieu, 1997bD, chegando a anunciar a publicacao de um livre, em
que estava aparentemente trabalhando, acerca da teoria geral dos
campos, obra que, entretanto, nao foi publicada.
RACIONALISMO APLICADO
Agora que analisamos como o faro cientffico e conquistado contra
o sense comum e sistematicamente construfclo como urn efeito
relacional cia teoria, podemos proceder a analise do processo de
ver.ificac;ao cia teoria. Contra o dogma empiricista cia percep\=ao
imaculacla, Bourclicu enfatiza uma vez mais que os fatos sao sempre
e necessariamente sobredeterminados pela teoria. Na medida em que
os instrumentos e tecnicas cia pesquisa empfrica sao, como disse
Bachelard certa vez, "teoremas realmente re ificaclos" (Bache lard,
1971c: 137), todas as opcra~oes cia pesquisa sociol6gica, cia
formula~ao de urn questionario a sua codifica-;ao e analise
estatfstica, tern de ser consideradas como "varias teorias em
ac;ao" (Bourdieu; Chamboredon; Passeron, 1973: 59). Urn
conhecimento acurado daquilo que se faz sobre e com OS fatos, bern
como do que OS fates podem OU nao fazer, e, portanto, o p rimeiro
requisite cia pesquisa sociol6gica. Por exemplo, a tecnica cia
analise multivariacla, que parece apli-cavel a todos os tipos de
relac;oes quantificaveis, pressupoe a
61
-
independencia das vanaveis dependentes e independentes. E os
soci6logos, que rotineiramente aplicam (;:SSe modo linear de
pensamento sem pensar muito a respeito, nao estao nem mesmo atentos
ao faro de que as variaveis estao internamente .ligadas e s6
assumem seu valo r numerico, bern como sao o que sao, gra~as a sua
posi~ao e fun~ao em uma figura~ao estrumral (Elias, 1985: 234).
Alem disso, dado que nao pensam em termos de causalidade
estrurural, eles se agarram a identidade nominal de suas variaveis,
assumindo que seus efeitos sao puramenre lineares e nao perce-bendo
que, em cada uma das variaveis,a rede de rela~oes entrelayadas
exerce sua eficacia atraves de todas as outras (Bourdieu, 1979a:
113-122, 512-514).32 0 resultaclo cia aplica
-
subjetivismo unidimensional, representado (por razoes
peclag6gicas) por Schutz, Blumer, Garfinkel e OLrtros. Foi apenas
quando as limita~oes do objetivismo e do subjetivismo foram ambas
acentua-das que a possibilidadc de uma a rticula~ao sintetica
cr~tre micro e macro eventualmente emerg iu nos a nos 1980
(Alexander et at., 1987c). Ainda que nosso
fil6sofo-lornaclo-antrop6logo houvesse desenvolvido o principal
esbor;o de sua tentativa de transcender a "bipolaridacle" dos e
rros subjetivista e objctivista ja no inkio dos a nos 1970
(Bourdieu, 1972), sua tcoria cia pracica e clarame nte parte de um
movimento "estruturista" mais amplo na teoria social, movimento que
adquire sua inspirar;ao nas Teses sabre Feuerbach, de Marx, e do
qual Sartre, Berger, Luckmann, Habermas, Giddens, Bhaskar eo
Castoriaclis tardio sao provavelmente os reprcsentantes mais bem
conhecidos (Vandenberghe, 1998: 322-339).
Movendo-nos de consiclerar;6es epistemol6gicas para discussoes
ma is metateoricas, podemos agora apresenta r a te n tativa
bour-dieusiana de supera r a oposi~ao e ntre subjetivismo e
objeti-vismo por meio cia introdu~ao de uma relar;ao suplemenrar:
urn relacionarncnto vertical que estabelece a media~o entre o
sistema de posir;oes objetivas e as disposir;oes subjetivas. Este
e, evide nce-mente, o momento em que aparece na cena o velho e vene
rflve l conceito a ristotelico de hexis, que Boecio e Tomas de
Aquino traduziram como habitus e que o etnoft!6sofo frances
transformou e m urn de seus conce itos centrais.38 Como e bern
conhecido agora, Bourdieu utiliza o conceito de habitus- sempre
ente ndiclo como habiluscle classe e clefinido como urn sistema de
"clisposir;6es clu-raveis e transponfve is, estruturas
estJuturaclas predisposras a fundo-narcomo estruturas
estruturantes" (Bourdieu, 1972: 155; Bourdieu , 1980: 88-89) - como
uma especie de "ope rador te6rico" que, ao conferir uma coercncia
formal a ar;oes que sao cxtremamente diferentes materialmente,
estabelece a media~ao entre o sistema invisfve l de re lac;oes
estruturadas (pelas quais as a~oes sao mocle-laclas) e as ac;oes
vislveis dos mores (que estruturam as rela~oes-19). Como urn
constJuto 16gico "irredutfvel as suas rnanifestar;oes" (Bourdieu,
1974: 31), o habitus em si nao pode ser observaclo, mas, tal como
as instancia~oes p raticas clas cstruturas virtuais de Giddens (G
iddens, 1979: 53-76; Giddens, 1984: 16-28), pocle ser detectaclo
nas suas arualiza~oes, quando uma "condir;ao permis-siva" (o estado
do campo, do mercaclo etc.) forncce a ocasiao apropriad~l para a
clisposi
-
E cerro que o habitus e o produto de estruturas sociais, mas, se
pararmos aqui, podemos cai1 na armadilha da leitura deter-minista
pura e esquecer que, como principio gerador de ac;oes, avaliac;oes
e percep
-
para formar um todo organtco, Bollldieu sempre pensou no campo
como um campo de lutas, ou, como diz Elias, de "tensao" (Elias,
1984: 127). Desde o inicio, sua concep~ao relacional do campo
estava combinada a uma visao altamente conflitual do mundo como uma
arena de batalha por poder, prestigio e toda especie de capital,
arena em que a distin
-
intclectual, por exemplo, ocupa uma poSi\;ao dominada no campo
do poder, que esta ele mesmo situado no polo dominance do campo das
re la.;oes de classe. Em qualquer momento no tempo, 0 campo inte
lectual e 0 locus de lutas entre dois prindpios de hierarquiza~ao:
urn crite rio heteronomo (o sucesso, tal como medido pela venda de
livros) que trabalha em beneffcio claqueles que dominam o campo
economica e politicameme (as pessoas "de terno" que distribuem os
recursos, integram os comites decis6rios e clecidem sobre o
potencial mercadol6gico dos livros); e urn criterio autonomo (a
qualidade, tal .como medida pelo reconhe-cimento dos pares), que
favorece os "verdacleiros intelectuais".
Em segundo Iugar, cleve-se descobrir a estrutura objetiva de
rclac;oes entre as posic;oes ocupadas no campo pelos agentes ou
institui.;oes em competic;ao uns com os outros no seu interio r.
Aqui, o prop6sito eo de revelar a hierarquia dos produtos e clos
produtores, baseada na oposic;ao entre o "campo cia procluc;ao
restril:a", em que os proclutores procluzem para outros produtores,
e o "campo da produc;ao para audH~ncia de massa", que e s
im-bolicamente exclufdo e desqualificado (Bourdieu, 197lc: 54-55).
Finalmente, a analise do campo tambem deve incluir investigac;oes
detalhadas das tra jet6rias e das disposic;oes dos produtores em
competic;ao uns com os outros no seu ambito. Compreencler as p
ralicas dos produtores e os seus produtos implica compreender que
eles sao o resultado da hist6ria das posic;oes que ocupam e da
hist6ria de suas disposic;oes. Quando o ageme e introduzido no
campo, pode-se dinamizar esse retrato e analisar a d ialetica entre
posic;oes objetivas e disposic;oes subjetivas, explicando assim as
posturas (prises de positions) dos produtores de urn dado
campo.S6
0 modelo generalizaclo do campo de produc;ao cultural
apre-semado acima e o resultado de uma longa serie de estudos de
campos particulares que Bourdieu iniciou nos anos 1960 com uma
analise do campo intelectual, de Flaubert e o Nouveau Roman ate o
jazz eo cinema (Bourdieu, 1966),57 urn modelo cujo quaclro
conceitual e , em larga medida, inspirado em uma brilhante e o
riginal reinterpre tac;ao do capftulo de Webe r sobre a religiao em
Economia e sociedade (Weber, 1972: 245-381) nos termos da sua
teoria geral do conhecimento sociol6gico (Bourdieu, 1971a;
Bourdieu, 1971b).58 Na medida em que sua interpreta.;ao confere uma
inflexao marxiana as no.;oes de bens ideais e interesses ideais de
Weber, ela tambem lanc;a as bases de uma
70
teoria geral da economia clos bens simb6licos que, ao estender a
l6gica do calculo economiCO a todos OS bens, materiais assim como
simb6licos, sem distin~ao, inte nta demonstra r que ha uma economia
politica dos bens culturais. Como resultado dessa le itura
ostensivamcnte materialista de \Veber, que gera uma especie de
perspectiva supermarxista antecipada por Mannhe im, uma
interprctac;ao economica de setores nao economicos e ate
antieconomicos (como o re ligiose, por exemplo) torna-se possfvel,
interpreta~ao que consistentemente mostra que um clesinteresse
bem-intencionado e consplcuo por recompensas materiais sempre gera
lucro de urn. modo ou de outro, mesmo que este lucro nao seja
conscientemente intencionado pelo agen-te. Quando a "a.;ao
estrategica" sem calculo estrategico explicito ou a "ac;ao
tradicional" com prop6sito racional sao descobertas em toclo Iugar,
surge a suspeita de reducionismo economico e hiperutilitarismo a la
Ga1y Becker, reducionismo que detecta o egoismo inconsciente no
altrufsmo conscie nce, levando assim , inevitave lme nte (e, ate
certo ponto, justificavelmente), ao oxi-moro do "calculo inconscie
nte" (ver Joppke, 1986; Honneth, 1990; Caille, 1992; Alexander,
1995).
0 eixo central de variac;ao entre os campos eo seu grau de
autonomia . Campos a ltamente autonomos, como o cientifico, seguem
o c6digo bimirio do verdadeiro e falso; campos altamente
heteronomos, como o politico, o c6cligo schmittiano do amigo e
inimigo (Bourdieu, 1986: 10) . Primeiramente, consideraremos o
campo re ligiose, que esta aberto a determina~oes externas e cuja
"verdade" nao e nada alem da imposi
-
teoria da autonomia relativa do campo rcligioso que o permite
transcender a oposi~ao entre uma teoria (estruturalista) que
interpreta o conteudo mutavel das mensagens religiosas em termos
das leis imanentes do espiri to e uma teoria (ma rx_ista) que
concebe tais mensagens como urn reflexo direto cia infraestrutura
material cia socicdade, cometendo assim o e rro do curto-circuito.
0 problerna com Weber e duplo. Em primeiro Iugar, ele penna-neceu
preso ao modo substancialista de pensamento. Ao inves de rel
~tcionar sistematicamente os protagonistas cia
-
apari~ao deve ser explicada em rela
-
E contra este pano de fundo mannheimiano cia relac;ao social
gcral de competi
-
pennanentes e crescentemente despidas de efeiros politicos. Em
suma, o campo cientffico se torna mais autonomo e, conforme se
tacna mais autonoma e auto rregulada, a razao cientlfica progl'ide
e eventualmente a "for~a eta razao" (Kant) torna-se a (mica forma
de for\=a reconhecida e legitimamente utilizacla no campo. Neste
pomo, Bourdieu se junta a Ape! c Habermas, mas com essa diferen~a
notavel: a razao nao e mais considerada como um universal
trans-hist6rico, mas como o resultado hist6 rico da progressiva
institucionalizat;ao de cliscussoes racionais no campo cia ciencia
(Bourclieu, 1997a: 111-151)61 e, o que e passive! e desej{lvel,
tambem no mundo mais amplo - embora isso dependa da
institudonalizat;ao das condit;5es de discussao 1
-
sociologia a sua propria sociologia desmascara sua posi\=ao
epis-temol6gica como uma posic;ao iclcol6gica e, assim, como um
movimento interno ao proprio campo. E, de faro, rudo se passa como
sc Dourdieu estivcsse apenas reintroduzindo no campo cia sociologia
uma versao reelaborada cia distinc;ao ideol6gica de Althusser entre
ciencia e iclcologia, de maneira a transcender a oposic;ao entre a
sociologia radical e a orrocloxa. E, ate mesmo mais
problematicamente, se esse movimento nao e polemico, mas reflexive,
nao "dnico", mas "c;lfnico" (Bourdieu, 1996: 68), entao a questao
permanecc sendo: como pocle ele rer acesso a j)OSi\=aO de
"espectador imparcial", observando suas pr6prias observac;oes e
aquelas dos outros, vendo o que eles nao veem e talvez ate o que
ele nao vc?l'3 Com efeito, este parcce ser o ponto em que a
sociologia bourdicusiana torna-se algo divino - "socio-logia
bourdivina". Ainda que Bourdieu fosse tentado as vezes a total izar
e fechar seu pr6prio esquema totali zante, ele esrava, de fmo,
alerta aos problemas deste tipo de proceclimento, como pocle ser
inferido de sua altamente reflexiva aula inaugural sabre a aula no
College de France, em que ele alerta explicitamente comra as
tentac;oes plat6nicas e hegelianas da "intelligentsia livremente
flutuante" ao notar que "nao se deve espcrar de urn pensamento
sabre os limires que de acesso a urn pensamento sem Jimites"
(Bourdieu, 1982a: 23).
Bourdieu sempre foi urn intellectuel engage (e tambem enrage).
Embora ele tenha tendido a manter alguma separac;ao residual entre
ciencia e polltica, a natureza polftica das suas empreitadas
cientificas tornou-se clara, ao final de sua carreira, nao apenas
para os leitores de Liberation, o suplemento polftico internacional
a Actes de Ia Recherche en Sciences Sociales, mas tambem para a
aucliencia mais ampla de leitores de Liberation, Le Monde e Le
Monde Diplomatique.rA No verdadeiro espfrito do Esclarecimento,
avan~ando a ciencia em nome cia eman-cipac;ao e a emancipac;ao em
nome da ciencia, o mais famoso soci6logo cia Franc;a escolheu
intervir como urn agitador politico na esfera publica para dar voz
aos exclufdos (os desempregados e os pobres, os gays e as lesbicas,
os intelectuais argelinos e os imigrantes ilegais na Pranc;a etc.)
e subverter a hegemonia neoliberal . De fa to, desde a greve de
clezembro de 1995 ( ver Duval eta!., 1998), Bourdieu multiplicou
suas intervenc;oes "por uma esquerda na esquerda" (Bourdieu, 1998c)
- e nao por uma
80
' -
"esquerda cia esqucrda", como seus inimigos gostavam de mal
interpreta-lo - , analisou criticamente e atacou os intelecruais m
idiaticos e OLttros fast thinkers por sua cumplicidade con1 as
classes d!Jnlinantes (Bourdieu, 1996), propos uma seric de
poderosos argumentos para se contrapor ao ataque ao Estado de
bem-estar social e a polltica global cia "flexplora\=ao" com uma
proposta para urn estado social europeu (Bourdieu, 1998a) e, pOr
ultimo, mas nao menos importante, Jan\=OU uma serie bem-sucedida de
pequcnos l ivros financciramente acesslveis, bern clocumentaclos e
Iegfveis, cujo formate lembra o clos Kleine Politiscbe Scbriften de
Habermas e que eram "animados pela vontade militante de difundir 0
conhecimento indispens{tvel a reflexao e a ac;ao pollticas em uma
clemocracia ("Preambulo" para Halimi, 1997).65 Como o principal
porta-voz de urn "intelectua l coletivo aut6nomo", Bourdieu, com
sua estrategia metapolltica de tipo gramsciano que buscava
subverter a hegemonia cul tu ral do neoliberal ismo (tanto na d
ireita como na esquerda- "a troika jospin-Blair-Schroder"), foi tao
bem-sucedido que teve de negar publicamente as especulac;oes
selvagens de que criaria urn novo partido politico e se apresemaria
como candidato nas eleic;oes de 1999 para o Parlamento Europeu ("0
candidato Bourdieu nao existe", Liberation, 27 /8/1998).
CONCLUSAO: DA CRITICA A RECONSTRU\=AO
No fim das contas, o estrururalismo gerativo de Bourdieu pode
ser vista como uma reflexao sociofilos6fica e variac;ao
empfrico-te6rica sobre o tema do pensamento relacional, as quais
penni"tem que ele "deixe as categorias dan~ar", como disse Marx em
outro contexto, "ao som de suas pr6prias melodias polfticas". De
fato, movendo-nos progressivamente, e rio abaixo, ao Iongo do
continuum das abstra~oes cientfficas, partindo de reflexoes
filos6ficas, epistemol6gicas e metate6ricas sabre uma teoria social
relacional ate chegarmos a suas implementac;oes te6ricas,
metoclol6gicas e empfricas em uma socio logia dos campos, vimos
como o argumento de Bourd ieu pode ser internamente rccons-trufdo
como uma transposic;ao sistematica, das ciencias natura is as
ciencias sociais, da reformulac;5o bachclardiana e cassireriana do
ulcrajame enundado de Hegelsegundo o qual o "real c racional"
81
-
e o "racional real". A centralidade do modo de pensamento
relacional para o projeto de Bourdieu esta provada pelo faro de que
as duas preocupac;:oes metassociol6gicas centrais que guiaram seu
programa de pesquisa durante quarer;ta a nos - nomeadame nte , a
substituic;:ao de uma concepc;:ao substancialista por uma
concepc;:ao re lacio nal da realidade social e a tra nscen-dencia
cia antinomia fundamental entre abordagens subjetivistas e
objetivisras no estudo cia vida societaria - podem ser
respec-tivame nte interpretadas como uma aplicac;:ao horizontal e
uma aplicac;:ao vertical deste modo relacional de produc;:ao
imelectual. Sea primeira preocupa
-
pretende oferecer armas eficientes de contra-atua~ao sobre essas
esuutmas e mecanismos coativos e contribuir com a consecu~i'io de
uma margem d e liberdade em rela~i'io aos mesmos (Peters, 2006:
135-136; Peters, 2008: 26).66
Tardiamente, nos seus humorcs rna is militantes e apelos
politicos a uma Realpolitik da Razao (Bourdieu, 1992; Bourclieu,
1994; Bourdieu, 1997a), Bourdieu reconheceu a cspontaneidadc cia
a-;ao e a eficacia clas icleias. Mais recentemente, e le ate
cleixou de !ado suas criticas te6ricas do Estaclo e dos seus assim
chamaclos "apara tos ideol6gicos" para defender o valo r universal
da educa~ao (Areser, 1997) eo Estado de bem-estar social (Bourdicu,
1998a: 34-50, 66-75) contra seus detratores monetaristas; mas estas
concessoes polfticas ainda precisavam encontrar expressao te6rica
no seu corpus cientifico.
E, finalmcnte, uma questao: Por que nao ir mais Ionge,
perfa-zenclo o caminho clesde uma teoria crftica da domina~ao ate
uma teoria polltica cia emancipa~ao, e claf para uma tcoria
normativa da etica? Sc uma sociologia crftica pressupoe nao apenas
uma analise das for-;as da clomina~ao social, mas tambem uma
analise das fon;as sociais cia emancipa~ao, bem como a
possibiliclade de uma polftica transformativa cmancipat6ria, entao
e la tambem pressupoc uma etica, ou, ao menos, alguma formula~ao de
criterios normativos de julgamcntos marais e alguma inclica