Uma política poética. Um dia vivido ou alguma criação rea-
lizada durante essa época dramática de pandemia. Textos,
desenhos, fotografias, recortes, citações, poesias. Regis-
tros de inquietações. Nossa paralisia e nosso movimento.
Textos-potência, evidenciando sensibilidades e subjeti-
vidades reveladas na pergunta que não quer calar: o que
fazer?
Textos-memória, singularizando o tempo de cada sujeito
isolado. A memória e a palavra, o gesto. Livro-arquivo. Como
nos representamos? Cada texto é um corpo exposto. Beirando
a estética e a política num tempo de gestos sobreviventes.
Para quem quer um arquivo de imagens e textos teste-
munhais ou ficcionais sobre a experiência de isolamento
durante os meses de março, abril e maio de 2020, este é o
livro perfeito. Revela parte do que nos aconteceu/acontece
durante a pandemia. Pedimos aos convidados para enviarem
páginas sobre um dia vivido ou alguma criação realizada
durante essa época dramática. Textos, desenhos, fotogra-
fias, recortes, citações, poesias. Uma pequena coletânea-
-coleção, um arquivo de memórias vividas na realidade ou
na imaginação de artistas, literatos, historiadores, an-
tropólogos, filósofos, sociólogos, psicólogos, geógrafos,
comunicólogos... Gente de carne e osso.
Metáforas e metonímias que não cabem somente em versos,
mas que se fazem presentes também nas narrativas histó-
rico-antropológicas e visuais, literárias, teóricas, enfim,
nos variados campos da linguagem.
Perdas e faltas habitam nosso tempo excessivamente du-
rante uma pandemia tornada guerra. E como numa guerra se
levantam gestos, num movimento de fluxos e refluxos. O que
leremos aqui é o que Benjamin chama de uma política poética.
Aqui, acolá, num texto ou noutro, numa espécie de materia-
lismo antropológico que é capaz de agarrar esse momento de
absoluta tensão, manifesta como uma enervação do corpo
coletivo, uma histeria generalizada, vista através das re-
des sociais.
As organizadoras
ARQUIVO PANDEMIA Diários íntimos,
recortes poéticos,
históricos,
geográficos,
políticos,
antropológicos,
artísticos,
psicossociais do isolamento
Volume 2
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
REITORA Sandra Regina Goulart Almeida
VICE-REITOR Alessandro Fernandes Moreira
EDITORA UFMG
DIRETOR Flavio de Lemos Carsalade
VICE-DIRETORA Camila Figueiredo
Flavio de Lemos Carsalade (PRESIDENTE)
Ana Carina Utsch Terra
Antônio de Pinho Marques Júnior
Antônio Luiz Pinho Ribeiro
Camila Figueiredo
Carla Viana Coscarelli
Cássio Eduardo Viana Hissa
César Geraldo Guimarães
Eduardo da Motta e Albuquerque
Élder Antônio Sousa e Paiva
Helena Lopes da Silva
João André Alves Lança
João Antônio de Paula
José Luiz Borges Horta
Lira Córdova
Maria Alice de Lima Gomes Nogueira
Maria de Fátima Cardoso Gomes
Renato Alves Ribeiro Neto
Ricardo Hiroshi Caldeira Takahashi
Rodrigo Patto Sá Motta
Sergio Alcides Pereira do Amaral
Sônia Micussi Simões
Volume 2
Andréa Casa Nova Maia
Vera Casa NovaOrganizadoras
ARQUIVO PANDEMIADiários íntimos,
recortes poéticos,
históricos,
geográficos,
políticos,
antropológicos,
artísticos,
psicossociais do isolamento
© 2020, As organizadoras© 2020, Editora UFMG
Este livro, ou parte dele, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita do Editor.
A772 Arquivo pandemia : diários íntimos, recortes poéticos,
artísticos, psicossociais do isolamento: volume 2 / Andréa Casa Nova Maia, Vera Casa Nova, organizadoras. - Belo Horizonte : Editora UFMG, 2020.
511 p. : il. ISBN: 978-65-5858-003-4
1. Literatura brasileira. – 2. Epidemia – História. – 3. COVID-19 (Doença). 4.Civilização - História I. Maia, Andréa Casa Nova. II. Casa Nova, Vera. III. Série.
CDD: B869.3 CDU: 869.0(81)-3
Bibliotecária - CRB-6/1390
COORDENAÇÃO EDITORIAL Jerônimo Coelho
DIREITOS AUTORAIS Anne Caroline Silva
ASSISTÊNCIA EDITORIAL Eliane Sousa
PROJETO GRÁFICO e FORMATAÇÃO Alessandra Magalhães
MONTAGEM DE CAPA Humberto Bianchi
IMAGEM DE CAPA Alex Carvalho
PRODUÇÃO GRÁFICA Warren Marilac
EDITORA UFMGAv. Antônio Carlos, 6.627 – CAD II / Bloco III
Campus Pampulha – 31270-901 – Belo Horizonte/MGTel: + 55 31 3409-4650 – www.editoraufmg.com.br – [email protected]
Apresentação Sacudindo a potência em nós!
Andréa Casa Nova Maia e Vera Casa Nova
Fibonacci
Janaína Mello Landini
Cru e cozido, ao mesmo tempo
Jardim Zoológico
André Lage
Isto é Adam Smith
Bhuvi Libanio
Liturgia
Kaio Carmona
Entrudo
Carlos Barroso
Sumário
16
21
26
32
34
36
38
Não estamos sós (Poemas no afastamento e depois)
Everardo Paiva de Andrade
Carbono
Boave
O Range-Rede
Marta Mega
Lá fora (letra para uma música)
Mahx
Poemas ininteligíveis
Marcelo Kraiser
Para casa
Rafael Amorim
Simanimagenias
Gastão Frota
Lucia Castello Branco
Os supercílios de Frida
O céu ainda é azul
Pablo Pires Fernandes
40
46
49
53
58
61
66
64
69
74
O vendedor de mapa nunca sua / O último trago/ são muitas lives no instagram
Marta Neves
O ano do corvo
João Alfredo Costa de Campos Melo Júnior
Box 12
Laerte
Flores de papel
Michelle Valéria Macedo Silva
Tinha um coronavírus no meio do caminho
Isabel Lustosa
Ecos da história
Sébastien Rozeaux
As good as it gets ou Bem-vindos ao novo normal
Maria Paula Paes
Quando chegou o tsunami
Kaori Kodama
Um diário de quarentena em Paris
Everton Vieira Barbosa
Inventário de saudades
Thais Rocha da Silva
78
85
89
91
96
105
115
109
122
129
Solitude
Ricardo Alexandre
Telegram
Abilio Rodrigues
Timeline
Jurandir Malerba
O tempo não tem mais hora marcada
Álvaro Pereira do Nascimento
Obra embargada 2020
O vírus e o imprevisível: notas na epidemia
Henrique Espada Lima
Pile
Dolores Bossuyt
Voltar para casa / Os livros que não li
Isabel Travancas
Ser zen
Antony Henrique Tomaz Diniz
Notas sobre o nada
Altino Filho
Como andam os trabalhadores da música?
Eulícia Esteves
133
135
143
148
154
158
170
167
175
184
189
Na Casa da Teresa
Andréa Cristina de Barros Queiroz
Encontros dentro de casa
Carlos Falci
A vizinha
Fabiana Salles
Odara
Cláudia Dias
O constrangimento de sentir medo e tristeza entre amigos
Claudiane Torres da Silva
Carta de Capoeiras
Eudes Belo
Sem título
Fernando Cardoso
O mal de Guillaume Le Bé
Henrique Lee
Sexta-feira da Paixão
Marise da Silva Mattos
(3D)
Rafo Castro
Botão
José Lopes Agulhô
193
198
204
208
212
216
222
220
228
234
236
Flores na pandemia
Lucilia de Almeida Neves Delgado
o sol que me cabe
Laura Guimarães Corrêa
Um sábado de sol
Maria Paula Nascimento Araújo
Cineclube e trabalho
Luiz Henrique Assis Garcia
Quarentena e a primeira sala de reunião virtual
Luzimar Soares Bernardo
O homem é o lobo do homem… e do cão!
Marcel de Almeida Freitas
Quaren...tecendo
Mônica Olender
Desvio para o azul (do medo, fabulações e memórias)
Monica Pimenta Velloso
Dezesseis
Rosângela Sampaio
O apartamento
Renato Coutinho
239
244
247
252
255
260
270
268
277
282
Crônica mínima
Luciana Heymann
Da minha particular pandemia
Marjorie Marona
Poema pandêmico
Anamaria Alves
Fermentação natural e pandemia: o tempo lento da vida
Karla Guerra
Na gangorra entre a cozinha e a biblioteca...
Cláudia Viscardi
Certo / Vai passar / Brazil / Dentro/Fora
Allan Sieber
Analogias: por que não?
Monica Grin
Notas sobre o desentendimento
Américo Freire
Algumas palavras mais...
Daniel Ganem Misse
O vírus e o genocida
Jayme Ribeiro
285
289
293
297
302
307
318
312
321
325
Não sou coveiro
Beto Bianchi
A pandemia e o xucrismo [com CH]
José Newton Coelho Meneses
A Covid-19 e a pandemia dos imbecis
Libania Xavier
Teatro da tortura
Carolina Ruoso
Isto não é uma guerra pela vida e o vírus não é democrático
Sílvia Correia
Covard-17 / Vírus ignorância / Vidas negras importam
NoGenta Street Art X Contraconsciência
Oniriopolítica e necropolítica
Pedro Castilho
A vida não me assusta nem um pouco: genocídio negro em dias pandêmicos
Luciana Brito
Maria Clareth Gonçalves Reis
329
331
339
342
348
353
362
358
368
Penumbra - Muitas formas de se falar sobre racismo
Panmela Castro
Memória de uma favelada
Maria Alice Balbino
Miguel
Paulo César Gomes
Pandemia, isolamento social e trabalho doméstico
Fabiane Popinigis
O dia em que eu transbordei
Ana Maria Mauad
Militância e vizinhança: a vida política que se vive da janela
Carmen Castro
Curupaiti Vila 1 Casa 17 Taquara / Jacarepaguá
Valéria Guimarães da Silva
Teresinha de Covid
Renata Otto Diniz
Agenda / Ministério da Saúde /Genocida
LOR
Carta para minha avó Joana
Daniela Yabeta
373
378
382
386
393
397
408
405
417
423
Corrente de retorno
Mulambö
Na perspectiva das janelas
Mario Brum
Síntese emblemática fora de contexto
Bruno Pelego
tentativas-notícias do brasil suicidário
Christina Fornaciari
5.5 ou 5 de maio, respira!
Valmir Aleixo
Recall pandêmico
Larry Antha
Quarentena com Ive
Wilson Domingues
Sob a luz da Lua
Fernando Vale Castro e Marcelle Dinis Castro
O dia mais doido do ano
Gabraz
Ao fazer chá
Carla Maia
428
431
435
437
440
445
451
449
455
460
17
seu tempo, pelo fato de ter ele próprio uma
relação inquieta tanto com sua história quanto
com seu presente?
Imagens, portanto, para organizar nosso
pessimismo. Imagens para protestar contra
a glória do reino e seus feixes de luz crua.
Os vaga-lumes desapareceram? Certamente
não. Alguns estão bem perto de nós, eles nos
roçam na escuridão; outros partiram para
além do horizonte, tentando reformar em
outro lugar sua comunidade, sua minoria, seu
desejo partilhado.
Georges Didi-Huberman
Que caminhos? Por quais vias passamos, da impotência à
potência, até chegar ao poder? Questões possíveis no mundo
de hoje, de ontem e de sempre.
A potência do nosso desejo é nossa força motriz. Carre-
gamos, descarregamos os pesos sobre nossos ombros: – Ai,
quanta dor na coluna! Balançar a cabeça, mover o pescoço
– mas a dor não passa. Está fora e está dentro.
18
Unimos forças, desunimos pelo desânimo da repetição
nossa de cada dia. Pensamos no movimento, na revolta desse
presente desejante.
Quantos movimentos traídos? Quantos gestos capazes de
nos fazer voltar a criar uma derrubada de valores que não
valem mais nada diante da morte. Sacudir essa potência em
nós. Isso é vida! É criação!
Os textos e imagens do Arquivo que remontamos aqui
exaltam a potência da cultura. A arte grita pela vida e ho-
menageia os mortos.
São documentos da existência humana no mundo.
Apreendem o instante desse novo tempo. Gritam que sabem
que vidas negras importam. Sussurram que sentem as per-
das e que a História ensina a não esquecer.
Não vamos nunca esquecer as perdas que a cada dia con-
tabilizamos. São mais de 130.000 vidas só no Brasil! Não
vamos esquecer os mortos pelo vírus Covid-19, mas também
não esqueceremos dos mortos pelos outros vírus igualmente
assassinos. Tantos George(s) Floyd(s) que viram estrelas
todos os dias aqui e lá, mortos pelo vírus da violência, do
preconceito, do racismo, da fome, aqui e lá fora. Não vamos
nos esquecer dos desmatamentos da Amazônia e do ataque
e contaminação dos povos indígenas que tem sempre tanto
saber sobre o viver isolado a nos transmitir!
A memória nos dá força para resistir. O trabalho domés-
tico diário do isolamento, entre pães e livros, nos lembra os
traços da cultura. Sovar uma massa, escrever um poema,
lavar a louça, passar os olhos ou ver imagens paradas ou em
movimento. Derrubar monumentos e levantar novos.
Durante essa temporada no inferno, estamos aprenden-
do a valorizar o tempo. Aprendendo com os bichos, com as
19
plantas, com a terra, com crianças e com velhos, com a Lua
e o Sol. Fortalecendo laços. Muitos de nós voltaram a ouvir
outras músicas, outros sons... Ouvir os sons do corpo, ouvir a
batida do coração, o ranger dos ossos…
Aqui os bordados tramam novos modos de vida. Mais uma
vez, a cultura e a arte emanadas de um cotidiano complexo
e fugidio nos fazem olhar para dentro e pensar novas possi-
bilidades de existência e resistência.
Dante Alighieri e Rimbaud já estiveram lá e ecoam aqui.
A visão do inferno e nossos vagalumes. Será mesmo que
os vagalumes foram extintos? Talvez não. Ainda vemos sua
luz piscando intermitente dentro da noite veloz. Apesar de
tudo, emitem ainda sua luz. Contra qualquer visão de apoca-
lipse, a luz desejante! Olhar e imaginação aqui interrogam a
história detestável, o estado de sítio, o deserto do real. Con-
tra todas as pragas, dos gafanhotos aos políticos genocidas,
ainda pulsam os vagalumes!
Quem são as luzes pulsantes que vão iluminar as trevas,
se levantar contra os tempos nefastos? Quem ou o quê, ape-
sar de todo maquinário de destruição, há de nos devolver
o Sol democrático que, atravessando os vidros-cristais das
janelas, nos empurram para o mundo multicolorido e plural
que nos cabe? Saber-vaga-lume se escreve e inscreve aqui
nesse projeto do Arquivo Pandemia.
leitor encontrará história, estórias, saberes clandestinos,
impossíveis de censurar.
No futuro, as ficções e realidades aqui escritas também
serão fonte de construção de um conhecimento sobre o atra-
vessar da pandemia por Covid-19 em 2020.
20
Mas, antes de iniciar a viagem para dentro, cabe olhar
pela janela mais uma vez, ver o lado de fora, respirar fundo
(muitos can’t breathe!) e repetir:
É preciso sacudir essa potência em nós. Isso é vida! É
criação!
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Ficha Técnica: Janaina Mello Landini, 2020, Ciclotrama 177 (Fibonacci),
170cm x 170cm, Fios de algodão e caneta acrílica sobre canvas.
27
Há agora uma sensação mista e contraditória de que por
um lado a palavra não expressa o que nos acomete, e por
outro, a de que sem ela não sobreviveremos.
Sabemos todos que diante da morte o seu poder se retrai,
e dela avulta o seu avesso: silêncio imperioso, só em apa-
rência calmaria que cai com um só peteleco. O equilíbrio,
e delicada, cada um devendo começar a tocar a constitui-
ção – fragilidade e potência – de sua própria membrana. Por
outro lado, não sobreviveremos, não ao vírus, mas ao silên-
cio imperioso, a desvalia e a despotencialização da palavra
como laço real entre os humanos se não buscarmos de novo
por sua força de verdade.
O desapego discursivo, essa concomitância diarreica ver-
bal que hoje se encarna nos grupos mandatários desse país
de fato não ajuda. Cacoetar essa verborragia impotente tam-
pouco. Temos mesmo que começar a investigar o valor da
palavra, da palavra, em diferentes grupos sociais.
No isolamento mundial pandêmico vivemos uma exigência
para buscar nutrir esse nosso deserto atual – deserto feito
de desamparo, distopia, perda de sentido e valor da vida, so-
lidão sem maquiagem, falta de recursos sem disfarce, entre
28
muitos outros problemas que se exacerbam numa perspec-
tiva de uma economia humana e não exclusivamente mone-
tária – de palavras boas. Nutrir o mundo de palavras boas,
que nesse caso indicam ser também palavras potencial-
mente verdadeiras.
Nunca a ideia de que precisamos reunir essas palavras
boas foi tão fundamental. Como o seio bom de M. Klein e o
azul de Y. Klein – correlatos não somente em seus sobreno-
mes, mas também no que portam um e outro. Palavras boas:
seio bom e azul indescritível. Essa reunião, esse dicionário
inexistente, aparece no horizonte desertado como alguma
ilha onde quiçá aportaremos depois de tudo.
-
sariamente confortante. Agora, nesse momento, para mim,
as palavras boas são aquelas que conseguem convergir as
nossas sensações contraditórias. Avareza e altruísmo, sobre-
viver e morrer, angústia e aceitação, luta e quietude, medo
e coragem, bondade e maldade, raiva e doçura. De fato, não
acredito que possamos atravessar esse momento sem co-
meçar reunindo todas as palavras que indiquem esses es-
tados contraditórios, cada um deles, e a sua existência não
excludente. Não sem surpresas notamos que essas palavras
são poucas ou inexistentes. Qual palavra diria que tenho ao
mesmo tempo medo e coragem? Qual a palavra para dizer
que estou assolada de amoródio pela humanidade, por mim
e por todos nós?
Não acredito, tampouco, que conseguiremos não pender
para o lado mais forte, já presente, determinante e organi-
zador de nossas vidas, todas doentes em potencial já antes
da pandemia, sem reunirmos ou inventarmos esse dicioná-
rio de palavras antitéticas.
29
O mundo doente de antes do vírus já era governado pelas
ideias e gestos de avareza, avidez, egoísmo, inimizade, entre
outras. A corda sempre pendeu por aí. Agora só está pare-
cendo que pode enforcar todo mundo, decerto não igualmen-
te, nem do mesmo modo. Até na morte os estados de domi-
nação e subjugo mostram, sem piedade, os seus caninos.
Mas é fato que o horizonte encurtou geral, e quem sabe
esse fato seja o início para começarmos a abraçar e a reunir
esses estados contraditórios. Façamos todos o esforço de in-
ventar essas palavras e de usá-las! Deixemos um momento
de cagar regra e mentira, acreditando-nos superiores. Fi-
quemos um pouco mais humildes e vamos lá tocar a nossa
membrana. Sair da bolha para a frágil e delicada membra-
na, para nos refazermos desde aí.
O que já estamos vendo em ação, individual e coletiva, na-
cional e mundialmente, indica que em toda situação de peste
– como já advertia Artaud em 1934 – os gestos mais fortes,
de avareza e de avidez, numa espécie de luta desesperada
pela sobrevivência, espalham-se como o próprio vírus da
peste, esbanjando a gratuidade da vida. A isso ele chamou
de princípio da crueldade.
O princípio da crueldade seria no seu sonho utópico, ar-
tístico, acolhedor e refazedor de vidas, o modo de cauterizar
esse abscesso afetivo-político que fez pender a corda só para
um lado, mesmo lado e mesma corda que hoje nos enforca.
Princípio da crueldade nada mais é do que a tentativa de
torcer essa palavra e recolocá-la na contradição que a en-
cerra – crueza da vida e ao mesmo tempo grelha, onde cozi-
nhamos as carnes humanas. A carne pobre nesse país, que
é também a carne negra. Crueldade implica em olhar para a
grelha que nunca se apagou, essa grande fogueira onde não
deixamos de queimar os corpos indesejáveis.
30
Mas se seguimos com o desejo de uma nova linguagem
que possa torcer o sentido congelado e interessado da domi-
nação branca encontraremos na crueldade também algo da
crueza da vida que é necessário conhecer. E importante não
negar. A crueza estaria nessa base de um princípio da cruel-
dade curativo – não esconder as nossas mazelas, não desa-
somos racistas, não negar que vimos convivendo com esse
apartheid racial e social desde sempre, não fugir da vida
vergonha e exigir que o mundo se e nos repare. Encontrar
a crueza pode acender também o desejo de cauterizá-la. Re-
fazer a linguagem é dar conta de nossas contradições com
uma responsabilidade madura, ciente da crueza da vida.
Precisamos sair dessa eterna infância nacional que tem o
e que nunca chegou nem chegará desse modo.
Nessa nova linguagem afetivo-antitética a crueldade de-
veria potencializar as nossas forças para desalojar o status
quo de toda vida que amordaça e mata. Palavra inicial desse
dicionário imaginário, que se lança na aposta de que juntos
começaríamos a cauterizar o mal que já vive em nós, ao me-
nos verbalizando, com palavras ainda inexistentes, as nos-
sas mais terríveis contradições.
Chegamos nesses nossos tempos ao mesmo ponto e lu-
gar onde Artaud chamou pela crueldade. Onde tudo se agu-
dizou. Fizemos uma volta em espiral, estamos num ponto
tecnologias de morte. Por isso, a crueldade agora é perceber
que hoje sobreviver equivale, contraditoriamente, ao poder
31
de matar e de morrer ao mesmo tempo. Estamos suicidan-
do a própria ideia de sociedade. Precisaremos, certamente,
mais do que de uma nova linguagem, mesmo que para isso
seja necessário começar por ela.
você olha pela janela e vê o mundo desabar pontualmente às
seis da tarde.
pode ser um pouco mais cedo, o certo é que ele desaba
você não é mais criança para acreditar nas horas e sabe que
a verdade ou a mentira desabam juntas com a tarde
sabe que entre as montanhas que rodeiam a cidade um rio
nasce em gotas
terroso
gelado
você sente a tensão e se pergunta se as janelas aguentarão o
baque e tenta planejar as possibilidades rotas de fuga
você vê palavras em desuso e se assusta com expressões
que lhe parecem de outra vida, talhadas em bronze
mercadores da morte ku klux klan fascismo
as pílulas diárias
buprofeno metoprolol duloxetina
mas o corpo, esse conjunto obsoleto, quer sobreviver e exige
você prepara o jantar e enquanto o cozido ferve procura na
pequena biblioteca, expostos em negrito, um familiar, um
amigo, um registro humano como saída,
ecos de espírito
sonhos de homens
um amor perdido
caminhas entre mortos e se lembra que esse verso não é seu
escolhe um livro, senta-se à mesa
e espera a sua vez
40
Não estamos sós (Poemas no
afastamento e depois)
Everardo Paiva de Andrade
Niterói, entre abril e junho de 2020
41
Manhã
[09/04/2020]
Ruídos escassos de carro na rua
O caminhão do lixo, uma roda
ou outra de veículo pesado
de entrega, abastecimento ou resgate
Grandes rodas, não faltam buracos
no asfalto, passos não ouço
Pássaros gorjeiam, aos poucos
o dia amanhece – devia?
Nem sei! – na pandemia
Pasárgada, hoje
[15/04/2020]
Do que adianta fugir
se esconder em Forquilha
quem sabe em Goiandira, talvez
Rondon do Pará, Taipu do Rio Grande
Do Norte, um desses lugares
que não registram – por enquanto,
diga-se de passagem – sequer
um teste positivo, um óbito
neste outono tropical
irrespirável
42
Quarentena
[26/04/2020]
Certas coisas atravessam comigo a quarentena
Umas vieram até o ponto onde começamos, e regressaram
Os encontros, a espera de uma sala de aula, os passos na areia
[da praia, um cheiro úmido
de mato, a direção contrária às pernas, ao sol ou ao vento, a
[terapia mal
começada
Outras chegaram depois, no vazio que restou nesses espaços
A delicadeza, o apreço pelo mínimo, o valor de uma palavra
[inesperada, a profusão delas
na leitura, a louça na cozinha, a gratidão do sono, a hora
[incerta de dormir, a
incerteza de dormir ou de acordar, a cura da distensão no
[braço, o cair da tarde
em vinyasa
E outras, ainda, que não existiam no começo, não durarão até o
recorde quando tudo isso tiver passado, se passar, quando
[passar, mas vai
passar...
A aspereza luminosa das maçãs, pequenos rituais de quem não
[têm pressa e nem pode
ter, eu mesmo, por instantes, quando perco a poesia e me
aventuras
43
[07/05/2020]
Um vírus anda devorando o tempoa curtíssima distância entre um e outroinstante, preciso contê-lo, meter umacunha entre os instantes separandodia e noite, um dia do outro, a diferençaentre os meses, os anos, a infânciae a juventude, a maturidade e a velhice,a vida e a morte, medir força com o vírus,enfrentá-lo, distraí-lo para ter de voltao tempo, não o grande tempo que
o tempo da pequena experiênciacotidiana devorando o vírus
A idade do vírus
[24/05/2020]
Cabelos saem dos porosOnde outrora corria o suor(Desisto de vê-los crescendo)Da boca me escapam, repetidas,As mesmas palavras de sempreUm rastro invisível de passos evitaPortas, busca janelas, traçaUm mapa de calor no piso frioRelógios digitais não fazem barulhoVelhos hábitos dissolvem-se no ácidoDormir, acordar, são númerosMonótonos, naturais, indivisíveisNão sei se sonho acordado ou sigoContando, enquanto desfaçoA trajetória do hominídeo
44
Então era isso?
[26/05/2020]
O Uruguai estuda fechar fronteirasOuço falar que os EUA proibirama entrada de aviões que vão do BrasilAntimônadas estéreis, militaresecoam, na história, mesquinhariasDe nação solidária, menos desigualà mesa entre os iguais, pequenosou grandes, em pouco temponos tornamos párias, assustadostocando tambor na pandemia
Fim do túnel
[05/06/2020]
Logo adiante vejo algoEm movimento, sombras
Uma parede corre sobre trilhosMinha boca, meus ouvidos dizemFrases que não compreendoVibra na cúpula uma fonteMeu coração, um susto pênsilEntre o medo e a esperança
Alguma luz? Ou de repenteNossos olhos pensamVer na escuridão?
45
Linguagens
[16/06/2020]
Quando as estatísticas de COVID ultrapassarem o
pico
e então os registros caírem, quando a pandemia
for debelada
e a doença estiver sob controle, terei esquecido a
língua falada,
a língua dos abraços, a língua do aperto de mãos, a
língua suada
de andar na multidão, a língua do tapinha nas cos
tas, a língua
de dizer ao primeiro desconhecido que me cruzar
o caminho,
andando na rua, sob o sol, sem máscaras, bom dia!
47
Será que à noite
– no mais fundo da noite –
ela despe sua máscara de fel
e tinge seu rosto de sangue?
Será que ela dorme acuada
entre lençóis de carbono
e fecunda monstros?
Ou será que à mancheia rosna
– esbaforida pela idade avançada –
preparando novas trapaças?
No fundo, Medusa, ela manda e desmanda
em fantasmas que lambem
as solas de sua infâmia.
50
Hoje eu tive um sonho. Eu tinha mudado para um aparta-
no coração do centro do mundo, isto é, na Praça Saens Peña,
Tijuca, Rio de Janeiro RJ. Eu já moro na Tijuca, mas moro
quase no meio do mato perto do colégio Batista e agradeço
aos deuses por ter acontecido de vir para cá em outubro do
morava em Copacabana, um dos epicentros da decadência
do mundo. Mas isso é amargura para uma outra estória.
O sonho que eu tive era num apartamento diferente e bem
-
tarrecida de ver a quantidade de gente, a multidão de gente,
dias normais de Sanes Peña, gente circulando, se esbarran-
do, como se nada houvera sido, gente sem máscaras, sem
cuidado algum. Estarrecida com a desfaçatez desse povo,
constatei que eu também estava sem máscara, eu também
estava de saco cheio de máscaras, luvas, álcool gel e cloro-
bem. Eu compreendia o povo entupindo as ruas na insistên-
cia em se agarrar ao estribo do bonde andando; compreendia
a felicidade e infelicidade do contágio.
51
Acordei com uma sensação de incompletude e de incom-
petência difícil de aceitar para um dia prometido pela metade,
já que não consigo mais levantar antes das 11 ou dormir an-
tes das 3h. Um dia começado tarde ao qual sobram tarefas
“úteis” e vontade nula de executá-las. Entre uma reprimenda
e outra ao meu gênio pessoal, lembro da alegria que foi ver a
-
gos para um dossiê sobre História e indisciplina! Fiquei tão
feliz, quase que redimida por ter a indisciplina exposta no
centro da questão, e sei que eu posso contribuir, essa cha-
mada me cai como luva; como eu gostaria de escrever! “Vai!
Vai! Vai!”, canto de Ossanha, “cai!”, eu repito, mas me falta
justamente a disciplina. Tenho desejado a rede e a gata dor-
mindo no colo. Tenho escrito letra de música, tenho escrito
música, mas música não faz História.
Coisas de quarentena. Já me disseram que os relatos são
todos parecidos e, da ansiedade à insônia, da amargura à es-
perança, a gente vai conectando os pontos. Não é depressão,
não. É que virei índio.
Mas o que quer dizer isso?
Não persigo mais o tempo. Tenho nadado no tempo, ele
perdeu a linha e virou lago. Para saber que dia é hoje, pre-
ciso de uma agenda. E as horas são todas iguais, mudam as
cores, principalmente os cinzas. Não fossem os apps de reu-
nião e os timers da cozinha das pizzas, feijões e ensopados...
Talvez seja temporário, ironia. Eu gostaria que fosse per-
manente e global, não a quarentena da peste, mas a afasia
do tempo. A qualidade do tempo, tão gostosa de pegar nas
mãos.
Mas não sejamos insinceros. Não esqueci a importância
fundadora da linha do tempo, confesso que erigi alguns mar-
cos nos dias 22 de fevereiro, 6 e 15 de março. Dia 22 foi o
52
primeiro dia da peste aqui em casa; dia 6 foi o dia da segunda
onda e dia 15 foi a última vez que coloquei o pé na rua. De
certo modo, esse intervalo das coisas, suspeito, é uma espé-
cie de desobediência civil. O que me ocorre hoje não é sequela
da quarentena, penso que já vinha acontecendo faz algum
gênio foi acordado pelo descalabro de um Não!
Não quero, não posso,
E aí, no meio desse caminho encontrou o Ele Não! Ele não...
difícil. “I can’t breathe!” e nunca foi tão clara para mim a ex-
periência do assubjetivo: não sou eu, não é minha regência,
minha obra. Não é também o outro, é um mundo no meio,
“algo”, como uma comunidade que vem.
Para terminar esse meu relato: não consigo ler nem uma
linha de literatura. Tenho lido alguma antropologia, alguma
vai junto com a música e não faz História. Mas uma História
muda, quem sabe?
54
Lá fora
Se escondem lá fora
Agora
Nesse mundo afora
Não há pra onde ir
Lá fora
Inventam histórias
Pra gente dormir
Agora
Quando a dor piora
Fica bem fácil mentir
Lá fora
Onde rompe a corda
Não vão nos redimir
Agora
A caixa de Pandora
Dentro, fora, aqui
Coragem
Fingem que reagem
Não ter que discutir
Imagem
E mais maquiagem
Por isso eu desisti
55
Coragem
Nenhuma vantagem
E tudo a corrigir
Imagem
Um sonho selvagem
O grito que eu ouvi
Coragem
Sempre de passagem
Pra não ter que fugir
Imagem
Mais uma miragem
Foi tudo o que eu vi
Pelo que eu sei
Não que eu queira te assustar
Eu me calei
E não foi tão ruim
Não que eu queira te escutar
62
pintar com tinta dourada
um caminho de pedras portuguesas
nomeando-o posteriormente de via crucis
insistir na invenção
de um novo meridiano
cobrir o chão da sala
com papel 40kg por uma semana
deixar que o tempo lide com isso
criar uma estrutura
de apenas três galhos
para morar em seu interior
datilografar poesia
usá-los em seguida para coar o café
construir um cemitério para xícaras quebradas
elaborar um álbum de família usando fotos de
[desconhecidos
para narrar uma história sem protagonismo
propor encontros casuais
com homens desconhecidos
para bordar poesia em suas cuecas
entrar numa livraria
escolher uma sessão
impossibilitando a consulta por terceiros
63
assinar a autoria de um palimpsesto
feito com a última folha de outros livros
escrever um romance
usando somente palíndromos
medir a distância entre dois desconhecidos
informá-la em voz alta e sair sem dizer mais nada
tomar um ônibus para o centro da cidade
vestindo roupa social
mas descalço
tomar um ônibus carregando uma cadeira
se fotografar em interação
com móveis abandonados nas ruas
imprimir e enviar como postais
escolher um dia em curitiba
fazer o percurso do bebedouro até o cavalo babão
carregando água na boca de um lado ao outro
inúmeras vezes
interditar brinquedos em pracinhas
utilizando arame farpado
enviar para outros países
cartas escritas em português
escolhendo os endereços ao acaso.
65
Animal aberto
do vermelho
coluna dupla hélice
quatro olhos
coruja camarão
whiskas gato tubarão
luz + morcega
cobra termossensível
nariz de cão
antenas esporádicas
guelras vibráteis
polisex transpan
de esporos mutantes
ciclos multi(espécie)
de duração
indeterminável
e L.U.C.A. mente
virtual
se xapiri pë
67
onde não havia espelhos em que se pudessem olhar inte-
ocupavam, como guardou, por mais de uma dezena de anos,
aquela memória do amor.
Pouco antes de deixar este mundo, ela havia escrito, no
caderno de uma só frase: “Eu vou precisar muito de amor”.
E ainda um pouco antes de deixar o mundo, ela havia to-
mado meu rosto entre suas mãos para me dizer: “aquilo que
tu buscas em mim, tu o tens”. Para então, um pouco mais
tarde, dizer às duas: “pois, vós não sabeis o quanto vos amo”.
Mas não era exatamente pela causa amante que ela esta-
seu texto. Era pelo dom, como a única retribuição do dom.
Era também porque, depois da deterioração, alguém tem
que desenterrar as evidências enferrujadas e arrastá-las
até o lixo.
Estava ali porque seu trabalho sempre fora o de transformar
a pulsão de morte em pulsão de escrita e nem mesmo depois
da deterioração a escrita seria secundária. Ela, a escrita, se-
ria sempre uma ponte sobre o abismo. E sempre haveria a
68
vida, o vivo e o trabalho de construir a covida com os corpos
mortos, antes mesmo da morte verdadeira.
A vida verdadeira de Domingos Xavier – ela lembraria,
ao rememorar os ancestrais africanos. “A vida em estado
puro”, repetiria, pensando no espanto de Freud com a vida
que resiste à força da destruição. Como fazer de nós vivos
no meio do vivo? – indagaria, unindo-se à voz daquela que se
fora numa manhã de março, antes das águas.
Do cume da árvore maior, tudo o que se via era ermo. Ha-
via quem dissesse que aquele momento era só e maravilha.
De nada adiantava evocar agora, em nome da destruição, a
beleza do universo. “Não há liberdade diante do Real”— teve
vontade de dizer àquela mendiga altiva, que recolhia os ca-
cos de vidro como se fossem rosas, para mais tarde, na cala-
da da noite, cortar os pulsos com heroísmo.
“Inútil dizer-lhe qualquer coisa”, pensou depois. Quem
cresceu assistindo ao espetáculo dos navios que afundam
antes de chegarem ao cais nunca se enternecerá com a cena
improvável de barquinhos de papel que atravessam o abis-
mo. E assim adormeceu, sem pestanejar, no justo momento
70
Após chegar em casa, Ana Maria retirou os sapatos e a
máscara, deixando-a cuidadosamente de molho no pequeno
balde com água sanitária. Em seguida, enquanto higienizava
as compras rememorava histórias da adolescência.
— Por que você não tira esses pelos do meio da sua sobran-
celha? Dizia-lhe uma amiga da escola.
— Porque não quero.
— Mas você acha bonito?
Ana Maria não conseguia dizer nem que sim, nem que
não, simplesmente se aborrecia e ignorava a interlocuto-
ra. Não entendia o motivo de ter de seguir um padrão de
sobrancelhas.
— Se você não quiser tirar com a pinça, pode depilar à
cera, insistia a garota.
-
cam acima da celha, área do rosto que dá origem ao nome.
-
cá-los ao longo da vida, outras nascem com poucos, mui-
tas fazem pinturas permanentes. Os supercílios de Ana
Maria, apesar de incomodar algumas pessoas, eram fartos
como uma plantação em tempos de colheita, pelos grossos
e em abundância. Um rapaz pelo qual nutria uma paixão
71
adolescente chegou a dizer que mais parecia um bigode na
testa, apelidando-a de “monocelha”, o que foi um duro golpe
na sua autoestima.
No entanto, aos vinte e poucos anos, Ana Maria conheceu
uma renomada escritora e tornaram-se grandes amigas.
— Ana, vem cá, deixa eu olhar uma coisa mais de perto.
— O que foi?
— Nossa, as tuas sobrancelhas são idênticas as de Frida
Kahlo.
— Como assim? Quem é Frida Kahlo? Disse assustada.
— Tu não conheces a Frida Kahlo?
— Não.
— A pintora mexicana, vocês têm as sobrancelhas
semelhantes.
— Eu vou tirar essa sobrancelha, não aguento mais as pes-
soas me interpelando.
— Não, tu não fazes ideia de quantas mulheres gostariam
de ter as marcantes sobrancelhas da Frida, são uma verda-
deira assinatura.
Este episódio não apenas a curou de um trauma, como a
fez mergulhar no universo das cores de Frida. Leu livros,
-
nimo interesse por Diego Rivera – passou a admirar o mura-
lismo mexicano. Ademais, Rivera tinha supercílios falhados
e ralos.
Ângela era uma espécie de amiga-oráculo, era consultada
para todos os tipos de angústia, principalmente as amoro-
sas, mas foi a defesa dos seus supercílios a mais marcante
lembrança desses tempos.
Deixou de se importar com o bullying das pessoas, pas-
sando a ter orgulho daquele ícone revolucionário sobre a
sua tez. Tinha o hábito de antes de sair de casa, arrumar as
72
sobrancelhas com os dedos, a pentear os pelos revoltosos, no
sentido do centro do rosto para fora. E, desde então, es-
tranhava quando não faziam qualquer comentário sobre elas.
Enquanto lavava as verduras, as frutas e os enlatados,
com a compulsão que mais parecia enxergar o coronavírus
a olho nu, pensava em todas aquelas pessoas com máscaras
por sobrancelhas retornasse com mais força.
Em seguida, lavou e estendeu a máscara no varal, tomou
um banho e foi assistir o noticiário, cuja pauta era os quase
cinquenta mil mortos por Covid-19 no Brasil. Mas parecia
hipnotizada pelas sobrancelhas das/os jornalistas e, meio
anestesiada, passou a ignorar as notícias da pandemia e do
caótico cenário político do país.
Finas, grossas, pintadas, franzidas, interrompidas, escu-
ras, claras, mas nenhuma parecida com as de Frida. Detes-
tava homens com as sobrancelhas excessivamente deli-
neadas. Neste dia, Ana Maria olhou para o gato, que dormia
tranquilo ao seu lado no sofá e percebeu a ausência de sobro-
lho no felino. Algo muito estranho, pensou. São olhos sem
sobrancelhas!
Ela tinha consciência de que julgava as pessoas pela es-
pessura das sobrancelhas. Quanto mais grossas e despen-
-
dida ideal tendia para as de Frida.
Ouviu muita gente dizer que com o uso de máscaras, os
olhos passaram a ter importância fundamental nas inte-
rações, mas para ela eram as sobrancelhas. Lembrou que
quando um homem lhe causava qualquer decepção, ela ime-
diatamente analisava os sobrolhos do sujeito e criava uma
narrativa condizente com a forma e a personalidade.
73
Com o isolamento social, Ana Maria aumentou conside-
ravelmente o acesso às redes sociais. Passava horas lendo
matérias e comentando postagens, mas tinha aversão a
sociabilidade, sentia a ansiedade aumentar, sobretudo com
pessoas que ela mal conhecia antes da pandemia.
Nesta noite, já deitada e preparada para dormir, rece-
beu uma mensagem privada em uma de suas redes sociais.
Já passava da meia noite quando começou a interagir com
aquele rapaz, um diálogo que evoluiu muito rapidamente
para uma videochamada, por iniciativa de Ana Maria, após
espionar as fotos do álbum do rapaz.
— Essa pandemia vai durar muito tempo, disse ele ini-
ciando a conversa e em seguida fazendo uma longa análise
do processo histórico de outras pandemias.
A conversa adentrou a madrugada, até que Ana Maria
mais o rosto da câmera. Sem entender e um pouco descon-
— O que foi? Ele perguntou.
luz, por favor, disse Ana Maria.
— O que está acontecendo? Disse com a voz um pouco trê-
mula, mas atendendo ao pedido.
— Suas sobrancelhas.
— O que tem minhas sobrancelhas?
— São idênticas às de Frida Kahlo.
75
A tarde estava demasiada azul. Belo Horizonte, em maio,
estampa um dos céus de maior azuleza da Terra. Minha in-
quietude estava no limite. Tive que romper a disciplina e dei-
xar o abrigo para caminhar. Não era precisão de comprar
– na farmácia ou no supermercado – mas apenas andar sob
aquele céu azul de maio. Minha casa é um bom ninho, só que
a rua faz falta, custa. Acho que só é comparável à ausência
do abraço. De resto, está tudo bem. Ou quase.
Evito sucumbir à paranoia, mas mudo de calçada quando
vejo pessoas sem máscara vindo na minha direção e prendo
a respiração muitas vezes nos corredores do supermercado.
Felizmente, a rua estava vazia e pude sentir aquele azul so-
bre meu corpo, e expandir o espaço, deslocar-me da sala,
das telas virtuais.
de informações inerente a qualquer jornalista: o número de
mortes cresce; o reizinho se desnuda em declarações, men-
te; a população precisa comer e, aqui e em outras partes,
há fogo e fome; estátuas caem e, das janelas virtuais, ouço
brados de revolta. É cansativo. Viro a primeira esquina, a
rua sem carros, sem gente. Ofegante sob a máscara, a cena
desértica alivia, mas logo o tormento retorna.
76
bem-te-vi, o balé da queda da folha seca e até o azul do céu.
Vejo o vírus com olhos microscópicos, percebo sua intenção,
instintiva e involuntária, de sobrevivência. Movendo-se
– se esforça e rompe a película, a membrana. Sem gentileza,
penetra, intruso e coroado.
Na avenida à minha frente, o ruído no asfalto freia meu
devaneio, me faz reparar nos sons ao redor. A cidade parecia
se conter no rumor habitual e o latido longínquo de um cão
fez ritmo com a batida seca do salto da senhora na calçada.
Veio-me outro som: o baque da cabeça da vizinha contra o
chão, um som seco. Os azulejos azuis como o céu e o sangue,
tão vermelho, escorrendo. Antes de terminar a gritaria e os
súbito, disseram. Dona Dalva tinha 78 anos e morava sozinha
com seu cachorro Tobias, que, inconsolado, exilou-se nas
ruas e latia a cada sirene que cruzava os sinais fechados.
Um único carro, vermelho, arrancou diante da luz verde
e atravessei, caminhando a esmo pela Serra sob o céu azul,
agora em um tom um pouco mais escuro. Avistei uma mu-
lher dançando na varanda de um prédio. Não ouvia a músi-
ca – ela imersa sob fones de ouvido em alto volume. Sorria e
se movia como se fosse a última chance de libertar seu corpo
feminino, como se lançasse a sedução para toda a cidade.
Foi bonito, mas segui a caminhada e as imagens retornaram
aleatórias à minha mente.
mapas de satélite verdes acompanhavam minha caminhada,
exibindo a perfeita localização em tempo real. Uma cruz se
aproximava do meu vulto, eu era um alvo. Foi quando me
77
despertei diante da mão negra de um senhor diante da pada-
ria: “um pão, por favor”. A fome espalha sua dor pelas ruas.
De volta ao lar, as muitas telas me pareciam não esclare-
cer nada. Real, sonho, paranoia e discursos duvidosos eram
todos parte do mesmo borrão. Olhei pela janela e o céu já
tinha perdido sua azuleza. Apenas a lua minguava no alto do
espaço. Era meu único elo com a realidade.
78
O vendedor de mapa nunca sua
O último trago
são muitas lives no instagram
Marta Neves
Belo Horizonte, abril e junho de 2020
79
O vendedor de mapa nunca sua
Nos anos 90 tinha alguma gente na rua que vendia mapa.
Normalmente eram uns sujeitos de calça amassadinha, ca-
o tempo. O sapato, se existia, era invisível. A gente só via
aquela cara de paciente com dúvida – a dúvida é sempre
maior que a dor –, esperando atendimento médico, sorriso
equilibrados numa mão só, prontos pra se estraçalharem no
dura como um lobo machucado.
Dava pra imaginar o sujeito vindo a pé de casa na eco-
da volta com seus canudos secos. É, esse cara era do tipo
que fede sem suar pra não sujar a mercadoria, um cecê sem
-
coitos enjoados, coxinhas de dobradinha, doritos genéricos
-
tro. Voltava em pé no carro, segurando os canos altos do ôni-
bus, que todo vendedor de mapa é razoavelmente alto, pen-
80
contagem de pessoas perto da porta de desembarque, dis-
tância que se tem que percorrer até a casa do primo no
aniversário da bebê. Homem de números, metros, alturas,
relevos, as mesmas coisas que ele vende mas numa escala
encolhida da vida tímida. O vendedor de mapa é um típico
tímido.
serviam perto do google maps, streets, earth e pocket no ce-
lular. As fotos, os vídeos e as comidas gostosas das lives dos
outros dispensaram o papel e as agências de viagem. Então
os homens dos canudos foram sumindo. Mas outro dia eu
achei um deles, em frente a uma Caixa Econômica, a mes-
ma agência de outra surpresa quilométrica dos tais anos 90.
Nessa época, quando o mundo era maior e os canudos mais
compridos, vi lá na entrada, embaixo da porta de vidro, um
morador de rua se contorcendo. O sujeito se revirava nuns
espasmos de cólica, epilepsia, coisa do tipo. Cheguei a gritar:
“este homem está passando mal!”. Aí veio alguém: “acho que
passa muito bem, você se engana”. Olhei direito e a calça
cáqui do cara estava aberta na braguilha, de onde voava o
pênis mais lindo que eu já vi, liso, teso, uma nave decolando,
um pinto epifania. Subi os olhos pra sacar o rosto do moço
e vi um mundo de rugas, bolsas, vincos e cabelo branco; era
um cara velho com pau de adolescente, um ‘device’ que en-
curta tempo e distância, um verdadeiro gps dos 90. Tive um
misto de nojo e encantamento na hora, um clássico tesão
freudiano.
Pois foi lá na agência também que apareceu recente esse
vendedor de mapa. Os caras meio que estão voltando. Mas
o que faz um sujeito, no meio de uma quarentena global, ir
vender desenho de país em porta de banco? “Já que a gente
81
mais metros, não cabem mais no celular, o mundo volta a
crescer outra vez” – pode ser o pensamento dele. Ou pode ser
a última coisa que sobrou dos bagulhos embaixo da cama.
Quando não se tem mais nada pra vender, o sujeito oferece
um mapa de papel ruim de carregar, que você vai desinfetar
em casa com álcool, vai esfregar, vai ensaboar pra remover
qualquer micróbio de pandemia, vai derreter até os pedaços
dos continentes se fundirem numa bolinha de celulose.
Eu tenho certeza de que esse povo que vende mapa chega
em casa e chora.
O último tragoBelo Horizonte, junho de 2020
O negócio do cara era andar todo dia ali na beirada da rua,
perto do viaduto, tranquilo, a calça jeans bem arrumada no
corpo e meio larga nas pernas, camisa de malha já mais
frouxa com estampa grande, sujeito ereto, vertical como um
caralho disposto. E tinha cabelo branco – alcunha ruim que
cada dia pesa maior. Cabeça mofada é tipo aquelas traças na
casa, nunca se limpam, a gente evita contato porque dá de-
elas aumentam embaixo da pia. Mas dava pra sacar que ele
nem pensava nisso.
A dona virou o viaduto entrando pra trás do homem,
de modo que era impossível ver a cara dele, se ele tinha
82
máscara, se foi ver alguma lotérica, supermercado, e levou
o trapo no rolé pra eventualidade de entrar em loja que exi-
gisse o bagulho na boca. O negócio eram as pernas que ela
olhava, a calça que dava assim uma ginga pro sujeito, a blusa
dele ventando. Pensava na dor funda de uma pequena mele-
ca dentro do nariz dentro do pano amarrado no rosto, aquilo
que ela queria faz tempo jogar fora, meter dedo, assoar num
-
fez ainda mais agravo à desgraça nasal que só arruinava.
Tinha atravessado o centro com o erro no nariz, o ven-
dedor na porta da papelaria era uma hiena mansa, preso na
corda de isolamento improvisada, tinha olho de boneco de
vitrine faltando pintura, o dinheiro do acerto acabando, ir
ver o velho logo, quanto é minha parte da água? Pai, você
pega o dinheiro da moça e completa com o seu. Mas e eu
pago quanto se é no meu nome? Tanto faz, paga tudo e pega
o dinheiro dela. Não, ela vai me dar antes. Então, pai, pega
e paga. Mas e... As soquetes na esquina, todas com cara de
tacho, os moços se rindo, vendendo cartão de ônibus, ela
agarrava o celular, certa do contágio e da falta de elegância,
sem perfume, ah, besteira, era bom sentir o ar que entrava
nas falhas do pano, ar feio também, mundo horroroso sem
janela cheio de hashtag, depois o ar faltou. Fazia as contas
do acerto, do álcool, da água do velho, tinha comido mal, um
-
quina, no viaduto, voltou a respirar.
O camarada logo na frente, o balanço dele, a calça ainda
sem desbotar davam diversão pra dona, davam gosto de es-
quecer o muco. A raiva da vida a pé foi arredando dali junto
com a meleca insana, os quadris do cara sem cara, só cabelo
83
escondido, o outro batia engraçado, sem rumo. A mulher
continuava o cinema pela bunda do sujeito, olhando, cha-
coalhando atrás dele como um galho agitado, caíam cabelos,
a bolsa cascando a perna era uma jaca perigosa.
O braço mais solto do cara, o tal que batia, logo tomou um
impulso grosso, ginástico, e veio lançando a mão na vala do
jeans. É bolso? – cismou a mulher. Os dedos, ela viu depois,
se entranharam ali pelo rego, demorados e fundos, engros-
sando o cu, eram uns boys numa rave, macios, tortos, foram
longe na apalpada, dessas de conferir coceira, doença, bosta.
A dona apertou o passo, a boca se abrindo debaixo do pano.
Ficou de tocaia esperando a mão do sujeito sair do ânus,
leve, levantando microrganismos transparentes numa poei-
ra de cheiros complicadíssimos para uma máscara ignorante.
Daí a mão de bunda, já longe da calça, dançou pra frente
do corpo, trocou alguma coisa com o outro braço escondido
e saiu de lá uma fumacinha pouca, enrolando na fuligem a
nuvem tóxica de moléstias e coliformes. Era uma festa de
merdas. As contas da mulher, a obrigação de ir ver o pai,
seu asco das maçanetas, a dor de coçar o que não se deve, o
risco de morrer e o risco do cu adulado onde os dedos se me-
teram espalhafatosamente ali adiante, os bichos minúsculos
em fumaça, os bichos vivos e os assassinos, tudo veio se mis-
turando, dando simpatia no meio do horror, a falta de amor
apertou aquela velha ânsia no cano que sobe do estômago.
Olhou o parapeito que dava pra cidade embaixo, os barulhos
viu o cara, não viu a cara do cara. Correu, olhou só a mão
imunda que segurava o fumo:
– Me dá um trago?
84
são muitas lives no instagram
Belo Horizonte, junho de 2020
Ficha Técnica: bordado sobre papel artesanal. 35 x 44 cm.
86
Entre um gole de café e outro resolvo sentar em frente
claramente inspirado em Nelson Rodrigues), pandêmicas.
nas memórias afetivas mais dolorosas não é, de modo algum
fácil. Mas é preciso ter um pouco menos de covardia e en-
frentar nossos demônios de estimação. Eu os tenho aos bor-
botões. Vamos a eles:
Os anos de 2018 e de 2019, estão cravados permanen-
temente em mim, como momentos de profundo amargor e
tristezas, que ainda continuam a me afogar lenta e doloro-
samente. São, também, responsáveis pela ruptura de uma
condição existencial e a entrada com pé na porta, para ou-
da vida, que nos embala de diferentes formas. Certezas ou
aprendizados? Poucos ou quase nenhum. Tão somente a
marcada impressão que vamos sendo devorados pouco a
pouco e com espaço para as sobremesas.
As primeiras luzes de 2019 trouxeram consigo uma perda
irreparável, que assumo, ainda prazerosamente continua a
me cutucar. Porém, possibilitou-me a realização do deseja-
do, e por vezes adiado pós-doutoramento em sociologia, área
87
malas de roupas e livros para cidade do Porto em Portugal a
que continuam sendo objetos de trabalho, de pesquisas
e parte consolidada do percurso acadêmico que há anos
atrás optamos por caminhar. A estadia ao longo daquele
ano foi uma possibilidade real e concreta (a redundância é
proposital) de refazimento intelectual, social, cultural e de
convivência. Embora as notícias e o relatos vindos de fora
não eram os mais alvissareiros, mas cabeça que dura que
somos, tentávamos seguir adiante aproveitando todas as
oportunidades que nos eram apresentadas. Cada uma delas
amálgamas imprescindíveis para a vida que se deve viver
em todas as oportunidades ofertadas, mesmo submersos
pela crueza da pandemia.
E por falar nela, a volta ao Brasil, em fevereiro de 2020,
aconteceu na rabeira do fechamento de Portugal e da sus-
pensão dos voos para o Brasil. Ufa! Voltamos! Por pouco,
Ao voltar, esperanças e planos de trabalho adiados por
um mal que nos assombra e que não podemos enxergar. Ca-
be-nos a tarefa de mais uma vez resistir e mantermo-nos no
o ano do corvo!!
Por último e antes que me esqueça: parte do título des-
coração, Augusto dos Anjos. Concordo e fecho com Ferreira
Gullar: Augusto dos Anjos é um poeta pré-moderno! Termi-
nemos com dos Anjos:
88
Asa de Corvo
Asa de corvos carniceiros, asa
De mau agouro que, nos doze meses,
Cobre às vezes o espaço e cobre às vezes
O telhado de nossa própria casa...
Perseguido por todos os reveses,
É meu destino viver junto a essa asa,
Como cinza que vive junto à brasa,
Como Goncourts, como os irmãos siameses!
É com essa asa que eu faço este soneto
E a indústria humana faz o pano preto
Que as famílias de luto martiriza...
É ainda com essa asa extraordinária
Que a Morte – a costureira funerária –
Cose para o homem a última camisa
92
Estou no meu primeiro ano do curso de doutoramento em
Teoria do Direito da Universidade de Lisboa – Fdul. O ano
letivo aqui no hemisfério norte (T. 2019/2020) corria regu-
larmente, até Portugal decretar o estado de emergência em
razão da pandemia do COVID19. Mesmo antes, desde 10 de
-
so na Rua das Praças, 16, 1dto, Bairro da Lapa, em Lisboa,
1200765. A rotina diária consistia nos processos eletrônicos
da Defensoria Pública da União do Brasil (estou desde outu-
bro de 2019 desempenhando meu ofício de defensora públi-
ca no Brasil com trabalho à distância), aulas da faculdade
por “zoom” e a investigação acadêmica em Direito Público
intensa em curso. Por causa da pesquisa, para aprimorar
meus relatórios em conjunto com os seminários que tive que
ministrar on line
alguns exemplares de valiosos livros pela internet. Assim,
demoravam mas chegavam livros de Portugal, da França,
da Espanha e dos EUA no meu endereço internacional.
De outra sorte, em função de minhas investigações inte-
ressadas na área da justiça social enviei um e-mail para a
Universidade de Chicago, nos EUA, estimulada por uma de
93
minhas diletas professoras da Fdul. Maior foi a minha sur-
presa ao receber, em poucas horas depois, uma resposta
dessa importante pensadora contemporânea de quem sou
a me dedicar em seguida. Como uma verdadeira aluna sua,
-
reitos humanos (hd-ca.org), adquiri mais um livro pela in-
ternet e assisti repetidas vezes um colóquio da mesma acer-
ca do projeto deste seu livro. Com o tempo, aprendi a deixar
a escuta diária de podcasts -
cos irromperem o silêncio de minha solidão pensativa.
Confesso que facilmente me adaptei à rotina diária coro-
nária, de muito pensamento e leitura perante um compu-
tador. Contudo, sentia falta do estabelecimento de ensino,
vermelha, dos cafés, bibliotecas, metrô e até do elétrico 28.
Por outro lado, me tornei mais caseira e com conhecimentos
culinários dedutivos impressionantes. Da rotina das “tascas
portuguesas” do pacato bairro lisboeta de residência, passei
a somente ir ao mercado “Pingo Doce” uma vez por semana,
a fazer comida prática e saudável no forno e um pão folha
indiano (chapati). Esse pão matinal delicioso me enchia de
orgulho diante da facilidade de sua confecção, feito na quen-
tura da chapa da frigideira a partir de uma massa de farinha
de grãos de sementes, água e azeite apenas, já que eu dis-
pensava o sal. Simples assim!
Agora em junho, resolvi andar por Lisboa, desde minha
dia. O objetivo é emagrecer e despertar para o mundo pós-
-pandemia. Muito tenho me deliciado nos banhos de sol nas
margens do Tejo ao mesmo tempo que vejo a cidade amanhe-
cer à caminho da Praça Camões, no Bairro Alto; me sento
94
um pouco na mesa com Fernando Pessoa, ali no Chiado ou
-
res de papel”, apesar de serem de verdade e o mundo dis-
pensar cada vez mais papel.
Agora percebo que minha vida deu uma reviravolta nes-
ses últimos anos: curta estada em Aix em Provence/França
sofri um acidente sério no Porto/Portugal (2015), minha
mãe morreu no Rio de Janeiro/Brasil em 18 de setembro
de 2016, me separei (2017), morei mais um pouco em Lis-
boa/Portugal (2018), uma temporada em Salamanca/Espa-
nha (2019), mais um “rato” em Playa del Carmem/México
(2019) e me vi sozinha no mundo. Agora percebo que es-
colhi Lisboa para recomeçar a vida. Mal sabia que iríamos
todos nos deparar com um mundo novo. Aqueles nossos ve-
lhos hábitos já estavam nos fazendo muito mal mesmo!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Fernando Pessoa
97
Cheguei a Lisboa no dia 15 de dezembro de 2019. Era a
-
licença para deixar o Brasil (que todo funcionário público
-
tugal, demandam intensa burocracia e muita ansiedade,
embarquei, tinha lançado, dois dias antes, na Travessa do
Leblon meu último livro, O jornalista que imaginou o Brasil:
tempo, vida e pensamento de Hipólito da Costa (Editora da
Unicamp) e terminava um semestre que fora movimentado
por essas duas expectativas, o lançamento do livro e os pre-
parativos para a estadia em Portugal.
Choveu muito em Lisboa durante o mês de dezembro e,
como aqui, há férias de natal, tinha pouca expectativa de
encontrar as pessoas nas universidades. Felizmente, ainda
estava prevista uma última sessão do seminário que “Leitura
e formas da escrita”, coordenado por meu colega e amigo,
João Luís Lisboa, da Universidade Nova, que acolhera meu
projeto no Centro de Humanidades, o CHAM. De modo que
ainda pude aproveitar a oportunidade de estar com colegas
98
no dia 20 de dezembro e de assistir a palestra de uma impor-
tante historiadora portuguesa que faz parte desse mesmo
grupo: Maria Ivone Ornellas de Andrade. Sua obra sobre o
polêmico padre José Agostinho de Macedo (1761-1831) é re-
ferência para os estudos que tenho feito sobre o mesmo per-
sonagem. O tema de sua conferência era a vida e a obra do
historiador e professor José Sebastião da Silva Dias (1916-
mesma e de vários colegas do CHAM, do qual fora funda-
dor. Os estudos sobre história da imprensa portuguesa no
começo do XIX devem muito ao estímulo que deu a alunos
como José Augusto dos Santos Alves e João Pedro Ferreira,
hoje pesquisadores vinculados à Nova.
A temporada se anunciava promissora e o mês de janeiro
foi marcado por encontros com colegas daqui que não via há
muito, como os acima citados João Pedro Ferreira, José Luís
dos Santos Alves e Luís Andrade, do CHAM; José Luís Cardoso
e Nuno Gonçalo Monteiro, do Instituto de Ciências Sociais,
o ICS; Pedro Aires e Paulo Jorge Fernandes, do Centro de
História Contemporânea, da Nova; Vânia Chaves, Isabel
Lousada, Maria Manuel do CLEPUL, da Faculdade de Letras,
entre outros. Também tive a surpresa de encontrar colegas
brasileiras que estavam por aqui como Durval Muniz, Silvia
Azevedo, Silvia Campos, Adriana Barreto, ou que estavam
de passagem como Tania de Luca, e até mesmo, Dominique
-
mília e com quem pude almoçar. O mês foi coroado pelo lan-
çamento de meu livro na sucursal lisboeta da Livraria da
minhas surpresa e satisfação casa cheia, com uma quanti-
dade de gente boa que eu conhecia de outro lançamento que
99
Parecia o começo de um semestre de boas realizações pois
-
tura e formas da escrita”, da Nova e, um mês depois, no se-
minário de História do ICS, a convite de Miguel e da Cruz de
a apresentação de meu livro em Paris no dia 19 de março,
em conferência promovida pelo Centre d’Histoire du XIXe
siècle e pela Société d’histoire de la Révolution de 1848.
As pesquisas se encaminhavam a partir do espaço que o
CHAM tem na Biblioteca Nacional, para o projeto Revistas
de Ideias e Cultura, coordenado por Luís Crespo de Andrade,
que me convidou a trabalhar ali dividindo sala com Joana
Lima. Eventualmente também usava o espaço a profa. Zília
Osório, grande especialista no vintismo. O privilégio de ter
poucas salas adiante o José Augusto Santos Alves me garantia
dois interlocutores de peso para os estudos que viera desen-
volver em Portugal. A ajuda do arquivista Paulo Tremoceiro,
da Torre do Tombo, que me foi apresentado pela colega, amiga
e conterrânea, Débora Dias, facilitou o acesso a documentos
que eu começava a levantar. As boas indicações de João Luís
Lisboa, Santos Alves, João Pedro Ferreira e Nuno Gonçalo
Monteiro, me davam a segurança de que a pesquisa seria
bem-sucedida.
Foi aí que o coronavírus chegou. Não chegou de uma vez,
foi chegando desde janeiro com as notícias da China a que a
gente dava pouca atenção porque era longe e até estranhava
aquele alarmismo todo que a imprensa estava fazendo. Logo
a coisa apareceu na Europa, com notícias sobre um caso
aqui outra acolá. Mas as informações sobre a gravidade da
situação da Itália acenderam a luz amarela.
A China já não era tão longe como fora no passado quando
a gente, por desaforo, mandava alguém para lá. O planeta
100
globalizado impusera uma relação íntima entre as nações,
mesmo aquelas que não se davam bem. Independentemente
das hostilidades eventuais, mercadorias e pessoas interli-
gavam o mundo inteiro em uma atividade dinâmica que en-
volvia todas as formas de comunicação e de circulação.
Como isolar pessoas que tinham se acostumado a cir-
cular livremente por toda parte? A China, por conta de seu
regime ditatorial, tinha meios de fazê-lo e os outros países,
mesmo sem os mesmos meios, acabaram seguindo o modelo,
adotando outros mecanismos de pressão. Até agora o iso-
lamento foi sendo a única medida efetiva a ser tomada en-
quanto não se descobre outra forma de combater a doença.
Logo, coisas inacreditáveis foram acontecendo: a parte mais
rica da Itália isolada do resto do mundo, depois a Espanha
com seus espaços tão conhecidos de todos, agora totalmen-
te vazios e até com animais silvestres passeando por ruas
onde antes só passavam pessoas, bicicletas e carros, pare-
Minha viagem para Paris estava marcada para o dia 13
de março e, até a véspera, eu estava convencida de que iria.
É verdade que a Maison Suger, onde contava me hospedar,
tinha cancelado todas as reservas, inclusive a minha ain-
-
gerada para as pessoas que consultei, que recomendaram
apenas que eu procurasse outro lugar para me hospedar. Na
França, algumas medidas restritivas estavam sendo toma-
das, mas ainda eram muito relativas. Em Lisboa, falava-se
que a Biblioteca Nacional ia fechar na semana seguinte. Mas
-
trei com Kaori Kodama no salão de leitura da Biblioteca
Nacional e ela me disse que tinha vindo fazer uma palestra
101
na Universidade Nova no dia 12 de março. Rafael Cardoso
que viria de Berlim para falar sobre modernismo no dia 11,
cancelamento só veio no próprio dia 11 tanto para ele quan-
to para a palestra da Kaori. Mesmo assim eu persistia no
projeto de ir a Paris, até porque até então a minha palestra
não tinha sido cancelada.
Adotando os tantos cuidados que já estavam se usando
então, fui jantar com casal amigo, Soninha e Dacio Malta.
Eles estavam em uma viagem pela Europa, tendo Bruxelas
Soninha estava muito nervosa e, ambos temiam que o go-
verno brasileiro tomasse alguma medida restritiva que os
impedisse de voltar. Me despedi ainda acreditando que ia
embarcar para Paris no dia seguinte. Mas naquela mesma
noite saiu a notícia de que o Macron decretara o fechamen-
to das escolas e universidades, de modo que, minha pales-
tra, marcada para o dia 19, certamente ia ser cancelada ou
inviabilizada.
Mesmo quando estava decidida a ir, meu medo era grande
e, depois de vários apelos de colegas, amigos e do marido,
desisti. Na verdade, o medo maior era de ir e não conseguir
voltar pois o quadro mudava todos os dias e sempre para
pior. Minha amiga, Luciana Fróes, estava em Paris e viveu
o momento exato em que a vida normal, com restaurantes,
lojas, shoppings e parques abertos, acabou. Justamente no
meu livro. Bonjour tristesse, ela anotou na foto que postou
no Facebook no dia em que acordou e não viu ninguém nas
ruas de Paris. De fato, se eu tivesse ido não teria tido como
voltar. No meio da semana seguinte recebi mensagem da
companhia aérea dizendo que o voo de volta fora cancelado.
102
Mas quando recebi essa mensagem minha vida já tinha
se transformado radicalmente e parecia que eu estava em
quarentena há anos. A primeira mudança na rotina que eu
tinha criado para mim foi o fechamento da academia onde
eu fazia hidroginástica de manhã. A outra, foi o fechamen-
to da Biblioteca Nacional onde eu passava o resto do meu
dia. Tinha mesmo conseguido um apartamento no agradá-
vel bairro do Alvalade, a cem metros da hidroginástica e
a duzentos da biblioteca. O esquema que criei para passar
o semestre em Lisboa estava redondinho. Na BN, além da
sala quase exclusiva que ocupava, eu tinha oportunidade de
encontrar casualmente muitos colegas e até participar dos
eventos acadêmicos que ali acontecem com bastante fre-
Felizmente, o bairro e o apartamento em que estou são
muito claros, verdes e arejados. Um bairro dos anos 1950,
Alvalade, com prédios simpáticos pequenos, de três anda-
res, apartamentos relativamente grandes e perfumados
quintais ao fundo. O meu, conta ainda com as vantagens de
ter sido todo reformado, estar com cara de novo e ter como
proprietário um jovem poeta e tradutor especializado em li-
me tem sido leve. O mais difícil, no entanto, é trabalhar. A
dispersão é grande, agravada pelas notícias que, todas as
manhãs leio de várias fontes sobre o Brasil. Talvez a disper-
são se deva ao quadro de incertezas não só sobre a pande-
mia, mas também sobre o que me espera quando voltar e até
se vou conseguir voltar na data prevista.
Mas acho que a mudança mais estranha que aconteceu foi
o medo da rua. Não aquele medo que a gente tinha de andar
em alguns lugares à noite. Outro medo mais difuso que foi se
instalando aos poucos. No dia em que fui jantar com Soninha
103
e Dácio, peguei um Uber. Hoje, eu não teria coragem. Pas-
sei antes na casa de uma amiga para pegar uma encomen-
da e conversei com ela naturalmente no hall do elevador,
só não entrei porque estava com pressa. Depois desse dia,
nós que costumávamos sempre nos encontrar, nunca mais
nos vimos pessoalmente. No começo, ia quase todos os dias
ao supermercado para fazer pequenas compras. Já havia o
se tornou ainda mais rigoroso pois os próprios supermer-
estabelecendo a distância entre cada freguês. Passei a ir de
luvas e, cobria o rosto com um lenço amarrado pois não ti-
nha máscaras e não quero sair para comprar. Agora, depois
que aprendi em um vídeo, consegui fazer algumas a partir
de meias velhas.
Sair de casa implica em se vestir e só calçar os sapatos e
vestir o casaco já fora do apartamento. Na volta, entrar em
casa também exige um ritual. As bolsas que levo e trago ponho
direto na máquina de lavar, bem como a roupa que usei. Isto
não me poupa da paranoia de ter talvez coçado o rosto ou
tido qualquer outro gesto absolutamente banal que pode ter
casa se converteu em um complicado ritual.
Em casa, a rotina de atividades domésticas que não esta-
va acostumada a fazer foram uma revelação. Elas tomam
muito tempo. Limpar a casa, lavar a roupa, cozinhar, etc.
essas coisas que pareciam que vinham prontas, passaram
a depender de uma ação minha para serem efetivadas. Di-
ferença nossa com os europeus. Desse aprendizado não me
queixo. E até funciona como um bom álibi para o fato de os
trabalhos andarem tão lentamente, só avançando quando
alguma cobrança externa aparece. Faço e refaço a lista do
104
que tenho que fazer. A própria organização do material pes-
quisado que, ainda que pouco, será útil para o que vou es-
crever mais adiante. Artigos e verbetes que prometi para
uma data que parecia distante e que se aproxima se forma
ameaçadora.
De fato, o que muda muito é a relação com o tempo e mes-
mo com a própria ideia de solidão. Os dias se repetem sempre
trabalho ou toda atividade que se tinha antes. Em compensa-
ção as horas passadas nas redes sociais se alongam também
porque os grupos de WhatsApp se multiplicam. É a sociabi-
lidade possível. De alguma forma torna próximas pessoas
que estavam um pouco distantes. E de forma mais intimista
do que o Facebook, pois meus grupos de WhatsApp são bem
pequenos. Agora começo a ter compromissos relacionados
ao trabalho também nas redes. Uma live no Instagram da
editora da Unicamp, um convite para entrevista a um por-
tal, uma reunião de trabalho com colegas daqui e outra com
colegas de lá... Vamos descobrindo novas formas de fazer
as mesmas coisas. Ainda não deu para sentir totalmente o
ele virá. Assim também como a falta de jeito ou a paranoia
instalada para apertar a mão, abraçar, beijar, ou simples-
mente sentar juntos em uma mesa de bar, quando as coisas
voltarem ao normal, se voltarem.
106
Estou trabalhando em casa, como boa parte das pessoas
na França desde meados do mês de março. Faz um mês já
apartamento no sétimo andar de um edifício moderno cujas
janelas dão sobre o antigo Canal de Brienne, construído no
século 18 para conectar o rio Garonne ao Canal du Midi. As
beiras do canal estão fechadas aos passeios e corridas, e só
nos resta a possibilidade de admirar seus imensos plátanos
com a primavera na França.
muito profícuos para as minhas pesquisas. Aproveito o con-
-
te há alguns anos já: escrever em francês uma história da
guerra de Canudos e de sua memória, como metáfora de
uma história trágica do Brasil colonial e independente – um
livro que quero publicar em 2022, para o bicentenário da
o é a de Canudos, tema tão debatido e objeto de tantas polê-
micas e interpretações, ando lendo trabalhos sobre as po-
líticas sanitárias durante a Primeira República – enfoque
107
interessante para abordar a questão sanitária em Canudos,
antes e durante a guerra, pois muitos discursos denuncia-
ram Belo Monte como um foco de doenças e um lugar cuja
mortandade ultrapassava por muito as taxas normais de le-
talidade no sertão da Bahia (é o que dizem, por exemplo, os
capuchinhos que visitaram o arraial em 1896 no relatório
escrito para o arcebispo). Assim folheio livros (digitaliza-
dos) sobre a gripe espanhola que atingiu Salvador e o Es-
tado da Bahia em 1918, com o desembarcar de um paquete
inglês; enquanto o Covid-19 começa a espalhar-se no Brasil
e as mortes a se acumularem, após o vírus ter sido impor-
tado por brasileiros da classe média alta de volta de viagem
transatlântica. Ao observar as estratégias das oligarquias
-
panhola sobre o comércio internacional, base das riquezas
das elites, eu não posso deixar de pensar na situação pre-
sente do Brasil, onde o presidente diz que a epidemia, além
de ser pouco perigosa, não pode nem deve desestabilizar a
economia do país. Mais uma vez, esta prevalece sobre a vida
humana e, em 1918 como em 2020, o povo miserável será o
alvo da pandemia.
Tudo isso aconteceu naquele mês de abril, antes da si-
tuação piorar no Brasil (enquanto a situação melhorava
país tornar-se o mais atingido de toda América latina. O sa-
crifício de partes da população brasileira, entre os quais as
comunidades autóctones maltratadas pela política do BBB
e as populações das favelas, onde a promiscuidade e a pre-
-
ria da guerra de Canudos, do extermínio do povo sertanejo
tão bem descrito por Euclides da Cunha – vítimas às quais
devem se acrescentar os milhares de mortes do exército
108
brasileiro, composto na maioria por pessoas humildes, sem
formação militar e às vezes mobilizadas por força. São aque-
les soldados e suas famílias que, de volta ao Rio de Janeiro,
se instalaram no Morro da providência, popularmente ba-
tizado desde então de Morro da Favela – por ser a Favela
aquele monte onde acamparam os militares durante o sítio
de Canudos. Na Favela do sertão baiano como nas favelas
que se espalhariam nas grandes cidades do país ao longo do
segue matando milhares de favelados enquanto o Estado
federal continua olhando alhures, quando não estigmatiza
essas populações que, em vez de injúrias, precisam de ajuda
e solidariedade – ou seja esses valores que motivaram a fun-
dação de Belo Monte no sertão de Canudos.
Foto do autor em casa: ©Céline Gaille / Hans Lucas
110
É domingo, o que não fez nenhuma diferença durante
os últimos meses, e acordo relativamente cedo. Prometi
entregar este pequeno texto até o dia 15. Então, mãos à obra.
Hoje é um domingo não ordinário porque amanhã Londres
lockdown, contando com a certeza
de que outros virão, e a grande maioria das pessoas voltará
ao trabalho.
Os transportes públicos, que continuaram em funciona-
meses, deverão circular com lotação perto do que sempre
foi habitual antes da pandemia. Mas, nada será como antes
porque tal como “robôs emocionais” vamos manter o distan-
ciamento mínimo de 2 metros, obedecer a obrigatoriedade
do uso de máscaras dentro dos transportes, e passar com-
pulsivamente um desinfetante ao perceber que, inconscien-
temente, tocamos alguma superfície de uso público. Tudo
muito civilizado mesmo porque os agentes policiais estarão
de olhos bem abertos.
-
cácia no controle da(s) sociedade(s).
Nada de novo, basta lembrar Jean Delumeau e seu La
Peur en Occident (XIVe-XVIIIe siècles). Aliás, este medo, ou
111
antes, a instalação desse medo individual e coletivo é o pon-
Então, vejamos, morrer todos vamos. Não que eu tenha
qualquer intenção de interromper meus afazeres por aqui
agora, mas isso é fato certo: se está respirando é porque
morreu novo e por aí vai. Podemos pensar também que esse
medo se relaciona com a forma da morte. Mas, a esse respei-
to temos pouco ou nenhum controle. Não temos controle?
Maior o medo. Melhor não especular; só piora.
-
tada com a capacidade das pessoas em geral de absorver e
internalizar o medo do COVID19 quase como se diante de
uma catástrofe natural – tipo a praia está cheia de pessoas
aproveitando o sol e uma enorme onda surge no mar e é “se
já que quase não há mais notícias – lembra das informações
baseadas em fontes? – enquanto todos corremos para casa e
estocamos papel higiénico. Ridículo, mas necessário?
Na minha casa não houve estoque de nada, não houve falta
de nada, não houve medo de nada. Precauções foram devida-
mente tomadas, obviamente. No mais foi ler Notícias – com N
prediletos, conversas intermináveis ao telefone, idas aos su-
permercados. Claro que muitos podem dizer que tudo isso é
fácil quando estamos em casa com a certeza de que pelo me-
nos 80% dos nossos salários serão depositados no dia certo
nas nossas contas correntes, cortesia do governo Britânico
e não responsabilidade das empresas e/ ou empregadores
que aqui não podem ser penalizados.
112
Só que a família, os amigos queridos estão no Brasil. Não
temo por eles, mas sofro porque estão com medo, completa-
mente aterrorizados. E têm motivos mais do que válidos e
crescentes na medida em que a pandemia e a situação políti-
O presidente é notoriamente louco, aqueles que o elege-
ram e que continuam com ele(?!) são... vamos ter que criar
motivo de riso se não fosse tudo tão triste, governantes su-
perfaturam ou apresentam notas de compras falsas para a
compra de respiradores, máscaras, etc., o comunismo é um
“perigo” eminente, pede-se a volta do AI 5 o que demonstra
-
mos 70% mas desunidos. Não obstante, o texto sobre o Novo
Normal publicado no site da ONU – Organização das Nações
Unidas, para mim este tal de novo normal parece, cada dia
mais, a “normalidade” do mal – com a licença da referência
à Hannah Arendt –, que se instala perigosamente.
E sobre a solicitação “um dia da minha vida durante a
pandemia” vou escrever uma experiência que durou bem
mais que um dia. Em princípio de fevereiro, depois de uma
madrugada de dor intensa, fui diagnosticada na Urgência
do Hospital como portadora de pedras na vesícula. Depois
chamado período do pico da pandemia por aqui passei qua-
tro dias em casa com dores alucinantes, tentando garantir
minha admissão/permissão para ir ao hospital. Muitos tele-
fonemas depois, meu caso foi considerado digno de atendi-
mento médico e me foi indicado o hospital ao qual deveria
me dirigir/apresentar. Esperar pela ambulância, em média
18 horas, tornou-se missão impossível.
113
Como, obviamente, eu não conseguia caminhar tivemos
que chamar um Uber – sim, eles funcionam normalmente –
e lá fomos para o hospital. Sem muita demora fui admitida
como paciente.
Depois que conseguiram achar uma veia “boa” e passa-
ram ao tratamento intensivo com soro e “trocentos” antibi-
óticos, porque a infecção estava galopante, deram-me ainda
Somente pela manhã observei que meu quarto tinha um as-
pecto improvisado e nenhuma janela. Tudo bem, logo che-
Feliz e completamente doidona, resolvi arrastar meu su-
porte de sacos de líquidos variados e dar uma volta no cor-
redor movimentado, cheio de enfermeiros e médicos. Após
caminhar cerca de cinco ou seis metros meu passeio acabou
diante de uma porta fechada – daquelas que a gente vê nos
pus-me na ponta dos pés para dar uma olhada. Daí eu vi uma
sala enorme repleta de camas quase encostadas umas às ou-
tras ocupadas com pacientes inconscientes e muito pessoal
médico equipados com EPI – Equipamento de Proteção Indi-
poucos metros de uma das alas de isolamento dos pacientes
infectados com COVID19. Todo aquele movimento no corre-
Voltei para o quarto tão rápido quanto possível. Com o
frasquinho de bolsa do meu desinfetante “faxinei” o meu
quarto. Desinfetei até os lençóis. Pedi para falar com o meu
cirurgião que apareceu depois de algumas horas. Queria
explicações sobre o meu prognóstico. De forma muito aten-
ciosa, ele me explicou que o plano era debelar a infecção
para evitar uma cirurgia aberta com o objetivo de evitar a
114
contaminação e fazer um procedimento laparoscópico. Eu,
igualmente de forma atenciosa, expliquei que minha perma-
nência no hospital não seria possível e que eu gostaria de
obter a permissão para voltar para casa e cuidar da infec-
ção por lá, mesmo que me fosse prescrito, e por mim estaria
tudo bem, dormir de cabeça para baixo. Aqui escrevo tudo
bem resumido, mas a conversa com o cirurgião-chefe foi lon-
ga e discutida ponto por ponto.
Recebi alta naquela mesma noite e deixei o hospital com
uma sacola de remédios e uma prescrição de dieta da qual
o “alimento” mais gostoso que posso comer é biscoito cream
para a laparoscopia.
-
quilidade e pouca comida. Se quiserem saber se tive medo
eu posso dizer que não. Cautelosamente, procurei resolver
aquilo que estava ao meu alcance e o que não pude/posso
controlar será o que tiver que ser. Por isso, “as good as it
gets”.
Fiquem tranquilos e preparem-se para o Novo Normal. Se,
de quebra, o presidente deixar o cargo seria um grande pro-
blema a menos.
116
Era uma sexta-feira, dia 13 de março, em Lisboa. Logo
pela manhã, eu me preparava para voltar a Paris após uma
semana um tanto frustrada de trabalho. Minha missão era
apresentar minha pesquisa, sobre uma autora francesa que
-
versidade Nova de Lisboa, a convite do professor Nuno
Medeiros dia 12, na quinta-feira.
Havia alugado um pequeno apartamento pelo Airbnb na
Mouraria, na travessa da Nazaré, não muito longe da biblio-
teca de São Lázaro, que pretendia visitar. Ao chegar na se-
gunda à tarde, o choque que senti com a paisagem ensolara-
da e quente de Lisboa, em completo contraste com a Paris
-
coronavírus, embora seus sinais estivessem presentes nas
falas capturadas pelas ruas. Na agitada rua de São Pedro
de Alcântara, casais conversavam, colegas de trabalho
murmuravam, estudantes, amigas e senhoras no telefone
discutiam: o coronavírus já passeava por todas as bocas. A
situação já era drástica na Itália, que chegava a 1.000 mor-
tes, e circulavam pelas redes vídeos de pessoas com seus
familiares mortos em casa sem conseguir uma ambulância.
117
Aproveitei os primeiros dias para revisar o texto no confor-
tável quarto e sala que dava de frente para um casarão azu-
lejado, e ir à Biblioteca Nacional, antes do dia da apresenta-
ção. Lá encontrei Isabel Lustosa que demonstrava apreensão
quanto a sua ida programada para Paris. Na noite do dia 10,
Nuno me avisa que a apresentação havia sido cancelada pois
a universidade implementara o seu fechamento como medida
contra o covid-19. Bem, é isso... não há o que fazer, pensei.
Diversas atividades acadêmicas já vinham sendo cancela-
das na França, que àquela altura contava com 1.800 casos, e
diante da crise instaurada, não me parecia sensato protestar.
Na Espanha o alarme já era dado, já que Madrid passava a
ser visto como um próximo foco. Os voos entre o país e a Itá-
lia estavam proibidos e o governo anunciava medidas como o
trabalho remoto e a suspensão das aulas nas escolas.
O que acontecia era que eu, assim como muitos ainda,
estava incautamente até aquele dia 13 como que posiciona-
da sobre um banco de areia, observando no horizonte uma
onda do tamanho do mundo se aproximar.
No dia 11, a OMS havia declarado que estávamos sob uma
pandemia global. Havia saído naquela manhã com a inten-
ção de visitar a biblioteca escolar de São Lázaro, mas esta já
não funcionava. Os estabelecimentos de ensino fecharam-se
em Portugal. Como no instante antes da chegada das tem-
pestades, havia um estranho ar parado, quando o silêncio
ao redor é um prenúncio aterrorizante do que está por vir.
Sem a apresentação e com as pesquisas limitadas, fui vi-
sitar minha amiga Patricia Hansen. Pego o trem para en-
contrá-la em Sintra, já que Ericeira, onde ela mora, estava
mais longe. Um senhor sentado à minha frente no vagão
com um velho cachecol azul escuro bastante puído e se le-
vanta do assento, indo se instalar em pé, perto da porta de
118
saída. Num misto de perplexidade e de indignação, só pude
imaginar que o terror e a xenofobia já haviam invadido os
corações dos habitantes locais.
Na noite do dia 12, encontro com o professor Nuno em um
restaurante com uma linda vista de Lisboa. Durante o jan-
tar conversamos sobre as decisões da universidade de sus-
pender as atividades e sobre as mortes pelo mundo. Fala-
mos dos horrores no Brasil e lamentamos tudo aquilo.
Volto para o apartamento já tarde, e checo antes de dormir
as mensagens no celular. Uma delas era de uma amiga, Lívia,
que mora em Roma. Me dou conta de que a amiga italiana
respondia a uma mensagem que eu enviara a ela equivoca-
damente, confundindo seu número com o de outra Lívia, a
bolsista de pesquisa que trabalhava comigo no Brasil. “Hello,
Kaori, como você está? Está no Brasil ou na França?”.
Só consigo responder naquela manhã de 13 de março:
“Estou em Portugal, mas voltarei a Paris.” Agora, acredito
que não tinha tanta consciência de onde estava, apesar de
ter respondido objetivamente a pergunta de Lívia. Ela en-
via uma foto de um homem rezando ajoelhado em frente à
igreja na Via Veneto. “Se você tem que voltar ao Brasil, o
faça agora, pois eles irão fechar tudo”. Eu digo que minha
passagem pela Capes estava marcada para voltar ao Brasil
dia 29 de março. “Você não irá voltar dia 29, Kaori”. Recebi
a chacoalhada de que precisava. O tsunami havia chegado e
eu contemplava o céu azul de Lisboa.
Abri imediatamente o Linha Direta da Capes e perguntei
à assistente da agência sobre a possibilidade de antecipação
do meu retorno, uma vez que minha família já estava no Rio
que aguçava a sensação de que eu me encontrava em um
hiato no tempo. Escrevia Camus sobre os cidadãos de Orã:
119
“Enquanto, até então, tinham subtraído ferozmente o seu sofri-
mento à desgraça coletiva, aceitavam agora a confusão. Sem me-
mória e sem esperança, instalavam-se no presente. Na verdade,
tudo se tornava presente para eles. A peste, é preciso que se diga,
tirara a todos o poder do amor e da amizade. Porque o amor exige
um pouco de futuro e para nós só havia instantes.” (Camus, A
peste, 2013, p. 173)
Era isso. Meus amores não estavam comigo.
Depois daquele 13 de março, num espaço de 3 dias, a onda
devastadora alcançava meus pés, com Macron decretando
pensei. No dia seguinte àquela segunda-feira do pronuncia-
mento em que o presidente francês faz uso da metáfora da
guerra para o enfrentamento sanitário, postos de correios
e bancos, todo o comércio, além daqueles de suprimentos
essenciais, foram fechados. Desci até o supermercado: as
prateleiras de produtos de limpeza, água, massa e enlata-
dos estavam vazias. Não havia mais sinais das pessoas que
até o domingo anterior, desrespeitando o cumprimento do
isolamento social exigido, aproveitavam alegremente o dia
quase primaveril no parque de Buttes-Chaumont.
Ao voltar para casa, eis que abro meu e-mail e encontro a
mensagem da Capes anunciando meu retorno imediato num
voo da TAP. Eu deveria me apresentar no aeroporto de Orly
às 17:00 horas do mesmo dia e já era perto de meio-dia.
No instante seguinte, no avião de volta para Paris, a co-
missária me encaminha para a classe executiva. É que, por
questões de segurança, era preciso fazer o distanciamento
entre os passageiros. O conforto dos bancos largos da elite
gerou também em mim o desconforto, pois não seria pos-
sível dizer em tais circunstâncias que tinha tirado a sorte
grande.
120
Precipitou-se a vaga que me empurrava de volta ao
Brasil: deixei livros para serem devolvidos, uma conta de
banco aberta, tantas coisas para empacotar e enviar pelos
correios. Como que agarrada ao tronco em meio ao mar re-
sem poder abraçá-los por 15 dias. Mais do que tudo, voltei
para um Brasil afogado em sua tragédia social, política e
ética. Não havia mais qualquer dúvida de que adentrava
agora em um admirável e triste mundo novo.
121
Chiesa di San Roberto Ballarmino, via Panama - Roma, 10 de março de
2020. Foto: Livia Eleonora Bove.
123
Eu escrevi este texto dia 02 de junho de 2020, data em que
março a 10 de maio – e a primeira fase após o isolamento restrito
– de 11 de maio a 01 de junho – já terminaram.
apenas as instituições consideradas essenciais – como os
hospitais, as farmácias, os mercados e as padarias – perma-
neceram abertas, respeitando as regras de distanciamento
social e uso obrigatório de máscara.
Neste período, a circulação de pessoas foi restrita no raio
de um quilômetro ao redor da residência própria e com a
obrigatoriedade de portar uma declaração manual, e poste-
do deslocamento.
Estas restrições, visando a proteção individual e coletiva
face à pandemia do Covid-19, alteraram nosso cotidiano e
os modos de interações sociais, condicionando-os à esfera
privada e virtual.
Diante desta conjuntura e observando algumas posta-
gens virtuais sobre as novas práticas cotidianas durante a
124
quarentena, eu resolvi publicar uma foto com minha rena de
pelúcia, chamada Tonico.
Na imagem, a rena me receitava um Rivotril, remédio
cuja ação é inibir certas funções do sistema nervoso central,
mas que no senso comum, e, geralmente, usado de maneira
jocosa, pode ser indicado para pessoas extremamente an-
siosas, descontroladas, excessivamente nervosas ou com
sinais de insanidade.
certa ansiedade e um falso descontrole de minha parte com
o início da quarentena, resultou em algumas reações e co-
mentários engraçados, impulsionando a continuação das
publicações diárias, constituindo aos poucos “um diário de
quarentena em Paris”.
Com o objetivo de destacar os contextos reais, vivencia-
dos por mim ou por outras pessoas nas quais eu me inspirei,
as postagens também tiveram a intenção de informar sobre
a importância de respeitar a quarentena de maneira bem-
-humorada, tornando o contexto da pandemia mais leve
para meu ciclo de amigos em minha rede social e que acom-
panharam as postagens diárias.
Neste sentido, a rena de pelúcia Tonico, até então um
ações e falas criadas por mim em cada foto publicada nas
redes sociais.
Entre a ironia e o bom humor que pairavam na maioria
das postagens, distintas situações cotidianas do ambiente
doméstico e virtual foram representadas nos diálogos esta-
belecidos entre eu e Tonico.
126
Dentre os contextos reproduzidos, podemos citar: ativi-
dade física; cozinhar; lavar roupas; limpar a casa; perder a
vídeos; ouvir músicas; escrever a tese; conversar com ami-
conjuntura atual, dentre outras situações cotidianas.
Com isso, durante quase dois meses de isolamento res-
trito em Paris, eu conciliei meu tempo entre as tarefas do-
mésticas e as atividades de pesquisa com o breve diário de
quarentena que produzi neste período.
-
curtiram e seguiram as postagens continuam perguntando
pelo Tonico, querendo saber por onde ele anda, se ele está
bem e se continuaremos com as histórias pós-quarentena.
Para atender aos pedidos, eu continuei postando, de modo
esporádico, algumas fotos com o Tonico em lugares que tenho
visitado pela França, mantendo a leveza e o bom humor que
deram o tom do diário de quarentena.
127
Deste modo, as postagens feitas para além da quarentena
-
demia e retorno ao convívio social, especialmente para os
amigos no Brasil, que, em certas cidades, continuam em
quarentena, dado o aumento exponencial no número de in-
fectados e de mortos pelo Covid-19.
Esta situação nos mostra que as complicações econômi-
cas que o período de quarentena causou em cada país e para
que deixaram de existir.
128
Por respeito a estas vidas e aos seus familiares que eu
mantive um diário de quarentena informando sobre a im-
portância de permanecer em casa, respeitando a Organiza-
ção Mundial da Saúde (OMS).
-
citou a minha e a nossa capacidade de adaptação, a neces-
sidade de interação social e o cuidado pessoal e coletivo em
defesa da vida.
130
Entreguei para Solidão a minha lista. Contei um por um e
li em voz alta para ela ter certeza de que nada seria esque-
cido. Tinha ali esperança que ela não demorasse. Fosse só
uma ‘visita de médico’ como dizia a minha vó. Olhava pra
mim com os olhos grandes, tristes. Mas eu sorri de volta.
Disse pra ela que a saudade dava a capacidade de materia-
lizar o que já tinha ido. Não queria que ela achasse que eu
estava intimidada pela presença dela.
dizendo que ia ser fácil. Não era uma revolução política ou
uma revelação divina – embora eu também as quisesse... ai
de mim. As buzinas apressadas da manhã. As crianças fa-
lando alto chegando na escola. As conversas do ponto de ôni-
bus. Os gritos de bom dia dos funcionários. O cheiro do café
doce da padaria. O pão quente. As conversas dos taxistas.
Esse era o cenário de lá de fora.
A casa. A conversa sobre as notícias, o pedido de mais
uma tapioca. O café forte e o café aguado. As mesmas piadas.
Sentia saudade até das piadas ruins. De compartilhar o meu
pessimismo com o país esperando ouvir ‘não é bem assim,
-
tória. A mesma playlist do Spotify. O abraço com o beijinho
131
rápido do ‘eu preciso correr porque hoje o dia vai ser cheio’
(sempre era). Os intervalos com a conversa de quem lavaria
a louça. O dia seguia. Vazio. Cheio de ruídos que pareciam
vir do sonho que se apagou.
As caminhadas pelo bairro cumprimentando os porteiros
e os donos dos cachorros levados para passear. O esforço de
vencer o tédio da mesma rotina. As idas ao mercado. A minha
lista das varandas favoritas dos vizinhos.
Abraços. São tantos. Só podia ser no plural. Falei os no-
mes. Repeti: ‘os meus pais’. Foram anos fora do país. Nomeei
as coisas que eu sabia que ela não poderia me devolver, vai
que... Silenciou. Falei dos lugares. Pé na areia molhada da
praia. Sorveteria. O boteco aqui da rua debaixo. Bolinho de
bacalhau com chope. Show de jazz dos amigos. Gente des-
mascarada. Conversa alta e gargalhada.
Tinha mais. Os gritos de gol nos dias de jogos e os vizinhos
-
gresso do cinema. Da pipoca gordurosa que a gente sempre
tinha retornado para um lugar que não era mais meu. Nada
ali era o que eu tinha deixado.
Ela se sentou. Fiquei angustiada porque não era para ela
demorar. A lista parecia grande demais e daí me dei conta
que as minhas anotações eram só uma carcaça morta de coi-
sas que ela não entendia. ‘Vou ver o que consigo’, ela disse,
‘Já recolhi uns pedidos semelhantes’. Me sentei também.
Olhei para fora da janela. Silêncio. O dia era lindo. Respirei
fundo. Fechei os olhos, repassei a lista toda de novo na mi-
nha cabeça como se eu pudesse segurar aquelas imagens
com as mãos. Tudo tinha cheiro, cor, som. Queria tudo de
volta. Queria a casa cheia.
132
Ia começar a falar quando a Filó pulou na janela e roçou
na minha mão pedindo carinho. Lá estava eu secando as lá-
-
mos-que-seguir-em-frente-isso-vai-passar. Eu olhei para o
A porta estava aberta. Olhei os sapatos na porta. ‘Nem se
despediu’ eu pensei. Olhei para a janela para ver se podia
vê-la saindo do prédio e daí acenar, jogar o bilhete daqui do
terceiro andar... nada. Silêncio. Ninguém.
O porteiro do prédio da frente acenou. Disfarcei o choro,
A vizinha da frente também. Nos olhamos. Sorrimos meio
sem graça. Era a Solidão voando bairro a fora.
Foto da autora.
144
mortos. Não dá pra arredondar. São vidas perdi-
das. E cada uma conta.
06/06 Depois da recontagem dos mortos, a próxima me-
dida contra a pandemia será a proibição do uso das
palavras “covid” e “óbito”.
05/06 Se fosse assistir a todas as lives (só dá história)
que tão rolando na quarentena, ia precisar de duas
vidas!
05/06 Aos que viram o século XX como era dos extremos,
bem-vindos ao longo século XXI.
-
tos. E se tivesse testagem?
02/06 Saudade de um movimento de rua com carros de
som, palavras de ordem, dezenas de milhares de
de um mar de bandeiras vermelhas, não é, minha
28/05 Mal posso esperar aquele segmento do JN em que
mostra as ações solidárias das empresas!
27/05 A sociedade brasileira é um organismo enfermo, em
avançado grau de deterioração. Agentes altamente
145
infecciosos corrompem suas vísceras. Se desco-
nhecem lenitivo para suas dores ou remédio contra
as causas de sua corrupção. Algumas amputações
poderão ser inevitáveis para se salvar o que resta
de sadio nesse corpo doente.
25/05 Crivela liberou os templos! Glória a Deus! Aleluia!
nós falando de delinquentes imorais!
moral e sanitário do STF. Ou nos tornamos seu
cúmplice!
15/05 Resta saber se a ocupação (termo militar apropria-
do) da pasta da saúde pelo Gal. Pazuello não esta-
ria já programada (por quem?) antes da posse do
Teich, que serviu de mero peão.
13/05 13 de Maio. “As datas, e só elas, dão verdadeira
consistência à vida e à morte”. (Eça de Queirós.
Almanaques)
-
tência assassina de B.
-
sileiro: chama-se crime contra a Humanidade!
04/05 Hoje ela vai estar linda, lá no mata-borrão do céu!
04/05 O suicídio de Migliaccio não foi uma abdicação, mas
um gesto político radical. Não o reconhecer esvazia
o ato e desonra o Autor.
28/04 Saímos do modo juntos venceremos essa, passa-
mos pelo Deus nos ajude e chegamos ao modo sal-
ve-se quem puder!
25/04 A poha tá tão loka que terça vira sábado e parece
que reprisa o mm jornal todo dia.
146
24/04 O título do romance que ainda não escrevi: “Hoje
acaba amanhã”.
22/04 O corona revelou um novo tipo na política brasilei-
ra: o necroliberal!
19/04 Não era por 20 centavos. Não será por 2 mil corpos?
18/04 Títulos de livros de história da covid: “A invenção
da peste: como o discurso médico matou 500 mil e
internou 1/3 da população”.
16/04 No atual cenário, não seria apropriado ter um epi-
demiologista no comando da Saúde?
13/04 Besta é tu, besta é tu! Abre a porta e a janela/ E
vem ver o sol nascer!
10/04 Nos próximos dias, a curva vai virar uma reta, ver-
tical, rumo ao inferno. Cada um com seu deus, pro-
09/04 O amigo borracheiro do primo de um conhecido
meu pegou a covid, usou cloroquina e se curou.
Repassem!
08/04 Saudade de uma reunião de departamento, não é,
07/04 Precisou de uma pandemia devastadora para a so-
ciedade perceber a dimensão do patrimônio que é a
universidade pública!
30/03 O corona veio ensinar que a vida exige pouco: comi-
da, água, vinho, sexo e arte. Não necessariamente
nessa ordem.
28/03 Não tem + Amazônia, PCC, PT, Marielle, Palestina,
refugiado, Ronaldinho Gaúcho, Avengers, Master-
chef, Amor de mãe. Só vírus!
147
27/03 2020 maior BBB da história. O mundo inteiro con-
querendo ir pra rua!
27/03 Pandemia, retração econômica, fascistas nas ruas/
autogolpe: tempestade perfeita!
26/03 Cloroquina, O novo Nióbio!
25/03 De que adianta argumentar com o gado que o isola-
terra é plana?
23/03 Resolvido o problema do São João de Campina
Grande. Transferiram junho pra novembro!
22/03 Tem que cair. Vai cair. Mas o timing é fundamen-
vidas.
eles/elas? Por sua saúde e renda?
17/03 Não tô conseguindo fazer nada – nem fazer nada!
16/03 A covid-19 se propaga pelo contato. O pânico, pelo
WhatsApp.
16/03 Em semanas aparecem as notícias dos velhinhos
de 15/03, com cartaz de foda-se corona, mortos
pela doença.
15/03 A marcha dos fascistas viralizou!
15/03 A pior pandemia de desinformação e ignorância da
história.
15/03 Language is a virus.
148
O tempo não tem mais hora marcada
Álvaro Pereira do Nascimento
preto, pai, pobre-pobre no passado e professor
Rio de Janeiro, 5 de junho de 2020
149
Mais uma noite na merda.
O sono foge dos pesadelos,
E me acorda!
Saco, viu...
Não pega o celular!!!! Peguei....
A madrugada não passa!
Mas fazer o quê amanhã de manhã?
E à tarde?
E à noite?
exercícios físicos, ouvir a NPR, lavar, passar, cozinhar, var-
rer a casa, receber entregador (vestir a máscara), higieni-
zar tudo que chega a casa (lavar a máscara)... – ops!... lavar
as mãos novamente.
Duas taças de vinho a partir das 20h00, foi esse o acor-
dado entre mim e mim mesmo, entre eu e eu mesmo, entre
mim e eu, entre eu e mim, entre eu e eu.
Cozinhar todo santo dia para me presentear próximo ao
meio-dia.
150
Festa gastronômica todo domingo com pratos especiais.
Tenho visto muito mais dicas culinárias no YouTube e ou-
tros sites de receitas.
Estou sem reunir minha mãe, manos, manas, primos, pri-
mas e sobrinhos há 72 dias.
Calço as mesmas havaianas: as pretas rodam a casa, as
azuis me aguardam de prontidão no tapete de boas-vindas.
(amor da minha vida) na casa da mãe a cada dezena de dias.
Elas também são usadas na hora de pôr o lixo na lixeira
ou pegar alguma encomenda recebida dos entregadores.
Por vezes, sinto-me mal com meus privilégios. Fico ainda
pior quando me perdoo com as generosas gorjetas.
Me dei conta que estou vestindo 8 camisas e 8 cuecas mais
confortáveis para usar em casa. No oitavo dia ponho tudo na
máquina, estendo no varal, passo as 7 mudas da semana, e
inicio um novo ciclo.
Preciso comprar 14 panos de prato.
Minhas sandálias maneiras, sapatos maneiros e tênis de
corrida envelhecem por desuso. A sapateira me lembra o
quanto eu era vaidoso antes da pandemia.
Minhas camisas, calças e bermudas preenchem minhas
gavetas e cabideiros. Elas também me lembram o quanto eu
era mais vaidoso antes da pandemia.
De dez em dez dias uso camisa e bermuda destas manei-
ras para ir à rua pegar meu menino. Das últimas vezes fui
mais largado, confesso.
A mesma calça é usada em reuniões de trabalho, palestras
e bancas da pós-graduação. São os dias de videoconferência
151
em que visto camisa de botão. E também a calça (já soube de
cuecas ou calcinhas de bolinhas entrando na casa dos parti-
cipantes pelas telas de smartphones, tablets e notebooks).
Comecei a usar mais um headphone maneiro que com-
prei, tem me sido bem útil.
Sinto muita falta das mesas do Vila Rica na calçada. De-
las contemplava o Outeiro da Glória e outras belezas do meu
bairro, logo após minha feira dominical.
Concentrei minhas doações em cestas básicas e alimenta-
ção das pessoas que moram nas ruas.
Amar... Eita, caralho.... Beijar tornou-se mais perigoso
que trepar! A galera sobe pelas paredes.
Haja punheta, siririca, nudes
pornô e o escambau.
O tesão pode ser aliviado enquanto o marido toma conta
das crianças. Quando a esposa discute metas na reunião por
videoconferência (porra, a bebê acordou, bem na hora!). E
a galera solo masturba-se sem interrupções ou mentiras de
que está cagando ou tomando banho.
Sexo virtual rola com a namorada que se cura da COVID-19,
ou com o/a amante das saudosas e insuspeitáveis tardes de
segunda-feira.
Aquelas doze horas que afastavam os casais de segunda a
sexta eram fundamentais para a harmonia do lar. Verem-se
de verdade é o que de pior pode acontecer nessa quarentena.
Há muitas mulheres sofrendo ou morrendo nas mãos do
covarde-mimado-príncipe-machão-de-merda. Este tipo de
papai leva terror às crias...
Tem sido difícil me concentrar no trabalho depois do quin-
quagésimo quarto dia. Teimo, me forço e sai alguma coisa.
152
Diminuí meus posicionamentos nas redes sociais. Às ve-
zes elevo...
Estou procurando outras páginas na internet que não os
portais.
Tossi e espirrei outro dia, mas não perdi o olfato e o pala-
dar. Seguimos.
Nas últimas setenta e duas noites, às 20h30, o bairro da
Glória grita “Fora Bolsonaro”, “miliciano”, “fascista”, “as-
sassino”, “racista”, “genocida”, “machista”.
Senti falta de Leonel Brizola e Lula. Eram estadistas e de-
mocratas. Sempre votei à esquerda. Honro os ensinamentos
do meu pai Severino e meu tio Pedro, dois pretos comunistas.
Me pego às vezes concordando com textos de comentaris-
tas que contribuíram para o golpe da Dilma e para os quais
sou pura oposição. Essa é a maior prova de que a coisa tá tão
ruim, mas tão ruim, que opostos estão se ouvindo para frear
a extrema direita.
Os apoiadores do capitão estão majoritariamente entre
as madames e empresários emergentes verde e amarelo,
covardes lutadores de artes marciais, policiais militares e
dos bispos milionários.
Alquimistas, chegaram a uma fórmula revolucionária e
extradição, estupro de feministas, assassinato de jovens ne-
gros e bomba nas favelas.
pelo diabo no inferno ou vão pra Cuba”.
153
A unidade que os extremistas desejam une a idiotice à
insanidade!
Aêêêêêê pessoal da “gente de bem”, se liguem nessas:
-
Quando vão tirar do comando desta nave chamada Brasil,
este homem branco de olhos azuis virulento, vil e violento?
155
É possível pensar a quarentena dos mais diversos
pontos de vista. Seja como privilégio de grupos ou como
direito negado aos subalternizados. De certo, estruturas de
dominação, exclusão, negação, silenciamentos, patriarcado
As mazelas sociais, as feridas da colonialidade, que embora
nunca tenham sido ocultadas, desvelaram suas infecções
jamais tratadas.
Essas marcas da modernidade são assinaturas gravadas
na identidade da civilização brasileira. Devemos compreen-
der como colonialidade, a estrutura do poder que permanece
em uma sociedade, mesmo após a ruptura com o sistema co-
lonial moderno. É o que constrói, legítima e faz a manuten-
ção das variadas formas de opressão experimentadas por
tod@s nós hoje, ao sul do mundo.
Daqui, de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de
Janeiro, observar ao mesmo tempo que se experimenta o
apodrecimento da estrutura social, não é apenas comum, é
inevitável. É nesse contexto que produzo meu grito. A arte
é essa ferramenta de voz que tenho usado para produzir
um discurso autônomo sobre o lugar social onde estou alo-
cado. Esse processo artístico não segue uma lógica técnica/
156
mecânica para execução. Eventualmente posso teorizar so-
bre algo e buscar dar cabo de uma estética para o pensamen-
to, ou, posso começar a fazer algo sem muito direcionamen-
to e desenvolver a teoria a partir da prática.
O trabalho apresentado aqui, ao qual chamei Obra embar-
gada (2020), é essa análise do que foi construído de forma
abrupta, sem consentimento, através do genocídio, do estu-
pro, da escravidão, da tortura. Ainda assim, essa construção
seguiu e segue negando a reparação ao terreno. Portanto,
essa meia-água segue inacabada, exposta ao tempo. Se tor-
nando cada vez mais visível a fragilidade dessas paredes
sem embolso, esfarelando a cada chuva, que são na verdade
lágrimas da memória de um passado em aberto.
158
O vírus e o imprevisível: notas na epidemia
Henrique Espada Lima
Ilha de Santa Catarina, 21 de junho de 2020
159
If you want to make god laugh,
tell him about your plans.
Apócrifo (ou W. Allen)
24 de abril, passando um pouco o meio-dia e meia, eu pe-
dalava resolutamente pela ciclovia em direção ao ritual se-
manal que procurava seguir desde que havia iniciado a qua-
rentena há mais de um mês. Respirando com força através
da máscara de pano que subia e descia pela cara, olhava o
em Florianópolis como resposta à ameaça da epidemia. Es-
tava plenamente convencido que a minha escapada respondia
aos protocolos de segurança que havia me imposto desde
para uma temporada longa. O plano era simples: aproveito
a oportunidade para sair de casa, sentir o ar da rua, visitar
a minha mãe septuagenária e obstinadamente trancada em
casa desde o primeiro dia do lockdown, e mandar um beijo à
distância. Sem um próprio, iria dirigir o carro que ela guar-
da na garagem do prédio, e visitaria o supermercado para
as minhas compras da semana e as dela. Um arranjo limpo,
seguro, de risco controlado. Chegando perto do cruzamento,
160
vendo os carros parados no semáforo, viro rapidamente o
guidão da bicicleta e tomo a faixa de pedestres para atra-
vessar a avenida. Nesse momento vejo meu antagonista en-
quanto aperto furiosamente os freios: uma moto preta com
sinal vermelho na via paralela era rápida demais para que
pudesse evitar a colisão comigo.
***
A constatação da indiferença do universo diante das nos-
sas vidas individuais se instala em geral em nossas cons-
ciências na lenta decantação operada pela passagem do
tempo, que nos apresenta, nas sucessivas versões de nós
mesmos, os resultados depurados de uma história que sabe-
de reconhecer nossa autoria. Mais raramente, ainda que de
modo mais dramático, a irrupção do imprevisível faz pó das
nossas ilusões de controle de um só golpe, revelando a fra-
gilidade dos planos cujo cultivo incerto nunca deixa de nos
parecer parte estruturante da nossa sanidade psíquica.
Essa consciência da indeterminação e do imprevisível
como substância da vida não nos impede, apesar de tudo, de
procurar agir sobre o futuro e moldá-lo às nossas expecta-
tivas. Em algum lugar entre o empenho de sermos protago-
nistas de nossas vidas, e a simples consciência de que somos
peças de um jogo cujas regras, se existem, não conhecemos,
deve estar o segredo que nos faz insistir no esforço de dar
sentido ao que talvez não tenha.
É verdade que isso tudo racionaliza de modo petulante
essas verdades básicas presentes tanto na minha vida,
na sua, e na de todos. Como historiador, a ironia do acaso
161
e da indeterminação nunca estão tão distantes que não
afetem a busca rotineira pelo padrão, pela continuidade, e a
de suas transformações, onde essas vidas todas acontecem.
Vivendo entre o Brasil e os Estados Unidos nos últimos
anos, e observando o que vai pelo mundo todos os dias, para
mim se impõe a sensação de que um padrão assustador
emerge da proliferação de sujeitos, discursos, imagens, lu-
gares comuns, que parece impossível de conter. Esses eco-
-
algoritmos de pesquisa que, desapaixonadamente, reprodu-
que é muito mais que isso, com dimensões sócio-políticas e
econômicas, assim como existenciais, que pretendem rees-
crever não só o presente e o futuro, mas também o passado).
A destruição do debate público é tanto um efeito colateral
disso, quanto um de seus primeiros impulsionadores. Como
resultado mais palpável, para além da cacofonia reinante,
“conservadores”, ainda que dispostos a destruir tudo para
“antigo”. Aquilo que querem “conservar”, entretanto, seja a
pureza do passado, os valores “ocidentais”, o retorno a uma
época em que “éramos grandes” – parece existir apenas nos
seus sonhos, que se confundem com o pesadelo de todos os
demais. Trumps e Bolsonaros são os ventríloquos desses de-
sejos plasmados que, não por acaso, parecem assumir com
orgulho aquele impulso que assombra todas as “culturas”, e
que Freud batizou de “pulsão de morte”.
pensa com a história reencontra a cada passo os ecos de
162
movimentos anteriores, de processos e discursos cuja se-
melhança com outros do passado nos leva imediatamente
a nos interrogarmos se já não vimos isso antes: A reação
aos efeitos desagregadores do mercado desregulado cuja
Totalitarismo?
Nesse movimento pendular, a história mais uma vez apa-
rece como uma força estranha; ainda que resultado da nossa
ação, nela não conseguimos nos reconhecer. Serve para lem-
brar que mesmo a minha história pessoal não se encontra
toda nas minhas mãos: somos os sujeitos das histórias uns
dos outros. Lembrando Sartre: a história é uma obra huma-
na sem autor. Se alguma mão a escreve, não a conhecemos.
Se tem roteiro, não sabemos qual é, e permanecemos cegos
observação dos nossos atos cotidianos: como o participan-
te otimista das jornadas de 2013, que descobriu que havia
sido protagonista de um movimento muito diferente daque-
le que imaginava ter participado: suas forças drenadas por
um impulso que não era seu. Os exemplos são muitos, e a
história recente do país está cheia deles. Tivemos golpe, as-
censão de um líder ridículo tornado força irresistível pela
parece ter nascido enquanto olhávamos para o outro lado:
não é mais uma democracia, sem ter se tornado completa-
mente o seu contrário. Um impasse impossível de resolver.
O futuro, como o passado, mais uma vez marcados pelo en-
trelaçamento entre a regularidade sistemática e a irrupção
abrupta do inesperado. Nessa peça infame de atores ridícu-
los, o restante de nós parece às vezes contentar-se em parti-
cipar do coro de Cassandras, ou sentar na plateia, aplaudin-
do ou chorando.
163
Mas, se havia algum plano em tudo isso dirigindo as regu-
laridades, este já não parece tão seguro de si. Em um mer-
cado em Wuhan, meses atrás, o vírus hospedado em algum
animal infeliz esperando o abate saltou para um novo hos-
pedeiro igualmente inconsciente do papel que iria ocupar no
grande quadro das coisas. Incapaz de viver e reproduzir-se
sem predar as células de outro organismo, e seguindo cega-
mente o caminho inteiramente acidental trilhado por tantos
outros como ele, o vírus que será batizado de COVID19 se-
guiu seu rumo, multiplicando-se e sendo transmitido pelos
gestos descuidados de outros tantos novos hospedeiros, e
tão ignorante da sua letalidade quanto às vezes os humanos
irão transformar a vida de milhões de pessoas nos meses
seguintes.
O advento da pandemia sublinha a nossa impossibilidade
de controlar algumas das variáveis centrais a moldar os ru-
mos da nossa existência individual e coletiva. Os epidemio-
logistas sabem disso mais que ninguém, e constroem seus
modelos de risco tentando abarcar tanto a rigorosa regu-
laridade estatística do espalhamento da doença, quanto os
resultados imprevisíveis das decisões de uma miríade de in-
divíduos que agem no dia a dia com as informações mais ou
menos fragmentadas que possuem sobre aquilo que os amea-
ça. Lockdowns, quarentenas, distanciamento social, contact
tracing, e tantas outras respostas coletivas convivem tan-
to com o acaso das comorbidades de cada um, quanto com
as pequenas decisões individuais: ir ao mercado, usar uma
máscara, encontrar alguém. O resultado da interação dessas
operações, grandes e pequenas, vão mais tarde espelhar-se
nas estatísticas inexoráveis: os números de contaminações,
o número de mortes.
164
-
pelha esse entrelaçamento entre as estruturas, os processos
gerais e anônimos, e as decisões mais ou menos conscientes,
mas indeterminadas, de cada um. O entrelaçamento entre a
força inexorável das coisas e a busca constante de dar sen-
tido, real e simbólico, às nossas ações e projetos continua a
ser o estranho material que molda a realidade humana e as
suas transformações.
Em meio à pandemia, a enésima morte de um homem
negro sob a custódia da polícia poderia parecer à primeira
vista apenas a reapresentação de um evento que acontece
com extraordinária e terrível regularidade. Os oito minutos
e quarenta e seis segundos que se passaram até que George
Floyd perdesse a vida sob o joelho de Derek Chauvin planta-
do em seu pescoço talvez não devessem surpreender. Como
parece não surpreender a extraordinária indiferença com
que a morte do menino João Pedro pelas balas da polícia no
Rio de Janeiro apareceu e desapareceu dos jornais naqueles
mesmos dias de maio.
E, entretanto, nos Estados Unidos, no Brasil e em muitos
outros lugares do mundo, a reação que subtraiu aquele even-
to em particular da massa ordinária e repetida de violência
contra a gente preta e vulnerável se converteu em um mo-
vimento de massas que rivaliza com as grandes marchas
pelos direitos civis dos anos sessenta. Como a epidemia, o
alcance desses movimentos, e sua capacidade de colocar em
teste o pouco de esperança que temos para tomarmos algum
controle sobre o nosso próprio futuro, são temas que per-
manecem em aberto. Diferente da epidemia, contudo, esses
movimentos não são nem fruto do acaso, nem são protago-
nizados anonimamente por um organismo sem consciência
da sua existência.
165
Com surpresa, pandemia e a reação coletiva à violência
racista passam a ocupar o centro das preocupações daque-
les governantes cuja hybris e o descomedimento insolente
teimaram em ignorar aquilo que supera as suas próprias
vontades e desejos individuais. Trumps e Bolsonaros pare-
cem perdidos diante daquilo que não conseguem confundir
na cortina de fumaça da sua rede de mentiras e promessas
vazias, ainda que eles e seus acólitos não deixem de tentar. O
inimigo aparece onde menos se espera. E os adversários de
primeira hora – nós – antes perdidos e batendo a cabeça uns
contra os outros, subitamente vemos descortinar-se uma
oportunidade. O fato de que não sabemos se podemos fazer
algo com ela não deveria nos impedir de tentar.
***
Deitado no asfalto, senti minha perna esquerda em uma
posição impossível. A fratura exposta e a poça de sangue so-
nas caras desconcertadas dos que paravam para ajudar. O
-
car bem tentava me confortar enquanto eu só pensava no ri-
dículo da máscara de pano pendurada no seu queixo. Todo o
meu cuidadoso planejamento epidemiológico evaporado por
um golpe do azar. Desde o chão, eu contemplava a janela do
apartamento da minha mãe, e sentia os oito mil quilômetros
que me separavam da minha companheira, que acabava de
se recuperar de semanas lutando contra o vírus em casa,
longe de mim. Ela não sabia ainda o que estava por vir.
A ausência de dor me surpreendia, bem como a estranha
calma com que eu conversava com o sujeito que havia me
atropelado, com o homem da máscara caída, com o outro
166
que casualmente parou e sabia fazer um perfeito torniquete
que estancou minha hemorragia. A mesma estranha calma
conversando com o bombeiro que recolheu minha perna e a
devolveu a uma posição segura, e tudo o mais que mal consi-
go lembrar naquele dia.
A pandemia, e a fundamental incapacidade de controlar
as consequências de cada ato em nossas vidas: ambos lem-
bram que a incerteza e a vulnerabilidade essencial de todos
nós são os únicos traços humanos universais. Verdade que
as vulnerabilidades são desiguais, como não deixam de lem-
brar meus companheiros involuntários de infortúnio que es-
público, esperando para saber o que vem pela frente. Olhan-
do agora para a minha perna esquerda, cujos fragmentos
estão mantidos juntos por um espantoso aparato metálico
com resultados imprevisíveis, os sentimentos mistos de es-
perança e exasperação, conformismo e vontade de agir, eco-
am de modo muito pessoal dilemas que não são só meus.
169
A pilha de tons vermelhos é um amálgama de pedaços
de formas e tamanhos distintos, os quais, embora coloca-
dos de maneira aleatória, transmitem uma sensação de di-
recionalidade geral e crescimento medido. O trabalho traz
para casa meu mal-estar, uma impressão de inexorabilidade
misturada com uma sensação de caos absoluto, o reviver de
uma história não muito distante. O caos nunca está muito
longe quando pilhas ameaçadoras aparecem.
The red-hued heap is an amalgamation of bits of distinct
shapes and sizes, which, though haphazardly placed,
convey a sense of general directionality and measured
growth. The work brings home my malaise, an impression
of inexorability mixed with a sense of absolute chaos, the
reliving of a not-too-distant history. Havoc is never very far
when ominous piles make their appearance.
171
-
mos isolados em casa senti um alívio enorme por não ter
que viver essa experiência fora de casa, fora do Rio de
Janeiro, fora do Brasil. Eu vivi no exterior – na França e
-
tos amigos. Ainda que a situação precária de um país com
-
governo de Bolsonaro, tenha tornado o Brasil um dos pio-
res lugares do mundo para passar essa pandemia, era aqui
que eu queria estar.
E encontrei nas palavras da escritora polonesa Olga
Tokarczuk, ganhadora do Prêmio Nobel de 2018, a com-
preensão mais profunda dos meus sentimentos nesse mo-
mento. Tocarzuk diz: “O medo da doença (...) nos lembrou
da existência do ninho de que somos originários e onde nos
sentimos em segurança. E, numa situação dessas, sempre
procuraremos voltar para casa.” E eu, curiosamente, havia
voltado a morar na casa que era dos meus pais. Estava no
“meu” país e também na casa da minha infância onde me
sentia protegida pelos que cuidaram de mim pequena. Mes-
mo eles não estando mais presentes, há algo da sua presen-
ça protetora que permanece.
173
Os livros que não li
-
ção muito prazerosa. Agora eu teria tempo, tempo para ler
literatura. Mas eu não li. Se por um lado eu teria mais tempo
livre, esse tempo não se transformou em tempo de leitura. E
isso me surpreendeu e perturbou. O que estava acontecendo
comigo que sou amante dos livros e da literatura, que dou
aula de história do livro no Brasil, que escrevo livros e ago-
-
guntava o que tinha se passado comigo e não encontrava a
resposta.
E eis que um dia, lendo um post no Facebook de uma ami-
ga, encontro a resposta. Ela veio da psicanalista argentina
Alexandra Kohan. E me confortou e abriu uma janela para
interpretar essa impossibilidade – momentânea, espero – de
não conseguir ler literatura. Kohan diz “que em um primeiro
momento foi ativada uma fantasia lindíssima de dispormos
de tempo para ler, mas rapidamente entendemos que para
ler não precisamos somente de tempo, mas de toda uma dis-
posição que acho, tem a ver com silenciar o mundo, silen-
ciar suas demandas e habitar uma solidão como refúgio, nos
asilarmos do mundo enquanto o mundo segue funcionando.
174
Hoje é o contrário: o mundo nos silenciou, o mundo se de-
teve e nós continuamos pedalando no ar. Somos muitos os
que não podemos ler por que é insuportável subtrair o pouco
que há “fora” da gente. Estamos asilados literalmente, não
sei como se poderia ler nestas circunstâncias se ler implica,
além de nos estranharmos, estranhar a realidade. Agora é a
realidade que se estranhou e nos estranhou.”
-
tranhar e nós a ela – para que a literatura volte a ser minha
companheira de vida.
(Os livros que eu não li)
176
Essa é uma série de desenhos em lápis e aquarela. Cha-
ma-se SER ZEN. Tratam-se de 12 ilustrações feitas por mim
em junho de 2020, durante a quarentena. As publiquei no
meu Instagram, onde algumas pessoas viram e se sentiram
bem com o tema e as mensagens, a despeito do amadorismo
-
ciantes, numa linguagem que só embarquei por conselho do
meu terapeuta, nos meus 35 anos.
O tema é: como aplicar alguns princípios encontrados em
-
tidiana, prática. Estudos sobre como manter a cabeça boa e
suportar a loucura de viver em meio a uma pandemia, espe-
cialmente no Brasil. Não são conselhos. Nem sermões. São
fato manifestos em pequenas ações cotidianas que não de-
pendem de nada além da boa disposição para consigo.
O caminho do zen é o caminho do agora. De como ter uma
vida boa agora, como você é, nas condições que você vive. É
um caminho de simplicidade, respiração, disciplina e amor
para com você e os outros. De muitas formas esses princí-
pios são cordas que me resgatam do fundo do poço todos os
177
dias. Às -
las, que agora estão em quadros na parede ao lado da minha
cama, para me lembrar de lembrar.
PS: Cada uma das aquarelas tem um título, e sem esse tí-
-
cípio do zen. Os nomes estão nas gravuras aqui publicadas.
Reescrevo:
1 – Faça uma coisa de cada vez.
2 – Faça completamente.
3 – Faça no tempo certo e deliberadamente.
4 – Faça menos.
5 – Ponha espaço entre as coisas.
6 – Desenvolva rituais.
7 – Devote tempo para o “sentar” (zazen).
8 – Designe tempo para certas coisas.
9 – Sorria e sirva aos outros.
10 – Cozinhar e limpar são formas de meditar.
11 – Conheça as necessidades reais e as inventadas.
12 – Viva com simplicidade.
185
passa pela descrença ao modelo vigente de capitalismo. Pas-
sa pelo desencanto a uma ideia de futuro sem mudanças es-
truturais e universais. E a esse formato de distribuição de
renda aplicado – e replicado – em todos os ambientes econô-
do momento passa pela pandemia da usura que nos carrega
há tempos. Acredito que essa pandemia idosa mais do que
importa neste momento. Com seus óculos, podemos enxer-
gar esse outro rebento: o tal corona sem fronteiras – e nos-
sos dias de cativeiro.
sempre adiadas de uma nova ordem mundial. Parece um
lugar comum, pois é algo sempre desejado. Mas não tenho
como meta impossível. A pandemia traz algo quase didático:
o que pensávamos distante pode ser conquistado. Mesmo
que essa conquista seja realizada de forma dramática.
Penso como termos tão antigos, como socialismo, comu-
nismo, capitalismo, democracia são hoje ainda pouco com-
preendidos – ou interpretados ao bel prazer do consumidor.
Penso também nesse carimbo de “novo normal”.
186
em busca da conciliação dos contrários não é normal. Sinto
a pandemia de ações nefastas.
A capacidade de se adaptar sempre existiu. A capacidade
de se reinventar, a capacidade de se iludir, a capacidade de
inventar uma saída e fugir da maestria da inação.
É essa a experiência humana. Sempre marcada pelas
tentativas. E pelos erros.
......................................................................................................
......................................................................................................
Estamos no fato ou na imaginação? Seguimos uma reta
certa ou a apologia da contramão? Isso parece poesia. Ou não.
A letra é dura, dúbia, incerta. A letra é escura e a página
-
ta, numa dança da destra e da canhota – e da rima.
Tudo é tão cruel como uma anedota. Nada que não pos-
sa ter volta. Mas não enxergo volta certa. Nada será como
antes. Aquilo – como você conhecia! – não mais vai existir.
É hora de nos reinventarmos como sociedade, como povo,
como gente, como comunidade.
.......................................................................................................
......................................................................................................
Meus dias de solitária me faz pensar na socialização do risco
– trazido pela pandemia –como algo positivo, democrático.
Vi de antemão a charge da Laerte: o planeta no varal, se-
cando, e a mensagem “lavou, tá novo”. O problema é como
enxugar esse mundo.
A ideia de que “nossa espécie” precisava de um stop tam-
correria em direção ao abismo.
-
veis novos rumos.
187
As teorias da conspiração também emergem como algo
crível. Mas não quero falar sobre elas, já que estamos cansa-
dos de teorias (e aqui, agora, elas pouco nos servem).
Há tempos escrevi uma letra para um amigo músico que
dizia o seguinte:
“Os edifícios inteligentes de Nova York não sabem/o pis-
ca-pisca da pista de dança entende/o cheiro bom que o suor
acende/no gravado – ao vivo! – pelo dito e não dito da gente”
Isso me faz lembrar, paradoxalmente, das mortes provo-
cadas pelo vírus e das lives.
live.
O self-service vai acabar, mas as lives não.
Em diversos setores da economia e da sociedade essa pan-
demia deixará marcas. Marcas que serão perenes durante o
século XXI.
......................................................................................................
......................................................................................................
Agora, vamos ao trivial: todo dia, aqui no bairro da Serra,
em Belo Horizonte, recebo minha marmitex. Meu cachorro
pede pra sair um pouco. Somente o colocar da máscara no
rosto, para ele, meu cachorro, já é um sinal de saída ao mun-
do exterior. O que será que meu cachorro pensa?
Meus amigos próximos sabem que eu sempre digo sobre
uma revolução que estamos sofrendo, e nem mesmo per-
cebemos. Uma nova ordem de mundo que passa pela peda-
gogia, pela comunicação, pelas relações de emprego e pelo
comportamento de forma generalizada. Acredito que essa
pandemia realçou a ideia de revolução que eu tanto dizia.
188
A torcida é por uma mudança. Como brasileiro, vejo meu
país se deteriorando. Penso na vacina e em outro modelo de
-
ente. Amanhã tenho que lavar minhas máscaras e esperar
a marmitex. Meu cachorro acredita num novo mundo. Mas
eu não sou cachorro não.
190
Rifa de cavaquinho, rifa de bateria, os anúncios são mui-
tos. Outro dia, Luís Filipe de Lima, violonista, arranjador,
produtor, um cara que já acompanhou meio mundo da MPB,
colocou seu violão à venda. A comoção foi parar na primeira
página de um jornalão e desencadeou um grande movimen-
to de solidariedade. Mas haja solidariedade, pois as histórias
se multiplicam. Nelson Sargento, patrimônio vivo da nossa
cultura, está recebendo doações por meio de vaquinha vir-
tual. A cantora Ângela Ro Ro pede aos fãs que depositem ao
menos dez reais em sua conta bancária. Retratos de uma
pandemia que atingiu em cheio o setor de espetáculos, co-
locando uma lente de aumento sobre a vulnerabilidade de
quem trabalha nesta área.
Mas o show tem que continuar, como já disse Aldir Blanc,
gênio da canção brasileira que infelizmente foi vencido pelo
corona. E o show continua nas redes sociais da vida. Áurea
Martins, diva, estrela (me faltam adjetivos), comandou so-
zinha, há poucos dias, seu aniversário de 80 anos no Insta-
gram, numa live cheia de convidados. Danada, se apropriou
rapidamente da tecnologia pra soltar a voz nesse momento
em que só a virtualidade é possível. As lives, aliás, têm sido
191
sufocantes. Restritos a pequenas telas, músicos vão dando
o seu recado e doando-se generosamente a um público ca-
rente de encontros – logo eles, os músicos, tão carentes de
proteção social.
Cada artista tem inventado a sua maneira de estar neste
novo cenário, como pode, como dá. Na enxurrada de shows
virtuais que tomou o país, uma cantora bravamente fez do
seu ofício um porto-seguro para os fãs. Teresa Cristina, já
apelidada de “rainha das lives”, toda noite, religiosamente,
nos brinda com música, bate-papo e riso solto. Em seus en-
contros, abre-se uma espécie de portal para um tempo de
graça, espontaneidade, carinho, respeito, ancestralidade e
-
cado a histórias saídas de sua memória afetiva. Reverencia
seus mestres, a quem dedica lives temáticas, e abre a porta e
o coração aos novos talentos, que são chamados para canjas
(especialmente as mulheres negras, como ela). Com bastan-
te frequência, tem sido prestigiada por grandes estrelas da
MPB, que chegam inesperadamente, interagindo como ex-
pectadores, e acabam participando da sua festa, desconcer-
tando-a. As lives de Teresa são o Brasil que dá certo, apesar
de tantos pesares.
Como ela, muitos artistas e coletivos têm realizado pe-
quenas revoluções, enchendo-nos de afeto neste momento
difícil. Pois é tempo de fortalecer o sentimento de comuni-
dade, de partilha do comum – tão bombardeado pela lógica
neoliberal insana. As campanhas de doações se multiplicam
uma cadeia produtiva – roadies, técnicos de som, ilumina-
dores, produtores, prestadores dos mais variados serviços
de backstage – que está parada, sem saber quando poderá
retomar as atividades.
192
Aprovado pelo Congresso, um auxílio emergencial de
R$ 600 está sendo concedido aos trabalhadores infor-
mais durante o período de 3 meses, podendo ser prorro-
gado, a depender das lutas travadas entre o Executivo e o
Legislativo. Como um grande contingente de artistas não foi
contemplado pela medida (muitos não se enquadraram nos
critérios estabelecidos para recebimento do benefício), re-
centemente nova lei foi aprovada, esta destinada aos traba-
lhadores da cultura. Batizada de Lei Aldir Blanc, ela virá ao
socorro de artistas e de espaços culturais (teatros, circos,
cinemas, casas de shows etc.) que se encontram fechados
por tempo indeterminado. Isso se for sancionada, e espera-
mos que seja, pois uma das lições da pandemia é tão óbvia
quanto urgente: a arte é necessária, mesmo (e talvez ainda
mais) nos momentos de dor.
194
Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra
História pra Ninar Gente Grande. Samba-
enredo da Mangueira 2019
Na Casa da Teresa é onde o outro Brasil se reencontra e se
reconecta. É o Brasil dos artistas, dos cineastas, dos poetas,
dos errantes, dos professores, dos estudantes, dos sambis-
tas, dos compositores, dos trabalhadores, dos desempre-
gados, dos servidores públicos, dos movimentos sociais, dos
políticos de esquerda, é o país que valoriza a arte, a cultura,
a ciência e a educação. Neste Brasil o ódio nem ousa chegar.
Este lugar iluminado e repleto de amor, onde o obscurantis-
mo não se cria, existe sim. É o novo reduto da boemia cario-
ca, é a Casa/live da cantora e compositora Teresa Cristina, a
“Rainha das Lives Temáticas” como designou um jornal do
Rio de Janeiro, que se tornou cada vez mais íntima de seu
público, de seus seguidores, é a nossa TT.
195
Entrar cotidianamente na Casa da Teresa me reconecta
com a minha vida mundana. Me tira desse isolamento que
estamos vivendo de forma forçada e necessária há três me-
ses. Ainda mais que estou isolada dentro do isolamento, nes-
tes tempos de pandemia estou em recolhimento com minha
minha casa no bairro do Maracanã. Então, adentrar na
Casa da Teresa é um portal que me transporta para as ro-
das de samba e para o bate papo descontraído tipicamente
carioca. A sua trajetória e as suas composições rememoram
a minha própria trajetória: suburbana; apaixonada pelo
samba e pelos sambistas; frequentadora do Samba do Traba-
lhador, no Renascença, do Cacique de Ramos e da Quadra da
Vila Isabel (TT é portelense); Uerjiana raiz e engajada com
as pautas da esquerda.
Suas lives são sempre temáticas. Na maioria das vezes,
os sambas, os sambistas e os sambas de enredo são os
protagonistas, junto da própria Teresa é claro. Há também
homenagens em forma de festas virtuais para os seus amigos,
ilustres e desconhecidos, que de tanto que conversamos
cotidianamente no bate papo da live tornam-se nossos ami-
gos também. Como a live do Zequinha, seu amigo desde os
tempos do DCE da UERJ, fez com que as minhas lembranças
da minha vida como Universitária na UERJ fossem narradas
pelas lembranças compartilhadas por eles. Descer as ram-
as festas no prédio dos alunos, os bares ao redor, os shows
no Teatrão (Teatro Odylo Costa Filho) e na Concha Acústica,
aliás a primeira vez que assisti a cantora Teresa Cristina
se apresentar foi no Teatro da UERJ, quando eu ainda era
uma graduanda de História, foi quando descobri que aquela
moça, que estava começando a fazer sucesso na Lapa, havia
196
estudado Letras na mesma Universidade que eu. Na Casa da
TT, também reencontro cotidianamente meus amigos de in-
fância, amigos da UERJ, da UFF, da UFRJ e da História.
Por que essa Casa também é nossa? Porque ela é a nossa
Ágora, onde ouvimos e debatemos sobre propostas de um
projeto de Nação inclusiva, nos engajamos nas pautas de
uma educação antirracista, na luta contra a violência das
mulheres e por sua igualdade de direitos, nas pautas con-
tra LGBTfobia, entre outras demandas sociais e políticas.
Aprendemos sobre a trajetória do samba e dos sambistas
e a importância deles para a história da música popular
brasileira. A cada compositor homenageado, do mundo do
samba e fora dele, nos reencontramos com esse Brasil que
queremos. Muito diferente do Brasil que está no poder, um
país obscuro, que promove negacionismos da História, da
Ciência e da Saúde, promove a necropolítica e ainda desres-
peita o luto de seus mortos durante a maior crise sanitária
mundial.
Por este novo reduto boêmio, circulam mais que nomes,
circulam ideias do Brasil que queremos e que nos represen-
tam. Estas ideias foram reverberadas na fala de cada indi-
víduo político que adentrou na Casa da Teresa. Lula, Freixo,
Boulos, Chico Alencar, Haddad, entre outros. Por duas ve-
zes, tentaram silenciar a reverberação dessas falas, com o
desaparecimento de duas destas gravações no Instagram,
como aconteceu nas lives em que Lula e Haddad participa-
ram, mas TT gritou e reagiu a este apagamento. A do Lula
já foi recuperada, mas até o momento em que escrevo a do
Haddad ainda não.
Haddad entrou na live de 19 de junho de 2020, foi a pri-
meira vez que compareceram mais de 13 mil pessoas na Casa
da Teresa, justamente no momento da fala do ex-candidato
197
à Presidência em oposição ao poder atual, ex-Prefeito de São
Paulo e Ministro da Educação no governo Lula. Foi uma noi-
te especial, não somente pela presença e musicalidade de
Haddad, mas porque foi uma noite para homenagear o ani-
versariante Chico Buarque de Holanda, assim como seu pai
Sérgio, um ícone da História Nacional, por sua arte engaja-
da, suas composições de protesto e de crítica social, por sua
luta pela Democracia contra a Ditadura, por sua luta perma-
nente pela Democracia. A arte de Chico Buarque é tão gran-
diosa que não coube em um único dia, e se estendeu para a
noite seguinte, seus amigos e familiares participaram emo-
cionados, assim como ocorreu na live em homenagem ao seu
amigo e também companheiro na luta pela Democracia,
Gilberto Gil.
Esses reencontros que Teresa promove em sua Casa/live
é também um tempo para o afago, o acalanto, o aconchego,
-
brar que não estamos sozinhos na luta por um Brasil plural,
diverso, inclusivo, democrático e amoroso. Como diz o sam-
ba enredo da Mangueira de 2019, uma História pra Ninar
Gente Grande, “é na luta que a gente se encontra”, eu ouso
atualizar este já clássico samba, com mais um verso: “é na
Casa da Teresa que a gente se reencontra”.
199
Nas primeiras semanas dentro de casa comigo mesmo,
ou por outra, disse a mim mesmo um dia que, se não enten-
dia muito bem como ler poemas, provavelmente não saberia
de que deveria resolver coisas na quarentena, mesmo en-
tendendo racionalmente que este poderia ser um momento
justamente de suspensão da correria, de uma normalidade
-
to de fazer essa transição, de buscar outras formas de criar
tempos dentro do dia, de cuidar da escrita e de escrever.
uma amiga querida, Eliza Caetano, poeta de Belo Horizonte
que promove essa atividade presencialmente e que, impos-
sibilitada de fazê-la no mesmo formato, resolveu convidar
amigas e amigos para testar uma live de poemas. Bom, acho
que era mais uma reunião para lermos poemas uns dos ou-
para a primeira conversa, exibindo a tiracolo na tela uma
crônica sobre o som da baleia azul: turbilhonar. Tentei, ali
no meio de um grupo de poetas já tarimbadas e tarimbados,
200
transformar minha crônica em algo que seria um poema.
Havia muitos artigos, advérbios, coisas em excesso no texto.
Como agora talvez. Vejam esse talvez. Não seria necessá-
rio. Rendeu três frases para dizer que ele poderia não estar
aqui. Mas já está. Quatro frases, tirando esta.
uma pequena “ata” que criei com as frases derivadas dos
problemas de conexão e de encaixe dos atrasos de fala, pro-
vocados pelas interfaces e mediações que cada um utilizava
para dar sua cara à tapa na conversa. Me candidatei a estar
de casa. Olhando para a escrivaninha vi um livro encontra-
do numa das arrumações que havia feito já há um tempo,
em ver aquele livro, que nunca li, e o dia em que o encontrei
no meio de outros que havia herdado da biblioteca da minha
mãe, quando ela faleceu. Duas histórias vieram junto com
esse encontro, as duas relacionadas aos meus pais. Da pri-
meira vez que encontrei o livro, estive a ponto de jogá-lo
fora, havia um incômodo com uma coisa qualquer em “O pe-
queno príncipe”. Mas resolvi abrir o livro, que já não tinha
capa. E encontrei logo na primeira página uma dedicatória
que meu pai havia feito para a minha mãe.
201
Mariza
Este livro o autor o dedicou a Léon Werth, quando
ele era pequeno. Fosse eu o autor do livro, meu
amor, eu o dedicaria a você, que é a única pessoa
grande que sabe entender esta outra triste pessoa
grande que sou eu Pedro.
Me intrigou aquele “triste” em meio ao texto. Então meu
pai havia sido um homem triste? Me veio à lembrança, en-
tão, uma outra noite em que, em frente a uma estante cheia
de livros, conversando com minha mãe, quando eu tinha 28
ou 29 anos, perguntei a ela: “Mãe, e esses livros aqui que
estão dentro desses plásticos, são coleções completas, mas
ninguém nunca tirou dos plásticos, por que?”. Minha mãe
202
jogava paciência no computador, tomando uma cerveja.
Olhou para a estante, para os livros e, como quem bate a
são seus! Seu pai comprou para você abrir quando tivesse
vinte e um anos.”
Minha mãe acabou se esquecendo de me dizer isso. Na-
quele momento, não tinha mais sentido abrir qualquer dis-
cussão, eu simplesmente falei: “Mas então eu vou abrir os
plásticos, puxa vida.” Eram encadernações em papel bíblia,
a coleção completa da obra de três autores: Machado de
Assis, Graciliano Ramos e Dostoiévski. Fiquei muito impres-
sionado com o que via na minha frente. Já tinha lido algu-
mas obras de Machado e também de Graciliano, mas em ou-
tros livros, para o vestibular, ou para aulas no colégio. Mas
nunca havia chegado perto daquelas encadernações. Ali co-
mecei a descobrir então meu pai, entre os vermes de “Me-
mórias Póstumas de Brás Cubas”, vendo os olhos da cachor-
ra Baleia em meio às vidas secas e complexas que fazem do
meu pai, hoje, não mais um homem triste ao meu olhar, mas
alguém que imaginou que aos 21 anos eu teria alcançado a
maioridade da leitura, e poderia então me debruçar sobre
aquelas coleções.
encontros que ainda terei com ele.
203
A primeira vez que vi
a letra do meu pai
demorou cinquenta e um anos num livro
que não cheguei a ler
Não tem a capa, nem o nome na lombada
outro dia fui arrumar os livros presos
dentro de um armário na estante
sem nome o livro apareceu
Nunca consegui
esse tempo todo
no meio de outros livros
que em nada se parecem
E só faz dois meses
Agora o livro já tem cinquenta e quatro anos e
continua
a falar alguma coisa sobre uma pessoa
que não conheci
que dedicou a outra
um livro que não escreveu
Mas é a letra do meu pai
me esperando
205
Eu sempre amei estar sozinha. O que antes era motivo de
pena dos meus amigos, hoje é motivo de inveja.
Eu brinco que me preparei a vida inteira pra uma pan-
demia. Acumuladora, exagerada nas compras, tudo que era
ruim e que agora virou exemplo.
Aprendi a viver comigo mesma, porque só eu vou me tra-
tar do jeito que mereço. E aprendi a rir de mim mesma, por-
que o humor é talvez minha melhor qualidade. E é através
dele que me mantenho viva.
Mas aí, mega de boa por aqui, com uns surtos matutinos
naturais, porque né? Eu moro no país que elegeu Bolsonaro.
Impossível não acordar chorando. Temos um presidente que
não deu até agora uma palavra de acolhimento às pessoas
que perderam pessoas queridas.
Mas então...
Tô eu aqui, no meio de um surto (dos vários que aconte-
cem), comprando tudo que não tive coragem de me dar de
presente (sim, eu sou a melhor namorada que eu poderia
ter) e cara, o interfone de Janaína não para de tocar.
Quem é Janaína? Como assim? Minha vizinha de área.
Nunca conheci, mas tenho a rotina dela ´pronta na minha
cabeça. Ela tem uma cachorra que se chama Frida. Sei
206
porque já ouvi chamar. Sei também que ela toma banho no
Janaína pede muita comida, e coisinhas pra Frida
também.
Então começou uma disputa. Quem receber mais enco-
menda ganha. E aí comecei a anotar mentalmente as entre-
gas dela, e aí teve que ir pra parede. Virou um jogo muito
disputado. Eram muitas entregas. Eu até pensei que Janaína
tinha me ouvido falar, do jogo que criei, e aí entrou nele de
propósito. Porque do nada ela começou a jogar sério e rece-
bia muitas encomendas. E aí meu humor dependia dela.
E eu criei uma relação muito louca com as entregas da
minha vizinha. E sim, ainda penso que ela pode estar lá
pensando o mesmo, e jogando o mesmo jogo, e achando que
sozinha...
E então nós seguimos, eu e Jana (porque sim, já temos
apelidos), suportando e sobrevivendo a essa pandemia,
juntas...
E assim, talvez Janaína não seja o nome dela. Um dia fui
jogar o lixo fora e tinha uma caixa lá. E eu sem óculos li algo
como Jmatinsgct. E aí surgiu Jana, Janaína.
E todo dia eu coloco uma frase como: Eu, eu, eu Jana se f...
Ou a de hoje...
E tá difícil pra todo mundo, pra alguns mais fácil de
demonstrar
209
Ato 1: Escrever para organizar as ideias.
Escrever sobre esse período de quarentena, parece sim-
ples, entretanto quatro meses nunca pareceram tão longos
e ao mesmo tempo tão curtos. Sempre escrevi, colocar tudo
numa folha de papel, ou digitar, não seria difícil. Há anos es-
crevo, escrevo e apago, escrevo e guardo, escrevo para reler.
Acho que esse é um dos melhores exercícios que existe. No
início, eu acreditei que seria fácil passar por esse período,
escuro durante um mês, por causa de uveíte, depois mais
uns três meses para me adaptar a luz, isso em pleno verão.
Então, não seria tão difícil.
Ato 2: Lembranças ajudam.
Há treze anos, um aluno me ligou para desmarcar uma
aula, ele levaria uma cachorrinha que tinham jogado na
casa dele para Suipa. Pedi que ele passasse na minha casa,
só para eu dar uma olhada na cachorrinha, morávamos na
Tijuca, então era perto. Quando ele a soltou na sala, ela logo
se escondeu debaixo do sofá, assim que eu me deitei no chão,
ela veio e permaneceu esses treze anos comigo. Lembro de
210
ligar para o Marco e pedir para ele ir para casa, tinha uma
surpresa. Odara, Odara como a música do Caetano.
Ato 3: É uma pandemia.
Início de março, o coronavírus está na Europa, a situação
da Itália é cada dia mais assustadora, na Espanha também,
a França vai fazer quarentena... o vírus vai chegar ou já che-
gou no Brasil? O primeiro caso foi em São Paulo? Bom, por
via das dúvidas, já que a doença da mãe é no pulmão, vamos
nos antecipar. No dia primeiro de março cancelo tudo, mé-
dico, dentista, passo as aulas presenciais para o Skype. Dia
10 de março, vou ao mercado e faço compras. Tudo vai dar
certo. Na sexta-feira, dia 13 de março, pago a Ana adiantado,
pagando e que ela pode voltar assim que a quarentena acabar.
Ato 4: Cotidiano.
Enquanto acreditava numa quarentena, de 15 dias, 30
dias ou até mesmo 45 dias, tentei manter o ritmo. Acordar
cedo, me sentar para trabalhar, mas as notícias começaram
a me afetar. A preocupação com os que que tinham que estar
nas ruas, com os que amamos, com os que tem problemas
-
tão nas ruas. Ficar trancada e conectada, como agir? Como
Ato 5: Odara se foi!
Quinta feira, dia 23 de abril, dia de São Jorge para uns, dia
de Ogum para outros. Fiz feijoada, tomei cerveja. Decretei
feriado, não trabalhei. Na sexta-feira, aula de manhã cedo,
Aghata, minha aluna e prima, me pergunta pela Odara.
211
Respondo feliz que ela está ótima, ela estava brincalhona
como sempre. Terminada a aula, desço para preparar o al-
moço, estranho, cadê a Odara? Chamo e ela não vem... Vou
até a sala, ela está ali, deitadinha... dormindo... Mãe, a Odara
se foi! Só de olhar, eu sabia...ela estava numa posição confor-
tável, mas não a que ela dormia.
Ato 6: Fecha as cortinas.
Eu não queria escrever, ainda mais sobre pandemia ou
Odara, mas arrumando as coisas achei um texto do Millôr,
na Revista República de maio de 2000, sobre o amor pelo
seu cão. O texto se chama: Ao Igor, com Amor. O melhor do
ser humano. Então, anteontem, Maria Alice me manda um
presente, por enquanto por mensagem. Nesse período de
pandemia, encomendou um presente para mim, uma foto da
Odara que uma amiga bordou.
A quarentena continua, desde março, conhecidos, se fo-
ram, parentes se foram, Odara se foi... E a praia está lotada.
Ainda não sei se vou adotar outra cachorrinha e acho que
nunca darei um nome tão legal.
Agora, como diria Caetano: “Deixa eu dançar pro meu cor-
Qualquer coisa que se sonhara, canto e danço que dará...
212
O constrangimento de sentir medo e
tristeza entre amigos
Claudiane Torres da Silva
Rio de Janeiro, 3 de maio de 2020
213
Eu me lembro do primeiro constrangimento em tempos
de pandemia quando manifestei meu medo num grupo de
WhatsApp de amigos. Semanas antes do isolamento social no
Rio de Janeiro, nas primeiras notícias alarmantes, ainda in-
ternacionais, eu escrevi num grupo de amigos que estava as-
sustada com o novo vírus e todos, com exceção da Márcia, dis-
seram que eu estava sendo alarmista e exagerada. Márcia
também estava assustada. Todos os homens do grupo diziam
que nós duas éramos fatalistas e estávamos equivocadas pelo
pavor que estávamos manifestando naquele momento. Que
não era para tanto. A partir dali não sentimos mais vontade
de falar daquele assunto naquele grupo. Os dias foram pas-
sando, as notícias piorando e alguns amigos com total acesso
às informações insistiam em dizer que não era para tanto.
Quando a morte já estava no país e os infectologistas já
estavam nos noticiários passei a enfrentar outros medos. O
medo do isolamento e da solidão desse momento. Uma se-
porque não me sentia tão só, mas ainda convivia diariamen-
te com o medo de pegar o vírus ou ver meus pais doentes.
O país foi sendo soterrado pelos impactos do novo vírus, da
214
péssima política de saúde para enfrentar o problema, o medo
aumentava e quando eu desejava dividir esse medo com ou-
tros amigos em redes sociais deparei-me com mais um cons-
trangimento. O silêncio. O medo era real para todos, mas ele
não era bem-vindo em determinados grupos que como num
nada que fosse negativo. Nenhuma notícia ruim, nenhuma
reclamação do que estávamos vivendo, um absurdo atrás do
outro e nenhuma novidade negativa deveria ser dita. Elas
não eram bem-vindas entre amigos. Ali só boas notícias e
good vibes poderiam entrar.
Não faz muito tempo, ainda na casa dos meus pais, ten-
tando assistir os noticiários fui impossibilitada por um car-
ro de som daqueles que fazem a festa acontecer, sabe? Era
algum vizinho num prédio próximo que estava fazendo ani-
versário e alguém contratou a festa à distância. Dos males o
menor. Pior se a festa fosse presencial e com aglomeração.
Mas o fato me marcou porque inicialmente eu não me inco-
-
tos aquele som iria cessar. Assim pensei. Mas não. A música
de batida alto astral era altíssima, uma mulher gritando o
nome do felizardo no microfone e cantando parabéns sim-
plesmente não parava. Eu pensei “mas que desrespeito com
quem tem criança pequena e quer dormir”. E a partir de en-
tão, coloquei um fone de ouvido e esperei passar. No dia se-
guinte, uma amiga publicou num grupo de WhatsApp uma
matéria jornalística que constatava o aumento do serviço
do tal carro de som em tempos de pandemia. Eu manifestei
minha reclamação e ouvi um “Relaxa! Não leva tudo muito
a sério”. Foi nesse momento que eu me dei conta dos vários
constrangimentos que passei ao simplesmente manifestar
medo, tristeza ou insatisfação entre amigos. É como se tudo
215
tivesse tão ruim que você, uma amiga, não pudesse trazer
mais uma negatividade. Seja feliz! Fale coisas boas! Não me
dê notícias ruins! Esse era o recado em vários grupos dife-
sem me sentir constrangida entre amigos.
217
Prezada Andrea, como vai?
De longe, meu afetuoso abraço!
Escrevo-lhe para partilhar experiências desse tempo di-
ferenciado em que vivemos, bem como no intuito de saber
suas notícias e ideias. Como sabes sou inquieto e gosto de
provocar, assim aproveito estas linhas para lançar algumas
indagações que me seguem por estes dias.
-
xo de isolamento. A distância por aqui pareceu-me sempre
uma rotina em vários aspectos. Todavia, como “tudo muda
o tempo todo no mundo” penso que a permanência aqui,
nesse contexto atual, tem lá suas vantagens. Isolado, reti-
rado, guardado num espaço que sempre me representou um
“exílio”, por incrível que parece está me ajudando a belos
encontros comigo mesmo, e mesmo à distância, com outras
pessoas.
Numa primeira fase – que chamo de “provocações de ou-
trora” – foi um momento de muita informação, desencanto,
paralisia. Tentei retomar leituras, começar algo novo e não
conseguia. Em meio a pulverização de informações, me vem
à lembrança da minha psiquiatra em insistir que deveria
retomar o uso da Ritalina. Ao amanhecer, estava eu com a
218
“caixa-mítica” – seria a de pandora? Indaguei! – contendo
algo que poderia ajudar-me a “despertar”.
Em poucos dias, amiga, com a ajudinha da química que
logo reage nas comunicações cerebrais, e, também algumas
-
ra a fase 2 que denomino de “provocações do agora”. As-
sim, consegui aos poucos mudar velhos hábitos – e como são
difíceis de mudar – diminui de tempo junto a TV e celular,
mudanças com alimentação, retorno a leituras e, até, arris-
car alguns exercícios.
Embora com a constância desses “pequenos avanços”, os
quais ouso denominar de “cuidados de si” a la Foucault,
tenho pensando na inconstância desse presente, nesse tem-
po aberto a todas as possibilidades... Aí vem indagações/
provocações: Será que vou manter esse ritmo de “novos”
hábitos? E como não pensar também; vamos todos mudar
de hábitos? Quais? E aqueles velhos hábitos de consumo?
detalhes de cada encontro? Os afetos? As sensibilidades?
Ou pensar assim são apenas devaneios de uma sonhador?
Será que tudo passará e voltaremos as mesmas relações?
As mesmas fotos clichês de viagens, comida, academias? ...
Será que vamos regressar “àquele normal”?
Amiga, essas são, portanto, o que nomeio de “provoca-
ções do porvir” já que nos resta apenas a ESPERANÇA.
Sim. Esse conceito cristão é o que temos de melhor para
vislumbrar um futuro possível, e quiçá até diferente daque-
le “velho passado”. SABER ESPERAR! Chega a ser o meme
do momento, pois para um ansioso como eu, como também
para todos tornou-se imprescindível à sobrevivência, não
apenas dos nossos corpos, mas também da psique, das re-
lações pessoais, dos trabalhos, da economia... e por que não
219
das cidades, dos gestos, das sensibilidades...? Já que prefe-
rimos ser “essa metamorfose ambulante” que ter “aquela
velha opinião formada...”
São muitos dilemas!!!
Encerro por aqui no anseio desta encontrar você e seus
com saúde e alegria. E na esperança – lá vem ela mais uma
vez – de logo podermos dividir belos momentos como tantas
Abraço afetuoso no Pedro, no Antônio e no Beto.
Me escreva tão logo possa!
Do seu amigo, Eudes.
223
A mãe e o menino aguardam na sala de espera do Pronto
Atendimento. A mãe escuta a voz rouca do médico chamando
a sua senha de dentro do consultório 12. A mãe e o menino
trocam olhares e se levantam, ambos entram na pequena
sala e se acomodam nas cadeiras em frente à mesa do médi-
co que terminava os registros no prontuário do paciente da
consulta anterior.
Dispensando qualquer tipo de cerimônia de apresentação,
a mãe partiu direto ao assunto:
Sem levantar os olhos de um papel onde lançava hierógli-
fos enigmáticos o médico perguntou:
— Mas o que é que ele tem?
— Bom…, disse a mãe titubeando, isso não é fácil de dizer,
mas o senhor com certeza verá por si mesmo.
-
— Então, rapaz, o que é que você tem?
— “Não consigo dormir, nunca mais. Ando de um lado para
outro, canso o corpo enquanto a língua segrega uma saliva
exterminadora.” (Al-Berto, Horto de incêndio, p. 66)
224
— Estranho… ao mesmo tempo soa muito familiar…, disse
o médico, mais para si mesmo do que para o menino e sua
mãe.
— Está vendo, doutor, eu não disse?!, exclamou a mãe
como que tentando mostrar algo invisível com um gesto das
mãos.
— Hmm… você consegue descrever outros os sintomas
médico.
— “Eu não posso fazer isso seriamente: mas o mal que so-
fro é terrível, de viver no fundo dessa confusão malsã e in-
consciente das coisas.” (Stéphane Mallarmé, Igitur, p. 113).
— Ora, se você não pode me dizer “seriamente” o que está
sentindo, como espera que eu possa “seriamente” lhe aju-
dar? Ademais, se é assim, como devo considerar a preocu-
pação da sua mãe? Como algo não-sério, por acaso? Escute,
rapaz, você já é bem grandinho e tenho certeza que viu que
a sala onde vocês estavam esperando esta consulta está lo-
tada de gente precisando “seriamente” de atendimento. Eu
não tenho tempo para brincadeiras, disse o médico elevando
o tom da voz, sem tentar esconder os sinais de exasperação.
-
riamente” eu preciso que a senhora me forneça o maior
número de detalhes possíveis. Como é que isso começou?,
perguntou o médico virando-se para mãe, ignorando tempo-
rariamente a presença do menino.
— Pois sim, doutor, tudo começou exatamente uma se-
mana atrás. Ao que tudo indica, há uma relação direta com
um acidente ocorrido na escola. A bibliotecária da Escola de
que ela não se lembra mais exatamente qual, mas cuja loca-
lização o sistema indicava estar na estante K. Passado um
225
breve intervalo de tempo, ela escutou um grande estrondo.
Ao se aproximar da fonte do barulho ela viu que a estante
K inteira havia desabado, levando ao chão os livros entre
o 811. R797h.1997 até o 981. H722r. 1984. Debaixo daque-
la montanha de livros ela suspeitou que pudesse estar meu
-
combros o seu corpo desmaiado. Ah, sim, considerando que
o doutor pede para que eu dê o maior número de detalhes
possíveis, devo acrescentar ainda que a bibliotecária men-
cionou que dentre a montanha de livros havia um livro que
não pertencia à estante K e que pela lógica não deveria estar
ali. Trata-se, segundo a bibliotecária, de um título cataloga-
informação poderia lhe ajudar. Seja como for, assim que fui
comunicada do ocorrido, me dirigi imediatamente para Es-
cola e encontrei-o já acordado deitado na maca da enferma-
ria. Estava tão assustado que quase nem notou que eu havia
chegado. Perguntei a ele se estava sentindo dor ou qualquer
coisa diferente, ele permaneceu em silêncio por alguns ins-
tantes, depois levantou os olhos cheios de preocupação e
– com as quais se morre de rir, e há coincidências e causali-
dades com as quais se morre.” (Enrique Vila-Matas, O mal
de Montano, p. 17)
assim como o senhor está vendo. Eu sei que o certo seria ter
não houve algum tipo dano imperceptível, mas nós não te-
mos plano de saúde. O senhor sabe, essas consultas custam
uma fortuna para nós que temos que pagar pelo particular.
Além do mais, eu tinha esperanças que pudesse ser apenas
um estado temporário de choque emocional provocado pelo
acidente. Excetuando a sua aparência de assustado e sua
226
expressão perdida, eu não vi nada de diferente nele. Quis
-
lhor. Mas pelo que o senhor pode ver, doutor, parece que não
é algo tão simples assim.
— “Doutor, deixe-me morrer.” (Franz Kafka, Um médi-
co rural, p. 16), disse o rapaz impaciente, interrompendo a
conversa da mãe com o médico, puxando-o pelo jaleco para
obter a sua atenção.
— “Ora essa, estou fazendo papel de bobo aqui.” (Molière,
O doente imaginário, p. 99), respondeu o médico entre os
dentes afastando as mãos do menino e sacudindo do jale-
co as hipotéticas ameaças invisíveis deixadas por aquelas
mãos suadas e suplicantes.
Sem se dar conta dos sinais inequívocos da sua própria
alteração o médico olhava alternadamente para as mãos e
para o rosto do menino, talvez na expectativa de que o me-
ser uma peça minimamente aproveitável naquele ridículo
quebra-cabeças mental que o médico montava na tentativa
-
saiou iniciar uma frase, o médico esbugalhou os olhos na es-
perança de colher a tão aguardada revelação, mas sua boca
trêmula apenas emitiu alguns sons incompreensíveis. Frus-
trado, o médico agitava os braços enquanto dizia:
— “Vamos, continue, merda!” (Lacan, Seminário 17,
p. 192)
Aquela cena toda era inútil, o menino trazia um sem-
blante sofrível, talvez quisesse, mas não conseguia falar. Só
podemos especular, nunca saberemos. Evidentemente, al-
guém que não está conseguindo falar não será capaz de nos
esclarecer se não consegue ou simplesmente não quer falar.
227
— “É grave o seu estado? É realmente grave? (…) Há
alguma esperança?” (Lúcio Cardoso, Crônica da casa as-
sassinada, p. 78), perguntou a mãe ávida por uma resposta
já estava doente.
— “Se eu tivesse assistido mais L.A. Law e lido menos
Dostoiévski, saberia o que está acontecendo aqui.” (Philip
Roth, Operação Shylock: uma confissão, p. 156), respondeu
o médico surpreso com a própria resposta.
— “O senhor está se sentindo bem, doutor?” (Rubens
Fonseca, O seminarista, p. 24), perguntou a mãe notando
algo diferente no médico, mas não ainda em si mesma.
— “Eu me sinto um pouco estranho.” (Samuel Beckett,
Fim da partida, p. 42) -
tendendo tudo, ainda que tarde demais.
assim que descobrimos que não existe distância segura en-
tre narrador, leitor, autor e personagens capaz de evitar o
contágio do terrível mal de Guillaume Le Bé. “O futuro está
demente: estamos todos contaminados.” (Caio Fernando de
Abreu, Onde andará Dulce Veiga?, p. 79)
229
Era dia 10 de abril, Sexta-feira santa. O Rio de Janeiro ti-
nha registrado o primeiro caso de infecção por Covid-19 há
pouco mais de um mês e o primeiro óbito, de uma senhora
de 63 anos em Miguel Pereira, há cerca de três semanas. A
transmissão comunitária já era reconhecida na cidade e as
recomendações para o isolamento social e domiciliar já esta-
vam em vigor. Ninguém mais saía ou entrava na casa de quem
-
çado a quarentena e terminados os encontros, as visitas e os
abraços. Novas palavras e expressões incorporavam-se aos
poucos ao vocabulário das pessoas: coronavírus, Covid-19,
epidemiologia, higiene das mãos, pandemia; enquanto ou-
gel, papel higiênico, respiradores, leito de UTI.
Tínhamos combinado de véspera com a família – já que
não seria possível fazer festa – que amigos e parentes envia-
riam mensagens de texto ou de vídeo para cumprimentar
o patriarca, que estava completando 89 anos neste dia,
Sexta-feira da Paixão. Pai de uma grande amiga, ele era uma
pessoa bastante carismática e respeitada pelos familiares,
sempre muito comunicativo e galanteador – como minha
230
e parentes, como vinha fazendo nestes últimos dias através
do celular, para confraternizar e celebrar a vida.
Não era possível fazer visita. Nenhum tipo de visita. Nada.
Nem se você fosse médico.
Acostumada a acompanhar o pai em seus problemas de
saúde e a ter trânsito facilitado no meio hospitalar por ser
médica, seu primeiro impacto, ao deixar o pai na Casa de
Saúde no dia 31 de março, foi ter sido impedida de entrar, de
instalado e de se despedir dele. Não era a primeira vez que
o encaminhava para internação nessa Casa de Saúde, mas
era a primeira vez que acontecia um absurdo desses. Há
cerca de uma semana, desde que começaram os primeiros
sintomas respiratórios, era ela que vinha fazendo o acom-
panhamento dele em casa com o auxílio das cuidadoras,
controlando a evolução do quadro com uso do antibiótico,
providenciando o Bipap para melhorar a respiração, orien-
tando quanto às precauções de contato e uso de máscara,
pois existia a possibilidade de ser infecção pelo Covid. Agora
nada disso mais importava, ela era simplesmente ninguém,
ou melhor, era vista apenas como uma senhora acima de
sessenta anos, considerada ao mesmo tempo, contactante e
grupo de risco. De nada valia seu CRM ou o seu parentesco.
-
mento. Médicos particulares também. O movimento estava
ao caso pudessem parar para dar informações: será que con-
seguiu dormir, teve febre hoje, conseguiu se alimentar? A
conduta terapêutica estaria adequada? No entanto, a famí-
lia não deveria se preocupar, pois a equipe do serviço social
faria contato diariamente para dar notícias. Como se isso
231
bastasse. Jamais havia sentido tamanho distanciamento.
Tudo muito esquisito.
entrada do aparelho celular na UTI e seu pai então fez liga-
ções para várias pessoas, bastante animado. No dia seguinte
pela manhã, outra conversa animada por vídeo, desta vez
com a participação da namorada dele. Com a experiência
de internações anteriores, ele encarava mais essa com seu
costumeiro bom humor. Riram muito os três assim juntos
virtualmente. Não poderia esperar, porém, que uma hora
depois, chegasse a notícia que uma piora súbita na oxige-
nação tivesse obrigado a equipe a colocá-lo no respirador.
Silêncio. Que doença estranha era essa?
Fora do hospital, enquanto se passavam os dias, a preocu-
pação se voltava para as cinco pessoas que estiveram com
ele em casa, as quais aguardavam o resultado da testagem
para o Covid. Todas estavam sintomáticas, inclusive minha
amiga médica. Ela, apenas com sintomas respiratórios leves
era Covid. Entretanto, a preocupação dela estava voltada
-
zer cumprir as recomendações de isolamento social e cui-
-
vam o resultado dos exames que não chegavam nunca. Uma
das cuidadoras era idosa, a outra tinha uma criança de três
para se protegerem cada uma virava a cabeça para um lado
com uma sobrinha asmática, que foi impedida de retornar
para casa pela própria mãe, porque não havia permitido que
ela saísse, de modo que foi acolhida pela tia. Nessa ocasião
232
não se tinha ainda o resultado da PCR do paciente, mas o pa-
não deixava dúvida que ele estava com a Covid-19. Poste-
riormente, todos resultaram positivos para Covid-19.
Passados quatro dias de internação os parâmetros ven-
tilatórios mostraram sinais de recuperação e aos poucos
foram realizadas as tentativas para retirar o respirador, o
que foi conseguido em três dias, alcançando estabilização do
quadro clínico e laboratorial. Uma alegria e uma esperança
de vitória, embora estivesse ainda recebendo oxigênio por
cateter e se mantivesse sonolento. Foi então que na véspe-
ra do seu aniversário combinamos de enviar mensagens de
texto e de voz, que seriam transmitidas pelo pessoal respon-
sável por este serviço, criado excepcionalmente neste perí-
odo pela Casa de Saúde. Esse era o único canal que se fazia
possível. Tínhamos notícias de que pessoas idosas poderiam
permanecer sonolentas, num estado chamado de síndrome
do congelamento e despertar subitamente, como se tives-
sem adormecido no dia anterior. Quem sabe que ouvindo os
sentiria animado para despertar? (…)
Não houve funeral. Não era permitido aglomeração de
pessoas, nem os costumeiros abraços de conforto, nem ve-
lório. A despedida do corpo se deu de uma forma totalmente
diferente, numa tenda aberta, num lugar muito bonito no
Cemitério da Penitência, no Rio de Janeiro, com a presença
oração com a família e o corpo foi encaminhado para a cre-
mação. Mais tarde, alguns familiares se reuniram num culto
virtual com um pastor conhecido, que foi gravado e enca-
minhado para os amigos. Foi a oportunidade da família se
confraternizar e programar, para quando for possível um
233
encontro de fato, o sepultamento da urna funerária no jazi-
go da família.
De madrugada ele havia apresentado piora do quadro res-
piratório, hemorragia digestiva, voltou para o respirador,
foi transfundido e, às 10:30h da manhã, teve uma parada
cardíaca e se foi no dia do seu aniversário, uma Sexta-feira
da Paixão.
Embora minha amiga já soubesse que seu pai era portador
de várias doenças de base e que, toda vez que apresenta-
va alguma descompensação com necessidade de hospitali-
zação, havia o risco que viesse a falecer, não esperava que
fosse viver essa experiência de forma tão inusitada. O que
causou estranheza para ela não foi propriamente o fato dele
vir a óbito, mas sim o fato de não ter podido abraçá-lo na
despedida.
237
Estou dando um tempo para que o tempo retempere ou-
tro tempo. Tempestivamente, urgentemente. Assim mesmo,
reiteradamente.
outros quereres, outros pensares, outros sentires.
Ontem passei a manhã em reuniões via Skype com clien-
tes. Estou em Santa Luzia, em minha morada rural onde o
tempo difere muito de BH, lugar em que vivo a maior parte
de minhas horas.
Próximo da hora do almoço resolvi me vacinar contra a
-
te me disse que a vacinação seria interrompida para que
12:00h. Que eu voltasse às 13:30h.
Fui a minha casa e almocei. Às 13:20h estava de volta
ao PA. Na minha frente doze pessoas aguardavam o pico.
O tempo médio de aplicação foi calculado em 4 minutos. As
13:44h, tendo vacinado seis pessoas que estavam a minha
minha frente e 15 pessoas atrás), que a vacina tinha acaba-
do e que a gerente iria buscar mais.
238
Durante os cinquenta minutos que se seguiram até o retor-
-
ca e miraculógica, houve um frisson geral entre os velhinhos.
— Este é o Brasil!
— Um absurdo!
— É assim que somos tratados!
Alguns muito alterados com seus dedos em riste. Incita-
vam outros que chegavam ao PA adensando a aglomeração.
Na recepção um cartaz convidava para a temperança: “Desa-
catar servidor público no exercício de suas funções é crime”.
Saí de lá, vacinado também contra raiva, por volta das
15:00h correndo para casa. Estava agendado para outra
reunião exatamente neste horário.
Às 17 e pouco fui para o jardim de minha casa e me
deparei com um botão que apontava majestoso para cima.
desejei que ele se tornasse rosa no tempo que eu suportasse
acompanhar o processo.
A gente sabe que não é assim o tempo.
Hoje pela manhã, por volta das seis horas, voltei ao botão.
-
paro, ensaia o perfume e a beleza que deixará para o tempo
enquanto durar.
Eu, comigo, paz e ciência.
240
Pés no chão. Regato com pedregulhos no leito. Enxurra-
da a descer pelas bordas das calçadas. Rodopios ao som de
música para dançar. Corações disparados e rostos colados.
Árvore gigantesca lotada de mangas. Bola a zunir no jogo de
queimada. Chão de profunda piscina azul, translúcida. Amo-
reira lotada de doçuras. Mãos dadas no cinema.
No tempo em que começamos a tecer memórias, essas vi-
vências costumam ser lembranças de prazeres. A saudade,
que é ausência, torna-se saborosa. Confortadora.
Nas fases difíceis da vida, a busca por prazeres vividos,
reais ou imaginados, torna-se ato consciente, que se entrela-
arrepiantes, risonhos, aconchegantes, sonoros, estimulan-
tes, não vividos, sonhados.
A tessitura de desejar, em sua vastidão e profundidade,
nutre-se por odores, cores, tristezas, alegrias, sabores. Em
sua plural dimensão de fertilidade ocupa o pensamento.
Transforma-se em devaneios inspiradores do mais lembrar.
Desejos podem ser pequeninos, mas se agigantam se rea-
lizados e ferem o viver quando não alcançados. Os mais be-
los e prazerosos são os desejos férteis e os desejos amorosos.
Os amorosos, quando sentidos, são essenciais à formação de
241
pessoas bem resolvidas. De seres humanos íntegros, capa-
zes de enfrentar novos tropeços na trajetória e tormentas
existenciais, sem perder o prazer de viver.
Nunca tive medo do prazer. A religião em que fui criada,
muito insistia em dores, pecados, medos. Não chegou a me
assustar, pois na minha família a dimensão da dor não era
tida como essencial à fé. Cerimônias e procissões como as
das Sextas-feiras da Paixão eram para nós mistério e be-
leza. Ou quem sabe? Beleza no mistério. Cresci, sentindo o
prazer como alegria natural. Essa foi a maior benção da mi-
nha vida. Um legado que busco cultivar em homenagem aos
que me ofertaram alicerces do bem-viver.
Mas, mesmo envolta por segurança amorosa, nem sem-
medo sobrevinha e dominava, sem dó, meus sentimentos.
Ainda sonho com as aulas de trigonometria que me faziam
pequena e triste. Acabrunhada. Encolhida. Nessas horas
buscava atalhos para rever e viver a luz.
Viajava, com todos os sentidos em prontidão, por atlas de
imaginação. Trazem à retina, cenários, relevos, costumes,
climas, oceanos. Ah! As multiplicidades, profundidades e
prazer do mergulhar!
Sempre gostei de mergulhar os ouvidos, o corpo, a pele, o
pensamento, os olhos e os sentimentos em poemas, roman-
ces, canções, músicas instrumentais, natureza de vegetação
variada e límpida água corrente.
Aprendi, à medida que fui colhendo anos, que mergulhar e
voar podem ser prazeres interligados. São momentos únicos
em que a sensação de viver não se farta. Queremos sempre
revivê-los. Podem até virar sonho ou imaginação, tatuagens
242
na alma que os revive. Podem ser eternos se transformados
As crianças não sabem que é assim, mas assistem anima-
ções repetidas vezes, retornam ao mesmo recanto sempre
-
dos. Reiteram rituais. Pois, desde o nascimento, vivemos em
-
rituais a vida é nada. Fia nebulosa.
Ah, os rituais! Existem aqueles que são pura dor, mas na
fartura de dores que hoje vivemos o melhor a fazer é a eles
contrapor a beleza de outros rituais. Os prazerosos.
A vida não é retilínea e muito menos cartesiana. Não são
poucas as vezes que caminhamos por vias tortuosas e terre-
encolhidos. A aridez do chão, do ar, dos lugares, das pala-
vras, das violências, das perdas, dos fatos e ambientes nos
-
dos, congelados, inoperantes, desalentados. Doentes de dor.
Aprendi cedo que sem projeção de esperança não há vida
nos tempos de dor, é preciso cultivar alegrias. Podem ser
simbólicas. O importante é não se deixar de fazer a seme-
adura do bem. Não deixar perder o que temos de humanos.
Buscar força nas lembranças dos prazeres dos tempos
dos pés no chão e das frutas colhidas nas árvores e trans-
formá-las em caldo de esperança é vital. É fazer do tempo da
semeadura, fertilidade capaz de vencer tempestades e reen-
contrar o tempo da colheita.
243
Nossa Senhora, são lembranças da minha infância que, nes-
te tempo insólito que a humanidade está vivendo, tem feste-
jado meus olhos com belas passagens. Olhos que estão quase
só a enxergar os tons cinzas das lamas, das mortes, dos des-
respeitos, das covas coletivas, das dores dos seres humanos,
das palavras gélidas e cortantes, da impotência, dos medos,
da desesperança.
no início do isolamento que a pandemia nos impõe, tive uma
ideia. A de construir um ritual de beleza para ela, que ama
a natureza e o belo. Passei, usando a tecnologia das redes
-
capaz de viver, com alguma graça, ao menos nestes dias de-
Decidi enviá-las para pessoas que alcanço nas minhas re-
des sociais. Penso que construí um ritual de beleza, prazer
dos desejos, do prazer e da esperança que insisto em não
perder.
248
Hoje amanheceu um sábado de sol, de céu muito azul, típico do
outono carioca.
Daqui a três dias completo três meses de quarentena.
Estou cumprindo minha quarentena sozinha. Já há alguns anos
para estudar e trabalhar com povos indígenas. Fiquei só e fui me
acostumando a essa condição que para mim era nova. Até então
tinha morado com a família, em comunidades, com o pai do meu
uma nova etapa da vida “habitacional”, passei a morar só. E desco-
bri as delícias e as agruras dessa nova condição. E gostei. Mas, na
hora que quisesse, podia ligar, combinar, encontrar os amigos, ver
meus irmãos; podia pegar um avião e visitar o Felipe. Agora, nesta
o meu espaço, a minha vivência na quarentena.
Tento viver minha quarentena da melhor forma que me é pos-
sível. Faço ginástica com regularidade. Voltei a cozinhar, reapren-
di velhas receitas e me aventurei em novas. Adotei o conceito de
“quarentena produtiva” que foi sugerido por vários colegas da
UFRJ, onde trabalho. A ideia era que, mesmo que não conseguís-
semos dar aulas regulares, procurássemos desenvolver atividades
on line com os alunos. Me empenhei nisso. Com ajuda de meus
249
bolsistas, instalei a plataforma zoom no meu computador e pas-
sei a fazer reuniões com meu grupo de pesquisa e com turmas de
alunos da pós-graduação. Passei também a marcar encontros com
amigos pelo zoom, onde brindávamos levantando nossos copos e
os aproximando da tela do computador. Duas vezes por semana,
ponho short, camiseta, tênis e boné, máscara e um vidrinho de ál-
cool gel na pochete e saio bem cedinho pra caminhar e correr no
entorno do meu quarteirão. Cruzo com pouquíssima gente, outros
caminhantes e corredores, ou pessoas passeando com cachorros.
Este é um momento de enorme felicidade para mim; olho o céu, a
rua, os postes, os jardins, escapo por breves 40 minutos da minha
quarentena.
que está tentando, há alguns meses, viver de forma positiva essa
quarentena.
Mas acho que não estou conseguindo. Não está dando certo. O
meu dia segue normalmente, com as tarefas e atividades que eu es-
tipulei. Mas a noite, tenho pesadelos. Sonho que estou fugindo, que
estou sendo perseguida, sonho que tento escapar de alguma coi-
sa que nunca é clara. Sonho com perigo; com ameaça. Com terror.
Acordo com frequência no meio da noite, para ir ao banheiro ou
beber água, o que faço com uma sensação de mal-estar, de ameaça.
No dia seguinte, ao acordar, no esforço de retomar a rotina diá-
ria esse mal-estar vai se dissipando e eu vou reencontrando o meu
esforço em viver, de forma positiva, a “quarentena produtiva”.
Mas é um enorme esforço. Que pode se esvair em alguns
segundos.
Penso na minha mãe. Ela está internada há mais de um ano, por
-
pirar sem um aparelho. Teve que fazer uma traqueostomia e por
esse orifício na garganta vai o tubo respiratório que lhe bombeia
oxigênio. Ela está lúcida. Às vezes sua condição melhora um pouco,
ela consegue sentar na cadeira de rodas e a levam para passear
no solário da clínica, para alguma atividade junto com os outros
idosos. Mas isso foi interrompido agora por causa do coronavírus.
250
protegido, mas na verdade, privado de seus poucos momentos de
interação social e de vida. As visitas dos familiares também foram
suspensas, pois eles podem levar o vírus da rua para a clínica. Con-
segui uma permissão especial para visitá-la um dia. Passei uma
saber quando poderia vê-la de novo, ela me disse (quer dizer, bal-
buciou com os lábios, não pode falar por causa da traqueostomia,
estou muito tranquila”. Saí de lá com o coração na boca.
Penso no meu país. Penso na tragédia que estamos vivendo, o
governo Bolsonaro, o governo de Tãnatos. Penso na dor que está
sendo para a minha geração, que se empenhou na luta contra a
ditadura e na construção de uma democracia inclusiva, viver esse
retrocesso, essa expressão de autoritarismo, de culto à violência,
-
homofobia. Penso no show de horrores que é esse governo, o presi-
dente e seu ministério.
Penso na pandemia. No que a Natureza quer nos ensinar com
esta experiência tão dura. Será que conseguiremos aprender al-
guma coisa com isso? Será que há alguma chance de que isso tudo
nos torne melhor?
Sinto saudades do mundo, quero a vida de volta. Sinto saudades
das coisas mais simples. Correr no aterro, parar naquele ponto em
que é possível ver o Cristo Redentor e o Pão de Açúcar e tomar uma
água de coco. Caminhar no calçadão de Ipanema e dar um mergulho
no Arpoador, de preferência no domingo quando a pista está fechada
para os carros. Descer para a pracinha da General Glicério, comer
bolinho de bacalhau do Mazaroppi, tomar uma cerveja super gela-
da, encontrar os vizinhos e curtir a roda de samba e de choro que
acontece todo sábado. Saudade de poder comprar uma passagem
de avião para conhecer a nova casa em que Felipe está morando
em Belém do Pará.
251
Penso que nunca esquecerei essa quarentena. A pandemia, o go-
verno Bolsonaro, a longa doença de minha mãe. Sempre vou me
lembrar dessa angústia e dessa dor. A dor de ver o desmonte do
meu país e de todos os projetos que minha geração construiu; a dor
e impotência de ver os números de óbitos subindo diariamente de
forma vertiginosa; a angústia de acompanhar a doença de minha
mãe.
Mas não é assim que eu quero terminar esse texto. Escolho a
pulsão de vida. Acordo cedo. Coloco um short, tênis, camiseta, ócu-
los, boné e máscara; levo um vidrinho de álcool gel comigo e saio
contente. Volto pra casa, coloco toda a roupa na máquina de lavar,
tomo banho. Sento em frente ao computador, agendo uma reunião
com meu grupo de pesquisa e um encontro com amigos para a sex-
ta-feira à noite. Tudo pelo Zoom.
253
No início do período de isolamento social, em março, eu
estava morando temporariamente na casa da minha mãe,
enquanto procurava apartamento depois de ter me separa-
vários problemas pulmonares, adotamos uma quarentena
-
cil de cumprir. Para ajudar a passar um pouco melhor esse
tempo e ter um assunto diferente para tratar entre nós cria-
nacionais, eu 15 estrangeiros, combinamos de assistir, eles
da casa da mãe, eu com a minha mãe, e depois discutirmos
todos juntos em videoconferência. O mais interessante des-
sas sessões são justamente os comentários dela, outro olhar
pela diferença de geração, de formação etc. Finalmente, no
-
versários deles juntos na nossa nova casa. Seguimos com o
O último que vimos foi Arábia (2017), costumo escrever re-
senhas dos que vou vendo, mas este além disso me inspirou
um poema, que acho que de alguma forma articulou a im-
254
de passagem meu tempo de labuta como professor pelo in-
terior de Minas – com um tema candente neste contexto de
pandemia.
FRUTO DO TRABALHO
A cobra me cobra
em cobre
empresa
sua presa me despreza
me implode me sacode
me dá bode me fode
em seu cabo
me acabo
A praga me prega
emprego
em prego é preso
o espírito
o corpo
amém?
ah, nem
Quarentena e a primeira sala de reunião virtual
Luzimar Soares Bernardo
Itaquaquecetuba, São Paulo, 30 de maio de 2020
256
A chegada da Covid-19 alterou dramática e inegavelmen-
te a rotina de todos. Comigo não foi diferente, pois devido à
necessidade de preservar a saúde de meus pais octogená-
rios procurei a melhor solução ao seu isolamento. Ponderei
Contas feitas, decidi a partir daquele momento me isolar por
dois meses na casa dos meus progenitores.
Para compreender a realidade dos meus pais é necessá-
ria uma breve descrição. Ambos vivem em um sítio peque-
no apesar da idade avançada. Neste lugar, localizado na re-
gião Metropolitana de São Paulo, em Itaquaquecetuba, eles
mantêm uma vida pacata e voltada para a plantação de uma
agricultura de subsistência. Uma variedade de gêneros ali
é cultivada, tais como algumas espécies de frutas, legumi-
nosas, hortaliças. Sem falar naquilo de que mais gostam de
plantar: a cana-de-açúcar. Tal atividade impõe uma dedica-
ção intensa. Desse modo, a maior parte do dia é reservado
para administração esse lugar. Com dedicação e carinho
-
lhos. Neste momento, há uma fartura de abacate, de chuchu
e de bananas.
257
Os dias seguem um ritual que para a maioria das pessoas
não faz o menor sentido. Mesmo aposentados sem obriga-
ções sociais ou trabalhistas, eles diariamente acordam mui-
to cedo. É impossível encontrá-los deitados na cama após às
06:30 da manhã. A dura disciplina que impõe a si mesmos
é algo quase militar. Vale ressaltar que eles sempre foram
assim, pelo menos é o que me recordo desde a minha tenra
infância. Há sessenta e dois anos estão casados comparti-
lhando desse mesmo estilo de vida espartano.
No entanto, o dia que quero narrar aqui é o primeiro sá-
bado vivido nesse caminhar não exatamente desejado, mas
escolhido. Já estava convivendo com eles há quase uma se-
mana. Mas na minha racionalidade, o dia de sábado sem-
pre foi reservado como o dia de dormir até um pouco mais
tarde. Ledo engano, meus pais acordaram como sempre nas
haveria de ser diferente naquele dia? Bom, para começar
minha presença já é uma alteração na rotina deles e os sá-
bados são marcados por atividades distintas.
Como premissa, é dia dedicado a uma arrumação diferen-
te. A parte da manhã transcorre sem mais alterações como
alimentar as galinhas com o milho, a arrumação da casa e
o preparo do almoço. Aliás, a refeição deve estar pronta ao
meio dia e quinze minutos, nunca pode atrasar! Depois do
almoço, vem a arrumação da cozinha, o que jamais pode ser
deixado para mais tarde. Todas as coisas seguem uma cro-
nologia muito bem planejada. Até para tomar um copo de
água meu pai tem um horário determinado por uma razão
que ainda não consegui compreender.
No início de tarde, uma nova atividade nos consome o dia.
Como se fosse um ritual que se repete todo sábado, eu ajudo
a minha mãe no preparo de um bolo de fubá. Mas o bolo de
258
fubá tem lá seus segredos especiais. Cravo, canela e erva-doce
não podem faltar. Para compor os ingredientes de base ob-
viamente que uma boa cearense lança mão da rapadura e do
coco no processo de “construção” da iguaria.
Durante toda a semana eu escutei silenciosamente a re-
clamação sobre a ausência e o distanciamento dos outros
-
tual. Marquei um horário determinado com todos os meus
irmãos e convidei os meus pais para participar junto comigo
na frente do computador. A comunicação não foi exatamen-
te uma conversa, pois pela avançada idade eles ouvem mui-
na tela do computador, que passaram a maior parte do tem-
O episódio me fez recordar de uma passagem de um livro
-
produzir a seguir: “A liberdade do diálogo está se perdendo.
Se antes entre seres humanos em diálogos, a consideração
pelo parceiro era natural, ela é agora substituída pela per-
gunta sobre o preço de seus sapatos ou de seu guarda-chu-
vas... É como se estivesse aprisionado em um teatro e se
fosse obrigado a seguir a peça que está no palco, queira-se
ou não, obrigado a fazer dela sempre de novo, queira-se ou
não, objeto do pensamento e da fala”.
Nessa passagem, Walter Benjamin criticou a forma exa-
cerbada do uso do capital. Desse modo, observo que meus
pais ainda não compreenderam o uso das tecnologias para
a comunicação. Constato que eles continuam sendo surpre-
endidos por tais reuniões, que eu arbitrariamente (confes-
so) delibero com intuito de tentar uma aproximação como
259
-
tância alguma como imaginaria que pudesse ter. No meu
sala virtual, que não é real de modo algum para eles. É algo
ao mesmo tempo frio e distante, uma tela que pode se as-
semelhar a um palco onde uma peça de teatro se desenvol-
ve, o teatro da vida encenando cenas reais em momento de
pandemia.
260
O homem é o lobo do homem… e do cão!
Marcel de Almeida Freitas
Belo Horizonte, 10 de junho de 2020
261
-
mentos sem nunca ter tempo e paciência para as organizar
-
demia e da auto e da coletiva avaliação nesses meses, de-
cidi exteriorizá-las, sobretudo porque queixas, comentários
e observações recentes de amigxs com quem eu conversei
sobre, algumas até engraçadas tipo, “Marcel, como eu não
tinha percebido isso antes, estou me lembrando tanto de
você esses dias!”, me estimularam escrever sobre esse tema
Primeiramente esclareço que ao me referir aos termos
“invasão” e “invasivo” quero dizer comportamentos, fatos,
condutas, situações mais amplos do que comumente consi-
deramos; entendo invasão não somente em termos físicos,
corpóreos, materiais (invasão de terreno, procedimento ci-
rúrgico invasivo etc.), mas também como invasão da minha
rotina, liberdade, vontade, ou seja, aqui entendo que posso
invadir sua casa tanto entrando nela sem pedir permissão
ou sem ser convidado quanto colocando uma música da Ma-
donna nas alturas ainda que você goste daquela música, mas
262
Vivo num bairro operário antigo de Belo Horizonte, onde
predominam casas e há cerca de 10 anos mudou um casal
-
nha, na mesma rua. Sendo bairro antigo de Belo Horizonte,
em geral, os lotes são de 300 ou 360 m2. Esse detalhe é im-
portante ser esclarecido pois fará sentido adiante para a
compreensão do “problema”. A casa em que eles viviam (já
se mudaram) possui três quartos, sala, copa (coisa que nem
existe mais hoje), cozinha e banheiro, portanto, a área do
quintal e terreiro (frente e fundo da casa, respectivamente,
interligados por um corredor lateral) é restrita.
Além dos dois seres humanos residiam na casa, melhor
dizendo, nesse exíguo quintal, três cães da raça chow chow.
Como vim a saber, eles eram do interior de Minas, cada um
de uma cidade diferente e se mudaram para Belo Horizonte
a trabalho, ele professor universitário em uma instituição
particular localizada no próprio bairro e ela veterinária na
-
ra à noite (em geral depois das 22hs quando o marido ter-
minava a aula) até domingo à noite, por volta das 20 horas,
soltos na pequena área externa da casa.
Durante o dia, devido ao horário do professor ser variável
e por morar quase ao lado da instituição, ele sempre estava
em casa em algum momento, os três pets praticamente não
latiam. Somente quando havia alguma coisa que, obviamen-
te, chama a atenção de cães, outro cachorro na rua, gato no
muro, carteiro. À noite, durante a semana, em que ambos
estavam em casa, o mundo podia acabar que os cães não sol-
tavam um suspiro sequer. Lembro-me até de uma ocasião,
lamentável, que um homem agredia uma mulher exatamen-
te em frente à casa deles de madrugada (claro, a vizinhança
263
chamou a polícia) e os cães impassíveis, pareciam de pelú-
eles viajavam ora para a casa da família dela, ora para a
cara da família dele. Faço estas digressões para que enten-
dam que o problema não eram os cães em si, mas sim, como
sinalizado no título, o homem – e a mulher.
Levou alguns meses para eu associar a não presença dos
humanos com os latidos sofridos e constantes, eventual-
mente seguidos de uivos, dos três pobres cães. Era muito
estranho: durante a semana e, sobretudo, à noite, não se
ouvia, perdoe-me o trocadilho, um pio na casa. Aquilo com
o passar do tempo começou a me incomodar de uma tal ma-
neira e, como sociólogo que sou, tenho “a mania” de pensar
no coletivo, comecei a me lembrar dos vizinhos, na maioria
idosos, tendo que se submeter àquilo. Sim, porque era uma
forma de imposição ao outro: submeter alguém a um som
constante e alto contra o qual ele não tem controle de miti-
de vizinhos??) ou extinguir.
-
gum (diferente de alguns vizinhos com os quais conversei...)
me indignei com os animais em si. Diferentemente de uma
festa, por exemplo, eles não estavam emitindo aqueles sons
-
lizado com os mesmos, pois, não precisava ser veterinário
psicólogo animal para notar o latido sofrido, quase um gri-
to de “me tira daqui”. Exatamente como estamos gritando
agora no WhatsApp e em outras redes sociais com amigxs
e familiares. Por isso várias pessoas que exteriorizei mi-
nha indignação com essa situação à época hoje entendem o
que eu queria dizer, pois estão vivendo situações similares:
264
latido permanente de cães que não são seus e, portanto, so-
bre os quais não tem como interferir.
Em uma ocasião eu estava no telefone com uma professo-
ra do doutorado e os cães latiam tão alto e persistentemen-
te que ela perguntou: “Uai, Marcel, o que está acontecendo
aí?” Foi a gota d’água. O estranhamento de outra pessoa,
de outro lado de uma linha telefônica, que não morava nas
redondezas, foi a senha para eu pensar comigo mesmo: gente,
diferentemente do que muitos tentaram me convencer, isso
não é normal, “não é assim mesmo”. Eu expliquei por alto a
situação para ela e falei que ligaria depois, que ia ver o que
estava acontecendo na rua. Como disse, eles voltavam das
miniviagens no domingo à noite. Eu então os abordei guar-
dando o carro na garagem, literalmente, no pulo do gato.
Educadamente eu os informei que estava “tentando” ter
uma conversa telefônica e, inclusive, a pessoa que estava
do outro lado ouviu os estridentes latidos dos cães, admo-
estando ainda que não considerava que aquilo seria algo
“normal”; depois que descobri que ele era professor de Filo-
que acontecia na residência de outra pessoa e que, diferente
de um furacão ou terremoto no qual ninguém tem controle,
estava interferindo, não somente na minha rotina, mas na
vida de quase toda a vizinhança.
A mulher apenas ouvia e o homem, educado e falando
usar a maiêutica socrática, isto é, ir fazendo indagações
para que o próprio interlocutor concluísse, por si mesmo, a
pertinência do ali estava sendo argumentado, ou seja, que
eventos e fatos que ocorram na “vida” de uma pessoa não
deveriam impactar negativamente a “vida” de outra. Uma
265
no mesmo quarto. Uma ronca, a outra não ronca. A que não
ronca atrapalha a que ronca de dormir? O silêncio mostrou
o que ele respondeu para si próprio; então emendei: e a que
ronca, atrapalha a que não ronca de dormir? Eu não posso
direito de ter um animal de estimação não pode obstar o di-
reito do outro de dormir, de falar ao telefone etc., mesmo
porque não é recíproco! Tal situação também é uma forma
de invasão. Não é física, mas é algo que não foi por mim dese-
jado ou provocado e está interferindo na minha vida.
Em um de seus últimos balbucios de buscar contornar o
-
dos eu arrematei: nós da vizinhança sabemos que sim, tanto
que você vê que é uma coisa anormal, eles latem da sexta
à noite até o domingo à tarde praticamente direto; quando
-
visão material. A carência deles é outra. Isso é uma questão
de se colocar no lugar do outro, cogitar que existem outros
modos de vida, pessoas fazendo outras coisas além das que
eu faço. Imagine uma pessoa acamada ou cadeirante que
semana, “ser obrigada” a ouvir cães que não são dela, que
ela não pode tomar nenhuma providência.
Como acontece com toda “vítima”, no princípio dessas
situações cogitei que talvez o problema fosse comigo: im-
plicância, rabugice, misofonia (doença na qual o indivíduo
tem extrema sensibilidade a sons altos e agudos), proble-
mas psíquicos ou até espirituais. Porém, quando comecei
me dando conta de que era um incômodo legítimo, o que foi
consolidado de uma vez por todas agora com a pandemia
266
do coronavírus. Dia desses recebi mensagem de um amigo
professor de uma faculdade particular de Belo Horizonte
que disse, “Marcel, dia desses até ouvi sua voz teorizando
sobre o caráter invasivo e abusivo de vizinhos que deixam o
Ele precisava gravar vídeo aula durante toda a tarde de
domingo para disponibilizar o material para os alunos na
segunda-feira e bem ao lado do seu quarto no apartamen-
to onde mora há uma casa com três cães que latiam o dia
inteiro. Ele emendou: “Marcel, lembrei de você na hora di-
zendo de como isso afeta a vida de terceiros; tive que ir para
um daqueles hotéis de quinta no Centro, me hospedar por
algumas horas com meu notebook debaixo do braço”. Sob
o ponto de vista do animal a situação relatada também evi-
dência indiscutível desconforto, daí o subtítulo “homem ini-
semana inteira em casa, sozinho, para que o indivíduo tenha
algumas horas de afago nos pés a noite e para passear com
ele durante uma hora no domingo à tarde? Que qualidade
de vida psíquica este animal está tendo para que o humano
tenha um ser vivo em sua companhia em parcos espaços de
tempo?
Finalizando, muitos podem estar se perguntando: mas o
que eu sugeriria como solução? São coisas muito simples e
que podem ser depreendidas da atual pandemia: tal como a
questão da imunidade ao coronavírus, mesmo a minha sen-
do ótima e que eu não seja do grupo de risco, posso infectar
pessoas susceptíveis, portanto devo tomar determinadas
medidas de proteção porque vivo em sociedade. Se você tem
cães converse com seus vizinhos, pergunte se está incomo-
dando, porque talvez não incomode você, você seja imune,
mas pode ser prejudicial para o outro. Existem pessoas
267
acamadas, com misofonia, depressão, dezenas de males que
eu não tenho, que os latidos dos meus cães podem afetar. Se
Nem todos trabalham de 8 às 17hs como eu. Há médicxs,
dormem enquanto eu e meus cães estamos acordados. Ago-
gravar vídeo aula, ou se comunicar com alunos por meio vir-
tual etc. Em síntese, se colocar no lugar do outro questionar
o senso comum “ah, é assim mesmo”. Se pensássemos que
as coisas são imutáveis e não podem ser mitigadas e alte-
radas em razão da vida em sociedade estaríamos criando
porcos até hoje nos centros urbanos ou fumando dentro do
elevador.
Como adoro analogias, vou terminar com uma: caso pa-
-
guém entrando num elevador de um edifício nos anos 1940
e “questionando” o fato de metade das pessoas lá dentro es-
tarem fumando. O que diriam naquele contexto? Os incomo-
dados que se retirem, eu tenho o direito de fumar. Essa é a
mesma lógica dos que hoje apelam para o direito de ir e vir
ameaçado pelo coronavírus que não saia de casa. A questão
do latido (digo o incessante!) passa por aí: não me incomo-
da, não interfere no meu cotidiano? Mas, e o outro? O outro
não sou eu. O meu cotidiano não é o dele.
270
Desvio para o azul(do medo,
fabulações e memórias)
Monica Pimenta Velloso
Rio de Janeiro, 14 de junho de 2020
271
“O tempo se dilata quando o espírito “se solta” e divaga
sobre um objeto. Como em Lewis Carroll, aquilo que é muito
grande cabe no muito pequeno, e o minúsculo guarda em si
(O espelho de Alice, Hervé Guibert/Duane Michals)
***
272
4 de maio de 2020 - O “tempo-quarentena” estreitou-se
ainda mais, da casa para o quarto. O vírus exigia total isola-
mento. Não podia imaginar que passaria ali 28 dias de sua
vida. Para garantir a sobrevivência psíquica precisava po-
voar o espaço. A sombra foi tornando-se cúmplice dos seus
desejos, fantasias e pirraças.
A infância veio em sua ajuda, embaçando fronteiras entre
o sonho e a vigília.
Lembrou-se do primeiro encanto frente à uma estante de
livros, logo que aprendera a ler. Naquela quietude organiza-
-
mente insuspeitas. Descobriu que podia caminhar silencio-
texturas. Até que uma inscrição a imobilizou em puro alum-
bramento. Soletrou para si mesmo Viagem ao redor do meu
quarto, Xavier de Maistre. Como um quarto poderia conter
tantos mares, paisagens e povos?
Este paradoxo formigava no ar enquanto ao longe ouvia
ruídos metálicos da rua; eram os ganchos do açougue. Ho-
mens negros vestidos de saco de farinha ensanguentados,
transportavam às costas enormes pedaços de carne. A ba-
letras que saltavam nas lombadas. Pela janela da sala, o ma-
seguia o seu curso. Todos os nomes e coisas pareciam acon-
chegar-se naquele tempo-lugar.
Roupas quarando ao sol misturavam-se ao vento e aos
sons do Mercado Persa trazidos pelo piano de Ketelbey. Sem-
pre escutava este disco junto ao pai; dele ganhara o apelido
de Curumim. O batismo viria logo depois pelo livro Contos
e lendas indígenas. Percebeu que as coisas conversavam
273
secretamente entre si emendando fatos, gestos, nomes, tem-
pos e lugares. E essa costura do mundo era em azul.
Talvez existissem portais de passagem entre os tempos-
-lugares. Lembrou claramente do Colégio Angelus rituali-
zando a chegada em um mundo desconhecido. A senha de
entrada estava bem ali no crachá do uniforme “pequeninos
sábios”. Nos desenhos, aquarelas e teatrinho de fantoches,
de mãos dadas, via a centelha criativa e o medo. Era engra-
çado ver deste lugar de agora. Só silêncio. No corredor da
casa, o ruído do carrinho que trazia as refeições. Pela vidra-
ça abraços partidos, interditados.
Nessa braçada de lembranças que invadia o quarto viu a
infância vestida em “borboleta-imagem”, convidando-a aos
tempos – lugares, passados – presentes. Aceitou arriscar-se
nestas acrobacias surrealistas
14 de maio 2020 – Fora totalmente abandonada pelas
palavras. Em um teimoso gesto de sobrevivência, deu para
274
escavar fabulações e utopias, agarrando-se ao que não via,
nem conhecia. Permitiu-se brincar com esse desentendi-
mento do mundo. Vieram formas desconexas, despedaça-
das; algumas assustadoras. E também coisas minúsculas e
desimportantes. Decidiu seguir o movimento destas apari-
ções, independentemente de qualquer entendimento. Era
uma maneira de driblar o controle que sempre a guiara. O
cochicho vinha de Walter Benjamin e de Didi-Huberman que
lhe mostravam o passado em imagens aparições, relâmpa-
gos, agoridade. Para ver com olhos livres urgia deixar-se ir,
deixar correr o tempo deslocando diacronias em distopias.
Qual o sentido de perseguir coerências diante de uma or-
dem agônica e do corpo invadido por um vírus totalmente
desconhecido? Era preciso descompor o mundo, descompor
o luto, mostrar a nervura e o avesso da dor. E foi enviesando
os olhos para este tempo-lugar-quarto, cela e casulo.
Lentamente começou a rasgar e colar imagens; e era como
se entre elas já existisse um gesto de encaixe; possibilidade
narrativa ajudando a desfazer o curso de qualquer certeza.
Desde um março longínquo, o mundo da normalidade saíra
de cena.
276
24 de maio - Quando sentia-se melhor, dava uma passada no
Café para ver os amigos escutar poesias e o piano do Avelino.
Conforto de alma sentir que o mundo continuava lá fora, com
suas celebrações e inquietudes. Mas com o passar dos dias co-
-
tual. O lugar físico do mundo de antes da pandemia, já não era
o mesmo. As pessoas prometiam se ver em uma live, passavam
pra te dar um abraço, brindavam aniversários e lançamentos
-
te arrastados. Quando morava na casa, ainda percebia demar-
cações da ordem antiga, agora isso desaparecera. O presencial
tornara-se etéreo, movente; categoria híbrida sobrevoando
qualquer entendimento. Inventou loucas fabulações reais
como a de editar realidades ao mesmo tempo que deixava-se
ser pega por elas. O nome das coisas e das cores, palavras e
imagens, tempo e espaço podiam ser arrastados como móveis
em dia de faxina. Mas a luz, o ar e o gatilho do olho-cérebro es-
tavam ali aguardando inscrições da memória. Mas como nar-
rar este tempo em suspenso embaçado de tantas coisas ainda
não assimiladas? Trazer a voz de uma terceira pessoa talvez
-
do os bloqueios e traumas da convalescência. A paleta em azul
veio como um sopro trazendo de volta as palavras e imagens.
Autorretrato
278
Dezesseis, dezesseis de março, esse foi o dia. À tardinha
alcanço o meu prédio. Ao entrar me lembro de um versículo:
Verbo é ação, e ao contrário eu ia para inércia por conta de
um ser invisível.
A porta, outra porta, o elevador, botões e chaves. Aperto o
durar? Na porta o álcool gel e o de 70 graus. Tirar sapatos,
a roupa, tomar banho.
O apartamento torna-se o meu mundo, quando não meu o
universo. Atribuições que se fazem necessárias, para esque-
cer o vírus. E ele coitado, tão abandonado, agradece a pre-
sença, e se mostra. Escancaro a janela da sala, acreditando
que posso ampliar meu horizonte. Quando o dia está claro,
com um pouco de esforço posso ver a Serra da Piedade. As
noites, dali, vejo o Mineirão iluminado em dias de jogo e os
A bolsa repousa sobre o baú. É meu há a mais de 30 anos.
Dentro, não abriga nenhum segredo. Só discos em vinil, e
poucos em baclite (Será que é assim que se escreve?). Mas
tem, também, outra função aqui em casa: limita os espaços
entre a sala de estar e a de jantar. Sigamos. Abro a porta e
279
entro na parte intima da casa. A esquerda, o escritório, a mi-
nha bagunça organizada. Livros de amigos, escritos guarda-
dos que se deitam em estantes, silentes. A direita o banheiro
-
vejo a Serra do Curral. Ali nasce o sol – confesso que nunca
vi. Ali a lua cheia nasce, quando vai rasgando o céu, chega
a um ponto que ilumina um pedaço da minha cama em um
branco e prata, tão alvo, que se torna indizível, mas que os
olhos não cansam de ver.
Ah, me esqueci, ao lado do meu escritório, há o do meu
A cozinha e a área de serviço, ao lado sala de jantar, pa-
rece repetir a Casa-Grande e Senzala, em estilo moderno. O
quarto e o banheiro de empregada que jamais foram utiliza-
de inutilidades que fazem estágio para ser descartados, mas
guardam as nossas malas de viagem. Coitadas, devem ser
mudadas de local, ir para a última prateleira da estante. Até
Esse é o meu espaço que passo a dividir com meu marido
Com o passar do tempo, o espaço que dispunha encolhia
em dimensões. Encontramos e nos desencontramos na sala,
cozinha, na janela. A televisão é motivo da discórdia: Jornal
Jornal, ganho eu. Passo a descobrir outras doenças nar-
radas ao vivo. Isso é a verdadeira banalização da maldade.
O racismo, o autoritarismo, a falta de respeito, tudo de ruim,
tudo escancarado como se fosse a minha janela da sala que
me renova o ar. Mas a tela, pelo contrário, chega a me tirar
o ar, como em uma síndrome do pânico.
280
uma série, mas não sei em quantos episódios.
Da janela da sala vejo a rua, inteiramente vazia. Posso,
-
ma, quantos carros passam enquanto escuto Mariposa de
Lecuona.
Crio uma ou duas rotinas. Não durmo antes das 3 horas.
Acordo as 9 horas. Arrumo a cama. Abro a janela. Em uma
das janelas, sigo a rotina de uma cuidadora de idosos, ou
melhor sigo um senhor, que é acompanhado por uma cuida-
dora. Ela lhe ajuda no banho todas as manhãs, e parece que
leva o seu café no quarto. Não sei quanto tempo lhe resta ou
nos resta.
Tomo o meu café, e depois, são os trabalhos domésticos.
Limpar, lavar, varrer. E amanhã de manhã faremos tudo
igual e será a mesma coisa, esse trabalho aparece quando não
é feito. A limpeza é fundamental. Lavar as mãos, e passar o
álcool, e depois é a pergunta que não se cala: E o almoço?
São dois meses, o número de mortos sobe a cada dia, e
ninguém parece entender o que realmente acontece. E de
todos os lados pululam verdades esquizofrênicas todos dis-
cutem verdades como se soubessem sobre o sexo dos anjos..
-
dos do vírus, tomara. Sinto isso fora de mim.
lettering
na internet, para deixar alguma mensagem, ou algum poe-
ma na rua, mas a rua não me pertence. Então vi que o Bial
ministrava um curso sobre a escrita, e pasme, gratuito.
– acreditam? Encerradas as quatro aulas, recebi um e-mail
comunicando que o curso continuaria e o investimento para
essa etapa era de mais de setecentos reais. Investimento ou
custo? Jeito delicado de cobrar. Sigamos.
281
As ruas já não estão tão vazias. O movimento de carros
aumentou. Um ou outro na metade da tarde vão a padaria.
Volto a colorir, meus livros de mandalas, e o tempo vai assim
passando, de live em live, de mandala em mandala. Sinto fal-
ta do sol. Há uma tristeza que invade a sala quando o sol se
põe. No cansaço de colorir, vou tentar bordar. A algum tem-
po atrás pensei nisso. Paisagens harmoniosas presas a um
pano, como eu a minha casa. Enquanto o invisível passeia
pelas ruas e se apodera dos desassistidos, em todos os seus
sentidos, até lhes levar a vida.
E vou assim, num dia a dia totalmente previsível, a única
quebra é o dia do supermercado, que não sei se gosto ou não,
é mais trabalho. E as compras se diferenciaram: vassoura,
cloro, produtos de limpeza de banheiro e de cozinha, e muito
álcool gel e líquido.
Quase três meses, quase noventa dias, quase 2.160 horas.
E nada sabemos, e ninguém parece ter o que nos informar.
A sensação é aquela de estar permanentemente na porta do
cemitério lendo a inscrição na entrada “Nós que aqui esta-
mos por vós esperamos”. Temo, por mim, pelos meus, e por
todos e confesso: Durante todo esse tempo não consegui ler
283
Eu já mudei de casa um bocado. Contando as vezes da
infância, tenho dezessete carretos no currículo. Seis para
outras cidades, que duram dias entre a primeira caixa de
papelão montada e o estouro do último plástico bolha. Tre-
mendo cansaço só de lembrar!
Mas ano passado foi diferente. Depois de anos perambu-
lando por cidades dos Rios de Janeiro e Grande do Sul, vol-
tei para a minha terra. Desembarquei em Niterói, ciente de
que dessa vez ouviria os conselhos dos amigos enraizados:
“agora chega, né”! Até porque, depois de certa idade, um dos
sonhos de consumo passa a ser morar perto do trabalho. E,
por sorte, consegui realizar esse cômodo desejo: vejo a uni-
versidade da minha varanda! Elisa, faço questão de deixar
registrado por escrito: obrigado pela indicação do imóvel!
Fui com a cara do lugar de primeira. Porteiros simpáticos,
rua silenciosa, apartamento ventilado, amplo e pé-quente.
Nos seis primeiros meses na nova casa, o Flamengo perma-
tive certeza que os rituais pré-jogos no novo apartamento
284
Jesus. Reconheço, o portuga e o Gabigol foram importantes
nas conquistas, mas a variável cósmica fundamental, certa-
mente, foi a minha mudança para o novo lar, com a sua sala
abençoada pelos deuses rubro-negros. Oh lugar sortudo pra
ver jogo!
Comecei o ano de 2020 grato aos bons-ventos do prédio
de tijolinho vermelho e comentei algumas vezes com a mi-
nha companheira Izabel, tão rubro-negra e supersticiosa
quanto eu: lembraremos daqui para sempre como o lugar do
vitorioso Flamengo. Esse apartamento é a metáfora caseira
do Maracanã rodriguiano!
Pois é, só que não. Êta ano destruidor de certezas! Se-
mana passada, deitado na cama, dominado pela letargia da
quarentena, perguntei para Izabel: você acha que no futuro
lembraremos daqui por causa da Libertadores ou pelos dias
minha nova impressão.
Cada dia que passa – já são mais de setenta enquanto es-
crevo este texto – as lembranças barulhentas dos gritos,
pulos, abraços e socos na porta da varanda causadas pelos
muitos gols feitos pelo Mengão campeão de tudo vão sendo
substituídas. Levanto, caminho até a sala, olho para a almo-
fada manchada pelo vinho das celebrações e acho cada vez
mais 2019 uma data paleolítica. Distante, se esvaziando. A
imagem do Brilho Eterno toma conta de mim. Vejo Clementi-
ne lutando para não esquecer. A pandemia é uma desgraça.
Ela engole as alegrias vividas; marca na memória os in-
termináveis dias de tédio e tristeza; tatua em nós a imagem
dos tempos em que fomos derrotados. Nem consigo mais
sentar no sofá da vitória. Deito e durmo, só.
286
Quase perco o prazo para entrar nesse Arquivo Pande-
mia, atendendo ao convite da querida Andréa. “Algo sim-
ples, espontâneo, o que você quiser”, ela disse, com aquele
jeito que faz tudo parecer fácil, mesmo que a gente esteja
achando tudo mais difícil nos últimos tempos. A clareza
dos pensamentos, a gestão da agenda, a escrita, tudo anda
mais custoso. Mas nada se compara a acompanhar as notí-
cias e deglutir a infâmia e o descaso até que chegue a hora
de regurgitar pela janela o que não é possível digerir: FORA
CRIMINOSO!!!
Estou em isolamento há 97 dias. Em todo esse período,
-
lômetros de casa. Eu e meu companheiro decidimos levar a
regime muito estrito de contato com o mundo exterior. Orga-
nizamos a vida para receber as compras em casa, de prefe-
rência fazendo pagamentos online e solicitando ao porteiro
a gentileza de depositá-las no elevador e apertar o botão do
11º. andar. Casa-trincheira.
Mas, nessa longa duração (pode-se chamar assim 100
com alguma nitidez. Na primeira, a ânsia por saber tudo o
287
que era possível sobre o vírus: como é transmitido, quem
é grupo de risco, como lavar as mãos, exercitar o pulmão,
reforçar a imunidade. E dá-lhe de fazer yoga, tomar chá de
gengibre, pegar sol na varanda, beber limonada suíça, com-
prar álcool em gel, diluir água sanitária para higienizar as
compras, esfregar o chão onde apoiou a sacola do mercado,
lavar o pano que limpou o chão. Há tempos não me exercita-
va tanto. Mês frenético, em alta voltagem.
A segunda fase mantém hábitos da primeira, mas o ritmo
é outro. As compras ainda são limpas com cuidado, mas os
chás e as limonadas já não são diários e o tapetinho de yoga
está enrolado há uma boa quinzena. Dicas sobre cuidados
para evitar o contágio já não circulam com a mesma inten-
sidade. Foram substituídas por informações sobre saúde
cansada, leio sobre praias cheias e shoppings abertos. Vejo
cenas de pessoas sem máscara, por descaso ou afronta, ao
mesmo tempo em que acompanho com tristeza o número
crescente de vítimas no Brasil. 50 mil ontem. Mês macam-
búzio, em baixa frequência.
Já comemorei aniversário pelo Zoom, reuni amigas pelo
WhatsApp, participei de dezenas de reuniões pelo Teams.
As análises sobre a realidade nacional, pandemia e pande-
mônio, e sobre temas emergentes nos campos da história, do
lives
que nem sempre consigo assistir. Estou dispersa, me estra-
nho (e me culpo). Me pego pensando na vida, no tempo, nos
afetos. Envio mensagem para uma amiga que há anos mora
fora do Brasil, com quem, de repente, é urgente fazer conta-
to. Procuro a antiga receita de um bolo, cujo aroma esqueci-
do entra de surpresa pela janela da cozinha. A memória tem
me pregado peças, trabalhando sem ser convocada.
288
Não penso muito nos próximos meses, na retomada com
máscaras e distâncias. O futuro que me captura é desejo aca-
lentado de vida rodeada de verde e silêncio povoado de sons.
Um recomeço, ainda que tardio, ainda que os compromissos
exijam um regime híbrido, meio cá meio lá. Recomeçar é
possível e libertador, sei por experiência própria. Se os pen-
samentos andam turvos e lentos, o desejo é claro. Enquanto
esse tempo não chega e toco a vida entre as quatro paredes
do apê em Laranjeiras, agradeço por estar com as duas pes-
soas mais importantes da vida, por conseguir enxergar lon-
ge pela janela e, às vezes, receber visita inusitada.
290
As medidas de isolamento social em razão da pandemia
de COVID-19 se constituíram como um evidente campo de
batalha entre as forças reacionárias do governo Bolsonaro
e o que nos restava de bom-senso no Brasil. Foram também
o objeto do primeiro artigo de opinião que publiquei desde
que este caótico cenário de crise sanitária, de saúde, mas,
sobretudo, política, se instalou de vez por aqui. A atuação do
Supremo Tribunal Federal foi fundamental na resolução do
-
da negacionista, de um lado; e governadores e prefeitos, de
outro, na tentativa de avançar um planejamento mínimo de
enfrentamento da doença causada pelo novo coronavírus.
Eu, que estudo Supremo há alguns anos, escrevi sobre isso.
Pessoalmente, aderi à quarentena, como privilegiada pro-
fessora universitária, branca e de classe média, já nos pri-
meiros dias.
Me impus o isolamento social e passei a tratar dos meus
próprios limites – das minhas fronteiras pessoais. São quase
cem dias desde que risquei o chão.
Mas esta linha divisória; este espaço imaginário que de-
-
signo algo, individualizo-o, distingo-o, estou no mesmo ato
291
reconhecendo tudo aquilo que não é o objeto em questão.
Talvez por isso o mais importante entre aquilo que é e o que
não é não seja propriamente o que é e o que não é, mas a
linha divisória em si.
Do que ela é feita? De que se constitui a fronteira? Se a re-
crio se refazem os espaços de ser e não ser. Quantas frontei-
ras já me foram impostas? Quantas recriei? Quantas já me
impus? De quantas desisti? E quantas linhas voltei a riscar
no chão em momentos de êxtase ou desespero – ou serena-
mente enquanto o sol entra pela janela, colorindo de luz e
sombra o assoalho da minha sala?
As fronteiras que a pandemia de COVID-19 impôs a mim:
-
sariamente melhores, certamente não sem dor ou angústia.
-
nitivamente como um ato de sobrevivência. Recriar gestos,
reinventar convivências, beber mais vinho e ouvir mais mú-
sica, ler mais romances – este esforço cotidiano para que os
devaneios cheguem e passem sem me levar com eles. Sobre-
viver e amar. Amar sem trégua. Viver, apesar de.
E tenho acompanhado o processo de vários que, privi-
legiados como eu, engajam-se na tarefa personalíssima de
reconstruir seus próprios egos nas indeléveis disputas com
o alter. A dimensão pública desta reconstrução, aquela que
envolve a luta política, também tem sido objeto da minha
vida – instinto de sobrevivência. Temos falhado grandemen-
te na construção do isolamento social como ação coletiva.
Estruturalmente reduzidas, as condições de possibilidade
por
supuesto – não encontram sequer na superfície institucio-
292
Sob ataque e corroídas por seus próprios deméritos, as insti-
tuições democráticas respondem menos do que delas pensá-
vamos poder exigir em um passado não tão distante. Mas aí
ainda estão. Pulsam. Resistem como uma forma de lembrar-
-nos da urgência de olhar para as nossas próprias frontei-
ras. E movê-las. Politicamente, empurrá-las. Decididamente
avança-las como eu agora movimento o sofá para aproveitar
os últimos raios de sol do primeiro dia do inverno do ano de
2020 – aquele que inaugura o resto da minha vida.
Poema pandêmico
Anamaria Alves
Ruínas do Quilombo Chácara dos Pretos,
Belo Vale, Minas Gerais, junho de 2020
294
Um dia vivido durante a pandemia. Pela manhã o agradeci-
mento por mais um dia de vida-morte.
Covas coletivas para covid.
Terra e ossos mais uma vez como em Brumadinho há um
tempo.
Orixá Nanã é senhora do barro.
Quantos corpos em meio à lama tóxica?
Quantos corpos contagiosos no cemitério agora?
E os doutores da lei fazem mais um convite ao covid.
Ainda manhã. Introspecção. Mais mortes.
O ceifador sou eu? Eu humAna.
No mais profundo encontro comigo vejo no espelho os tra-
ços ancestrais. Meu povo.
No mais profundo encontro comigo quero me descobrir Ori-
xá, mas só vejo a face de Iku.
Orixá da morte.
Aquele que tudo toca. O medo nos meus ossos gela mais que
o tempo frio do inverno das Minas Gerais.
São duas da tarde. Sem fome, não almocei. Muitos brasilei-
ros também não. Mas estes não têm comida na mesa.
Ouço o Clube da Esquina dizer que “sonhos não envelhecem”.
O sonho sou eu? Essa resposta eu sei: Um dia alguém
295
acordou sorrindo no chão de barro de uma senzala após
sonhar que seu povo seria livre. Um dia alguém chorou antes
de mim.
As lágrimas escorrem na face do espelho. Não são de tris-
teza.
Eu sou um sonho louco. Vejo no vidro da janela a face de
Obaluaê. Senhor das pragas. Quando ele dança, espalha
pragas no mundo e o limpa de humanos.
E agora eu sou sujeira. Eu humAna.
-
vaneios políticos típicos do Brasil 2020.
resto.
Resta a vontade de deitar no barro embaixo das árvores no
meu Quilombo e ouvir a natureza dizer:
“eu ainda estou aqui”.
E então seremos uma. A natureza e eu.
Assim é a morte. Fundir-se ao tudo.
Madrugada.
Durmo em paz. Logo amanhecerei.
Vida-morte-pandemia!
Fermentação natural e pandemia: o
tempo lento da vida
Karla Guerra
Belo Horizonte, 22 de junho de 2020
298
Faço meus próprios pães há, pelo menos, oito anos. No início
-
va comendo. No entanto, depois de ter contato com algumas
técnicas e saber que a fermentação natural oferece inúmeros
benefícios à saúde, comecei a me interessar pelo assunto.
em casa para pessoas próximas e me convidou. Lá estava
eu em um domingo, com várias pessoas que não conhecia,
falando sobre pães. Um dia inteiro dedicado a entender todo
o processo, com seus inúmeros detalhes e etapas. Voltei
para casa com meu “tamagotchi” – como costumo chamar
o levain – em um potinho e inscrita em uma comunidade
de compra de farinhas no WhatsApp. Agora mantê-lo vivo e
bem alimentado era uma responsabilidade assumida.
Depois de vários meses dedicada a aprender mais e mais,
abandonei a fermentação natural, frustrada com os resulta-
dos desastrosos e alguns poucos sucessos. Retomei a saga
do pão de fermentação natural no ano passado. Emprego
novo, colegas ainda desconhecidos e o pão de fermentação
natural foi um cartão de chegada que abriu portas e rendeu
algumas exclamações. Logo o trabalho solapou a dedicação
levain morreu.
299
Ao contrário do levain, a leitura, as redes sociais e os li-
vros sobre fermentação natural continuaram a povoar meus
Furtini, cuja receita deu origem a esta que compartilho, que
sofreu algumas poucas adaptações). Ela aconteceu no últi-
levain, um pão para assar em casa e uma apostila.
Com a quarentena e munida de um aprendizado fresqui-
nho para colocar em prática, comecei novamente a fazer
pães de fermentação natural. É um processo que dura pelo
menos 24 horas. Sim, exige muito trabalho, atenção, dedi-
cação e o respeito ao tempo. O tempo lento da fermentação.
De alguma maneira, fazer pão me acalma. É quase uma me-
ditação: toda atenção às medidas precisas, aos tempos, aos
processos, às técnicas e principalmente ao aprendizado.
Não adianta lutar contra esses princípios. A criatividade só
vem a partir do domínio do processo básico, que consiste em
propiciar as condições ideais para que a natureza faça o seu
próprio trabalho.
Neste sentido, fazer pães de fermentação natural guarda
semelhanças com o contexto da pandemia. Numa escala glo-
bal, a industrialização acelerou o tempo, subjugou o artesa-
nal, desrespeitou o ritmo da natureza e tornou o dinheiro o
grande mediador das relações sociais. O mesmo aconteceu
com os pães: ganharam aceleradores e simuladores de sabor
e são produzidos em larga escala, em esteiras rolantes e de-
positados anonimamente em grandes mercados.
Quem faz pão de fermentação natural desenvolve não so-
mente a rede de glúten que faz o pão crescer, mas se integra
a uma grande rede de pessoas extremamente colaborati-
vas. Pessoas que se disponibilizam a dividir conhecimento,
300
receitas, grupos auto-organizados para comprar farinha, in-
dicar fornecedores, equipamentos, utensílios, dividir apren-
dizados, contatos, buscar, levar. É uma grande rede de tro-
cas, extremamente democrática e receptiva.
De alguma forma, fazer pães de fermentação natural nos
obriga a observar como o tempo lento da vida nos defron-
ta com o essencial. E não tem nada mais simples: farinha,
água, fermento e sal.
Pão Lento de Cacau
450g de farinha de trigo
40g de cacau
320g de água
10g de sal
149g de levain
Alimentar o levain e aguardar o pico do fermento. Pesar e
misturar todos os ingredientes e colocar em uma vasilha com
tampa ou uma bacia com um pano úmido por cima ou papel
-
das da massa e dobrá-las em cima de si mesmas, da beirada
-
balhar a massa durante 5 a 10 minutos. Não trabalhar muito
a ponto de esquentar a massa. Depois das dobras armazenar
tudo na mesma vasilha tampada na geladeira por cerca de
entre 17 ou 18 horas). Cerca de duas horas antes de assar o
pão, retire da geladeira, modele e coloque em uma vasilha co-
berta com um tecido limpo e polvilhada com farinha de arroz
ou de trigo. Pré-aquecer bastante o forno (o ideal 240oC), ou
seja, cerca de meia hora em temperatura máxima na maioria
dos fornos comuns de fogão. Corte um pedaço de papel para
assar para forrar a parte debaixo da panela (para o pão não
301
grudar) e forre o fundo da panela (não precisa untar). Risque
-
nela de ferro tampada ou em uma panela que possa ir ao for-
no (inox, de barro ou outra que não tenha nenhum elemento
de plástico ou outro material que derreta no forno). Pode ser
usada uma assadeira com outra na parte debaixo com água
ou ainda borrifar água limpa no forno nos primeiros 20 minu-
tos, logo que o pão for colocado no forno (a ideia é fazer algum
vapor no início da cocção). Assar 25 minutos com a panela
tampada (ou na assadeira com vapor no forno) e outros 25
minutos com a panela destampada (ou sem vapor no forno).
Depois de assado, retirar e colocar em uma grade ou na trem-
pe do fogão. Aguardar o pão esfriar antes de partir (essa é a
parte mais difícil da receita).
303
O carinhoso convite de Andréa Casa Nova Maia e sua mãe
me trouxe um dilema acerca do que falar do meu período de
isolamento. Nesses mais de 100 dias minha vida tem sido
uma gangorra entre a cozinha e a biblioteca. Entre pães e
livros, farinhas e aulas remotas, pesquisa e fermento seco,
tenho vivido meus dias à espera de um milagre. No fundo
tenho uma fantasia de que viveremos assim para sempre
e devido a essa crença pessimista não me sinto ansiosa. É
como se esse tempo fosse ser o “novo normal”, pois inventa-
da a vacina, outros vírus viriam, da Amazônia destruída ou
de outros morcegos da China e nos manteriam dessa forma
Durmo muito bem, mantenho bom humor, me alimento
com equilíbrio, faço exercícios, trabalho e faço pães, muitos
pães. Baguetes com biga ou sem biga, sourdough de vários
formatos, Babkas recheadas de chocolate ou goiabada, pães
italianos, chapatis, rolls de canela.... Distribuo os pães que
não como. A pandemia me deixou mais solidária, embora
sempre tenha sido. Por isso, não vou falar só de pães. Vou fa-
lar sobre o meu maior incômodo: o insolidarismo brasileiro.
Somos desde 1889 “republicanos”. Talvez seja a república
uma forma de governo totalmente consolidada no imaginário
304
brasileiro, dado que o plebiscito de 1993 comprovou nossa
total desvinculação emocional com o regime pregresso. Mas
nem todos somos republicanos e é sobre isso que quero falar.
República – res populi – é o que pertence ao povo, o que é de
interesse coletivo aos cidadãos. Isso implica em pensar que
ser republicano é pensar menos no meu interesse individual
ou de grupo, em prol do interesse comum.
Uma república para existir requer um acúmulo de cultu-
ra cívica, o que se dá por meio da capacidade de cooperar
-
o acúmulo de experiência solidárias e recíprocas. Faço as-
sim uma associação entre República, Cultura Cívica e Soli-
darismo. Este tripé garante a todos os cidadãos o bem-estar,
mesmo em conjunturas adversas.
Nos anos 1930, passados quarenta anos de experiência
republicana, os brasileiros sentiram saudades de seu Impe-
rador, já que a república não havia constituído uma comu-
nidade cívica nos Trópicos. Um teórico autoritário entre os
muitos intérpretes do Brasil, para mim, fez o diagnóstico
perfeito. Oliveira Vianna, contrapondo-se às análises mais
otimistas de Gilberto Freyre nos avisava: predomina no Bra-
sil o espírito de clã e por essa razão não conseguimos forjar
relações solidárias, indispensáveis à composição de uma res
publica. É triste concordar com Vianna, mas ele tinha razão.
Duplo incômodo: com a avaliação e por ter sido ele o autor.
Comportamentos instintivos dos animais nos ensinam
que nos momentos de escassez de recursos, o líder da mati-
lha protege o seu grupo, mesmo que para isso tenha que des-
truir seus competidores. Quando foi que nos tornamos lobos
de outros homens? Vianna dizia que o insolidarismo tinha
305
a sua principal manifestação na defesa que os chefes locais
faziam de sua família, mesmo que ampliada, se valendo de
todos os recursos e estratégias para garantir a sobrevivên-
cia de seu bando, mesmo que para isso tivesse que colocar
em risco o bem comum. Como ele estava certo!
Nossa república é pré-hobbesiana. Somos lobos uns dos
outros. Não há Estado, não há nação, não há país, não há re-
pública. Estamos abandonados à nossa própria sorte, cada
um cuidando de proteger o seu clã e abandonando qualquer
o insolidarismo nas bolhas da esquerda e da direita. Na au-
sência de cultura cívica, resta a cada um de nós proteger a
sua própria matilha. Não se trata de egoísmo, mas da ausên-
cia de cultura cívica, de espírito republicano. A pandemia
nos revelou o que já sabíamos, mas não acreditávamos.
Por que nos tornamos assim? Há vários livros a serem
Mas faltam ainda tantas respostas... Imagino algumas de-
las: a escravidão, o extermínio dos índios, uma educação
-
da dos interesses nacionais, entre outras tantas mazelas já
diagnosticadas por inúmeros cientistas sociais.
Muitos de nós estamos extremamente preocupados com
as ameaças à nossa frágil democracia. Para mim esta amea-
ça não é a maior de todas. Nosso risco é perdermos o pouco
de espírito republicano que ainda temos. Aí reside o fundo
do poço. É perdermos a perspectiva de nação, de identidade,
de cultura nacional e, sobretudo, de cultura cívica.
Por isso eu oscilo entre fazer pão e estudar e ensinar His-
tória, entre a cozinha e a biblioteca. É o que me resta fazer.
Misturar ingredientes secos e molhados, que quando bem
fermentados alimentam o corpo por dias, me ajuda a pensar
306
que a soma de algo perfeitamente combinada é capaz de pro-
duzir prazer e satisfação ao corpo. Quando estudo, ensino e
produzo história sei que estou ajudando de alguma forma a
misturar outros ingredientes que ajudem a mudar esse pa-
norama, produzindo esperança de futuro para mim e para
os meus tão queridos alunos e eventuais leitores. Alimento
o espírito. Vida que segue, se possível.
313
Ando assustada. A sensação de incerteza me acossa. A
imaginação dispara, capturada por ondas de medo e indig-
nação. Fantasmas reais e imaginários assombram o meu
-
na Alemanha. Nos diários de Victor Klemperer1, no ano de
1933. Agarro suas palavras. Tomo-as como guia para os
perplexos. Preciso de indícios de como o fascismo se mos-
tra. Estará ele nas palavras, nos atos, nos desmandos, nos
desmontes, na violência? Observo os relatos de quem vi-
menos previsível. Persigo manuais de sobrevivência. Como
me defender do assombro? Como me equilibrar em plena
1 Victor Klemperer, nasceu em 1881, judeu alemão, veterano da Primeira
-
de de Dresden, até que foi demitido de suas funções em 1935. Sobrevive
atividades como professor universitário e morre em 1960. É autor de
LTI: A Linguagem do Terceiro Reich (edição em português) e The Klem-
perer Diaries (1933-1945).
Victor Klemperer. LTI: A Linguagem do Terceiro Reich. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2009.
314
pandemia, numa corda bamba de emoções diárias? Analo-
gias, por que não?
Victor Kempeler, 1933
20 de março de 1933
“Todo novo decreto, anúncio etc. do governo é mais vergo-
nhoso que o anterior. Em Dresden, um escritório de combate
ao bolchevismo. Recompensa por informações importantes.
Discrição garantida. Em Breslau, os advogados judeus são
proibidos de comparecer ao tribunal. Em Munique, o truque
mais desajeitado de uma tentativa de assassinato e vincula-
do a ele a ameaça do “maior pogrom” se um tiro fosse dispa-
rado. Etc., etc. E o jornal zomba!”. 2
12 de abril de 1933
“O poder, um poder tremendo, está nas mãos dos nacio-
nal-socialistas. Meio milhão de homens armados, e todos
os escritórios e instrumentos de Estado, imprensa e rádio.
O humor dos milhões embriagados. Não vejo de onde a sal-
vação viria. (...) O Ministério da Educação da Espanha ofe-
receu a Einstein uma cátedra em uma universidade espa-
nhola. Ele aceitou. Esta é a piada mais estranha da história
do mundo. Alemanha estabelece a limpieza de lo sangre e a
Espanha contrata um judeu alemão.”
25 de abril de 1933
“Nenhuma manhã sem choro violento, nenhum dia sem
histeria. Estou quase embotado diante de todo esse infortú-
nio. Não penso mais no amanhã”.
2 Victor Klemperer, I Will Bear Witness, Vol.1: A Diary of the Nazi Years
(1933-1941). New York: Modern Library, 1999.
315
28 de julho de 1933
Cerimônia junto ao túmulo dos “matadores de Rathenau”.3
Quanto desdém, quanta amoralidade, ou melhor, quanta mo-
ralidade do dominador prepotente está nesse substantivo
-
gurança alguém deve sentir para se expressar desse modo!
Será que as pessoas se sentem seguras? Há muita histe-
ria nas ações e nas palavras do governo. Seria preciso es-
tudar alguma vez, de maneira muito especial, a histeria da
linguagem.
(...) O sintoma mais agudo de insegurança é a atitude
o Führer pronuncia algumas frases diante de uma grande
assembleia. Cerra o punho, contorce o rosto, sua fala lem-
bra mais o urro de um animal, está mais para um acesso
de cólera do que para um discurso. (...) Hitler aparenta ser
o todo-poderoso, e talvez seja; nesse documentário, porém,
a impotência de seu ódio aparece nos gestos e no timbre da
voz. Alguém anunciaria assim, tão reiteradamente, um rei-
nado milenar e a eliminação dos opositores, caso se sentisse
seguro quanto à duração desse reinado e ao extermínio dos
opositores? Saí do cinema vislumbrando alguma esperança.
22 de agosto de 1933
As mais diversas camadas sociais emitem sinais de que
se cansam de Hitler. (...) Será que estou me iludindo quando
sinto esperança ao ouvir tudo isso? Esse desvario absoluto
não pode perdurar! Quando a embriaguez do povo vai pas-
sar? Quando começará a ressaca do dia seguinte?
3 Walther Rathenau (1867-1922), industrial, economista, político e escri-
-
ção de extrema-direita.
316
29 de outubro de 1933
De uma hora para outra, uma grande confusão. Foi decre-
tada uma mudança no rumo da vida universitária: às ter-
ças à tarde não haverá aulas, pois nesse horário todos os
estudantes praticarão Wehrsport (esportes militares). Logo
me deparo com um mesmo nome em uma caixa de cigarros
da marca Wehrsport . Tudo meio encoberto, meio desvelado.
(...) Será que algum dia descobrirei uma palavra verdadei-
ramente honesta nesse regime?
9 de novembro de 1933
Hoje, meu seminário sobre Corneille só atraiu dois parti-
a questão da delimitação: será que isso mostra a linguagem
do Terceiro Reich?) Por que o número de meus ouvintes
diminui de maneira tão drástica? O francês como matéria
optativa , deixou de ser apreciado pelos estudantes; consta
como antipatriótico, ainda mais literatura francesa minis-
trada por um judeu! É necessário até mesmo um pouco de
coragem para assistir as minhas aulas. Além disso, os alu-
nos têm tido baixa presença em todos os cursos: estão muito
ocupados com os “esportes militares.”
31 de dezembro de 1933
“Estaremos completamente sozinhos esta noite. Eu tenho
medo disso. Nossos dois pequenos gatos são sempre um con-
forto e apoio para nós. Eu me pergunto mil vezes com toda a
seriedade, qual é o estado de suas almas imortais?
amarga e desesperada do que a da guerra. Nós afundamos
profundamente.
317
Em 1946, Klemperer diria
sobre o seu diário no ano de 1933:
“Reuni aqui o que anotei em meu diário, nos primeiros
meses do nazismo, sobre a nova condição e a nova lingua-
gem. Naquele tempo o estado das coisas era incomparavel-
mente melhor do que o que veio depois. Eu ainda ocupava
meu cargo, vivia em minha própria casa, era um observador
ainda não molestado. Por outro lado, era uma pessoa pouco
atuante, acreditava que vivia em um estado de direito e já
considerava como o mais terrível dos infernos o que estava
acontecendo. Mais tarde tudo me pareceu como se aquele
tempo não passasse do preâmbulo, como o limbo de Dante.
Porém, por mais grave que fosse a situação, tudo o que veio
reforçar as convicções, as ações e a linguagem nazista, tudo
já podia ser entrevisto naqueles meses iniciais.”
318
Notas sobre o desentendimento
Américo Freire
Mury, Nova Friburgo, Mês três do corona, 12 de junho de 2020
319
A vida não está nada fácil em 2020 – esse ano que nos
colocou e nos coloca em xeque. E, pelo andar da carruagem,
devemos seguir assim por mais tempo. Para os céticos a per-
gunta-chave não diz respeito à duração desse estado de coi-
sas. Mas sim a extensão desse novo normal.
Começo essas notas recuperando um dito lido a pouco no
Facebook – “quem não está confuso não está bem informa-
do”, disponibilizado na rede pelo historiador e parceiro
Carlos Fidelis. É exatamente assim que tenho me sentido
desde a eleição daquele que diz que nos governa em meados
de 2018.
A sensação primeira é de decepção e estranhamento com
todo esse espetáculo que teima em se repetir a cada dia. Cla-
ro que há momentos em que tudo ganha cores mais fortes
que nos ajudam a compreender um pouco melhor o buraco
em que estamos metidos. O mais extraordinário deles foi a
reunião ministerial do dia 22 de abril quando acompanha-
mos o bando reunido e bufando. Daniel Aarão, em boa tira-
da, chamou aquilo de governo de cuecas.
-
teiro deve ter sido inspirado em “Um dia de fúria” – película
estrelada por Michael Douglas em sua melhor forma. A cada
320
cena uma explosão alucinada do protagonista. Ou também
nos episódios incendiários de “Relatos selvagens” quando
Ricardo Darin e outros craques do cinema argentino jogam
tudo para o alto, literalmente.
E, para não deixar por menos, temos a pandemia corona
nada aconteça e que tudo passe o quanto antes.
Pergunto, então, dá para encarar essa sem nos enrolar,
sem nos atormentar, sem nos retrair, contando claro com
nossos amores reais e amigos virtuais?
-
mos fortes e tratemos de reconhecer esse mal-estar corro-
sivo e doentio.
Alguma coisa acontece com todos nós e não temos a me-
nor ideia do que é e menos ainda do que virá a ser. Nem a
sombra ou a silhueta conseguimos enxergar. Talvez seja o
caso de deitar fora os nossos velhos óculos.
322
Olhando pela janela de minha clausura me passou pela
cabeça o que explica termos chegado nessa situação. Acre-
dito que nas sociedades atuais há ao menos três fatores que
ajudam a explicar a rápida disseminação desta e de futuras
pandemias, caso não aprendamos a lição:
1) Redução do tamanho do Estado - políticas de auste-
ridade vem sendo implementadas e difundidas a partir da
década de 1980. Elas vêm favorecendo o desmonte de políti-
cas sociais, principalmente de saúde, educação e assistência
social, aumentando a situação de vulnerabilidade e miséria
social, que condena multidões a uma vida sem emprego,
sem acolhimento, sem renda e sem perspectivas. Esse fa-
tor é importante para compreender porque muitas pessoas
dos gastos com saúde. Por entender a saúde como um gas-
to, o sistema é colocado cotidianamente em seu limite de
cenário, os testes que deveriam estar sendo realizados em
massa como forma de contenção da doença não são realiza-
dos por falta de kits e de pessoal para realizar os exames. A
única medida viável para tentar reduzir o colapso iminente
é manter todos em casa de quarentena, como se fazia antes
323
da descoberta da penicilina e da criação do sistema público
de saúde em muitos países. Mesmo assim há pacientes mor-
rendo sem serem testados.
2) Megacidades e pauperização – outro fator de fácil pro-
pagação são as Megacidades, que aglomeram milhões de
pessoas em espaços cada vez mais reduzidos, muitas em si-
tuação precária de vida, higiene e alimentação. Sem coleta
de lixo, acesso à água potável de forma ininterrupta, sem
esgotamento sanitário (e quando tem, sem tratamento). A
maior aglomeração de pessoas nas cidades torna possível
a oferta desses serviços com menor custo, mas a redução
do tamanho do Estado reduz também a capacidade de in-
vestimento na cidade, em especial nas áreas mais pobres (o
investimento tem que ser economicamente viável ou rentá-
vel). A falta de acolhimento por parte do Estado joga a popu-
-
segue parar suas atividades em alguns casos, mas aquele
que vive de bico não tem como parar. Mega cidades têm alta
circulação de pessoas de diversas partes, sendo um gran-
de laboratório de vírus e bactérias novas. Quando aconte-
ce uma situação de crise e a classe média urbana necessita
parar ou reduzir seus gastos isso repercute drasticamente
na frágil fonte de subsistência de metade da população, que
estará nas ruas de uma forma ou de outra.
3) Modelo econômico poluidor – numa sociedade em que
tudo é visto como gasto, pregando religiosamente a redução
de despesas, a meta é fazer a economia crescer e produzir
menos impostos (reduzir o tamanho do Estado), obter mais
recursos naturais e humanos pagando cada vez menos, am-
pliar a produção de forma contínua como se o mundo fos-
324
produz novas pandemias de vírus e bactérias desconheci-
-
blico, pois o que importa são contas saneadas. Nesse modelo
-
garantir a produtividade e mantê-los quase inoperantes por
falta de verbas. Isso explica tragédias como as de Mariana,
Rio Doce, Brumadinho, o vazamento de óleo na costa do nor-
deste brasileiro, etc. (todos até agora sem resposta por con-
ta do desmantelamento dos órgãos de controle).
A esses três fatores, agregue governos de extrema direita
-
quisadores, cortam investimentos em setores essenciais de
pesquisa e inovação, propagam ideias medievais, subnoti-
abertamente o modelo poluidor de Estado mínimo com re-
pobres.
326
A pandemia nos pegou de surpresa. Sem saber o que
fazer, como seria, o que esperar e, sobretudo, quando iria
terminar, a angústia tomou conta de mim. Milhares de in-
dagações fazia constantemente. Mas o fator que contribuiu
para o aumento de minhas preocupações era o desgoverno
em nosso país. O presidente da República, a cada pronun-
ciamento, aumentava o meu estado de desânimo, a minha
ansiedade e o pânico de ocorrer uma desgraça ainda maior
que a própria pandemia.
arrogante e com requintes de maldade eu pude notar nitida-
mente em meu bairro. Ao minimizar o vírus como uma “gri-
pezinha” e incentivar a população a manter suas rotinas de
trabalho e a sair às ruas, vi, quando tive necessidade de ir ao
mercado, à farmácia e de pedir comida, dezenas de pessoas
levando suas vidas normalmente, sem máscaras, sem dis-
tanciamento, sem a menor preocupação com a possibilidade
de contágio. No Recreio dos Bandeirantes a vida transcor-
ria sem maiores transtornos. Por isso, não foi fortuitamente
que vários organismos de imprensa e redes sociais passa-
ram a chamá-lo de genocida.
327
Um caso, no mínimo curioso, chamou-me atenção: embo-
ra o acesso ao banho de mar estivesse proibido, a Polícia Mi-
litar tinha que, a todo instante, retirar as pessoas da faixa
de areia. O calçadão, sobretudo em dias de sol e calor, estava
sempre lotado. Até aí, tudo bem! Atividades ao ar livre es-
tavam permitidas. Entretanto, diversas pessoas aglomera-
vam-se perto dos quiosques ou em outros pontos, sem estar
praticando atividade nenhuma. Como disse, a vida, no meu
bairro, continuava a seguir o seu ritmo. Somente a partir de
meados de maio é que vi muitas pessoas usando máscaras.
Durante todo o período de quarentena, que hoje já dura
cerca de 90 dias, meu trabalho on-line aumentava no mesmo
ritmo que os devaneios, as maldades e as fake news propa-
gadas pelos apoiadores do desgovernante. E, mais uma vez,
minha angústia galgava mais alguns degraus. Constatei na
prática o que as estatísticas demonstravam. A maior parte
dos meus alunos (escola pública) não tem acesso à internet
e, com isso, estão fora das minhas aulas. Além disso, aque-
tempo, fazer as atividades e compreender as informações
e os conteúdos transmitidos. O quarto, a sala de estar ou
qualquer cômodo de uma casa não reproduz, nem em suas
características mais básicas, o ambiente escolar. A dinâmi-
ca não é a mesma. Portanto, a relação ensino-aprendizagem
também não é.
Percebi também que, quanto mais tempo passava de fren-
-
-
pessoal presencial, nada substituirá a troca entre professor
e aluno dentro de uma sala de aula.
Entretanto, meu maior sofrimento era estar longe do meu
328
de poder contaminá-lo era maior do que a saudade que sen-
tia e a falta que ele fazia. Com os números de contaminados
e mortes aumentando a cada dia, percebia que, infelizmen-
te, o isolamento se fazia necessário.
Meu pai, de 73 anos, por motivos de saúde, só consegui
vê-lo na semana passada, embora nossas chamadas de ví-
deo, ligações e mensagens por celular fossem rotineiras.
A vida continua, eu sei. Mas não é a mesma. E, depois de
toda essa experiência vivida e de inúmeros sentimentos
332
O senhor J tem medo do Novo Coronavírus e acha normal
epidemias. J acredita que a sociedade aprendeu a temer e a
transformar o medo em lutas e conquistas. Uma pandemia
assusta e dá oportunidades de saídas. J é um otimista. Pen-
sa na vacina contra a Covid 19 como solução próxima e em
terapêutica que cura, ainda mais rápida. O otimismo de J é
incurável!
O cidadão J tem alguma impaciência com o isolamento
social porque se vê privado de pessoas amigas em contato
corporal, impossibilitado de ir dar suas aulas. O velho J está
impedido dos papos de bares (no plural, porque ele gosta de
muitos e de variados, papos, amigos e bares). Ficar sem cer-
veja com acompanhamento de gente é triste para J!
Ele sente tristeza pela morte de muitos: dos que morrem
pelo contágio e dos que se matam pelo medo dele. J tem hor-
ror ao “novo normal” da vida para evitar o contágio. Acre-
dita nos imprescindíveis cuidados e os cumpre à risca, mas
pensa na coragem, no rigor, na atenção constante, na acui-
dade com os movimentos e com os gestos e conclui que isso
é chato e cansa. A morte é limite que ele não busca. A perda
333
da morte o deixa mesmo de luto. O corajoso J pensa mais em
J anda sentindo cansaço físico pela ausência de tarefas
corriqueiras fora da domesticidade forçada. Anda com o
corpo cansado de inatividade, doído pelo excesso de des-
canso. Para ele a domesticidade acolhe e oprime, protege e
fragiliza.
O professor J é solidário nesses tempos loucos; tem aju-
dado pessoas e grupos com doações e conversas telefônicas.
Do WhatsApp, do Instagram e do Facebook anda se afastan-
do por pura impaciência.J pensa sobre essa solidariedade:
faz mais bem a ele que ao outro e sente-se incomodado por
isso.
O J impaciente tem ojeriza à desinformação nas redes so-
ciais. Sufocado por elas nesses dias de internação, vê os ab-
surdos ditos como mau-caratismo ou falta de sensatez. Sen-
te-se idiota frente à desinformação reinante. J, no entanto,
não quer pregar prudência em nau de insensatos.
J administra tudo isso, mas, perde o juízo quando ouve o
presidente da República e seus [m]sinistros e tem vontade
de romper com o isolamento e agredi-los verbalmente nas
ruas. J contenta-se com a janela e desconta a raiva em seu
pandeiro. Não sabe tocar o instrumento, mas percebeu seu
som como mais assustador e poderoso que o das panelas.
Guerra de janelas! Ufa! Contra os xucros, o xucrismo!
Xucro? Xucrismo? J foi ao Aurélio.
xucro. Adj. 1. Bras., MG e S. Diz-se do animal de sela ain-
da não domesticado. 2. Bras. P. ext. Diz-se do indivíduo ainda
não treinado em qualquer tarefa, ou de coisa ainda muito
imperfeita. 3. Bras. P. ext. Ignorante, rude, bronco. 4. Bras.
P. ext.
seria chucro.]
334
xucrismo. S. m. Bras. Xucrice. [Chucrismo seria a boa
escrita.]
xucrice. S. f. Bras. 1. Qualidade de xucro. 2. Ignorância,
rudeza. 3. Falta de educação; grosseria. [Sin. Ger.: xucris-
mo. A boa escrita seria com ch.]
J foi ao Google.
Xucro
Diz-se do animal que não foi ou não está
domado; selvagem, bravio, intratável:
cavalo xucro.
Que não possui capacidade para fazer
certos trabalhos e/ou atividades.
J não gosta de comparar os homens e as mulheres xucros
ou chucros com os animais. J respeita os animais. J percebe
a inteligência dos bichos; eles são diferentes dos inciviliza-
dos. Acha a comparação injusta.
Para J, JMB, o eleito, é arauto da ignorância e da rudeza,
paladino do xucrismo; AW, PG, RS, EA, DA, AH – o gal. de
pijama –, etc. etc. são grosseiramente xucros humanos. São
de natureza distinta dos burros, dos jumentos e de outros
animais. Para J, não se compara o incomparável! J ama os
animais – os burros e os jumentos, inclusive. J detesta essa
gente xucra, ignorante, malfeita, mal-educada, rude, bron-
ca, incivilizada.
J odeia o escuro. J tem mais pavor do obscuro. J quer
desnudar e iluminar o obscurantismo.
335
J é um cidadão indignado: transforma medo, ódio, antipa-
tia, ojeriza e a desonra dos xucros [ch] em indignação!
Na quarentena, isolado socialmente, consciente dos ris-
cos do adoecer, J teme mais os vermes e os xucros que o
novo vírus. Os vermes-xucros são mais destruidores; ma-
tam mais. Os vermes-xucros destroem a sensatez; tomam a
todos como idiotas.
Com X ou com CH, J quer os xucros e a “gripezinha” deles
FORA!
336
A Covid-19 e a pandemia dos imbecis
Libania Xavier
Friburgo, Rio de Janeiro, 14 de junho de 2020
337
Em entrevista concedida em abril de 2020, o ator argen-
tino Ricardo Darin argumentou que, em meio à pandemia
da Covid-19, ele considerava ser muito mais difícil lutar
contra a pandemia dos imbecis. O comentário livre do ator
me remeteu ao tempo em que o atributo imbecil
de acordo com os testes de inteligência adotados no início
do século XX, em países como o Brasil, os EUA e a França.
Nesse contexto, circulou uma escala de avaliação da inte-
ligência de crianças em idade escolar que, de acordo com
na fronteira entre a métrica de uma inteligência superior
e uma inteligência inferior como rudes ou débeis mentais.
-
cretino (débil mental superior); imbecil (débil
mental médio) e idiota (débil mental inferior).1 Esse tipo
de testes foi fartamente criticado, sobretudo por tratar de
modo homogeneizador diferenças individuais e marcas de
classe, etnia e gênero. Ainda hoje, tais marcas não foram
1 Sobre o assunto, ver a dissertação de Ana Rocha, O que fazer com os
rudes? Isaías Alves e as divergências sobre o papel da inteligência na
organização escolar (1930-1942). Programa de Pós-Graduação em
História, Política e Bens Culturais, CPDOC-FGV, 2011 (pág.43).
338
-
ção positiva dessas marcas identitárias tem alcançado nos
últimos anos, contrasta com a virulência com que elas veem
sendo atacadas, mais recentemente.
Pensando nas duas referências mencionadas, assim como
nos avanços sociais que se encontram sob ameaça, imaginei
que o atributo sugerido livremente por Darin – e que outrora
foi utilizado para fortalecer estigmas socialmente construí-
inteligência específi-
ca, um modo de compreender e agir que vem tomando conta
da cena nacional. Seu campo cognitivo está focado apenas
nos interesses materiais e imediatos, no senso de oportu-
nidade para aumentar os ganhos privados, ainda que, para
isso, se adote uma política de morte dirigida a toda a popu-
lação, a que Mbembe chamou de necropolítica2. No rastro
-
da de princípios éticos e morais que lhe imponham limites.
Essa situação passou a fazer parte de nosso cotidiano, com-
parecendo ao noticiário, diariamente e, desse modo, fazen-
do sombra a pensamentos e ações construtivos, criativos e
solidários.
Nada disso estava previsto na trajetória de uma geração
processo de construção democrática que se seguiu a este
evento e se estendeu por boa parte de nossa vida produtiva.
A cada dia, temos uma surpresa com as manifestações de
indivíduos e grupos que comungam concepções e práticas
racistas, misóginas e homofóbicas. Estas estão sendo cada
2 MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção,
política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo, 2018. 80 p.
339
vez mais naturalizadas e vão se avolumando, congregando
e dando visibilidade a seres desprovidos do sentimento de
empatia. Acrescente-se a isto, os ataques à ciência assim
como as práticas de desconstrução das memórias históri-
cas, pela disseminação de notícias falsas.
Minha percepção é a de estar sendo alvo de práticas de
assédio moral, operadas em nível nacional, visando desqua-
-
querda. Como Darin, eu me vejo imprensada entre duas pan-
demias: a da covid-19 e a dos imbecis de hoje que instigam o
ódio e o medo, em consequência de seus atos e declarações
públicas. Esses atos e declarações sistematicamente divul-
gadas pelas mídias promovem um desequilíbrio psíquico em
-
ções e crenças.
Em meio a essa pandemia psíquica – que nos desequili-
bra e entristece, nos desorganiza e nos deixa indignados e
inseguros – desencadeia-se a pandemia do novo coronaví-
rus, bem mais concreta e avassaladora, visto que ameaça
a nossa própria vida, a vida de quem amamos e, sobretu-
do, daqueles grupos mais vulneráveis. Frente a ela, fomos
obrigados a suspender nossos hábitos de sociabilidade,
nos recolhendo em nossas casas, mas sem abandonar o
trabalho.
Para quem atua na Universidade, foi adotado o trabalho
remoto para garantir, ao menos parcialmente, a continui-
dade de nossas atividades e projetos. Aliás, por falar em
projeto, um entre os muitos problemas que se colocam para
os professores universitários diante dessa nova situação
é a questão de adotar, ou não, aulas remotas, sem excluir
aqueles alunos que não possuem equipamentos ou acesso à
340
internet. Outra preocupação é a de não contribuir para na-
turalizar o uso de plataformas e aulas digitais sem cuida-
do com a inclusão e a adequação de conteúdos e condições
igualitárias de aprendizagem. Vale lembrar que o ensino a
distância tem sido uma estratégia largamente utilizada por
grupos privados, que lidam com a educação visando o lucro
e, nessa linha, adotam práticas de gestão que levam ao de-
Por outro lado, o recolhimento que a pandemia do novo
mais distanciamento sobre a realidade anterior a ambas as
pandemias. Nesta outra realidade, o que eu vejo são turmas
trabalho e dispersão em atividades múltiplas, constante-
-
competitividade entre pares. Mas o fato é que, a par do dis-
tanciamento de nossos locais de trabalho, nenhum de nós
está trabalhando menos por conta da quarentena. Nossas
atividades de orientação, extensão e de pesquisa continuam
a todo vapor.
Tendo em vista que a Universidade se constitui como um
que nós teremos capacidade de apresentar à sociedade uma
proposta original e consistente para o desempenho de nos-
sas atividades de produção e disseminação de conhecimen-
tos. Nessa pausa, seguimos revendo nossas certezas e en-
saiando metodologias de trabalho mais adequados às novas
condições que permeiam o futuro incerto que se anuncia.
Finalizamos esse pequeno desabafo, certas de que, qualquer
341
que seja a metodologia encontrada, ela estará coerente com
os princípios éticos e morais que marcam a diferença entre
contraposição aos negacionismos e à apologia da violência.
343
Na noite em que a Regina Duarte, na época Secretária da
Cultura do Brasil, concedeu uma entrevista eu não dormi,
não deu. Agito nas redes sociais: trabalhadores da cultura,
atenção! A pauta da luta é aprovar a Lei de Emergência Cul-
tural, postaram. Lei que prevê utilizar os recursos do Fundo
Nacional de Cultura para apoiar os artistas nesse momento
da pandemia. Os trabalhadores da cultura foram os primei-
ros a parar e serão os últimos a voltar em todos os setores
e linguagens. Havia naquele momento uma importante mo-
bilização nacional, muitas reuniões por web conferência.
Além dos debates sobre a Lei Aldir Blanc eu acompanhava
os movimentos de solidariedade para apoiar artistas, todo
um trabalho de mobilização para arrecadar cestas básicas
e distribuí-las. Naquela noite todos compartilharam textos
indignados com os impropérios ditos pela Regina Duarte.
Era 08 de maio de 2020. ´No texto da atriz Regina Duarte
havia a mesma frequência repetida pelos bolsominions mo-
derados: vamos em frente! Eu quero paz! Neguei, disse para
mim mesma que não queria ver e ouvir tamanho absurdo!
Me dizia, ela fala com eles. Inquieta, dormi muito mal, uma
dor indescritível. Como ela poderia tratar os artistas com
tamanho desrespeito? A dor me corroía. Ela é atriz, me
344
dizia! Ela fez a Viúva Porcina, ela não é incompetente. Ela é
atriz, o que faz uma atriz ocupando a cadeira da secretaria
da cultura do Brasil? Ela encena.
Na madrugada a ideia de encenação me vinha à cabeça.
Ela é atriz, a namoradinha do Brasil? Namoradinha dos tor-
turadores? De qual lado ela está? Qual teatro? Que teatro é
esse que ela encena com os bolsominions? Será um Teatro
da Tortura? Dizemos que nesse governo todos são admira-
dores de torturadores. Portanto, como nós temos assistido?
Como temos atuado diante do Teatro da Tortura?
Na manhã do dia 09 de maio resolvi conversar com um
O escrevi pelo aplicativo de mensagens para perguntar a
respeito dessa encenação, precisava dialogar e tinha no-
tado por meio das redes a abertura do Emiliano ao diálogo
nesse momento de pandemia. Queria eu saber se era possí-
vel dizer que Regina Duarte reencenava a tortura naquela
entrevista. Ela reencenava a tortura ao cantar para todos
um dos hinos da ditadura? Ao negar uma homenagem ao
poeta Aldir Blanc? Emiliano argumentou, “(...) é um contra-
-testemunho. Se o testemunho lembra, repete, insiste em
dizer que houve o que houve, para que a sociedade elabore
através disso a recusa da repetição prática do crime, o que
eles estão fazendo é repetir uma narrativa para elaborar a
possibilidade de uma repetição prática. Um horror, portan-
to!” Ao comentar sobre o Teatro da Tortura com Emiliano,
ele disse: “Regina encena o papel do algoz, do abusador, do
torturador”.
O que podemos entender por Teatro da Tortura? Além de
Aldir Blanc, perdemos durante a pandemia o ator Flávio Mi-
gliaccio que atuou no Teatro Arena, ao lado do Augusto Boal
que criou o Teatro do Oprimido. Na mesma época Zé Celso
345
-
te a sua entrevista, ao cantar a música Pra frente Brasil.
Quando todos queríamos chorar com Marias e Clarices no
solo do Brasil. Ao cantar ela reencena a prática do silencia-
mento, da negação de que houve tortura no Brasil. O Teatro
da Tortura é um ato de tortura pois pretende negar aos so-
breviventes a possibilidade de reelaborar e transmitir por
meio do trabalho da memória. Os bolsominions moderados,
são, portanto, atores coadjuvantes do Teatro da Tortura e
repetem seu texto pelo Brasil afora produzindo a negação
da palavra dos testemunhos e dos artistas, querem impedir
a cura por meio dos trabalhos da memória.
É pavoroso pensar que estamos vivendo uma espécie
de tortura coletiva, tortura que se impõe pelos meios de
comunicação, na guerra cultural, guerra de informações. É
assombroso!
O Teatro da Tortura é uma tentativa de nos impedir de
atuar, de agir, de construir experiências de solidariedade,
de ajuda-mútua. Todos esses são valores do Teatro Colabo-
rativo de José Celso Martinez Correa e Augusto Boal.
Depois de nomear o ato da Regina Duarte de TEATRO DA
TORTURA, estou pensando muito no livro do Didi-Huber-
man “Remontagens do Tempo Sofrido” trago esse livro para
lembrar as imagens do Chile, das curadorias de barricada,
reinventando, reelaborando nossas narrativas, remonta-
gens dos tempos sofridos, desde o começo da colonização.
Outra imagem que trago é do fotógrafo Augustí Centelles
do texto do mesmo livro “Quando o humilhado olha o humi-
lhado”. Augustí Centelles fotografou as barricadas na guer-
346
“Quando o humilhado olha o humilhado, não é somente
o trabalho da humilhação que é dado a ver. É também, por
uma espécie de reviravolta dialética, *o trabalho contra a
humilhação* que se põe em movimento e procura suas con-
dições visuais de aparição. É preciso ter de fato uma energia
política fundamental que Centelles chama, no início do seu
diário, de um “espírito de rebelião permanente” (spirite de
rebel-lia contínua), mesmo quando a situação parece sem
saída para os refugiados que “não recebem uma única aju-
da” tangível. É assim que, em 14 de abril de 1939, dia do
aniversário da República espanhola, ‘todo o bairro combi-
nou que, uma hora da tarde, quando a trombeta anuncia-
ria a retomada do trabalho, haveria um minuto de silêncio
-
tarmente levando a mão ao boné. Eles proibiram toda cele-
bração nas barracas, assim como do lado de fora’. Quando o
humilhado olha o humilhado, ele faz de seu olhar um ato de
conhecimento. Ele não suaviza em nada a experiência sofri-
temporal, tornando-a uma experiência adquirida, uma ex-
periência suscetível de ser transmitida para o futuro.”1
O TEATRO DA TORTURA quer justamente sufocar essa
experiência adquirida, essa que é suscetível de ser trans-
mitida no futuro, nosso presente. O Teatro da Tortura quer
impedir que possamos reelaborar a nossa narrativa que
possibilita o ato de conhecimento produzido quando o humi-
lhado olha para o humilhado. O Teatro da tortura quer nos
1 DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontagens do tempo sofrido. O olho da
história II. Trad. Márcia Arbex e Vera Casa Nova. Belo Horizonte: Edi-
tora UFMG, 2018, p. 236.
347
humilhar a todos, outra vez, repetidas vezes, todos os dias.
Criando desamparo.
Entretanto, todo dia faremos nosso minuto de silêncio e
inventaremos experiências de solidariedade, de ajuda-mú-
tua. O Teatro do Oprimido, o Te-Ato, nos é uma experiência
adquirida, um ato de conhecimento. E no Teatro Colabora-
tivo que vamos atuar para transformar a dor em luto, em
luta, em sonho, em utopia.
348
Isto não é uma guerra pela vida e o
vírus não é democrático
Sílvia Correia
Rio de Janeiro, 15 de junho de 2020
349
Desde o início da pandemia, testemunhamos a recorrente
beborreia do discurso de guerra na boca dos “líderes” po-
líticos. São expressões como: “estamos em guerra”; “vírus
chinês”; “orçamento de guerra”. Em suma, chegam aos nos-
sos ouvidos discursos sobre sacrifícios em prol da economia
“nacional”.
Diria que o discurso de guerra agrada ao cidadão, mais
ou menos bem-intencionado, que vê nestes momentos de
estado de exceção uma certa ordem da coisa sua, ou por-
das ditas sociedades modernas. A guerra contra o inimigo
– não necessariamente externo ao “corpo nacional” – não é
nova, é aliás jargão da gesta diária da coisa sua. Do controle
das economias ao controle dos corpos, a pandemia só per-
mitiu acentuar práticas de autoritarismo há muito aceites,
para largas faixas de sociedades profundamente desiguais.
Dizer que este vírus é democrático é tão falacioso quanto di-
zer que há democracia. Coloque-se as perguntas: quem tem
que encarar a rua para trabalhar?; quem tem acesso às con-
dições de saúde?; quem terá acesso ao milagre da vacina?!
350
A meu ver o que está em questão não é a formulação de
discursos de guerra. A guerra (clássica ou de tipo novo, em-
bora não concorde totalmente com a proposta de Mary Kal-
dor) não é a exceção, mas a norma. A violência armada con-
tra o inimigo – interno ou externo – da comunidade nacional
sempre esteve aí. A guerra é a política por outros meios di-
ria Clausewitz; a guerra é a síntese da violenta experiência
colonial diria Tarak Barkawi.
Perguntada, a propósito de um debate, porque a pande-
mia – uma crise humanitária global – convoca uma lógica da
guerra? Fiquei matutando porque isso não me havia chama-
do a atenção até esse momento. Aliás, nenhum dos discur-
sos claramente mobilizadores deste jargão me chamaram à
atenção. Não porque estude guerra e já tenha esse tipo de
discurso normalizado, mas porque nada de novo me pare-
ceu surgir daqui.
O contexto de pandemia – de ameaça à vida – autoriza
formas de autoridade que, em outros contextos, não seriam
– aparentemente – legítimas. Lógicas de absoluto controle/
uso das vidas em prol de uma causa que, em última instân-
cia, aqueles que controlam o discurso e a esfera pública con-
seguem hegemonizar.
Entendemos que uma grave crise de saúde pública coloca
na mesa a necessidade – ou desejo – de soluções mais ex-
tremas, mas não seria mais adequado aquelas medidas que
preservam o valor da vida e não aquelas que partem de lógi-
cas antagônicas de destruição/seleção? O medo da epidemia
individual (não esqueçamos o que é fundamental para a ma-
nutenção do Poder a ocupação da arena pública) e abre espa-
ço para o sistema tecnototalitário e/ou do velho modelo da
351
à (des)mobilização absoluta para o controlo das estruturas
e dos corpos para uma imunização do corpo nacional (Paul
Preciado). É preciso eliminar o vírus em nome da vida: a
guerra passa a ser pela maior e mais legítima das causas,
contrassenso, mas que serve a quem controla.
Longe de uma discussão ontológica, existem vidas que se-
quer são enquadradas como vidas, passíveis de ser catego-
rizadas como vidas precárias no entender de Judith Butler,
aquelas que os estados enquadram como passíveis de cuida-
do e proteção e, em última instância, passíveis de luto. Cabe
aqui perguntar: quem assume a linha da frente nesta guer-
ra? Quais corpos garantirão a imunização da “comunidade
nacional”? In extremis, como ou quais vidas não produtivas
(maioria de grupos de risco), ao cuidado dos cuidadores –
sendo justa, cuidadoras – vão ser elevadas à condição de
vida precária? Não se trata de uma guerra pela vida, mas
por aquilo que é passível ou não de ser considerado vida, que
é passível ou não de luto. Em síntese, trata-se de uma per-
petuação da política da morte, da necropolítica de Mbembe.
Trata-se da condição permanente das nossas sociedades.
Sempre estivemos e estamos em guerra.
352
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitem-
po, 2004.
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civili-
zação Brasileira: 2019.
BARKAWI, Tarak. “Decolonizing war”. European Journal of
International Security, v 1 n. 2, p. 199-214, 2016.
BUTLER. Judith. Quadros de Guerra. Rio de Janeiro: Civili-
zação Brasileira, 2015.
CLAUSEWITZ, Carl Von. On War. Princeton, New Jersey:
Princeton University Press, 1995.
KALDOR, Mary. New and Old Wars. California: Stanford
University Press, 1999.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições,
2018
Covard-17
Vírus ignorância
Vidas negras importam
NoGenta Street Art X ContraConsciência
Rio de Janeiro, entre março e junho de 2020
354
O ano de 2020 já está marcado para sempre. A crise do
covid-19 mexeu com o mundo de uma forma nunca visto
antes. No Brasil não poderíamos esperar que fosse dife-
rente do que tem sido. A eleição de Jair Bolsonaro trou-
xe um governo instável, despreparado e que se mostrou
contra a democracia e diversos investigações envolvendo
o presidente e sua família. Essas características do gover-
no fazem o enfrentamento e o isolamento social no Brasil
-
lamento que teve início em abril de 2020, fomos vendo uma
onda de negacionistas ao vírus e militantes antidemocrá-
ticos tomar conta das ruas em atos que mais agridem do
que pedem alguma melhora de fato, tínhamos a sensação
de que nada estava sendo feito.
Para nós, artistas e artivistas, esse movimento gerado
por todos esses acontecimentos acaba se tornando combus-
tível para expor nossas ideias e protestar em favor do nosso
bem comum, a favor da nossa democracia, e por um lugar
mais justo. Esse é o objetivo principal da nossa arte.
O assassinato de George Floyd, no Estados Unidos, por
um policial branco, despertou no mundo um desejo por mu-
dança em todos nós e principalmente na comunidade negra
ao redor do planeta, um desejo não só por justiça, mas uma
vontade real de transformação, de um novo mundo, com
menos preconceito, desigualdade e com mais empatia entre
nós. Isso com certeza é um grande passo para repensarmos
nossa forma de viver.
Depois de diversos acontecimentos, em que vimos nossa
democracia sendo ameaçada na frente de nossos narizes,
não poderíamos esperar por mais tempo para, com muito
cuidado, sair à rua para protestar da nossa forma.
355
Quando levamos nossa arte as ruas, queremos instigar
um pensamento crítico a todos em contato com ela, discutir
e o futuro que queremos e com isso colocar a arte de fato
onde deve estar, perto do seu povo.
Talvez durante o isolamento, e com as nossas novas for-
mas de viver, que tornaram nossa vida mais solitária, con-
seguiremos ter tempo pra descobrir quem nós somos e ver-
dadeiramente conhecermos nosso eu, e a partir desse ponto
359
-
tros quadrados, em decorrência do isolamento social do co-
ronavírus. as regras da oms determinavam que não se pode
sair dos espaços de habitação em razão da pandemia que
social obedecem às formas de controle do corpo biológico.
o corpo carne que é um corpo dócil às regras do biopoder,
esvaziado de qualquer metafísica.
a mania
-
com amantes, amigos ou a-mantes-migos, também se inten-
fantasias mais diversas que a pulsão lhe proporcionava ao
retornar em seu próprio corpo e perder a relação com a rea-
lidade. ele encontrou na internet uma forma de ir mais além
da materialidade do corpo biológico e começou a fazer lives.
as lives o lembravam que estava vivo, para ele e para os
outros, olhar e ser olhado o fazia existir. os afetos intensos
se masturbar com uma frequência maior do que a habitual.
360
prazer. jorge iniciou um embate de força entre o corpo do-
cilizado pelo biopoder e um outro corpo que não se adapta
à regra do controle social. esse corpo tinha uma boca que
queria comer mais e mais. ela, a boca, procurava no prazer
da comida apaziguar sua angústia. a boca queria comer o
tempo todo, a boca tinha preferências por doces e por frutos
do mar. a culinária passou a ser um exercício diário que de-
mandava horas de trabalho para jorge. a cozinha começou a
o que não interessava em nada a jorge. a boca começou a gri-
tar quando tinha fome, ninguém na casa de jorge tinha paci-
quando tinha comida. mas, como as empregadas domésticas
não estavam em casa, o trabalho na casa de jorge dobrava
para ele e sua companheira. os dois tinham que lavar, pas-
sar, cozinhar, trabalhar, cuidar das crianças e das ativida-
des remotas da escola.
a depressão
mais o dia da semana. o noticiário informava que o núme-
ro de mortos já havia chegado a 1500 pessoas por dia. seus
amigos estavam com os sintomas da doença, jorge não que-
ria fazer mais as lives, mas, a boca de jorge queria continuar
comida. ela comia a si mesmo e, não falava nada. ela só tinha
vontade de comer, mais nada. a boca começou a misturar os
horários do café da manhã, do almoço e do jantar. ela não
sabia mais qual era a hora de cada refeição. o corpo começou
a pesar e pesar, jorge sentia dores em várias partes do corpo
e não conseguia acordar antes do meio dia. jorge estava se
361
sentindo pesado e zonzo. a coluna de jorge estava doendo
muito e, os dias começaram a ser substituídos pelas noites.
os sonhos intranquilos de jorge vinham com muita intensi-
dade. as histórias infantis de jorge vinham à tona, com ima-
gens de sedução e de agressividade na infância. a mãe de
jorge aparecia como uma mulher seca e sem afeto que me-
tralhava-o na cena onírica. no instante seguinte, jorge conti-
nuava no sonho de que estava retornando para a casa e não
encontrava mais esse lugar. o corpo de jorge pesava ainda
mais, ele queria apenas comer e beber. a bebida começou a
a reparação
jorge começou a compreender o ritmo do isolamento so-
cial. a rotina passou a ser algo importante para ele assimilar
o novo normal. ele começou a ter interesse sexual por sua es-
-
mais saudáveis. procuraram atendimento psicológico online
e começaram a fazer aulas de pilates virtual. jorge começou
a estudar piano que havia parado há vários anos. os beijos
entre jorge e sua esposa foram mais frequentes. pela amazon
compraram mercadorias para facilitar o trabalho doméstico.
em um dia qualquer desses, jorge foi ao supermercado fazer
compras. ele foi para o estabelecimento de máscara e foi con-
fundido com um ladrão. a polícia chegou rápido para prender
jorge que não teve reação. ele sentiu uma grande dor no peito
e percebeu que havia recebido um tiro à queima roupa, sen-
do vítima de um assassinato policial por ter um corpo da cor
negra. o corpo negro escapa ao controle do biopoder por ser
um corpo matável e violável sem a menor possibilidade de
reação. temos mais um corpo negro morto no chão.
362
A vida não me assusta nem um pouco:
genocídio negro em dias pandêmicos
Luciana Brito
Salvador, 8 de junho de 2020
363
O primeiro pensamento que veio a minha mente esse do-
mingo ao acordar foi sobre a falta que Miguel deve fazer para
Dona Mirtes, sua mãe. Ela não vai poder sentir seu cheiro,
Nem abraçá-lo ao acordar. Nem cobri-lo de beijos e com isso
ser grata à vida.
ter sido sua mãe por 5 anos.
Miguel Otávio foi morto pelo racismo. Não foi de covid e
dessa vez não foi tiro da polícia. Miguel foi abandonado num
elevador pela “patroa” da sua mãe, que levava os cães da
família para passear enquanto a patroa fazia as unhas.
Me assusta muito, a ponto de ser quase enlouquecedor, o
desprezo pelas vidas negras. Desde que a pandemia come-
çou não tivemos tréguas, continuamos a morrer das formas
antigas, e de formas novas.
Embora a pandemia tivesse chegado ao Brasil pelo cor-
po branco das elites brasileiras, rapidamente chegou nos
corpos negros daquelas responsáveis por cuidar das pes-
soas nos seus “isolamentos seletivos”: as trabalhadoras
domésticas.
Entendidas como prestadoras de serviços de primeira ne-
cessidade, estas não pararam durante a pandemia. Vejo-as
364
apressados, máscaras no rosto, carregam bolsa e sacolas.
Aguardam nos pontos de ônibus com olhar de pavor o trans-
porte que demora a chegar. Vivem o dilema da necessidade
de trabalhar e a incerteza de carregar nos seus corpos o ví-
rus que pode ceifar a vida do resto da sua família.
Babás, cuidadoras, faxineiras, além de porteiros, caixas
de supermercado, entregadores, garis, lixeiros, zeladores.
São estxs, os negrxs e pobres que totalizam a maioria entre
os mais de 50 mil mortos por Covid-19 no Brasil. A imagem
das covas rasas, das mortes sem rituais e sem adeus me fez
pensar que chegamos no fundo do poço do desprezo em re-
lação à vida.
Enquanto isso a violência policial cresce em tempos de
pandemia. Foram-se tantos e tantas em todo Brasil, sem
tréguas. João Pedro foi morto aos 14 anos, dentro de casa,
enquanto cumpria a quarentena. Micael, de 11 anos, aqui
em Salvador, saiu para empinar pipa quando a PM chegou
no seu bairro atirando. Micael não resistiu.
Enquanto isso a imprensa nos pergunta por que os negrxs
brasileirxs não protestam como os negrxs estadunidenses
que se rebelam contra a morte de George Floyd. Eu realmen-
te acredito que as pessoas não raciocinam antes de nos fazer
essa pergunta.
Somente nós choramos nossos mortos. Quando um jovem
uma política antinegra genocida que tudo que tem para nos
dizer é um imoral: “e daí? Lamento. Quer que eu faça o que?”
O que custará para a polícia, com os aplausos coniventes
da classe média brasileira que verá tudo pela televisão, caso
todas as pessoas negras e pobres desse país tomassem as
365
ruas para expressar nosso ódio, nossa indignação, nosso
medo de morrer?
Caso isso acontecesse, a vida seguiria normal, assim
como seguiu após a morte de Ágatha, de Mariele, de Joel, de
Evaldo, de Cláudia. As elites continuariam a fazer seu exer-
cício físico costumeiro nas orlas das grandes cidades, sem
máscaras, exigindo a quebra do isolamento social em nome
da economia.
Gritam nos seus protestos motorizados: voltem ao
trabalho!
O jogo político continuaria seguindo como segue, aprovei-
tando a pandemia e nosso medo de morrer para “passar a
boiada”. Aliás, pergunto-me o que me assusta mais, o Covid
ou a necropolítica? E quando a última usa aquele primeiro
para lavar a cabo seu projeto genocida?
Assim, os dias tem se passado enquanto insisto em viver
esse luto cotidiano, respeitando a memória das pessoas que
se foram e me recusando a naturalizar suas mortes. Todo
mundo vai um dia, mas por que uns vão antes que outros?
Quem são as/os que vão primeiro de maneiras que poderiam
ser evitadas? Por que naturalizar as mortes dessas pessoas,
desumanizando suas histórias? Irá também quem diz que
todo mundo vai um dia?
Passam os dias em meio às minhas obrigações cotidianas:
à mesa que se amontoa de trabalho, assim como a pia, de
pratos. Desisti de fazer da quarentena um momento de “alta
produção”. Eu não consigo produzir com medo de morrer,
ou vivendo esse luto. Tento mostrar para minhas/meus alu-
-
po-me com essa geração sem bolsa, sem incentivo, sem aula,
sem internet, sem livros. Que não desistam da universidade,
366
ainda que diante das necessidades mais urgentes que lhe
apontam suas famílias.
Prometo que trabalharei menos, respiro, tenho que ir de-
vagar. Limpamos a casa. Pedirei a meu companheiro para fa-
zer o almoço, pois hoje a reunião vai acabar depois do meio-
-dia. Cansei das lives, principalmente das minhas, cansei.
Farei exercícios amanhã pela manhã e vou me sentir me-
lhor, aliás tenho feito quase todos os dias. Sou grata pelo sa-
lário, pela comida, pela internet, pela casa espaçosa, pois sei
que por pouco tudo poderia ser muito diferente. Me apego
na fé, agradeço à ancestralidade.
Miguel, canta uma música que vem do seu quarto. Ele can-
doesn’t fright me at all” (a vida não me assusta, nem um
pouco).
Como uma pessoa abandona uma criança de 5 anos num
elevador?
“Live doesn’t fright me at all”.
“Live doesn’t fright me at all”.
Racismo desgraçado! como a gente vive assim?
E ele canta ainda mais alto: “Live doesn’t fright me at all,
not at all”.
368
em tempos de pandemia
Maria Clareth Gonçalves Reis
Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, inverno de 2020
O racismo e a discriminação racial estão presentes em
todos os setores da sociedade (educação, saúde, cultura,
moradia, emprego etc.) e as políticas públicas voltadas à
população negra estão cada vez mais ausentes e/ou dis-
tantes de seu público alvo. Além disso, percebe-se que a
política adotada pelo atual governo, vem contribuindo
ainda mais para a perpetuação do racismo do que com a
sua erradicação.
Para compreendermos melhor como o racismo conti-
nua presente em todos os cantos do país (e do mundo)
selecionei alguns episódios para ilustrar este cenário, em
destaque, aqui no Brasil. Este isolamento tem me instiga-
do a pensar sobre estas questões. Vários fatos têm mos-
trado como o racismo se manifesta individual, institu-
cional e, também estruturalmente.
Em relação ao cenário político atual, este não me
surpreende, pois já foi explicitamente pré-anuncia-
do que teríamos muitos ataques aos direitos, histori-
camente, conquistados pelo movimento negro e pela
sociedade civil. Em 2018 foi eleito um presidente que,
370
em toda sua campanha, já demonstrava a quem iria servir.
Enquanto deputado federal, Jair Bolsonaro já anunciava
sua posição racista, inclusive em atitudes.
Em 2017, foram abertas duas representações na Procura-
doria-Geral da República em razão de crítica a negro quilom-
bola; “nem para procriar ele serve mais”, disse Bolsonaro. Em
relação à demarcação das terras de comunidades indígenas
e quilombolas, ele também deixou nítido em sua campanha
que, caso fosse eleito presidente da República, iria acabar
com todas as demarcações de terra para essas comunida-
des. “Pode ter certeza de que, se eu chegar lá, não vai ter di-
nheiro pra ONG (...). Não vai ter um centímetro demarcado
para reserva indígena ou para quilombola. Onde tem uma
terra indígena, tem uma riqueza embaixo dela. Temos que 1.
As ideias e ações da equipe governamental do atual pre-
sidente não têm sido diferentes. A Fundação Cultural Pal-
mares (FCP), que desde a sua criação, em agosto de 1988,
anunciava como meta a “promoção e preservação dos valo-
res culturais, históricos, sociais e econômicos decorrentes
(BRASIL, 2020), hoje se encontra em direção contrária ao
que surgiu.
Em dezembro de 2019 o presidente da FCP, Sérgio Nasci-
mento de Camargo teve sua nomeação suspensa, pelo Tri-
bunal Regional Federal da 5ª Região devido às suas publi-
cações polêmicas em redes sociais. Disse publicamente que
o movimento negro precisa ser extinto e que a escravidão
1 VEJA. Bolsonaro é acusado de racismo por frase em palestra na He-
braica. Disponível em <https://veja.abril.com.br/brasil/bolsonaro-e-acu-
sado-de-racismo-por-frase-em-palestra-na-hebraica/>. Acesso em 17 de
junho de 2020.
371
também a política de cotas e o dia 20 de novembro, data de
comemoração ao Dia da Consciência Negra. Foram várias as
reações e manifestações de representantes do movimento
negro e da sociedade civil, a estas publicações. Um presiden-
te de uma instituição como a FCP deveria preservar a histó-
ria, as lutas e as conquistas da população negra, ao invés de
tentar destruí-las.
Apesar de toda a mobilização gerada em torno da suspen-
são da posse do referido presidente da FCP, em fevereiro de
2020, após tramitar pelos órgãos judiciais, a sua nomeação
foi liberada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), tendo
-
ções terem sido via redes sociais. No dia 13 de abril, data que
marca os 132 anos de assinatura da Lei Áurea de 1888, Sér-
que depreciam Zumbi dos Palmares, o chamando de “herói
da esquerda racialista, não do povo brasileiro”. E para fe-
char o mês de abril, volta a atacar o movimento negro, o
chamando de “escória maldita”, em uma reunião gravada,
tendo trechos divulgados pelo Estadão2. Comenta ainda, no
referido áudio, que está em “sintonia” com o governo Bolso-
naro. A esse respeito, não há dúvidas, os fatos falam por si
sós.
Por que, neste artigo, foi dado destaque à Fundação Cultu-
ral Palmares? Justamente pela história de sua criação, em
1988, como espaço de preservação da memória e valorização
2 ESTADÃO. Presidente da Fundação Cultural Palmares chama movimen-
to negro de ‘escória maldita’; ouça áudio. Disponível em <https://politica.
estadao.com.br/noticias/geral,presidente-da-fundacao-palmares-cha-
ma-movimento-negro-de-escoria-maldita-ouca-audio,70003322554>.
Acesso em 19 de junho de 2020.
372
de uma história que os livros de história não contam. O atual
presidente da FCP quer tentar apagar uma história que foi
construída com lutas e mobilizações. Mas, sabemos que uma
história não se apaga assim... Cada arbitrariedade cometida
por Sérgio Camargo tem apoio do atual presidente do Brasil.
Suas ações estão alinhadas a uma proposta maior de des-
monte de conquistas e direitos, inclusive constitucionais.
Reações surgem por todos os cantos do país, com destaque
do movimento negro. Denúncias em forma de Notas de Re-
púdio, publicadas em redes sociais, tem sido uma das for-
mas mais comuns de mobilização e protesto em tempos de
pandemia. Representações no Ministério Público Federal
(MPF) também têm sido buscadas para tentar barrar as ar-
bitrariedades cometidas pelo atual presidente da Fundação
Cultural Palmares.
Uma instituição pública, seja a Fundação Cultural Palma-
res ou qualquer outra, deveria atuar no combate ao racismo
por meio de ações, projetos e políticas sociais que contem-
plem as pessoas discriminadas racial e socialmente, e não fa-
zer o contrário. Em meio à pandemia causada pela Covid-19,
por exemplo, percebemos que as famílias negras da classe
trabalhadora, das regiões periféricas, são as mais vulnerá-
veis. Muitas vezes, estas famílias não têm sequer acesso ao
saneamento básico. Também não há políticas de saúde pú-
o racismo se manifesta estrutural e institucionalmente.
Enraizado na sociedade brasileira, o racismo continua
causando danos às pessoas, individual ou coletivamente. A
violência policial continua aniquilando crianças, adolescen-
tes e adultos negros. O racismo destrói sonhos, nega direito.
O racismo mata, cotidianamente, por isso o clamor da popu-
lação negra do Brasil e do mundo: vidas negras importam!
Penumbra Muitas formas
de se falar sobre racismo
Panmela Castro
Rio de Janeiro, de abril a junho de 2020
374
Os dados mostram que o número de mulheres negras
chefes de família são altos. Elas têm que trabalhar para sus-
companheiro, aumentando desta forma, a pobreza e as di-
do padrão de uma “mulher considerada para se casar”. São
preteridas pelas brancas.
“Branca para casar, mulata pra fuder, negra pra traba-
lhar”, intitula a pesquisa de Ana Cláudia Lemos Pacheco
sobre a solidão da mulher negra, que também é o objeto de
Ao apresentá-la ao público, recebi elogios pela ‘série sensu-
al”. Essa série não é sensual, é o registro das noites de soli-
dão durante a quarentena de 2020. O que a torna sensual é
o olhar racista que hipersexualiza o corpo de mulheres mis-
cigenadas como eu. É uma série que mostra que a solidão
também pode ser o desdobramento de um problema social.
-
des para manter a família durante esse período. Mas há de
vida minimamente decente, que de outra forma, como corpo
hipersexualizado, só serviria pra cama, pro lazer, para uma
noite ou como amante, abandonada e sem apoio. A vida está
digna, mas celibato é compulsório e a solidão também.
379
Final de fevereiro, relatos sobre o covid-19 começam a
aparecer, eu, como moradora de favela temo. Sei que muitas
pessoas serão afetadas pela pandemia que se alastra cada
dia mais o território do Rio de Janeiro. Sou nascida na
Rocinha e convivo com a falta de saneamento básico. Entre
podem acontecer para o controle do covid-19. Como pensar
em quarentena e distanciamento social com aproximada-
mente 100 mil “vizinhos”?
Março chegou, com ele, os primeiros contaminados. A cor-
reria aos mercados e farmácias começam acontecer à cada
dia mais. Os preços dispararam, principalmente o feijão, um
dos produtos mais procurados no comércio. Muito consumi-
do dentro da Rocinha, especialmente pela grande quantida-
de de nordestinos que residem nessa grande cidade, faz com
que a correria não seja somente pelo papel higiênico como
vemos na televisão.
A preocupação aumenta, assim como o pagamento de
aluguel, as incertezas ligadas ao mundo do trabalho, foram
adicionadas a outra situação, o cuidado básico contra o co-
que lavem as mãos constantemente, lavem a roupa, utilizem
380
álcool em gel, andem à 1,5m de distância, limpem a casa e
poderia escrever todas as recomendações.... A prática? Não
tenho água. E quando tem, ou tomo banho, ou lavo a roupa.
Álcool em gel é artigo de luxo, equivale à 3 quilos de macar-
rão, produtos de limpeza, a compra é a básica e seu consumo,
controlado. Casas pequenas, grande quantidade de pessoas
dividindo o mesmo teto, assim como dividimos os becos.
que meu tio, seu pai e sua mãe estavam com o covid-19. A se-
-
ra do Rio de Janeiro. Meu tio tinha apenas 45 anos, prome-
teu me levar em 2021 para a Sapucaí. Não tinha nenhuma
doença, corria, jogava futebol e vivia intensamente, faleceu,
durante a graduação sobre a História da Morte do Ocidente.
Tentei relembrar se Phillipe Ariès em algum momento nos
seus textos descrevia como lidar com pestes, pandemias e
como isso mudaria o trato direto com a morte no mundo.
Não lembrei de uma palavra dos textos lidos, ouso dizer
que a relação com a morte é abstrata, a vida é a mãe, contan-
mas ainda esperamos de alguma forma que os amigos, fami-
liares e conhecidos retornem, em algum momento, em algu-
ma hora. O choro é solitário, cada um em um canto... ainda
lidamos com um vírus letal. Cada família encontra um jeito
de lidar com a dor. Na minha, o choro é trocado por risadas e
implicâncias leves para que a família saia um pouco do luto.
Maio chegou e outros amigos, parentes e conhecidos se
foram. Os números de infectados e mortos aumentaram e no
meio desse caos, vi muitas mobilizações dentro da Rocinha,
feitos pelos próprios moradores devido à ausência do Estado
381
e de políticas públicas para as favelas. Olhando as redes so-
ciais vi o anúncio de um curso online sobre covid-19 tendo
como objetivo, jovens para que escrevessem, registrassem
ou expressassem por meio da arte o que acontece na Roci-
nha em tempos de pandemia.
Hoje, tento com toda equipe do projeto e os outros 9 jo-
vens selecionados, atingir aqueles que exercem as políticas
públicas dentro das favelas, os próprios moradores. Expli-
car a importância da memória, de suas histórias pessoais
e como nossa organização interna deve ser exaltada, é um
processo lindo que estou fazendo parte. Todos perderam al-
guém e é via internet que estou conhecendo o verdadeiro va-
lor de coletivo. Meu conhecimento acadêmico é validado no
momento em que coloco em prática e traduzo a linguagem
para aqueles que não puderam chegar onde cheguei e é com
esse sentimento que trabalhamos há um mês, durante esse
período pandêmico. Assim, vamos honrando as histórias da-
queles que partiram, compartilhando dores e transforman-
do o luto em luta.
383
Miguel foi assassinado. Tinha 5 anos. Morava em Recife.
A negligência causou a morte de Miguel. Esse tipo de negli-
gência perpassa toda a história do Brasil, mesmo antes da
ideia de Brasil e de brasileiros ser criada. Acontece quase
sempre com relação a vidas consideradas descartáveis e
facilmente substituíveis. Pretos, pobres e marginalizados.
Houve um tempo em que foram escravos. Hoje são empre-
colaboradores. Não importa. A realidade é que muitos traba-
lham para enriquecer alguns poucos. É assim em qualquer
lugar inserido no sistema capitalista. No socialista também,
mas este já exige outras ferramentas de compreensão.
-
po de trabalhadoras, pois predominantemente são mulhe-
pouco claros entre sua vida privada e a dos patrões. Os li-
mites são borrados, mas devem ser subentendidos. Dessas
mulheres é exigido que sejam domesticadas: dóceis e servis.
O desrespeito aos seus direitos foi naturalizado. Os traços
dessa violência histórica estão por todos os lados. Nas resi-
dências, mesmo os pequenos apartamentos de classe média,
384
pelos varais cheios de roupas. Um quarto tão minúsculo que
mal cabe uma cama de solteiro e, frequentemente, nem mes-
mo tem janela.
No dia em que Miguel morreu, eu chorei. Chorei por ele
e por sua mãe, chorei por mim e pela minha. Mal consegui
dormir.
No início dos anos 1980, Maria Paula, nordestina e em-
trabalhava na casa de uma família do, hoje, tradicional es-
tamento brasiliense dos servidores públicos. Antônio tam-
bém era nordestino e trabalhava como porteiro no mesmo
edifício de classe média alta da, ainda pouco desenvolvida,
Asa Norte. O namoro acabou durante a gravidez, ele sumiu e
nunca assumiria a criança. Casos que ainda se repetem com
frequência em todo o país.
-
nha havia alguns anos, deixando sua família no Maranhão.
Afora poucos amigos e parentes distantes, não tinha nin-
guém próximo que pudesse apoiá-la. Acreditara em mais
um dos mitos brasileiros: o de que a empregada doméstica
faz parte da família de seus patrões. As relações de trabalho
se confundem com um suposto pertencimento, o que favo-
rece a exploração dessa mão de obra barata e socialmente
desvalorizada.
Uma empregada doméstica com um bebê não cabe nesse
formato. A patroa de Maria Paula sugeriu cordialmente que
Maranhão. Ela resistiu e saiu do emprego. O vínculo com
essa família, no entanto, nunca foi rompido. Prevaleceu a
conciliação. De todo modo, entre idas e vindas, a história de
se encaminhando para um desfecho feliz. Foi uma exceção,
385
pois esse não é o modelo predominante construído pela so-
ciedade brasileira ao longo dos anos. Prevalecem as práticas
opressivas e as relações autoritárias, fortalecidas pela as-
sombrosa desigualdade social que estrutura o país.
Na década de 1980, as violências cometidas contra as vi-
não provocavam qualquer comoção social. E quantos atos
de violência foram cometidos e sofridos em silêncio. Nessa
época, o Estado e a sociedade entrelaçados atuavam para
manter o estado das coisas. Esperava-se que cada um conhe-
cesse seu lugar social e desempenhasse seu papel de acordo
com as regras subjacentes.
que sustentam as estruturas sociais brasileiras causaram
abalos desproporcionais. O terremoto desencadeado parece,
estão tensionadas de modo, talvez, inédito na história do
país.
provoca protestos. As feridas provocadas pelas desigualda-
des sociais e pelo racismo estão expostas. Ninguém mais
das violências provocadas em razão de sua posição social
e da cor de sua pele. Há quem negue o arbítrio. Sempre há
de haver quem busca conservar o status quo ou mesmo re-
gressar aos modos como as coisas funcionavam no passado.
Habitualmente, um passado idílico que, de fato, nunca exis-
tiu. Ao menos não a ponto de incluir a maioria, aqueles que
nunca puderam contar com privilégios.
sido criado longe da mãe, o menino que poderia ter subido
na grade de um edifício e caído. Assassinado. Eu poderia ter
sido o Miguel.
386
Pandemia, isolamento social e trabalho doméstico
Fabiane Popinigis
Rio de Janeiro, 10 de junho de 2020
387
Outro dia, fazendo, além da faxina básica, uma limpeza
nos papéis antigos (do tempo em que ainda se escreviam
cartas) encontrei uma da minha mãe. Magoada com minha
revolta adolescente, lá pela segunda e terceira páginas es-
crevia, com sua bela letra: “Se você usa o banheiro, porque
não contribuir para mantê-lo limpo? Se você tem as suas
roupas passadas, guardadas, que é que te custa guardar os
objetos que você própria usa? Isso não te faz inferior. Não
existe trabalho para pessoas inferiores. Eu trabalho fora,
mas não me envergonho de limpar a casa, de ir à cozinha,
de lavar o banheiro. Não é porque sou mulher que é minha
obrigação, é porquê estou dando minha contribuição para
o conforto da minha família”. Nessa época morávamos com
minha avó e meu irmão.
-
mésticas durante a pandemia, tento me lembrar de porque
minha mãe não conseguiu me convencer com aquelas pa-
lavras. Enquanto sinto um certo prazer, confesso, em ver
o banheiro limpinho por mim mesma e a cozinha cheirosa
pelo trabalho de todo mundo que usa e em comer a comida
feita coletivamente, penso em porquê eu relutava em fazer
minha parte naquela época.
388
No primeiro mês em que Isabel não veio às quintas-feiras,
devido às políticas de isolamento social durante a pande-
tarefas cotidianas, contávamos com o dia em que ela viria
para fazer a limpeza mais pesada da nossa casa. Depois, fo-
mos discutindo e conversando, aos poucos dividindo as tare-
fas de casa e aprendendo a fazê-las pouco a pouco para não
acumular.
remunerado – sem terceirizar o serviço doméstico da pró-
pria casa? Como evitar essa divisão sexual do trabalho em
que a massa de trabalho invisível e não pago, essencial para
o funcionamento da economia capitalista, recai avassala-
doramente sobre as mulheres? Para que algumas ganhem
tempo de qualidade, outras se ocupam daquele serviço, que
não diz respeito aos homens. E aí me lembrei de uns versos
que ouvi numa manifestação do primeiro de maio na Sué-
cia, em que o pessoal do Vänster Partiet (partido de esquer-
da) cantava: “burgueses lavem seus próprios banheiros”. O
tema ali era um cabo de guerra entre esquerda e direita, que
reivindicava subsídio estatal para o trabalho doméstico, já
que o pouco que existia era feito por imigrantes na informa-
lidade. Mesmo assim, poucos usavam o trabalho doméstico
assalariado, e certamente estava muito longe de ser uma
prática normal e corriqueira como no Brasil, onde é tam-
bém um dos maiores nichos do trabalho análogo ao escravo
na atualidade.
Se viajantes do século XIX se impressionaram com a ne-
cessidade dos brasileiros de terem um escravo ou uma escra-
va para carregar objetos ou fazer qualquer serviço manual,
no século XX se surpreendem com a grande dependência
389
de famílias de classe média dessa parte do setor de servi-
tão íntimo, tão colaborativo, que é cuidar da própria casa,
limpeza e alimentação, entrou para nossa história como a
primeira coisa a ser terceirizada? Como os cuidados mais
essenciais com a reprodução da vida e do trabalho das pes-
soas e das famílias – importantes e demandados – foram tão
desvalorizados ponto de imensa parte da classe trabalha-
dora, as empregadas domésticas, ser a última categoria a
ter seus direitos garantidos por lei, após muita luta? E, por
considerado trabalho?
Enquanto eu pensava no que escrever nessas páginas,
mais uma criança morreu. Dessa vez não de bala achada,
com a camisa da escola, ou dentro de casa com a família,
como o João Vitor e a Ágatha1. Miguel morreu porque a mãe
era empregada doméstica e foi obrigada a trabalhar, quando
o correto era que os empregadores pagassem seu trabalho
para que ela pudesse seguir as recomendações de isolamen-
ele caiu do prédio. Os cães voltaram bem. O menino negro,
-
chorros de raça dos patrões passeados por ela. (Mais uma
cena pitoresca desses tristes trópicos digna da pena de um
Debret.)
-
ter “morri várias vezes essa semana” após o assassinato
de João Vitor aqui e de George Floyd nos EUA. Na semana
1 https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADcia/agatha-%C3%A9-quinta-crian%C3%A7a-morta-por-bala-perdida-em-2019-no-rio-1.367495.
390
anterior, acompanhamos um caso de racismo num conheci-
do colégio do Rio, diretamente ligado a um colega e amigo.
Passamos alguns dias pensando em como agir para respon-
der e evitar outras situações como essa. O colégio de alta
renda, como os outros da mesma região, tem pouquíssimos
alunos negros. Como escreveu o pai da adolescente agredi-
da, o Brasil vive um apartheid social. Como disse Ângela Da-
vis por esses dias, “o racismo voltou a ser mais violento e
explícito.” Falava dos EUA, mas podemos repetir essa frase
aqui no Brasil também.
Finalmente, quando me sento para escrever esse texto,
depois de um dia inteiro de faxina para meu próprio confor-
to e de minha família, outra notícia que me faz sentir nas pá-
ginas de “O conto de aia”, de M. Atwood: duas funcionárias
de carreira do ministério da saúde foram exoneradas por
publicarem uma nota sobre o acesso à saúde sexual e saúde
reprodutiva das mulheres durante a pandemia, incluindo a
interrupção da gravidez nos casos garantidos por lei2. Para
o presidente as mulheres devem suportar todo o fardo re-
sultante das violências físicas e psicológicas, sem nenhum
apoio ou proteção social.
As mulheres, que carregam o peso de grande parte dos
chamados serviços de cuidados, estão na linha de frente do
combate à Covid, como enfermeiras e cuidadoras, como mé-
dicas, como mães e donas de casa para as quais o trabalho
doméstico se acumula; as mulheres às quais se atribui como
função exclusiva ou especialmente delas, serem responsá-
veis pela criação das crianças e pela limpeza e manutenção
da casa, sem remuneração, de forma invisível e naturalizada
estão mais expostas à violência nos tempos de isolamento,
2 https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-distorce-docu-
mento-e-sugere-falsa-tentativa-de-legalizar-o-aborto,70003325109.
391
com menos recursos para se proteger e com menos acesso a
quem recorrer3.
Algumas análises projetam em torno de 5.000 mortes di-
árias por COVID-19 no Brasil em agosto4, e muito disso pode-
ria ter sido evitado se a cadeira da presidência da República
não estivesse ocupada por um genocida. Outras ondas pós-
-pandemia vêm por aí, uma delas ligada aos resultados do
aumento da exposição das mulheres à violência e à gravidez
indesejada ou forçada.
E aí me lembro dos panelaços que ridicularizavam a pre-
sidenta Dilma, das injustiças que sofreu Marisa, que as fra-
ses que mais se disseminavam na própria esquerda era que,
“pela primeira vez as dondocas pegavam nas panelas e era
pra bater uma na outra”. Então amigos, quer dizer que as
panelas são para as mulheres? Que a responsabilidade pela
“cozinha” é delas, certo? Algumas mulheres podem, even-
tualmente ou sempre, livrar-se das panelas e impingir esse
serviço às mais pobres e geralmente mais negras ou indíge-
nas, reproduzindo a desigualdade e a violência em outros
termos.
-
nha mãe. Ao contrário do que ela me dizia, tudo à minha
valorizado, não pago e praticamente invisível. Lembro de
3 https://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2020/05/observatorio-
-aponta-aumento-da-violencia-contra-mulheres-na-pandemia; http://
-
-da-violencia-contra-a-mulher-na-pandemia-de-covid-19-um-problema-
4 https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/modelo-usado-pela-
-casa-branca-projeta-5-mil-mortes-diarias-por-covid-19-no-brasil-em-a-
gosto.shtml?utm_source=facebook&fbclid=IwAR2s0F3Vrpy_0OW9BR-
rHNFPa2D-Y5nUbZVjWu29MFQqskWEr_C2WtGXqPOY.
392
um pequeno ímã de geladeira com os dizeres: “Ninguém vê
o que eu faço, a não ser quando eu não faço”. Para falar de
igualdade é preciso falar do trabalho e do serviço domésti-
co, de sexualidade, da reprodução da vida. Para uma gran-
de transformação é preciso recomeçar do zero: dividindo e
a bens culturais e materiais de forma igualitária. Sem isso
não tem mudança, nem antes, nem pós-pandemia.
Terminando esse texto, vejo que os protestos antirracis-
tas nos EUA após o assassinato de George Floyd se irradiam
-
vos inglês em Bristol na Inglaterra; em São Paulo e no Rio
ocorrem protestos antifascistas; em Buenos Aires, sob a
bandeira do movimento Ni una a menos canta-se: “el pa-
triarcado se vai a caer se va a caer” e “a América Latina será
toda feminista”. Bate um sopro de esperança. Mas ao mesmo
tempo, os governos começam a fazer a abertura pós-quaren-
tena, quando o vírus chega com mais força nos subúrbios,
nas comunidades e favelas. Que mundo teremos no pós-pan-
demia? Teremos um aprofundamento de desigualdades e da
exploração do trabalho, pelo maior controle do grande capi-
tal, levando ao colapso e à destruição da própria terra e seus
recursos? Ou podemos acreditar que a partir da crise uma
grande transformação é possível, que a luta antirracistas,
feminista e socialista leve à um outro mundo de igualdade,
liberdade, justiça social e preservação ambiental?
394
Dia 1 de junho de 2020, pouco depois das 15 horas, ti-
nha acabado de almoçar, eu e meu marido, assistíamos ao
Estúdio I, programa vespertino de notícias, do canal de TV
a cabo, Globo News, quando logo depois de assistir a cena
abaixo na televisão, eu transbordei. Não consegui conter o
pranto e chorei copiosamente.
Não se trata, neste texto, de falar da minha dor ou dos mo-
tivos pelos quais eu precisava chorar, mas sim do gatilho que
detonou o meu choro desesperado. A imagem congelada da
cena do episódio que transcorreu, no bairro de Laranjeiras,
em frente ao palácio Guanabara, durante os protestos antir-
racista e antifascista, no domingo dia 31 de maio, sintetiza
a violência que estamos submetidos cotidianamente. De um
lado, o jovem negro, Jorge Hudson da Silva, de 27 anos, com
trajes informais e calçados típicos do carioca, a indefectível
sandália de borracha; de outro, um policial com colete a pro-
va de balas, máscara e um fuzil, uma arma de guerra. Atrás
no rosto e boné, acompanha a cena. Com certeza, se a arma
disparasse, ambos seriam atingidos, mas a cena os congela
nesse instante contínuo. Ela, com os braços estendidos ao
longo do corpo, parece entregue ao terror que a imobiliza
395
frente a uma tragédia iminente, ele, por sua vez, levanta
os braços em sinal de que está desarmado. Inclusive, se ob-
servamos com maior cuidado a imagem, ele leva, os pés do
Nada na imagem do jovem demonstra ou apresenta risco,
sua direção para atirar. Talvez a força explosiva de um pé
de chinelo de borracha seja uma arma letal… mas não serei
irônica.
O desequilíbrio entre um chinelo e um fuzil, fragilidade do
jovem de shorts e camiseta, seu corpo leve que se detém, as
mãos adejando como asinhas, frente ao paramentado poli-
chão. A cena me provoca tal desespero que a minha reação
imediata é a de me colocar diante do rapaz, e gritar na cara
do policial que ele não poderia estar fazendo aquilo… mas eu
estou vendo tudo isso como espectadora de algo que, embora
continue a acontecer na minha frente, já foi.
Em tempos de isolamento social por conta da pandemia
de Covid-19, causada pelo SARS-Cov-2, a passagem do tem-
po ganhou dimensões inusitadas. Vivemos a rotina déjà vu
se repetir. Entretanto, somos confrontados, por meio do no-
ticiário, com um tempo de brutalidade cuja velocidade nos
deixa atônitos. A cada dia, o número de óbitos por conta da
pandemia sobe em progressão geométrica, o que não impede
o ritmo alucinante de uma política de destruição dos corpos
e das esperanças, por parte das autoridades que deveriam
assegurar a saúde e a paz. No instante contínuo da sucessão
de cenas, eu transbordei.
396
Acredito que o meu transbordamento não foi isolado,
como em um tempo paralelo, outros organizaram manifes-
tos, abaixo-assinados, projetando o futuro da democracia
no Brasil. Já os mais jovens planejam manifestações para
o futuro próximo, outros só querem voltar a trabalhar para
garantir um amanhã. Todos transformando a epidemia em
passado. Eu só penso, nos meninos e meninas que por se-
rem negros são exterminados a balas de fuzil, como se suas
vidas não importassem para todos nós. Penso nas minhas
penso naqueles que perderam o emprego, em outros que es-
tão sem aula e não podem merendar, no pessoal que traba-
lhava na praia, na família que vende coco da Lagoa, no povo
da Aldeia de Cachoeira Seca, lá no Pará, que esperava tanto
da gente, todo mundo junto ao mesmo tempo agora, e só con-
sigo chorar em pânico.
Não sou dada a crises de desespero, por treinamento ou
formação racionalista, chorar funciona momentaneamente,
mas não resolve. Por isso, respiro. É preciso planejar, domi-
nar a força do tempo imposto pelo pânico de governantes
autoritários e conjugar as forças na hora da reação. Mas eu
nasci em 1960, portanto, não tenho os mesmos parâmetros
dos mais jovens que se lançam na vida que deve ser vivida.
Estarei velha demais? Entre o vírus e o verme conseguire-
mos frente à brutalidade do presente, transformar expecta-
tiva em esperança?
Militância e vizinhança:
a vida política que se vive da janela
Carmen Castro
Lapa, Rio de Janeiro, 15 de junho de 2020
398
No mundo todo, as janelas e sacadas se tornaram locais
de convivências e manifestações políticas e culturais, estabe-
lecendo, assim, um novo local de sociabilidade. No Brasil, os
panelaços pelo “Fora Bolsonaro” nas janelas se destacaram
durante a quarentena – tanto como manifestação organizada
pelas redes de Internet quanto de forma espontânea em várias
cidades. Nestes espaços, tiveram também shows, aniversários,
conversas, xingamentos e até tiros disparados em reação cri-
minosa aos protestos contra o presidente da república1.
1 https://catracalivre.com.br/entretenimento/mumuzinho-faz-show-
-na-varanda-de-casa-durante-quarentena-e-viraliza/; https://g1.globo.
com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/03/19/menina-de-14-anos-ganha-
-parabens-de-vizinhos-pela-varanda-no-rio.ghtml; https://g1.globo.
com/pe/pernambuco/noticia/2020/03/22/vizinhos-cantam-parabens-
-pela-janela-para-idosa-que-teve-festa-de-99-anos-cancelada-por-con-
ta-do-novo-coronavirus.ghtml; https://www.agazeta.com.br/es/norte/
da-sacada-de-predio-vizinhos-cantam-parabens-para-crianca-em-linha-
res-0320; https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/04/08/po-
licia-civil-investiga-disparos-contra-predios-em-perdizes-na-zona-o-
este-de-sp-durante-panelacos.ghtml; https://www.agazeta.com.br/es/
norte/da-sacada-de-predio-vizinhos-cantam-parabens-para-crianca-em-
-linhares-0320; https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/04/08/
399
O recorte sócio-antropológico deste texto sobre a quaren-
tena de Covid-19 incide na vivência política a partir da ja-
nela e junto à vizinhança, desde um apartamento no Centro
da Cidade do Rio de Janeiro. O Centro do Rio é marcado pela
dinâmica econômica do comércio e prestação de serviços. A
parte residencial do bairro é pequena e funciona como ni-
chos de moradores. Há uma parte pulsante da região que
corresponde à vida noturna dos bares nos arredores dos
Arcos da Lapa. Esta é uma intensa área de sociabilidade
na Zona Central da Cidade que junta moradores e a maio-
ria de frequentadores não moradores e turistas nacionais e
estrangeiros.
A dinâmica de sociabilidade nesta região da Cidade mu-
dou com a decretação da quarentena pela Prefeitura, na se-
gunda quinzena do mês de março. A agitação cultural foi pa-
ralisada com o fechamento de bares, restaurantes, espaços
de apresentação musical hotéis e hospedagens alternativas.
A parte residencial também mudou e passou a existir a so-
ciabilidade das janelas. A convivência da vizinhança, até en-
tão inexistente ou desconhecida por grande parte de quem
habita as unidades residenciais do Centro, passou a se con-
centrar nos quadrados de vidros que ligam os apartamentos
com o mundo externo.
A vizinhança se apresentou nas janelas com os panelaços
e gritos de “Fora Bolsonaro” – nuns dias, mais entusiasma-
da; noutros, menos; e em alguns dias, furiosa, como o dia
da demissão do Ministro da Saúde2. Através de gritos, batu-
cadas, apitos e cornetas, a vizinhança conseguia transpor
policia-civil-investiga-disparos-contra-predios-em-perdizes-na-zona-oes-
te-de-sp-durante-panelacos.ghtml2 https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-04-16/mandetta-e-demitido-
-por-bolsonaro.html
400
os seus pequenos apartamentos. Pelas janelas se comunica-
ram com o mundo lá fora – não necessariamente um com o
outro. Ainda que alguns intercâmbios tivessem sido trava-
dos entre janelas próximas – ao lado, em frente, em cima e/
ou embaixo. Nas janelas, houve discussões entre vizinhos,
xingamentos, cantorias, instrumentos musicais tocados,
vaias e aplausos.
que passaram a sair dos buracos envidraçados, mudou o
ambiente externo que passou a entrar nos apartamentos.
Os ruídos dos carros diminuíram e as músicas e conversas
dos bares cessaram. As sirenes de ambulâncias e da polícia
passaram a se destacar no ambiente. Pássaros – bem-te-vis,
-
mente, passaram a ser vistos e escutados.
Vizinhos começaram a se ver também. Ainda que de re-
lance. Disfarçadamente de canto de olho, “como quem não
está olhando”, mas está. Sorrateiramente entre cortinas e
persianas. Ou em declaradas aparições. A maioria que se
olhou e se ouviu não sabe o nome um do outro. Nos prédios,
muitas pessoas vivem sozinhas. Há algumas famílias. Tem
idosos, jovens, adultos e crianças. Homens, mulheres, gays
e homofóbicos que se manifestaram, segundo suas intole-
râncias sociopolíticas ou orientação sexual: “Viado!”; “Sou
viado, sim! Fora Bolsonaro!”. Têm também gatos, cachorros
e plantas pelas janelas com telas.
Durante a pandemia, também surgiram vizinhos novos.
No dia 31 de março, um grupo de moradores de rua que
dormia na Praça da Cruz Vermelha ocupou um casarão fe-
chado3. O sobrado que já tinha sido morada do Presidente
3 https://noticias.uol.com.br/reportagens-especiais/
ocupacao-no-rio-em-tempos-de-coronavirus/
401
Washington Luís, na rua de mesmo nome do político, pas-
sou a ser habitado por famílias sem teto impulsionadas pelo
-
cou com a diminuição do movimento no Centro.
O grupo marcadamente composto por mulheres e crian-
ças negras se comunicou com a vizinhança pelas janelas e
pela sacada do casarão ocupado. Gritavam para os morado-
res que haviam entrado naquele lugar com o objetivo de se
protegerem do coronavírus. Diziam que tinham limpado o
casarão que estava com ratos, baratas, água parada e mos-
quito da dengue. Quando os carros da polícia chegaram, su-
plicaram algum apoio aos vizinhos dizendo que precisavam
de teto, que “moradia é direito”, que não eram bandidos e
que por favor chamassem a televisão – a mídia.
Exatamente em frente ao prédio onde moro, a janela foi o
meu local de observação e de apoio à ocupação. Das janelas
dos edifícios estava posta a curiosidade com o novo agito na
rua. Aparentemente não foram bem recebidos pela maioria
dos já instalados na área. Poucas foram as demonstrações
de solidariedade. Pairava no ar a hostilidade da vizinhan-
ça com os novos moradores negros e pobres ocupantes do
casarão – ou “invasores” para quem não concorda com a
ação. Assim, o meu contato com a ocupação se deu em qua-
tro fases. Através da janela, na demonstração de apoio com
alguns gritos de solidariedade à luta pela moradia e um pu-
nho erguido. Nas fotos tiradas pelo celular para repassar
aos grupos e movimentos sociais de luta por moradia. Na ida
ao portão do casarão, do outro lado da rua, para conseguir
números de telefone e repassá-los ao Núcleo de Terras e Ha-
bitação da Defensoria Pública/RJ. E no contato com grupos
militantes para o fornecimento de comida para as pessoas
que ali estavam e reclamavam de fome.
402
Sair da quarentena no meu apartamento e ir até o portão
do casarão para estabelecer contato foi uma travessia longa
e tensa. Sob os olhos que vinham das janelas e das porta-
rias dos edifícios, vi-me principalmente acompanhada pelos
olhares condenatórios da síndica e de dois vizinhos idosos
do prédio onde moro. Vociferavam que “aquela gente” inva-
diu e que tinha “gente no prédio” que apoiava “a invasão”.
No portão da ocupação, tive que estabelecer em minutos um
me visto antes, de modo que me fornecessem números de ce-
lulares para um contato da Defensoria Pública. No momento
que tentava me comunicar com elas, apareceu um homem
que disse ser da Prefeitura. Ele tinha um crachá pendurado
-
balha como “segurança” do comércio ao lado. Dei-me conta
do que desconhecia: a presença de um tipo de milícia na rua.
Contudo, o mais importante foi o olhar de uma das mulhe-
seu, mas estamos dormindo na rua. Eu estudo no Instituto
Não sei o que assegurou a permanência até agora das fa-
mílias no casarão – se foi a ação da Defensoria que contatou
as mulheres da ocupação, através dos números de celula-
res; ou a determinação da Prefeitura que enquanto durasse
a quarentena fossem suspensas as ações de despejos; ou se
foi outra coisa. Sei que os novos vizinhos estão aqui em fren-
te e que é através das janelas e da sacada do casarão que
sabemos de parte de suas vidas.
Mulheres, homens, jovens e crianças são avistadas nas
de água e energia elétrica. Estabeleceram espaços para as
403
famílias e o coletivo – como o pátio em que crianças brincam
e aniversários foram comemorados. Lavam roupas e monta-
ram varais. Recebem doações de comida, algum mobiliário
e “utensílios para o lar”. Os sons do casarão são diversos.
Desde gritinhos de crianças brincando: “meus pintinhos ve-
nham cá! Tenho medo da raposa!...”. A integração nos pa-
nelaços de “Fora Bolsonaro”. Entusiasmados “parabéns pra
você” e animados funks e pagodes. E até um grito feminino
de dor e desespero que ocorreu numa noite e invadiu o es-
paço. Alguém se acidentou. “Fogo, fogo!”; “apaga, apaga!” A
vizinhança se postou nas janelas. Uma luz saiu pelas telhas
laterais de plástico evidenciando que era fogo. Peguei o celu-
bombeiros – e expor a ocupação ao escândalo da chegada dos
carros salvadores – ou acompanhar e esperar mais um pou-
co para ver se eles mesmos resolviam o acidente e o socorro.
Conseguiram resolver a situação de apagar o fogo e levar
uma moça do casarão possivelmente para uma emergência.
No caso deste recorte vivido, os panelaços e a ocupação
dos sem teto foram acompanhados como estratégias de per-
sistência da vida social e política. No espaço de um aparta-
mento no Centro do Rio, as manifestações políticas e cultu-
rais, a solidariedade, a empatia e também a hostilidade se
apresentaram de outro jeito. Em meio a tantas adversida-
des de uma quarentena, entraram pela janela sopros de es-
perança e de resistência popular. Surgiu a nova moradia de
quem não tem casa e, quiçá, poderá ter vida nova frente a
tantas precariedades. A sociabilidade nesta pandemia vem
sendo vivenciada tanto pelas molduras de smartphones e
computadores quanto pelas molduras de janelas e sacadas.
Distintas das redes de Internet por sua materialidade, as ja-
nelas se tornaram o espaço mais real de sociabilidade. Elas
404
trouxeram a concretude da vida. E a comunicação com o
-
são, audição e do olfato.
* Enquanto revisávamos o texto para esta publicação, no dia 15 de se-
tembro de 2020, a exatos cinco meses e meio de ocupação do casarão,
um forte aparato policial. Chegou o “novo normal” impondo a proprieda-
de privada sobre o direito à moradia através de uma série de despejos
iniciada há alguns dias. Ouviram-se argumentos sobre a necessidade da
moradia e o abandono do sobrado frente ao cumprimento da posse pelo
aparato estatal. A vizinhança se lançou em silêncio pela janela. Seguiu-
-se o desalento da retirada dos pertences de quem tem muito pouco, qua-
se nada. Para onde foram as mulheres, crianças, idosos, jovens e até um
cachorro – quase todos negros?
Curupaiti Vila 1 Casa 17 Taquara /
Jacarepaguá
Valéria Guimarães da Silva
Filha separada pelo isolamento compulsório de pais acometidos de Hanseníase (Lepra)
Rio de Janeiro, 15 de junho de 2020
406
Sim, esse é meu novo endereço, depois de 53 anos viven-
do fora da ex-Colônia de Curupaiti, lugar onde nasci, como a
maioria dos Filhos Separados pelo Isolamento Compulsório
de pais Acometidos de Hanseníase. Retornei para cuidar de
minha mãe e padrasto (Paidrasto), que eram internos da ex-
-Colônia, desde criança e adolescentes; aliás quase todo meu
histórico familiar tanto da parte biológica, como da parte da
família de criação, foram e ainda são internos da ex-Colônia
de Hanseníase Curupaiti/RJ.
Minha mãe e padrasto, já eram bem idosos e devido a
na casa que o Estado (ITERJ), através de uma concessão de
moradia me deu direito como Filha Separada pelo Isolamen-
to Compulsório de continuar residindo. Durante esse perí-
odo me deparei com várias situações e realidades que por
ter sido separada de minha mãe biológica, me foi um gran-
emoção!
E depois de quase um ano convivendo com vários amigos
de meus familiares, percebi que apesar de estarmos pas-
sando por um período de uma Pandemia Mundial, como a
Pandemia de Lepra (Hanseníase) em décadas passadas, ao
407
qual meus familiares foram internados compulsoriamente,
durante décadas, período esse que perdurou até os anos de
1986 (Lei Federal 11520/07), conseguimos manter uma
força e união que me surpreendeu muito. Realmente esses
seres humanos, apesar de sofrerem tudo que sofreram em
um Isolamento Compulsório, diferente do Isolamento Social,
da Pandemia atual, tem uma força e ensinamentos de con-
trole emocional, que chega dar inveja em muitos psicólogos,
psiquiatras e terapeutas, e por aí vai …
E nesse breve relato, entendo que o maior de os ensina-
mentos a seguir diante dessa Calamidade Pública, é que
mesmo dentro de uma ex-Colônia. Eu me senti amparada e
protegida por esses idosos “da antiga”, assim são chamados,
que nos orientam e nos mostram com suas vivências e expe-
riências de Isolamento Compulsório, que a União, Solidarie-
dade entre eles, que fez com que muitos deles conseguissem
suportar todo esse período de dor, solidão e falta do acon-
chego familiar entre eles.
Segue aqui alguns apelos aos historiadores desse País:
-
pulsório, não permitam que esse episódio da história de saú-
de pública que foi a Pandemia de Lepra (Hanseníase), seja
negligenciado da história de saúde pública no Brasil!
Somos o segundo país na incidência dessa “maldita doen-
ça”, que ainda excede os parâmetros de eliminação perante a
OMS, principalmente nas regiões Norte e Nordeste de nosso
país. Precisamos evidenciar mais essa Luta de Eliminação
da Hanseníase e conscientizar a sociedade tal qual a Pande-
mia de Covid19, para que juntos ao governo, autoridades,
instituições e a sociedade como um todo, não permita mais
arbitrariedades e violações de Direitos Humanos e Sociais.
409
Teresinha de Covid-1
Primeiro, eu pensei: sim, teremos de nos esforçar aqui den-
tro de casa. Principalmente eu, distribuidora de horários e
tarefas. Mãe-esposa-eu-dona-de-casa. Agora, somos nós três
aqui dentro de casa sem intervalos e sem compromissos
fora de casa. E não mais eu mais em casa do que os outros.
Eu, dona de casa, mais que os outros, apesar de ninguém
ser mais dono de casa que o outro, eu, sim, normalmente
preparo e ofereço as refeições. Mas agora, nós três dentro
de casa, com apenas compromissos remotos, online, não di-
ários, nem regrados diferencialmente entre dias de semana
-
sabilizo pelos horários da casa? Mas eu? Horário? Inclusive
meu próprio horário de trabalho e de estudo, porque, sim,
tenho meus deveres pessoais, estou na pós-graduação, pre-
ciso escrever tese, tenho lá meus compromissos. Meus, sim.
Assim são vistas por mim e pelos outros, as coisas somente
minhas no “mar” de coisas coletivas que eu coordeno, como
“dona de casa.” Que palavras quadradas! Que expressão ul-
trapassada! Que posição ofensiva para as mulheres, desde o
tempo de minha mãe. Na infância tinha sempre notado esse
410
constrangimento quando ela precisava preencher qualquer
formulário. É preciso informar seu “estado civil”; e, depois,
talvez: casada (ou em união conjugal estável – mas que dia-
bos isso tem a ver com a minha saúde ou com a conta que
fazia, posso responder dona de casa. Ou, então, respondo:
antropóloga – mas não sou uma professora, não estou em-
pregada, meu emprego nem sequer é tomado como emprego,
todas as mulheres, se não temos um emprego fora, somos
primeiro e ainda donas de casa. Mas somos invariavelmente
donas de casa. Tanto é assim que se temos um emprego fora
de casa, somos acostumadas a deixar outra pessoa em nosso
lugar de dona de casa. Entre duas mulheres, se uma é uma
empregada fora de casa contratando outra para sua empre-
Essa pandemia e essa quarentena servem talvez para aju-
dar revelar um pouco, para os que podem ver, a estrutura
machista/racista da nossa sociedade. Sim, uma mulher que
contrata outra mulher para realizar os afazeres domésticos
uma mulher negra. Tudo isso é função de nossa regra mais
geral do patriarcado. Ela vige ainda hoje, ela vige talvez ain-
de casa, menos os que não podem. Nem preciso lembrar o
caso da morte do menino Miguel, em Recife!
Teresina de Covid-2
-
nado logo depois em conjunto pelos demais moradores dessa
411
casa. Na pandemia, deveremos nos cuidar. Mas será preciso
uma pandemia para nos lembrar de nossa mútua responsa-
bilidade com o cuidado uns dos outros? Era preciso cuidar
para não nos deixar soltos por aí sem rotina, sem contorno,
sem limite, tomados integralmente pela dúvida. Fiz um cro-
o caminho das chakras no corpo para que nos impulsionás-
semos para a prática da meditação, principalmente porque
a meditação se baseia no exercício da respiração. Precisa-
mos aprender a respirar diante desta doença que afeta mais
os pulmões e nossa capacidade de respirar. Nem preciso
lembrar o caso G. Floyd em Minneapolis dos EUA!
Mas abandonei os calendários na segunda ou terceira se-
mana. Adesão impossível. Eu mesma não poderia promover
um programa diário que não conseguia seguir sozinha. Ávi-
dos por notícias, atormentados, tontos como baratas tontas,
adolescente, mas ela também, zanzando nas mensagens de
WhatsApp, surfando na web, assistindo o JN sem parar. Eu,
-
pulsionar e coordenar os outros. Fiz um tanto de meditação,
412
Plataformas incríveis eram anunciadas como um remédio
para enfrentarmos a pandemia, com a promessa de apro-
veitarmos nosso tempo de quarentena para nos instruir,
jamais sem fazer nada em casa! Não! Jamais! Assisti, e as-
lives e mais lives,
encontros virtuais sobre muitas coisas. Muitas discussões
sobre a pandemia, sobre o vírus, sobre o contágio sobre pos-
sibilidades de vacinas... Mas também muitas outras sobre o
pandemônio que é ter um presidente da república que é um
negador perverso das práticas mínimas de saúde para con-
ter o avanço da doença e das mortes. Principalmente, sabe
que a esmagadora maioria dos mortos será parte das “mi-
norias”; indígenas, negras, faveladas, mulheres, pobres...
Aliás, é preciso não esquecer, que mais da metade de nossa
população vive com menos de quinhentos reais, enquanto 6
-
te, como eu, não consegue desligar a TV enquanto a noite
se torna madrugada e o dia se vespertina. Assim, passamos
a nos levantar meio dia, almoçar às quatro ou 6 da tarde...
Dentre todas as minhas promessas de rotina, eu consegui
mas ao vivo com meu professor amigo antigo que eu não via
há muito tempo, Alfredo Anglophone! Talvez a quarentena
e a pandemia com seus males, ensinem outra forma para re-
contatar os velhos amigos, realizar talvez um velho desejo,
escrever um conto, uma saída...
413
Teresinha de Covid-3
Hoje, no dia 29 de junho, quando escrevo este texto, já se
passaram 4 meses do início da quarentena. As lives foram
boas, animavam e tiravam a gente da falta de encontro e da
falta de qualquer horário realmente coletivo. Participei de
algumas como mediadora, assistindo e cooperando, ou só as-
ainda menor. Ainda mais porque caímos nessa necessidade
de esterilizar tudo, limpar compras, roupas, sapatos, bolsas,
carteira, cartão, óculos, máscara, corpo, tudo! Álcool, água
sanitária! Lixo! O lixo também se multiplicou talvez na mes-
ma proporção em que o tempo diminuiu. Quatro meses que
se passaram como semanas. Sim, gastamos meio ano nisso.
2020 parece um ano perdido e vago. Hoje, o Brasil é o segun-
do país no ranking de contágio e responsável por 11% das
mortes do planeta! Somos 57.774 mortos hoje! Os povos in-
dígenas têm 150% mais de mortalidade (morte por cem mil
habitantes) e 7% de letalidade (mortos por contagiado), en-
quanto a média nacional é de 5%. Nossos números, tão alar-
414
que não temos um ministro da saúde durante a pandemia.
O benefício emergencial de 600 pratas chegou para bastan-
te gente, milhares de presidiários, dezenas de milhares de
empresários, centenas de milhares de militares, mas mui-
tas pessoas pobres não alcançam seu direito. Aprendi nesse
comprar a janta”. São as pessoas que passam o dia coletan-
do sua única refeição, fazendo o corre de dia para voltar a
noite viva. As pessoas que precisam vender o almoço para
comprar a janta, tragicamente, não são exceção no país. Ao
contrário, como disse, 50% da nossa população deve fazer
literalmente isso com sua renda de nem 500 mangos. Mas
agora, hoje, durante a quarentena de meses, como podem
-
não têm água encanada, nem casa. Isso prova que devemos
lutar pela adoção da política da Renda Básica Universal. Não
-
mos doentes como civilização. Estamos exaustos, estamos
exaurindo nosso planeta, nossa casa, nossa terra-planeta.
O mundo não pode respirar. Eu não podia mais respirar.
Tirante o curso de inglês, larguei tudo! Fiquei totalmente
exausta! Não quero aderir a esse mundo sem intervalo!
415
Teresinha de Covid-4 na caixa de Pandora
“Toda essa destruição não é nossa marca, é a pegada dos
brancos, o rastro de vocês na terra”. Esta frase é do líder
yanomami, Davi Kopenawa, está publicada no site do Insti-
década de 1980 em função da luta pela demarcação da Ter-
ra Indígena Yanomami no contexto da epidemia de malária
disseminada pela invasão garimpeira sobre suas terras. So-
bre a pegada dos brancos sobre a terra o líder, Borum do rio
Watu, Aílton Krenak, disse que ela nada tem de leve. Foi o
desastre de nossa ocupação na face da terra que nos trouxe
à pandemia, e nada, tragicamente nada, faz com que as gen-
tes da terra, ou os pobres possam reverter os rumos ditados
por aqueles que querem se colocar num foguete quando o
projeto deles de destruição da Terra estiver mais perto de
se completar. Mesmo que nós, os que não estamos na mi-
núscula parcela que caberá no foguete, e nem entre os que
insanamente a apoiam, estejamos contra o projeto de extin-
ção da Terra, não estamos isentos de sofrer com o projeto
deles. Todos estamos sob os efeitos da pandemia, claro, mas
a pandemia é mortal para as gentes da terra, enquanto é
uma doença curável para o povo do foguete que, defendendo
a abertura para os outros e o isolamento para si, prospera
-
tura de todos os demônios, depois dos gafanhotos, depois da
estrela do cacique Raoni Metyktire ter subido novamente ao
céu, uma pedra reluzente, um vagalume, uma história, um
-
bos negros, os modos dos povos da terra, esses permanece-
rão. Os colonizadores, esses serão banidos. Depois da terra
Isolamento
Timeline
Agenda
Ministério da Saúde
Genocida
LOR
Belo Horizonte, isolamento por Covid-19 de 2020
424
Querida vovozinha, como estão as coisas por aí em Rio
das Ostras? Aqui em Porto Velho eu ando muito preocupada
com a senhora e com o povo que está no Rio de Janeiro. Sin-
to uma dor no peito danada quando penso que estou à 3.700
km de distância de vocês e sem poder fazer absolutamente
nada para mudar isso.
Minha rotina aqui na cidade mudou pouco. Como eu não
conheço ninguém, antes da pandemia minha vida era con-
centrada em casa, no trabalho, no salão de beleza para fazer
de semana. Agora, a universidade suspendeu as aulas. A úl-
tima vez que estive em sala de aula foi no dia 11 de março.
casa trabalhando. Sim, trabalhando. As aulas foram sus-
pensas, mas a universidade não parou. Continuo tocando
pesquisas, atividades de extensão, participando de bancas
e tudo mais. Nesse período de isolamento social eu criei um
grupo de estudos, o Núcleo de História Pública da Amazô-
nia (Nuhpam). Além disso, iniciei uma série de entrevistas
chamada “Amazônia em Quarentena”. Uma pena a senhora
não ter internet em casa, tenho certeza de que iria adorar
acompanhar as nossas conversas.
425
No mais, só saio para a padaria, mercado e farmácia. Uma
vez ao mês costumo passar no banco para sacar dinheiro. A
única vez que sai para algo fora dessa rota foi quando os ca-
chorros comeram o controle remoto da televisão. Caminhei
Por falar em bichos, divido a casa com três cachorros
e oito gatos. Os cachorros: Dudu, Cacau e Betinho, estão
amando a quarentena. Nem reclamam de terem deixado os
passeios na rua. Estão super grudados em mim. Acho que
quando eu voltar às aulas na universidade vão sentir muito
a minha falta. Quando eu preciso fazer alguma coisa na rua,
fazem um escândalo! Eu ouço o choro deles até depois de
virar a esquina. É de cortar o coração.
Já os gatos: Zeca, Chico, Tom Tom, Senhor Saraiva, Mi-
chelle, Luzia, Natasha e Rui, não estão muito felizes com mi-
nha presença 100% em casa. Às vezes eu penso que eles pre-
cisam de um tempo, sabe? Acho que estão de saco cheio de
mim. Ruizinho furou a quarentena porque precisou castrar.
O veterinário veio aqui buscá-lo e ele passou uma noite fora.
Dias depois de voltar para a casa ele começou a espirrar.
Logo o Senhor Saraiva e o Zeca também manifestaram os
mesmos sintomas. Adivinha? Gripe felina! Os oito entraram
no antibiótico. Teve gente me perguntando se era o corona-
é a moral da história: Ruizinho nos ensinou como o ciclo de
contaminação funciona. Não podemos vacilar que o vírus
pega a gente mesmo e diferente da gripe felina, não há re-
médio que cure a COVID19, por isso minha preocupação com
o povo no Rio de Janeiro e a senhora em Rio das Ostras.
Lá no Irajá, na casa do papai e da mamãe, Diogo tem fei-
to toda tarefa de rua. Os dois estão absolutamente isolados,
nem no quintal circulam. Meu pai não vai nem ver a mãe.
426
Eu ligo para eles através de vídeo chamada no celular todos
os dias. Minha mãe reclama do cabelo que está crescendo.
Acredita que ela chegou a ter a ideia de chamar alguém para
cortar? Eu e o Diogo brigamos com ela. É importante que
ela tenha consciência que faz parte do grupo de risco, assim
como a senhora. O Hospital de Laranjeiras mantém contato
com ela frequentemente. Como os exames dela estão ok, a
recomendação é que permaneça em casa. Tudo está cami-
nhando certo. Não precisa se preocupar.
O lance é que ao cumprir à risca o isolamento social, ma-
mãe deixou de jogar na quina todos os dias. Ficou com medo
-
rica. Daí sabe o que aconteceu? A senhora lembra daqueles
números que ela acompanhava desde que o vovô nos deixou
em 09 de agosto de 1988? Pois então, 32 anos depois deu a
quadra e ela perdeu 8mil reais! Vó, quando eu soube disso
eu não acreditei. Agora eu mesma faço o jogo daqui, com a
sorte não se brinca. Imagine se fosse a quina?
Sobre a senhora, apesar das nossas conversas por telefo-
ne serem constantes, sei que gosta de receber cartas. Como
não posso postar pelos Correios, envio essa por aqui. Imagi-
casa, mas por favor, entenda que é necessário. Soube que a
senhora anda lendo bastante (gostou do livro da Malala?)
e que a tia Ilka está produzindo máscaras. Isso é ótimo! É
muito importante que a senhora não se exponha ao vírus –
olha o que aconteceu com o Ruizinho! Ficando em casa e não
recebendo ninguém a senhora estará protegida. Não posso
dizer que logo isso vai passar, mas sei que vai passar e até
lá, preciso ter a certeza de que a senhora estará segura. Por-
tanto, não minta para mim! Nada de sair escondida, viu?
427
tempo. Quero passar muitos verões em Rio das Ostras ao seu
lado curtindo a praia e comendo camarão, esse vírus não vai
atrapalhar nossos planos.
Se proteja vozinha, é só o que te peço. A senhora é o meu
brilhante! Deixo aqui um enorme beijo e o mais gostoso
abraço.
*Joana da Conceição Ribeiro é minha avó materna. Ela
nasceu no Rio de Janeiro em 21 de março de 1933 e atu-
almente mora no município de Rio das Ostras (RJ) com a
irmã Ilka – nascida em 26 de junho de 1928. Falo com ela
toda semana por celular, ela não tem internet em casa. Há
duas semanas ela me pediu que escrevesse uma carta, sente
saudade de receber pelos Correios. Eu sempre mantive esse
costume com ela. Expliquei que não poderia enviar, mas ela
me pediu que guardasse até nosso reencontro. Foi assim que
eu tive a ideia de deixar registrado aqui.
429
Quem diria né, que a saudade que quebra tanto a gente ia
ser também o que nos faz ter força pra passar por isso. Por-
coisas, são essas mesmas coisas que nos fazem seguir.
Esse trabalho é sobre olhar para trás para poder andar
para frente.
Nesse período tão complexo em que vivemos, precisamos
de alguns respiros. No meu caso, por exemplo, além de man-
ter contato com quem eu amo, revisitar fotos antigas, ver
-
minho de samurai de vez em quando – porque ninguém é de
ferro né – é o que me dá força para entender que tudo isso vai
passar, e digo mais, que tudo isso tem que passar porque eu
preciso pegar uma praia e um churrasco lá no canto da Vila.
Lembrar desses momentos nos possibilitam uma perspec-
tiva de futuro.
Um olhar pra frente que, por ser o que nos resta, é o que
nos torna, sei lá, tipo criança.
Lembra quando tu era pequeno e escrevia de lápis ainda
na escola e só queria escrever de caneta porque era mais
maneiro? Sei lá, é meio assim que eu tô hahaha.
430
E essa vontade é o que tem me protegido, confesso. No
trabalho ‘Corrente de retorno’ podemos ver isso através dos
búzios que surgem a partir da relação com as máscaras de
proteção que usamos agora pensando no futuro. Eles nos
protegem através da ancestralidade, da família e da memó-
ria e nos leva ao ontem, ao hoje e ao amanhã.
E isso sempre nos protegeu – tivemos que aprender a nos
reinventar e reaprender a desenvolver novas sociabilidades
e criar laços desde que começaram a construir nessa ter-
ra uma nação em cima de nossas costas – e vai continuar
protegendo.
A ancestralidade nos protege, assim como minha vó me
protege e eu protejo a minha vó. Assim como protegemos
nossas crianças e elas nos protegem – e perturbam também,
né, não dá pra negar hahaha.
E é por aí que olhamos pra frente. Toda vez que levo as
crianças na praia ela me contam do futuro. Nossos pés sa-
ser criança é meio que isso, né?
Tô com saudade, mas não tenho medo da corrente de re-
torno, porque nós somos o mar.
432
Domingo, 7 de junho de 2020. Eu estava vendo com meu
Rio, em que numa pá-
gina o pássaro branco, vilão da história, aparece atrás das
grades, porque no primeiro plano estão as araras-azuis, pro-
achasse que o vilão estivesse preso, quando na verdade, nes-
sa cena eram as araras que estavam engaioladas.
Essa cena me remeteu à janela do meu apartamento, onde
-
ração, pois vem com tom de lamento. Mas que a cabeça sabe
que é o melhor para ele.
soltos? Onde e com quem está a liberdade? Liberdade é sim-
plesmente poder andar pela rua? Aqueles que saem por pre-
cisar trabalhar são mais livres do que aqueles que estão em
casa porque contam com salário garantido, ou têm reservas
De que lado das janelas está a liberdade?
A quem diga que o mundo irá mudar após a Pandemia.
Por enquanto, parece que os males se acirram. Que ao invés
de uma tomada de consciência geral por parte de autorida-
des, elites empresariais em geral… Ao contrário: os donos do
433
poder no Brasil, político e econômico, principalmente, têm
investido em nos manter presos um em um pesadelo distó-
pico que a ciência, a solidariedade e até o luto são maquina-
ções da esquerda…
A utopia parece ter se distanciado, fadados que estamos
a olhar o horizonte, de que nos fala Galeano, pela janela… e
vendo-a se afastar sem que sequer nos aproximemos dela.
Mas a esperança de mudança surge nesse mesmo domin-
go de junho. Vem de casas que têm janelas muito próximas
uma das outras, ou mesmo que não têm janelas e que a qua-
rentena é ela mesma uma utopia, até porque o direito ao iso-
lamento é restrito àqueles que têm condição. Vem das fave-
las que gritam, sofrem, morrem…
Moradores militantes – até porque morar em favela é uma
militância em uma sociedade que sempre negou o ir e vir
pleno a eles – ocuparam as ruas em junho de 2020, em plena
polícia e o medo, para defenderem suas vidas.
Diferente do que prega cinicamente o ocupante do Planal-
to, repetido por robôs virtuais ou reais, que a escolha é lutar
ou morrer por vírus ou por falta de emprego, a escolha da
favela é morrer em casa de tiro, de indiferença pela socieda-
de que teima em não se escandalizar com o genocídio sobre a
juventude negra moradora de favelas e periferias do Brasil,
ou ainda de desamparo. Esses jovens negaram essas alter-
-
mes que querem condená-los, no mínimo, à invisibilidade.
Deles, nos vêm a esperança, de não esperarmos nas jane-
las o mundo mudar, de não vermos a cidade como algo dis-
tante das nossas mãos, permitidas apenas ao olhar. De que
é necessário rompermos com a perspectiva de que estamos
condenados a viver com medo de vírus, decretos, tanques e
434
que há um mundo fora das janelas que nos prendem que não
Chegará, torço para que breve, o momento que poderemos
-
na. Que olharemos para as janelas na perspectiva de fora
para dentro, estaremos nas ruas… trabalhando, conversan-
do, protestando, amando, vivendo.
E teremos que abrir outras janelas, ventilar a sociedade,
iluminar questões e pessoas que reivindicam espaço e vida.
Teremos que mudar nossas perspectivas sobre os medos
que nos imobilizam, teremos que vencer os males que corro-
em e destroem nossos corpos… para os quais a única vacina
é a esperança de que vale a pena lutar, amar e abraçar.
não precisem ter grades. Que não se tenha mais as perspec-
tivas de quem tem medo e quem se sente temido.
438
tentativa 1. tenho fome de pele.
tentativa 2. neste tempo de gelo, moldo abraços impossíveis.
tentativa 3. as fronteiras mentem. é impossível fechar-se.
tentativa 4. vejo a morte do outro;
439
tentativa 5. os dias não queimam, já nascem cinzas. dias quase iguais.
tentativa 6. tv mostra covas coletivas;
vejo navios negreiros, presídios, quartos de empregadas.
tentativa 8. ouço krenak. o amanhã não está à venda.
441
Era 5 de maio, completávamos 52 dias de isolamento so-
cial, cumprindo todos os procedimentos de segurança desde
15 de março, quando resolvemos subir à serra imperial e ir-
mos para a casa de Petrópolis. Fomos todos, pai e mãe, irmã
grupo de risco para a pandemia de covid-19, por isso a ur-
anos recém completados, mamãe pela hipertensão, diabetes,
seus 76 anos e irmã ainda se recuperando de uma meningite
fúngica que havia lhe custado dois meses de internação.
442
Mas maio também é o mês do meu aniversário e esse ano
foram 49 outonos, porque aqui no hemisfério sul, maio é
propriedade dele, é quando as folhas das árvores, numa es-
tratégia de proteção do frio que se anuncia, tornam-se ama-
reladas ou avermelhadas e caem, economizando energia. E
nesse mês de maio, minha mãe lembrou que há 49 anos, ela
morava no Complexo da Maré, na rua Ouricuri e sentiu um
forte desejo de comer pirão de mocotó, mas na época, não
tinha dinheiro, o que não foi problema para sua prima Célia
que dividia a casa com ela. Célia namorava um rapaz que
servia num quartel do Exército próximo dali e pediu o di-
nheiro emprestado a ele, voltando com um suculento prato
de pirão. Minha mãe se empanturrou do mocotó e logo de-
pois entrou em trabalho de parto, sendo levada às presas ao
Hospital Geral de Bonsucesso, onde às 17 horas, eu nasci,
em meio a uma grande família de paraibanos.
Meu pai, Seu Severino, saiu de Serra Branca, uma cidade
no interior do Cariri em 1967, migrando para o Rio de Janei-
ro em busca de trabalho e o sonho de uma vida melhor. Foi
porteiro e pedreiro, casou-se com minha mãe, Dona Maria,
e a trouxe para o Rio. Construíram juntos uma família de
-
-
to, mas não é. Isso em meio a uma pandemia, que naquele
5 de maio havia contaminado 115.953 brasileiros e já con-
tava 7.958 mortos no país. Desse total, 11.721 contamina-
dos e 1.065 mortos eram do Rio de Janeiro, sem contar as
Seu Severino ou Biu, como era comumente apelidado na
Paraíba, era um vascaíno entusiasmado, mas há alguns anos
o Alzheimer vinha fustigando sua consciência. Suas reações
443
às situações e atividades do cotidiano passaram a ser mais
emocionais e menos cognitivas. Seu humor também era um
interessante termômetro de suas emoções, aborrecimentos
e gosto eram expressos num pequeno gesto de calma, como
um fechar tranquilo dos olhos. No entanto, de alguma for-
ma, os sentimentos e as emoções dos jogos de futebol da sua
infância e juventude permaneceram num resquício de sua
fala, que diversas vezes durante o dia repetia os números
dezessete e dezenove, talvez numa referência antiga à nu-
-
ma: do 1 ao 11 para equipe dona do campo, mandante, e do
12 ao 22 para equipe visitante, um costume muito usado no
Cariri, interior da Paraíba.
Naquela manhã de 5 de maio, um tanto quanto fria, mas
com um sol suave e céu limpo, ele acordou e o levantamos
para tomar seu banho matinal e começar o dia. Logo depois
ele comeu mingau de maizena com um cafezinho forte e
doce, seu preferido. O levamos para um banho de sol e na-
quele momento eu quis fotografá-lo por causa da luz linda
que fazia. A manhã seguiu e chegara a hora do almoço. Mi-
nha mãe preparou e lhe deu de comer na boca, o que já era
de costume. Arroz, feijão e frango cozido batidos no liqui-
uma geleia de mocotó, dada pelo Rafa. Depois que todos já
haviam almoçado, assistimos um pouco de TV e o noticiário
da tarde, descansamos e fomos ao quintal plantar as quatro
mudas de bougainville rosa e também podar alguns galhos
da mangueira, quando Viviane, minha irmã, chamou. Entra-
mos e pude ver que ele estava pálido. Peguei o aparelho de
pressão arterial numa tentativa de medir sua pressão, mas
não funcionou. Senti que seus batimentos estavam fracos.
444
Rafa já havia chamado uma ambulância e nesse momento,
eu o sentei na cadeira, tentei facilitar sua respiração. Ele
me olhou bem nos olhos e falou baixo, de certa forma forte,
a palavra que ecoou na minha mente por muito tempo: RES-
PIRA! Deu três suspiros profundos e nos deixou.
446
“Meu pai me batia”, como dizia uma canção da banda Sex
Noise. Mas hoje em dia ele só faz horta. É intrigante como
o tempo nos escapa por entre os dedos. Outro dia mesmo
eu é que passava pelo crivo sensor e educativo de meu pai,
que erroneamente, como toda sua geração acreditava na fa-
mosa ‘palmada’ corretiva. Mas ao avançarmos no tempo,
em meio a uma pandemia, é curioso perceber toda sua doçu-
ra ao cuidar de singela horta, delicadamente cultivada em
baldes e bacias velhas. Todas as manhãs e tardes, do alto
dos seus oitenta anos, meu pai, aquele que me batia, rega
uma verdejante pequena plantação de salsa e coentro. Fico
anos evaporando no tempo. Invertendo-se os papéis, agora
quem acelera o coração e acende uma luz amarela de pre-
ocupação, toda vez que meu pai sai de casa, sou eu. Muito
antes da pandemia, eu já desenvolvera esta preocupação.
Mesmo meu pai sendo muito ativo e integrante de um gru-
po de futebol do bairro, o famoso “rola cansada”, meio que
sem perceber fui desenvolvendo este “medo” de perdê-lo. Na
verdade na vida estamos nos despedindo o tempo todo, sem-
pre. E é quase como um instinto animal, proteger os seus.
Mas para piorar minha situação, meu pai não possui celular
447
ou qualquer outro tipo de comunicação móvel. Ele diz que
são coisas complicadas demais para ele, e segue livre pe-
las ruas da cidade. Tive que por precaução, discretamente
como se fosse uma curiosidade inocente, passar a perguntar
aonde vai, fazer o quê, e quando volta? Nossa! Como minha
mãe me fez este tipo de pergunta. Lembro-me de um amigo
comentando que seu pai, da mesma faixa etária do meu, era
a mesma coisa. Como diziam pessoas de sua geração; “Pa-
rece que tem um bicho carpinteiro por dentro”. E tanto meu
pai quanto o pai de meu amigo, não perdem uma promoção
dos Supermercados Guanabara; Hoje é dia da carne! Ama-
nhã é dia de verdura! E depois é dia de produtos de limpe-
za! Era sempre uma das desculpas para sair da quarentena
e ir de encontro aos perigos, agora também microscópicos
do mundo lá fora. Pelo menos consegui convencê-lo a seguir
os cuidados de higiene, com o uso de máscaras (do Vasco da
Gama, é claro!) e álcool gel nas mãos. Mas mesmo assim não
socialite carioca; ‘Ai! Que loucura!’. O fato é que meu pai só
baixa o ritmo quando está regando sua hortinha. Pensativo
lendo algum livro, observo seu cuidado com as plantas e
com o tempo
da terra, para que assim cuidemos da alma. É certamente
uma sábia forma de observamos o tempo, e percebermos o
quão frágil e efêmero ele é. Oitenta anos! Meu Deus! Não
consigo me imaginar chegando lá. E tampouco consigo
pensar com tranquilidade no tempo que nós ainda temos
juntos. Mas voltando aos dias atuais, em tempos de pande-
mia, de certa forma, todos estes sentimentos de perda das
horas se tornam uma constante. Perdemos tempo demais
nas redes sociais ou assistindo TV, ou em jogos eletrônicos.
448
Quando na verdade deveríamos aproveitar o tempo ocioso
para empreendermos algum projeto deixado na gaveta, ou
até mesmo colocar a leitura em dia. Eu sei! Seu sei! Não é
fácil! A faxina não deixa! A faxina alivia o stress e a depres-
são, além de ocupar nosso tempo e nos fazer sentir úteis no
mundo, vendo nossos lares tão organizados e limpos como
há muito tempo não víamos. As atividades físicas; prome-
temos retomar assim que a quarentena termine. Mas se já
era difícil antes, imagine agora com a desculpa de que esta-
um produto daqueles comprados pela internet, eu ia que-
rer fazer devolução, uma espécie de recall. Não curti! Não
gostei! Se a lição deste vírus era nos tornar mais humanos.
Nós pouco mudaremos após a quarentena, ou até piores se-
remos; Mais consumistas, mais sedentos por sexo e mais
urgente nas relações. O único ponto positivo, que de certa
forma, é também um ponto negativo, e a percepção do tem-
po, que de forma cruel, como citado, nos escapa por entre os
dedos a cada minuto do relógio. Certo está o meu velho pai,
que minuciosamente rega cada raminho de salsa e coentro
em sua horta, com o pensamento ao longe, vendo o passar
das horas com paciência e doçura, talvez se lembrando que
o aniversário dos Supermercados Guanabara se aproxima.
452
O ano de 2020 seria mais um ano como outros: estabele-
ações que precisaríamos realizar, quais pensamentos posi-
tivos de saúde, união e de desejos a serem alcançados. Mas,
o que não imaginávamos é que o ano prometia… e muito…
-
namos pai e mãe em dezembro de 2019 com a chegada da
Lua, uma menina linda de 6 anos que veio completar nossa
família. Evidentemente, que ela passou a ser a prioridade
em nossas vidas. Escolher escola, pediatra, comprar brin-
-
nidade e organizar nossos horários com os dela. Estávamos
vivendo um misto de muita alegria, muito medo e grande
responsabilidade, uma loucura maravilhosa, mas com a cer-
teza que tudo estava sob controle.
Em fevereiro, nossa pequena estava na escola, bem adap-
tada, nossos horários de trabalho, estudo e lazer bem orga-
-
mos no processo de nos conhecermos, de construir nossas
relações, de fortalecer nossos afetos. Porém, em março
aconteceu o inesperado, o impensável: uma pandemia com
453
milhares de infectados e mortos, total desconhecimento
Uma nova realidade estava imposta a todos e particular-
mente ao nosso mundo novo.
Todas as concretudes e certezas da vida, as coisas que
funcionavam e estavam em seu devido lugar como deve-
riam estar (ou que pensávamos estar…) se desmanchavam
como areia na chuva. Compartilhávamos a sensação des-
crita por Marshall Berman “são todos movidos, ao mesmo
tempo, pelo desejo de mudança – de autotransformação e de
transformação do mundo em redor – e pelo terror da deso-
rientação e da desintegração, o terror da vida que se desfaz
em pedaços. Todos conhecem a vertigem e o terror de um
mundo no qual tudo que é sólido se desmancha no ar.”1 E
para nós que sempre buscamos ter o controle de tudo, com
a certeza de que as coisas estavam inseridas em seus “res-
pectivos quadrados” e que funcionavam perfeitamente bem
(ao menos teoricamente), nos deparamos com uma onda
imensa de ansiedade, de medo, de um porvir incerto. Nossos
comportamentos e percepções sempre direcionadas ao futu-
ro não permitiam cuidar daquele nosso presente.
Como lidar com uma situação extremamente inusitada,
tendo que ser pai, marido, mãe, esposa, professor e médica
24 horas por dia, todos os dias? Quanto tempo duraria essa
famílias? E as populações pobres e miseráveis das gigantes-
cas e insalubres periferias brasileiras? Nosso sistema de saú-
de estaria preparado para a enxurrada de doentes? Como
agiriam nossos políticos que se mostravam (e continuam!)
tão despreparados quanto ao cuidado e direcionamento da
1 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar. São Paulo:
Companhia das Letras, 1986. p. 13.
454
Nação, adotando discursos e medidas genocidas tendo como
Tantas indagações sem respostas eram absolutamente
desesperadoras. Parafraseando Lênin, o que fazer? Só nos
restava buscar saídas para uma situação nunca imaginada.
Pensar em estabelecer estratégias para a nossa nova reali-
-
sentes e com um presente maravilhoso que a vida nos deu.
E este presente é o principal responsável por descobrir-
mos que na vida não há espaço para grandes estratégias, ela
precisa ser vivida, um dia após o outro. Cada manhã repre-
senta uma página em branco em nossas histórias. No nosso
caso, somos diariamente acordados às 6 horas da manhã
-
acordar cedo, e no minuto seguinte já estamos a postos para
a diversão do dia.
Agora somos pai e mãe por tempo indeterminado, sem es-
cola, sem passeios, sem visitas. E querem saber de uma coi-
sa: descobrimos, nesta quarentena, que nada vale mais do
-
suras de um verdadeiro dínamo de um metro e vinte, colo-
cando para fora toda sua energia. Esta é a única certeza que
temos no momento e, sem sombra de dúvidas a melhor de
todas elas, certeza que estaremos sempre sob a luz da Lua.
456
Foi quando meu amigo Felappi Montparnasse ligou de
madrugada me convocando em caráter de extrema urgên-
naquela tarde em uma churrascaria australiana de Niterói.
Sem entender muito o que ele dizia e ciente de que talvez
há algum tempo, juntei minhas coisas e fui caminhando pelo
centro deserto até sua casa – um ateliê de 25 metros impro-
visado no escritório do pai, no décimo terceiro andar de um
edifício comercial cujo vão central é famoso pela recorrên-
cia de suicídios, onde décadas de acúmulo de quinquilharias
do shopping chão e uma gata se equilibram sobre antigos
processos trabalhistas em papéis grilados pela ação do tem-
po e amônia. Não lembrava o número, saí do elevador e se-
gui à direita o rastro de mijo de gato misturado com fuma-
ça de Minister vermelho. Como imaginei ele queria acertar
contas com o passado, o pai, o país e velhos amigos brancos
que na adolescência o curraram no playground aos gritos de
lincha bicha-preta, prenúncio do que o Brasil se tornaria nos
anos seguintes sem nunca ter deixado de ser. Ficamos horas
457
poucos foram se fechando. Voltei pra casa e no correr dos
Mais três anos correram sem que eu percebesse, agora
estou de fato trancado em meu quarto assistindo as imagens
conversas atravessadas pela cidade ao fundo. É primeiro de
maio outra vez, uma da tarde, acabei de fechar o último cor-
induzido por ocitocina.
Nilo segue lá dentro há quarenta e duas semanas e não
dá sinal que quer sair, o que no contexto atual parece bem
safo. Por vezes me pego imaginando o interior do útero em
contraponto ao desconforto de estar preso em um aparta-
mento infestado de animais castrados e plantas intoxicadas
pela água do Gandu, light cortada por distração e o vizinho
tocando Fool on the Hill em looping no piano, mas é uma
-
-
demia atravessa o mundo e se aloja no Rio, a cidade acolhe
o vírus de peito aberto contando piada como velhos médicos
em uma sala de parto. O anestesista toxicômano me explica
com detalhe todas as combinações possíveis de arrebite pra
suportar vinte e quatro horas de plantão, eu sem dormir há
quarenta e oito agora visito o covil da Ágata enquanto noto
uivo da mulher no quarto ao lado dando à luz uma criança
que todos ali já sabem, não irá sobreviver. Na cantina enfer-
meiros contam óbitos e casos da peste enquanto o Gabeira
fala alguma amenidade na TV muda. Gosto dos quadros na
parede da casa dele mas de longe não consigo reconhecer a
artista. Lembro das fotos que a Diana ia vender para um res-
taurante em Botafogo que nunca chegou a abrir. O telefone
458
apita junto da cafeteira, Guedes acaba de depositar 666
reais na minha conta que vão direto pro bolso dos Morei-
ra Salles. Moro vai caindo e junto dele minha máscara toda
vez que saio pra fumar, de quinze em quinze minutos. Na
porta uma enfermeira mostra as mãos necrosadas de Covid,
outro diz que a pressão nos pulmões é pior que afogamento
enquanto acende um Free mentolado e eu me pego em dis-
parada no corredor tomando banho de álcool a cada dez me-
tros – também pra testar o olfato. São quinze para as três da
tarde quando Diana se ajeita na cama quebrada e depois de
chorando tranquilo do lado de fora, alheio a qualquer crise
sanitária, correndo de mão em mão entre necroses, selfies
-
tar um plano de fuga.
Dois de maio é celebrado no interior de Minas como o dia
mais doido do ano, não faço ideia porquê. A cidade está si-
tiada e os ônibus intermunicipais foram cortados, o que me
demove da ideia de ir a Nilópolis registrar o moleque. Meio-
-dia ele já tem CPF e me vejo obrigado a abortar o projeto de
morrer devendo ao banco as cuecas extra-largas que herdei
de meu avô. Nunca imaginei que chegaria aos quarenta, ain-
vida de um jeito que nunca poderia prever. Minha vó, teste-
munha de jeová convicta, manda um zap contando a ven-
tura de Moisés no Nilo e parece confortada na ideia de ter
vivido pra ver o apocalipse. A história de um cesto descendo
o rio com uma criança recém-nascida me mantém atento,
os tiranos seguem nos bombardeando com seus robôs en-
quanto o vírus escorre das paredes entre os dedos das enfer-
meiras. Nilo deságua em choro profundo, olho no fundo do
seu olho e miro gerações futuras e antepassadas chamando
459
por socorro. Pedimos altas, ele é muito novo pra brincar. O
mesmo homem que 33 anos atrás tirou Diana do útero com
na buceta com ternura de avô e nos libera para iniciar a ven-
mundo se limite às paredes de um velho apartamento.
São seis horas da tarde, a lua acabou de nascer e um ven-
daval assola a rua das laranjeiras cobrindo o chão de folhas
mansa em meio à tempestade de raios, abrigo o Nilo em meu
quinhentos metros da maternidade até a porta do prédio. O
vento ainda assovia da fresta enquanto subo os três lances
de escada ao som onipresente do piano. Forjo impostação de
ópera feito criança a provocar os tenores do coral da igreji-
nha onde perdi a virgindade e repito com convicção o velho
mantra que meu pai sempre cantava: day after day, alone
on the hill...
461
Ao fazer chá, queimei a mão. No momento em que a tam-
pa da chaleira soltou, fazendo escoar a água fervente, tomei
por algo banal, um acidente pontual. Só no dia seguinte eu
percebi o pulso inchado, uma mancha escura, a pele enru-
gada. A pele enrugada. Tenho me olhado no espelho mais
que o habitual. A pele enrugada. Tenho dormido mais que
o habitual. Os olhos inchados. E tenho tomado mais café, o
que parece uma contradição. Tenho caído em contradições.
Diariamente.
Diariamente, prometo a mim mesma que vou meditar.
Vou me exercitar por 30 minutos. Vou comer na hora cer-
ta, bastante salada. Vou riscar toda a lista de pendências da
roupa acumulada e tirar um pouco de pó das estantes, entre
uma videoconferência e outra. Amanhã recomeço. Amanhã
serei coerente comigo mesma e com minhas promessas.
Ao entrar em casa, tirei o sapato. No momento em que
tive notícia de um vírus novo na China, tomei por algo ba-
nal, um incidente pontual. Só após a terceira semana de
isolamento social, eu percebi. A pele enrugada. Os olhos in-
chados. A cama por fazer todo dia, a comida para preparar,
462
a louça para lavar, a poeira se acumulando nos móveis, a
poeira, a sujeira, o medo. Tenho acumulado medo como o
tempo acumula a poeira. Mais, bem mais do que o habitual.
Desde que li sobre a criança que caiu do prédio da patroa,
enquanto a mãe, a empregada da casa, levava os cães para
passear e a patroa fazia as unhas, deixei de acompanhar as
pelos milhares desamparados pelo poder público. Temo pelo
Houve um tempo – nós o perdemos? – em que o futuro não
dava medo.
Minha mãe me mandou mensagem, outro dia, algum dos
noventa dias em que não nos encontramos. Ela acabara de
“Sua paixão não é sem razão... mas
carrega em si, veladamente, a angustiante
caverna... Ver a luz DÓI os olhos!
Escreveu assim, dói em caixa alta. Não soube responder
de imediato, ela tem tanta razão, tem tanta sensibilidade, eu
ando tão sensível, como doem meus olhos! Os olhos incha-
dos. Respondi com um emoji, um coração vermelho. Hou-
ve um tempo – quando foi mesmo? – em que as respostas
surgiam naturalmente e as palavras precisavam ser ditas.
Amor, por exemplo. Não um emoji de coração vermelho.
Amor.
um imenso trem, e as pessoas se organizavam em vagões se-
parados por classes ou castas. A Terra havia congelado, não
era possível sair do trem, nem parar sua marcha ao redor
463
do planeta. Nos últimos vagões as pessoas morriam de fome,
comiam umas às outras, e as crianças eram capturadas pela
central de comando para trabalhar gerando energia motora.
Era isso a vida, um imenso trem movido à energia infantil,
os vagões dianteiros repletos de luxuosos banquetes e festas
orgíacas, os últimos apinhados de gente morrendo e matan-
do. A metáfora doeu meus olhos.
Minha mãe tem sessenta e três anos e é do signo de aquá-
câncer, de uma mãe de elemento terra e um pai de elemento
fogo. Água, fogo, terra e ar – Antônio herdou de cada fami-
liar a sensibilidade dos quatro elementos. Outro dia, algum
dos noventa dias em que juntos jogamos paciência, ele me
“Eu e minha mãe andamos nos divertindo muito,
Mesmo trancados em casa.
Mas um dia minha mãe vai morrer.
Ela vai estar nas coisas,
Nas ginásticas, no sol, no mar, na praia
E principalmente no meu coração. “
Há dias eu tento escrever esse texto, um relato em qua-
rentena. Pensei em falar sobre o medo e sobre a perda, a per-
da do mundo como o conhecemos, o medo de perder, o medo
da morte. Pensei também em falar sobre possibilidades de
continuação, as pequenas alegrias cotidianas, amanhecer
com quem amo, afagar um cão, regar uma planta, partilhar
464
Está tudo dito: a celebração do cotidiano, a consciência da
morte, o amor perene, a palavra coração.
472
Uma mordida no peito me desperta de uma noite fria
mal dormida e me joga no dia ensolarado. A maternidade
recente me fez lembrar que, antes de mais nada, sou bicho
com meu bichinho no colo, dois mamíferos tentando sobre-
viver ao passar das horas, da fome, do sono. Lembro da vo-
racidade com que abocanhei algumas fatias de mamão logo
após o parto, o suco da fruta escorrendo pelo meu queixo,
o talher de plástico quebrado jogado sobre a mesa, as mãos
ainda um pouco trêmulas do jejum. Desde esse primeiro de
maio os dias vêm se confundindo e se atropelando, numa
valsa eterna de passos ainda desajeitados. Se o puerpério é
uma das experiências mais duras pelas quais uma mulher
pode passar, o puerpério em meio a uma pandemia é quase
intragável.
Vivo uma quarentena dentro da outra, e já não sei qual
veio antes. O distanciamento social se impôs desde as últi-
mas semanas de gravidez, quando meu corpo parecia não
saber mais como caber em si. Mas o parto operou uma fenda
entre duas temporalidades e abriu um portal para o univer-
nasceu de um parto normal induzido, com um trabalho de
parto rápido, assim como foi nossa estadia na maternidade,
473
-
dos – menos de 24h. Voltamos para casa a pé. Gabriel, com
Nilo no colo, se adiantou para fugir do vento e da chuva que
se anunciava, e eu segui logo atrás, assistindo àquela cena
a falta daquele pequeno corpo junto ao meu. Chegamos na
porta do prédio logo antes das primeiras gotas de chuva. Lá
minha mãe nos esperava para conhecer o neto, de longe e
de máscara.
Das primeiras semanas no cubo branco lembro de pouca
coisa, a memória está envolta em uma névoa de cansaço e
dor torturante da amamentação. A reclusão no puerpério
seria inevitável, mas essa quarentena escancarou nossa so-
lidão e principalmente a incapacidade de dar conta de tudo
ao mesmo tempo. No melhor momento dos dias, nos aper-
távamos próximos à janela em busca da luz do sol, que se
reservava a alguns ângulos da sala das treze às quinze. Com
três semanas de vida do Nilo partimos do Rio para Minas.
***
O exílio aparece, com alguma frequência, nas minhas pes-
quisas teóricas e estéticas. Gosto de pensar o exílio como
um estado deslocado de se estar no mundo, em geral funda-
do por uma situação de ruptura entre uma pessoa e o que
ela reconhece como lar. Essa separação, que surge de uma
privação, alimenta um sentimento de não-pertencimento,
de descontinuidade de si. Esse assunto é (por mais que eu
tente fugir dele) uma linha condutora dos meus trabalhos,
e não pude evitar de me aproximar dele durante essa dupla
quarentena.
474
Em uma das pontas dessa relação dialética da qual trata
o exílio, está o lar. No compasso do isolamento, comecei a
ler A poética do espaço
ele chama de imaginação poética, recorrendo a imagens re-
ferentes ao espaço, e no que mais me interessa aqui, à casa.
Esta é descrita como o lugar de acolhimento, de pertenci-
mento, que remonta ao que conhecemos de mais seguro e
íntimo, tal qual o berço – e, por que não?, o útero.
A morada, esse refúgio, ganha um novo e inesperado tom
na quarentena. Vivo, agora, uma espécie de exílio interno,
um deslocamento do mundo, dos lugares e pessoas que for-
mam e conformam minha identidade. A separação, aqui,
se dá através de um mergulho vertiginoso para dentro: da
minha casa, do meu próprio útero. Como encarar o mais
radical de mim e das pessoas que me acompanham nessa
empreitada? Como lidar com o medo constante de uma pan-
demia que bate à porta e todo dia mais esfrega na cara a ne-
cropolítica escancarada que se instalou no país? Me refúgio
em casa mas não caibo nela. Não há lugar possível. A casa
realiza essa dupla função – de acolhimento e desconforto, de
afago e corte.
***
na região metropolitana de Belo Horizonte, para fugir do
crescimento descontrolado da epidemia no Rio de Janeiro.
Aqui temos ajuda, além de céu aberto com sol e ar fresco. Um
refúgio temporário. A manhã, depois da primeira mamada,
segue mais leve do que costumava ser. Nos revezamos com
o bebê e até consigo um tempo para sentar e escrever. Não
dura muito e o pai, que está caindo de sono depois de uma
475
noite em claro com Nilo nos braços, pede para eu segurar as
pontas enquanto tira um cochilo. E seguimos o baile entre
mamadas doloridas, choros e alguns sorrisos que quase jus-
Apesar da quarentena dentro da quarentena, tenho al-
-
prestadores de serviço estão de portas fechadas e resolvo
pela primeira vez fazer uma série com a câmera digital. O
isolamento começa a mudar minha linguagem. Sinto falta
tirar as primeiras de uma série mineira de fotos. A arte ago-
ra precisa ser, mais do que nunca para mim, um exercício
experimental da liberdade. Estamos tateando desbravar
novos terrenos e reentrâncias de uma estrutura de criação
que precisa ser repensada. Arte e vida inevitavelmente se
aproximam nesse mergulho para dentro da casa e da ma-
ternidade. Como disse Iole, me encorajando a não largar o
grupo de estudos que ela coordena quando eu estava prestes
a parir: que os bons ventos dos anos 70 nos embalem.
Coloco os pés na estrada de terra e mal acredito. Caminho
em direção ao trecho bloqueado ao acesso de carros devido
ao risco de colapso das barragens da Mina Mar Azul, que
têm a mesma estrutura que as de Brumadinho e Mariana.
Desde que anunciada a possibilidade de um novo “desastre”,
coube à Vale tomar algumas medidas de segurança, como
fuga e pontos de encontro, implantação de sistema de alerta
e fechamento de trechos de estrada que estão na área de ris-
co de um possível rompimento das barragens. Caminho com
os olhos atentos e sou interrompida diversas vezes por por-
tões, obras, sinalizações, postos de vigilância. Imagino os
476
milhões de metros cúbicos de rejeito da mineradora corren-
do na minha direção e se amontoando nas estradas e casas.
Registro esses descaminhos, essas impossibilidades. Come-
ça a escurecer e meu peito jorra um tanto de leite anuncian-
do que é hora de voltar para casa.
478
ABILIO RODRIGUES
-
nimalista, cool, bossa-nova. Ex baterista da banda Picassos Fal-
Universidade Católica do Rio de Janeiro (com estágio de douto-
ramento na Brown University, EUA) e pós-doutorado na Univer-
sity of Oxford, Reino Unido.
ALLAN SIEBER
Artista plástico, cartunista e roteirista. Reside no Rio de Janei-
ro, onde mantém a galeria A Hostil Carioca, anexa ao seu ateliê
em Copacabana. De 1999 a 2014 manteve a Toscographics De-
senhos Animados, estúdio sediado no Rio de Janeiro e colaborou
para a Rede Globo e Globosat em roteiros e animações para a
TV. De 2005 a 2017 publicou as tiras “Preto no Branco” e “Bifa-
land, a cidade maldita” na Folha de S.Paulo. Foi colaborador
Trip, Playboy e atualmente publica na revista
Piauí e tem uma página semanal na revista Época. Principais
exposições: O artista não está presente, individual na Martha
479
Pagy Escritório de Arte. Pinturas e desenhos, Rio de Janeiro,
2019; BOTÂNICA!, com Bernardo Ramalho, na Casa Blu, com
curadoria de Guilherme Gutman, pinturas e desenhos, Rio de
Janeiro, 2019; Fui eu sim, individual na galeria Sancovsky, pin-
turas e desenhos, São Paulo, 2018; Não atire no mensageiro,
exposição com Gelson Mallorca, pinturas, desenhos e objetos,
Saracvra, Rio de Janeiro, 2017; Agora sem as mãos, individual
de pinturas, Rato Branko, Rio de Janeiro, 2016; 1º Festival In-
ternacional de Dibujo, Historieta e Ilustración Ciudad de Lima,
individual, Lima, Peru, 2013; Essa Terra é Minha Terra, indivi-
dual de desenhos, fotos e instalação com vídeo, Museu do Tra-
balho, Porto Alegre, 2005; Assim Rasteja a Humanidade, indi-
vidual de desenhos e instalação com vídeo, Museu do Trabalho,
Porto Alegre, 2001.
ALTINO FILHO
Jornalista, letrista e poeta. Morou dez anos fora do país onde
atuou no Serviço Brasileiro da BBC, em Londres. De volta ao
Brasil, trabalhou em diversos veículos de comunicação, com
ÁLVARO PEREIRA DO NASCIMENTO
Professor em História na UFRRJ, pesquisador de produtivi-
dade do CNPq, e autor de livros e artigos acadêmicos. Em sua
formação estão as carreiras de soldado do exército (57 BIMtz),
peão de obra (com uma obra no Grajaú e outra em Copacabana),
instalador de interfone (em diversos condomínios pela cidade)
e técnico em máquinas de escrever eletrônicas (numa empresa
multinacional e por “bicos”). Também graduou-se em História
pela UFF, e fez mestrado e doutorado pela Unicamp.
480
AMÉRICO FREIRE
Professor titular do CPDOC/FGV e Pesquisador do CNPq e da
Faperj. É autor de inúmeros livros e artigos dos quais destaca-
se Frei Betto: biografia (Civilização Brasileira, 2016).
ANA BIA
Carioca, nascida e criada em Guaratiba, subúrbio do Rio de Ja-
neiro. Em sua pesquisa tudo parte de um lugar, a terra. Seus
trabalhos pensam as relações da terra e do território (em espe-
histórias.
ANA KIFFER
Professora associada da Pós-Graduação em Literatura, Cultu-
ra e Contemporaneidade da PUC-Rio, cientista do Estado pela
Faperj e Bolsista de Produtividade no CNPq. É escritora, com
livros como Tiráspola e Desaparecimentos (Garupa, 2016); A
punhalada (7Letras, 2016); Todo Mar (Urutau, 2018); Colunis-
ta da Revista literária Pessoa, pesquisadora da obra do escritor
francês Antonin Artaud, vem desenvolvendo há muitos anos
uma investigação sobre os diversos modos de relação entre os
corpos e a escrita. Organizadora de A perda de si: cartas de A.
Artaud (Rocco, 2017); Antonin Artaud (Eduerj, 2016); e das co-
letâneas Sobre o corpo (7Letras, 2016); Expansões contempo-
râneas: literatura e outras formas (com Florência Garramuño,
UFMG, 2014); Experiência e arte contemporânea (Circuito,
2013); Ódios políticos e política do ódio (com Gabriel Giorgi, Ba-
zar do Tempo, 2019); entre muitos outros artigos e ensaios.
481
ANAMARIA ALVES DIAS DOS SANTOS
Pesquisadora Quilombola do Núcleo de Estudos Interdiscipli-
nares de Alteridade da Faculdade de Letras da UFMG. Possui
publicações em Teoria da Literatura pela Editora Letramento,
Mulheres Emergentes e nos Cadernos Negros pela Quilombhoje.
ANA MARIA MAUAD
Professora titular do departamento de História da UFF, pesqui-
-
e história pública, autora de Poses e flagrantes: ensaios sobre
história e fotografias
livros organizados sobre as temáticas de estudo.
ANDRÉ LAGE
Cineasta e artista visual. Doutor em Literatura Francesa pela
Universidade Paris 8, pós-doutor em Artes do espetáculo pela
ECA-USP. Realizou o longa metragem Los Leones (2016), pre-
miado em festivais nacionais e internacionais, e os curtas Lul-
laby (2014), Ilhas Pribilof (2019), Viagem ao Marrocos (2020).
Autor de Bichos (SQN biblioteca, 2019), livro com reproduções
de desenhos em pastel seco e tinta nanquim.
ANDRÉA CASA NOVA MAIA
Historiadora, Professora de História do Brasil e de História da
Arte do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Vice-Presidente da International Oral History Associa-
tion (IOHA, 2014-2016). Autora, dentre outros, dos livros Ética
e imagem (C/Arte), História oral e direito à cidade: paisagens
urbanas, narrativas e memória social (Letra & Voz, 2019) e
Waldir dos Santos, o sambista operário: história de uma mina
de ouro no tempo de Vargas (Gramma, 2019).
482
ANDRÉA CRISTINA DE BARROS QUEIROZ
Historiadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Dire-
tora da Divisão de Memória Institucional do Sistema de Biblio-
tecas e Informação da UFRJ; é Membro da Comissão da Memó-
ria e Verdade da UFRJ, onde coordena o grupo de trabalho de
pesquisa histórica da CMV-UFRJ. Possui Doutorado em História
Social pela UFRJ. Publicou o livro Universidade e seus lugares
de memória. Tem como pesquisas os principais temas: Rio de
Janeiro; Ditadura civil-militar (1964-1985); censura; imprensa
alternativa; O Pasquim (1969-1991); Millôr Fernandes; humor;
contracultura; ensino de história e sambas-enredos; memória
institucional e patrimônio; história institucional e história oral.
ANTONY HENRIQUE TOMAZ DINIZ
Mineiro, 36 anos, mora em Campinas desde 2013 onde trabalha
como sociólogo numa organização da sociedade civil. Formado
em Ciências Sociais pela PUC-MG e mestre em Antropologia pela
Unicamp. Tem um livro publicado sobre os ursos de São Paulo
e suas corporalidades e masculinidades. Foi professor por seis
anos, escreve poesia, desenha, pinta e trabalha com produção
teatral e operística.
BETO BIANCHI
premiado em vários concursos, dentre os quais destaca-se Rio
na Audio Rebel e mostra coletiva Mercadinho Mimosa (2019).
Rock e subúrbio.
483
BHUVI LIBANIO
Nascida Ana Luiza Libânio de Rezende Dantas, é formada em Le-
tras pela UFMG, com mestrado em Literatura/Estudos Latino-
-Americanos, especialização em Estudos de Mulheres/Estudos
de Gênero pela Ohio University e formação em Direitos Huma-
nos pela UEMG. É tradutora há vinte anos e escritora. Publicou
o ensaio The Autonomous Sex (Lambert Academic Publishing,
2010), o romance A história de Carmen Rodrigues (Ser Mais,
2014), a coletânea de contos 17 (Quintal Edições, 2018), e tex-
tos (contos e dramaturgia) em antologias. É roteirista do cur-
ta-metragem Parênteses e colunista da revista eletrônica Rio
Total. Bhuvi é sannyasin, dedicada à meditação e aos estudos
da espiritualidade.
BRUNO PELEGO
Bacharel em artes visuais pela UERJ, mora num sítio na Monsu-
aba em Angra dos Reis, onde tem o privilégio de estar durante a
quarentena da pandemia. Sem se obrigar a fazer nada artístico
no período, a não ser aquilo que sai porque já está feito, levando
um dia após o outro como se todos fossem o mesmo repetido de
forma diferente.
CARLA MAIA
Ensaísta, pesquisadora, curadora e professora. Possui douto-
rado em Comunicação Social pela UFMG. Leciona no curso de
Cinema e Audiovisual do Centro Universitário Una. Integra o co-
letivo Filmes de Quintal, que organiza o forumdoc.bh - Festival
-
retora do documentário Roda (2011).
484
CARLOS BARROSO
Poeta, artista, jornalista. Membro do grupo fundador da Revis-
ta CemFlores. Publicou Poetrecos (Poesia Orbital, 1997) e os li-
vros-objeto Carimbalas (2008); Sãos, usura e livraria (2010);
Futebol de barro (2014) e Cunilíngua pátria (2017). Lançou
em julho último a miniantologia (e-book) 41 POEMAS CONTRA.
Todas essas publicações pela Edições CemFlores. Participou
das mostras: Coletiv4 (UFSJ, 2015); Ocupação Poética (UFSJ,
2017); Além da Palavra (Biblioteca Pública de BH, 2018); mini-
masminas (Café Kahlua, BH, 2018); Além da Palavra2 (Casa dos
Contos, Ouro Preto, 2018) e Faculdade de Letras (UFMG, 2019).
Repórter em vários jornais, foi comentarista da Rede Bandei-
rantes e apresentador do programa Cena Política (BHNews).
Prêmio Esso de Reportagem (2001). Curador da Mostra de Arte
dos Jornalistas Mineiros.
CARLOS FALCI
Professor na Escola de Belas Artes da UFMG. Atua na gradua-
ção, na área de arte e tecnologia, e dá aulas na Pós-Graduação
em Artes. Desde 2010 investiga as relações entre arte, memória
e tecnologia, com foco na discussão sobre memória e espaço.
CARMEN CASTRO
Socióloga, doutora pelo IPPUR/UFRJ, professora e pesquisadora
sobre questões agrária e urbana e movimentos sociais, orienta-
dora no Curso de Energia e Sociedade no Capitalismo Contem-
porâneo – MAB e IPPUR/UFRJ e assessora política de deman-
das sociais e políticas públicas na Câmara Municipal do Rio de
Janeiro.
485
CAROLINA RUOSO
Mãe do Rudá, circulou por diferentes cidades, mas foi no Ceará
que aprendeu a ler o mundo; o lê, portanto, à nordeste. Cursou
Turismo na ETFCE, onde fez seus primeiros desenhos de inven-
tário do patrimônio imaterial, e História na UFC, época em que
foi educadora de museus. Durante o Mestrado na UFPE, se inte-
ressou em escrever uma história da arte a partir do Nordeste,
projeto que desenvolveu durante o doutorado em História da
Arte na Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne analisan-
do as circulações locais, nacionais e internacionais de traba-
lhadores de museus/artistas, obras de arte e saberes presentes
nas coleções, exposições e ateliês do Museu de Arte da UFC. Foi
curadora de museus de arte e, atualmente, é professora de His-
tória da Arte na Escola de Belas Artes da UFMG.
CHRISTINA FORNACIARI
Artista, professora e pesquisadora em Artes do Corpo. Docen-
te na Graduação em Dança da UFV, reside entre Viçosa e Belo
Horizonte, onde investiga o fazer artístico tendo o corpo como
plataforma. É doutora em Artes Cênicas pela UFBA, mestre em
Teorias e Práticas Teatrais pela ECA/USP e em Performance,
pela Queen Mary University of London, e pós-doutoranda em
Artes pela UFMG.
CLÁUDIA DIAS DE CARVALHO
Possui Graduação, Licenciatura e Mestrado em História pela
Universidade Paris 7. Professora de Francês e História.
CLÁUDIA VISCARDI
Possui graduação em História pela Universidade Federal de
Juiz de Fora (UFJF), mestrado em Ciência Política pela UFMG,
doutorado em História Social pela Universidade Federal do
486
Rio de Janeiro e pós-doutorados na Manchester Metropolitan
University (Reino Unido), na Universidade de Lisboa e na Uni-
rio. É professora titular da UFJF e professora do Programa de
Pós-Graduação em História na mesma instituição. É bolsista de
produtividade do CNPq e pesquisadora da Fapemig. Tem experi-
ência nas áreas de História Política e Social, com ênfase na Pri-
meira República. Foi Pró-Reitora de Pesquisa da UFJF (2002-
2006), pesquisadora visitante na Manchester Metropolitan
University (2007-2008, com apoio da Capes), na Fundação Casa
de Rui Barbosa (2011-2013) e na Universidade de Lisboa (2015,
com apoio da Capes).
CLAUDIANE TORRES DA SILVA
Doutora em História pelo Programa de Pós-Graduação em His-
tória, Política e Bens Culturais pelo Cpdoc na FGV com pesquisa
sobre o Tribunal Regional do Trabalho na ditadura civil-militar;
Professora de História na Secretaria Municipal de Educação do
Rio de Janeiro; membro do Laboratório de Estudos de História
dos Mundos do Trabalho na UFRJ; atualmente desenvolve pes-
quisa sobre Ensino de História e Mundos do Trabalho em livros
didáticos.
CONTRACONSCIÊNCIA
Contraconsciência é um comum de arte urbana de raízes anar-
quistas que, usando os muros da cidade como tela, busca conec-
tar a arte com a crítica político-social e levá-las a um espaço
onde todas as pessoas possam acessar algum tipo de subjetivida-
de que as possibilite questionar a real condição dos sistemas de
opressão que funcionam em nossa sociedade. O conceito de con-
traconsciência está presente na obra do historiador e educador
-
co da população, que vai de encontro à consciência dominante
487
de interesse e controle colonial (que nos atinge até hoje como
neocolonial). Constantino defende que é preciso romper com o
impacto escravizador da internalização dessa consciência e só o
envolvimento direto das massas populares no empreendimento
crítico é capaz de fazer isso. A escolha desse nome foi feita por-
que queremos, através da arte, ajudar a sociedade a catalisar
esse processo e para isso usamos a própria cidade como suporte.
DANIEL GANEM MISSE
Professor da UFF. Bacharel em Ciências Sociais pela UFF e Direi-
to pela UFRJ. Mestre e doutor em Sociologia e Direito pela UFF.
Sociólogo e advogado.
DANIELA YABETA
Professora adjunta do Departamento de História da Universi-
dade Federal de Rondônia (UNIR). Coordenadora do Núcleo de
História Pública da Amazônia (Nuhpam). Editora do Observa-
tório Quilombola de KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço.
Organizadora do Atlas Quilombola, uma parceria da UNIR com
KOINONIA através do projeto Territórios Quilombolas.
DIANA SANDES
Artista visual e fotógrafa. Seu trabalho, que tangencia áreas
-
sença e o distanciamento, a familiaridade e o estranhamento
para investigar noções como a ausência, o deslocamento e o
exílio. Graduada em História e mestre em Literatura, Cultura e
e grupos de estudo com artistas como Eustáquio Neves e Iole de
Freitas, que foram essenciais na sua formação. Paralelamente,
integra o Coletivo CLAP, que registra em imagens criações nos
campos da dança, da performance e da música.
488
DOLORES BOSSUYT
Artista belga formada na Academia Real de Bruxelas de Beau-
x-Arts, ensina as técnicas de desenho, pintura e escultura para
crianças e adultos nas academias belgas. Por muitos anos tra-
balhou em sua criação, que foi exibida e reconhecida em expo-
sições de arte em seu país de origem. Suas repetidas viagens
à África tornaram-se uma fonte importante para a estética de
seu trabalho, seu senso de cor e inspiração geral. Suas criações
artísticas compreendem desenhos, obras sobre tela, esculturas,
molduras e esculturas de vários materiais. Grande parte de seu
-
posição (instalação e tela) foi um show solo em Las Vegas, EUA.
EUDES BELO
Historiador. Professor da rede pública da Prefeitura de Capo-
eiras e do Estado de Pernambuco. Graduado em história pela
Universidade de Pernambuco, mestre em História pela Univer-
sidade Federal Fluminense e, atualmente, doutorando pela Uni-
versidade São Paulo. Pesquisa sobre cidades, memórias, domes-
ticidade, casa e cultura material.
EULÍCIA ESTEVES
Gestora cultural e historiadora. Mestre em Bens Culturais e
Projetos Sociais (CPDOC/FGV-RJ) e doutora em História Social
(IH/UFRJ). No PPGHIS/UFRJ, defendeu a tese Praça Onze: a in-
venção do berço do samba. É servidora da Fundação Nacional de
Artes - Funarte, onde atualmente responde pela Coordenação
de Música Popular.
489
EVERARDO PAIVA DE ANDRADE
Graduado em História e doutor em Educação pela UFF, foi pro-
fessor na escola básica por longos anos, ex-diretor do CIEP Lina
Bo Bardi e formador de professores em diversas instituições e
circunstâncias. Atualmente é professor do Programa de Pós-
-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense
e do Profhistória. Poeta bissexto em quarentena voluntária, de
tempos em tempos inverte os lados de fora e de dentro: publicou
os livros de poesia Inventário de tudo e Sortilégio antigo e zen
para viagem, e também organizou, em parceria com Juniele Ra-
bêlo de Almeida e Marcos Pinheiro Barreto, respectivamente, os
livros História oral e educação e Trajetórias docentes: professo-
res de história narram suas histórias na profissão.
EVERTON VIEIRA BARBOSA
Doutorando em História pela Universidade Federal Fluminen-
se. Bolsista Capes-Cofecub com estágio de pesquisa no Centre de
Recherche et de Documentation sur les Amériques (CREDA) e
no Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine (IHEAL) da
Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3. Autor do livro Páginas
de sociabilidade feminina: sensibilidade musical no Rio de Ja-
neiro Oitocentista (Alameda, 2018, impresso; 2020, ebook).
FABIANA SALLES
Formada em Gestão Estratégica, pós-graduada em Gestão de
Recursos Humanos e em Sistemas de Informação, funcionária
pública. Quarentener
mãe humana e propriedade do Bigode e da Tulipa, dois gatinhos
lindos que fornecem boas histórias e muita diversão. Contadora
de casos da vida real em redes sociais, admiradora da empatia,
sapatão autodidata e a ovelha boa da família.
490
FABIANE POPINIGIS
Doutora em História pela Unicamp, é professora associada do
Departamento de História da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro (UFRRJ). Sua tese, sobre o movimento associativo e
reivindicativo pela regulamentação da jornada de trabalho no
comércio, resultou na publicação do livro Proletários de casaca:
empregados no comércio carioca (1850-1911), pela Editora
Unicamp. Tem artigos e capítulos sobre história do trabalho no
Brasil, escravidão e da liberdade e relações de gênero em pers-
pectiva de História Social. Atualmente é subcoordenadora do
Programa de Pós-Graduação em História da UFRRJ e é coorde-
nadora nacional do GT-ANPUH Mundos do Trabalho.
FERNANDO CARDOSO
Graduado em Desenho pela Escola de Belas Artes da UFMG.
Conta, em seu currículo, com diversos eventos e exposições,
como: 26o Salão Nacional de Arte de Belo Horizonte – MAP
Gales (2003); Projeto Intercâmbio Cultural Linha Imaginária –
Porto/Portugal (2005); Japan Brasil Creative Art Session 2008
– Kawasaki, Kanagawa, Japão (2008); Realidades: Desenho
Contemporâneo Brasileiro – SESC Pinheiros, São Paulo (2010);
Círculos Traçados – Galeria Deco, SP (2011); Sobre o que se de-
senha – MAP/BH (2015); e exposições individuais na Galeria
Ybakatu (em 2015 e 2019).
FERNANDO VALE CASTRO
Pai da Lua. Professor associado de História da América no Ins-
tituto de História da UFRJ. Graduado e Mestre em História pela
UFF. Doutor em História Social da Cultura pela PUC-Rio e pós-
-doutor pela USP. Autor de livros e artigos, dentre eles: Pensan-
do um continente: a Revista Americana e a criação de um pro-
jeto cultural para a América do Sul (2012).
491
FLÁVIO BOAVENTURA
Boave, como é conhecido, nasceu em Belo Horizonte, em 1972.
Poeta e ensaísta, tem textos publicados em inúmeros periódicos
desde os anos de 1990. Além de bolsista de Filosofía y Letras
da Universidad de Málaga, Espanha, em 2006, foi também bol-
sista da Fapemig no Pós-Lit/UFMG no período de 2008-10. De
sua autoria destacam-se, entre outros, os livros Delírio trêmulo
(7Letras, 2003), O amante da algazarra: Nietzsche na poesia
de Waly Salomão (UFMG, 2009) e sombraluz (7 Letras, 2011,
em parceria com Vera Casa Nova). Atualmente, tem se dedicado
a charges e trabalhos visuais utilizando técnicas mistas.
GABRAZ
Gabriel Sanna. Artista visual e cineasta. Desde 2004 vem rea-
documentário, exibidos em diversos países no circuito de festi-
vais e mostras.
GASTÃO FROTA
Artista visual. Cresceu em Belo Horizonte. Professor do IARTE
da Universidade Federal de Uberlândia e doutorando em Belas
Artes na Universidade de Lisboa.
HENRIQUE ESPADA LIMA
Professor do Departamento de História da UFSC. Autor de A
micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades
(2006), escreve sobre a história social e legal do trabalho escra-
vizado e livre.
HENRIQUE DE OLIVEIRA LEE
, Lee Kah Tche nasceu em 1979 em Asunción, Paraguai,
e reside no Brasil desde 1983. Atualmente mora em Cuiabá. Lê e
escreve, cultiva mandioca. É psicanalista e professor da UFMT.
492
ISABEL LUSTOSA
Autora de diversos livros e artigos sobre a história política e cul-
tural brasileira, é doutora em Ciência Política pelo antigo IUPERJ
atual IESP-UERJ, sócia titular do IHGB e foi pesquisadora da
FCRB por 30 anos. Ocupou a Cátedra Simon Bolívar, no IHEAL
Paris 3, e a Cátedra Sérgio Buarque de Holanda na Maison des
Sciences de l’Homme, atuando como professora visitante na
Universidade de Rennes-2. É, atualmente, professora visitante
sênior com bolsa da CAPES junto à Universidade Nova de Lisboa.
ISABEL TRAVANCAS
Professora associada do PPGCOM e coordenadora do curso de
Produção Editorial da Escola de Comunicação da UFRJ. É mes-
tre em Antropologia Social pelo PPGAS do Museu Nacional-U-
FRJ e doutora em Literatura Comparada pela UERJ. É autora
dos livros: O mundo dos jornalistas (Summus Editorial, 1993),
O livro no jornal (Ateliê Editorial, 2001) e Juventude e televisão
(FGV, 2007).
JANAÍNA MELLO LANDINI
Nascida em São Gotardo, Minas Gerais. Vive e trabalha em São
Paulo. Formou-se em Arquitetura e cursou Belas Artes, ambas
na Universidade Federal de Minas Gerais. Sua produção artísti-
ca abrange seu conhecimento de arquitetura, física e matemá-
tica e suas observações sobre o tempo, para tecer sua visão de
mundo. Seu trabalho transita entre diferentes escalas – do obje-
to aos espaços públicos. Nos últimos seis anos, mostrou seu tra-
balho em exposições em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belo
Horizonte, Belém, Itália, Inglaterra, França, Holanda, Japão, Co-
lômbia, entre outros lugares. Participa de várias coleções como
Fondation Carmignac, BIC Collection, Corinne Ricard, Sérgio
Carvalho, Graeme W. Briggs, Jorge Gruenberg e Shom Hinduja.
493
JAYME RIBEIRO
Possui graduação em História pela Universidade Federal Flu-
minense, mestrado e doutorado em História Social pela mesma
universidade. Atualmente é professor do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), do Pro-
grama de Pós-Graduação em História da Universidade Salgado
de Oliveira (PPGH-UNIVERSO) e da Escola Municipal Pio X. Tra-
balhou nos cursos de graduação da UERJ-FFP, da Universidade
-
dense. Foi professor dos cursos de Pós-Graduação lato sensu
das instituições: UFF, Cândido Mendes e Universo. Participou do
projeto “O Rio de Janeiro nos jornais: ideologias, culturas polí-
-
do da FAPERJ, coordenado pelo professor Jorge Ferreira. Como
historiador, publicou livros, capítulos e artigos nos campos da
História e do Ensino de História, tais como: Combatentes da paz:
os comunistas brasileiros e as campanhas pacifistas dos anos
1950 (7Letras, 2011), Ensino de História: usos do passado, me-
mória e mídia (Org.) (FGV, 2014) e Imaginando a revolução:
cultura política e iconografia comunista nas páginas de A Na-
ção (1927) (7Letras, 2015).
JEFFERSON MEDEIROS
Nascido em São Gonçalo-RJ, trabalha e reside na mesma cidade.
Formado em História pela UERJ-FFP, especializado em Ensino
de Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras pelo IFRJ,
mestre em Estudos Contemporâneos da Arte pela UFF, é músico
JOÃO ALFREDO COSTA DE CAMPOS MELO JÚNIOR
Professor associado da Universidade Federal de Viçosa - Cam-
pus Rio Paranaíba. Bacharel e licenciado em História e Mestre
494
em Ciências Sociais pela PUC-Minas, doutor em Ciências So-
ciais pela UFSCar, pós-doutor em Sociologia pela Universidade
do Porto. Autor do livro As novas ações coletivas e a crise do
modelo sindical corporativista (Argvmentvm, com apoio da
Fapemig). Autor do capítulo “Edward Thompson” na coletânea
Os Historiadores da PUC-RJ. Autor do capítulo “Fronteiras de
um mesmo diálogo: Edward Thompson, Charles Tilly e as pos-
sibilidades da pesquisa em História da Educação”, da coletânea
Nas dobras de Clio: história social e história da educação, pela
Mazza Edições.
JOSÉ LOPES AGULHÔ JR.
Psicólogo, consultor, ex-executivo de grandes empresas e ex-
-professor no Ibmec e na Fundação Dom Cabral, também é avô
de quatro netos: Liz, Valentin, Antônio e Helena.
JOSÉ NEWTON COELHO MENESES
Professor associado do Departamento de História da Universi-
dade Federal de Minas Gerais. Graduado em Medicina Veteriná-
ria pela EV-UFMG (onde foi professor adjunto de 2004 a 2009)
e em História pela FAFICH/UFMG. Possui Mestrado em História
pela Universidade Federal de Minas Gerais e Doutorado em His-
tória pela Universidade Federal Fluminense. É diretor do Centro
de Estudos Mineiros da FAFICH/UFMG.
JURANDIR MALERBA
Professor titular livre da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Inaugurou a Cátedra Sérgio Buarque de Holanda de Estudos
Brasileiros da Universidade Livre de Berlim (2012-13); dessa
experiência resultou o livro Trem para Estação Varsóvia. Crô-
nicas Berlinenses (Edipucrs, 2014).
495
KAIO CARMONA
Poeta e professor de literatura. Pós-doutor em Poéticas da Mo-
dernidade pela UFMG, professor visitante no IFMG, professor
assistente na FAJE. Doutor em Estudos Literários pela UFMG,
publicou os livros Um lírico dos tempos (Scortecci, 2006), Com-
pêndios de amor (Scriptum, 2013), Para quando (Scriptum,
2017). Possui vários artigos publicados e organizou, junto com
Vera Casa Nova e Marcelo Dolabela, a coletânea Entrelinhas
Entremontes: versos contemporâneos mineiros (Quixote+Do,
2020). Vive em Belo Horizonte.
KAORI KODAMA
Pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz-Fiocruz e professora do
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saú-
de e do Programa de Pós-Graduação em Divulgação da Ciência,
Tecnologia e Saúde. Foi professora visitante na Université Pa-
ris-1, Panthéon-Sorbonne, com a supervisão de Dominique Ka-
de artigos, organizações de livros e capítulos em temas ligados
à constituição das ideias de raça e relações com o discurso mé-
-
menta pesquisa sobre a epidemia de cólera no Rio de Janeiro no
Oitocentos, tema ligado ao grupo de pesquisa do CNPq, Escravi-
dão, raça e saúde.
KARLA GUERRA
Doutora em Arquitetura e Urbanismo e mestre em Sociolo-
gia. Gestora Cultural. Padeira amadora. Fundou a Ohm Cul-
tura em 2008, onde atua com elaboração e consultoria para o
496
desenvolvimento de projetos em diversas áreas. Atualmente é
Gerente de Desenvolvimento Turístico na Empresa Municipal
de Turismo de Belo Horizonte - Belotur.
LAERTE
Laerte Coutinho OMC, ou simplesmente Laerte, é uma cartunis-
ta e chargista brasileira, considerada uma das artistas mais im-
portantes da área no país. Estudou comunicações e música na
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo,
porém não se formou nestes cursos. Participou de diversas pu-
blicações como a Balão e O Pasquim. Também colaborou com as
revistas Veja e Istoé e os jornais Folha de S.Paulo e O Estado de
S. Paulo. Criou diversos personagens, como os Piratas do Tietê e
Overman. Em conjunto com Angeli e Glauco (e mais tarde Adão
Iturrusgarai) desenhou as tiras de Los Três Amigos. Em entre-
vista à Folha de S.Paulo, em 2010, revelou por que abandonou
alguns de seus personagens e optou pela prática pública do cros-
sdressing
participou de vários programas e matérias na mídia impressa e
eletrônica.
LARRY ANTHA
Carioca, nascido em 1970, formado em História e vocal e letris-
ta das bandas Sex Noise, LoveJoy, 100Tauro 100Tado e Katina
Surf. É autor de seis livros e, em 2018, ganhou dois prêmios li-
terários do Ministério da Cultura sobre o Bicentenário de Inde-
pendência do Brasil.
LAURA GUIMARÃES CORRÊA
É professora na Graduação e no Programa de Pós-Graduação em
Comunicação Social da UFMG. Leciona, faz pesquisa e coordena
o Coragem - Grupo de Pesquisa em Comunicação, Raça e Gênero.
497
Organizou e lançou recentemente o livro Vozes negras em co-
municação: mídia, racismos, resistências, pela Autêntica. Já
fotografar.
LIBÂNIA XAVIER
Professora titular do Programa de Pós-Graduação em Educação
da FE-UFRJ e Pesquisadora do CNPq. É autora de livros e arti-
gos, dos quais destaca-se Associativismo docente e construção
democrática (Brasil-Portugal:1970-1980) (Eduerj, 2013).
LOR
Luiz Oswaldo Carneiro Rodrigues. Cartunista. Médico. Profes-
-
bromatoses do Hospital das Clínicas da Universidade Federal
de Minas Gerais. Presidente da Associação Mineira de Apoio às
LÚCIA CASTELLO BRANCO
Possui graduação em Letras pela Universidade Federal de Mi-
nas Gerais, mestrado em Literatura Luso-brasileira pela India-
na University e doutorado em Estudos Literários pela Universi-
dade Federal de Minas Gerais. Realizou três pós-doutorados em
Literatura Comparada e em Teorias Psicanalíticas (Universida-
de Nova de Lisboa, University of California e Universidade Fede-
ral do Rio de Janeiro) e um estágio sênior, na Emory University,
sob a supervisão de Shoshana Felman. Professora permanente
do Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários
da Faculdade de Letras da UFMG e professora permanente do
Programa de Pós-graduação em Letras do Instituto de Letras da
UFBA. Escritora e psicanalista.
498
LUCIANA BRITO
Professora do curso de graduação e do mestrado em História
da África, da diáspora e dos povos indígenas na Universidade
Federal do Recôncavo da Bahia. É doutora em História Social
pela USP e é especialista em história da escravidão, abolição e
relações raciais no Brasil e nos EUA. É autora do livro Temos
da África: segurança, legislação e população africana na Bahia
oitocentista, que ganhou o prêmio Thomas Skidmore em 2019. É
autora de vários artigos e é colunista do Jornal Nexo.
LUCIANA HEYMANN
Bacharel e licenciada em História pela UFRJ, mestre em Antro-
pologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ e doutora em Socio-
logia pela IUPERJ. Pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz da
Fundação Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). Desenvolve pesquisas
no campo da memória, do patrimônio e dos arquivos.
LUCILIA NEVES
Historiadora. Poeta. Pintora. Ex-professora da UFMG, da
PUC-Minas e da UnB. Foi vice-presidente da Associação Nacio-
nal de História (ANPUH) e consultora ad hoc da CAPES, CNPq e
FAPESP. É presidente da ABHO e também do Conselho Curador
da FAPEMIG. Entre suas premiações se destacam a Medalha de
-
e capítulos de livros. Cidadã honorária de Belo Horizonte.
LUIZ HENRIQUE GARCIA
Graduado, mestre e doutor em História pela Faculdade de Fi-
sobre o Clube da Esquina e a música popular brasileira dos anos
1960-70. Coordenou por oito anos o Setor de Pesquisa do Museu
499
Histórico Abílio Barreto (MHAB) em Belo Horizonte. Atualmen-
te é professor associado da Escola de Ciência da Informação da
UFMG, atuando no curso de Museologia e no Programa de Pós-
-Graduação em Ciência da Informação. É um dos coordenadores
do grupo de pesquisa ESTOPIM - Núcleo de Estudos Interdisci-
plinares do Patrimônio Cultural e criador do SOMMUS - Grupo
de Estudos em Som e Museologia, sediados na UFMG. Também
atua como compositor e letrista, tendo parcerias gravadas com
-
cio Ribeiro, e muitas outras aguardando registro.
LUZIMAR SOARES
Bacharel em Turismo na Universidade Guarulhos, mestre em
História Social e doutoranda em História Social na PUC-SP. Gra-
duanda em Licenciatura em História na Uninter. Comissária de
voo desde 2001, com passagem pela Vasp (2001-2005), BRA
(2005-2007) e Latam (2008-atualmente).
MAHX
Artista plástico, músico, comunicólogo e professor. Trabalha
com diversos suportes técnicos, frequentemente em obras que
trazem contaminações entre mídias. É formado em Comunica-
ção pela UFMG, Artes Plásticas pela UEMG, com especialização
em Artes Plásticas e Contemporaneidade pela UEMG e mestra-
do em Comunicação pela PUC-MG. Atualmente é doutorando em
Artes na UFMG. Divide seu tempo entre pesquisas – o processo
criativo é um dos focos de interesse –, docência e produção de
trabalhos que vão do desenho à música autoral passando pela
pintura e realização de vídeos. Já participou de diversas exposi-
ções coletivas incluindo um vídeo em uma exposição internacio-
nal no CICA Museum (Coreia do Sul), realizou duas exposições
individuais e recebeu dois prêmios por trabalhos em vídeo.
500
MARCEL DE ALMEIDA FREITAS
Sociólogo, mestre em Psicologia, doutor em Educação, professor
da UEMG. Consultor ad hoc sobre Patrimônio Cultural Material
e Imaterial. Integrante do GSS/FaE/UFMG, Grupo de Estudos
em Gênero e Sexualidade na Educação.
MARCELLE DINIS CASTRO
Mãe da Lua. Médica psiquiatra com residência no Hospital Pe-
dro Ernesto - UERJ. Especialista em assistência a dependentes
em álcool e drogas NEPAD-UERJ. Mestre e doutora em Ciências
pela Fiocruz. Pós-graduada em Terapia Cognitiva Comporta-
mental. Coautora do livro Bem-estar mental e emocional na
atualidade. Saúde além do corpo (2019).
MARCELO KRAISER
Artista visual e sonoro, poeta, doutor em Literatura Compara-
da pela FALE/UFMG, construtor de instrumentos, integrante do
Trio Kallpp de arte sonora, compositor de trilhas, praticante de
-
do da Escola de Belas Artes da UFMG.
MARIA ALICE BALBINO
Historiadora formada pela PUC-RIO. Foi bolsista PIBIC com pes-
quisa sobre “Os pequenos clubes dançantes no Rio de Janeiro
no início da primeira República”. Também foi bolsista PIBID e
está ligada ao campo da História Oral, Memória e Patrimônio
Imaterial por meio do Jongo do Sudeste. Atualmente participa
do curso sobre comunicação comunitária para registro da pan-
demia do covid-19 na Rocinha, local em que nasceu e reside com
a família.
501
MARIA CLARETH GONÇALVES REIS
Professora associada da Universidade Estadual do Norte Flumi-
nense Darcy Ribeiro; coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-
-brasileiros e Indígenas (NEABI/UENF); coordenadora do curso
de Licenciatura em Pedagogia. Atua como docente no Programa
de Pós-Graduação em Políticas Sociais (PPGPS); coordena a área
Quilombos, Territorialidade e Saberes Emancipató-
rios da Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as)
(ABPN). Autora do livro Mulheres, negras e professoras: suas
histórias de vida (Brasil Multicultural).
MARIA PAULA NASCIMENTO ARAÚJO
Professora titular de História Contemporânea da Universida-
de Federal do Rio de Janeiro, onde integra o Programa de Pós-
-Graduação em História Social (UFRJ/PPGHIS) e o Mestrado
pesquisas sobre a História do Tempo Presente. É autora de A
utopia fragmentada: novas esquerdas no Brasil e no mundo na
década de 1970 (2000), Memórias estudantis: da fundação da
UNE aos nossos dias (2007), História e memória de Vigário Ge-
ral, com Écio Sales (2008). Nos últimos anos participou e orga-
nizou diversas coletâneas sobre justiça de transição e políticas
de memória como Marcas da memória: história oral da anistia
no Brasil, junto com Antonio Montenegro e Carla Rodeghero
(2012) e Democratização, memória e justiça de transição nos
países lusófonos, com Antonio Costa Pinto (2017).
MARIA PAULA PAES
Doutora em História da Sociedade e da Cultura (UFMG/UNL-
-Portugal). Foi professora do Departamento de História da PU-
C-Minas durante 10 anos. Em 2004 fez seu pós-doutoramen-
502
Investigadora Associada do CHAM-UNL-Portugal. Foi professora
na Metropolitan University of London de 2015 a 2019. Atualmen-
te trabalha para o Alto Comissariado dos Direitos Humanos da
ONU realizando trabalhos de pesquisa e análise com os refugia-
dos turcos e sírios na Inglaterra e Alemanha. Tem diversos ar-
tigos publicados em francês e inglês em revistas especializadas.
Destacam-se dois livros publicados pela Manchester University
Press: The Dutch Adventure in Portuguese America in the begin-
ning of the 17th Century (2012) e Prudence e Persuasion. The
Portuguese Colonization in Brazil - 18th Century (2014).
MARIO BRUM
Pesquisador e Professor de História urbana. Integra a Rede
Proprietas, hoje INCT - Instituto Nacional de Ciência e Tecno-
logia, projeto internacional: História Social das Propriedades e
Direitos de Acesso (www.proprietas.com.br). Possui graduação
em História, mestrado em História e doutorado em História, to-
dos pela Universidade Federal Fluminense, pós-doutorado em
Planejamento Urbano pela UFRJ e em Educação pela UERJ. Foi
professor das redes municipal e estadual do Rio de Janeiro. No
ensino superior, lecionou na Graduação em História da UFF, em
cursos de Extensão na PUC-RJ, no GPDES-UFRJ, no Programa
de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em
Periferias Urbanas da UERJ e na graduação em Pedagogia da
FEBF-UERJ.
MARISE DA SILVA MATTOS
Médica graduada pela UFRJ, mestre em Doenças Infecciosas e
Parasitárias pela UFRJ, Doutora em Medicina Tropical pelo Ins-
tituto Oswaldo Cruz/FIOCRUZ, professora aposentada do IBC-
CF/UFRJ, médica aposentada do INI/FIOCRUZ, médica infecto-
logista da DIVE/SES/SC.
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MARJORIE MARONA
Doutora em Ciência Política. Professora do Programa de Pós-
-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Mi-
nas Gerais (PPGCP/UFMG). Coordenadora do Observatório da
Justiça no Brasil e na América Latina (OJb-AL/UFMG). Pesqui-
sadora do INCT/IDDC - Instituto da Democracia e Democratiza-
ção da Comunicação. Coorganizou, dentre outras, a obra Justiça
no Brasil: às margens da democracia (Arraes, 2018).
MARTA MEGA DE ANDRADE
Professora do Instituto de História da UFRJ, Historiadora da
Antiguidade Grega e coordenadora dos grupos de pesquisa de
-
-
nimo de Ana Madeira e compõe, canta, toca guitarra e teclados
no duo Deodorina, formado por ela e seu companheiro Junior
Teixeira.
MARTA NEVES
Mestre em Artes Plásticas pela UFMG. Trabalha com mídias
variadas, integrando projetos coletivos como Intercâmbio Cul-
tural Linha Imaginária, Nessa Rua Tem um Rio (Inst. Undió) e
Academia TransLiterária. Tem participado de eventos artísti-
cos diversos: Panorama da Arte Brasileira (2001); Contemporá-
neos Brasileños – Centro de Arte Contemporâneo Wifredo Lam,
Havana (2002); Amalgames Brésiliens, França (2005); Japan-
-Brazil – Creative Art Session 2008 – Kawasaki City Museum
(Japão, 2008); 31ª Bienal de São Paulo (2014); Um Canto, Dois
Sertões – Museu Bispo do Rosário, RJ (2015); “À boca pequena,
naturalmente” – Palácio das Artes, Belo Horizonte (2017); Es-
tamos aqui! Relevos no Horizonte do Acervo do MAC – MAC-PR
(2019).
504
MICHELLE VALÉRIA MACEDO SILVA
Defensora Pública Federal. Doutoranda em Direito na Universi-
dade de Lisboa. Curiosa. Investigadora. Nadadora. Poeta. Artis-
ta. Cuidadora da própria vida.
MONICA GRIN
Professora de História Contemporânea e do Programa de Pós-
-graduação em História Social da UFRJ. Coordenadora do Nú-
cleo de Estudos Judaicos (NIEJ/UFRJ)
MÔNICA OLENDER
“Móbile solto no furacão”, arquiteta e urbanista, professora uni-
versitária na UFJF e amante dos livros, das músicas e das artes.
Sua pesquisa de doutorado caminha na direção da (re)aproxi-
mação de professores e estudantes de arquitetura e urbanismo
do cotidiano do mundo, enquanto a dissertação de mestrado é
referência do sistema construtivo pau-a-pique na área de arqui-
tetura vernacular.
MONICA PIMENTA VELLOSO
Historiadora, pesquisadora titular da Fundação Casa de Rui
Barbosa. Dentre outros publicou O Modernismo no Rio de Ja-
neiro (2.ed., 2015); escreveu e organizou Histoire culturelle du
Brésil (XIX-XXI siécles) (Paris, IHEAL, 2019) e Magazines and
modernity transnational networks and cross-cultural exchan-
ges (Londres, Artherm, 2020). Participou de coletivas fotográ-
MULAMBÖ
João Motta nasceu e cresceu entre Saquarema e São Gonçalo
e trabalha a partir da restituição de potências, buscando a va-
lorização de símbolos do existir suburbano no Rio de Janeiro.
505
Explora desde a pintura, criação de bandeiras e objetos até a
internet como plataforma de trabalho e, assim, faz arte para
NOGENTA STREET ART
Surgimos principalmente como uma visão de indignação acerca
de todos os nossos problemas sociais e estruturais. Decidimos
que precisávamos ser agentes mais ativos em nossa sociedade.
Resolvemos usar as ruas como nossa principal rede social, com
intuito de levar nosso trabalho ao consciente de cada pessoa que
-
mento crítico e convidar as pessoas a se questionar sobre nossa
sociedade atual e principalmente o futuro que queremos ter.
PABLO PIRES FERNANDES
Jornalista. Trabalhou nas editorias de Cultura e Internacional
nos jornais O Tempo e Estado de Minas, onde foi editor do Ca-
derno Pensar. É diretor de redação do site Dom Total.
PANMELA CASTRO
Artista visual, performer. Mestre em Processos Artísticos Con-
temporâneos pela UERJ. Realizou trabalhos na África, Améri-
cas, Ásia e Europa. Suas obras integram acervos de coleções
como do Banco Interamericano de Desenvolvimento, Museu da
Câmara dos Deputados, Museu da República e Coleção das Na-
ções Unidas. Possui como objeto de pesquisa o corpo feminino
em diálogo com a paisagem urbana, a alteridade e as percep-
ções trazidas pelas experiências na rua, na produção de arte
pela urbe. Dentre suas experiências com performance está Por-
quê?, apresentada no Museu do Bispo do Rosário (2016) e Fem-
me Maison, apresentada Trienal de Artes do Sesc de Sorocaba
(2017), ambas realizadas a convite da curadora Daniela Labra.
506
PATRICIA ORFILA BARROS DOS REIS
Arquiteta e professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal do Tocantins. Doutora em História Social
e mestra em Engenharia Urbana. Realizou estágio de Pós-Dou-
torado no projeto [email protected], vinculado ao Centro Interdisci-
plinar de Estudos de Gênero, do Instituto Superior de Ciências
Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa. Atualmente pes-
quisa a relação da arquitetura e do urbanismo com perspectiva
de gênero e coordena o projeto de pesquisa Mulheres Construin-
do Espaços.
PAULO CÉSAR GOMES
Idealizador e editor-chefe do site História da Ditadura. Historia-
dor. Pós-doutorando do PPG em História da Universidade Fede-
ral de Fluminense, doutor em História Social pela UFRJ, com
período de estágio no Institut des Hautes Études de l’Amérique
Latine (IHEAL/Universidade Paris 3). É autor dos livros Os bis-
pos católicos e a ditadura militar brasileira: a visão da espio-
nagem (Record, 2014) e Liberdade vigiada: as relações entre
a ditadura militar brasileira e o governo francês – do golpe à
anistia (Record, 2019). Foi pesquisador da Comissão Nacional
da Verdade e professor de História do Brasil Republicano na
Universidade Federal Fluminense.
PEDRO CASTILHO
Psicanalista. Professor do curso de graduação e da pós-gra-
duação da Faculdade de Educação da UFMG, vem realizando
pesquisas nas áreas de Políticas Públicas, Adolescência em
-
cação Social, Toxicomania e Contemporaneidade. O professor é
membro da SIPP - International Society for Psychoanalysis and
Philosophy, um grupo de professores e pesquisadores de várias
507
universidades do mundo que discutem os temas relacionados à
sua pesquisa. Além disso, é editor da coleção Sala de Espera da
Editora Scriptum.
RAFO CASTRO
Um artista múltiplo, que conta com mais de 30 exposições entre
individuais e coletivas. É conhecido pelo traço marcante e pela
RAFAEL AMORIM
É poeta e artista visual, vive e trabalha no Rio de Janeiro,
graduado em Artes Visuais/Escultura pela Escola de Belas Artes
UFRJ. Como prática artística se vê interessado em construir uma
linguagem verbovisual, entendendo os percursos e as paisagens
cotidianas enquanto texto e o texto enquanto espaço. Além de
curador da mostra coletiva “Terreno baldio: experiência n.1” na
Pinacoteca da Universidade Federal de Viçosa-MG e propositor
do projeto de residência artística em “Terreno baldio: experiência
n.2” no Centro Cultural da UFMG, recentemente foi contemplado
pelo primeiro lugar na 4ª edição do Prêmio Rio de Literatura, ca-
tegoria Novo Autor Fluminense. Seu livro de estreia, Como tratar
paisagens feridas será publicado pela Editora Garamond.
RENATA OTTO DINIZ
Doutoranda em Antropologia Social na UnB, com pesquisa em
etnologia junto aos Awá-Guajá, tupi-guarani no Maranhão. É
mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional-UFRJ. Foi
Terras; e de Índios Isolados e de Recente Contato da FUNAI. In-
tegra o coletivo Filmes de Quintal, organizador do forumdoc.bh
Quando os Yamiy Vêm Dançar Conosco, entre outros.
508
RENATO COUTINHO
Professor de História do Brasil Republicano no Instituto de His-
tória da Universidade Federal Fluminense e pesquisador do la-
boratório Brasil Republicano - pesquisadores em História Cultu-
ral e Política.
RICARDO ALEXANDRE
Ilustrador e escultor autodidata, formado em Editoração eletrô-
-
grafo em diversas publicações do segmento turístico e gastro-
nômico em Angra dos Reis. Como ilustrador, trabalhou no Gibi
Omarzinho, o menino do mar, que aborda questões ambientais.
Atualmente trabalha como ilustrador digital freelancer.
ROSÂNGELA SAMPAIO
Historiadora. Trabalhou em diversas instituições culturais
como museus e centro de arte, como o Centro de Arte Popular-
-Circuito Praça da Liberdade, Centro de Referência Audiovisual
Graduada em História pela UFMG, e pós-graduada em Cidades e
Cultura pela PUC-MG. Foi assessora do IPHAN-MG.
SÉBASTIEN ROZEAUX
Historiador contemporâneo (Universidade de Toulouse - Jean-
-Jaurès), estuda história do Brasil, Portugal e América Lati-
na, história transnacional e construção de nações nos tempos
contemporâneos. Publicou Une préhistoire de la lusophonie. Les
relations culturelles entre le Portugal et le Brésil au XIXe siècle
(2019) e vai publicar em 2020 as Letras Pátrias. Les écrivains
et la création d’une identité nationale au Brésil (1822-1889).
509
SÍLVIA CORREIA
Professora de História Contemporânea no Instituto de História
da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi investigadora in-
tegrada no Instituto de História Contemporânea da Universida-
de Nova de Lisboa até 2013, especialmente em história cultural
e política, história comparada; cultura e memória, particular-
mente de guerra, e história oral. Licenciada em História pela
Universidade do Minho e doutorada pela Universidade Nova
de Lisboa com o projeto intitulado “A política da memória da I
Guerra Mundial em Portugal, 1918-1933. Entre a experiência
e o mito”. Coordenou, entre 2009 e 2011, a criação do Arquivo
de História Oral da Confederação Geral de Trabalhadores Por-
tugueses Intersindical Nacional (1970-1977). No ano de 2012
foi Fulbright Scholar na Brown University. Desenvolveu o pro-
jeto de pós-doutoramento, entre a Universidade Nova de Lisboa
e a Brown University, dedicado a uma abordagem comparativa
dos regimes memoriais da guerra colonial em França (Argélia,
1954-1962) e das guerras coloniais em Portugal (Angola, Mo-
çambique e Guiné, 1961-1974). Atualmente, dedica-se ao estudo
das memórias da experiência portuguesa na I Guerra Mundial.
É investigadora associada do Instituto de História Contemporâ-
nea da Universidade Nova de Lisboa e membro da Memory Stu-
dies Association.
THAÍS ROCHA DA SILVA
Historiadora e egiptóloga. PhD em Egiptologia pela Universida-
de de Oxford, Research Fellow, Harris Manchester College, Uni-
versidade de Oxford. Ama gatos.
VALÉRIA GUIMARÃES DA SILVA
Cidadã carioca. Filha Separada pelo isolamento compulsório de
pais acometidos de Hanseníase (Lepra) de Curupaiti.
510
VALMIR ALEIXO
Historiador, doutor em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-
-Graduação da UNIRIO, pesquisador na Fundação Casa de Rui
Barbosa, membro da Associação Nacional de História – ANPUH
e membro da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação
em Artes Cênicas – ABRACE.
VERA CASA NOVA
Possui graduação em Letras pela Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, mestrado em Teoria da literatura (Poética) pela Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro e doutorado pela Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro, em Semiologia. Estágio de Pós-
-doutorado pela Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales,
em Antropologia da imagem, supervisionada por Georges Didi-
-Huberman. Foi professora da Faculdade de Letras da UFMG,
atuando no mestrado e doutorado. Atuou em cursos de gradua-
ção e pós-graduação na Faculdade de Letras da UFMG e na Esco-
la de Belas Artes. Foi professora da escola Guignard (UEMG) e
do mestrado da FUMEC em Estudos Culturais. Pesquisa poéticas
contemporâneas e semiologia da imagem. Há 10 anos tem um
programa na Rádio UFMG educativa Toque de Poesia. É poeta
e tradutora.
WILSON DOMINGUES
Pai, skatista, artista visual, videomaker, ativista. Há décadas
desenvolve essas atividades, seja nos primeiros vídeos de
música após sua passagem pelo Circo Voador. Desenvolveu a
identidade visual da distribuidora de música digital ONErpm.
tábuas de skate como matriz ou como fundador e idealizador
do Coletivo XV (responsável pela legalização do skate na Praça
511
XV no centro do Rio de Janeiro) ele segue transitando pelas
linguagens da mesma forma que transita pelas ruas. Passou por
da Cidade e Estácio de Sá, Escola de Cinema Darcy Ribeiro.
Participou de exposições e exibições em Berlim, Nova Iorque,
Hong-Kong, Rotterdam, Prahova. Aqui no Brasil participou da
coletiva Deslize no Museu de Arte do Rio. E em outras galerias
como Museu de Arte Moderna, A Gentil Carioca, Parque Lage,
Centro Cultural da Justiça Federal e Museu da República.