Top Banner
513

Untitled - Editora UFMG

Jan 23, 2023

Download

Documents

Khang Minh
Welcome message from author
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
Page 1: Untitled - Editora UFMG
Page 2: Untitled - Editora UFMG

Uma política poética. Um dia vivido ou alguma criação rea-

lizada durante essa época dramática de pandemia. Textos,

desenhos, fotografias, recortes, citações, poesias. Regis-

tros de inquietações. Nossa paralisia e nosso movimento.

Textos-potência, evidenciando sensibilidades e subjeti-

vidades reveladas na pergunta que não quer calar: o que

fazer?

Textos-memória, singularizando o tempo de cada sujeito

isolado. A memória e a palavra, o gesto. Livro-arquivo. Como

nos representamos? Cada texto é um corpo exposto. Beirando

a estética e a política num tempo de gestos sobreviventes.

Para quem quer um arquivo de imagens e textos teste-

munhais ou ficcionais sobre a experiência de isolamento

durante os meses de março, abril e maio de 2020, este é o

livro perfeito. Revela parte do que nos aconteceu/acontece

durante a pandemia. Pedimos aos convidados para enviarem

páginas sobre um dia vivido ou alguma criação realizada

durante essa época dramática. Textos, desenhos, fotogra-

fias, recortes, citações, poesias. Uma pequena coletânea-

-coleção, um arquivo de memórias vividas na realidade ou

na imaginação de artistas, literatos, historiadores, an-

tropólogos, filósofos, sociólogos, psicólogos, geógrafos,

comunicólogos... Gente de carne e osso.

Metáforas e metonímias que não cabem somente em versos,

mas que se fazem presentes também nas narrativas histó-

rico-antropológicas e visuais, literárias, teóricas, enfim,

nos variados campos da linguagem.

Perdas e faltas habitam nosso tempo excessivamente du-

rante uma pandemia tornada guerra. E como numa guerra se

levantam gestos, num movimento de fluxos e refluxos. O que

leremos aqui é o que Benjamin chama de uma política poética.

Aqui, acolá, num texto ou noutro, numa espécie de materia-

lismo antropológico que é capaz de agarrar esse momento de

absoluta tensão, manifesta como uma enervação do corpo

coletivo, uma histeria generalizada, vista através das re-

des sociais.

As organizadoras

Page 3: Untitled - Editora UFMG

ARQUIVO PANDEMIA Diários íntimos,

recortes poéticos,

históricos,

geográficos,

políticos,

antropológicos,

artísticos,

psicossociais do isolamento

Volume 2

Page 4: Untitled - Editora UFMG

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

REITORA Sandra Regina Goulart Almeida

VICE-REITOR Alessandro Fernandes Moreira

EDITORA UFMG

DIRETOR Flavio de Lemos Carsalade

VICE-DIRETORA Camila Figueiredo

Flavio de Lemos Carsalade (PRESIDENTE)

Ana Carina Utsch Terra

Antônio de Pinho Marques Júnior

Antônio Luiz Pinho Ribeiro

Camila Figueiredo

Carla Viana Coscarelli

Cássio Eduardo Viana Hissa

César Geraldo Guimarães

Eduardo da Motta e Albuquerque

Élder Antônio Sousa e Paiva

Helena Lopes da Silva

João André Alves Lança

João Antônio de Paula

José Luiz Borges Horta

Lira Córdova

Maria Alice de Lima Gomes Nogueira

Maria de Fátima Cardoso Gomes

Renato Alves Ribeiro Neto

Ricardo Hiroshi Caldeira Takahashi

Rodrigo Patto Sá Motta

Sergio Alcides Pereira do Amaral

Sônia Micussi Simões

Page 5: Untitled - Editora UFMG

Volume 2

Andréa Casa Nova Maia

Vera Casa NovaOrganizadoras

ARQUIVO PANDEMIADiários íntimos,

recortes poéticos,

históricos,

geográficos,

políticos,

antropológicos,

artísticos,

psicossociais do isolamento

Page 6: Untitled - Editora UFMG

© 2020, As organizadoras© 2020, Editora UFMG

Este livro, ou parte dele, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita do Editor.

A772 Arquivo pandemia : diários íntimos, recortes poéticos,

artísticos, psicossociais do isolamento: volume 2 / Andréa Casa Nova Maia, Vera Casa Nova, organizadoras. - Belo Horizonte : Editora UFMG, 2020.

511 p. : il. ISBN: 978-65-5858-003-4

1. Literatura brasileira. – 2. Epidemia – História. – 3. COVID-19 (Doença). 4.Civilização - História I. Maia, Andréa Casa Nova. II. Casa Nova, Vera. III. Série.

CDD: B869.3 CDU: 869.0(81)-3

Bibliotecária - CRB-6/1390

COORDENAÇÃO EDITORIAL Jerônimo Coelho

DIREITOS AUTORAIS Anne Caroline Silva

ASSISTÊNCIA EDITORIAL Eliane Sousa

PROJETO GRÁFICO e FORMATAÇÃO Alessandra Magalhães

MONTAGEM DE CAPA Humberto Bianchi

IMAGEM DE CAPA Alex Carvalho

PRODUÇÃO GRÁFICA Warren Marilac

EDITORA UFMGAv. Antônio Carlos, 6.627 – CAD II / Bloco III

Campus Pampulha – 31270-901 – Belo Horizonte/MGTel: + 55 31 3409-4650 – www.editoraufmg.com.br – [email protected]

Page 7: Untitled - Editora UFMG

Apresentação Sacudindo a potência em nós!

Andréa Casa Nova Maia e Vera Casa Nova

Fibonacci

Janaína Mello Landini

Cru e cozido, ao mesmo tempo

Jardim Zoológico

André Lage

Isto é Adam Smith

Bhuvi Libanio

Liturgia

Kaio Carmona

Entrudo

Carlos Barroso

Sumário

16

21

26

32

34

36

38

Page 8: Untitled - Editora UFMG

Não estamos sós (Poemas no afastamento e depois)

Everardo Paiva de Andrade

Carbono

Boave

O Range-Rede

Marta Mega

Lá fora (letra para uma música)

Mahx

Poemas ininteligíveis

Marcelo Kraiser

Para casa

Rafael Amorim

Simanimagenias

Gastão Frota

Lucia Castello Branco

Os supercílios de Frida

O céu ainda é azul

Pablo Pires Fernandes

40

46

49

53

58

61

66

64

69

74

Page 9: Untitled - Editora UFMG

O vendedor de mapa nunca sua / O último trago/ são muitas lives no instagram

Marta Neves

O ano do corvo

João Alfredo Costa de Campos Melo Júnior

Box 12

Laerte

Flores de papel

Michelle Valéria Macedo Silva

Tinha um coronavírus no meio do caminho

Isabel Lustosa

Ecos da história

Sébastien Rozeaux

As good as it gets ou Bem-vindos ao novo normal

Maria Paula Paes

Quando chegou o tsunami

Kaori Kodama

Um diário de quarentena em Paris

Everton Vieira Barbosa

Inventário de saudades

Thais Rocha da Silva

78

85

89

91

96

105

115

109

122

129

Page 10: Untitled - Editora UFMG

Solitude

Ricardo Alexandre

Telegram

Abilio Rodrigues

Timeline

Jurandir Malerba

O tempo não tem mais hora marcada

Álvaro Pereira do Nascimento

Obra embargada 2020

O vírus e o imprevisível: notas na epidemia

Henrique Espada Lima

Pile

Dolores Bossuyt

Voltar para casa / Os livros que não li

Isabel Travancas

Ser zen

Antony Henrique Tomaz Diniz

Notas sobre o nada

Altino Filho

Como andam os trabalhadores da música?

Eulícia Esteves

133

135

143

148

154

158

170

167

175

184

189

Page 11: Untitled - Editora UFMG

Na Casa da Teresa

Andréa Cristina de Barros Queiroz

Encontros dentro de casa

Carlos Falci

A vizinha

Fabiana Salles

Odara

Cláudia Dias

O constrangimento de sentir medo e tristeza entre amigos

Claudiane Torres da Silva

Carta de Capoeiras

Eudes Belo

Sem título

Fernando Cardoso

O mal de Guillaume Le Bé

Henrique Lee

Sexta-feira da Paixão

Marise da Silva Mattos

(3D)

Rafo Castro

Botão

José Lopes Agulhô

193

198

204

208

212

216

222

220

228

234

236

Page 12: Untitled - Editora UFMG

Flores na pandemia

Lucilia de Almeida Neves Delgado

o sol que me cabe

Laura Guimarães Corrêa

Um sábado de sol

Maria Paula Nascimento Araújo

Cineclube e trabalho

Luiz Henrique Assis Garcia

Quarentena e a primeira sala de reunião virtual

Luzimar Soares Bernardo

O homem é o lobo do homem… e do cão!

Marcel de Almeida Freitas

Quaren...tecendo

Mônica Olender

Desvio para o azul (do medo, fabulações e memórias)

Monica Pimenta Velloso

Dezesseis

Rosângela Sampaio

O apartamento

Renato Coutinho

239

244

247

252

255

260

270

268

277

282

Page 13: Untitled - Editora UFMG

Crônica mínima

Luciana Heymann

Da minha particular pandemia

Marjorie Marona

Poema pandêmico

Anamaria Alves

Fermentação natural e pandemia: o tempo lento da vida

Karla Guerra

Na gangorra entre a cozinha e a biblioteca...

Cláudia Viscardi

Certo / Vai passar / Brazil / Dentro/Fora

Allan Sieber

Analogias: por que não?

Monica Grin

Notas sobre o desentendimento

Américo Freire

Algumas palavras mais...

Daniel Ganem Misse

O vírus e o genocida

Jayme Ribeiro

285

289

293

297

302

307

318

312

321

325

Page 14: Untitled - Editora UFMG

Não sou coveiro

Beto Bianchi

A pandemia e o xucrismo [com CH]

José Newton Coelho Meneses

A Covid-19 e a pandemia dos imbecis

Libania Xavier

Teatro da tortura

Carolina Ruoso

Isto não é uma guerra pela vida e o vírus não é democrático

Sílvia Correia

Covard-17 / Vírus ignorância / Vidas negras importam

NoGenta Street Art X Contraconsciência

Oniriopolítica e necropolítica

Pedro Castilho

A vida não me assusta nem um pouco: genocídio negro em dias pandêmicos

Luciana Brito

Maria Clareth Gonçalves Reis

329

331

339

342

348

353

362

358

368

Page 15: Untitled - Editora UFMG

Penumbra - Muitas formas de se falar sobre racismo

Panmela Castro

Memória de uma favelada

Maria Alice Balbino

Miguel

Paulo César Gomes

Pandemia, isolamento social e trabalho doméstico

Fabiane Popinigis

O dia em que eu transbordei

Ana Maria Mauad

Militância e vizinhança: a vida política que se vive da janela

Carmen Castro

Curupaiti Vila 1 Casa 17 Taquara / Jacarepaguá

Valéria Guimarães da Silva

Teresinha de Covid

Renata Otto Diniz

Agenda / Ministério da Saúde /Genocida

LOR

Carta para minha avó Joana

Daniela Yabeta

373

378

382

386

393

397

408

405

417

423

Page 16: Untitled - Editora UFMG

Corrente de retorno

Mulambö

Na perspectiva das janelas

Mario Brum

Síntese emblemática fora de contexto

Bruno Pelego

tentativas-notícias do brasil suicidário

Christina Fornaciari

5.5 ou 5 de maio, respira!

Valmir Aleixo

Recall pandêmico

Larry Antha

Quarentena com Ive

Wilson Domingues

Sob a luz da Lua

Fernando Vale Castro e Marcelle Dinis Castro

O dia mais doido do ano

Gabraz

Ao fazer chá

Carla Maia

428

431

435

437

440

445

451

449

455

460

Page 17: Untitled - Editora UFMG

Ora-pro-nóbis / Maria Pureza

Ana Bia

Mar azul

Diana Sandes

Sobre os autores

465

471

477

Page 18: Untitled - Editora UFMG

16

Andréa Casa Nova Maia

Vera Casa Nova

Apresentação Sacudindo a potência em nós!

Page 19: Untitled - Editora UFMG

17

seu tempo, pelo fato de ter ele próprio uma

relação inquieta tanto com sua história quanto

com seu presente?

Imagens, portanto, para organizar nosso

pessimismo. Imagens para protestar contra

a glória do reino e seus feixes de luz crua.

Os vaga-lumes desapareceram? Certamente

não. Alguns estão bem perto de nós, eles nos

roçam na escuridão; outros partiram para

além do horizonte, tentando reformar em

outro lugar sua comunidade, sua minoria, seu

desejo partilhado.

Georges Didi-Huberman

Que caminhos? Por quais vias passamos, da impotência à

potência, até chegar ao poder? Questões possíveis no mundo

de hoje, de ontem e de sempre.

A potência do nosso desejo é nossa força motriz. Carre-

gamos, descarregamos os pesos sobre nossos ombros: – Ai,

quanta dor na coluna! Balançar a cabeça, mover o pescoço

– mas a dor não passa. Está fora e está dentro.

Page 20: Untitled - Editora UFMG

18

Unimos forças, desunimos pelo desânimo da repetição

nossa de cada dia. Pensamos no movimento, na revolta desse

presente desejante.

Quantos movimentos traídos? Quantos gestos capazes de

nos fazer voltar a criar uma derrubada de valores que não

valem mais nada diante da morte. Sacudir essa potência em

nós. Isso é vida! É criação!

Os textos e imagens do Arquivo que remontamos aqui

exaltam a potência da cultura. A arte grita pela vida e ho-

menageia os mortos.

São documentos da existência humana no mundo.

Apreendem o instante desse novo tempo. Gritam que sabem

que vidas negras importam. Sussurram que sentem as per-

das e que a História ensina a não esquecer.

Não vamos nunca esquecer as perdas que a cada dia con-

tabilizamos. São mais de 130.000 vidas só no Brasil! Não

vamos esquecer os mortos pelo vírus Covid-19, mas também

não esqueceremos dos mortos pelos outros vírus igualmente

assassinos. Tantos George(s) Floyd(s) que viram estrelas

todos os dias aqui e lá, mortos pelo vírus da violência, do

preconceito, do racismo, da fome, aqui e lá fora. Não vamos

nos esquecer dos desmatamentos da Amazônia e do ataque

e contaminação dos povos indígenas que tem sempre tanto

saber sobre o viver isolado a nos transmitir!

A memória nos dá força para resistir. O trabalho domés-

tico diário do isolamento, entre pães e livros, nos lembra os

traços da cultura. Sovar uma massa, escrever um poema,

lavar a louça, passar os olhos ou ver imagens paradas ou em

movimento. Derrubar monumentos e levantar novos.

Durante essa temporada no inferno, estamos aprenden-

do a valorizar o tempo. Aprendendo com os bichos, com as

Page 21: Untitled - Editora UFMG

19

plantas, com a terra, com crianças e com velhos, com a Lua

e o Sol. Fortalecendo laços. Muitos de nós voltaram a ouvir

outras músicas, outros sons... Ouvir os sons do corpo, ouvir a

batida do coração, o ranger dos ossos…

Aqui os bordados tramam novos modos de vida. Mais uma

vez, a cultura e a arte emanadas de um cotidiano complexo

e fugidio nos fazem olhar para dentro e pensar novas possi-

bilidades de existência e resistência.

Dante Alighieri e Rimbaud já estiveram lá e ecoam aqui.

A visão do inferno e nossos vagalumes. Será mesmo que

os vagalumes foram extintos? Talvez não. Ainda vemos sua

luz piscando intermitente dentro da noite veloz. Apesar de

tudo, emitem ainda sua luz. Contra qualquer visão de apoca-

lipse, a luz desejante! Olhar e imaginação aqui interrogam a

história detestável, o estado de sítio, o deserto do real. Con-

tra todas as pragas, dos gafanhotos aos políticos genocidas,

ainda pulsam os vagalumes!

Quem são as luzes pulsantes que vão iluminar as trevas,

se levantar contra os tempos nefastos? Quem ou o quê, ape-

sar de todo maquinário de destruição, há de nos devolver

o Sol democrático que, atravessando os vidros-cristais das

janelas, nos empurram para o mundo multicolorido e plural

que nos cabe? Saber-vaga-lume se escreve e inscreve aqui

nesse projeto do Arquivo Pandemia.

leitor encontrará história, estórias, saberes clandestinos,

impossíveis de censurar.

No futuro, as ficções e realidades aqui escritas também

serão fonte de construção de um conhecimento sobre o atra-

vessar da pandemia por Covid-19 em 2020.

Page 22: Untitled - Editora UFMG

20

Mas, antes de iniciar a viagem para dentro, cabe olhar

pela janela mais uma vez, ver o lado de fora, respirar fundo

(muitos can’t breathe!) e repetir:

É preciso sacudir essa potência em nós. Isso é vida! É

criação!

Page 23: Untitled - Editora UFMG

Fibonacci

Janaína Mello Landini

São Paulo, maio de 2020

Page 24: Untitled - Editora UFMG

22

Page 25: Untitled - Editora UFMG

23

Page 26: Untitled - Editora UFMG

24

Page 27: Untitled - Editora UFMG

25

Ficha Técnica: Janaina Mello Landini, 2020, Ciclotrama 177 (Fibonacci),

170cm x 170cm, Fios de algodão e caneta acrílica sobre canvas.

Page 28: Untitled - Editora UFMG

26

Cru e cozido, ao mesmo tempo

Rio de Janeiro, 13 de junho de 2020

Page 29: Untitled - Editora UFMG

27

Há agora uma sensação mista e contraditória de que por

um lado a palavra não expressa o que nos acomete, e por

outro, a de que sem ela não sobreviveremos.

Sabemos todos que diante da morte o seu poder se retrai,

e dela avulta o seu avesso: silêncio imperioso, só em apa-

rência calmaria que cai com um só peteleco. O equilíbrio,

e delicada, cada um devendo começar a tocar a constitui-

ção – fragilidade e potência – de sua própria membrana. Por

outro lado, não sobreviveremos, não ao vírus, mas ao silên-

cio imperioso, a desvalia e a despotencialização da palavra

como laço real entre os humanos se não buscarmos de novo

por sua força de verdade.

O desapego discursivo, essa concomitância diarreica ver-

bal que hoje se encarna nos grupos mandatários desse país

de fato não ajuda. Cacoetar essa verborragia impotente tam-

pouco. Temos mesmo que começar a investigar o valor da

palavra, da palavra, em diferentes grupos sociais.

No isolamento mundial pandêmico vivemos uma exigência

para buscar nutrir esse nosso deserto atual – deserto feito

de desamparo, distopia, perda de sentido e valor da vida, so-

lidão sem maquiagem, falta de recursos sem disfarce, entre

Page 30: Untitled - Editora UFMG

28

muitos outros problemas que se exacerbam numa perspec-

tiva de uma economia humana e não exclusivamente mone-

tária – de palavras boas. Nutrir o mundo de palavras boas,

que nesse caso indicam ser também palavras potencial-

mente verdadeiras.

Nunca a ideia de que precisamos reunir essas palavras

boas foi tão fundamental. Como o seio bom de M. Klein e o

azul de Y. Klein – correlatos não somente em seus sobreno-

mes, mas também no que portam um e outro. Palavras boas:

seio bom e azul indescritível. Essa reunião, esse dicionário

inexistente, aparece no horizonte desertado como alguma

ilha onde quiçá aportaremos depois de tudo.

-

sariamente confortante. Agora, nesse momento, para mim,

as palavras boas são aquelas que conseguem convergir as

nossas sensações contraditórias. Avareza e altruísmo, sobre-

viver e morrer, angústia e aceitação, luta e quietude, medo

e coragem, bondade e maldade, raiva e doçura. De fato, não

acredito que possamos atravessar esse momento sem co-

meçar reunindo todas as palavras que indiquem esses es-

tados contraditórios, cada um deles, e a sua existência não

excludente. Não sem surpresas notamos que essas palavras

são poucas ou inexistentes. Qual palavra diria que tenho ao

mesmo tempo medo e coragem? Qual a palavra para dizer

que estou assolada de amoródio pela humanidade, por mim

e por todos nós?

Não acredito, tampouco, que conseguiremos não pender

para o lado mais forte, já presente, determinante e organi-

zador de nossas vidas, todas doentes em potencial já antes

da pandemia, sem reunirmos ou inventarmos esse dicioná-

rio de palavras antitéticas.

Page 31: Untitled - Editora UFMG

29

O mundo doente de antes do vírus já era governado pelas

ideias e gestos de avareza, avidez, egoísmo, inimizade, entre

outras. A corda sempre pendeu por aí. Agora só está pare-

cendo que pode enforcar todo mundo, decerto não igualmen-

te, nem do mesmo modo. Até na morte os estados de domi-

nação e subjugo mostram, sem piedade, os seus caninos.

Mas é fato que o horizonte encurtou geral, e quem sabe

esse fato seja o início para começarmos a abraçar e a reunir

esses estados contraditórios. Façamos todos o esforço de in-

ventar essas palavras e de usá-las! Deixemos um momento

de cagar regra e mentira, acreditando-nos superiores. Fi-

quemos um pouco mais humildes e vamos lá tocar a nossa

membrana. Sair da bolha para a frágil e delicada membra-

na, para nos refazermos desde aí.

O que já estamos vendo em ação, individual e coletiva, na-

cional e mundialmente, indica que em toda situação de peste

– como já advertia Artaud em 1934 – os gestos mais fortes,

de avareza e de avidez, numa espécie de luta desesperada

pela sobrevivência, espalham-se como o próprio vírus da

peste, esbanjando a gratuidade da vida. A isso ele chamou

de princípio da crueldade.

O princípio da crueldade seria no seu sonho utópico, ar-

tístico, acolhedor e refazedor de vidas, o modo de cauterizar

esse abscesso afetivo-político que fez pender a corda só para

um lado, mesmo lado e mesma corda que hoje nos enforca.

Princípio da crueldade nada mais é do que a tentativa de

torcer essa palavra e recolocá-la na contradição que a en-

cerra – crueza da vida e ao mesmo tempo grelha, onde cozi-

nhamos as carnes humanas. A carne pobre nesse país, que

é também a carne negra. Crueldade implica em olhar para a

grelha que nunca se apagou, essa grande fogueira onde não

deixamos de queimar os corpos indesejáveis.

Page 32: Untitled - Editora UFMG

30

Mas se seguimos com o desejo de uma nova linguagem

que possa torcer o sentido congelado e interessado da domi-

nação branca encontraremos na crueldade também algo da

crueza da vida que é necessário conhecer. E importante não

negar. A crueza estaria nessa base de um princípio da cruel-

dade curativo – não esconder as nossas mazelas, não desa-

somos racistas, não negar que vimos convivendo com esse

apartheid racial e social desde sempre, não fugir da vida

vergonha e exigir que o mundo se e nos repare. Encontrar

a crueza pode acender também o desejo de cauterizá-la. Re-

fazer a linguagem é dar conta de nossas contradições com

uma responsabilidade madura, ciente da crueza da vida.

Precisamos sair dessa eterna infância nacional que tem o

e que nunca chegou nem chegará desse modo.

Nessa nova linguagem afetivo-antitética a crueldade de-

veria potencializar as nossas forças para desalojar o status

quo de toda vida que amordaça e mata. Palavra inicial desse

dicionário imaginário, que se lança na aposta de que juntos

começaríamos a cauterizar o mal que já vive em nós, ao me-

nos verbalizando, com palavras ainda inexistentes, as nos-

sas mais terríveis contradições.

Chegamos nesses nossos tempos ao mesmo ponto e lu-

gar onde Artaud chamou pela crueldade. Onde tudo se agu-

dizou. Fizemos uma volta em espiral, estamos num ponto

tecnologias de morte. Por isso, a crueldade agora é perceber

que hoje sobreviver equivale, contraditoriamente, ao poder

Page 33: Untitled - Editora UFMG

31

de matar e de morrer ao mesmo tempo. Estamos suicidan-

do a própria ideia de sociedade. Precisaremos, certamente,

mais do que de uma nova linguagem, mesmo que para isso

seja necessário começar por ela.

Page 34: Untitled - Editora UFMG

32

Jardim Zoológico

André Lage

Belo Horizonte, junho de 2020

Page 35: Untitled - Editora UFMG

33

Ficha Técnica: papel mata-borrão 36 x 29 cm, linha de algodão.

Page 36: Untitled - Editora UFMG

34

Isto é Adam Smith

Bhuvi Libanio

Rio de Janeiro, maio de 2020

Page 37: Untitled - Editora UFMG

35

Page 38: Untitled - Editora UFMG

36

Liturgia

Kaio Carmona

Belo Horizonte, 8 de junho de 2020

Page 39: Untitled - Editora UFMG

você olha pela janela e vê o mundo desabar pontualmente às

seis da tarde.

pode ser um pouco mais cedo, o certo é que ele desaba

você não é mais criança para acreditar nas horas e sabe que

a verdade ou a mentira desabam juntas com a tarde

sabe que entre as montanhas que rodeiam a cidade um rio

nasce em gotas

terroso

gelado

você sente a tensão e se pergunta se as janelas aguentarão o

baque e tenta planejar as possibilidades rotas de fuga

você vê palavras em desuso e se assusta com expressões

que lhe parecem de outra vida, talhadas em bronze

mercadores da morte ku klux klan fascismo

as pílulas diárias

buprofeno metoprolol duloxetina

mas o corpo, esse conjunto obsoleto, quer sobreviver e exige

você prepara o jantar e enquanto o cozido ferve procura na

pequena biblioteca, expostos em negrito, um familiar, um

amigo, um registro humano como saída,

ecos de espírito

sonhos de homens

um amor perdido

caminhas entre mortos e se lembra que esse verso não é seu

escolhe um livro, senta-se à mesa

e espera a sua vez

Page 40: Untitled - Editora UFMG

38

Entrudo

Carlos Barroso

Belo Horizonte, 4 de abril de 2020

Page 41: Untitled - Editora UFMG

39

Page 42: Untitled - Editora UFMG

40

Não estamos sós (Poemas no

afastamento e depois)

Everardo Paiva de Andrade

Niterói, entre abril e junho de 2020

Page 43: Untitled - Editora UFMG

41

Manhã

[09/04/2020]

Ruídos escassos de carro na rua

O caminhão do lixo, uma roda

ou outra de veículo pesado

de entrega, abastecimento ou resgate

Grandes rodas, não faltam buracos

no asfalto, passos não ouço

Pássaros gorjeiam, aos poucos

o dia amanhece – devia?

Nem sei! – na pandemia

Pasárgada, hoje

[15/04/2020]

Do que adianta fugir

se esconder em Forquilha

quem sabe em Goiandira, talvez

Rondon do Pará, Taipu do Rio Grande

Do Norte, um desses lugares

que não registram – por enquanto,

diga-se de passagem – sequer

um teste positivo, um óbito

neste outono tropical

irrespirável

Page 44: Untitled - Editora UFMG

42

Quarentena

[26/04/2020]

Certas coisas atravessam comigo a quarentena

Umas vieram até o ponto onde começamos, e regressaram

Os encontros, a espera de uma sala de aula, os passos na areia

[da praia, um cheiro úmido

de mato, a direção contrária às pernas, ao sol ou ao vento, a

[terapia mal

começada

Outras chegaram depois, no vazio que restou nesses espaços

A delicadeza, o apreço pelo mínimo, o valor de uma palavra

[inesperada, a profusão delas

na leitura, a louça na cozinha, a gratidão do sono, a hora

[incerta de dormir, a

incerteza de dormir ou de acordar, a cura da distensão no

[braço, o cair da tarde

em vinyasa

E outras, ainda, que não existiam no começo, não durarão até o

recorde quando tudo isso tiver passado, se passar, quando

[passar, mas vai

passar...

A aspereza luminosa das maçãs, pequenos rituais de quem não

[têm pressa e nem pode

ter, eu mesmo, por instantes, quando perco a poesia e me

aventuras

Page 45: Untitled - Editora UFMG

43

[07/05/2020]

Um vírus anda devorando o tempoa curtíssima distância entre um e outroinstante, preciso contê-lo, meter umacunha entre os instantes separandodia e noite, um dia do outro, a diferençaentre os meses, os anos, a infânciae a juventude, a maturidade e a velhice,a vida e a morte, medir força com o vírus,enfrentá-lo, distraí-lo para ter de voltao tempo, não o grande tempo que

o tempo da pequena experiênciacotidiana devorando o vírus

A idade do vírus

[24/05/2020]

Cabelos saem dos porosOnde outrora corria o suor(Desisto de vê-los crescendo)Da boca me escapam, repetidas,As mesmas palavras de sempreUm rastro invisível de passos evitaPortas, busca janelas, traçaUm mapa de calor no piso frioRelógios digitais não fazem barulhoVelhos hábitos dissolvem-se no ácidoDormir, acordar, são númerosMonótonos, naturais, indivisíveisNão sei se sonho acordado ou sigoContando, enquanto desfaçoA trajetória do hominídeo

Page 46: Untitled - Editora UFMG

44

Então era isso?

[26/05/2020]

O Uruguai estuda fechar fronteirasOuço falar que os EUA proibirama entrada de aviões que vão do BrasilAntimônadas estéreis, militaresecoam, na história, mesquinhariasDe nação solidária, menos desigualà mesa entre os iguais, pequenosou grandes, em pouco temponos tornamos párias, assustadostocando tambor na pandemia

Fim do túnel

[05/06/2020]

Logo adiante vejo algoEm movimento, sombras

Uma parede corre sobre trilhosMinha boca, meus ouvidos dizemFrases que não compreendoVibra na cúpula uma fonteMeu coração, um susto pênsilEntre o medo e a esperança

Alguma luz? Ou de repenteNossos olhos pensamVer na escuridão?

Page 47: Untitled - Editora UFMG

45

Linguagens

[16/06/2020]

Quando as estatísticas de COVID ultrapassarem o

pico

e então os registros caírem, quando a pandemia

for debelada

e a doença estiver sob controle, terei esquecido a

língua falada,

a língua dos abraços, a língua do aperto de mãos, a

língua suada

de andar na multidão, a língua do tapinha nas cos

tas, a língua

de dizer ao primeiro desconhecido que me cruzar

o caminho,

andando na rua, sob o sol, sem máscaras, bom dia!

Page 48: Untitled - Editora UFMG

46

Carbono

Boave

Belo Horizonte, 2 de junho de 2020

Page 49: Untitled - Editora UFMG

47

Será que à noite

– no mais fundo da noite –

ela despe sua máscara de fel

e tinge seu rosto de sangue?

Será que ela dorme acuada

entre lençóis de carbono

e fecunda monstros?

Ou será que à mancheia rosna

– esbaforida pela idade avançada –

preparando novas trapaças?

No fundo, Medusa, ela manda e desmanda

em fantasmas que lambem

as solas de sua infâmia.

Page 50: Untitled - Editora UFMG

48

Page 51: Untitled - Editora UFMG

O Range-Rede

Marta Mega

Tijuca, Rio de Janeiro, 11 de junho de 2020

Page 52: Untitled - Editora UFMG

50

Hoje eu tive um sonho. Eu tinha mudado para um aparta-

no coração do centro do mundo, isto é, na Praça Saens Peña,

Tijuca, Rio de Janeiro RJ. Eu já moro na Tijuca, mas moro

quase no meio do mato perto do colégio Batista e agradeço

aos deuses por ter acontecido de vir para cá em outubro do

morava em Copacabana, um dos epicentros da decadência

do mundo. Mas isso é amargura para uma outra estória.

O sonho que eu tive era num apartamento diferente e bem

-

tarrecida de ver a quantidade de gente, a multidão de gente,

dias normais de Sanes Peña, gente circulando, se esbarran-

do, como se nada houvera sido, gente sem máscaras, sem

cuidado algum. Estarrecida com a desfaçatez desse povo,

constatei que eu também estava sem máscara, eu também

estava de saco cheio de máscaras, luvas, álcool gel e cloro-

bem. Eu compreendia o povo entupindo as ruas na insistên-

cia em se agarrar ao estribo do bonde andando; compreendia

a felicidade e infelicidade do contágio.

Page 53: Untitled - Editora UFMG

51

Acordei com uma sensação de incompletude e de incom-

petência difícil de aceitar para um dia prometido pela metade,

já que não consigo mais levantar antes das 11 ou dormir an-

tes das 3h. Um dia começado tarde ao qual sobram tarefas

“úteis” e vontade nula de executá-las. Entre uma reprimenda

e outra ao meu gênio pessoal, lembro da alegria que foi ver a

-

gos para um dossiê sobre História e indisciplina! Fiquei tão

feliz, quase que redimida por ter a indisciplina exposta no

centro da questão, e sei que eu posso contribuir, essa cha-

mada me cai como luva; como eu gostaria de escrever! “Vai!

Vai! Vai!”, canto de Ossanha, “cai!”, eu repito, mas me falta

justamente a disciplina. Tenho desejado a rede e a gata dor-

mindo no colo. Tenho escrito letra de música, tenho escrito

música, mas música não faz História.

Coisas de quarentena. Já me disseram que os relatos são

todos parecidos e, da ansiedade à insônia, da amargura à es-

perança, a gente vai conectando os pontos. Não é depressão,

não. É que virei índio.

Mas o que quer dizer isso?

Não persigo mais o tempo. Tenho nadado no tempo, ele

perdeu a linha e virou lago. Para saber que dia é hoje, pre-

ciso de uma agenda. E as horas são todas iguais, mudam as

cores, principalmente os cinzas. Não fossem os apps de reu-

nião e os timers da cozinha das pizzas, feijões e ensopados...

Talvez seja temporário, ironia. Eu gostaria que fosse per-

manente e global, não a quarentena da peste, mas a afasia

do tempo. A qualidade do tempo, tão gostosa de pegar nas

mãos.

Mas não sejamos insinceros. Não esqueci a importância

fundadora da linha do tempo, confesso que erigi alguns mar-

cos nos dias 22 de fevereiro, 6 e 15 de março. Dia 22 foi o

Page 54: Untitled - Editora UFMG

52

primeiro dia da peste aqui em casa; dia 6 foi o dia da segunda

onda e dia 15 foi a última vez que coloquei o pé na rua. De

certo modo, esse intervalo das coisas, suspeito, é uma espé-

cie de desobediência civil. O que me ocorre hoje não é sequela

da quarentena, penso que já vinha acontecendo faz algum

gênio foi acordado pelo descalabro de um Não!

Não quero, não posso,

E aí, no meio desse caminho encontrou o Ele Não! Ele não...

difícil. “I can’t breathe!” e nunca foi tão clara para mim a ex-

periência do assubjetivo: não sou eu, não é minha regência,

minha obra. Não é também o outro, é um mundo no meio,

“algo”, como uma comunidade que vem.

Para terminar esse meu relato: não consigo ler nem uma

linha de literatura. Tenho lido alguma antropologia, alguma

vai junto com a música e não faz História. Mas uma História

muda, quem sabe?

Page 55: Untitled - Editora UFMG

Lá fora (letra para uma música)

Mahx

Belo Horizonte, ano de 2020

Page 56: Untitled - Editora UFMG

54

Lá fora

Se escondem lá fora

Agora

Nesse mundo afora

Não há pra onde ir

Lá fora

Inventam histórias

Pra gente dormir

Agora

Quando a dor piora

Fica bem fácil mentir

Lá fora

Onde rompe a corda

Não vão nos redimir

Agora

A caixa de Pandora

Dentro, fora, aqui

Coragem

Fingem que reagem

Não ter que discutir

Imagem

E mais maquiagem

Por isso eu desisti

Page 57: Untitled - Editora UFMG

55

Coragem

Nenhuma vantagem

E tudo a corrigir

Imagem

Um sonho selvagem

O grito que eu ouvi

Coragem

Sempre de passagem

Pra não ter que fugir

Imagem

Mais uma miragem

Foi tudo o que eu vi

Pelo que eu sei

Não que eu queira te assustar

Eu me calei

E não foi tão ruim

Não que eu queira te escutar

Page 58: Untitled - Editora UFMG

56

Sem título

Page 59: Untitled - Editora UFMG

57

Sem título

Page 60: Untitled - Editora UFMG

58

Poemas ininteligíveis

Marcelo Kraiser

Belo Horizonte, junho de 2020

Page 61: Untitled - Editora UFMG

59

Page 62: Untitled - Editora UFMG

60

Ficha Técnica: Técnica Mista. Desenho e colagem digital.

Page 63: Untitled - Editora UFMG

Para casa

Rafael Amorim

Rio de Janeiro, 27 de junho de 2020

Page 64: Untitled - Editora UFMG

62

pintar com tinta dourada

um caminho de pedras portuguesas

nomeando-o posteriormente de via crucis

insistir na invenção

de um novo meridiano

cobrir o chão da sala

com papel 40kg por uma semana

deixar que o tempo lide com isso

criar uma estrutura

de apenas três galhos

para morar em seu interior

datilografar poesia

usá-los em seguida para coar o café

construir um cemitério para xícaras quebradas

elaborar um álbum de família usando fotos de

[desconhecidos

para narrar uma história sem protagonismo

propor encontros casuais

com homens desconhecidos

para bordar poesia em suas cuecas

entrar numa livraria

escolher uma sessão

impossibilitando a consulta por terceiros

Page 65: Untitled - Editora UFMG

63

assinar a autoria de um palimpsesto

feito com a última folha de outros livros

escrever um romance

usando somente palíndromos

medir a distância entre dois desconhecidos

informá-la em voz alta e sair sem dizer mais nada

tomar um ônibus para o centro da cidade

vestindo roupa social

mas descalço

tomar um ônibus carregando uma cadeira

se fotografar em interação

com móveis abandonados nas ruas

imprimir e enviar como postais

escolher um dia em curitiba

fazer o percurso do bebedouro até o cavalo babão

carregando água na boca de um lado ao outro

inúmeras vezes

interditar brinquedos em pracinhas

utilizando arame farpado

enviar para outros países

cartas escritas em português

escolhendo os endereços ao acaso.

Page 66: Untitled - Editora UFMG

64

Simanimagenias

Gastão Frota

Lisboa, 20 de maio 2020

Page 67: Untitled - Editora UFMG

65

Animal aberto

do vermelho

coluna dupla hélice

quatro olhos

coruja camarão

whiskas gato tubarão

luz + morcega

cobra termossensível

nariz de cão

antenas esporádicas

guelras vibráteis

polisex transpan

de esporos mutantes

ciclos multi(espécie)

de duração

indeterminável

e L.U.C.A. mente

virtual

se xapiri pë

Page 68: Untitled - Editora UFMG

66

Lucia Castello Branco

Belo Horizonte, junho de 2020

Page 69: Untitled - Editora UFMG

67

onde não havia espelhos em que se pudessem olhar inte-

ocupavam, como guardou, por mais de uma dezena de anos,

aquela memória do amor.

Pouco antes de deixar este mundo, ela havia escrito, no

caderno de uma só frase: “Eu vou precisar muito de amor”.

E ainda um pouco antes de deixar o mundo, ela havia to-

mado meu rosto entre suas mãos para me dizer: “aquilo que

tu buscas em mim, tu o tens”. Para então, um pouco mais

tarde, dizer às duas: “pois, vós não sabeis o quanto vos amo”.

Mas não era exatamente pela causa amante que ela esta-

seu texto. Era pelo dom, como a única retribuição do dom.

Era também porque, depois da deterioração, alguém tem

que desenterrar as evidências enferrujadas e arrastá-las

até o lixo.

Estava ali porque seu trabalho sempre fora o de transformar

a pulsão de morte em pulsão de escrita e nem mesmo depois

da deterioração a escrita seria secundária. Ela, a escrita, se-

ria sempre uma ponte sobre o abismo. E sempre haveria a

Page 70: Untitled - Editora UFMG

68

vida, o vivo e o trabalho de construir a covida com os corpos

mortos, antes mesmo da morte verdadeira.

A vida verdadeira de Domingos Xavier – ela lembraria,

ao rememorar os ancestrais africanos. “A vida em estado

puro”, repetiria, pensando no espanto de Freud com a vida

que resiste à força da destruição. Como fazer de nós vivos

no meio do vivo? – indagaria, unindo-se à voz daquela que se

fora numa manhã de março, antes das águas.

Do cume da árvore maior, tudo o que se via era ermo. Ha-

via quem dissesse que aquele momento era só e maravilha.

De nada adiantava evocar agora, em nome da destruição, a

beleza do universo. “Não há liberdade diante do Real”— teve

vontade de dizer àquela mendiga altiva, que recolhia os ca-

cos de vidro como se fossem rosas, para mais tarde, na cala-

da da noite, cortar os pulsos com heroísmo.

“Inútil dizer-lhe qualquer coisa”, pensou depois. Quem

cresceu assistindo ao espetáculo dos navios que afundam

antes de chegarem ao cais nunca se enternecerá com a cena

improvável de barquinhos de papel que atravessam o abis-

mo. E assim adormeceu, sem pestanejar, no justo momento

Page 71: Untitled - Editora UFMG

Os supercílios de Frida

Palmas, 19 de junho de 2020

Page 72: Untitled - Editora UFMG

70

Após chegar em casa, Ana Maria retirou os sapatos e a

máscara, deixando-a cuidadosamente de molho no pequeno

balde com água sanitária. Em seguida, enquanto higienizava

as compras rememorava histórias da adolescência.

— Por que você não tira esses pelos do meio da sua sobran-

celha? Dizia-lhe uma amiga da escola.

— Porque não quero.

— Mas você acha bonito?

Ana Maria não conseguia dizer nem que sim, nem que

não, simplesmente se aborrecia e ignorava a interlocuto-

ra. Não entendia o motivo de ter de seguir um padrão de

sobrancelhas.

— Se você não quiser tirar com a pinça, pode depilar à

cera, insistia a garota.

-

cam acima da celha, área do rosto que dá origem ao nome.

-

cá-los ao longo da vida, outras nascem com poucos, mui-

tas fazem pinturas permanentes. Os supercílios de Ana

Maria, apesar de incomodar algumas pessoas, eram fartos

como uma plantação em tempos de colheita, pelos grossos

e em abundância. Um rapaz pelo qual nutria uma paixão

Page 73: Untitled - Editora UFMG

71

adolescente chegou a dizer que mais parecia um bigode na

testa, apelidando-a de “monocelha”, o que foi um duro golpe

na sua autoestima.

No entanto, aos vinte e poucos anos, Ana Maria conheceu

uma renomada escritora e tornaram-se grandes amigas.

— Ana, vem cá, deixa eu olhar uma coisa mais de perto.

— O que foi?

— Nossa, as tuas sobrancelhas são idênticas as de Frida

Kahlo.

— Como assim? Quem é Frida Kahlo? Disse assustada.

— Tu não conheces a Frida Kahlo?

— Não.

— A pintora mexicana, vocês têm as sobrancelhas

semelhantes.

— Eu vou tirar essa sobrancelha, não aguento mais as pes-

soas me interpelando.

— Não, tu não fazes ideia de quantas mulheres gostariam

de ter as marcantes sobrancelhas da Frida, são uma verda-

deira assinatura.

Este episódio não apenas a curou de um trauma, como a

fez mergulhar no universo das cores de Frida. Leu livros,

-

nimo interesse por Diego Rivera – passou a admirar o mura-

lismo mexicano. Ademais, Rivera tinha supercílios falhados

e ralos.

Ângela era uma espécie de amiga-oráculo, era consultada

para todos os tipos de angústia, principalmente as amoro-

sas, mas foi a defesa dos seus supercílios a mais marcante

lembrança desses tempos.

Deixou de se importar com o bullying das pessoas, pas-

sando a ter orgulho daquele ícone revolucionário sobre a

sua tez. Tinha o hábito de antes de sair de casa, arrumar as

Page 74: Untitled - Editora UFMG

72

sobrancelhas com os dedos, a pentear os pelos revoltosos, no

sentido do centro do rosto para fora. E, desde então, es-

tranhava quando não faziam qualquer comentário sobre elas.

Enquanto lavava as verduras, as frutas e os enlatados,

com a compulsão que mais parecia enxergar o coronavírus

a olho nu, pensava em todas aquelas pessoas com máscaras

por sobrancelhas retornasse com mais força.

Em seguida, lavou e estendeu a máscara no varal, tomou

um banho e foi assistir o noticiário, cuja pauta era os quase

cinquenta mil mortos por Covid-19 no Brasil. Mas parecia

hipnotizada pelas sobrancelhas das/os jornalistas e, meio

anestesiada, passou a ignorar as notícias da pandemia e do

caótico cenário político do país.

Finas, grossas, pintadas, franzidas, interrompidas, escu-

ras, claras, mas nenhuma parecida com as de Frida. Detes-

tava homens com as sobrancelhas excessivamente deli-

neadas. Neste dia, Ana Maria olhou para o gato, que dormia

tranquilo ao seu lado no sofá e percebeu a ausência de sobro-

lho no felino. Algo muito estranho, pensou. São olhos sem

sobrancelhas!

Ela tinha consciência de que julgava as pessoas pela es-

pessura das sobrancelhas. Quanto mais grossas e despen-

-

dida ideal tendia para as de Frida.

Ouviu muita gente dizer que com o uso de máscaras, os

olhos passaram a ter importância fundamental nas inte-

rações, mas para ela eram as sobrancelhas. Lembrou que

quando um homem lhe causava qualquer decepção, ela ime-

diatamente analisava os sobrolhos do sujeito e criava uma

narrativa condizente com a forma e a personalidade.

Page 75: Untitled - Editora UFMG

73

Com o isolamento social, Ana Maria aumentou conside-

ravelmente o acesso às redes sociais. Passava horas lendo

matérias e comentando postagens, mas tinha aversão a

sociabilidade, sentia a ansiedade aumentar, sobretudo com

pessoas que ela mal conhecia antes da pandemia.

Nesta noite, já deitada e preparada para dormir, rece-

beu uma mensagem privada em uma de suas redes sociais.

Já passava da meia noite quando começou a interagir com

aquele rapaz, um diálogo que evoluiu muito rapidamente

para uma videochamada, por iniciativa de Ana Maria, após

espionar as fotos do álbum do rapaz.

— Essa pandemia vai durar muito tempo, disse ele ini-

ciando a conversa e em seguida fazendo uma longa análise

do processo histórico de outras pandemias.

A conversa adentrou a madrugada, até que Ana Maria

mais o rosto da câmera. Sem entender e um pouco descon-

— O que foi? Ele perguntou.

luz, por favor, disse Ana Maria.

— O que está acontecendo? Disse com a voz um pouco trê-

mula, mas atendendo ao pedido.

— Suas sobrancelhas.

— O que tem minhas sobrancelhas?

— São idênticas às de Frida Kahlo.

Page 76: Untitled - Editora UFMG

74

O céu ainda é azul

Pablo Pires Fernandes

Serra, Belo Horizonte, 22 de junho de 2020

Page 77: Untitled - Editora UFMG

75

A tarde estava demasiada azul. Belo Horizonte, em maio,

estampa um dos céus de maior azuleza da Terra. Minha in-

quietude estava no limite. Tive que romper a disciplina e dei-

xar o abrigo para caminhar. Não era precisão de comprar

– na farmácia ou no supermercado – mas apenas andar sob

aquele céu azul de maio. Minha casa é um bom ninho, só que

a rua faz falta, custa. Acho que só é comparável à ausência

do abraço. De resto, está tudo bem. Ou quase.

Evito sucumbir à paranoia, mas mudo de calçada quando

vejo pessoas sem máscara vindo na minha direção e prendo

a respiração muitas vezes nos corredores do supermercado.

Felizmente, a rua estava vazia e pude sentir aquele azul so-

bre meu corpo, e expandir o espaço, deslocar-me da sala,

das telas virtuais.

de informações inerente a qualquer jornalista: o número de

mortes cresce; o reizinho se desnuda em declarações, men-

te; a população precisa comer e, aqui e em outras partes,

há fogo e fome; estátuas caem e, das janelas virtuais, ouço

brados de revolta. É cansativo. Viro a primeira esquina, a

rua sem carros, sem gente. Ofegante sob a máscara, a cena

desértica alivia, mas logo o tormento retorna.

Page 78: Untitled - Editora UFMG

76

bem-te-vi, o balé da queda da folha seca e até o azul do céu.

Vejo o vírus com olhos microscópicos, percebo sua intenção,

instintiva e involuntária, de sobrevivência. Movendo-se

– se esforça e rompe a película, a membrana. Sem gentileza,

penetra, intruso e coroado.

Na avenida à minha frente, o ruído no asfalto freia meu

devaneio, me faz reparar nos sons ao redor. A cidade parecia

se conter no rumor habitual e o latido longínquo de um cão

fez ritmo com a batida seca do salto da senhora na calçada.

Veio-me outro som: o baque da cabeça da vizinha contra o

chão, um som seco. Os azulejos azuis como o céu e o sangue,

tão vermelho, escorrendo. Antes de terminar a gritaria e os

súbito, disseram. Dona Dalva tinha 78 anos e morava sozinha

com seu cachorro Tobias, que, inconsolado, exilou-se nas

ruas e latia a cada sirene que cruzava os sinais fechados.

Um único carro, vermelho, arrancou diante da luz verde

e atravessei, caminhando a esmo pela Serra sob o céu azul,

agora em um tom um pouco mais escuro. Avistei uma mu-

lher dançando na varanda de um prédio. Não ouvia a músi-

ca – ela imersa sob fones de ouvido em alto volume. Sorria e

se movia como se fosse a última chance de libertar seu corpo

feminino, como se lançasse a sedução para toda a cidade.

Foi bonito, mas segui a caminhada e as imagens retornaram

aleatórias à minha mente.

mapas de satélite verdes acompanhavam minha caminhada,

exibindo a perfeita localização em tempo real. Uma cruz se

aproximava do meu vulto, eu era um alvo. Foi quando me

Page 79: Untitled - Editora UFMG

77

despertei diante da mão negra de um senhor diante da pada-

ria: “um pão, por favor”. A fome espalha sua dor pelas ruas.

De volta ao lar, as muitas telas me pareciam não esclare-

cer nada. Real, sonho, paranoia e discursos duvidosos eram

todos parte do mesmo borrão. Olhei pela janela e o céu já

tinha perdido sua azuleza. Apenas a lua minguava no alto do

espaço. Era meu único elo com a realidade.

Page 80: Untitled - Editora UFMG

78

O vendedor de mapa nunca sua

O último trago

são muitas lives no instagram

Marta Neves

Belo Horizonte, abril e junho de 2020

Page 81: Untitled - Editora UFMG

79

O vendedor de mapa nunca sua

Nos anos 90 tinha alguma gente na rua que vendia mapa.

Normalmente eram uns sujeitos de calça amassadinha, ca-

o tempo. O sapato, se existia, era invisível. A gente só via

aquela cara de paciente com dúvida – a dúvida é sempre

maior que a dor –, esperando atendimento médico, sorriso

equilibrados numa mão só, prontos pra se estraçalharem no

dura como um lobo machucado.

Dava pra imaginar o sujeito vindo a pé de casa na eco-

da volta com seus canudos secos. É, esse cara era do tipo

que fede sem suar pra não sujar a mercadoria, um cecê sem

-

coitos enjoados, coxinhas de dobradinha, doritos genéricos

-

tro. Voltava em pé no carro, segurando os canos altos do ôni-

bus, que todo vendedor de mapa é razoavelmente alto, pen-

Page 82: Untitled - Editora UFMG

80

contagem de pessoas perto da porta de desembarque, dis-

tância que se tem que percorrer até a casa do primo no

aniversário da bebê. Homem de números, metros, alturas,

relevos, as mesmas coisas que ele vende mas numa escala

encolhida da vida tímida. O vendedor de mapa é um típico

tímido.

serviam perto do google maps, streets, earth e pocket no ce-

lular. As fotos, os vídeos e as comidas gostosas das lives dos

outros dispensaram o papel e as agências de viagem. Então

os homens dos canudos foram sumindo. Mas outro dia eu

achei um deles, em frente a uma Caixa Econômica, a mes-

ma agência de outra surpresa quilométrica dos tais anos 90.

Nessa época, quando o mundo era maior e os canudos mais

compridos, vi lá na entrada, embaixo da porta de vidro, um

morador de rua se contorcendo. O sujeito se revirava nuns

espasmos de cólica, epilepsia, coisa do tipo. Cheguei a gritar:

“este homem está passando mal!”. Aí veio alguém: “acho que

passa muito bem, você se engana”. Olhei direito e a calça

cáqui do cara estava aberta na braguilha, de onde voava o

pênis mais lindo que eu já vi, liso, teso, uma nave decolando,

um pinto epifania. Subi os olhos pra sacar o rosto do moço

e vi um mundo de rugas, bolsas, vincos e cabelo branco; era

um cara velho com pau de adolescente, um ‘device’ que en-

curta tempo e distância, um verdadeiro gps dos 90. Tive um

misto de nojo e encantamento na hora, um clássico tesão

freudiano.

Pois foi lá na agência também que apareceu recente esse

vendedor de mapa. Os caras meio que estão voltando. Mas

o que faz um sujeito, no meio de uma quarentena global, ir

vender desenho de país em porta de banco? “Já que a gente

Page 83: Untitled - Editora UFMG

81

mais metros, não cabem mais no celular, o mundo volta a

crescer outra vez” – pode ser o pensamento dele. Ou pode ser

a última coisa que sobrou dos bagulhos embaixo da cama.

Quando não se tem mais nada pra vender, o sujeito oferece

um mapa de papel ruim de carregar, que você vai desinfetar

em casa com álcool, vai esfregar, vai ensaboar pra remover

qualquer micróbio de pandemia, vai derreter até os pedaços

dos continentes se fundirem numa bolinha de celulose.

Eu tenho certeza de que esse povo que vende mapa chega

em casa e chora.

O último tragoBelo Horizonte, junho de 2020

O negócio do cara era andar todo dia ali na beirada da rua,

perto do viaduto, tranquilo, a calça jeans bem arrumada no

corpo e meio larga nas pernas, camisa de malha já mais

frouxa com estampa grande, sujeito ereto, vertical como um

caralho disposto. E tinha cabelo branco – alcunha ruim que

cada dia pesa maior. Cabeça mofada é tipo aquelas traças na

casa, nunca se limpam, a gente evita contato porque dá de-

elas aumentam embaixo da pia. Mas dava pra sacar que ele

nem pensava nisso.

A dona virou o viaduto entrando pra trás do homem,

de modo que era impossível ver a cara dele, se ele tinha

Page 84: Untitled - Editora UFMG

82

máscara, se foi ver alguma lotérica, supermercado, e levou

o trapo no rolé pra eventualidade de entrar em loja que exi-

gisse o bagulho na boca. O negócio eram as pernas que ela

olhava, a calça que dava assim uma ginga pro sujeito, a blusa

dele ventando. Pensava na dor funda de uma pequena mele-

ca dentro do nariz dentro do pano amarrado no rosto, aquilo

que ela queria faz tempo jogar fora, meter dedo, assoar num

-

fez ainda mais agravo à desgraça nasal que só arruinava.

Tinha atravessado o centro com o erro no nariz, o ven-

dedor na porta da papelaria era uma hiena mansa, preso na

corda de isolamento improvisada, tinha olho de boneco de

vitrine faltando pintura, o dinheiro do acerto acabando, ir

ver o velho logo, quanto é minha parte da água? Pai, você

pega o dinheiro da moça e completa com o seu. Mas e eu

pago quanto se é no meu nome? Tanto faz, paga tudo e pega

o dinheiro dela. Não, ela vai me dar antes. Então, pai, pega

e paga. Mas e... As soquetes na esquina, todas com cara de

tacho, os moços se rindo, vendendo cartão de ônibus, ela

agarrava o celular, certa do contágio e da falta de elegância,

sem perfume, ah, besteira, era bom sentir o ar que entrava

nas falhas do pano, ar feio também, mundo horroroso sem

janela cheio de hashtag, depois o ar faltou. Fazia as contas

do acerto, do álcool, da água do velho, tinha comido mal, um

-

quina, no viaduto, voltou a respirar.

O camarada logo na frente, o balanço dele, a calça ainda

sem desbotar davam diversão pra dona, davam gosto de es-

quecer o muco. A raiva da vida a pé foi arredando dali junto

com a meleca insana, os quadris do cara sem cara, só cabelo

Page 85: Untitled - Editora UFMG

83

escondido, o outro batia engraçado, sem rumo. A mulher

continuava o cinema pela bunda do sujeito, olhando, cha-

coalhando atrás dele como um galho agitado, caíam cabelos,

a bolsa cascando a perna era uma jaca perigosa.

O braço mais solto do cara, o tal que batia, logo tomou um

impulso grosso, ginástico, e veio lançando a mão na vala do

jeans. É bolso? – cismou a mulher. Os dedos, ela viu depois,

se entranharam ali pelo rego, demorados e fundos, engros-

sando o cu, eram uns boys numa rave, macios, tortos, foram

longe na apalpada, dessas de conferir coceira, doença, bosta.

A dona apertou o passo, a boca se abrindo debaixo do pano.

Ficou de tocaia esperando a mão do sujeito sair do ânus,

leve, levantando microrganismos transparentes numa poei-

ra de cheiros complicadíssimos para uma máscara ignorante.

Daí a mão de bunda, já longe da calça, dançou pra frente

do corpo, trocou alguma coisa com o outro braço escondido

e saiu de lá uma fumacinha pouca, enrolando na fuligem a

nuvem tóxica de moléstias e coliformes. Era uma festa de

merdas. As contas da mulher, a obrigação de ir ver o pai,

seu asco das maçanetas, a dor de coçar o que não se deve, o

risco de morrer e o risco do cu adulado onde os dedos se me-

teram espalhafatosamente ali adiante, os bichos minúsculos

em fumaça, os bichos vivos e os assassinos, tudo veio se mis-

turando, dando simpatia no meio do horror, a falta de amor

apertou aquela velha ânsia no cano que sobe do estômago.

Olhou o parapeito que dava pra cidade embaixo, os barulhos

viu o cara, não viu a cara do cara. Correu, olhou só a mão

imunda que segurava o fumo:

– Me dá um trago?

Page 86: Untitled - Editora UFMG

84

são muitas lives no instagram

Belo Horizonte, junho de 2020

Ficha Técnica: bordado sobre papel artesanal. 35 x 44 cm.

Page 87: Untitled - Editora UFMG

O ano do corvo

João Alfredo Costa de Campos Melo Júnior

Patos de Minas,19 de junho de 2020

Page 88: Untitled - Editora UFMG

86

Entre um gole de café e outro resolvo sentar em frente

claramente inspirado em Nelson Rodrigues), pandêmicas.

nas memórias afetivas mais dolorosas não é, de modo algum

fácil. Mas é preciso ter um pouco menos de covardia e en-

frentar nossos demônios de estimação. Eu os tenho aos bor-

botões. Vamos a eles:

Os anos de 2018 e de 2019, estão cravados permanen-

temente em mim, como momentos de profundo amargor e

tristezas, que ainda continuam a me afogar lenta e doloro-

samente. São, também, responsáveis pela ruptura de uma

condição existencial e a entrada com pé na porta, para ou-

da vida, que nos embala de diferentes formas. Certezas ou

aprendizados? Poucos ou quase nenhum. Tão somente a

marcada impressão que vamos sendo devorados pouco a

pouco e com espaço para as sobremesas.

As primeiras luzes de 2019 trouxeram consigo uma perda

irreparável, que assumo, ainda prazerosamente continua a

me cutucar. Porém, possibilitou-me a realização do deseja-

do, e por vezes adiado pós-doutoramento em sociologia, área

Page 89: Untitled - Editora UFMG

87

malas de roupas e livros para cidade do Porto em Portugal a

que continuam sendo objetos de trabalho, de pesquisas

e parte consolidada do percurso acadêmico que há anos

atrás optamos por caminhar. A estadia ao longo daquele

ano foi uma possibilidade real e concreta (a redundância é

proposital) de refazimento intelectual, social, cultural e de

convivência. Embora as notícias e o relatos vindos de fora

não eram os mais alvissareiros, mas cabeça que dura que

somos, tentávamos seguir adiante aproveitando todas as

oportunidades que nos eram apresentadas. Cada uma delas

amálgamas imprescindíveis para a vida que se deve viver

em todas as oportunidades ofertadas, mesmo submersos

pela crueza da pandemia.

E por falar nela, a volta ao Brasil, em fevereiro de 2020,

aconteceu na rabeira do fechamento de Portugal e da sus-

pensão dos voos para o Brasil. Ufa! Voltamos! Por pouco,

Ao voltar, esperanças e planos de trabalho adiados por

um mal que nos assombra e que não podemos enxergar. Ca-

be-nos a tarefa de mais uma vez resistir e mantermo-nos no

o ano do corvo!!

Por último e antes que me esqueça: parte do título des-

coração, Augusto dos Anjos. Concordo e fecho com Ferreira

Gullar: Augusto dos Anjos é um poeta pré-moderno! Termi-

nemos com dos Anjos:

Page 90: Untitled - Editora UFMG

88

Asa de Corvo

Asa de corvos carniceiros, asa

De mau agouro que, nos doze meses,

Cobre às vezes o espaço e cobre às vezes

O telhado de nossa própria casa...

Perseguido por todos os reveses,

É meu destino viver junto a essa asa,

Como cinza que vive junto à brasa,

Como Goncourts, como os irmãos siameses!

É com essa asa que eu faço este soneto

E a indústria humana faz o pano preto

Que as famílias de luto martiriza...

É ainda com essa asa extraordinária

Que a Morte – a costureira funerária –

Cose para o homem a última camisa

Page 91: Untitled - Editora UFMG

Box 12

Laerte

São Paulo, maio de 2020

Page 92: Untitled - Editora UFMG

90

Page 93: Untitled - Editora UFMG

Flores de papel

Michelle Valéria Macedo Silva

Lisboa, 12 de junho de 2020

Page 94: Untitled - Editora UFMG

92

Estou no meu primeiro ano do curso de doutoramento em

Teoria do Direito da Universidade de Lisboa – Fdul. O ano

letivo aqui no hemisfério norte (T. 2019/2020) corria regu-

larmente, até Portugal decretar o estado de emergência em

razão da pandemia do COVID19. Mesmo antes, desde 10 de

-

so na Rua das Praças, 16, 1dto, Bairro da Lapa, em Lisboa,

1200765. A rotina diária consistia nos processos eletrônicos

da Defensoria Pública da União do Brasil (estou desde outu-

bro de 2019 desempenhando meu ofício de defensora públi-

ca no Brasil com trabalho à distância), aulas da faculdade

por “zoom” e a investigação acadêmica em Direito Público

intensa em curso. Por causa da pesquisa, para aprimorar

meus relatórios em conjunto com os seminários que tive que

ministrar on line

alguns exemplares de valiosos livros pela internet. Assim,

demoravam mas chegavam livros de Portugal, da França,

da Espanha e dos EUA no meu endereço internacional.

De outra sorte, em função de minhas investigações inte-

ressadas na área da justiça social enviei um e-mail para a

Universidade de Chicago, nos EUA, estimulada por uma de

Page 95: Untitled - Editora UFMG

93

minhas diletas professoras da Fdul. Maior foi a minha sur-

presa ao receber, em poucas horas depois, uma resposta

dessa importante pensadora contemporânea de quem sou

a me dedicar em seguida. Como uma verdadeira aluna sua,

-

reitos humanos (hd-ca.org), adquiri mais um livro pela in-

ternet e assisti repetidas vezes um colóquio da mesma acer-

ca do projeto deste seu livro. Com o tempo, aprendi a deixar

a escuta diária de podcasts -

cos irromperem o silêncio de minha solidão pensativa.

Confesso que facilmente me adaptei à rotina diária coro-

nária, de muito pensamento e leitura perante um compu-

tador. Contudo, sentia falta do estabelecimento de ensino,

vermelha, dos cafés, bibliotecas, metrô e até do elétrico 28.

Por outro lado, me tornei mais caseira e com conhecimentos

culinários dedutivos impressionantes. Da rotina das “tascas

portuguesas” do pacato bairro lisboeta de residência, passei

a somente ir ao mercado “Pingo Doce” uma vez por semana,

a fazer comida prática e saudável no forno e um pão folha

indiano (chapati). Esse pão matinal delicioso me enchia de

orgulho diante da facilidade de sua confecção, feito na quen-

tura da chapa da frigideira a partir de uma massa de farinha

de grãos de sementes, água e azeite apenas, já que eu dis-

pensava o sal. Simples assim!

Agora em junho, resolvi andar por Lisboa, desde minha

dia. O objetivo é emagrecer e despertar para o mundo pós-

-pandemia. Muito tenho me deliciado nos banhos de sol nas

margens do Tejo ao mesmo tempo que vejo a cidade amanhe-

cer à caminho da Praça Camões, no Bairro Alto; me sento

Page 96: Untitled - Editora UFMG

94

um pouco na mesa com Fernando Pessoa, ali no Chiado ou

-

res de papel”, apesar de serem de verdade e o mundo dis-

pensar cada vez mais papel.

Agora percebo que minha vida deu uma reviravolta nes-

ses últimos anos: curta estada em Aix em Provence/França

sofri um acidente sério no Porto/Portugal (2015), minha

mãe morreu no Rio de Janeiro/Brasil em 18 de setembro

de 2016, me separei (2017), morei mais um pouco em Lis-

boa/Portugal (2018), uma temporada em Salamanca/Espa-

nha (2019), mais um “rato” em Playa del Carmem/México

(2019) e me vi sozinha no mundo. Agora percebo que es-

colhi Lisboa para recomeçar a vida. Mal sabia que iríamos

todos nos deparar com um mundo novo. Aqueles nossos ve-

lhos hábitos já estavam nos fazendo muito mal mesmo!

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Fernando Pessoa

Page 97: Untitled - Editora UFMG

95

Page 98: Untitled - Editora UFMG

96

Tinha um coronavírus no meio do caminho

Isabel Lustosa

Lisboa, 20 de abril de 2020

Page 99: Untitled - Editora UFMG

97

Cheguei a Lisboa no dia 15 de dezembro de 2019. Era a

-

licença para deixar o Brasil (que todo funcionário público

-

tugal, demandam intensa burocracia e muita ansiedade,

embarquei, tinha lançado, dois dias antes, na Travessa do

Leblon meu último livro, O jornalista que imaginou o Brasil:

tempo, vida e pensamento de Hipólito da Costa (Editora da

Unicamp) e terminava um semestre que fora movimentado

por essas duas expectativas, o lançamento do livro e os pre-

parativos para a estadia em Portugal.

Choveu muito em Lisboa durante o mês de dezembro e,

como aqui, há férias de natal, tinha pouca expectativa de

encontrar as pessoas nas universidades. Felizmente, ainda

estava prevista uma última sessão do seminário que “Leitura

e formas da escrita”, coordenado por meu colega e amigo,

João Luís Lisboa, da Universidade Nova, que acolhera meu

projeto no Centro de Humanidades, o CHAM. De modo que

ainda pude aproveitar a oportunidade de estar com colegas

Page 100: Untitled - Editora UFMG

98

no dia 20 de dezembro e de assistir a palestra de uma impor-

tante historiadora portuguesa que faz parte desse mesmo

grupo: Maria Ivone Ornellas de Andrade. Sua obra sobre o

polêmico padre José Agostinho de Macedo (1761-1831) é re-

ferência para os estudos que tenho feito sobre o mesmo per-

sonagem. O tema de sua conferência era a vida e a obra do

historiador e professor José Sebastião da Silva Dias (1916-

mesma e de vários colegas do CHAM, do qual fora funda-

dor. Os estudos sobre história da imprensa portuguesa no

começo do XIX devem muito ao estímulo que deu a alunos

como José Augusto dos Santos Alves e João Pedro Ferreira,

hoje pesquisadores vinculados à Nova.

A temporada se anunciava promissora e o mês de janeiro

foi marcado por encontros com colegas daqui que não via há

muito, como os acima citados João Pedro Ferreira, José Luís

dos Santos Alves e Luís Andrade, do CHAM; José Luís Cardoso

e Nuno Gonçalo Monteiro, do Instituto de Ciências Sociais,

o ICS; Pedro Aires e Paulo Jorge Fernandes, do Centro de

História Contemporânea, da Nova; Vânia Chaves, Isabel

Lousada, Maria Manuel do CLEPUL, da Faculdade de Letras,

entre outros. Também tive a surpresa de encontrar colegas

brasileiras que estavam por aqui como Durval Muniz, Silvia

Azevedo, Silvia Campos, Adriana Barreto, ou que estavam

de passagem como Tania de Luca, e até mesmo, Dominique

-

mília e com quem pude almoçar. O mês foi coroado pelo lan-

çamento de meu livro na sucursal lisboeta da Livraria da

minhas surpresa e satisfação casa cheia, com uma quanti-

dade de gente boa que eu conhecia de outro lançamento que

Page 101: Untitled - Editora UFMG

99

Parecia o começo de um semestre de boas realizações pois

-

tura e formas da escrita”, da Nova e, um mês depois, no se-

minário de História do ICS, a convite de Miguel e da Cruz de

a apresentação de meu livro em Paris no dia 19 de março,

em conferência promovida pelo Centre d’Histoire du XIXe

siècle e pela Société d’histoire de la Révolution de 1848.

As pesquisas se encaminhavam a partir do espaço que o

CHAM tem na Biblioteca Nacional, para o projeto Revistas

de Ideias e Cultura, coordenado por Luís Crespo de Andrade,

que me convidou a trabalhar ali dividindo sala com Joana

Lima. Eventualmente também usava o espaço a profa. Zília

Osório, grande especialista no vintismo. O privilégio de ter

poucas salas adiante o José Augusto Santos Alves me garantia

dois interlocutores de peso para os estudos que viera desen-

volver em Portugal. A ajuda do arquivista Paulo Tremoceiro,

da Torre do Tombo, que me foi apresentado pela colega, amiga

e conterrânea, Débora Dias, facilitou o acesso a documentos

que eu começava a levantar. As boas indicações de João Luís

Lisboa, Santos Alves, João Pedro Ferreira e Nuno Gonçalo

Monteiro, me davam a segurança de que a pesquisa seria

bem-sucedida.

Foi aí que o coronavírus chegou. Não chegou de uma vez,

foi chegando desde janeiro com as notícias da China a que a

gente dava pouca atenção porque era longe e até estranhava

aquele alarmismo todo que a imprensa estava fazendo. Logo

a coisa apareceu na Europa, com notícias sobre um caso

aqui outra acolá. Mas as informações sobre a gravidade da

situação da Itália acenderam a luz amarela.

A China já não era tão longe como fora no passado quando

a gente, por desaforo, mandava alguém para lá. O planeta

Page 102: Untitled - Editora UFMG

100

globalizado impusera uma relação íntima entre as nações,

mesmo aquelas que não se davam bem. Independentemente

das hostilidades eventuais, mercadorias e pessoas interli-

gavam o mundo inteiro em uma atividade dinâmica que en-

volvia todas as formas de comunicação e de circulação.

Como isolar pessoas que tinham se acostumado a cir-

cular livremente por toda parte? A China, por conta de seu

regime ditatorial, tinha meios de fazê-lo e os outros países,

mesmo sem os mesmos meios, acabaram seguindo o modelo,

adotando outros mecanismos de pressão. Até agora o iso-

lamento foi sendo a única medida efetiva a ser tomada en-

quanto não se descobre outra forma de combater a doença.

Logo, coisas inacreditáveis foram acontecendo: a parte mais

rica da Itália isolada do resto do mundo, depois a Espanha

com seus espaços tão conhecidos de todos, agora totalmen-

te vazios e até com animais silvestres passeando por ruas

onde antes só passavam pessoas, bicicletas e carros, pare-

Minha viagem para Paris estava marcada para o dia 13

de março e, até a véspera, eu estava convencida de que iria.

É verdade que a Maison Suger, onde contava me hospedar,

tinha cancelado todas as reservas, inclusive a minha ain-

-

gerada para as pessoas que consultei, que recomendaram

apenas que eu procurasse outro lugar para me hospedar. Na

França, algumas medidas restritivas estavam sendo toma-

das, mas ainda eram muito relativas. Em Lisboa, falava-se

que a Biblioteca Nacional ia fechar na semana seguinte. Mas

-

trei com Kaori Kodama no salão de leitura da Biblioteca

Nacional e ela me disse que tinha vindo fazer uma palestra

Page 103: Untitled - Editora UFMG

101

na Universidade Nova no dia 12 de março. Rafael Cardoso

que viria de Berlim para falar sobre modernismo no dia 11,

cancelamento só veio no próprio dia 11 tanto para ele quan-

to para a palestra da Kaori. Mesmo assim eu persistia no

projeto de ir a Paris, até porque até então a minha palestra

não tinha sido cancelada.

Adotando os tantos cuidados que já estavam se usando

então, fui jantar com casal amigo, Soninha e Dacio Malta.

Eles estavam em uma viagem pela Europa, tendo Bruxelas

Soninha estava muito nervosa e, ambos temiam que o go-

verno brasileiro tomasse alguma medida restritiva que os

impedisse de voltar. Me despedi ainda acreditando que ia

embarcar para Paris no dia seguinte. Mas naquela mesma

noite saiu a notícia de que o Macron decretara o fechamen-

to das escolas e universidades, de modo que, minha pales-

tra, marcada para o dia 19, certamente ia ser cancelada ou

inviabilizada.

Mesmo quando estava decidida a ir, meu medo era grande

e, depois de vários apelos de colegas, amigos e do marido,

desisti. Na verdade, o medo maior era de ir e não conseguir

voltar pois o quadro mudava todos os dias e sempre para

pior. Minha amiga, Luciana Fróes, estava em Paris e viveu

o momento exato em que a vida normal, com restaurantes,

lojas, shoppings e parques abertos, acabou. Justamente no

meu livro. Bonjour tristesse, ela anotou na foto que postou

no Facebook no dia em que acordou e não viu ninguém nas

ruas de Paris. De fato, se eu tivesse ido não teria tido como

voltar. No meio da semana seguinte recebi mensagem da

companhia aérea dizendo que o voo de volta fora cancelado.

Page 104: Untitled - Editora UFMG

102

Mas quando recebi essa mensagem minha vida já tinha

se transformado radicalmente e parecia que eu estava em

quarentena há anos. A primeira mudança na rotina que eu

tinha criado para mim foi o fechamento da academia onde

eu fazia hidroginástica de manhã. A outra, foi o fechamen-

to da Biblioteca Nacional onde eu passava o resto do meu

dia. Tinha mesmo conseguido um apartamento no agradá-

vel bairro do Alvalade, a cem metros da hidroginástica e

a duzentos da biblioteca. O esquema que criei para passar

o semestre em Lisboa estava redondinho. Na BN, além da

sala quase exclusiva que ocupava, eu tinha oportunidade de

encontrar casualmente muitos colegas e até participar dos

eventos acadêmicos que ali acontecem com bastante fre-

Felizmente, o bairro e o apartamento em que estou são

muito claros, verdes e arejados. Um bairro dos anos 1950,

Alvalade, com prédios simpáticos pequenos, de três anda-

res, apartamentos relativamente grandes e perfumados

quintais ao fundo. O meu, conta ainda com as vantagens de

ter sido todo reformado, estar com cara de novo e ter como

proprietário um jovem poeta e tradutor especializado em li-

me tem sido leve. O mais difícil, no entanto, é trabalhar. A

dispersão é grande, agravada pelas notícias que, todas as

manhãs leio de várias fontes sobre o Brasil. Talvez a disper-

são se deva ao quadro de incertezas não só sobre a pande-

mia, mas também sobre o que me espera quando voltar e até

se vou conseguir voltar na data prevista.

Mas acho que a mudança mais estranha que aconteceu foi

o medo da rua. Não aquele medo que a gente tinha de andar

em alguns lugares à noite. Outro medo mais difuso que foi se

instalando aos poucos. No dia em que fui jantar com Soninha

Page 105: Untitled - Editora UFMG

103

e Dácio, peguei um Uber. Hoje, eu não teria coragem. Pas-

sei antes na casa de uma amiga para pegar uma encomen-

da e conversei com ela naturalmente no hall do elevador,

só não entrei porque estava com pressa. Depois desse dia,

nós que costumávamos sempre nos encontrar, nunca mais

nos vimos pessoalmente. No começo, ia quase todos os dias

ao supermercado para fazer pequenas compras. Já havia o

se tornou ainda mais rigoroso pois os próprios supermer-

estabelecendo a distância entre cada freguês. Passei a ir de

luvas e, cobria o rosto com um lenço amarrado pois não ti-

nha máscaras e não quero sair para comprar. Agora, depois

que aprendi em um vídeo, consegui fazer algumas a partir

de meias velhas.

Sair de casa implica em se vestir e só calçar os sapatos e

vestir o casaco já fora do apartamento. Na volta, entrar em

casa também exige um ritual. As bolsas que levo e trago ponho

direto na máquina de lavar, bem como a roupa que usei. Isto

não me poupa da paranoia de ter talvez coçado o rosto ou

tido qualquer outro gesto absolutamente banal que pode ter

casa se converteu em um complicado ritual.

Em casa, a rotina de atividades domésticas que não esta-

va acostumada a fazer foram uma revelação. Elas tomam

muito tempo. Limpar a casa, lavar a roupa, cozinhar, etc.

essas coisas que pareciam que vinham prontas, passaram

a depender de uma ação minha para serem efetivadas. Di-

ferença nossa com os europeus. Desse aprendizado não me

queixo. E até funciona como um bom álibi para o fato de os

trabalhos andarem tão lentamente, só avançando quando

alguma cobrança externa aparece. Faço e refaço a lista do

Page 106: Untitled - Editora UFMG

104

que tenho que fazer. A própria organização do material pes-

quisado que, ainda que pouco, será útil para o que vou es-

crever mais adiante. Artigos e verbetes que prometi para

uma data que parecia distante e que se aproxima se forma

ameaçadora.

De fato, o que muda muito é a relação com o tempo e mes-

mo com a própria ideia de solidão. Os dias se repetem sempre

trabalho ou toda atividade que se tinha antes. Em compensa-

ção as horas passadas nas redes sociais se alongam também

porque os grupos de WhatsApp se multiplicam. É a sociabi-

lidade possível. De alguma forma torna próximas pessoas

que estavam um pouco distantes. E de forma mais intimista

do que o Facebook, pois meus grupos de WhatsApp são bem

pequenos. Agora começo a ter compromissos relacionados

ao trabalho também nas redes. Uma live no Instagram da

editora da Unicamp, um convite para entrevista a um por-

tal, uma reunião de trabalho com colegas daqui e outra com

colegas de lá... Vamos descobrindo novas formas de fazer

as mesmas coisas. Ainda não deu para sentir totalmente o

ele virá. Assim também como a falta de jeito ou a paranoia

instalada para apertar a mão, abraçar, beijar, ou simples-

mente sentar juntos em uma mesa de bar, quando as coisas

voltarem ao normal, se voltarem.

Page 107: Untitled - Editora UFMG

Ecos da história

Sébastien Rozeaux

Toulouse, França, algum dia do mês de abril de 2020

Page 108: Untitled - Editora UFMG

106

Estou trabalhando em casa, como boa parte das pessoas

na França desde meados do mês de março. Faz um mês já

apartamento no sétimo andar de um edifício moderno cujas

janelas dão sobre o antigo Canal de Brienne, construído no

século 18 para conectar o rio Garonne ao Canal du Midi. As

beiras do canal estão fechadas aos passeios e corridas, e só

nos resta a possibilidade de admirar seus imensos plátanos

com a primavera na França.

muito profícuos para as minhas pesquisas. Aproveito o con-

-

te há alguns anos já: escrever em francês uma história da

guerra de Canudos e de sua memória, como metáfora de

uma história trágica do Brasil colonial e independente – um

livro que quero publicar em 2022, para o bicentenário da

o é a de Canudos, tema tão debatido e objeto de tantas polê-

micas e interpretações, ando lendo trabalhos sobre as po-

líticas sanitárias durante a Primeira República – enfoque

Page 109: Untitled - Editora UFMG

107

interessante para abordar a questão sanitária em Canudos,

antes e durante a guerra, pois muitos discursos denuncia-

ram Belo Monte como um foco de doenças e um lugar cuja

mortandade ultrapassava por muito as taxas normais de le-

talidade no sertão da Bahia (é o que dizem, por exemplo, os

capuchinhos que visitaram o arraial em 1896 no relatório

escrito para o arcebispo). Assim folheio livros (digitaliza-

dos) sobre a gripe espanhola que atingiu Salvador e o Es-

tado da Bahia em 1918, com o desembarcar de um paquete

inglês; enquanto o Covid-19 começa a espalhar-se no Brasil

e as mortes a se acumularem, após o vírus ter sido impor-

tado por brasileiros da classe média alta de volta de viagem

transatlântica. Ao observar as estratégias das oligarquias

-

panhola sobre o comércio internacional, base das riquezas

das elites, eu não posso deixar de pensar na situação pre-

sente do Brasil, onde o presidente diz que a epidemia, além

de ser pouco perigosa, não pode nem deve desestabilizar a

economia do país. Mais uma vez, esta prevalece sobre a vida

humana e, em 1918 como em 2020, o povo miserável será o

alvo da pandemia.

Tudo isso aconteceu naquele mês de abril, antes da si-

tuação piorar no Brasil (enquanto a situação melhorava

país tornar-se o mais atingido de toda América latina. O sa-

crifício de partes da população brasileira, entre os quais as

comunidades autóctones maltratadas pela política do BBB

e as populações das favelas, onde a promiscuidade e a pre-

-

ria da guerra de Canudos, do extermínio do povo sertanejo

tão bem descrito por Euclides da Cunha – vítimas às quais

devem se acrescentar os milhares de mortes do exército

Page 110: Untitled - Editora UFMG

108

brasileiro, composto na maioria por pessoas humildes, sem

formação militar e às vezes mobilizadas por força. São aque-

les soldados e suas famílias que, de volta ao Rio de Janeiro,

se instalaram no Morro da providência, popularmente ba-

tizado desde então de Morro da Favela – por ser a Favela

aquele monte onde acamparam os militares durante o sítio

de Canudos. Na Favela do sertão baiano como nas favelas

que se espalhariam nas grandes cidades do país ao longo do

segue matando milhares de favelados enquanto o Estado

federal continua olhando alhures, quando não estigmatiza

essas populações que, em vez de injúrias, precisam de ajuda

e solidariedade – ou seja esses valores que motivaram a fun-

dação de Belo Monte no sertão de Canudos.

Foto do autor em casa: ©Céline Gaille / Hans Lucas

Page 111: Untitled - Editora UFMG

As good as it gets ou Bem-vindos ao novo normal

Maria Paula Paes

Londres, 14 de junho de 2020

Page 112: Untitled - Editora UFMG

110

É domingo, o que não fez nenhuma diferença durante

os últimos meses, e acordo relativamente cedo. Prometi

entregar este pequeno texto até o dia 15. Então, mãos à obra.

Hoje é um domingo não ordinário porque amanhã Londres

lockdown, contando com a certeza

de que outros virão, e a grande maioria das pessoas voltará

ao trabalho.

Os transportes públicos, que continuaram em funciona-

meses, deverão circular com lotação perto do que sempre

foi habitual antes da pandemia. Mas, nada será como antes

porque tal como “robôs emocionais” vamos manter o distan-

ciamento mínimo de 2 metros, obedecer a obrigatoriedade

do uso de máscaras dentro dos transportes, e passar com-

pulsivamente um desinfetante ao perceber que, inconscien-

temente, tocamos alguma superfície de uso público. Tudo

muito civilizado mesmo porque os agentes policiais estarão

de olhos bem abertos.

-

cácia no controle da(s) sociedade(s).

Nada de novo, basta lembrar Jean Delumeau e seu La

Peur en Occident (XIVe-XVIIIe siècles). Aliás, este medo, ou

Page 113: Untitled - Editora UFMG

111

antes, a instalação desse medo individual e coletivo é o pon-

Então, vejamos, morrer todos vamos. Não que eu tenha

qualquer intenção de interromper meus afazeres por aqui

agora, mas isso é fato certo: se está respirando é porque

morreu novo e por aí vai. Podemos pensar também que esse

medo se relaciona com a forma da morte. Mas, a esse respei-

to temos pouco ou nenhum controle. Não temos controle?

Maior o medo. Melhor não especular; só piora.

-

tada com a capacidade das pessoas em geral de absorver e

internalizar o medo do COVID19 quase como se diante de

uma catástrofe natural – tipo a praia está cheia de pessoas

aproveitando o sol e uma enorme onda surge no mar e é “se

já que quase não há mais notícias – lembra das informações

baseadas em fontes? – enquanto todos corremos para casa e

estocamos papel higiénico. Ridículo, mas necessário?

Na minha casa não houve estoque de nada, não houve falta

de nada, não houve medo de nada. Precauções foram devida-

mente tomadas, obviamente. No mais foi ler Notícias – com N

prediletos, conversas intermináveis ao telefone, idas aos su-

permercados. Claro que muitos podem dizer que tudo isso é

fácil quando estamos em casa com a certeza de que pelo me-

nos 80% dos nossos salários serão depositados no dia certo

nas nossas contas correntes, cortesia do governo Britânico

e não responsabilidade das empresas e/ ou empregadores

que aqui não podem ser penalizados.

Page 114: Untitled - Editora UFMG

112

Só que a família, os amigos queridos estão no Brasil. Não

temo por eles, mas sofro porque estão com medo, completa-

mente aterrorizados. E têm motivos mais do que válidos e

crescentes na medida em que a pandemia e a situação políti-

O presidente é notoriamente louco, aqueles que o elege-

ram e que continuam com ele(?!) são... vamos ter que criar

motivo de riso se não fosse tudo tão triste, governantes su-

perfaturam ou apresentam notas de compras falsas para a

compra de respiradores, máscaras, etc., o comunismo é um

“perigo” eminente, pede-se a volta do AI 5 o que demonstra

-

mos 70% mas desunidos. Não obstante, o texto sobre o Novo

Normal publicado no site da ONU – Organização das Nações

Unidas, para mim este tal de novo normal parece, cada dia

mais, a “normalidade” do mal – com a licença da referência

à Hannah Arendt –, que se instala perigosamente.

E sobre a solicitação “um dia da minha vida durante a

pandemia” vou escrever uma experiência que durou bem

mais que um dia. Em princípio de fevereiro, depois de uma

madrugada de dor intensa, fui diagnosticada na Urgência

do Hospital como portadora de pedras na vesícula. Depois

chamado período do pico da pandemia por aqui passei qua-

tro dias em casa com dores alucinantes, tentando garantir

minha admissão/permissão para ir ao hospital. Muitos tele-

fonemas depois, meu caso foi considerado digno de atendi-

mento médico e me foi indicado o hospital ao qual deveria

me dirigir/apresentar. Esperar pela ambulância, em média

18 horas, tornou-se missão impossível.

Page 115: Untitled - Editora UFMG

113

Como, obviamente, eu não conseguia caminhar tivemos

que chamar um Uber – sim, eles funcionam normalmente –

e lá fomos para o hospital. Sem muita demora fui admitida

como paciente.

Depois que conseguiram achar uma veia “boa” e passa-

ram ao tratamento intensivo com soro e “trocentos” antibi-

óticos, porque a infecção estava galopante, deram-me ainda

Somente pela manhã observei que meu quarto tinha um as-

pecto improvisado e nenhuma janela. Tudo bem, logo che-

Feliz e completamente doidona, resolvi arrastar meu su-

porte de sacos de líquidos variados e dar uma volta no cor-

redor movimentado, cheio de enfermeiros e médicos. Após

caminhar cerca de cinco ou seis metros meu passeio acabou

diante de uma porta fechada – daquelas que a gente vê nos

pus-me na ponta dos pés para dar uma olhada. Daí eu vi uma

sala enorme repleta de camas quase encostadas umas às ou-

tras ocupadas com pacientes inconscientes e muito pessoal

médico equipados com EPI – Equipamento de Proteção Indi-

poucos metros de uma das alas de isolamento dos pacientes

infectados com COVID19. Todo aquele movimento no corre-

Voltei para o quarto tão rápido quanto possível. Com o

frasquinho de bolsa do meu desinfetante “faxinei” o meu

quarto. Desinfetei até os lençóis. Pedi para falar com o meu

cirurgião que apareceu depois de algumas horas. Queria

explicações sobre o meu prognóstico. De forma muito aten-

ciosa, ele me explicou que o plano era debelar a infecção

para evitar uma cirurgia aberta com o objetivo de evitar a

Page 116: Untitled - Editora UFMG

114

contaminação e fazer um procedimento laparoscópico. Eu,

igualmente de forma atenciosa, expliquei que minha perma-

nência no hospital não seria possível e que eu gostaria de

obter a permissão para voltar para casa e cuidar da infec-

ção por lá, mesmo que me fosse prescrito, e por mim estaria

tudo bem, dormir de cabeça para baixo. Aqui escrevo tudo

bem resumido, mas a conversa com o cirurgião-chefe foi lon-

ga e discutida ponto por ponto.

Recebi alta naquela mesma noite e deixei o hospital com

uma sacola de remédios e uma prescrição de dieta da qual

o “alimento” mais gostoso que posso comer é biscoito cream

para a laparoscopia.

-

quilidade e pouca comida. Se quiserem saber se tive medo

eu posso dizer que não. Cautelosamente, procurei resolver

aquilo que estava ao meu alcance e o que não pude/posso

controlar será o que tiver que ser. Por isso, “as good as it

gets”.

Fiquem tranquilos e preparem-se para o Novo Normal. Se,

de quebra, o presidente deixar o cargo seria um grande pro-

blema a menos.

Page 117: Untitled - Editora UFMG

Quando chegou o tsunami

Kaori Kodama

Rio de Janeiro, 15 de junho de 2020

Page 118: Untitled - Editora UFMG

116

Era uma sexta-feira, dia 13 de março, em Lisboa. Logo

pela manhã, eu me preparava para voltar a Paris após uma

semana um tanto frustrada de trabalho. Minha missão era

apresentar minha pesquisa, sobre uma autora francesa que

-

versidade Nova de Lisboa, a convite do professor Nuno

Medeiros dia 12, na quinta-feira.

Havia alugado um pequeno apartamento pelo Airbnb na

Mouraria, na travessa da Nazaré, não muito longe da biblio-

teca de São Lázaro, que pretendia visitar. Ao chegar na se-

gunda à tarde, o choque que senti com a paisagem ensolara-

da e quente de Lisboa, em completo contraste com a Paris

-

coronavírus, embora seus sinais estivessem presentes nas

falas capturadas pelas ruas. Na agitada rua de São Pedro

de Alcântara, casais conversavam, colegas de trabalho

murmuravam, estudantes, amigas e senhoras no telefone

discutiam: o coronavírus já passeava por todas as bocas. A

situação já era drástica na Itália, que chegava a 1.000 mor-

tes, e circulavam pelas redes vídeos de pessoas com seus

familiares mortos em casa sem conseguir uma ambulância.

Page 119: Untitled - Editora UFMG

117

Aproveitei os primeiros dias para revisar o texto no confor-

tável quarto e sala que dava de frente para um casarão azu-

lejado, e ir à Biblioteca Nacional, antes do dia da apresenta-

ção. Lá encontrei Isabel Lustosa que demonstrava apreensão

quanto a sua ida programada para Paris. Na noite do dia 10,

Nuno me avisa que a apresentação havia sido cancelada pois

a universidade implementara o seu fechamento como medida

contra o covid-19. Bem, é isso... não há o que fazer, pensei.

Diversas atividades acadêmicas já vinham sendo cancela-

das na França, que àquela altura contava com 1.800 casos, e

diante da crise instaurada, não me parecia sensato protestar.

Na Espanha o alarme já era dado, já que Madrid passava a

ser visto como um próximo foco. Os voos entre o país e a Itá-

lia estavam proibidos e o governo anunciava medidas como o

trabalho remoto e a suspensão das aulas nas escolas.

O que acontecia era que eu, assim como muitos ainda,

estava incautamente até aquele dia 13 como que posiciona-

da sobre um banco de areia, observando no horizonte uma

onda do tamanho do mundo se aproximar.

No dia 11, a OMS havia declarado que estávamos sob uma

pandemia global. Havia saído naquela manhã com a inten-

ção de visitar a biblioteca escolar de São Lázaro, mas esta já

não funcionava. Os estabelecimentos de ensino fecharam-se

em Portugal. Como no instante antes da chegada das tem-

pestades, havia um estranho ar parado, quando o silêncio

ao redor é um prenúncio aterrorizante do que está por vir.

Sem a apresentação e com as pesquisas limitadas, fui vi-

sitar minha amiga Patricia Hansen. Pego o trem para en-

contrá-la em Sintra, já que Ericeira, onde ela mora, estava

mais longe. Um senhor sentado à minha frente no vagão

com um velho cachecol azul escuro bastante puído e se le-

vanta do assento, indo se instalar em pé, perto da porta de

Page 120: Untitled - Editora UFMG

118

saída. Num misto de perplexidade e de indignação, só pude

imaginar que o terror e a xenofobia já haviam invadido os

corações dos habitantes locais.

Na noite do dia 12, encontro com o professor Nuno em um

restaurante com uma linda vista de Lisboa. Durante o jan-

tar conversamos sobre as decisões da universidade de sus-

pender as atividades e sobre as mortes pelo mundo. Fala-

mos dos horrores no Brasil e lamentamos tudo aquilo.

Volto para o apartamento já tarde, e checo antes de dormir

as mensagens no celular. Uma delas era de uma amiga, Lívia,

que mora em Roma. Me dou conta de que a amiga italiana

respondia a uma mensagem que eu enviara a ela equivoca-

damente, confundindo seu número com o de outra Lívia, a

bolsista de pesquisa que trabalhava comigo no Brasil. “Hello,

Kaori, como você está? Está no Brasil ou na França?”.

Só consigo responder naquela manhã de 13 de março:

“Estou em Portugal, mas voltarei a Paris.” Agora, acredito

que não tinha tanta consciência de onde estava, apesar de

ter respondido objetivamente a pergunta de Lívia. Ela en-

via uma foto de um homem rezando ajoelhado em frente à

igreja na Via Veneto. “Se você tem que voltar ao Brasil, o

faça agora, pois eles irão fechar tudo”. Eu digo que minha

passagem pela Capes estava marcada para voltar ao Brasil

dia 29 de março. “Você não irá voltar dia 29, Kaori”. Recebi

a chacoalhada de que precisava. O tsunami havia chegado e

eu contemplava o céu azul de Lisboa.

Abri imediatamente o Linha Direta da Capes e perguntei

à assistente da agência sobre a possibilidade de antecipação

do meu retorno, uma vez que minha família já estava no Rio

que aguçava a sensação de que eu me encontrava em um

hiato no tempo. Escrevia Camus sobre os cidadãos de Orã:

Page 121: Untitled - Editora UFMG

119

“Enquanto, até então, tinham subtraído ferozmente o seu sofri-

mento à desgraça coletiva, aceitavam agora a confusão. Sem me-

mória e sem esperança, instalavam-se no presente. Na verdade,

tudo se tornava presente para eles. A peste, é preciso que se diga,

tirara a todos o poder do amor e da amizade. Porque o amor exige

um pouco de futuro e para nós só havia instantes.” (Camus, A

peste, 2013, p. 173)

Era isso. Meus amores não estavam comigo.

Depois daquele 13 de março, num espaço de 3 dias, a onda

devastadora alcançava meus pés, com Macron decretando

pensei. No dia seguinte àquela segunda-feira do pronuncia-

mento em que o presidente francês faz uso da metáfora da

guerra para o enfrentamento sanitário, postos de correios

e bancos, todo o comércio, além daqueles de suprimentos

essenciais, foram fechados. Desci até o supermercado: as

prateleiras de produtos de limpeza, água, massa e enlata-

dos estavam vazias. Não havia mais sinais das pessoas que

até o domingo anterior, desrespeitando o cumprimento do

isolamento social exigido, aproveitavam alegremente o dia

quase primaveril no parque de Buttes-Chaumont.

Ao voltar para casa, eis que abro meu e-mail e encontro a

mensagem da Capes anunciando meu retorno imediato num

voo da TAP. Eu deveria me apresentar no aeroporto de Orly

às 17:00 horas do mesmo dia e já era perto de meio-dia.

No instante seguinte, no avião de volta para Paris, a co-

missária me encaminha para a classe executiva. É que, por

questões de segurança, era preciso fazer o distanciamento

entre os passageiros. O conforto dos bancos largos da elite

gerou também em mim o desconforto, pois não seria pos-

sível dizer em tais circunstâncias que tinha tirado a sorte

grande.

Page 122: Untitled - Editora UFMG

120

Precipitou-se a vaga que me empurrava de volta ao

Brasil: deixei livros para serem devolvidos, uma conta de

banco aberta, tantas coisas para empacotar e enviar pelos

correios. Como que agarrada ao tronco em meio ao mar re-

sem poder abraçá-los por 15 dias. Mais do que tudo, voltei

para um Brasil afogado em sua tragédia social, política e

ética. Não havia mais qualquer dúvida de que adentrava

agora em um admirável e triste mundo novo.

Page 123: Untitled - Editora UFMG

121

Chiesa di San Roberto Ballarmino, via Panama - Roma, 10 de março de

2020. Foto: Livia Eleonora Bove.

Page 124: Untitled - Editora UFMG

122

Um diário de quarentena em Paris

Everton Vieira Barbosa

Paris, França, 2 de junho de 2020

Page 125: Untitled - Editora UFMG

123

Eu escrevi este texto dia 02 de junho de 2020, data em que

março a 10 de maio – e a primeira fase após o isolamento restrito

– de 11 de maio a 01 de junho – já terminaram.

apenas as instituições consideradas essenciais – como os

hospitais, as farmácias, os mercados e as padarias – perma-

neceram abertas, respeitando as regras de distanciamento

social e uso obrigatório de máscara.

Neste período, a circulação de pessoas foi restrita no raio

de um quilômetro ao redor da residência própria e com a

obrigatoriedade de portar uma declaração manual, e poste-

do deslocamento.

Estas restrições, visando a proteção individual e coletiva

face à pandemia do Covid-19, alteraram nosso cotidiano e

os modos de interações sociais, condicionando-os à esfera

privada e virtual.

Diante desta conjuntura e observando algumas posta-

gens virtuais sobre as novas práticas cotidianas durante a

Page 126: Untitled - Editora UFMG

124

quarentena, eu resolvi publicar uma foto com minha rena de

pelúcia, chamada Tonico.

Na imagem, a rena me receitava um Rivotril, remédio

cuja ação é inibir certas funções do sistema nervoso central,

mas que no senso comum, e, geralmente, usado de maneira

jocosa, pode ser indicado para pessoas extremamente an-

siosas, descontroladas, excessivamente nervosas ou com

sinais de insanidade.

certa ansiedade e um falso descontrole de minha parte com

o início da quarentena, resultou em algumas reações e co-

mentários engraçados, impulsionando a continuação das

publicações diárias, constituindo aos poucos “um diário de

quarentena em Paris”.

Com o objetivo de destacar os contextos reais, vivencia-

dos por mim ou por outras pessoas nas quais eu me inspirei,

as postagens também tiveram a intenção de informar sobre

a importância de respeitar a quarentena de maneira bem-

-humorada, tornando o contexto da pandemia mais leve

para meu ciclo de amigos em minha rede social e que acom-

panharam as postagens diárias.

Neste sentido, a rena de pelúcia Tonico, até então um

ações e falas criadas por mim em cada foto publicada nas

redes sociais.

Entre a ironia e o bom humor que pairavam na maioria

das postagens, distintas situações cotidianas do ambiente

doméstico e virtual foram representadas nos diálogos esta-

belecidos entre eu e Tonico.

Page 127: Untitled - Editora UFMG

125

Page 128: Untitled - Editora UFMG

126

Dentre os contextos reproduzidos, podemos citar: ativi-

dade física; cozinhar; lavar roupas; limpar a casa; perder a

vídeos; ouvir músicas; escrever a tese; conversar com ami-

conjuntura atual, dentre outras situações cotidianas.

Com isso, durante quase dois meses de isolamento res-

trito em Paris, eu conciliei meu tempo entre as tarefas do-

mésticas e as atividades de pesquisa com o breve diário de

quarentena que produzi neste período.

-

curtiram e seguiram as postagens continuam perguntando

pelo Tonico, querendo saber por onde ele anda, se ele está

bem e se continuaremos com as histórias pós-quarentena.

Para atender aos pedidos, eu continuei postando, de modo

esporádico, algumas fotos com o Tonico em lugares que tenho

visitado pela França, mantendo a leveza e o bom humor que

deram o tom do diário de quarentena.

Page 129: Untitled - Editora UFMG

127

Deste modo, as postagens feitas para além da quarentena

-

demia e retorno ao convívio social, especialmente para os

amigos no Brasil, que, em certas cidades, continuam em

quarentena, dado o aumento exponencial no número de in-

fectados e de mortos pelo Covid-19.

Esta situação nos mostra que as complicações econômi-

cas que o período de quarentena causou em cada país e para

que deixaram de existir.

Page 130: Untitled - Editora UFMG

128

Por respeito a estas vidas e aos seus familiares que eu

mantive um diário de quarentena informando sobre a im-

portância de permanecer em casa, respeitando a Organiza-

ção Mundial da Saúde (OMS).

-

citou a minha e a nossa capacidade de adaptação, a neces-

sidade de interação social e o cuidado pessoal e coletivo em

defesa da vida.

Page 131: Untitled - Editora UFMG

Inventário de saudades

Thais Rocha da Silva

São Paulo, 14 de junho de 2020

Page 132: Untitled - Editora UFMG

130

Entreguei para Solidão a minha lista. Contei um por um e

li em voz alta para ela ter certeza de que nada seria esque-

cido. Tinha ali esperança que ela não demorasse. Fosse só

uma ‘visita de médico’ como dizia a minha vó. Olhava pra

mim com os olhos grandes, tristes. Mas eu sorri de volta.

Disse pra ela que a saudade dava a capacidade de materia-

lizar o que já tinha ido. Não queria que ela achasse que eu

estava intimidada pela presença dela.

dizendo que ia ser fácil. Não era uma revolução política ou

uma revelação divina – embora eu também as quisesse... ai

de mim. As buzinas apressadas da manhã. As crianças fa-

lando alto chegando na escola. As conversas do ponto de ôni-

bus. Os gritos de bom dia dos funcionários. O cheiro do café

doce da padaria. O pão quente. As conversas dos taxistas.

Esse era o cenário de lá de fora.

A casa. A conversa sobre as notícias, o pedido de mais

uma tapioca. O café forte e o café aguado. As mesmas piadas.

Sentia saudade até das piadas ruins. De compartilhar o meu

pessimismo com o país esperando ouvir ‘não é bem assim,

-

tória. A mesma playlist do Spotify. O abraço com o beijinho

Page 133: Untitled - Editora UFMG

131

rápido do ‘eu preciso correr porque hoje o dia vai ser cheio’

(sempre era). Os intervalos com a conversa de quem lavaria

a louça. O dia seguia. Vazio. Cheio de ruídos que pareciam

vir do sonho que se apagou.

As caminhadas pelo bairro cumprimentando os porteiros

e os donos dos cachorros levados para passear. O esforço de

vencer o tédio da mesma rotina. As idas ao mercado. A minha

lista das varandas favoritas dos vizinhos.

Abraços. São tantos. Só podia ser no plural. Falei os no-

mes. Repeti: ‘os meus pais’. Foram anos fora do país. Nomeei

as coisas que eu sabia que ela não poderia me devolver, vai

que... Silenciou. Falei dos lugares. Pé na areia molhada da

praia. Sorveteria. O boteco aqui da rua debaixo. Bolinho de

bacalhau com chope. Show de jazz dos amigos. Gente des-

mascarada. Conversa alta e gargalhada.

Tinha mais. Os gritos de gol nos dias de jogos e os vizinhos

-

gresso do cinema. Da pipoca gordurosa que a gente sempre

tinha retornado para um lugar que não era mais meu. Nada

ali era o que eu tinha deixado.

Ela se sentou. Fiquei angustiada porque não era para ela

demorar. A lista parecia grande demais e daí me dei conta

que as minhas anotações eram só uma carcaça morta de coi-

sas que ela não entendia. ‘Vou ver o que consigo’, ela disse,

‘Já recolhi uns pedidos semelhantes’. Me sentei também.

Olhei para fora da janela. Silêncio. O dia era lindo. Respirei

fundo. Fechei os olhos, repassei a lista toda de novo na mi-

nha cabeça como se eu pudesse segurar aquelas imagens

com as mãos. Tudo tinha cheiro, cor, som. Queria tudo de

volta. Queria a casa cheia.

Page 134: Untitled - Editora UFMG

132

Ia começar a falar quando a Filó pulou na janela e roçou

na minha mão pedindo carinho. Lá estava eu secando as lá-

-

mos-que-seguir-em-frente-isso-vai-passar. Eu olhei para o

A porta estava aberta. Olhei os sapatos na porta. ‘Nem se

despediu’ eu pensei. Olhei para a janela para ver se podia

vê-la saindo do prédio e daí acenar, jogar o bilhete daqui do

terceiro andar... nada. Silêncio. Ninguém.

O porteiro do prédio da frente acenou. Disfarcei o choro,

A vizinha da frente também. Nos olhamos. Sorrimos meio

sem graça. Era a Solidão voando bairro a fora.

Foto da autora.

Page 135: Untitled - Editora UFMG

Solitude

Ricardo Alexandre

Angra dos Reis, junho de 2020

Page 136: Untitled - Editora UFMG

134

Ficha Técnica: Dudu. Ilustração digital.

Page 137: Untitled - Editora UFMG

Telegram

Page 138: Untitled - Editora UFMG

136

Page 139: Untitled - Editora UFMG

137

Page 140: Untitled - Editora UFMG

138

Page 141: Untitled - Editora UFMG

139

Page 142: Untitled - Editora UFMG

140

Page 143: Untitled - Editora UFMG

141

Page 144: Untitled - Editora UFMG

142

Page 145: Untitled - Editora UFMG

Timeline

Jurandir Malerba

Viamão, Rio Grande do Sul, maio-junho de 2020

Page 146: Untitled - Editora UFMG

144

mortos. Não dá pra arredondar. São vidas perdi-

das. E cada uma conta.

06/06 Depois da recontagem dos mortos, a próxima me-

dida contra a pandemia será a proibição do uso das

palavras “covid” e “óbito”.

05/06 Se fosse assistir a todas as lives (só dá história)

que tão rolando na quarentena, ia precisar de duas

vidas!

05/06 Aos que viram o século XX como era dos extremos,

bem-vindos ao longo século XXI.

-

tos. E se tivesse testagem?

02/06 Saudade de um movimento de rua com carros de

som, palavras de ordem, dezenas de milhares de

de um mar de bandeiras vermelhas, não é, minha

28/05 Mal posso esperar aquele segmento do JN em que

mostra as ações solidárias das empresas!

27/05 A sociedade brasileira é um organismo enfermo, em

avançado grau de deterioração. Agentes altamente

Page 147: Untitled - Editora UFMG

145

infecciosos corrompem suas vísceras. Se desco-

nhecem lenitivo para suas dores ou remédio contra

as causas de sua corrupção. Algumas amputações

poderão ser inevitáveis para se salvar o que resta

de sadio nesse corpo doente.

25/05 Crivela liberou os templos! Glória a Deus! Aleluia!

nós falando de delinquentes imorais!

moral e sanitário do STF. Ou nos tornamos seu

cúmplice!

15/05 Resta saber se a ocupação (termo militar apropria-

do) da pasta da saúde pelo Gal. Pazuello não esta-

ria já programada (por quem?) antes da posse do

Teich, que serviu de mero peão.

13/05 13 de Maio. “As datas, e só elas, dão verdadeira

consistência à vida e à morte”. (Eça de Queirós.

Almanaques)

-

tência assassina de B.

-

sileiro: chama-se crime contra a Humanidade!

04/05 Hoje ela vai estar linda, lá no mata-borrão do céu!

04/05 O suicídio de Migliaccio não foi uma abdicação, mas

um gesto político radical. Não o reconhecer esvazia

o ato e desonra o Autor.

28/04 Saímos do modo juntos venceremos essa, passa-

mos pelo Deus nos ajude e chegamos ao modo sal-

ve-se quem puder!

25/04 A poha tá tão loka que terça vira sábado e parece

que reprisa o mm jornal todo dia.

Page 148: Untitled - Editora UFMG

146

24/04 O título do romance que ainda não escrevi: “Hoje

acaba amanhã”.

22/04 O corona revelou um novo tipo na política brasilei-

ra: o necroliberal!

19/04 Não era por 20 centavos. Não será por 2 mil corpos?

18/04 Títulos de livros de história da covid: “A invenção

da peste: como o discurso médico matou 500 mil e

internou 1/3 da população”.

16/04 No atual cenário, não seria apropriado ter um epi-

demiologista no comando da Saúde?

13/04 Besta é tu, besta é tu! Abre a porta e a janela/ E

vem ver o sol nascer!

10/04 Nos próximos dias, a curva vai virar uma reta, ver-

tical, rumo ao inferno. Cada um com seu deus, pro-

09/04 O amigo borracheiro do primo de um conhecido

meu pegou a covid, usou cloroquina e se curou.

Repassem!

08/04 Saudade de uma reunião de departamento, não é,

07/04 Precisou de uma pandemia devastadora para a so-

ciedade perceber a dimensão do patrimônio que é a

universidade pública!

30/03 O corona veio ensinar que a vida exige pouco: comi-

da, água, vinho, sexo e arte. Não necessariamente

nessa ordem.

28/03 Não tem + Amazônia, PCC, PT, Marielle, Palestina,

refugiado, Ronaldinho Gaúcho, Avengers, Master-

chef, Amor de mãe. Só vírus!

Page 149: Untitled - Editora UFMG

147

27/03 2020 maior BBB da história. O mundo inteiro con-

querendo ir pra rua!

27/03 Pandemia, retração econômica, fascistas nas ruas/

autogolpe: tempestade perfeita!

26/03 Cloroquina, O novo Nióbio!

25/03 De que adianta argumentar com o gado que o isola-

terra é plana?

23/03 Resolvido o problema do São João de Campina

Grande. Transferiram junho pra novembro!

22/03 Tem que cair. Vai cair. Mas o timing é fundamen-

vidas.

eles/elas? Por sua saúde e renda?

17/03 Não tô conseguindo fazer nada – nem fazer nada!

16/03 A covid-19 se propaga pelo contato. O pânico, pelo

WhatsApp.

16/03 Em semanas aparecem as notícias dos velhinhos

de 15/03, com cartaz de foda-se corona, mortos

pela doença.

15/03 A marcha dos fascistas viralizou!

15/03 A pior pandemia de desinformação e ignorância da

história.

15/03 Language is a virus.

Page 150: Untitled - Editora UFMG

148

O tempo não tem mais hora marcada

Álvaro Pereira do Nascimento

preto, pai, pobre-pobre no passado e professor

Rio de Janeiro, 5 de junho de 2020

Page 151: Untitled - Editora UFMG

149

Mais uma noite na merda.

O sono foge dos pesadelos,

E me acorda!

Saco, viu...

Não pega o celular!!!! Peguei....

A madrugada não passa!

Mas fazer o quê amanhã de manhã?

E à tarde?

E à noite?

exercícios físicos, ouvir a NPR, lavar, passar, cozinhar, var-

rer a casa, receber entregador (vestir a máscara), higieni-

zar tudo que chega a casa (lavar a máscara)... – ops!... lavar

as mãos novamente.

Duas taças de vinho a partir das 20h00, foi esse o acor-

dado entre mim e mim mesmo, entre eu e eu mesmo, entre

mim e eu, entre eu e mim, entre eu e eu.

Cozinhar todo santo dia para me presentear próximo ao

meio-dia.

Page 152: Untitled - Editora UFMG

150

Festa gastronômica todo domingo com pratos especiais.

Tenho visto muito mais dicas culinárias no YouTube e ou-

tros sites de receitas.

Estou sem reunir minha mãe, manos, manas, primos, pri-

mas e sobrinhos há 72 dias.

Calço as mesmas havaianas: as pretas rodam a casa, as

azuis me aguardam de prontidão no tapete de boas-vindas.

(amor da minha vida) na casa da mãe a cada dezena de dias.

Elas também são usadas na hora de pôr o lixo na lixeira

ou pegar alguma encomenda recebida dos entregadores.

Por vezes, sinto-me mal com meus privilégios. Fico ainda

pior quando me perdoo com as generosas gorjetas.

Me dei conta que estou vestindo 8 camisas e 8 cuecas mais

confortáveis para usar em casa. No oitavo dia ponho tudo na

máquina, estendo no varal, passo as 7 mudas da semana, e

inicio um novo ciclo.

Preciso comprar 14 panos de prato.

Minhas sandálias maneiras, sapatos maneiros e tênis de

corrida envelhecem por desuso. A sapateira me lembra o

quanto eu era vaidoso antes da pandemia.

Minhas camisas, calças e bermudas preenchem minhas

gavetas e cabideiros. Elas também me lembram o quanto eu

era mais vaidoso antes da pandemia.

De dez em dez dias uso camisa e bermuda destas manei-

ras para ir à rua pegar meu menino. Das últimas vezes fui

mais largado, confesso.

A mesma calça é usada em reuniões de trabalho, palestras

e bancas da pós-graduação. São os dias de videoconferência

Page 153: Untitled - Editora UFMG

151

em que visto camisa de botão. E também a calça (já soube de

cuecas ou calcinhas de bolinhas entrando na casa dos parti-

cipantes pelas telas de smartphones, tablets e notebooks).

Comecei a usar mais um headphone maneiro que com-

prei, tem me sido bem útil.

Sinto muita falta das mesas do Vila Rica na calçada. De-

las contemplava o Outeiro da Glória e outras belezas do meu

bairro, logo após minha feira dominical.

Concentrei minhas doações em cestas básicas e alimenta-

ção das pessoas que moram nas ruas.

Amar... Eita, caralho.... Beijar tornou-se mais perigoso

que trepar! A galera sobe pelas paredes.

Haja punheta, siririca, nudes

pornô e o escambau.

O tesão pode ser aliviado enquanto o marido toma conta

das crianças. Quando a esposa discute metas na reunião por

videoconferência (porra, a bebê acordou, bem na hora!). E

a galera solo masturba-se sem interrupções ou mentiras de

que está cagando ou tomando banho.

Sexo virtual rola com a namorada que se cura da COVID-19,

ou com o/a amante das saudosas e insuspeitáveis tardes de

segunda-feira.

Aquelas doze horas que afastavam os casais de segunda a

sexta eram fundamentais para a harmonia do lar. Verem-se

de verdade é o que de pior pode acontecer nessa quarentena.

Há muitas mulheres sofrendo ou morrendo nas mãos do

covarde-mimado-príncipe-machão-de-merda. Este tipo de

papai leva terror às crias...

Tem sido difícil me concentrar no trabalho depois do quin-

quagésimo quarto dia. Teimo, me forço e sai alguma coisa.

Page 154: Untitled - Editora UFMG

152

Diminuí meus posicionamentos nas redes sociais. Às ve-

zes elevo...

Estou procurando outras páginas na internet que não os

portais.

Tossi e espirrei outro dia, mas não perdi o olfato e o pala-

dar. Seguimos.

Nas últimas setenta e duas noites, às 20h30, o bairro da

Glória grita “Fora Bolsonaro”, “miliciano”, “fascista”, “as-

sassino”, “racista”, “genocida”, “machista”.

Senti falta de Leonel Brizola e Lula. Eram estadistas e de-

mocratas. Sempre votei à esquerda. Honro os ensinamentos

do meu pai Severino e meu tio Pedro, dois pretos comunistas.

Me pego às vezes concordando com textos de comentaris-

tas que contribuíram para o golpe da Dilma e para os quais

sou pura oposição. Essa é a maior prova de que a coisa tá tão

ruim, mas tão ruim, que opostos estão se ouvindo para frear

a extrema direita.

Os apoiadores do capitão estão majoritariamente entre

as madames e empresários emergentes verde e amarelo,

covardes lutadores de artes marciais, policiais militares e

dos bispos milionários.

Alquimistas, chegaram a uma fórmula revolucionária e

extradição, estupro de feministas, assassinato de jovens ne-

gros e bomba nas favelas.

pelo diabo no inferno ou vão pra Cuba”.

Page 155: Untitled - Editora UFMG

153

A unidade que os extremistas desejam une a idiotice à

insanidade!

Aêêêêêê pessoal da “gente de bem”, se liguem nessas:

-

Quando vão tirar do comando desta nave chamada Brasil,

este homem branco de olhos azuis virulento, vil e violento?

Page 156: Untitled - Editora UFMG

154

Obra embargada 2020

São Gonçalo, Rio de Janeiro, junho de 2020

Page 157: Untitled - Editora UFMG

155

É possível pensar a quarentena dos mais diversos

pontos de vista. Seja como privilégio de grupos ou como

direito negado aos subalternizados. De certo, estruturas de

dominação, exclusão, negação, silenciamentos, patriarcado

As mazelas sociais, as feridas da colonialidade, que embora

nunca tenham sido ocultadas, desvelaram suas infecções

jamais tratadas.

Essas marcas da modernidade são assinaturas gravadas

na identidade da civilização brasileira. Devemos compreen-

der como colonialidade, a estrutura do poder que permanece

em uma sociedade, mesmo após a ruptura com o sistema co-

lonial moderno. É o que constrói, legítima e faz a manuten-

ção das variadas formas de opressão experimentadas por

tod@s nós hoje, ao sul do mundo.

Daqui, de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de

Janeiro, observar ao mesmo tempo que se experimenta o

apodrecimento da estrutura social, não é apenas comum, é

inevitável. É nesse contexto que produzo meu grito. A arte

é essa ferramenta de voz que tenho usado para produzir

um discurso autônomo sobre o lugar social onde estou alo-

cado. Esse processo artístico não segue uma lógica técnica/

Page 158: Untitled - Editora UFMG

156

mecânica para execução. Eventualmente posso teorizar so-

bre algo e buscar dar cabo de uma estética para o pensamen-

to, ou, posso começar a fazer algo sem muito direcionamen-

to e desenvolver a teoria a partir da prática.

O trabalho apresentado aqui, ao qual chamei Obra embar-

gada (2020), é essa análise do que foi construído de forma

abrupta, sem consentimento, através do genocídio, do estu-

pro, da escravidão, da tortura. Ainda assim, essa construção

seguiu e segue negando a reparação ao terreno. Portanto,

essa meia-água segue inacabada, exposta ao tempo. Se tor-

nando cada vez mais visível a fragilidade dessas paredes

sem embolso, esfarelando a cada chuva, que são na verdade

lágrimas da memória de um passado em aberto.

Page 159: Untitled - Editora UFMG

157

Page 160: Untitled - Editora UFMG

158

O vírus e o imprevisível: notas na epidemia

Henrique Espada Lima

Ilha de Santa Catarina, 21 de junho de 2020

Page 161: Untitled - Editora UFMG

159

If you want to make god laugh,

tell him about your plans.

Apócrifo (ou W. Allen)

24 de abril, passando um pouco o meio-dia e meia, eu pe-

dalava resolutamente pela ciclovia em direção ao ritual se-

manal que procurava seguir desde que havia iniciado a qua-

rentena há mais de um mês. Respirando com força através

da máscara de pano que subia e descia pela cara, olhava o

em Florianópolis como resposta à ameaça da epidemia. Es-

tava plenamente convencido que a minha escapada respondia

aos protocolos de segurança que havia me imposto desde

para uma temporada longa. O plano era simples: aproveito

a oportunidade para sair de casa, sentir o ar da rua, visitar

a minha mãe septuagenária e obstinadamente trancada em

casa desde o primeiro dia do lockdown, e mandar um beijo à

distância. Sem um próprio, iria dirigir o carro que ela guar-

da na garagem do prédio, e visitaria o supermercado para

as minhas compras da semana e as dela. Um arranjo limpo,

seguro, de risco controlado. Chegando perto do cruzamento,

Page 162: Untitled - Editora UFMG

160

vendo os carros parados no semáforo, viro rapidamente o

guidão da bicicleta e tomo a faixa de pedestres para atra-

vessar a avenida. Nesse momento vejo meu antagonista en-

quanto aperto furiosamente os freios: uma moto preta com

sinal vermelho na via paralela era rápida demais para que

pudesse evitar a colisão comigo.

***

A constatação da indiferença do universo diante das nos-

sas vidas individuais se instala em geral em nossas cons-

ciências na lenta decantação operada pela passagem do

tempo, que nos apresenta, nas sucessivas versões de nós

mesmos, os resultados depurados de uma história que sabe-

de reconhecer nossa autoria. Mais raramente, ainda que de

modo mais dramático, a irrupção do imprevisível faz pó das

nossas ilusões de controle de um só golpe, revelando a fra-

gilidade dos planos cujo cultivo incerto nunca deixa de nos

parecer parte estruturante da nossa sanidade psíquica.

Essa consciência da indeterminação e do imprevisível

como substância da vida não nos impede, apesar de tudo, de

procurar agir sobre o futuro e moldá-lo às nossas expecta-

tivas. Em algum lugar entre o empenho de sermos protago-

nistas de nossas vidas, e a simples consciência de que somos

peças de um jogo cujas regras, se existem, não conhecemos,

deve estar o segredo que nos faz insistir no esforço de dar

sentido ao que talvez não tenha.

É verdade que isso tudo racionaliza de modo petulante

essas verdades básicas presentes tanto na minha vida,

na sua, e na de todos. Como historiador, a ironia do acaso

Page 163: Untitled - Editora UFMG

161

e da indeterminação nunca estão tão distantes que não

afetem a busca rotineira pelo padrão, pela continuidade, e a

de suas transformações, onde essas vidas todas acontecem.

Vivendo entre o Brasil e os Estados Unidos nos últimos

anos, e observando o que vai pelo mundo todos os dias, para

mim se impõe a sensação de que um padrão assustador

emerge da proliferação de sujeitos, discursos, imagens, lu-

gares comuns, que parece impossível de conter. Esses eco-

-

algoritmos de pesquisa que, desapaixonadamente, reprodu-

que é muito mais que isso, com dimensões sócio-políticas e

econômicas, assim como existenciais, que pretendem rees-

crever não só o presente e o futuro, mas também o passado).

A destruição do debate público é tanto um efeito colateral

disso, quanto um de seus primeiros impulsionadores. Como

resultado mais palpável, para além da cacofonia reinante,

“conservadores”, ainda que dispostos a destruir tudo para

“antigo”. Aquilo que querem “conservar”, entretanto, seja a

pureza do passado, os valores “ocidentais”, o retorno a uma

época em que “éramos grandes” – parece existir apenas nos

seus sonhos, que se confundem com o pesadelo de todos os

demais. Trumps e Bolsonaros são os ventríloquos desses de-

sejos plasmados que, não por acaso, parecem assumir com

orgulho aquele impulso que assombra todas as “culturas”, e

que Freud batizou de “pulsão de morte”.

pensa com a história reencontra a cada passo os ecos de

Page 164: Untitled - Editora UFMG

162

movimentos anteriores, de processos e discursos cuja se-

melhança com outros do passado nos leva imediatamente

a nos interrogarmos se já não vimos isso antes: A reação

aos efeitos desagregadores do mercado desregulado cuja

Totalitarismo?

Nesse movimento pendular, a história mais uma vez apa-

rece como uma força estranha; ainda que resultado da nossa

ação, nela não conseguimos nos reconhecer. Serve para lem-

brar que mesmo a minha história pessoal não se encontra

toda nas minhas mãos: somos os sujeitos das histórias uns

dos outros. Lembrando Sartre: a história é uma obra huma-

na sem autor. Se alguma mão a escreve, não a conhecemos.

Se tem roteiro, não sabemos qual é, e permanecemos cegos

observação dos nossos atos cotidianos: como o participan-

te otimista das jornadas de 2013, que descobriu que havia

sido protagonista de um movimento muito diferente daque-

le que imaginava ter participado: suas forças drenadas por

um impulso que não era seu. Os exemplos são muitos, e a

história recente do país está cheia deles. Tivemos golpe, as-

censão de um líder ridículo tornado força irresistível pela

parece ter nascido enquanto olhávamos para o outro lado:

não é mais uma democracia, sem ter se tornado completa-

mente o seu contrário. Um impasse impossível de resolver.

O futuro, como o passado, mais uma vez marcados pelo en-

trelaçamento entre a regularidade sistemática e a irrupção

abrupta do inesperado. Nessa peça infame de atores ridícu-

los, o restante de nós parece às vezes contentar-se em parti-

cipar do coro de Cassandras, ou sentar na plateia, aplaudin-

do ou chorando.

Page 165: Untitled - Editora UFMG

163

Mas, se havia algum plano em tudo isso dirigindo as regu-

laridades, este já não parece tão seguro de si. Em um mer-

cado em Wuhan, meses atrás, o vírus hospedado em algum

animal infeliz esperando o abate saltou para um novo hos-

pedeiro igualmente inconsciente do papel que iria ocupar no

grande quadro das coisas. Incapaz de viver e reproduzir-se

sem predar as células de outro organismo, e seguindo cega-

mente o caminho inteiramente acidental trilhado por tantos

outros como ele, o vírus que será batizado de COVID19 se-

guiu seu rumo, multiplicando-se e sendo transmitido pelos

gestos descuidados de outros tantos novos hospedeiros, e

tão ignorante da sua letalidade quanto às vezes os humanos

irão transformar a vida de milhões de pessoas nos meses

seguintes.

O advento da pandemia sublinha a nossa impossibilidade

de controlar algumas das variáveis centrais a moldar os ru-

mos da nossa existência individual e coletiva. Os epidemio-

logistas sabem disso mais que ninguém, e constroem seus

modelos de risco tentando abarcar tanto a rigorosa regu-

laridade estatística do espalhamento da doença, quanto os

resultados imprevisíveis das decisões de uma miríade de in-

divíduos que agem no dia a dia com as informações mais ou

menos fragmentadas que possuem sobre aquilo que os amea-

ça. Lockdowns, quarentenas, distanciamento social, contact

tracing, e tantas outras respostas coletivas convivem tan-

to com o acaso das comorbidades de cada um, quanto com

as pequenas decisões individuais: ir ao mercado, usar uma

máscara, encontrar alguém. O resultado da interação dessas

operações, grandes e pequenas, vão mais tarde espelhar-se

nas estatísticas inexoráveis: os números de contaminações,

o número de mortes.

Page 166: Untitled - Editora UFMG

164

-

pelha esse entrelaçamento entre as estruturas, os processos

gerais e anônimos, e as decisões mais ou menos conscientes,

mas indeterminadas, de cada um. O entrelaçamento entre a

força inexorável das coisas e a busca constante de dar sen-

tido, real e simbólico, às nossas ações e projetos continua a

ser o estranho material que molda a realidade humana e as

suas transformações.

Em meio à pandemia, a enésima morte de um homem

negro sob a custódia da polícia poderia parecer à primeira

vista apenas a reapresentação de um evento que acontece

com extraordinária e terrível regularidade. Os oito minutos

e quarenta e seis segundos que se passaram até que George

Floyd perdesse a vida sob o joelho de Derek Chauvin planta-

do em seu pescoço talvez não devessem surpreender. Como

parece não surpreender a extraordinária indiferença com

que a morte do menino João Pedro pelas balas da polícia no

Rio de Janeiro apareceu e desapareceu dos jornais naqueles

mesmos dias de maio.

E, entretanto, nos Estados Unidos, no Brasil e em muitos

outros lugares do mundo, a reação que subtraiu aquele even-

to em particular da massa ordinária e repetida de violência

contra a gente preta e vulnerável se converteu em um mo-

vimento de massas que rivaliza com as grandes marchas

pelos direitos civis dos anos sessenta. Como a epidemia, o

alcance desses movimentos, e sua capacidade de colocar em

teste o pouco de esperança que temos para tomarmos algum

controle sobre o nosso próprio futuro, são temas que per-

manecem em aberto. Diferente da epidemia, contudo, esses

movimentos não são nem fruto do acaso, nem são protago-

nizados anonimamente por um organismo sem consciência

da sua existência.

Page 167: Untitled - Editora UFMG

165

Com surpresa, pandemia e a reação coletiva à violência

racista passam a ocupar o centro das preocupações daque-

les governantes cuja hybris e o descomedimento insolente

teimaram em ignorar aquilo que supera as suas próprias

vontades e desejos individuais. Trumps e Bolsonaros pare-

cem perdidos diante daquilo que não conseguem confundir

na cortina de fumaça da sua rede de mentiras e promessas

vazias, ainda que eles e seus acólitos não deixem de tentar. O

inimigo aparece onde menos se espera. E os adversários de

primeira hora – nós – antes perdidos e batendo a cabeça uns

contra os outros, subitamente vemos descortinar-se uma

oportunidade. O fato de que não sabemos se podemos fazer

algo com ela não deveria nos impedir de tentar.

***

Deitado no asfalto, senti minha perna esquerda em uma

posição impossível. A fratura exposta e a poça de sangue so-

nas caras desconcertadas dos que paravam para ajudar. O

-

car bem tentava me confortar enquanto eu só pensava no ri-

dículo da máscara de pano pendurada no seu queixo. Todo o

meu cuidadoso planejamento epidemiológico evaporado por

um golpe do azar. Desde o chão, eu contemplava a janela do

apartamento da minha mãe, e sentia os oito mil quilômetros

que me separavam da minha companheira, que acabava de

se recuperar de semanas lutando contra o vírus em casa,

longe de mim. Ela não sabia ainda o que estava por vir.

A ausência de dor me surpreendia, bem como a estranha

calma com que eu conversava com o sujeito que havia me

atropelado, com o homem da máscara caída, com o outro

Page 168: Untitled - Editora UFMG

166

que casualmente parou e sabia fazer um perfeito torniquete

que estancou minha hemorragia. A mesma estranha calma

conversando com o bombeiro que recolheu minha perna e a

devolveu a uma posição segura, e tudo o mais que mal consi-

go lembrar naquele dia.

A pandemia, e a fundamental incapacidade de controlar

as consequências de cada ato em nossas vidas: ambos lem-

bram que a incerteza e a vulnerabilidade essencial de todos

nós são os únicos traços humanos universais. Verdade que

as vulnerabilidades são desiguais, como não deixam de lem-

brar meus companheiros involuntários de infortúnio que es-

público, esperando para saber o que vem pela frente. Olhan-

do agora para a minha perna esquerda, cujos fragmentos

estão mantidos juntos por um espantoso aparato metálico

com resultados imprevisíveis, os sentimentos mistos de es-

perança e exasperação, conformismo e vontade de agir, eco-

am de modo muito pessoal dilemas que não são só meus.

Page 169: Untitled - Editora UFMG

Pile

Dolores Bossuyt

Las Vegas, maio de 2020

Page 170: Untitled - Editora UFMG

168

Page 171: Untitled - Editora UFMG

169

A pilha de tons vermelhos é um amálgama de pedaços

de formas e tamanhos distintos, os quais, embora coloca-

dos de maneira aleatória, transmitem uma sensação de di-

recionalidade geral e crescimento medido. O trabalho traz

para casa meu mal-estar, uma impressão de inexorabilidade

misturada com uma sensação de caos absoluto, o reviver de

uma história não muito distante. O caos nunca está muito

longe quando pilhas ameaçadoras aparecem.

The red-hued heap is an amalgamation of bits of distinct

shapes and sizes, which, though haphazardly placed,

convey a sense of general directionality and measured

growth. The work brings home my malaise, an impression

of inexorability mixed with a sense of absolute chaos, the

reliving of a not-too-distant history. Havoc is never very far

when ominous piles make their appearance.

Page 172: Untitled - Editora UFMG

170

Voltar para casa

Os livros que não li

Isabel Travancas

Rio de Janeiro, 5 de junho de 2020

Page 173: Untitled - Editora UFMG

171

-

mos isolados em casa senti um alívio enorme por não ter

que viver essa experiência fora de casa, fora do Rio de

Janeiro, fora do Brasil. Eu vivi no exterior – na França e

-

tos amigos. Ainda que a situação precária de um país com

-

governo de Bolsonaro, tenha tornado o Brasil um dos pio-

res lugares do mundo para passar essa pandemia, era aqui

que eu queria estar.

E encontrei nas palavras da escritora polonesa Olga

Tokarczuk, ganhadora do Prêmio Nobel de 2018, a com-

preensão mais profunda dos meus sentimentos nesse mo-

mento. Tocarzuk diz: “O medo da doença (...) nos lembrou

da existência do ninho de que somos originários e onde nos

sentimos em segurança. E, numa situação dessas, sempre

procuraremos voltar para casa.” E eu, curiosamente, havia

voltado a morar na casa que era dos meus pais. Estava no

“meu” país e também na casa da minha infância onde me

sentia protegida pelos que cuidaram de mim pequena. Mes-

mo eles não estando mais presentes, há algo da sua presen-

ça protetora que permanece.

Page 174: Untitled - Editora UFMG

172

(Vista da janela de casa)

Page 175: Untitled - Editora UFMG

173

Os livros que não li

-

ção muito prazerosa. Agora eu teria tempo, tempo para ler

literatura. Mas eu não li. Se por um lado eu teria mais tempo

livre, esse tempo não se transformou em tempo de leitura. E

isso me surpreendeu e perturbou. O que estava acontecendo

comigo que sou amante dos livros e da literatura, que dou

aula de história do livro no Brasil, que escrevo livros e ago-

-

guntava o que tinha se passado comigo e não encontrava a

resposta.

E eis que um dia, lendo um post no Facebook de uma ami-

ga, encontro a resposta. Ela veio da psicanalista argentina

Alexandra Kohan. E me confortou e abriu uma janela para

interpretar essa impossibilidade – momentânea, espero – de

não conseguir ler literatura. Kohan diz “que em um primeiro

momento foi ativada uma fantasia lindíssima de dispormos

de tempo para ler, mas rapidamente entendemos que para

ler não precisamos somente de tempo, mas de toda uma dis-

posição que acho, tem a ver com silenciar o mundo, silen-

ciar suas demandas e habitar uma solidão como refúgio, nos

asilarmos do mundo enquanto o mundo segue funcionando.

Page 176: Untitled - Editora UFMG

174

Hoje é o contrário: o mundo nos silenciou, o mundo se de-

teve e nós continuamos pedalando no ar. Somos muitos os

que não podemos ler por que é insuportável subtrair o pouco

que há “fora” da gente. Estamos asilados literalmente, não

sei como se poderia ler nestas circunstâncias se ler implica,

além de nos estranharmos, estranhar a realidade. Agora é a

realidade que se estranhou e nos estranhou.”

-

tranhar e nós a ela – para que a literatura volte a ser minha

companheira de vida.

(Os livros que eu não li)

Page 177: Untitled - Editora UFMG

Ser zen

Antony Henrique Tomaz Diniz

Campinas, São Paulo, junho de 2020

Page 178: Untitled - Editora UFMG

176

Essa é uma série de desenhos em lápis e aquarela. Cha-

ma-se SER ZEN. Tratam-se de 12 ilustrações feitas por mim

em junho de 2020, durante a quarentena. As publiquei no

meu Instagram, onde algumas pessoas viram e se sentiram

bem com o tema e as mensagens, a despeito do amadorismo

-

ciantes, numa linguagem que só embarquei por conselho do

meu terapeuta, nos meus 35 anos.

O tema é: como aplicar alguns princípios encontrados em

-

tidiana, prática. Estudos sobre como manter a cabeça boa e

suportar a loucura de viver em meio a uma pandemia, espe-

cialmente no Brasil. Não são conselhos. Nem sermões. São

fato manifestos em pequenas ações cotidianas que não de-

pendem de nada além da boa disposição para consigo.

O caminho do zen é o caminho do agora. De como ter uma

vida boa agora, como você é, nas condições que você vive. É

um caminho de simplicidade, respiração, disciplina e amor

para com você e os outros. De muitas formas esses princí-

pios são cordas que me resgatam do fundo do poço todos os

Page 179: Untitled - Editora UFMG

177

dias. Às -

las, que agora estão em quadros na parede ao lado da minha

cama, para me lembrar de lembrar.

PS: Cada uma das aquarelas tem um título, e sem esse tí-

-

cípio do zen. Os nomes estão nas gravuras aqui publicadas.

Reescrevo:

1 – Faça uma coisa de cada vez.

2 – Faça completamente.

3 – Faça no tempo certo e deliberadamente.

4 – Faça menos.

5 – Ponha espaço entre as coisas.

6 – Desenvolva rituais.

7 – Devote tempo para o “sentar” (zazen).

8 – Designe tempo para certas coisas.

9 – Sorria e sirva aos outros.

10 – Cozinhar e limpar são formas de meditar.

11 – Conheça as necessidades reais e as inventadas.

12 – Viva com simplicidade.

Page 180: Untitled - Editora UFMG

178

Faça uma coisa de cada vez

Faça completamente

Page 181: Untitled - Editora UFMG

179

Faça no tempo certo e deliberadamente

Faça menos

Page 182: Untitled - Editora UFMG

180

Ponha espaço entre as coisas

Desenvolva rituais

Page 183: Untitled - Editora UFMG

181

Devote tempo para o “sentar” (zazen).

Designe tempo para certas coisas

Page 184: Untitled - Editora UFMG

182

Sorria e sirva aos outros

Cozinhar e limpar são formas de meditar

Page 185: Untitled - Editora UFMG

183

Conheça as necessidades reais e as inventadas

Viva com simplicidade

Page 186: Untitled - Editora UFMG

184

Notas sobre o nada

Altino Filho

Belo Horizonte, junho de 2020

Page 187: Untitled - Editora UFMG

185

passa pela descrença ao modelo vigente de capitalismo. Pas-

sa pelo desencanto a uma ideia de futuro sem mudanças es-

truturais e universais. E a esse formato de distribuição de

renda aplicado – e replicado – em todos os ambientes econô-

do momento passa pela pandemia da usura que nos carrega

há tempos. Acredito que essa pandemia idosa mais do que

importa neste momento. Com seus óculos, podemos enxer-

gar esse outro rebento: o tal corona sem fronteiras – e nos-

sos dias de cativeiro.

sempre adiadas de uma nova ordem mundial. Parece um

lugar comum, pois é algo sempre desejado. Mas não tenho

como meta impossível. A pandemia traz algo quase didático:

o que pensávamos distante pode ser conquistado. Mesmo

que essa conquista seja realizada de forma dramática.

Penso como termos tão antigos, como socialismo, comu-

nismo, capitalismo, democracia são hoje ainda pouco com-

preendidos – ou interpretados ao bel prazer do consumidor.

Penso também nesse carimbo de “novo normal”.

Page 188: Untitled - Editora UFMG

186

em busca da conciliação dos contrários não é normal. Sinto

a pandemia de ações nefastas.

A capacidade de se adaptar sempre existiu. A capacidade

de se reinventar, a capacidade de se iludir, a capacidade de

inventar uma saída e fugir da maestria da inação.

É essa a experiência humana. Sempre marcada pelas

tentativas. E pelos erros.

......................................................................................................

......................................................................................................

Estamos no fato ou na imaginação? Seguimos uma reta

certa ou a apologia da contramão? Isso parece poesia. Ou não.

A letra é dura, dúbia, incerta. A letra é escura e a página

-

ta, numa dança da destra e da canhota – e da rima.

Tudo é tão cruel como uma anedota. Nada que não pos-

sa ter volta. Mas não enxergo volta certa. Nada será como

antes. Aquilo – como você conhecia! – não mais vai existir.

É hora de nos reinventarmos como sociedade, como povo,

como gente, como comunidade.

.......................................................................................................

......................................................................................................

Meus dias de solitária me faz pensar na socialização do risco

– trazido pela pandemia –como algo positivo, democrático.

Vi de antemão a charge da Laerte: o planeta no varal, se-

cando, e a mensagem “lavou, tá novo”. O problema é como

enxugar esse mundo.

A ideia de que “nossa espécie” precisava de um stop tam-

correria em direção ao abismo.

-

veis novos rumos.

Page 189: Untitled - Editora UFMG

187

As teorias da conspiração também emergem como algo

crível. Mas não quero falar sobre elas, já que estamos cansa-

dos de teorias (e aqui, agora, elas pouco nos servem).

Há tempos escrevi uma letra para um amigo músico que

dizia o seguinte:

“Os edifícios inteligentes de Nova York não sabem/o pis-

ca-pisca da pista de dança entende/o cheiro bom que o suor

acende/no gravado – ao vivo! – pelo dito e não dito da gente”

Isso me faz lembrar, paradoxalmente, das mortes provo-

cadas pelo vírus e das lives.

live.

O self-service vai acabar, mas as lives não.

Em diversos setores da economia e da sociedade essa pan-

demia deixará marcas. Marcas que serão perenes durante o

século XXI.

......................................................................................................

......................................................................................................

Agora, vamos ao trivial: todo dia, aqui no bairro da Serra,

em Belo Horizonte, recebo minha marmitex. Meu cachorro

pede pra sair um pouco. Somente o colocar da máscara no

rosto, para ele, meu cachorro, já é um sinal de saída ao mun-

do exterior. O que será que meu cachorro pensa?

Meus amigos próximos sabem que eu sempre digo sobre

uma revolução que estamos sofrendo, e nem mesmo per-

cebemos. Uma nova ordem de mundo que passa pela peda-

gogia, pela comunicação, pelas relações de emprego e pelo

comportamento de forma generalizada. Acredito que essa

pandemia realçou a ideia de revolução que eu tanto dizia.

Page 190: Untitled - Editora UFMG

188

A torcida é por uma mudança. Como brasileiro, vejo meu

país se deteriorando. Penso na vacina e em outro modelo de

-

ente. Amanhã tenho que lavar minhas máscaras e esperar

a marmitex. Meu cachorro acredita num novo mundo. Mas

eu não sou cachorro não.

Page 191: Untitled - Editora UFMG

Como andam os trabalhadores da música?

Eulícia Esteves

Rio de Janeiro, 24 de junho de 2020

Page 192: Untitled - Editora UFMG

190

Rifa de cavaquinho, rifa de bateria, os anúncios são mui-

tos. Outro dia, Luís Filipe de Lima, violonista, arranjador,

produtor, um cara que já acompanhou meio mundo da MPB,

colocou seu violão à venda. A comoção foi parar na primeira

página de um jornalão e desencadeou um grande movimen-

to de solidariedade. Mas haja solidariedade, pois as histórias

se multiplicam. Nelson Sargento, patrimônio vivo da nossa

cultura, está recebendo doações por meio de vaquinha vir-

tual. A cantora Ângela Ro Ro pede aos fãs que depositem ao

menos dez reais em sua conta bancária. Retratos de uma

pandemia que atingiu em cheio o setor de espetáculos, co-

locando uma lente de aumento sobre a vulnerabilidade de

quem trabalha nesta área.

Mas o show tem que continuar, como já disse Aldir Blanc,

gênio da canção brasileira que infelizmente foi vencido pelo

corona. E o show continua nas redes sociais da vida. Áurea

Martins, diva, estrela (me faltam adjetivos), comandou so-

zinha, há poucos dias, seu aniversário de 80 anos no Insta-

gram, numa live cheia de convidados. Danada, se apropriou

rapidamente da tecnologia pra soltar a voz nesse momento

em que só a virtualidade é possível. As lives, aliás, têm sido

Page 193: Untitled - Editora UFMG

191

sufocantes. Restritos a pequenas telas, músicos vão dando

o seu recado e doando-se generosamente a um público ca-

rente de encontros – logo eles, os músicos, tão carentes de

proteção social.

Cada artista tem inventado a sua maneira de estar neste

novo cenário, como pode, como dá. Na enxurrada de shows

virtuais que tomou o país, uma cantora bravamente fez do

seu ofício um porto-seguro para os fãs. Teresa Cristina, já

apelidada de “rainha das lives”, toda noite, religiosamente,

nos brinda com música, bate-papo e riso solto. Em seus en-

contros, abre-se uma espécie de portal para um tempo de

graça, espontaneidade, carinho, respeito, ancestralidade e

-

cado a histórias saídas de sua memória afetiva. Reverencia

seus mestres, a quem dedica lives temáticas, e abre a porta e

o coração aos novos talentos, que são chamados para canjas

(especialmente as mulheres negras, como ela). Com bastan-

te frequência, tem sido prestigiada por grandes estrelas da

MPB, que chegam inesperadamente, interagindo como ex-

pectadores, e acabam participando da sua festa, desconcer-

tando-a. As lives de Teresa são o Brasil que dá certo, apesar

de tantos pesares.

Como ela, muitos artistas e coletivos têm realizado pe-

quenas revoluções, enchendo-nos de afeto neste momento

difícil. Pois é tempo de fortalecer o sentimento de comuni-

dade, de partilha do comum – tão bombardeado pela lógica

neoliberal insana. As campanhas de doações se multiplicam

uma cadeia produtiva – roadies, técnicos de som, ilumina-

dores, produtores, prestadores dos mais variados serviços

de backstage – que está parada, sem saber quando poderá

retomar as atividades.

Page 194: Untitled - Editora UFMG

192

Aprovado pelo Congresso, um auxílio emergencial de

R$ 600 está sendo concedido aos trabalhadores infor-

mais durante o período de 3 meses, podendo ser prorro-

gado, a depender das lutas travadas entre o Executivo e o

Legislativo. Como um grande contingente de artistas não foi

contemplado pela medida (muitos não se enquadraram nos

critérios estabelecidos para recebimento do benefício), re-

centemente nova lei foi aprovada, esta destinada aos traba-

lhadores da cultura. Batizada de Lei Aldir Blanc, ela virá ao

socorro de artistas e de espaços culturais (teatros, circos,

cinemas, casas de shows etc.) que se encontram fechados

por tempo indeterminado. Isso se for sancionada, e espera-

mos que seja, pois uma das lições da pandemia é tão óbvia

quanto urgente: a arte é necessária, mesmo (e talvez ainda

mais) nos momentos de dor.

Page 195: Untitled - Editora UFMG

Na Casa da Teresa

Andréa Cristina de Barros Queiroz

Saquarema, Rio de Janeiro, 20 de junho de 2020

Page 196: Untitled - Editora UFMG

194

Brasil, meu nego

Deixa eu te contar

A história que a história não conta

O avesso do mesmo lugar

Na luta é que a gente se encontra

História pra Ninar Gente Grande. Samba-

enredo da Mangueira 2019

Na Casa da Teresa é onde o outro Brasil se reencontra e se

reconecta. É o Brasil dos artistas, dos cineastas, dos poetas,

dos errantes, dos professores, dos estudantes, dos sambis-

tas, dos compositores, dos trabalhadores, dos desempre-

gados, dos servidores públicos, dos movimentos sociais, dos

políticos de esquerda, é o país que valoriza a arte, a cultura,

a ciência e a educação. Neste Brasil o ódio nem ousa chegar.

Este lugar iluminado e repleto de amor, onde o obscurantis-

mo não se cria, existe sim. É o novo reduto da boemia cario-

ca, é a Casa/live da cantora e compositora Teresa Cristina, a

“Rainha das Lives Temáticas” como designou um jornal do

Rio de Janeiro, que se tornou cada vez mais íntima de seu

público, de seus seguidores, é a nossa TT.

Page 197: Untitled - Editora UFMG

195

Entrar cotidianamente na Casa da Teresa me reconecta

com a minha vida mundana. Me tira desse isolamento que

estamos vivendo de forma forçada e necessária há três me-

ses. Ainda mais que estou isolada dentro do isolamento, nes-

tes tempos de pandemia estou em recolhimento com minha

minha casa no bairro do Maracanã. Então, adentrar na

Casa da Teresa é um portal que me transporta para as ro-

das de samba e para o bate papo descontraído tipicamente

carioca. A sua trajetória e as suas composições rememoram

a minha própria trajetória: suburbana; apaixonada pelo

samba e pelos sambistas; frequentadora do Samba do Traba-

lhador, no Renascença, do Cacique de Ramos e da Quadra da

Vila Isabel (TT é portelense); Uerjiana raiz e engajada com

as pautas da esquerda.

Suas lives são sempre temáticas. Na maioria das vezes,

os sambas, os sambistas e os sambas de enredo são os

protagonistas, junto da própria Teresa é claro. Há também

homenagens em forma de festas virtuais para os seus amigos,

ilustres e desconhecidos, que de tanto que conversamos

cotidianamente no bate papo da live tornam-se nossos ami-

gos também. Como a live do Zequinha, seu amigo desde os

tempos do DCE da UERJ, fez com que as minhas lembranças

da minha vida como Universitária na UERJ fossem narradas

pelas lembranças compartilhadas por eles. Descer as ram-

as festas no prédio dos alunos, os bares ao redor, os shows

no Teatrão (Teatro Odylo Costa Filho) e na Concha Acústica,

aliás a primeira vez que assisti a cantora Teresa Cristina

se apresentar foi no Teatro da UERJ, quando eu ainda era

uma graduanda de História, foi quando descobri que aquela

moça, que estava começando a fazer sucesso na Lapa, havia

Page 198: Untitled - Editora UFMG

196

estudado Letras na mesma Universidade que eu. Na Casa da

TT, também reencontro cotidianamente meus amigos de in-

fância, amigos da UERJ, da UFF, da UFRJ e da História.

Por que essa Casa também é nossa? Porque ela é a nossa

Ágora, onde ouvimos e debatemos sobre propostas de um

projeto de Nação inclusiva, nos engajamos nas pautas de

uma educação antirracista, na luta contra a violência das

mulheres e por sua igualdade de direitos, nas pautas con-

tra LGBTfobia, entre outras demandas sociais e políticas.

Aprendemos sobre a trajetória do samba e dos sambistas

e a importância deles para a história da música popular

brasileira. A cada compositor homenageado, do mundo do

samba e fora dele, nos reencontramos com esse Brasil que

queremos. Muito diferente do Brasil que está no poder, um

país obscuro, que promove negacionismos da História, da

Ciência e da Saúde, promove a necropolítica e ainda desres-

peita o luto de seus mortos durante a maior crise sanitária

mundial.

Por este novo reduto boêmio, circulam mais que nomes,

circulam ideias do Brasil que queremos e que nos represen-

tam. Estas ideias foram reverberadas na fala de cada indi-

víduo político que adentrou na Casa da Teresa. Lula, Freixo,

Boulos, Chico Alencar, Haddad, entre outros. Por duas ve-

zes, tentaram silenciar a reverberação dessas falas, com o

desaparecimento de duas destas gravações no Instagram,

como aconteceu nas lives em que Lula e Haddad participa-

ram, mas TT gritou e reagiu a este apagamento. A do Lula

já foi recuperada, mas até o momento em que escrevo a do

Haddad ainda não.

Haddad entrou na live de 19 de junho de 2020, foi a pri-

meira vez que compareceram mais de 13 mil pessoas na Casa

da Teresa, justamente no momento da fala do ex-candidato

Page 199: Untitled - Editora UFMG

197

à Presidência em oposição ao poder atual, ex-Prefeito de São

Paulo e Ministro da Educação no governo Lula. Foi uma noi-

te especial, não somente pela presença e musicalidade de

Haddad, mas porque foi uma noite para homenagear o ani-

versariante Chico Buarque de Holanda, assim como seu pai

Sérgio, um ícone da História Nacional, por sua arte engaja-

da, suas composições de protesto e de crítica social, por sua

luta pela Democracia contra a Ditadura, por sua luta perma-

nente pela Democracia. A arte de Chico Buarque é tão gran-

diosa que não coube em um único dia, e se estendeu para a

noite seguinte, seus amigos e familiares participaram emo-

cionados, assim como ocorreu na live em homenagem ao seu

amigo e também companheiro na luta pela Democracia,

Gilberto Gil.

Esses reencontros que Teresa promove em sua Casa/live

é também um tempo para o afago, o acalanto, o aconchego,

-

brar que não estamos sozinhos na luta por um Brasil plural,

diverso, inclusivo, democrático e amoroso. Como diz o sam-

ba enredo da Mangueira de 2019, uma História pra Ninar

Gente Grande, “é na luta que a gente se encontra”, eu ouso

atualizar este já clássico samba, com mais um verso: “é na

Casa da Teresa que a gente se reencontra”.

Page 200: Untitled - Editora UFMG

198

Encontros dentro de casa

Carlos Falci

Belo Horizonte, 4 de abril de 2020

Page 201: Untitled - Editora UFMG

199

Nas primeiras semanas dentro de casa comigo mesmo,

ou por outra, disse a mim mesmo um dia que, se não enten-

dia muito bem como ler poemas, provavelmente não saberia

de que deveria resolver coisas na quarentena, mesmo en-

tendendo racionalmente que este poderia ser um momento

justamente de suspensão da correria, de uma normalidade

-

to de fazer essa transição, de buscar outras formas de criar

tempos dentro do dia, de cuidar da escrita e de escrever.

uma amiga querida, Eliza Caetano, poeta de Belo Horizonte

que promove essa atividade presencialmente e que, impos-

sibilitada de fazê-la no mesmo formato, resolveu convidar

amigas e amigos para testar uma live de poemas. Bom, acho

que era mais uma reunião para lermos poemas uns dos ou-

para a primeira conversa, exibindo a tiracolo na tela uma

crônica sobre o som da baleia azul: turbilhonar. Tentei, ali

no meio de um grupo de poetas já tarimbadas e tarimbados,

Page 202: Untitled - Editora UFMG

200

transformar minha crônica em algo que seria um poema.

Havia muitos artigos, advérbios, coisas em excesso no texto.

Como agora talvez. Vejam esse talvez. Não seria necessá-

rio. Rendeu três frases para dizer que ele poderia não estar

aqui. Mas já está. Quatro frases, tirando esta.

uma pequena “ata” que criei com as frases derivadas dos

problemas de conexão e de encaixe dos atrasos de fala, pro-

vocados pelas interfaces e mediações que cada um utilizava

para dar sua cara à tapa na conversa. Me candidatei a estar

de casa. Olhando para a escrivaninha vi um livro encontra-

do numa das arrumações que havia feito já há um tempo,

em ver aquele livro, que nunca li, e o dia em que o encontrei

no meio de outros que havia herdado da biblioteca da minha

mãe, quando ela faleceu. Duas histórias vieram junto com

esse encontro, as duas relacionadas aos meus pais. Da pri-

meira vez que encontrei o livro, estive a ponto de jogá-lo

fora, havia um incômodo com uma coisa qualquer em “O pe-

queno príncipe”. Mas resolvi abrir o livro, que já não tinha

capa. E encontrei logo na primeira página uma dedicatória

que meu pai havia feito para a minha mãe.

Page 203: Untitled - Editora UFMG

201

Mariza

Este livro o autor o dedicou a Léon Werth, quando

ele era pequeno. Fosse eu o autor do livro, meu

amor, eu o dedicaria a você, que é a única pessoa

grande que sabe entender esta outra triste pessoa

grande que sou eu Pedro.

Me intrigou aquele “triste” em meio ao texto. Então meu

pai havia sido um homem triste? Me veio à lembrança, en-

tão, uma outra noite em que, em frente a uma estante cheia

de livros, conversando com minha mãe, quando eu tinha 28

ou 29 anos, perguntei a ela: “Mãe, e esses livros aqui que

estão dentro desses plásticos, são coleções completas, mas

ninguém nunca tirou dos plásticos, por que?”. Minha mãe

Page 204: Untitled - Editora UFMG

202

jogava paciência no computador, tomando uma cerveja.

Olhou para a estante, para os livros e, como quem bate a

são seus! Seu pai comprou para você abrir quando tivesse

vinte e um anos.”

Minha mãe acabou se esquecendo de me dizer isso. Na-

quele momento, não tinha mais sentido abrir qualquer dis-

cussão, eu simplesmente falei: “Mas então eu vou abrir os

plásticos, puxa vida.” Eram encadernações em papel bíblia,

a coleção completa da obra de três autores: Machado de

Assis, Graciliano Ramos e Dostoiévski. Fiquei muito impres-

sionado com o que via na minha frente. Já tinha lido algu-

mas obras de Machado e também de Graciliano, mas em ou-

tros livros, para o vestibular, ou para aulas no colégio. Mas

nunca havia chegado perto daquelas encadernações. Ali co-

mecei a descobrir então meu pai, entre os vermes de “Me-

mórias Póstumas de Brás Cubas”, vendo os olhos da cachor-

ra Baleia em meio às vidas secas e complexas que fazem do

meu pai, hoje, não mais um homem triste ao meu olhar, mas

alguém que imaginou que aos 21 anos eu teria alcançado a

maioridade da leitura, e poderia então me debruçar sobre

aquelas coleções.

encontros que ainda terei com ele.

Page 205: Untitled - Editora UFMG

203

A primeira vez que vi

a letra do meu pai

demorou cinquenta e um anos num livro

que não cheguei a ler

Não tem a capa, nem o nome na lombada

outro dia fui arrumar os livros presos

dentro de um armário na estante

sem nome o livro apareceu

Nunca consegui

esse tempo todo

no meio de outros livros

que em nada se parecem

E só faz dois meses

Agora o livro já tem cinquenta e quatro anos e

continua

a falar alguma coisa sobre uma pessoa

que não conheci

que dedicou a outra

um livro que não escreveu

Mas é a letra do meu pai

me esperando

Page 206: Untitled - Editora UFMG

204

A vizinha

Fabiana Salles

Copacabana, 14 de junho de 2020

Page 207: Untitled - Editora UFMG

205

Eu sempre amei estar sozinha. O que antes era motivo de

pena dos meus amigos, hoje é motivo de inveja.

Eu brinco que me preparei a vida inteira pra uma pan-

demia. Acumuladora, exagerada nas compras, tudo que era

ruim e que agora virou exemplo.

Aprendi a viver comigo mesma, porque só eu vou me tra-

tar do jeito que mereço. E aprendi a rir de mim mesma, por-

que o humor é talvez minha melhor qualidade. E é através

dele que me mantenho viva.

Mas aí, mega de boa por aqui, com uns surtos matutinos

naturais, porque né? Eu moro no país que elegeu Bolsonaro.

Impossível não acordar chorando. Temos um presidente que

não deu até agora uma palavra de acolhimento às pessoas

que perderam pessoas queridas.

Mas então...

Tô eu aqui, no meio de um surto (dos vários que aconte-

cem), comprando tudo que não tive coragem de me dar de

presente (sim, eu sou a melhor namorada que eu poderia

ter) e cara, o interfone de Janaína não para de tocar.

Quem é Janaína? Como assim? Minha vizinha de área.

Nunca conheci, mas tenho a rotina dela ´pronta na minha

cabeça. Ela tem uma cachorra que se chama Frida. Sei

Page 208: Untitled - Editora UFMG

206

porque já ouvi chamar. Sei também que ela toma banho no

Janaína pede muita comida, e coisinhas pra Frida

também.

Então começou uma disputa. Quem receber mais enco-

menda ganha. E aí comecei a anotar mentalmente as entre-

gas dela, e aí teve que ir pra parede. Virou um jogo muito

disputado. Eram muitas entregas. Eu até pensei que Janaína

tinha me ouvido falar, do jogo que criei, e aí entrou nele de

propósito. Porque do nada ela começou a jogar sério e rece-

bia muitas encomendas. E aí meu humor dependia dela.

E eu criei uma relação muito louca com as entregas da

minha vizinha. E sim, ainda penso que ela pode estar lá

pensando o mesmo, e jogando o mesmo jogo, e achando que

sozinha...

E então nós seguimos, eu e Jana (porque sim, já temos

apelidos), suportando e sobrevivendo a essa pandemia,

juntas...

E assim, talvez Janaína não seja o nome dela. Um dia fui

jogar o lixo fora e tinha uma caixa lá. E eu sem óculos li algo

como Jmatinsgct. E aí surgiu Jana, Janaína.

E todo dia eu coloco uma frase como: Eu, eu, eu Jana se f...

Ou a de hoje...

E tá difícil pra todo mundo, pra alguns mais fácil de

demonstrar

Page 209: Untitled - Editora UFMG

207

Page 210: Untitled - Editora UFMG

208

Odara

Cláudia Dias

Rio de Janeiro, 28 de junho de 2020

Page 211: Untitled - Editora UFMG

209

Ato 1: Escrever para organizar as ideias.

Escrever sobre esse período de quarentena, parece sim-

ples, entretanto quatro meses nunca pareceram tão longos

e ao mesmo tempo tão curtos. Sempre escrevi, colocar tudo

numa folha de papel, ou digitar, não seria difícil. Há anos es-

crevo, escrevo e apago, escrevo e guardo, escrevo para reler.

Acho que esse é um dos melhores exercícios que existe. No

início, eu acreditei que seria fácil passar por esse período,

escuro durante um mês, por causa de uveíte, depois mais

uns três meses para me adaptar a luz, isso em pleno verão.

Então, não seria tão difícil.

Ato 2: Lembranças ajudam.

Há treze anos, um aluno me ligou para desmarcar uma

aula, ele levaria uma cachorrinha que tinham jogado na

casa dele para Suipa. Pedi que ele passasse na minha casa,

só para eu dar uma olhada na cachorrinha, morávamos na

Tijuca, então era perto. Quando ele a soltou na sala, ela logo

se escondeu debaixo do sofá, assim que eu me deitei no chão,

ela veio e permaneceu esses treze anos comigo. Lembro de

Page 212: Untitled - Editora UFMG

210

ligar para o Marco e pedir para ele ir para casa, tinha uma

surpresa. Odara, Odara como a música do Caetano.

Ato 3: É uma pandemia.

Início de março, o coronavírus está na Europa, a situação

da Itália é cada dia mais assustadora, na Espanha também,

a França vai fazer quarentena... o vírus vai chegar ou já che-

gou no Brasil? O primeiro caso foi em São Paulo? Bom, por

via das dúvidas, já que a doença da mãe é no pulmão, vamos

nos antecipar. No dia primeiro de março cancelo tudo, mé-

dico, dentista, passo as aulas presenciais para o Skype. Dia

10 de março, vou ao mercado e faço compras. Tudo vai dar

certo. Na sexta-feira, dia 13 de março, pago a Ana adiantado,

pagando e que ela pode voltar assim que a quarentena acabar.

Ato 4: Cotidiano.

Enquanto acreditava numa quarentena, de 15 dias, 30

dias ou até mesmo 45 dias, tentei manter o ritmo. Acordar

cedo, me sentar para trabalhar, mas as notícias começaram

a me afetar. A preocupação com os que que tinham que estar

nas ruas, com os que amamos, com os que tem problemas

-

tão nas ruas. Ficar trancada e conectada, como agir? Como

Ato 5: Odara se foi!

Quinta feira, dia 23 de abril, dia de São Jorge para uns, dia

de Ogum para outros. Fiz feijoada, tomei cerveja. Decretei

feriado, não trabalhei. Na sexta-feira, aula de manhã cedo,

Aghata, minha aluna e prima, me pergunta pela Odara.

Page 213: Untitled - Editora UFMG

211

Respondo feliz que ela está ótima, ela estava brincalhona

como sempre. Terminada a aula, desço para preparar o al-

moço, estranho, cadê a Odara? Chamo e ela não vem... Vou

até a sala, ela está ali, deitadinha... dormindo... Mãe, a Odara

se foi! Só de olhar, eu sabia...ela estava numa posição confor-

tável, mas não a que ela dormia.

Ato 6: Fecha as cortinas.

Eu não queria escrever, ainda mais sobre pandemia ou

Odara, mas arrumando as coisas achei um texto do Millôr,

na Revista República de maio de 2000, sobre o amor pelo

seu cão. O texto se chama: Ao Igor, com Amor. O melhor do

ser humano. Então, anteontem, Maria Alice me manda um

presente, por enquanto por mensagem. Nesse período de

pandemia, encomendou um presente para mim, uma foto da

Odara que uma amiga bordou.

A quarentena continua, desde março, conhecidos, se fo-

ram, parentes se foram, Odara se foi... E a praia está lotada.

Ainda não sei se vou adotar outra cachorrinha e acho que

nunca darei um nome tão legal.

Agora, como diria Caetano: “Deixa eu dançar pro meu cor-

Qualquer coisa que se sonhara, canto e danço que dará...

Page 214: Untitled - Editora UFMG

212

O constrangimento de sentir medo e

tristeza entre amigos

Claudiane Torres da Silva

Rio de Janeiro, 3 de maio de 2020

Page 215: Untitled - Editora UFMG

213

Eu me lembro do primeiro constrangimento em tempos

de pandemia quando manifestei meu medo num grupo de

WhatsApp de amigos. Semanas antes do isolamento social no

Rio de Janeiro, nas primeiras notícias alarmantes, ainda in-

ternacionais, eu escrevi num grupo de amigos que estava as-

sustada com o novo vírus e todos, com exceção da Márcia, dis-

seram que eu estava sendo alarmista e exagerada. Márcia

também estava assustada. Todos os homens do grupo diziam

que nós duas éramos fatalistas e estávamos equivocadas pelo

pavor que estávamos manifestando naquele momento. Que

não era para tanto. A partir dali não sentimos mais vontade

de falar daquele assunto naquele grupo. Os dias foram pas-

sando, as notícias piorando e alguns amigos com total acesso

às informações insistiam em dizer que não era para tanto.

Quando a morte já estava no país e os infectologistas já

estavam nos noticiários passei a enfrentar outros medos. O

medo do isolamento e da solidão desse momento. Uma se-

porque não me sentia tão só, mas ainda convivia diariamen-

te com o medo de pegar o vírus ou ver meus pais doentes.

O país foi sendo soterrado pelos impactos do novo vírus, da

Page 216: Untitled - Editora UFMG

214

péssima política de saúde para enfrentar o problema, o medo

aumentava e quando eu desejava dividir esse medo com ou-

tros amigos em redes sociais deparei-me com mais um cons-

trangimento. O silêncio. O medo era real para todos, mas ele

não era bem-vindo em determinados grupos que como num

nada que fosse negativo. Nenhuma notícia ruim, nenhuma

reclamação do que estávamos vivendo, um absurdo atrás do

outro e nenhuma novidade negativa deveria ser dita. Elas

não eram bem-vindas entre amigos. Ali só boas notícias e

good vibes poderiam entrar.

Não faz muito tempo, ainda na casa dos meus pais, ten-

tando assistir os noticiários fui impossibilitada por um car-

ro de som daqueles que fazem a festa acontecer, sabe? Era

algum vizinho num prédio próximo que estava fazendo ani-

versário e alguém contratou a festa à distância. Dos males o

menor. Pior se a festa fosse presencial e com aglomeração.

Mas o fato me marcou porque inicialmente eu não me inco-

-

tos aquele som iria cessar. Assim pensei. Mas não. A música

de batida alto astral era altíssima, uma mulher gritando o

nome do felizardo no microfone e cantando parabéns sim-

plesmente não parava. Eu pensei “mas que desrespeito com

quem tem criança pequena e quer dormir”. E a partir de en-

tão, coloquei um fone de ouvido e esperei passar. No dia se-

guinte, uma amiga publicou num grupo de WhatsApp uma

matéria jornalística que constatava o aumento do serviço

do tal carro de som em tempos de pandemia. Eu manifestei

minha reclamação e ouvi um “Relaxa! Não leva tudo muito

a sério”. Foi nesse momento que eu me dei conta dos vários

constrangimentos que passei ao simplesmente manifestar

medo, tristeza ou insatisfação entre amigos. É como se tudo

Page 217: Untitled - Editora UFMG

215

tivesse tão ruim que você, uma amiga, não pudesse trazer

mais uma negatividade. Seja feliz! Fale coisas boas! Não me

dê notícias ruins! Esse era o recado em vários grupos dife-

sem me sentir constrangida entre amigos.

Page 218: Untitled - Editora UFMG

216

Carta de Capoeiras

Eudes Belo

Capoeiras, Pernambuco, 27 de junho de 2020

Page 219: Untitled - Editora UFMG

217

Prezada Andrea, como vai?

De longe, meu afetuoso abraço!

Escrevo-lhe para partilhar experiências desse tempo di-

ferenciado em que vivemos, bem como no intuito de saber

suas notícias e ideias. Como sabes sou inquieto e gosto de

provocar, assim aproveito estas linhas para lançar algumas

indagações que me seguem por estes dias.

-

xo de isolamento. A distância por aqui pareceu-me sempre

uma rotina em vários aspectos. Todavia, como “tudo muda

o tempo todo no mundo” penso que a permanência aqui,

nesse contexto atual, tem lá suas vantagens. Isolado, reti-

rado, guardado num espaço que sempre me representou um

“exílio”, por incrível que parece está me ajudando a belos

encontros comigo mesmo, e mesmo à distância, com outras

pessoas.

Numa primeira fase – que chamo de “provocações de ou-

trora” – foi um momento de muita informação, desencanto,

paralisia. Tentei retomar leituras, começar algo novo e não

conseguia. Em meio a pulverização de informações, me vem

à lembrança da minha psiquiatra em insistir que deveria

retomar o uso da Ritalina. Ao amanhecer, estava eu com a

Page 220: Untitled - Editora UFMG

218

“caixa-mítica” – seria a de pandora? Indaguei! – contendo

algo que poderia ajudar-me a “despertar”.

Em poucos dias, amiga, com a ajudinha da química que

logo reage nas comunicações cerebrais, e, também algumas

-

ra a fase 2 que denomino de “provocações do agora”. As-

sim, consegui aos poucos mudar velhos hábitos – e como são

difíceis de mudar – diminui de tempo junto a TV e celular,

mudanças com alimentação, retorno a leituras e, até, arris-

car alguns exercícios.

Embora com a constância desses “pequenos avanços”, os

quais ouso denominar de “cuidados de si” a la Foucault,

tenho pensando na inconstância desse presente, nesse tem-

po aberto a todas as possibilidades... Aí vem indagações/

provocações: Será que vou manter esse ritmo de “novos”

hábitos? E como não pensar também; vamos todos mudar

de hábitos? Quais? E aqueles velhos hábitos de consumo?

detalhes de cada encontro? Os afetos? As sensibilidades?

Ou pensar assim são apenas devaneios de uma sonhador?

Será que tudo passará e voltaremos as mesmas relações?

As mesmas fotos clichês de viagens, comida, academias? ...

Será que vamos regressar “àquele normal”?

Amiga, essas são, portanto, o que nomeio de “provoca-

ções do porvir” já que nos resta apenas a ESPERANÇA.

Sim. Esse conceito cristão é o que temos de melhor para

vislumbrar um futuro possível, e quiçá até diferente daque-

le “velho passado”. SABER ESPERAR! Chega a ser o meme

do momento, pois para um ansioso como eu, como também

para todos tornou-se imprescindível à sobrevivência, não

apenas dos nossos corpos, mas também da psique, das re-

lações pessoais, dos trabalhos, da economia... e por que não

Page 221: Untitled - Editora UFMG

219

das cidades, dos gestos, das sensibilidades...? Já que prefe-

rimos ser “essa metamorfose ambulante” que ter “aquela

velha opinião formada...”

São muitos dilemas!!!

Encerro por aqui no anseio desta encontrar você e seus

com saúde e alegria. E na esperança – lá vem ela mais uma

vez – de logo podermos dividir belos momentos como tantas

Abraço afetuoso no Pedro, no Antônio e no Beto.

Me escreva tão logo possa!

Do seu amigo, Eudes.

Page 222: Untitled - Editora UFMG

220

Sem título

Fernando Cardoso

Belo Horizonte, junho de 2020

Page 223: Untitled - Editora UFMG

221

Ficha Técnica: Pastel oleoso sobre papel cartão, 18 x 20 cm

Page 224: Untitled - Editora UFMG

222

O mal de Guillaume Le Bé

Henrique Lee

Cuiabá, 5 de junho de 2020

Page 225: Untitled - Editora UFMG

223

A mãe e o menino aguardam na sala de espera do Pronto

Atendimento. A mãe escuta a voz rouca do médico chamando

a sua senha de dentro do consultório 12. A mãe e o menino

trocam olhares e se levantam, ambos entram na pequena

sala e se acomodam nas cadeiras em frente à mesa do médi-

co que terminava os registros no prontuário do paciente da

consulta anterior.

Dispensando qualquer tipo de cerimônia de apresentação,

a mãe partiu direto ao assunto:

Sem levantar os olhos de um papel onde lançava hierógli-

fos enigmáticos o médico perguntou:

— Mas o que é que ele tem?

— Bom…, disse a mãe titubeando, isso não é fácil de dizer,

mas o senhor com certeza verá por si mesmo.

-

— Então, rapaz, o que é que você tem?

— “Não consigo dormir, nunca mais. Ando de um lado para

outro, canso o corpo enquanto a língua segrega uma saliva

exterminadora.” (Al-Berto, Horto de incêndio, p. 66)

Page 226: Untitled - Editora UFMG

224

— Estranho… ao mesmo tempo soa muito familiar…, disse

o médico, mais para si mesmo do que para o menino e sua

mãe.

— Está vendo, doutor, eu não disse?!, exclamou a mãe

como que tentando mostrar algo invisível com um gesto das

mãos.

— Hmm… você consegue descrever outros os sintomas

médico.

— “Eu não posso fazer isso seriamente: mas o mal que so-

fro é terrível, de viver no fundo dessa confusão malsã e in-

consciente das coisas.” (Stéphane Mallarmé, Igitur, p. 113).

— Ora, se você não pode me dizer “seriamente” o que está

sentindo, como espera que eu possa “seriamente” lhe aju-

dar? Ademais, se é assim, como devo considerar a preocu-

pação da sua mãe? Como algo não-sério, por acaso? Escute,

rapaz, você já é bem grandinho e tenho certeza que viu que

a sala onde vocês estavam esperando esta consulta está lo-

tada de gente precisando “seriamente” de atendimento. Eu

não tenho tempo para brincadeiras, disse o médico elevando

o tom da voz, sem tentar esconder os sinais de exasperação.

-

riamente” eu preciso que a senhora me forneça o maior

número de detalhes possíveis. Como é que isso começou?,

perguntou o médico virando-se para mãe, ignorando tempo-

rariamente a presença do menino.

— Pois sim, doutor, tudo começou exatamente uma se-

mana atrás. Ao que tudo indica, há uma relação direta com

um acidente ocorrido na escola. A bibliotecária da Escola de

que ela não se lembra mais exatamente qual, mas cuja loca-

lização o sistema indicava estar na estante K. Passado um

Page 227: Untitled - Editora UFMG

225

breve intervalo de tempo, ela escutou um grande estrondo.

Ao se aproximar da fonte do barulho ela viu que a estante

K inteira havia desabado, levando ao chão os livros entre

o 811. R797h.1997 até o 981. H722r. 1984. Debaixo daque-

la montanha de livros ela suspeitou que pudesse estar meu

-

combros o seu corpo desmaiado. Ah, sim, considerando que

o doutor pede para que eu dê o maior número de detalhes

possíveis, devo acrescentar ainda que a bibliotecária men-

cionou que dentre a montanha de livros havia um livro que

não pertencia à estante K e que pela lógica não deveria estar

ali. Trata-se, segundo a bibliotecária, de um título cataloga-

informação poderia lhe ajudar. Seja como for, assim que fui

comunicada do ocorrido, me dirigi imediatamente para Es-

cola e encontrei-o já acordado deitado na maca da enferma-

ria. Estava tão assustado que quase nem notou que eu havia

chegado. Perguntei a ele se estava sentindo dor ou qualquer

coisa diferente, ele permaneceu em silêncio por alguns ins-

tantes, depois levantou os olhos cheios de preocupação e

– com as quais se morre de rir, e há coincidências e causali-

dades com as quais se morre.” (Enrique Vila-Matas, O mal

de Montano, p. 17)

assim como o senhor está vendo. Eu sei que o certo seria ter

não houve algum tipo dano imperceptível, mas nós não te-

mos plano de saúde. O senhor sabe, essas consultas custam

uma fortuna para nós que temos que pagar pelo particular.

Além do mais, eu tinha esperanças que pudesse ser apenas

um estado temporário de choque emocional provocado pelo

acidente. Excetuando a sua aparência de assustado e sua

Page 228: Untitled - Editora UFMG

226

expressão perdida, eu não vi nada de diferente nele. Quis

-

lhor. Mas pelo que o senhor pode ver, doutor, parece que não

é algo tão simples assim.

— “Doutor, deixe-me morrer.” (Franz Kafka, Um médi-

co rural, p. 16), disse o rapaz impaciente, interrompendo a

conversa da mãe com o médico, puxando-o pelo jaleco para

obter a sua atenção.

— “Ora essa, estou fazendo papel de bobo aqui.” (Molière,

O doente imaginário, p. 99), respondeu o médico entre os

dentes afastando as mãos do menino e sacudindo do jale-

co as hipotéticas ameaças invisíveis deixadas por aquelas

mãos suadas e suplicantes.

Sem se dar conta dos sinais inequívocos da sua própria

alteração o médico olhava alternadamente para as mãos e

para o rosto do menino, talvez na expectativa de que o me-

ser uma peça minimamente aproveitável naquele ridículo

quebra-cabeças mental que o médico montava na tentativa

-

saiou iniciar uma frase, o médico esbugalhou os olhos na es-

perança de colher a tão aguardada revelação, mas sua boca

trêmula apenas emitiu alguns sons incompreensíveis. Frus-

trado, o médico agitava os braços enquanto dizia:

— “Vamos, continue, merda!” (Lacan, Seminário 17,

p. 192)

Aquela cena toda era inútil, o menino trazia um sem-

blante sofrível, talvez quisesse, mas não conseguia falar. Só

podemos especular, nunca saberemos. Evidentemente, al-

guém que não está conseguindo falar não será capaz de nos

esclarecer se não consegue ou simplesmente não quer falar.

Page 229: Untitled - Editora UFMG

227

— “É grave o seu estado? É realmente grave? (…) Há

alguma esperança?” (Lúcio Cardoso, Crônica da casa as-

sassinada, p. 78), perguntou a mãe ávida por uma resposta

já estava doente.

— “Se eu tivesse assistido mais L.A. Law e lido menos

Dostoiévski, saberia o que está acontecendo aqui.” (Philip

Roth, Operação Shylock: uma confissão, p. 156), respondeu

o médico surpreso com a própria resposta.

— “O senhor está se sentindo bem, doutor?” (Rubens

Fonseca, O seminarista, p. 24), perguntou a mãe notando

algo diferente no médico, mas não ainda em si mesma.

— “Eu me sinto um pouco estranho.” (Samuel Beckett,

Fim da partida, p. 42) -

tendendo tudo, ainda que tarde demais.

assim que descobrimos que não existe distância segura en-

tre narrador, leitor, autor e personagens capaz de evitar o

contágio do terrível mal de Guillaume Le Bé. “O futuro está

demente: estamos todos contaminados.” (Caio Fernando de

Abreu, Onde andará Dulce Veiga?, p. 79)

Page 230: Untitled - Editora UFMG

228

Sexta-feira da Paixão

Marise da Silva Mattos

Florianópolis, 16 de junho de 2020

Page 231: Untitled - Editora UFMG

229

Era dia 10 de abril, Sexta-feira santa. O Rio de Janeiro ti-

nha registrado o primeiro caso de infecção por Covid-19 há

pouco mais de um mês e o primeiro óbito, de uma senhora

de 63 anos em Miguel Pereira, há cerca de três semanas. A

transmissão comunitária já era reconhecida na cidade e as

recomendações para o isolamento social e domiciliar já esta-

vam em vigor. Ninguém mais saía ou entrava na casa de quem

-

çado a quarentena e terminados os encontros, as visitas e os

abraços. Novas palavras e expressões incorporavam-se aos

poucos ao vocabulário das pessoas: coronavírus, Covid-19,

epidemiologia, higiene das mãos, pandemia; enquanto ou-

gel, papel higiênico, respiradores, leito de UTI.

Tínhamos combinado de véspera com a família – já que

não seria possível fazer festa – que amigos e parentes envia-

riam mensagens de texto ou de vídeo para cumprimentar

o patriarca, que estava completando 89 anos neste dia,

Sexta-feira da Paixão. Pai de uma grande amiga, ele era uma

pessoa bastante carismática e respeitada pelos familiares,

sempre muito comunicativo e galanteador – como minha

Page 232: Untitled - Editora UFMG

230

e parentes, como vinha fazendo nestes últimos dias através

do celular, para confraternizar e celebrar a vida.

Não era possível fazer visita. Nenhum tipo de visita. Nada.

Nem se você fosse médico.

Acostumada a acompanhar o pai em seus problemas de

saúde e a ter trânsito facilitado no meio hospitalar por ser

médica, seu primeiro impacto, ao deixar o pai na Casa de

Saúde no dia 31 de março, foi ter sido impedida de entrar, de

instalado e de se despedir dele. Não era a primeira vez que

o encaminhava para internação nessa Casa de Saúde, mas

era a primeira vez que acontecia um absurdo desses. Há

cerca de uma semana, desde que começaram os primeiros

sintomas respiratórios, era ela que vinha fazendo o acom-

panhamento dele em casa com o auxílio das cuidadoras,

controlando a evolução do quadro com uso do antibiótico,

providenciando o Bipap para melhorar a respiração, orien-

tando quanto às precauções de contato e uso de máscara,

pois existia a possibilidade de ser infecção pelo Covid. Agora

nada disso mais importava, ela era simplesmente ninguém,

ou melhor, era vista apenas como uma senhora acima de

sessenta anos, considerada ao mesmo tempo, contactante e

grupo de risco. De nada valia seu CRM ou o seu parentesco.

-

mento. Médicos particulares também. O movimento estava

ao caso pudessem parar para dar informações: será que con-

seguiu dormir, teve febre hoje, conseguiu se alimentar? A

conduta terapêutica estaria adequada? No entanto, a famí-

lia não deveria se preocupar, pois a equipe do serviço social

faria contato diariamente para dar notícias. Como se isso

Page 233: Untitled - Editora UFMG

231

bastasse. Jamais havia sentido tamanho distanciamento.

Tudo muito esquisito.

entrada do aparelho celular na UTI e seu pai então fez liga-

ções para várias pessoas, bastante animado. No dia seguinte

pela manhã, outra conversa animada por vídeo, desta vez

com a participação da namorada dele. Com a experiência

de internações anteriores, ele encarava mais essa com seu

costumeiro bom humor. Riram muito os três assim juntos

virtualmente. Não poderia esperar, porém, que uma hora

depois, chegasse a notícia que uma piora súbita na oxige-

nação tivesse obrigado a equipe a colocá-lo no respirador.

Silêncio. Que doença estranha era essa?

Fora do hospital, enquanto se passavam os dias, a preocu-

pação se voltava para as cinco pessoas que estiveram com

ele em casa, as quais aguardavam o resultado da testagem

para o Covid. Todas estavam sintomáticas, inclusive minha

amiga médica. Ela, apenas com sintomas respiratórios leves

era Covid. Entretanto, a preocupação dela estava voltada

-

zer cumprir as recomendações de isolamento social e cui-

-

vam o resultado dos exames que não chegavam nunca. Uma

das cuidadoras era idosa, a outra tinha uma criança de três

para se protegerem cada uma virava a cabeça para um lado

com uma sobrinha asmática, que foi impedida de retornar

para casa pela própria mãe, porque não havia permitido que

ela saísse, de modo que foi acolhida pela tia. Nessa ocasião

Page 234: Untitled - Editora UFMG

232

não se tinha ainda o resultado da PCR do paciente, mas o pa-

não deixava dúvida que ele estava com a Covid-19. Poste-

riormente, todos resultaram positivos para Covid-19.

Passados quatro dias de internação os parâmetros ven-

tilatórios mostraram sinais de recuperação e aos poucos

foram realizadas as tentativas para retirar o respirador, o

que foi conseguido em três dias, alcançando estabilização do

quadro clínico e laboratorial. Uma alegria e uma esperança

de vitória, embora estivesse ainda recebendo oxigênio por

cateter e se mantivesse sonolento. Foi então que na véspe-

ra do seu aniversário combinamos de enviar mensagens de

texto e de voz, que seriam transmitidas pelo pessoal respon-

sável por este serviço, criado excepcionalmente neste perí-

odo pela Casa de Saúde. Esse era o único canal que se fazia

possível. Tínhamos notícias de que pessoas idosas poderiam

permanecer sonolentas, num estado chamado de síndrome

do congelamento e despertar subitamente, como se tives-

sem adormecido no dia anterior. Quem sabe que ouvindo os

sentiria animado para despertar? (…)

Não houve funeral. Não era permitido aglomeração de

pessoas, nem os costumeiros abraços de conforto, nem ve-

lório. A despedida do corpo se deu de uma forma totalmente

diferente, numa tenda aberta, num lugar muito bonito no

Cemitério da Penitência, no Rio de Janeiro, com a presença

oração com a família e o corpo foi encaminhado para a cre-

mação. Mais tarde, alguns familiares se reuniram num culto

virtual com um pastor conhecido, que foi gravado e enca-

minhado para os amigos. Foi a oportunidade da família se

confraternizar e programar, para quando for possível um

Page 235: Untitled - Editora UFMG

233

encontro de fato, o sepultamento da urna funerária no jazi-

go da família.

De madrugada ele havia apresentado piora do quadro res-

piratório, hemorragia digestiva, voltou para o respirador,

foi transfundido e, às 10:30h da manhã, teve uma parada

cardíaca e se foi no dia do seu aniversário, uma Sexta-feira

da Paixão.

Embora minha amiga já soubesse que seu pai era portador

de várias doenças de base e que, toda vez que apresenta-

va alguma descompensação com necessidade de hospitali-

zação, havia o risco que viesse a falecer, não esperava que

fosse viver essa experiência de forma tão inusitada. O que

causou estranheza para ela não foi propriamente o fato dele

vir a óbito, mas sim o fato de não ter podido abraçá-lo na

despedida.

Page 236: Untitled - Editora UFMG

234

(3D)

Rafo Castro

Rio de Janeiro, 15 de junho de 2020

Page 237: Untitled - Editora UFMG

235

Page 238: Untitled - Editora UFMG

236

Botão

José Lopes Agulhô

Santa Luzia, Minas Gerais, 23 de março de 2020

Page 239: Untitled - Editora UFMG

237

Estou dando um tempo para que o tempo retempere ou-

tro tempo. Tempestivamente, urgentemente. Assim mesmo,

reiteradamente.

outros quereres, outros pensares, outros sentires.

Ontem passei a manhã em reuniões via Skype com clien-

tes. Estou em Santa Luzia, em minha morada rural onde o

tempo difere muito de BH, lugar em que vivo a maior parte

de minhas horas.

Próximo da hora do almoço resolvi me vacinar contra a

-

te me disse que a vacinação seria interrompida para que

12:00h. Que eu voltasse às 13:30h.

Fui a minha casa e almocei. Às 13:20h estava de volta

ao PA. Na minha frente doze pessoas aguardavam o pico.

O tempo médio de aplicação foi calculado em 4 minutos. As

13:44h, tendo vacinado seis pessoas que estavam a minha

minha frente e 15 pessoas atrás), que a vacina tinha acaba-

do e que a gerente iria buscar mais.

Page 240: Untitled - Editora UFMG

238

Durante os cinquenta minutos que se seguiram até o retor-

-

ca e miraculógica, houve um frisson geral entre os velhinhos.

— Este é o Brasil!

— Um absurdo!

— É assim que somos tratados!

Alguns muito alterados com seus dedos em riste. Incita-

vam outros que chegavam ao PA adensando a aglomeração.

Na recepção um cartaz convidava para a temperança: “Desa-

catar servidor público no exercício de suas funções é crime”.

Saí de lá, vacinado também contra raiva, por volta das

15:00h correndo para casa. Estava agendado para outra

reunião exatamente neste horário.

Às 17 e pouco fui para o jardim de minha casa e me

deparei com um botão que apontava majestoso para cima.

desejei que ele se tornasse rosa no tempo que eu suportasse

acompanhar o processo.

A gente sabe que não é assim o tempo.

Hoje pela manhã, por volta das seis horas, voltei ao botão.

-

paro, ensaia o perfume e a beleza que deixará para o tempo

enquanto durar.

Eu, comigo, paz e ciência.

Page 241: Untitled - Editora UFMG

Flores na pandemia

Lucilia de Almeida Neves Delgado

Brasília, junho de 2020

Page 242: Untitled - Editora UFMG

240

Pés no chão. Regato com pedregulhos no leito. Enxurra-

da a descer pelas bordas das calçadas. Rodopios ao som de

música para dançar. Corações disparados e rostos colados.

Árvore gigantesca lotada de mangas. Bola a zunir no jogo de

queimada. Chão de profunda piscina azul, translúcida. Amo-

reira lotada de doçuras. Mãos dadas no cinema.

No tempo em que começamos a tecer memórias, essas vi-

vências costumam ser lembranças de prazeres. A saudade,

que é ausência, torna-se saborosa. Confortadora.

Nas fases difíceis da vida, a busca por prazeres vividos,

reais ou imaginados, torna-se ato consciente, que se entrela-

arrepiantes, risonhos, aconchegantes, sonoros, estimulan-

tes, não vividos, sonhados.

A tessitura de desejar, em sua vastidão e profundidade,

nutre-se por odores, cores, tristezas, alegrias, sabores. Em

sua plural dimensão de fertilidade ocupa o pensamento.

Transforma-se em devaneios inspiradores do mais lembrar.

Desejos podem ser pequeninos, mas se agigantam se rea-

lizados e ferem o viver quando não alcançados. Os mais be-

los e prazerosos são os desejos férteis e os desejos amorosos.

Os amorosos, quando sentidos, são essenciais à formação de

Page 243: Untitled - Editora UFMG

241

pessoas bem resolvidas. De seres humanos íntegros, capa-

zes de enfrentar novos tropeços na trajetória e tormentas

existenciais, sem perder o prazer de viver.

Nunca tive medo do prazer. A religião em que fui criada,

muito insistia em dores, pecados, medos. Não chegou a me

assustar, pois na minha família a dimensão da dor não era

tida como essencial à fé. Cerimônias e procissões como as

das Sextas-feiras da Paixão eram para nós mistério e be-

leza. Ou quem sabe? Beleza no mistério. Cresci, sentindo o

prazer como alegria natural. Essa foi a maior benção da mi-

nha vida. Um legado que busco cultivar em homenagem aos

que me ofertaram alicerces do bem-viver.

Mas, mesmo envolta por segurança amorosa, nem sem-

medo sobrevinha e dominava, sem dó, meus sentimentos.

Ainda sonho com as aulas de trigonometria que me faziam

pequena e triste. Acabrunhada. Encolhida. Nessas horas

buscava atalhos para rever e viver a luz.

Viajava, com todos os sentidos em prontidão, por atlas de

imaginação. Trazem à retina, cenários, relevos, costumes,

climas, oceanos. Ah! As multiplicidades, profundidades e

prazer do mergulhar!

Sempre gostei de mergulhar os ouvidos, o corpo, a pele, o

pensamento, os olhos e os sentimentos em poemas, roman-

ces, canções, músicas instrumentais, natureza de vegetação

variada e límpida água corrente.

Aprendi, à medida que fui colhendo anos, que mergulhar e

voar podem ser prazeres interligados. São momentos únicos

em que a sensação de viver não se farta. Queremos sempre

revivê-los. Podem até virar sonho ou imaginação, tatuagens

Page 244: Untitled - Editora UFMG

242

na alma que os revive. Podem ser eternos se transformados

As crianças não sabem que é assim, mas assistem anima-

ções repetidas vezes, retornam ao mesmo recanto sempre

-

dos. Reiteram rituais. Pois, desde o nascimento, vivemos em

-

rituais a vida é nada. Fia nebulosa.

Ah, os rituais! Existem aqueles que são pura dor, mas na

fartura de dores que hoje vivemos o melhor a fazer é a eles

contrapor a beleza de outros rituais. Os prazerosos.

A vida não é retilínea e muito menos cartesiana. Não são

poucas as vezes que caminhamos por vias tortuosas e terre-

encolhidos. A aridez do chão, do ar, dos lugares, das pala-

vras, das violências, das perdas, dos fatos e ambientes nos

-

dos, congelados, inoperantes, desalentados. Doentes de dor.

Aprendi cedo que sem projeção de esperança não há vida

nos tempos de dor, é preciso cultivar alegrias. Podem ser

simbólicas. O importante é não se deixar de fazer a seme-

adura do bem. Não deixar perder o que temos de humanos.

Buscar força nas lembranças dos prazeres dos tempos

dos pés no chão e das frutas colhidas nas árvores e trans-

formá-las em caldo de esperança é vital. É fazer do tempo da

semeadura, fertilidade capaz de vencer tempestades e reen-

contrar o tempo da colheita.

Page 245: Untitled - Editora UFMG

243

Nossa Senhora, são lembranças da minha infância que, nes-

te tempo insólito que a humanidade está vivendo, tem feste-

jado meus olhos com belas passagens. Olhos que estão quase

só a enxergar os tons cinzas das lamas, das mortes, dos des-

respeitos, das covas coletivas, das dores dos seres humanos,

das palavras gélidas e cortantes, da impotência, dos medos,

da desesperança.

no início do isolamento que a pandemia nos impõe, tive uma

ideia. A de construir um ritual de beleza para ela, que ama

a natureza e o belo. Passei, usando a tecnologia das redes

-

capaz de viver, com alguma graça, ao menos nestes dias de-

Decidi enviá-las para pessoas que alcanço nas minhas re-

des sociais. Penso que construí um ritual de beleza, prazer

dos desejos, do prazer e da esperança que insisto em não

perder.

Page 246: Untitled - Editora UFMG

244

o sol que me cabe

Laura Guimarães Corrêa

Belo Horizonte, maio de 2020

Page 247: Untitled - Editora UFMG

245

Page 248: Untitled - Editora UFMG

246

Page 249: Untitled - Editora UFMG

Um sábado de sol

Maria Paula Nascimento Araújo

Sábado, 13 de junho de 2020

Page 250: Untitled - Editora UFMG

248

Hoje amanheceu um sábado de sol, de céu muito azul, típico do

outono carioca.

Daqui a três dias completo três meses de quarentena.

Estou cumprindo minha quarentena sozinha. Já há alguns anos

para estudar e trabalhar com povos indígenas. Fiquei só e fui me

acostumando a essa condição que para mim era nova. Até então

tinha morado com a família, em comunidades, com o pai do meu

uma nova etapa da vida “habitacional”, passei a morar só. E desco-

bri as delícias e as agruras dessa nova condição. E gostei. Mas, na

hora que quisesse, podia ligar, combinar, encontrar os amigos, ver

meus irmãos; podia pegar um avião e visitar o Felipe. Agora, nesta

o meu espaço, a minha vivência na quarentena.

Tento viver minha quarentena da melhor forma que me é pos-

sível. Faço ginástica com regularidade. Voltei a cozinhar, reapren-

di velhas receitas e me aventurei em novas. Adotei o conceito de

“quarentena produtiva” que foi sugerido por vários colegas da

UFRJ, onde trabalho. A ideia era que, mesmo que não conseguís-

semos dar aulas regulares, procurássemos desenvolver atividades

on line com os alunos. Me empenhei nisso. Com ajuda de meus

Page 251: Untitled - Editora UFMG

249

bolsistas, instalei a plataforma zoom no meu computador e pas-

sei a fazer reuniões com meu grupo de pesquisa e com turmas de

alunos da pós-graduação. Passei também a marcar encontros com

amigos pelo zoom, onde brindávamos levantando nossos copos e

os aproximando da tela do computador. Duas vezes por semana,

ponho short, camiseta, tênis e boné, máscara e um vidrinho de ál-

cool gel na pochete e saio bem cedinho pra caminhar e correr no

entorno do meu quarteirão. Cruzo com pouquíssima gente, outros

caminhantes e corredores, ou pessoas passeando com cachorros.

Este é um momento de enorme felicidade para mim; olho o céu, a

rua, os postes, os jardins, escapo por breves 40 minutos da minha

quarentena.

que está tentando, há alguns meses, viver de forma positiva essa

quarentena.

Mas acho que não estou conseguindo. Não está dando certo. O

meu dia segue normalmente, com as tarefas e atividades que eu es-

tipulei. Mas a noite, tenho pesadelos. Sonho que estou fugindo, que

estou sendo perseguida, sonho que tento escapar de alguma coi-

sa que nunca é clara. Sonho com perigo; com ameaça. Com terror.

Acordo com frequência no meio da noite, para ir ao banheiro ou

beber água, o que faço com uma sensação de mal-estar, de ameaça.

No dia seguinte, ao acordar, no esforço de retomar a rotina diá-

ria esse mal-estar vai se dissipando e eu vou reencontrando o meu

esforço em viver, de forma positiva, a “quarentena produtiva”.

Mas é um enorme esforço. Que pode se esvair em alguns

segundos.

Penso na minha mãe. Ela está internada há mais de um ano, por

-

pirar sem um aparelho. Teve que fazer uma traqueostomia e por

esse orifício na garganta vai o tubo respiratório que lhe bombeia

oxigênio. Ela está lúcida. Às vezes sua condição melhora um pouco,

ela consegue sentar na cadeira de rodas e a levam para passear

no solário da clínica, para alguma atividade junto com os outros

idosos. Mas isso foi interrompido agora por causa do coronavírus.

Page 252: Untitled - Editora UFMG

250

protegido, mas na verdade, privado de seus poucos momentos de

interação social e de vida. As visitas dos familiares também foram

suspensas, pois eles podem levar o vírus da rua para a clínica. Con-

segui uma permissão especial para visitá-la um dia. Passei uma

saber quando poderia vê-la de novo, ela me disse (quer dizer, bal-

buciou com os lábios, não pode falar por causa da traqueostomia,

estou muito tranquila”. Saí de lá com o coração na boca.

Penso no meu país. Penso na tragédia que estamos vivendo, o

governo Bolsonaro, o governo de Tãnatos. Penso na dor que está

sendo para a minha geração, que se empenhou na luta contra a

ditadura e na construção de uma democracia inclusiva, viver esse

retrocesso, essa expressão de autoritarismo, de culto à violência,

-

homofobia. Penso no show de horrores que é esse governo, o presi-

dente e seu ministério.

Penso na pandemia. No que a Natureza quer nos ensinar com

esta experiência tão dura. Será que conseguiremos aprender al-

guma coisa com isso? Será que há alguma chance de que isso tudo

nos torne melhor?

Sinto saudades do mundo, quero a vida de volta. Sinto saudades

das coisas mais simples. Correr no aterro, parar naquele ponto em

que é possível ver o Cristo Redentor e o Pão de Açúcar e tomar uma

água de coco. Caminhar no calçadão de Ipanema e dar um mergulho

no Arpoador, de preferência no domingo quando a pista está fechada

para os carros. Descer para a pracinha da General Glicério, comer

bolinho de bacalhau do Mazaroppi, tomar uma cerveja super gela-

da, encontrar os vizinhos e curtir a roda de samba e de choro que

acontece todo sábado. Saudade de poder comprar uma passagem

de avião para conhecer a nova casa em que Felipe está morando

em Belém do Pará.

Page 253: Untitled - Editora UFMG

251

Penso que nunca esquecerei essa quarentena. A pandemia, o go-

verno Bolsonaro, a longa doença de minha mãe. Sempre vou me

lembrar dessa angústia e dessa dor. A dor de ver o desmonte do

meu país e de todos os projetos que minha geração construiu; a dor

e impotência de ver os números de óbitos subindo diariamente de

forma vertiginosa; a angústia de acompanhar a doença de minha

mãe.

Mas não é assim que eu quero terminar esse texto. Escolho a

pulsão de vida. Acordo cedo. Coloco um short, tênis, camiseta, ócu-

los, boné e máscara; levo um vidrinho de álcool gel comigo e saio

contente. Volto pra casa, coloco toda a roupa na máquina de lavar,

tomo banho. Sento em frente ao computador, agendo uma reunião

com meu grupo de pesquisa e um encontro com amigos para a sex-

ta-feira à noite. Tudo pelo Zoom.

Page 254: Untitled - Editora UFMG

252

Cineclube e trabalho

Luiz Henrique Assis Garcia

Belo Horizonte, 12 de junho de 2020

Page 255: Untitled - Editora UFMG

253

No início do período de isolamento social, em março, eu

estava morando temporariamente na casa da minha mãe,

enquanto procurava apartamento depois de ter me separa-

vários problemas pulmonares, adotamos uma quarentena

-

cil de cumprir. Para ajudar a passar um pouco melhor esse

tempo e ter um assunto diferente para tratar entre nós cria-

nacionais, eu 15 estrangeiros, combinamos de assistir, eles

da casa da mãe, eu com a minha mãe, e depois discutirmos

todos juntos em videoconferência. O mais interessante des-

sas sessões são justamente os comentários dela, outro olhar

pela diferença de geração, de formação etc. Finalmente, no

-

versários deles juntos na nossa nova casa. Seguimos com o

O último que vimos foi Arábia (2017), costumo escrever re-

senhas dos que vou vendo, mas este além disso me inspirou

um poema, que acho que de alguma forma articulou a im-

Page 256: Untitled - Editora UFMG

254

de passagem meu tempo de labuta como professor pelo in-

terior de Minas – com um tema candente neste contexto de

pandemia.

FRUTO DO TRABALHO

A cobra me cobra

em cobre

empresa

sua presa me despreza

me implode me sacode

me dá bode me fode

em seu cabo

me acabo

A praga me prega

emprego

em prego é preso

o espírito

o corpo

amém?

ah, nem

Page 257: Untitled - Editora UFMG

Quarentena e a primeira sala de reunião virtual

Luzimar Soares Bernardo

Itaquaquecetuba, São Paulo, 30 de maio de 2020

Page 258: Untitled - Editora UFMG

256

A chegada da Covid-19 alterou dramática e inegavelmen-

te a rotina de todos. Comigo não foi diferente, pois devido à

necessidade de preservar a saúde de meus pais octogená-

rios procurei a melhor solução ao seu isolamento. Ponderei

Contas feitas, decidi a partir daquele momento me isolar por

dois meses na casa dos meus progenitores.

Para compreender a realidade dos meus pais é necessá-

ria uma breve descrição. Ambos vivem em um sítio peque-

no apesar da idade avançada. Neste lugar, localizado na re-

gião Metropolitana de São Paulo, em Itaquaquecetuba, eles

mantêm uma vida pacata e voltada para a plantação de uma

agricultura de subsistência. Uma variedade de gêneros ali

é cultivada, tais como algumas espécies de frutas, legumi-

nosas, hortaliças. Sem falar naquilo de que mais gostam de

plantar: a cana-de-açúcar. Tal atividade impõe uma dedica-

ção intensa. Desse modo, a maior parte do dia é reservado

para administração esse lugar. Com dedicação e carinho

-

lhos. Neste momento, há uma fartura de abacate, de chuchu

e de bananas.

Page 259: Untitled - Editora UFMG

257

Os dias seguem um ritual que para a maioria das pessoas

não faz o menor sentido. Mesmo aposentados sem obriga-

ções sociais ou trabalhistas, eles diariamente acordam mui-

to cedo. É impossível encontrá-los deitados na cama após às

06:30 da manhã. A dura disciplina que impõe a si mesmos

é algo quase militar. Vale ressaltar que eles sempre foram

assim, pelo menos é o que me recordo desde a minha tenra

infância. Há sessenta e dois anos estão casados comparti-

lhando desse mesmo estilo de vida espartano.

No entanto, o dia que quero narrar aqui é o primeiro sá-

bado vivido nesse caminhar não exatamente desejado, mas

escolhido. Já estava convivendo com eles há quase uma se-

mana. Mas na minha racionalidade, o dia de sábado sem-

pre foi reservado como o dia de dormir até um pouco mais

tarde. Ledo engano, meus pais acordaram como sempre nas

haveria de ser diferente naquele dia? Bom, para começar

minha presença já é uma alteração na rotina deles e os sá-

bados são marcados por atividades distintas.

Como premissa, é dia dedicado a uma arrumação diferen-

te. A parte da manhã transcorre sem mais alterações como

alimentar as galinhas com o milho, a arrumação da casa e

o preparo do almoço. Aliás, a refeição deve estar pronta ao

meio dia e quinze minutos, nunca pode atrasar! Depois do

almoço, vem a arrumação da cozinha, o que jamais pode ser

deixado para mais tarde. Todas as coisas seguem uma cro-

nologia muito bem planejada. Até para tomar um copo de

água meu pai tem um horário determinado por uma razão

que ainda não consegui compreender.

No início de tarde, uma nova atividade nos consome o dia.

Como se fosse um ritual que se repete todo sábado, eu ajudo

a minha mãe no preparo de um bolo de fubá. Mas o bolo de

Page 260: Untitled - Editora UFMG

258

fubá tem lá seus segredos especiais. Cravo, canela e erva-doce

não podem faltar. Para compor os ingredientes de base ob-

viamente que uma boa cearense lança mão da rapadura e do

coco no processo de “construção” da iguaria.

Durante toda a semana eu escutei silenciosamente a re-

clamação sobre a ausência e o distanciamento dos outros

-

tual. Marquei um horário determinado com todos os meus

irmãos e convidei os meus pais para participar junto comigo

na frente do computador. A comunicação não foi exatamen-

te uma conversa, pois pela avançada idade eles ouvem mui-

na tela do computador, que passaram a maior parte do tem-

O episódio me fez recordar de uma passagem de um livro

-

produzir a seguir: “A liberdade do diálogo está se perdendo.

Se antes entre seres humanos em diálogos, a consideração

pelo parceiro era natural, ela é agora substituída pela per-

gunta sobre o preço de seus sapatos ou de seu guarda-chu-

vas... É como se estivesse aprisionado em um teatro e se

fosse obrigado a seguir a peça que está no palco, queira-se

ou não, obrigado a fazer dela sempre de novo, queira-se ou

não, objeto do pensamento e da fala”.

Nessa passagem, Walter Benjamin criticou a forma exa-

cerbada do uso do capital. Desse modo, observo que meus

pais ainda não compreenderam o uso das tecnologias para

a comunicação. Constato que eles continuam sendo surpre-

endidos por tais reuniões, que eu arbitrariamente (confes-

so) delibero com intuito de tentar uma aproximação como

Page 261: Untitled - Editora UFMG

259

-

tância alguma como imaginaria que pudesse ter. No meu

sala virtual, que não é real de modo algum para eles. É algo

ao mesmo tempo frio e distante, uma tela que pode se as-

semelhar a um palco onde uma peça de teatro se desenvol-

ve, o teatro da vida encenando cenas reais em momento de

pandemia.

Page 262: Untitled - Editora UFMG

260

O homem é o lobo do homem… e do cão!

Marcel de Almeida Freitas

Belo Horizonte, 10 de junho de 2020

Page 263: Untitled - Editora UFMG

261

-

mentos sem nunca ter tempo e paciência para as organizar

-

demia e da auto e da coletiva avaliação nesses meses, de-

cidi exteriorizá-las, sobretudo porque queixas, comentários

e observações recentes de amigxs com quem eu conversei

sobre, algumas até engraçadas tipo, “Marcel, como eu não

tinha percebido isso antes, estou me lembrando tanto de

você esses dias!”, me estimularam escrever sobre esse tema

Primeiramente esclareço que ao me referir aos termos

“invasão” e “invasivo” quero dizer comportamentos, fatos,

condutas, situações mais amplos do que comumente consi-

deramos; entendo invasão não somente em termos físicos,

corpóreos, materiais (invasão de terreno, procedimento ci-

rúrgico invasivo etc.), mas também como invasão da minha

rotina, liberdade, vontade, ou seja, aqui entendo que posso

invadir sua casa tanto entrando nela sem pedir permissão

ou sem ser convidado quanto colocando uma música da Ma-

donna nas alturas ainda que você goste daquela música, mas

Page 264: Untitled - Editora UFMG

262

Vivo num bairro operário antigo de Belo Horizonte, onde

predominam casas e há cerca de 10 anos mudou um casal

-

nha, na mesma rua. Sendo bairro antigo de Belo Horizonte,

em geral, os lotes são de 300 ou 360 m2. Esse detalhe é im-

portante ser esclarecido pois fará sentido adiante para a

compreensão do “problema”. A casa em que eles viviam (já

se mudaram) possui três quartos, sala, copa (coisa que nem

existe mais hoje), cozinha e banheiro, portanto, a área do

quintal e terreiro (frente e fundo da casa, respectivamente,

interligados por um corredor lateral) é restrita.

Além dos dois seres humanos residiam na casa, melhor

dizendo, nesse exíguo quintal, três cães da raça chow chow.

Como vim a saber, eles eram do interior de Minas, cada um

de uma cidade diferente e se mudaram para Belo Horizonte

a trabalho, ele professor universitário em uma instituição

particular localizada no próprio bairro e ela veterinária na

-

ra à noite (em geral depois das 22hs quando o marido ter-

minava a aula) até domingo à noite, por volta das 20 horas,

soltos na pequena área externa da casa.

Durante o dia, devido ao horário do professor ser variável

e por morar quase ao lado da instituição, ele sempre estava

em casa em algum momento, os três pets praticamente não

latiam. Somente quando havia alguma coisa que, obviamen-

te, chama a atenção de cães, outro cachorro na rua, gato no

muro, carteiro. À noite, durante a semana, em que ambos

estavam em casa, o mundo podia acabar que os cães não sol-

tavam um suspiro sequer. Lembro-me até de uma ocasião,

lamentável, que um homem agredia uma mulher exatamen-

te em frente à casa deles de madrugada (claro, a vizinhança

Page 265: Untitled - Editora UFMG

263

chamou a polícia) e os cães impassíveis, pareciam de pelú-

eles viajavam ora para a casa da família dela, ora para a

cara da família dele. Faço estas digressões para que enten-

dam que o problema não eram os cães em si, mas sim, como

sinalizado no título, o homem – e a mulher.

Levou alguns meses para eu associar a não presença dos

humanos com os latidos sofridos e constantes, eventual-

mente seguidos de uivos, dos três pobres cães. Era muito

estranho: durante a semana e, sobretudo, à noite, não se

ouvia, perdoe-me o trocadilho, um pio na casa. Aquilo com

o passar do tempo começou a me incomodar de uma tal ma-

neira e, como sociólogo que sou, tenho “a mania” de pensar

no coletivo, comecei a me lembrar dos vizinhos, na maioria

idosos, tendo que se submeter àquilo. Sim, porque era uma

forma de imposição ao outro: submeter alguém a um som

constante e alto contra o qual ele não tem controle de miti-

de vizinhos??) ou extinguir.

-

gum (diferente de alguns vizinhos com os quais conversei...)

me indignei com os animais em si. Diferentemente de uma

festa, por exemplo, eles não estavam emitindo aqueles sons

-

lizado com os mesmos, pois, não precisava ser veterinário

psicólogo animal para notar o latido sofrido, quase um gri-

to de “me tira daqui”. Exatamente como estamos gritando

agora no WhatsApp e em outras redes sociais com amigxs

e familiares. Por isso várias pessoas que exteriorizei mi-

nha indignação com essa situação à época hoje entendem o

que eu queria dizer, pois estão vivendo situações similares:

Page 266: Untitled - Editora UFMG

264

latido permanente de cães que não são seus e, portanto, so-

bre os quais não tem como interferir.

Em uma ocasião eu estava no telefone com uma professo-

ra do doutorado e os cães latiam tão alto e persistentemen-

te que ela perguntou: “Uai, Marcel, o que está acontecendo

aí?” Foi a gota d’água. O estranhamento de outra pessoa,

de outro lado de uma linha telefônica, que não morava nas

redondezas, foi a senha para eu pensar comigo mesmo: gente,

diferentemente do que muitos tentaram me convencer, isso

não é normal, “não é assim mesmo”. Eu expliquei por alto a

situação para ela e falei que ligaria depois, que ia ver o que

estava acontecendo na rua. Como disse, eles voltavam das

miniviagens no domingo à noite. Eu então os abordei guar-

dando o carro na garagem, literalmente, no pulo do gato.

Educadamente eu os informei que estava “tentando” ter

uma conversa telefônica e, inclusive, a pessoa que estava

do outro lado ouviu os estridentes latidos dos cães, admo-

estando ainda que não considerava que aquilo seria algo

“normal”; depois que descobri que ele era professor de Filo-

que acontecia na residência de outra pessoa e que, diferente

de um furacão ou terremoto no qual ninguém tem controle,

estava interferindo, não somente na minha rotina, mas na

vida de quase toda a vizinhança.

A mulher apenas ouvia e o homem, educado e falando

usar a maiêutica socrática, isto é, ir fazendo indagações

para que o próprio interlocutor concluísse, por si mesmo, a

pertinência do ali estava sendo argumentado, ou seja, que

eventos e fatos que ocorram na “vida” de uma pessoa não

deveriam impactar negativamente a “vida” de outra. Uma

Page 267: Untitled - Editora UFMG

265

no mesmo quarto. Uma ronca, a outra não ronca. A que não

ronca atrapalha a que ronca de dormir? O silêncio mostrou

o que ele respondeu para si próprio; então emendei: e a que

ronca, atrapalha a que não ronca de dormir? Eu não posso

direito de ter um animal de estimação não pode obstar o di-

reito do outro de dormir, de falar ao telefone etc., mesmo

porque não é recíproco! Tal situação também é uma forma

de invasão. Não é física, mas é algo que não foi por mim dese-

jado ou provocado e está interferindo na minha vida.

Em um de seus últimos balbucios de buscar contornar o

-

dos eu arrematei: nós da vizinhança sabemos que sim, tanto

que você vê que é uma coisa anormal, eles latem da sexta

à noite até o domingo à tarde praticamente direto; quando

-

visão material. A carência deles é outra. Isso é uma questão

de se colocar no lugar do outro, cogitar que existem outros

modos de vida, pessoas fazendo outras coisas além das que

eu faço. Imagine uma pessoa acamada ou cadeirante que

semana, “ser obrigada” a ouvir cães que não são dela, que

ela não pode tomar nenhuma providência.

Como acontece com toda “vítima”, no princípio dessas

situações cogitei que talvez o problema fosse comigo: im-

plicância, rabugice, misofonia (doença na qual o indivíduo

tem extrema sensibilidade a sons altos e agudos), proble-

mas psíquicos ou até espirituais. Porém, quando comecei

me dando conta de que era um incômodo legítimo, o que foi

consolidado de uma vez por todas agora com a pandemia

Page 268: Untitled - Editora UFMG

266

do coronavírus. Dia desses recebi mensagem de um amigo

professor de uma faculdade particular de Belo Horizonte

que disse, “Marcel, dia desses até ouvi sua voz teorizando

sobre o caráter invasivo e abusivo de vizinhos que deixam o

Ele precisava gravar vídeo aula durante toda a tarde de

domingo para disponibilizar o material para os alunos na

segunda-feira e bem ao lado do seu quarto no apartamen-

to onde mora há uma casa com três cães que latiam o dia

inteiro. Ele emendou: “Marcel, lembrei de você na hora di-

zendo de como isso afeta a vida de terceiros; tive que ir para

um daqueles hotéis de quinta no Centro, me hospedar por

algumas horas com meu notebook debaixo do braço”. Sob

o ponto de vista do animal a situação relatada também evi-

dência indiscutível desconforto, daí o subtítulo “homem ini-

semana inteira em casa, sozinho, para que o indivíduo tenha

algumas horas de afago nos pés a noite e para passear com

ele durante uma hora no domingo à tarde? Que qualidade

de vida psíquica este animal está tendo para que o humano

tenha um ser vivo em sua companhia em parcos espaços de

tempo?

Finalizando, muitos podem estar se perguntando: mas o

que eu sugeriria como solução? São coisas muito simples e

que podem ser depreendidas da atual pandemia: tal como a

questão da imunidade ao coronavírus, mesmo a minha sen-

do ótima e que eu não seja do grupo de risco, posso infectar

pessoas susceptíveis, portanto devo tomar determinadas

medidas de proteção porque vivo em sociedade. Se você tem

cães converse com seus vizinhos, pergunte se está incomo-

dando, porque talvez não incomode você, você seja imune,

mas pode ser prejudicial para o outro. Existem pessoas

Page 269: Untitled - Editora UFMG

267

acamadas, com misofonia, depressão, dezenas de males que

eu não tenho, que os latidos dos meus cães podem afetar. Se

Nem todos trabalham de 8 às 17hs como eu. Há médicxs,

dormem enquanto eu e meus cães estamos acordados. Ago-

gravar vídeo aula, ou se comunicar com alunos por meio vir-

tual etc. Em síntese, se colocar no lugar do outro questionar

o senso comum “ah, é assim mesmo”. Se pensássemos que

as coisas são imutáveis e não podem ser mitigadas e alte-

radas em razão da vida em sociedade estaríamos criando

porcos até hoje nos centros urbanos ou fumando dentro do

elevador.

Como adoro analogias, vou terminar com uma: caso pa-

-

guém entrando num elevador de um edifício nos anos 1940

e “questionando” o fato de metade das pessoas lá dentro es-

tarem fumando. O que diriam naquele contexto? Os incomo-

dados que se retirem, eu tenho o direito de fumar. Essa é a

mesma lógica dos que hoje apelam para o direito de ir e vir

ameaçado pelo coronavírus que não saia de casa. A questão

do latido (digo o incessante!) passa por aí: não me incomo-

da, não interfere no meu cotidiano? Mas, e o outro? O outro

não sou eu. O meu cotidiano não é o dele.

Page 270: Untitled - Editora UFMG

268

Quaren...tecendo

Mônica Olender

Juiz de Fora, junho de 2020.

Page 271: Untitled - Editora UFMG

269

Page 272: Untitled - Editora UFMG

270

Desvio para o azul(do medo,

fabulações e memórias)

Monica Pimenta Velloso

Rio de Janeiro, 14 de junho de 2020

Page 273: Untitled - Editora UFMG

271

“O tempo se dilata quando o espírito “se solta” e divaga

sobre um objeto. Como em Lewis Carroll, aquilo que é muito

grande cabe no muito pequeno, e o minúsculo guarda em si

(O espelho de Alice, Hervé Guibert/Duane Michals)

***

Page 274: Untitled - Editora UFMG

272

4 de maio de 2020 - O “tempo-quarentena” estreitou-se

ainda mais, da casa para o quarto. O vírus exigia total isola-

mento. Não podia imaginar que passaria ali 28 dias de sua

vida. Para garantir a sobrevivência psíquica precisava po-

voar o espaço. A sombra foi tornando-se cúmplice dos seus

desejos, fantasias e pirraças.

A infância veio em sua ajuda, embaçando fronteiras entre

o sonho e a vigília.

Lembrou-se do primeiro encanto frente à uma estante de

livros, logo que aprendera a ler. Naquela quietude organiza-

-

mente insuspeitas. Descobriu que podia caminhar silencio-

texturas. Até que uma inscrição a imobilizou em puro alum-

bramento. Soletrou para si mesmo Viagem ao redor do meu

quarto, Xavier de Maistre. Como um quarto poderia conter

tantos mares, paisagens e povos?

Este paradoxo formigava no ar enquanto ao longe ouvia

ruídos metálicos da rua; eram os ganchos do açougue. Ho-

mens negros vestidos de saco de farinha ensanguentados,

transportavam às costas enormes pedaços de carne. A ba-

letras que saltavam nas lombadas. Pela janela da sala, o ma-

seguia o seu curso. Todos os nomes e coisas pareciam acon-

chegar-se naquele tempo-lugar.

Roupas quarando ao sol misturavam-se ao vento e aos

sons do Mercado Persa trazidos pelo piano de Ketelbey. Sem-

pre escutava este disco junto ao pai; dele ganhara o apelido

de Curumim. O batismo viria logo depois pelo livro Contos

e lendas indígenas. Percebeu que as coisas conversavam

Page 275: Untitled - Editora UFMG

273

secretamente entre si emendando fatos, gestos, nomes, tem-

pos e lugares. E essa costura do mundo era em azul.

Talvez existissem portais de passagem entre os tempos-

-lugares. Lembrou claramente do Colégio Angelus rituali-

zando a chegada em um mundo desconhecido. A senha de

entrada estava bem ali no crachá do uniforme “pequeninos

sábios”. Nos desenhos, aquarelas e teatrinho de fantoches,

de mãos dadas, via a centelha criativa e o medo. Era engra-

çado ver deste lugar de agora. Só silêncio. No corredor da

casa, o ruído do carrinho que trazia as refeições. Pela vidra-

ça abraços partidos, interditados.

Nessa braçada de lembranças que invadia o quarto viu a

infância vestida em “borboleta-imagem”, convidando-a aos

tempos – lugares, passados – presentes. Aceitou arriscar-se

nestas acrobacias surrealistas

14 de maio 2020 – Fora totalmente abandonada pelas

palavras. Em um teimoso gesto de sobrevivência, deu para

Page 276: Untitled - Editora UFMG

274

escavar fabulações e utopias, agarrando-se ao que não via,

nem conhecia. Permitiu-se brincar com esse desentendi-

mento do mundo. Vieram formas desconexas, despedaça-

das; algumas assustadoras. E também coisas minúsculas e

desimportantes. Decidiu seguir o movimento destas apari-

ções, independentemente de qualquer entendimento. Era

uma maneira de driblar o controle que sempre a guiara. O

cochicho vinha de Walter Benjamin e de Didi-Huberman que

lhe mostravam o passado em imagens aparições, relâmpa-

gos, agoridade. Para ver com olhos livres urgia deixar-se ir,

deixar correr o tempo deslocando diacronias em distopias.

Qual o sentido de perseguir coerências diante de uma or-

dem agônica e do corpo invadido por um vírus totalmente

desconhecido? Era preciso descompor o mundo, descompor

o luto, mostrar a nervura e o avesso da dor. E foi enviesando

os olhos para este tempo-lugar-quarto, cela e casulo.

Lentamente começou a rasgar e colar imagens; e era como

se entre elas já existisse um gesto de encaixe; possibilidade

narrativa ajudando a desfazer o curso de qualquer certeza.

Desde um março longínquo, o mundo da normalidade saíra

de cena.

Page 277: Untitled - Editora UFMG

275

De onde eu vejo 1

De onde eu vejo 2

Page 278: Untitled - Editora UFMG

276

24 de maio - Quando sentia-se melhor, dava uma passada no

Café para ver os amigos escutar poesias e o piano do Avelino.

Conforto de alma sentir que o mundo continuava lá fora, com

suas celebrações e inquietudes. Mas com o passar dos dias co-

-

tual. O lugar físico do mundo de antes da pandemia, já não era

o mesmo. As pessoas prometiam se ver em uma live, passavam

pra te dar um abraço, brindavam aniversários e lançamentos

-

te arrastados. Quando morava na casa, ainda percebia demar-

cações da ordem antiga, agora isso desaparecera. O presencial

tornara-se etéreo, movente; categoria híbrida sobrevoando

qualquer entendimento. Inventou loucas fabulações reais

como a de editar realidades ao mesmo tempo que deixava-se

ser pega por elas. O nome das coisas e das cores, palavras e

imagens, tempo e espaço podiam ser arrastados como móveis

em dia de faxina. Mas a luz, o ar e o gatilho do olho-cérebro es-

tavam ali aguardando inscrições da memória. Mas como nar-

rar este tempo em suspenso embaçado de tantas coisas ainda

não assimiladas? Trazer a voz de uma terceira pessoa talvez

-

do os bloqueios e traumas da convalescência. A paleta em azul

veio como um sopro trazendo de volta as palavras e imagens.

Autorretrato

Page 279: Untitled - Editora UFMG

Dezesseis

Rosângela Sampaio

Belo Horizonte, 16 de junho de 2020

Page 280: Untitled - Editora UFMG

278

Dezesseis, dezesseis de março, esse foi o dia. À tardinha

alcanço o meu prédio. Ao entrar me lembro de um versículo:

Verbo é ação, e ao contrário eu ia para inércia por conta de

um ser invisível.

A porta, outra porta, o elevador, botões e chaves. Aperto o

durar? Na porta o álcool gel e o de 70 graus. Tirar sapatos,

a roupa, tomar banho.

O apartamento torna-se o meu mundo, quando não meu o

universo. Atribuições que se fazem necessárias, para esque-

cer o vírus. E ele coitado, tão abandonado, agradece a pre-

sença, e se mostra. Escancaro a janela da sala, acreditando

que posso ampliar meu horizonte. Quando o dia está claro,

com um pouco de esforço posso ver a Serra da Piedade. As

noites, dali, vejo o Mineirão iluminado em dias de jogo e os

A bolsa repousa sobre o baú. É meu há a mais de 30 anos.

Dentro, não abriga nenhum segredo. Só discos em vinil, e

poucos em baclite (Será que é assim que se escreve?). Mas

tem, também, outra função aqui em casa: limita os espaços

entre a sala de estar e a de jantar. Sigamos. Abro a porta e

Page 281: Untitled - Editora UFMG

279

entro na parte intima da casa. A esquerda, o escritório, a mi-

nha bagunça organizada. Livros de amigos, escritos guarda-

dos que se deitam em estantes, silentes. A direita o banheiro

-

vejo a Serra do Curral. Ali nasce o sol – confesso que nunca

vi. Ali a lua cheia nasce, quando vai rasgando o céu, chega

a um ponto que ilumina um pedaço da minha cama em um

branco e prata, tão alvo, que se torna indizível, mas que os

olhos não cansam de ver.

Ah, me esqueci, ao lado do meu escritório, há o do meu

A cozinha e a área de serviço, ao lado sala de jantar, pa-

rece repetir a Casa-Grande e Senzala, em estilo moderno. O

quarto e o banheiro de empregada que jamais foram utiliza-

de inutilidades que fazem estágio para ser descartados, mas

guardam as nossas malas de viagem. Coitadas, devem ser

mudadas de local, ir para a última prateleira da estante. Até

Esse é o meu espaço que passo a dividir com meu marido

Com o passar do tempo, o espaço que dispunha encolhia

em dimensões. Encontramos e nos desencontramos na sala,

cozinha, na janela. A televisão é motivo da discórdia: Jornal

Jornal, ganho eu. Passo a descobrir outras doenças nar-

radas ao vivo. Isso é a verdadeira banalização da maldade.

O racismo, o autoritarismo, a falta de respeito, tudo de ruim,

tudo escancarado como se fosse a minha janela da sala que

me renova o ar. Mas a tela, pelo contrário, chega a me tirar

o ar, como em uma síndrome do pânico.

Page 282: Untitled - Editora UFMG

280

uma série, mas não sei em quantos episódios.

Da janela da sala vejo a rua, inteiramente vazia. Posso,

-

ma, quantos carros passam enquanto escuto Mariposa de

Lecuona.

Crio uma ou duas rotinas. Não durmo antes das 3 horas.

Acordo as 9 horas. Arrumo a cama. Abro a janela. Em uma

das janelas, sigo a rotina de uma cuidadora de idosos, ou

melhor sigo um senhor, que é acompanhado por uma cuida-

dora. Ela lhe ajuda no banho todas as manhãs, e parece que

leva o seu café no quarto. Não sei quanto tempo lhe resta ou

nos resta.

Tomo o meu café, e depois, são os trabalhos domésticos.

Limpar, lavar, varrer. E amanhã de manhã faremos tudo

igual e será a mesma coisa, esse trabalho aparece quando não

é feito. A limpeza é fundamental. Lavar as mãos, e passar o

álcool, e depois é a pergunta que não se cala: E o almoço?

São dois meses, o número de mortos sobe a cada dia, e

ninguém parece entender o que realmente acontece. E de

todos os lados pululam verdades esquizofrênicas todos dis-

cutem verdades como se soubessem sobre o sexo dos anjos..

-

dos do vírus, tomara. Sinto isso fora de mim.

lettering

na internet, para deixar alguma mensagem, ou algum poe-

ma na rua, mas a rua não me pertence. Então vi que o Bial

ministrava um curso sobre a escrita, e pasme, gratuito.

– acreditam? Encerradas as quatro aulas, recebi um e-mail

comunicando que o curso continuaria e o investimento para

essa etapa era de mais de setecentos reais. Investimento ou

custo? Jeito delicado de cobrar. Sigamos.

Page 283: Untitled - Editora UFMG

281

As ruas já não estão tão vazias. O movimento de carros

aumentou. Um ou outro na metade da tarde vão a padaria.

Volto a colorir, meus livros de mandalas, e o tempo vai assim

passando, de live em live, de mandala em mandala. Sinto fal-

ta do sol. Há uma tristeza que invade a sala quando o sol se

põe. No cansaço de colorir, vou tentar bordar. A algum tem-

po atrás pensei nisso. Paisagens harmoniosas presas a um

pano, como eu a minha casa. Enquanto o invisível passeia

pelas ruas e se apodera dos desassistidos, em todos os seus

sentidos, até lhes levar a vida.

E vou assim, num dia a dia totalmente previsível, a única

quebra é o dia do supermercado, que não sei se gosto ou não,

é mais trabalho. E as compras se diferenciaram: vassoura,

cloro, produtos de limpeza de banheiro e de cozinha, e muito

álcool gel e líquido.

Quase três meses, quase noventa dias, quase 2.160 horas.

E nada sabemos, e ninguém parece ter o que nos informar.

A sensação é aquela de estar permanentemente na porta do

cemitério lendo a inscrição na entrada “Nós que aqui esta-

mos por vós esperamos”. Temo, por mim, pelos meus, e por

todos e confesso: Durante todo esse tempo não consegui ler

Page 284: Untitled - Editora UFMG

282

O apartamento

Renato Coutinho

Niterói, 4 de junho de 2020

Page 285: Untitled - Editora UFMG

283

Eu já mudei de casa um bocado. Contando as vezes da

infância, tenho dezessete carretos no currículo. Seis para

outras cidades, que duram dias entre a primeira caixa de

papelão montada e o estouro do último plástico bolha. Tre-

mendo cansaço só de lembrar!

Mas ano passado foi diferente. Depois de anos perambu-

lando por cidades dos Rios de Janeiro e Grande do Sul, vol-

tei para a minha terra. Desembarquei em Niterói, ciente de

que dessa vez ouviria os conselhos dos amigos enraizados:

“agora chega, né”! Até porque, depois de certa idade, um dos

sonhos de consumo passa a ser morar perto do trabalho. E,

por sorte, consegui realizar esse cômodo desejo: vejo a uni-

versidade da minha varanda! Elisa, faço questão de deixar

registrado por escrito: obrigado pela indicação do imóvel!

Fui com a cara do lugar de primeira. Porteiros simpáticos,

rua silenciosa, apartamento ventilado, amplo e pé-quente.

Nos seis primeiros meses na nova casa, o Flamengo perma-

tive certeza que os rituais pré-jogos no novo apartamento

Page 286: Untitled - Editora UFMG

284

Jesus. Reconheço, o portuga e o Gabigol foram importantes

nas conquistas, mas a variável cósmica fundamental, certa-

mente, foi a minha mudança para o novo lar, com a sua sala

abençoada pelos deuses rubro-negros. Oh lugar sortudo pra

ver jogo!

Comecei o ano de 2020 grato aos bons-ventos do prédio

de tijolinho vermelho e comentei algumas vezes com a mi-

nha companheira Izabel, tão rubro-negra e supersticiosa

quanto eu: lembraremos daqui para sempre como o lugar do

vitorioso Flamengo. Esse apartamento é a metáfora caseira

do Maracanã rodriguiano!

Pois é, só que não. Êta ano destruidor de certezas! Se-

mana passada, deitado na cama, dominado pela letargia da

quarentena, perguntei para Izabel: você acha que no futuro

lembraremos daqui por causa da Libertadores ou pelos dias

minha nova impressão.

Cada dia que passa – já são mais de setenta enquanto es-

crevo este texto – as lembranças barulhentas dos gritos,

pulos, abraços e socos na porta da varanda causadas pelos

muitos gols feitos pelo Mengão campeão de tudo vão sendo

substituídas. Levanto, caminho até a sala, olho para a almo-

fada manchada pelo vinho das celebrações e acho cada vez

mais 2019 uma data paleolítica. Distante, se esvaziando. A

imagem do Brilho Eterno toma conta de mim. Vejo Clementi-

ne lutando para não esquecer. A pandemia é uma desgraça.

Ela engole as alegrias vividas; marca na memória os in-

termináveis dias de tédio e tristeza; tatua em nós a imagem

dos tempos em que fomos derrotados. Nem consigo mais

sentar no sofá da vitória. Deito e durmo, só.

Page 287: Untitled - Editora UFMG

Crônica mínima

Luciana Heymann

Rio de Janeiro, 21 de junho de 2020

Page 288: Untitled - Editora UFMG

286

Quase perco o prazo para entrar nesse Arquivo Pande-

mia, atendendo ao convite da querida Andréa. “Algo sim-

ples, espontâneo, o que você quiser”, ela disse, com aquele

jeito que faz tudo parecer fácil, mesmo que a gente esteja

achando tudo mais difícil nos últimos tempos. A clareza

dos pensamentos, a gestão da agenda, a escrita, tudo anda

mais custoso. Mas nada se compara a acompanhar as notí-

cias e deglutir a infâmia e o descaso até que chegue a hora

de regurgitar pela janela o que não é possível digerir: FORA

CRIMINOSO!!!

Estou em isolamento há 97 dias. Em todo esse período,

-

lômetros de casa. Eu e meu companheiro decidimos levar a

regime muito estrito de contato com o mundo exterior. Orga-

nizamos a vida para receber as compras em casa, de prefe-

rência fazendo pagamentos online e solicitando ao porteiro

a gentileza de depositá-las no elevador e apertar o botão do

11º. andar. Casa-trincheira.

Mas, nessa longa duração (pode-se chamar assim 100

com alguma nitidez. Na primeira, a ânsia por saber tudo o

Page 289: Untitled - Editora UFMG

287

que era possível sobre o vírus: como é transmitido, quem

é grupo de risco, como lavar as mãos, exercitar o pulmão,

reforçar a imunidade. E dá-lhe de fazer yoga, tomar chá de

gengibre, pegar sol na varanda, beber limonada suíça, com-

prar álcool em gel, diluir água sanitária para higienizar as

compras, esfregar o chão onde apoiou a sacola do mercado,

lavar o pano que limpou o chão. Há tempos não me exercita-

va tanto. Mês frenético, em alta voltagem.

A segunda fase mantém hábitos da primeira, mas o ritmo

é outro. As compras ainda são limpas com cuidado, mas os

chás e as limonadas já não são diários e o tapetinho de yoga

está enrolado há uma boa quinzena. Dicas sobre cuidados

para evitar o contágio já não circulam com a mesma inten-

sidade. Foram substituídas por informações sobre saúde

cansada, leio sobre praias cheias e shoppings abertos. Vejo

cenas de pessoas sem máscara, por descaso ou afronta, ao

mesmo tempo em que acompanho com tristeza o número

crescente de vítimas no Brasil. 50 mil ontem. Mês macam-

búzio, em baixa frequência.

Já comemorei aniversário pelo Zoom, reuni amigas pelo

WhatsApp, participei de dezenas de reuniões pelo Teams.

As análises sobre a realidade nacional, pandemia e pande-

mônio, e sobre temas emergentes nos campos da história, do

lives

que nem sempre consigo assistir. Estou dispersa, me estra-

nho (e me culpo). Me pego pensando na vida, no tempo, nos

afetos. Envio mensagem para uma amiga que há anos mora

fora do Brasil, com quem, de repente, é urgente fazer conta-

to. Procuro a antiga receita de um bolo, cujo aroma esqueci-

do entra de surpresa pela janela da cozinha. A memória tem

me pregado peças, trabalhando sem ser convocada.

Page 290: Untitled - Editora UFMG

288

Não penso muito nos próximos meses, na retomada com

máscaras e distâncias. O futuro que me captura é desejo aca-

lentado de vida rodeada de verde e silêncio povoado de sons.

Um recomeço, ainda que tardio, ainda que os compromissos

exijam um regime híbrido, meio cá meio lá. Recomeçar é

possível e libertador, sei por experiência própria. Se os pen-

samentos andam turvos e lentos, o desejo é claro. Enquanto

esse tempo não chega e toco a vida entre as quatro paredes

do apê em Laranjeiras, agradeço por estar com as duas pes-

soas mais importantes da vida, por conseguir enxergar lon-

ge pela janela e, às vezes, receber visita inusitada.

Page 291: Untitled - Editora UFMG

Da minha particular pandemia

Marjorie Marona

Belo Horizonte, 21 de junho de 2020

Page 292: Untitled - Editora UFMG

290

As medidas de isolamento social em razão da pandemia

de COVID-19 se constituíram como um evidente campo de

batalha entre as forças reacionárias do governo Bolsonaro

e o que nos restava de bom-senso no Brasil. Foram também

o objeto do primeiro artigo de opinião que publiquei desde

que este caótico cenário de crise sanitária, de saúde, mas,

sobretudo, política, se instalou de vez por aqui. A atuação do

Supremo Tribunal Federal foi fundamental na resolução do

-

da negacionista, de um lado; e governadores e prefeitos, de

outro, na tentativa de avançar um planejamento mínimo de

enfrentamento da doença causada pelo novo coronavírus.

Eu, que estudo Supremo há alguns anos, escrevi sobre isso.

Pessoalmente, aderi à quarentena, como privilegiada pro-

fessora universitária, branca e de classe média, já nos pri-

meiros dias.

Me impus o isolamento social e passei a tratar dos meus

próprios limites – das minhas fronteiras pessoais. São quase

cem dias desde que risquei o chão.

Mas esta linha divisória; este espaço imaginário que de-

-

signo algo, individualizo-o, distingo-o, estou no mesmo ato

Page 293: Untitled - Editora UFMG

291

reconhecendo tudo aquilo que não é o objeto em questão.

Talvez por isso o mais importante entre aquilo que é e o que

não é não seja propriamente o que é e o que não é, mas a

linha divisória em si.

Do que ela é feita? De que se constitui a fronteira? Se a re-

crio se refazem os espaços de ser e não ser. Quantas frontei-

ras já me foram impostas? Quantas recriei? Quantas já me

impus? De quantas desisti? E quantas linhas voltei a riscar

no chão em momentos de êxtase ou desespero – ou serena-

mente enquanto o sol entra pela janela, colorindo de luz e

sombra o assoalho da minha sala?

As fronteiras que a pandemia de COVID-19 impôs a mim:

-

sariamente melhores, certamente não sem dor ou angústia.

-

nitivamente como um ato de sobrevivência. Recriar gestos,

reinventar convivências, beber mais vinho e ouvir mais mú-

sica, ler mais romances – este esforço cotidiano para que os

devaneios cheguem e passem sem me levar com eles. Sobre-

viver e amar. Amar sem trégua. Viver, apesar de.

E tenho acompanhado o processo de vários que, privi-

legiados como eu, engajam-se na tarefa personalíssima de

reconstruir seus próprios egos nas indeléveis disputas com

o alter. A dimensão pública desta reconstrução, aquela que

envolve a luta política, também tem sido objeto da minha

vida – instinto de sobrevivência. Temos falhado grandemen-

te na construção do isolamento social como ação coletiva.

Estruturalmente reduzidas, as condições de possibilidade

por

supuesto – não encontram sequer na superfície institucio-

Page 294: Untitled - Editora UFMG

292

Sob ataque e corroídas por seus próprios deméritos, as insti-

tuições democráticas respondem menos do que delas pensá-

vamos poder exigir em um passado não tão distante. Mas aí

ainda estão. Pulsam. Resistem como uma forma de lembrar-

-nos da urgência de olhar para as nossas próprias frontei-

ras. E movê-las. Politicamente, empurrá-las. Decididamente

avança-las como eu agora movimento o sofá para aproveitar

os últimos raios de sol do primeiro dia do inverno do ano de

2020 – aquele que inaugura o resto da minha vida.

Page 295: Untitled - Editora UFMG

Poema pandêmico

Anamaria Alves

Ruínas do Quilombo Chácara dos Pretos,

Belo Vale, Minas Gerais, junho de 2020

Page 296: Untitled - Editora UFMG

294

Um dia vivido durante a pandemia. Pela manhã o agradeci-

mento por mais um dia de vida-morte.

Covas coletivas para covid.

Terra e ossos mais uma vez como em Brumadinho há um

tempo.

Orixá Nanã é senhora do barro.

Quantos corpos em meio à lama tóxica?

Quantos corpos contagiosos no cemitério agora?

E os doutores da lei fazem mais um convite ao covid.

Ainda manhã. Introspecção. Mais mortes.

O ceifador sou eu? Eu humAna.

No mais profundo encontro comigo vejo no espelho os tra-

ços ancestrais. Meu povo.

No mais profundo encontro comigo quero me descobrir Ori-

xá, mas só vejo a face de Iku.

Orixá da morte.

Aquele que tudo toca. O medo nos meus ossos gela mais que

o tempo frio do inverno das Minas Gerais.

São duas da tarde. Sem fome, não almocei. Muitos brasilei-

ros também não. Mas estes não têm comida na mesa.

Ouço o Clube da Esquina dizer que “sonhos não envelhecem”.

O sonho sou eu? Essa resposta eu sei: Um dia alguém

Page 297: Untitled - Editora UFMG

295

acordou sorrindo no chão de barro de uma senzala após

sonhar que seu povo seria livre. Um dia alguém chorou antes

de mim.

As lágrimas escorrem na face do espelho. Não são de tris-

teza.

Eu sou um sonho louco. Vejo no vidro da janela a face de

Obaluaê. Senhor das pragas. Quando ele dança, espalha

pragas no mundo e o limpa de humanos.

E agora eu sou sujeira. Eu humAna.

-

vaneios políticos típicos do Brasil 2020.

resto.

Resta a vontade de deitar no barro embaixo das árvores no

meu Quilombo e ouvir a natureza dizer:

“eu ainda estou aqui”.

E então seremos uma. A natureza e eu.

Assim é a morte. Fundir-se ao tudo.

Madrugada.

Durmo em paz. Logo amanhecerei.

Vida-morte-pandemia!

Page 298: Untitled - Editora UFMG

296

Ruínas do Quilombo Chácara dos Pretos, Belo Vale, Minas Gerais.

Page 299: Untitled - Editora UFMG

Fermentação natural e pandemia: o

tempo lento da vida

Karla Guerra

Belo Horizonte, 22 de junho de 2020

Page 300: Untitled - Editora UFMG

298

Faço meus próprios pães há, pelo menos, oito anos. No início

-

va comendo. No entanto, depois de ter contato com algumas

técnicas e saber que a fermentação natural oferece inúmeros

benefícios à saúde, comecei a me interessar pelo assunto.

em casa para pessoas próximas e me convidou. Lá estava

eu em um domingo, com várias pessoas que não conhecia,

falando sobre pães. Um dia inteiro dedicado a entender todo

o processo, com seus inúmeros detalhes e etapas. Voltei

para casa com meu “tamagotchi” – como costumo chamar

o levain – em um potinho e inscrita em uma comunidade

de compra de farinhas no WhatsApp. Agora mantê-lo vivo e

bem alimentado era uma responsabilidade assumida.

Depois de vários meses dedicada a aprender mais e mais,

abandonei a fermentação natural, frustrada com os resulta-

dos desastrosos e alguns poucos sucessos. Retomei a saga

do pão de fermentação natural no ano passado. Emprego

novo, colegas ainda desconhecidos e o pão de fermentação

natural foi um cartão de chegada que abriu portas e rendeu

algumas exclamações. Logo o trabalho solapou a dedicação

levain morreu.

Page 301: Untitled - Editora UFMG

299

Ao contrário do levain, a leitura, as redes sociais e os li-

vros sobre fermentação natural continuaram a povoar meus

Furtini, cuja receita deu origem a esta que compartilho, que

sofreu algumas poucas adaptações). Ela aconteceu no últi-

levain, um pão para assar em casa e uma apostila.

Com a quarentena e munida de um aprendizado fresqui-

nho para colocar em prática, comecei novamente a fazer

pães de fermentação natural. É um processo que dura pelo

menos 24 horas. Sim, exige muito trabalho, atenção, dedi-

cação e o respeito ao tempo. O tempo lento da fermentação.

De alguma maneira, fazer pão me acalma. É quase uma me-

ditação: toda atenção às medidas precisas, aos tempos, aos

processos, às técnicas e principalmente ao aprendizado.

Não adianta lutar contra esses princípios. A criatividade só

vem a partir do domínio do processo básico, que consiste em

propiciar as condições ideais para que a natureza faça o seu

próprio trabalho.

Neste sentido, fazer pães de fermentação natural guarda

semelhanças com o contexto da pandemia. Numa escala glo-

bal, a industrialização acelerou o tempo, subjugou o artesa-

nal, desrespeitou o ritmo da natureza e tornou o dinheiro o

grande mediador das relações sociais. O mesmo aconteceu

com os pães: ganharam aceleradores e simuladores de sabor

e são produzidos em larga escala, em esteiras rolantes e de-

positados anonimamente em grandes mercados.

Quem faz pão de fermentação natural desenvolve não so-

mente a rede de glúten que faz o pão crescer, mas se integra

a uma grande rede de pessoas extremamente colaborati-

vas. Pessoas que se disponibilizam a dividir conhecimento,

Page 302: Untitled - Editora UFMG

300

receitas, grupos auto-organizados para comprar farinha, in-

dicar fornecedores, equipamentos, utensílios, dividir apren-

dizados, contatos, buscar, levar. É uma grande rede de tro-

cas, extremamente democrática e receptiva.

De alguma forma, fazer pães de fermentação natural nos

obriga a observar como o tempo lento da vida nos defron-

ta com o essencial. E não tem nada mais simples: farinha,

água, fermento e sal.

Pão Lento de Cacau

450g de farinha de trigo

40g de cacau

320g de água

10g de sal

149g de levain

Alimentar o levain e aguardar o pico do fermento. Pesar e

misturar todos os ingredientes e colocar em uma vasilha com

tampa ou uma bacia com um pano úmido por cima ou papel

-

das da massa e dobrá-las em cima de si mesmas, da beirada

-

balhar a massa durante 5 a 10 minutos. Não trabalhar muito

a ponto de esquentar a massa. Depois das dobras armazenar

tudo na mesma vasilha tampada na geladeira por cerca de

entre 17 ou 18 horas). Cerca de duas horas antes de assar o

pão, retire da geladeira, modele e coloque em uma vasilha co-

berta com um tecido limpo e polvilhada com farinha de arroz

ou de trigo. Pré-aquecer bastante o forno (o ideal 240oC), ou

seja, cerca de meia hora em temperatura máxima na maioria

dos fornos comuns de fogão. Corte um pedaço de papel para

assar para forrar a parte debaixo da panela (para o pão não

Page 303: Untitled - Editora UFMG

301

grudar) e forre o fundo da panela (não precisa untar). Risque

-

nela de ferro tampada ou em uma panela que possa ir ao for-

no (inox, de barro ou outra que não tenha nenhum elemento

de plástico ou outro material que derreta no forno). Pode ser

usada uma assadeira com outra na parte debaixo com água

ou ainda borrifar água limpa no forno nos primeiros 20 minu-

tos, logo que o pão for colocado no forno (a ideia é fazer algum

vapor no início da cocção). Assar 25 minutos com a panela

tampada (ou na assadeira com vapor no forno) e outros 25

minutos com a panela destampada (ou sem vapor no forno).

Depois de assado, retirar e colocar em uma grade ou na trem-

pe do fogão. Aguardar o pão esfriar antes de partir (essa é a

parte mais difícil da receita).

Page 304: Untitled - Editora UFMG

302

Na gangorra entre a cozinha e a biblioteca

Cláudia Viscardi

Juiz de Fora, 20 de junho de 2020

Page 305: Untitled - Editora UFMG

303

O carinhoso convite de Andréa Casa Nova Maia e sua mãe

me trouxe um dilema acerca do que falar do meu período de

isolamento. Nesses mais de 100 dias minha vida tem sido

uma gangorra entre a cozinha e a biblioteca. Entre pães e

livros, farinhas e aulas remotas, pesquisa e fermento seco,

tenho vivido meus dias à espera de um milagre. No fundo

tenho uma fantasia de que viveremos assim para sempre

e devido a essa crença pessimista não me sinto ansiosa. É

como se esse tempo fosse ser o “novo normal”, pois inventa-

da a vacina, outros vírus viriam, da Amazônia destruída ou

de outros morcegos da China e nos manteriam dessa forma

Durmo muito bem, mantenho bom humor, me alimento

com equilíbrio, faço exercícios, trabalho e faço pães, muitos

pães. Baguetes com biga ou sem biga, sourdough de vários

formatos, Babkas recheadas de chocolate ou goiabada, pães

italianos, chapatis, rolls de canela.... Distribuo os pães que

não como. A pandemia me deixou mais solidária, embora

sempre tenha sido. Por isso, não vou falar só de pães. Vou fa-

lar sobre o meu maior incômodo: o insolidarismo brasileiro.

Somos desde 1889 “republicanos”. Talvez seja a república

uma forma de governo totalmente consolidada no imaginário

Page 306: Untitled - Editora UFMG

304

brasileiro, dado que o plebiscito de 1993 comprovou nossa

total desvinculação emocional com o regime pregresso. Mas

nem todos somos republicanos e é sobre isso que quero falar.

República – res populi – é o que pertence ao povo, o que é de

interesse coletivo aos cidadãos. Isso implica em pensar que

ser republicano é pensar menos no meu interesse individual

ou de grupo, em prol do interesse comum.

Uma república para existir requer um acúmulo de cultu-

ra cívica, o que se dá por meio da capacidade de cooperar

-

o acúmulo de experiência solidárias e recíprocas. Faço as-

sim uma associação entre República, Cultura Cívica e Soli-

darismo. Este tripé garante a todos os cidadãos o bem-estar,

mesmo em conjunturas adversas.

Nos anos 1930, passados quarenta anos de experiência

republicana, os brasileiros sentiram saudades de seu Impe-

rador, já que a república não havia constituído uma comu-

nidade cívica nos Trópicos. Um teórico autoritário entre os

muitos intérpretes do Brasil, para mim, fez o diagnóstico

perfeito. Oliveira Vianna, contrapondo-se às análises mais

otimistas de Gilberto Freyre nos avisava: predomina no Bra-

sil o espírito de clã e por essa razão não conseguimos forjar

relações solidárias, indispensáveis à composição de uma res

publica. É triste concordar com Vianna, mas ele tinha razão.

Duplo incômodo: com a avaliação e por ter sido ele o autor.

Comportamentos instintivos dos animais nos ensinam

que nos momentos de escassez de recursos, o líder da mati-

lha protege o seu grupo, mesmo que para isso tenha que des-

truir seus competidores. Quando foi que nos tornamos lobos

de outros homens? Vianna dizia que o insolidarismo tinha

Page 307: Untitled - Editora UFMG

305

a sua principal manifestação na defesa que os chefes locais

faziam de sua família, mesmo que ampliada, se valendo de

todos os recursos e estratégias para garantir a sobrevivên-

cia de seu bando, mesmo que para isso tivesse que colocar

em risco o bem comum. Como ele estava certo!

Nossa república é pré-hobbesiana. Somos lobos uns dos

outros. Não há Estado, não há nação, não há país, não há re-

pública. Estamos abandonados à nossa própria sorte, cada

um cuidando de proteger o seu clã e abandonando qualquer

o insolidarismo nas bolhas da esquerda e da direita. Na au-

sência de cultura cívica, resta a cada um de nós proteger a

sua própria matilha. Não se trata de egoísmo, mas da ausên-

cia de cultura cívica, de espírito republicano. A pandemia

nos revelou o que já sabíamos, mas não acreditávamos.

Por que nos tornamos assim? Há vários livros a serem

Mas faltam ainda tantas respostas... Imagino algumas de-

las: a escravidão, o extermínio dos índios, uma educação

-

da dos interesses nacionais, entre outras tantas mazelas já

diagnosticadas por inúmeros cientistas sociais.

Muitos de nós estamos extremamente preocupados com

as ameaças à nossa frágil democracia. Para mim esta amea-

ça não é a maior de todas. Nosso risco é perdermos o pouco

de espírito republicano que ainda temos. Aí reside o fundo

do poço. É perdermos a perspectiva de nação, de identidade,

de cultura nacional e, sobretudo, de cultura cívica.

Por isso eu oscilo entre fazer pão e estudar e ensinar His-

tória, entre a cozinha e a biblioteca. É o que me resta fazer.

Misturar ingredientes secos e molhados, que quando bem

fermentados alimentam o corpo por dias, me ajuda a pensar

Page 308: Untitled - Editora UFMG

306

que a soma de algo perfeitamente combinada é capaz de pro-

duzir prazer e satisfação ao corpo. Quando estudo, ensino e

produzo história sei que estou ajudando de alguma forma a

misturar outros ingredientes que ajudem a mudar esse pa-

norama, produzindo esperança de futuro para mim e para

os meus tão queridos alunos e eventuais leitores. Alimento

o espírito. Vida que segue, se possível.

Page 309: Untitled - Editora UFMG

Certo

Vai passar

Brazil

Dentro/Fora

Allan Sieber

Rio de Janeiro, junho de 2020

Page 310: Untitled - Editora UFMG

308

Page 311: Untitled - Editora UFMG

309

Page 312: Untitled - Editora UFMG

310

Page 313: Untitled - Editora UFMG

311

Page 314: Untitled - Editora UFMG

312

Analogias: por que não?

Monica Grin

Rio de Janeiro, 17 de junho de 2020

Page 315: Untitled - Editora UFMG

313

Ando assustada. A sensação de incerteza me acossa. A

imaginação dispara, capturada por ondas de medo e indig-

nação. Fantasmas reais e imaginários assombram o meu

-

na Alemanha. Nos diários de Victor Klemperer1, no ano de

1933. Agarro suas palavras. Tomo-as como guia para os

perplexos. Preciso de indícios de como o fascismo se mos-

tra. Estará ele nas palavras, nos atos, nos desmandos, nos

desmontes, na violência? Observo os relatos de quem vi-

menos previsível. Persigo manuais de sobrevivência. Como

me defender do assombro? Como me equilibrar em plena

1 Victor Klemperer, nasceu em 1881, judeu alemão, veterano da Primeira

-

de de Dresden, até que foi demitido de suas funções em 1935. Sobrevive

atividades como professor universitário e morre em 1960. É autor de

LTI: A Linguagem do Terceiro Reich (edição em português) e The Klem-

perer Diaries (1933-1945).

Victor Klemperer. LTI: A Linguagem do Terceiro Reich. Rio de Janeiro:

Contraponto, 2009.

Page 316: Untitled - Editora UFMG

314

pandemia, numa corda bamba de emoções diárias? Analo-

gias, por que não?

Victor Kempeler, 1933

20 de março de 1933

“Todo novo decreto, anúncio etc. do governo é mais vergo-

nhoso que o anterior. Em Dresden, um escritório de combate

ao bolchevismo. Recompensa por informações importantes.

Discrição garantida. Em Breslau, os advogados judeus são

proibidos de comparecer ao tribunal. Em Munique, o truque

mais desajeitado de uma tentativa de assassinato e vincula-

do a ele a ameaça do “maior pogrom” se um tiro fosse dispa-

rado. Etc., etc. E o jornal zomba!”. 2

12 de abril de 1933

“O poder, um poder tremendo, está nas mãos dos nacio-

nal-socialistas. Meio milhão de homens armados, e todos

os escritórios e instrumentos de Estado, imprensa e rádio.

O humor dos milhões embriagados. Não vejo de onde a sal-

vação viria. (...) O Ministério da Educação da Espanha ofe-

receu a Einstein uma cátedra em uma universidade espa-

nhola. Ele aceitou. Esta é a piada mais estranha da história

do mundo. Alemanha estabelece a limpieza de lo sangre e a

Espanha contrata um judeu alemão.”

25 de abril de 1933

“Nenhuma manhã sem choro violento, nenhum dia sem

histeria. Estou quase embotado diante de todo esse infortú-

nio. Não penso mais no amanhã”.

2 Victor Klemperer, I Will Bear Witness, Vol.1: A Diary of the Nazi Years

(1933-1941). New York: Modern Library, 1999.

Page 317: Untitled - Editora UFMG

315

28 de julho de 1933

Cerimônia junto ao túmulo dos “matadores de Rathenau”.3

Quanto desdém, quanta amoralidade, ou melhor, quanta mo-

ralidade do dominador prepotente está nesse substantivo

-

gurança alguém deve sentir para se expressar desse modo!

Será que as pessoas se sentem seguras? Há muita histe-

ria nas ações e nas palavras do governo. Seria preciso es-

tudar alguma vez, de maneira muito especial, a histeria da

linguagem.

(...) O sintoma mais agudo de insegurança é a atitude

o Führer pronuncia algumas frases diante de uma grande

assembleia. Cerra o punho, contorce o rosto, sua fala lem-

bra mais o urro de um animal, está mais para um acesso

de cólera do que para um discurso. (...) Hitler aparenta ser

o todo-poderoso, e talvez seja; nesse documentário, porém,

a impotência de seu ódio aparece nos gestos e no timbre da

voz. Alguém anunciaria assim, tão reiteradamente, um rei-

nado milenar e a eliminação dos opositores, caso se sentisse

seguro quanto à duração desse reinado e ao extermínio dos

opositores? Saí do cinema vislumbrando alguma esperança.

22 de agosto de 1933

As mais diversas camadas sociais emitem sinais de que

se cansam de Hitler. (...) Será que estou me iludindo quando

sinto esperança ao ouvir tudo isso? Esse desvario absoluto

não pode perdurar! Quando a embriaguez do povo vai pas-

sar? Quando começará a ressaca do dia seguinte?

3 Walther Rathenau (1867-1922), industrial, economista, político e escri-

-

ção de extrema-direita.

Page 318: Untitled - Editora UFMG

316

29 de outubro de 1933

De uma hora para outra, uma grande confusão. Foi decre-

tada uma mudança no rumo da vida universitária: às ter-

ças à tarde não haverá aulas, pois nesse horário todos os

estudantes praticarão Wehrsport (esportes militares). Logo

me deparo com um mesmo nome em uma caixa de cigarros

da marca Wehrsport . Tudo meio encoberto, meio desvelado.

(...) Será que algum dia descobrirei uma palavra verdadei-

ramente honesta nesse regime?

9 de novembro de 1933

Hoje, meu seminário sobre Corneille só atraiu dois parti-

a questão da delimitação: será que isso mostra a linguagem

do Terceiro Reich?) Por que o número de meus ouvintes

diminui de maneira tão drástica? O francês como matéria

optativa , deixou de ser apreciado pelos estudantes; consta

como antipatriótico, ainda mais literatura francesa minis-

trada por um judeu! É necessário até mesmo um pouco de

coragem para assistir as minhas aulas. Além disso, os alu-

nos têm tido baixa presença em todos os cursos: estão muito

ocupados com os “esportes militares.”

31 de dezembro de 1933

“Estaremos completamente sozinhos esta noite. Eu tenho

medo disso. Nossos dois pequenos gatos são sempre um con-

forto e apoio para nós. Eu me pergunto mil vezes com toda a

seriedade, qual é o estado de suas almas imortais?

amarga e desesperada do que a da guerra. Nós afundamos

profundamente.

Page 319: Untitled - Editora UFMG

317

Em 1946, Klemperer diria

sobre o seu diário no ano de 1933:

“Reuni aqui o que anotei em meu diário, nos primeiros

meses do nazismo, sobre a nova condição e a nova lingua-

gem. Naquele tempo o estado das coisas era incomparavel-

mente melhor do que o que veio depois. Eu ainda ocupava

meu cargo, vivia em minha própria casa, era um observador

ainda não molestado. Por outro lado, era uma pessoa pouco

atuante, acreditava que vivia em um estado de direito e já

considerava como o mais terrível dos infernos o que estava

acontecendo. Mais tarde tudo me pareceu como se aquele

tempo não passasse do preâmbulo, como o limbo de Dante.

Porém, por mais grave que fosse a situação, tudo o que veio

reforçar as convicções, as ações e a linguagem nazista, tudo

já podia ser entrevisto naqueles meses iniciais.”

Page 320: Untitled - Editora UFMG

318

Notas sobre o desentendimento

Américo Freire

Mury, Nova Friburgo, Mês três do corona, 12 de junho de 2020

Page 321: Untitled - Editora UFMG

319

A vida não está nada fácil em 2020 – esse ano que nos

colocou e nos coloca em xeque. E, pelo andar da carruagem,

devemos seguir assim por mais tempo. Para os céticos a per-

gunta-chave não diz respeito à duração desse estado de coi-

sas. Mas sim a extensão desse novo normal.

Começo essas notas recuperando um dito lido a pouco no

Facebook – “quem não está confuso não está bem informa-

do”, disponibilizado na rede pelo historiador e parceiro

Carlos Fidelis. É exatamente assim que tenho me sentido

desde a eleição daquele que diz que nos governa em meados

de 2018.

A sensação primeira é de decepção e estranhamento com

todo esse espetáculo que teima em se repetir a cada dia. Cla-

ro que há momentos em que tudo ganha cores mais fortes

que nos ajudam a compreender um pouco melhor o buraco

em que estamos metidos. O mais extraordinário deles foi a

reunião ministerial do dia 22 de abril quando acompanha-

mos o bando reunido e bufando. Daniel Aarão, em boa tira-

da, chamou aquilo de governo de cuecas.

-

teiro deve ter sido inspirado em “Um dia de fúria” – película

estrelada por Michael Douglas em sua melhor forma. A cada

Page 322: Untitled - Editora UFMG

320

cena uma explosão alucinada do protagonista. Ou também

nos episódios incendiários de “Relatos selvagens” quando

Ricardo Darin e outros craques do cinema argentino jogam

tudo para o alto, literalmente.

E, para não deixar por menos, temos a pandemia corona

nada aconteça e que tudo passe o quanto antes.

Pergunto, então, dá para encarar essa sem nos enrolar,

sem nos atormentar, sem nos retrair, contando claro com

nossos amores reais e amigos virtuais?

-

mos fortes e tratemos de reconhecer esse mal-estar corro-

sivo e doentio.

Alguma coisa acontece com todos nós e não temos a me-

nor ideia do que é e menos ainda do que virá a ser. Nem a

sombra ou a silhueta conseguimos enxergar. Talvez seja o

caso de deitar fora os nossos velhos óculos.

Page 323: Untitled - Editora UFMG

Algumas palavras mais...

Daniel Ganem Misse

Rio de Janeiro, 19 de junho de 2020

Page 324: Untitled - Editora UFMG

322

Olhando pela janela de minha clausura me passou pela

cabeça o que explica termos chegado nessa situação. Acre-

dito que nas sociedades atuais há ao menos três fatores que

ajudam a explicar a rápida disseminação desta e de futuras

pandemias, caso não aprendamos a lição:

1) Redução do tamanho do Estado - políticas de auste-

ridade vem sendo implementadas e difundidas a partir da

década de 1980. Elas vêm favorecendo o desmonte de políti-

cas sociais, principalmente de saúde, educação e assistência

social, aumentando a situação de vulnerabilidade e miséria

social, que condena multidões a uma vida sem emprego,

sem acolhimento, sem renda e sem perspectivas. Esse fa-

tor é importante para compreender porque muitas pessoas

dos gastos com saúde. Por entender a saúde como um gas-

to, o sistema é colocado cotidianamente em seu limite de

cenário, os testes que deveriam estar sendo realizados em

massa como forma de contenção da doença não são realiza-

dos por falta de kits e de pessoal para realizar os exames. A

única medida viável para tentar reduzir o colapso iminente

é manter todos em casa de quarentena, como se fazia antes

Page 325: Untitled - Editora UFMG

323

da descoberta da penicilina e da criação do sistema público

de saúde em muitos países. Mesmo assim há pacientes mor-

rendo sem serem testados.

2) Megacidades e pauperização – outro fator de fácil pro-

pagação são as Megacidades, que aglomeram milhões de

pessoas em espaços cada vez mais reduzidos, muitas em si-

tuação precária de vida, higiene e alimentação. Sem coleta

de lixo, acesso à água potável de forma ininterrupta, sem

esgotamento sanitário (e quando tem, sem tratamento). A

maior aglomeração de pessoas nas cidades torna possível

a oferta desses serviços com menor custo, mas a redução

do tamanho do Estado reduz também a capacidade de in-

vestimento na cidade, em especial nas áreas mais pobres (o

investimento tem que ser economicamente viável ou rentá-

vel). A falta de acolhimento por parte do Estado joga a popu-

-

segue parar suas atividades em alguns casos, mas aquele

que vive de bico não tem como parar. Mega cidades têm alta

circulação de pessoas de diversas partes, sendo um gran-

de laboratório de vírus e bactérias novas. Quando aconte-

ce uma situação de crise e a classe média urbana necessita

parar ou reduzir seus gastos isso repercute drasticamente

na frágil fonte de subsistência de metade da população, que

estará nas ruas de uma forma ou de outra.

3) Modelo econômico poluidor – numa sociedade em que

tudo é visto como gasto, pregando religiosamente a redução

de despesas, a meta é fazer a economia crescer e produzir

menos impostos (reduzir o tamanho do Estado), obter mais

recursos naturais e humanos pagando cada vez menos, am-

pliar a produção de forma contínua como se o mundo fos-

Page 326: Untitled - Editora UFMG

324

produz novas pandemias de vírus e bactérias desconheci-

-

blico, pois o que importa são contas saneadas. Nesse modelo

-

garantir a produtividade e mantê-los quase inoperantes por

falta de verbas. Isso explica tragédias como as de Mariana,

Rio Doce, Brumadinho, o vazamento de óleo na costa do nor-

deste brasileiro, etc. (todos até agora sem resposta por con-

ta do desmantelamento dos órgãos de controle).

A esses três fatores, agregue governos de extrema direita

-

quisadores, cortam investimentos em setores essenciais de

pesquisa e inovação, propagam ideias medievais, subnoti-

abertamente o modelo poluidor de Estado mínimo com re-

pobres.

Page 327: Untitled - Editora UFMG

O vírus e o genocida

Jayme Ribeiro

Recreio dos Bandeirantes, Rio de Janeiro, 15 de junho de 2020

Page 328: Untitled - Editora UFMG

326

A pandemia nos pegou de surpresa. Sem saber o que

fazer, como seria, o que esperar e, sobretudo, quando iria

terminar, a angústia tomou conta de mim. Milhares de in-

dagações fazia constantemente. Mas o fator que contribuiu

para o aumento de minhas preocupações era o desgoverno

em nosso país. O presidente da República, a cada pronun-

ciamento, aumentava o meu estado de desânimo, a minha

ansiedade e o pânico de ocorrer uma desgraça ainda maior

que a própria pandemia.

arrogante e com requintes de maldade eu pude notar nitida-

mente em meu bairro. Ao minimizar o vírus como uma “gri-

pezinha” e incentivar a população a manter suas rotinas de

trabalho e a sair às ruas, vi, quando tive necessidade de ir ao

mercado, à farmácia e de pedir comida, dezenas de pessoas

levando suas vidas normalmente, sem máscaras, sem dis-

tanciamento, sem a menor preocupação com a possibilidade

de contágio. No Recreio dos Bandeirantes a vida transcor-

ria sem maiores transtornos. Por isso, não foi fortuitamente

que vários organismos de imprensa e redes sociais passa-

ram a chamá-lo de genocida.

Page 329: Untitled - Editora UFMG

327

Um caso, no mínimo curioso, chamou-me atenção: embo-

ra o acesso ao banho de mar estivesse proibido, a Polícia Mi-

litar tinha que, a todo instante, retirar as pessoas da faixa

de areia. O calçadão, sobretudo em dias de sol e calor, estava

sempre lotado. Até aí, tudo bem! Atividades ao ar livre es-

tavam permitidas. Entretanto, diversas pessoas aglomera-

vam-se perto dos quiosques ou em outros pontos, sem estar

praticando atividade nenhuma. Como disse, a vida, no meu

bairro, continuava a seguir o seu ritmo. Somente a partir de

meados de maio é que vi muitas pessoas usando máscaras.

Durante todo o período de quarentena, que hoje já dura

cerca de 90 dias, meu trabalho on-line aumentava no mesmo

ritmo que os devaneios, as maldades e as fake news propa-

gadas pelos apoiadores do desgovernante. E, mais uma vez,

minha angústia galgava mais alguns degraus. Constatei na

prática o que as estatísticas demonstravam. A maior parte

dos meus alunos (escola pública) não tem acesso à internet

e, com isso, estão fora das minhas aulas. Além disso, aque-

tempo, fazer as atividades e compreender as informações

e os conteúdos transmitidos. O quarto, a sala de estar ou

qualquer cômodo de uma casa não reproduz, nem em suas

características mais básicas, o ambiente escolar. A dinâmi-

ca não é a mesma. Portanto, a relação ensino-aprendizagem

também não é.

Percebi também que, quanto mais tempo passava de fren-

-

-

pessoal presencial, nada substituirá a troca entre professor

e aluno dentro de uma sala de aula.

Entretanto, meu maior sofrimento era estar longe do meu

Page 330: Untitled - Editora UFMG

328

de poder contaminá-lo era maior do que a saudade que sen-

tia e a falta que ele fazia. Com os números de contaminados

e mortes aumentando a cada dia, percebia que, infelizmen-

te, o isolamento se fazia necessário.

Meu pai, de 73 anos, por motivos de saúde, só consegui

vê-lo na semana passada, embora nossas chamadas de ví-

deo, ligações e mensagens por celular fossem rotineiras.

A vida continua, eu sei. Mas não é a mesma. E, depois de

toda essa experiência vivida e de inúmeros sentimentos

Page 331: Untitled - Editora UFMG

Não sou coveiro

Beto Bianchi

Rio de Janeiro, 22 de maio de 2020

Page 332: Untitled - Editora UFMG

330

Ficha Técnica: Tinta + Colagem + Adubo sobre Madeira. Dimensões: 80cm x 55cm.

Page 333: Untitled - Editora UFMG

A pandemia e o xucrismo [com CH]

José Newton Coelho Meneses

Belo Horizonte, 12 de junho de 2020

Page 334: Untitled - Editora UFMG

332

O senhor J tem medo do Novo Coronavírus e acha normal

epidemias. J acredita que a sociedade aprendeu a temer e a

transformar o medo em lutas e conquistas. Uma pandemia

assusta e dá oportunidades de saídas. J é um otimista. Pen-

sa na vacina contra a Covid 19 como solução próxima e em

terapêutica que cura, ainda mais rápida. O otimismo de J é

incurável!

O cidadão J tem alguma impaciência com o isolamento

social porque se vê privado de pessoas amigas em contato

corporal, impossibilitado de ir dar suas aulas. O velho J está

impedido dos papos de bares (no plural, porque ele gosta de

muitos e de variados, papos, amigos e bares). Ficar sem cer-

veja com acompanhamento de gente é triste para J!

Ele sente tristeza pela morte de muitos: dos que morrem

pelo contágio e dos que se matam pelo medo dele. J tem hor-

ror ao “novo normal” da vida para evitar o contágio. Acre-

dita nos imprescindíveis cuidados e os cumpre à risca, mas

pensa na coragem, no rigor, na atenção constante, na acui-

dade com os movimentos e com os gestos e conclui que isso

é chato e cansa. A morte é limite que ele não busca. A perda

Page 335: Untitled - Editora UFMG

333

da morte o deixa mesmo de luto. O corajoso J pensa mais em

J anda sentindo cansaço físico pela ausência de tarefas

corriqueiras fora da domesticidade forçada. Anda com o

corpo cansado de inatividade, doído pelo excesso de des-

canso. Para ele a domesticidade acolhe e oprime, protege e

fragiliza.

O professor J é solidário nesses tempos loucos; tem aju-

dado pessoas e grupos com doações e conversas telefônicas.

Do WhatsApp, do Instagram e do Facebook anda se afastan-

do por pura impaciência.J pensa sobre essa solidariedade:

faz mais bem a ele que ao outro e sente-se incomodado por

isso.

O J impaciente tem ojeriza à desinformação nas redes so-

ciais. Sufocado por elas nesses dias de internação, vê os ab-

surdos ditos como mau-caratismo ou falta de sensatez. Sen-

te-se idiota frente à desinformação reinante. J, no entanto,

não quer pregar prudência em nau de insensatos.

J administra tudo isso, mas, perde o juízo quando ouve o

presidente da República e seus [m]sinistros e tem vontade

de romper com o isolamento e agredi-los verbalmente nas

ruas. J contenta-se com a janela e desconta a raiva em seu

pandeiro. Não sabe tocar o instrumento, mas percebeu seu

som como mais assustador e poderoso que o das panelas.

Guerra de janelas! Ufa! Contra os xucros, o xucrismo!

Xucro? Xucrismo? J foi ao Aurélio.

xucro. Adj. 1. Bras., MG e S. Diz-se do animal de sela ain-

da não domesticado. 2. Bras. P. ext. Diz-se do indivíduo ainda

não treinado em qualquer tarefa, ou de coisa ainda muito

imperfeita. 3. Bras. P. ext. Ignorante, rude, bronco. 4. Bras.

P. ext.

seria chucro.]

Page 336: Untitled - Editora UFMG

334

xucrismo. S. m. Bras. Xucrice. [Chucrismo seria a boa

escrita.]

xucrice. S. f. Bras. 1. Qualidade de xucro. 2. Ignorância,

rudeza. 3. Falta de educação; grosseria. [Sin. Ger.: xucris-

mo. A boa escrita seria com ch.]

J foi ao Google.

Xucro

Diz-se do animal que não foi ou não está

domado; selvagem, bravio, intratável:

cavalo xucro.

Que não possui capacidade para fazer

certos trabalhos e/ou atividades.

J não gosta de comparar os homens e as mulheres xucros

ou chucros com os animais. J respeita os animais. J percebe

a inteligência dos bichos; eles são diferentes dos inciviliza-

dos. Acha a comparação injusta.

Para J, JMB, o eleito, é arauto da ignorância e da rudeza,

paladino do xucrismo; AW, PG, RS, EA, DA, AH – o gal. de

pijama –, etc. etc. são grosseiramente xucros humanos. São

de natureza distinta dos burros, dos jumentos e de outros

animais. Para J, não se compara o incomparável! J ama os

animais – os burros e os jumentos, inclusive. J detesta essa

gente xucra, ignorante, malfeita, mal-educada, rude, bron-

ca, incivilizada.

J odeia o escuro. J tem mais pavor do obscuro. J quer

desnudar e iluminar o obscurantismo.

Page 337: Untitled - Editora UFMG

335

J é um cidadão indignado: transforma medo, ódio, antipa-

tia, ojeriza e a desonra dos xucros [ch] em indignação!

Na quarentena, isolado socialmente, consciente dos ris-

cos do adoecer, J teme mais os vermes e os xucros que o

novo vírus. Os vermes-xucros são mais destruidores; ma-

tam mais. Os vermes-xucros destroem a sensatez; tomam a

todos como idiotas.

Com X ou com CH, J quer os xucros e a “gripezinha” deles

FORA!

Page 338: Untitled - Editora UFMG

336

A Covid-19 e a pandemia dos imbecis

Libania Xavier

Friburgo, Rio de Janeiro, 14 de junho de 2020

Page 339: Untitled - Editora UFMG

337

Em entrevista concedida em abril de 2020, o ator argen-

tino Ricardo Darin argumentou que, em meio à pandemia

da Covid-19, ele considerava ser muito mais difícil lutar

contra a pandemia dos imbecis. O comentário livre do ator

me remeteu ao tempo em que o atributo imbecil

de acordo com os testes de inteligência adotados no início

do século XX, em países como o Brasil, os EUA e a França.

Nesse contexto, circulou uma escala de avaliação da inte-

ligência de crianças em idade escolar que, de acordo com

na fronteira entre a métrica de uma inteligência superior

e uma inteligência inferior como rudes ou débeis mentais.

-

cretino (débil mental superior); imbecil (débil

mental médio) e idiota (débil mental inferior).1 Esse tipo

de testes foi fartamente criticado, sobretudo por tratar de

modo homogeneizador diferenças individuais e marcas de

classe, etnia e gênero. Ainda hoje, tais marcas não foram

1 Sobre o assunto, ver a dissertação de Ana Rocha, O que fazer com os

rudes? Isaías Alves e as divergências sobre o papel da inteligência na

organização escolar (1930-1942). Programa de Pós-Graduação em

História, Política e Bens Culturais, CPDOC-FGV, 2011 (pág.43).

Page 340: Untitled - Editora UFMG

338

-

ção positiva dessas marcas identitárias tem alcançado nos

últimos anos, contrasta com a virulência com que elas veem

sendo atacadas, mais recentemente.

Pensando nas duas referências mencionadas, assim como

nos avanços sociais que se encontram sob ameaça, imaginei

que o atributo sugerido livremente por Darin – e que outrora

foi utilizado para fortalecer estigmas socialmente construí-

inteligência específi-

ca, um modo de compreender e agir que vem tomando conta

da cena nacional. Seu campo cognitivo está focado apenas

nos interesses materiais e imediatos, no senso de oportu-

nidade para aumentar os ganhos privados, ainda que, para

isso, se adote uma política de morte dirigida a toda a popu-

lação, a que Mbembe chamou de necropolítica2. No rastro

-

da de princípios éticos e morais que lhe imponham limites.

Essa situação passou a fazer parte de nosso cotidiano, com-

parecendo ao noticiário, diariamente e, desse modo, fazen-

do sombra a pensamentos e ações construtivos, criativos e

solidários.

Nada disso estava previsto na trajetória de uma geração

processo de construção democrática que se seguiu a este

evento e se estendeu por boa parte de nossa vida produtiva.

A cada dia, temos uma surpresa com as manifestações de

indivíduos e grupos que comungam concepções e práticas

racistas, misóginas e homofóbicas. Estas estão sendo cada

2 MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção,

política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo, 2018. 80 p.

Page 341: Untitled - Editora UFMG

339

vez mais naturalizadas e vão se avolumando, congregando

e dando visibilidade a seres desprovidos do sentimento de

empatia. Acrescente-se a isto, os ataques à ciência assim

como as práticas de desconstrução das memórias históri-

cas, pela disseminação de notícias falsas.

Minha percepção é a de estar sendo alvo de práticas de

assédio moral, operadas em nível nacional, visando desqua-

-

querda. Como Darin, eu me vejo imprensada entre duas pan-

demias: a da covid-19 e a dos imbecis de hoje que instigam o

ódio e o medo, em consequência de seus atos e declarações

públicas. Esses atos e declarações sistematicamente divul-

gadas pelas mídias promovem um desequilíbrio psíquico em

-

ções e crenças.

Em meio a essa pandemia psíquica – que nos desequili-

bra e entristece, nos desorganiza e nos deixa indignados e

inseguros – desencadeia-se a pandemia do novo coronaví-

rus, bem mais concreta e avassaladora, visto que ameaça

a nossa própria vida, a vida de quem amamos e, sobretu-

do, daqueles grupos mais vulneráveis. Frente a ela, fomos

obrigados a suspender nossos hábitos de sociabilidade,

nos recolhendo em nossas casas, mas sem abandonar o

trabalho.

Para quem atua na Universidade, foi adotado o trabalho

remoto para garantir, ao menos parcialmente, a continui-

dade de nossas atividades e projetos. Aliás, por falar em

projeto, um entre os muitos problemas que se colocam para

os professores universitários diante dessa nova situação

é a questão de adotar, ou não, aulas remotas, sem excluir

aqueles alunos que não possuem equipamentos ou acesso à

Page 342: Untitled - Editora UFMG

340

internet. Outra preocupação é a de não contribuir para na-

turalizar o uso de plataformas e aulas digitais sem cuida-

do com a inclusão e a adequação de conteúdos e condições

igualitárias de aprendizagem. Vale lembrar que o ensino a

distância tem sido uma estratégia largamente utilizada por

grupos privados, que lidam com a educação visando o lucro

e, nessa linha, adotam práticas de gestão que levam ao de-

Por outro lado, o recolhimento que a pandemia do novo

mais distanciamento sobre a realidade anterior a ambas as

pandemias. Nesta outra realidade, o que eu vejo são turmas

trabalho e dispersão em atividades múltiplas, constante-

-

competitividade entre pares. Mas o fato é que, a par do dis-

tanciamento de nossos locais de trabalho, nenhum de nós

está trabalhando menos por conta da quarentena. Nossas

atividades de orientação, extensão e de pesquisa continuam

a todo vapor.

Tendo em vista que a Universidade se constitui como um

que nós teremos capacidade de apresentar à sociedade uma

proposta original e consistente para o desempenho de nos-

sas atividades de produção e disseminação de conhecimen-

tos. Nessa pausa, seguimos revendo nossas certezas e en-

saiando metodologias de trabalho mais adequados às novas

condições que permeiam o futuro incerto que se anuncia.

Finalizamos esse pequeno desabafo, certas de que, qualquer

Page 343: Untitled - Editora UFMG

341

que seja a metodologia encontrada, ela estará coerente com

os princípios éticos e morais que marcam a diferença entre

contraposição aos negacionismos e à apologia da violência.

Page 344: Untitled - Editora UFMG

342

Teatro da tortura

Carolina Ruoso

Belo Horizonte, 10 de junho de 2020

Page 345: Untitled - Editora UFMG

343

Na noite em que a Regina Duarte, na época Secretária da

Cultura do Brasil, concedeu uma entrevista eu não dormi,

não deu. Agito nas redes sociais: trabalhadores da cultura,

atenção! A pauta da luta é aprovar a Lei de Emergência Cul-

tural, postaram. Lei que prevê utilizar os recursos do Fundo

Nacional de Cultura para apoiar os artistas nesse momento

da pandemia. Os trabalhadores da cultura foram os primei-

ros a parar e serão os últimos a voltar em todos os setores

e linguagens. Havia naquele momento uma importante mo-

bilização nacional, muitas reuniões por web conferência.

Além dos debates sobre a Lei Aldir Blanc eu acompanhava

os movimentos de solidariedade para apoiar artistas, todo

um trabalho de mobilização para arrecadar cestas básicas

e distribuí-las. Naquela noite todos compartilharam textos

indignados com os impropérios ditos pela Regina Duarte.

Era 08 de maio de 2020. ´No texto da atriz Regina Duarte

havia a mesma frequência repetida pelos bolsominions mo-

derados: vamos em frente! Eu quero paz! Neguei, disse para

mim mesma que não queria ver e ouvir tamanho absurdo!

Me dizia, ela fala com eles. Inquieta, dormi muito mal, uma

dor indescritível. Como ela poderia tratar os artistas com

tamanho desrespeito? A dor me corroía. Ela é atriz, me

Page 346: Untitled - Editora UFMG

344

dizia! Ela fez a Viúva Porcina, ela não é incompetente. Ela é

atriz, o que faz uma atriz ocupando a cadeira da secretaria

da cultura do Brasil? Ela encena.

Na madrugada a ideia de encenação me vinha à cabeça.

Ela é atriz, a namoradinha do Brasil? Namoradinha dos tor-

turadores? De qual lado ela está? Qual teatro? Que teatro é

esse que ela encena com os bolsominions? Será um Teatro

da Tortura? Dizemos que nesse governo todos são admira-

dores de torturadores. Portanto, como nós temos assistido?

Como temos atuado diante do Teatro da Tortura?

Na manhã do dia 09 de maio resolvi conversar com um

O escrevi pelo aplicativo de mensagens para perguntar a

respeito dessa encenação, precisava dialogar e tinha no-

tado por meio das redes a abertura do Emiliano ao diálogo

nesse momento de pandemia. Queria eu saber se era possí-

vel dizer que Regina Duarte reencenava a tortura naquela

entrevista. Ela reencenava a tortura ao cantar para todos

um dos hinos da ditadura? Ao negar uma homenagem ao

poeta Aldir Blanc? Emiliano argumentou, “(...) é um contra-

-testemunho. Se o testemunho lembra, repete, insiste em

dizer que houve o que houve, para que a sociedade elabore

através disso a recusa da repetição prática do crime, o que

eles estão fazendo é repetir uma narrativa para elaborar a

possibilidade de uma repetição prática. Um horror, portan-

to!” Ao comentar sobre o Teatro da Tortura com Emiliano,

ele disse: “Regina encena o papel do algoz, do abusador, do

torturador”.

O que podemos entender por Teatro da Tortura? Além de

Aldir Blanc, perdemos durante a pandemia o ator Flávio Mi-

gliaccio que atuou no Teatro Arena, ao lado do Augusto Boal

que criou o Teatro do Oprimido. Na mesma época Zé Celso

Page 347: Untitled - Editora UFMG

345

-

te a sua entrevista, ao cantar a música Pra frente Brasil.

Quando todos queríamos chorar com Marias e Clarices no

solo do Brasil. Ao cantar ela reencena a prática do silencia-

mento, da negação de que houve tortura no Brasil. O Teatro

da Tortura é um ato de tortura pois pretende negar aos so-

breviventes a possibilidade de reelaborar e transmitir por

meio do trabalho da memória. Os bolsominions moderados,

são, portanto, atores coadjuvantes do Teatro da Tortura e

repetem seu texto pelo Brasil afora produzindo a negação

da palavra dos testemunhos e dos artistas, querem impedir

a cura por meio dos trabalhos da memória.

É pavoroso pensar que estamos vivendo uma espécie

de tortura coletiva, tortura que se impõe pelos meios de

comunicação, na guerra cultural, guerra de informações. É

assombroso!

O Teatro da Tortura é uma tentativa de nos impedir de

atuar, de agir, de construir experiências de solidariedade,

de ajuda-mútua. Todos esses são valores do Teatro Colabo-

rativo de José Celso Martinez Correa e Augusto Boal.

Depois de nomear o ato da Regina Duarte de TEATRO DA

TORTURA, estou pensando muito no livro do Didi-Huber-

man “Remontagens do Tempo Sofrido” trago esse livro para

lembrar as imagens do Chile, das curadorias de barricada,

reinventando, reelaborando nossas narrativas, remonta-

gens dos tempos sofridos, desde o começo da colonização.

Outra imagem que trago é do fotógrafo Augustí Centelles

do texto do mesmo livro “Quando o humilhado olha o humi-

lhado”. Augustí Centelles fotografou as barricadas na guer-

Page 348: Untitled - Editora UFMG

346

“Quando o humilhado olha o humilhado, não é somente

o trabalho da humilhação que é dado a ver. É também, por

uma espécie de reviravolta dialética, *o trabalho contra a

humilhação* que se põe em movimento e procura suas con-

dições visuais de aparição. É preciso ter de fato uma energia

política fundamental que Centelles chama, no início do seu

diário, de um “espírito de rebelião permanente” (spirite de

rebel-lia contínua), mesmo quando a situação parece sem

saída para os refugiados que “não recebem uma única aju-

da” tangível. É assim que, em 14 de abril de 1939, dia do

aniversário da República espanhola, ‘todo o bairro combi-

nou que, uma hora da tarde, quando a trombeta anuncia-

ria a retomada do trabalho, haveria um minuto de silêncio

-

tarmente levando a mão ao boné. Eles proibiram toda cele-

bração nas barracas, assim como do lado de fora’. Quando o

humilhado olha o humilhado, ele faz de seu olhar um ato de

conhecimento. Ele não suaviza em nada a experiência sofri-

temporal, tornando-a uma experiência adquirida, uma ex-

periência suscetível de ser transmitida para o futuro.”1

O TEATRO DA TORTURA quer justamente sufocar essa

experiência adquirida, essa que é suscetível de ser trans-

mitida no futuro, nosso presente. O Teatro da Tortura quer

impedir que possamos reelaborar a nossa narrativa que

possibilita o ato de conhecimento produzido quando o humi-

lhado olha para o humilhado. O Teatro da tortura quer nos

1 DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontagens do tempo sofrido. O olho da

história II. Trad. Márcia Arbex e Vera Casa Nova. Belo Horizonte: Edi-

tora UFMG, 2018, p. 236.

Page 349: Untitled - Editora UFMG

347

humilhar a todos, outra vez, repetidas vezes, todos os dias.

Criando desamparo.

Entretanto, todo dia faremos nosso minuto de silêncio e

inventaremos experiências de solidariedade, de ajuda-mú-

tua. O Teatro do Oprimido, o Te-Ato, nos é uma experiência

adquirida, um ato de conhecimento. E no Teatro Colabora-

tivo que vamos atuar para transformar a dor em luto, em

luta, em sonho, em utopia.

Page 350: Untitled - Editora UFMG

348

Isto não é uma guerra pela vida e o

vírus não é democrático

Sílvia Correia

Rio de Janeiro, 15 de junho de 2020

Page 351: Untitled - Editora UFMG

349

Desde o início da pandemia, testemunhamos a recorrente

beborreia do discurso de guerra na boca dos “líderes” po-

líticos. São expressões como: “estamos em guerra”; “vírus

chinês”; “orçamento de guerra”. Em suma, chegam aos nos-

sos ouvidos discursos sobre sacrifícios em prol da economia

“nacional”.

Diria que o discurso de guerra agrada ao cidadão, mais

ou menos bem-intencionado, que vê nestes momentos de

estado de exceção uma certa ordem da coisa sua, ou por-

das ditas sociedades modernas. A guerra contra o inimigo

– não necessariamente externo ao “corpo nacional” – não é

nova, é aliás jargão da gesta diária da coisa sua. Do controle

das economias ao controle dos corpos, a pandemia só per-

mitiu acentuar práticas de autoritarismo há muito aceites,

para largas faixas de sociedades profundamente desiguais.

Dizer que este vírus é democrático é tão falacioso quanto di-

zer que há democracia. Coloque-se as perguntas: quem tem

que encarar a rua para trabalhar?; quem tem acesso às con-

dições de saúde?; quem terá acesso ao milagre da vacina?!

Page 352: Untitled - Editora UFMG

350

A meu ver o que está em questão não é a formulação de

discursos de guerra. A guerra (clássica ou de tipo novo, em-

bora não concorde totalmente com a proposta de Mary Kal-

dor) não é a exceção, mas a norma. A violência armada con-

tra o inimigo – interno ou externo – da comunidade nacional

sempre esteve aí. A guerra é a política por outros meios di-

ria Clausewitz; a guerra é a síntese da violenta experiência

colonial diria Tarak Barkawi.

Perguntada, a propósito de um debate, porque a pande-

mia – uma crise humanitária global – convoca uma lógica da

guerra? Fiquei matutando porque isso não me havia chama-

do a atenção até esse momento. Aliás, nenhum dos discur-

sos claramente mobilizadores deste jargão me chamaram à

atenção. Não porque estude guerra e já tenha esse tipo de

discurso normalizado, mas porque nada de novo me pare-

ceu surgir daqui.

O contexto de pandemia – de ameaça à vida – autoriza

formas de autoridade que, em outros contextos, não seriam

– aparentemente – legítimas. Lógicas de absoluto controle/

uso das vidas em prol de uma causa que, em última instân-

cia, aqueles que controlam o discurso e a esfera pública con-

seguem hegemonizar.

Entendemos que uma grave crise de saúde pública coloca

na mesa a necessidade – ou desejo – de soluções mais ex-

tremas, mas não seria mais adequado aquelas medidas que

preservam o valor da vida e não aquelas que partem de lógi-

cas antagônicas de destruição/seleção? O medo da epidemia

individual (não esqueçamos o que é fundamental para a ma-

nutenção do Poder a ocupação da arena pública) e abre espa-

ço para o sistema tecnototalitário e/ou do velho modelo da

Page 353: Untitled - Editora UFMG

351

à (des)mobilização absoluta para o controlo das estruturas

e dos corpos para uma imunização do corpo nacional (Paul

Preciado). É preciso eliminar o vírus em nome da vida: a

guerra passa a ser pela maior e mais legítima das causas,

contrassenso, mas que serve a quem controla.

Longe de uma discussão ontológica, existem vidas que se-

quer são enquadradas como vidas, passíveis de ser catego-

rizadas como vidas precárias no entender de Judith Butler,

aquelas que os estados enquadram como passíveis de cuida-

do e proteção e, em última instância, passíveis de luto. Cabe

aqui perguntar: quem assume a linha da frente nesta guer-

ra? Quais corpos garantirão a imunização da “comunidade

nacional”? In extremis, como ou quais vidas não produtivas

(maioria de grupos de risco), ao cuidado dos cuidadores –

sendo justa, cuidadoras – vão ser elevadas à condição de

vida precária? Não se trata de uma guerra pela vida, mas

por aquilo que é passível ou não de ser considerado vida, que

é passível ou não de luto. Em síntese, trata-se de uma per-

petuação da política da morte, da necropolítica de Mbembe.

Trata-se da condição permanente das nossas sociedades.

Sempre estivemos e estamos em guerra.

Page 354: Untitled - Editora UFMG

352

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitem-

po, 2004.

ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civili-

zação Brasileira: 2019.

BARKAWI, Tarak. “Decolonizing war”. European Journal of

International Security, v 1 n. 2, p. 199-214, 2016.

BUTLER. Judith. Quadros de Guerra. Rio de Janeiro: Civili-

zação Brasileira, 2015.

CLAUSEWITZ, Carl Von. On War. Princeton, New Jersey:

Princeton University Press, 1995.

KALDOR, Mary. New and Old Wars. California: Stanford

University Press, 1999.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições,

2018

Page 355: Untitled - Editora UFMG

Covard-17

Vírus ignorância

Vidas negras importam

NoGenta Street Art X ContraConsciência

Rio de Janeiro, entre março e junho de 2020

Page 356: Untitled - Editora UFMG

354

O ano de 2020 já está marcado para sempre. A crise do

covid-19 mexeu com o mundo de uma forma nunca visto

antes. No Brasil não poderíamos esperar que fosse dife-

rente do que tem sido. A eleição de Jair Bolsonaro trou-

xe um governo instável, despreparado e que se mostrou

contra a democracia e diversos investigações envolvendo

o presidente e sua família. Essas características do gover-

no fazem o enfrentamento e o isolamento social no Brasil

-

lamento que teve início em abril de 2020, fomos vendo uma

onda de negacionistas ao vírus e militantes antidemocrá-

ticos tomar conta das ruas em atos que mais agridem do

que pedem alguma melhora de fato, tínhamos a sensação

de que nada estava sendo feito.

Para nós, artistas e artivistas, esse movimento gerado

por todos esses acontecimentos acaba se tornando combus-

tível para expor nossas ideias e protestar em favor do nosso

bem comum, a favor da nossa democracia, e por um lugar

mais justo. Esse é o objetivo principal da nossa arte.

O assassinato de George Floyd, no Estados Unidos, por

um policial branco, despertou no mundo um desejo por mu-

dança em todos nós e principalmente na comunidade negra

ao redor do planeta, um desejo não só por justiça, mas uma

vontade real de transformação, de um novo mundo, com

menos preconceito, desigualdade e com mais empatia entre

nós. Isso com certeza é um grande passo para repensarmos

nossa forma de viver.

Depois de diversos acontecimentos, em que vimos nossa

democracia sendo ameaçada na frente de nossos narizes,

não poderíamos esperar por mais tempo para, com muito

cuidado, sair à rua para protestar da nossa forma.

Page 357: Untitled - Editora UFMG

355

Quando levamos nossa arte as ruas, queremos instigar

um pensamento crítico a todos em contato com ela, discutir

e o futuro que queremos e com isso colocar a arte de fato

onde deve estar, perto do seu povo.

Talvez durante o isolamento, e com as nossas novas for-

mas de viver, que tornaram nossa vida mais solitária, con-

seguiremos ter tempo pra descobrir quem nós somos e ver-

dadeiramente conhecermos nosso eu, e a partir desse ponto

Page 358: Untitled - Editora UFMG

356

Vírus Ingnorância - Tijuca, RJ. 31 de maio de 2020

Page 359: Untitled - Editora UFMG

357

Vidas Negras Importam - Túnel Rebouças, RJ - 11 de junho de 2020.

Nogenta X Contra Consciência

Page 360: Untitled - Editora UFMG

358

Oniriopolítica e necropolítica em tempos

Pedro Castilho

Belo Horizonte, 10 de junho de 2020

Page 361: Untitled - Editora UFMG

359

-

tros quadrados, em decorrência do isolamento social do co-

ronavírus. as regras da oms determinavam que não se pode

sair dos espaços de habitação em razão da pandemia que

social obedecem às formas de controle do corpo biológico.

o corpo carne que é um corpo dócil às regras do biopoder,

esvaziado de qualquer metafísica.

a mania

-

com amantes, amigos ou a-mantes-migos, também se inten-

fantasias mais diversas que a pulsão lhe proporcionava ao

retornar em seu próprio corpo e perder a relação com a rea-

lidade. ele encontrou na internet uma forma de ir mais além

da materialidade do corpo biológico e começou a fazer lives.

as lives o lembravam que estava vivo, para ele e para os

outros, olhar e ser olhado o fazia existir. os afetos intensos

se masturbar com uma frequência maior do que a habitual.

Page 362: Untitled - Editora UFMG

360

prazer. jorge iniciou um embate de força entre o corpo do-

cilizado pelo biopoder e um outro corpo que não se adapta

à regra do controle social. esse corpo tinha uma boca que

queria comer mais e mais. ela, a boca, procurava no prazer

da comida apaziguar sua angústia. a boca queria comer o

tempo todo, a boca tinha preferências por doces e por frutos

do mar. a culinária passou a ser um exercício diário que de-

mandava horas de trabalho para jorge. a cozinha começou a

o que não interessava em nada a jorge. a boca começou a gri-

tar quando tinha fome, ninguém na casa de jorge tinha paci-

quando tinha comida. mas, como as empregadas domésticas

não estavam em casa, o trabalho na casa de jorge dobrava

para ele e sua companheira. os dois tinham que lavar, pas-

sar, cozinhar, trabalhar, cuidar das crianças e das ativida-

des remotas da escola.

a depressão

mais o dia da semana. o noticiário informava que o núme-

ro de mortos já havia chegado a 1500 pessoas por dia. seus

amigos estavam com os sintomas da doença, jorge não que-

ria fazer mais as lives, mas, a boca de jorge queria continuar

comida. ela comia a si mesmo e, não falava nada. ela só tinha

vontade de comer, mais nada. a boca começou a misturar os

horários do café da manhã, do almoço e do jantar. ela não

sabia mais qual era a hora de cada refeição. o corpo começou

a pesar e pesar, jorge sentia dores em várias partes do corpo

e não conseguia acordar antes do meio dia. jorge estava se

Page 363: Untitled - Editora UFMG

361

sentindo pesado e zonzo. a coluna de jorge estava doendo

muito e, os dias começaram a ser substituídos pelas noites.

os sonhos intranquilos de jorge vinham com muita intensi-

dade. as histórias infantis de jorge vinham à tona, com ima-

gens de sedução e de agressividade na infância. a mãe de

jorge aparecia como uma mulher seca e sem afeto que me-

tralhava-o na cena onírica. no instante seguinte, jorge conti-

nuava no sonho de que estava retornando para a casa e não

encontrava mais esse lugar. o corpo de jorge pesava ainda

mais, ele queria apenas comer e beber. a bebida começou a

a reparação

jorge começou a compreender o ritmo do isolamento so-

cial. a rotina passou a ser algo importante para ele assimilar

o novo normal. ele começou a ter interesse sexual por sua es-

-

mais saudáveis. procuraram atendimento psicológico online

e começaram a fazer aulas de pilates virtual. jorge começou

a estudar piano que havia parado há vários anos. os beijos

entre jorge e sua esposa foram mais frequentes. pela amazon

compraram mercadorias para facilitar o trabalho doméstico.

em um dia qualquer desses, jorge foi ao supermercado fazer

compras. ele foi para o estabelecimento de máscara e foi con-

fundido com um ladrão. a polícia chegou rápido para prender

jorge que não teve reação. ele sentiu uma grande dor no peito

e percebeu que havia recebido um tiro à queima roupa, sen-

do vítima de um assassinato policial por ter um corpo da cor

negra. o corpo negro escapa ao controle do biopoder por ser

um corpo matável e violável sem a menor possibilidade de

reação. temos mais um corpo negro morto no chão.

Page 364: Untitled - Editora UFMG

362

A vida não me assusta nem um pouco:

genocídio negro em dias pandêmicos

Luciana Brito

Salvador, 8 de junho de 2020

Page 365: Untitled - Editora UFMG

363

O primeiro pensamento que veio a minha mente esse do-

mingo ao acordar foi sobre a falta que Miguel deve fazer para

Dona Mirtes, sua mãe. Ela não vai poder sentir seu cheiro,

Nem abraçá-lo ao acordar. Nem cobri-lo de beijos e com isso

ser grata à vida.

ter sido sua mãe por 5 anos.

Miguel Otávio foi morto pelo racismo. Não foi de covid e

dessa vez não foi tiro da polícia. Miguel foi abandonado num

elevador pela “patroa” da sua mãe, que levava os cães da

família para passear enquanto a patroa fazia as unhas.

Me assusta muito, a ponto de ser quase enlouquecedor, o

desprezo pelas vidas negras. Desde que a pandemia come-

çou não tivemos tréguas, continuamos a morrer das formas

antigas, e de formas novas.

Embora a pandemia tivesse chegado ao Brasil pelo cor-

po branco das elites brasileiras, rapidamente chegou nos

corpos negros daquelas responsáveis por cuidar das pes-

soas nos seus “isolamentos seletivos”: as trabalhadoras

domésticas.

Entendidas como prestadoras de serviços de primeira ne-

cessidade, estas não pararam durante a pandemia. Vejo-as

Page 366: Untitled - Editora UFMG

364

apressados, máscaras no rosto, carregam bolsa e sacolas.

Aguardam nos pontos de ônibus com olhar de pavor o trans-

porte que demora a chegar. Vivem o dilema da necessidade

de trabalhar e a incerteza de carregar nos seus corpos o ví-

rus que pode ceifar a vida do resto da sua família.

Babás, cuidadoras, faxineiras, além de porteiros, caixas

de supermercado, entregadores, garis, lixeiros, zeladores.

São estxs, os negrxs e pobres que totalizam a maioria entre

os mais de 50 mil mortos por Covid-19 no Brasil. A imagem

das covas rasas, das mortes sem rituais e sem adeus me fez

pensar que chegamos no fundo do poço do desprezo em re-

lação à vida.

Enquanto isso a violência policial cresce em tempos de

pandemia. Foram-se tantos e tantas em todo Brasil, sem

tréguas. João Pedro foi morto aos 14 anos, dentro de casa,

enquanto cumpria a quarentena. Micael, de 11 anos, aqui

em Salvador, saiu para empinar pipa quando a PM chegou

no seu bairro atirando. Micael não resistiu.

Enquanto isso a imprensa nos pergunta por que os negrxs

brasileirxs não protestam como os negrxs estadunidenses

que se rebelam contra a morte de George Floyd. Eu realmen-

te acredito que as pessoas não raciocinam antes de nos fazer

essa pergunta.

Somente nós choramos nossos mortos. Quando um jovem

uma política antinegra genocida que tudo que tem para nos

dizer é um imoral: “e daí? Lamento. Quer que eu faça o que?”

O que custará para a polícia, com os aplausos coniventes

da classe média brasileira que verá tudo pela televisão, caso

todas as pessoas negras e pobres desse país tomassem as

Page 367: Untitled - Editora UFMG

365

ruas para expressar nosso ódio, nossa indignação, nosso

medo de morrer?

Caso isso acontecesse, a vida seguiria normal, assim

como seguiu após a morte de Ágatha, de Mariele, de Joel, de

Evaldo, de Cláudia. As elites continuariam a fazer seu exer-

cício físico costumeiro nas orlas das grandes cidades, sem

máscaras, exigindo a quebra do isolamento social em nome

da economia.

Gritam nos seus protestos motorizados: voltem ao

trabalho!

O jogo político continuaria seguindo como segue, aprovei-

tando a pandemia e nosso medo de morrer para “passar a

boiada”. Aliás, pergunto-me o que me assusta mais, o Covid

ou a necropolítica? E quando a última usa aquele primeiro

para lavar a cabo seu projeto genocida?

Assim, os dias tem se passado enquanto insisto em viver

esse luto cotidiano, respeitando a memória das pessoas que

se foram e me recusando a naturalizar suas mortes. Todo

mundo vai um dia, mas por que uns vão antes que outros?

Quem são as/os que vão primeiro de maneiras que poderiam

ser evitadas? Por que naturalizar as mortes dessas pessoas,

desumanizando suas histórias? Irá também quem diz que

todo mundo vai um dia?

Passam os dias em meio às minhas obrigações cotidianas:

à mesa que se amontoa de trabalho, assim como a pia, de

pratos. Desisti de fazer da quarentena um momento de “alta

produção”. Eu não consigo produzir com medo de morrer,

ou vivendo esse luto. Tento mostrar para minhas/meus alu-

-

po-me com essa geração sem bolsa, sem incentivo, sem aula,

sem internet, sem livros. Que não desistam da universidade,

Page 368: Untitled - Editora UFMG

366

ainda que diante das necessidades mais urgentes que lhe

apontam suas famílias.

Prometo que trabalharei menos, respiro, tenho que ir de-

vagar. Limpamos a casa. Pedirei a meu companheiro para fa-

zer o almoço, pois hoje a reunião vai acabar depois do meio-

-dia. Cansei das lives, principalmente das minhas, cansei.

Farei exercícios amanhã pela manhã e vou me sentir me-

lhor, aliás tenho feito quase todos os dias. Sou grata pelo sa-

lário, pela comida, pela internet, pela casa espaçosa, pois sei

que por pouco tudo poderia ser muito diferente. Me apego

na fé, agradeço à ancestralidade.

Miguel, canta uma música que vem do seu quarto. Ele can-

doesn’t fright me at all” (a vida não me assusta, nem um

pouco).

Como uma pessoa abandona uma criança de 5 anos num

elevador?

“Live doesn’t fright me at all”.

“Live doesn’t fright me at all”.

Racismo desgraçado! como a gente vive assim?

E ele canta ainda mais alto: “Live doesn’t fright me at all,

not at all”.

Page 369: Untitled - Editora UFMG

367

Miles, @sedmilesstudio

Page 370: Untitled - Editora UFMG

368

em tempos de pandemia

Maria Clareth Gonçalves Reis

Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, inverno de 2020

Page 371: Untitled - Editora UFMG

O racismo e a discriminação racial estão presentes em

todos os setores da sociedade (educação, saúde, cultura,

moradia, emprego etc.) e as políticas públicas voltadas à

população negra estão cada vez mais ausentes e/ou dis-

tantes de seu público alvo. Além disso, percebe-se que a

política adotada pelo atual governo, vem contribuindo

ainda mais para a perpetuação do racismo do que com a

sua erradicação.

Para compreendermos melhor como o racismo conti-

nua presente em todos os cantos do país (e do mundo)

selecionei alguns episódios para ilustrar este cenário, em

destaque, aqui no Brasil. Este isolamento tem me instiga-

do a pensar sobre estas questões. Vários fatos têm mos-

trado como o racismo se manifesta individual, institu-

cional e, também estruturalmente.

Em relação ao cenário político atual, este não me

surpreende, pois já foi explicitamente pré-anuncia-

do que teríamos muitos ataques aos direitos, histori-

camente, conquistados pelo movimento negro e pela

sociedade civil. Em 2018 foi eleito um presidente que,

Page 372: Untitled - Editora UFMG

370

em toda sua campanha, já demonstrava a quem iria servir.

Enquanto deputado federal, Jair Bolsonaro já anunciava

sua posição racista, inclusive em atitudes.

Em 2017, foram abertas duas representações na Procura-

doria-Geral da República em razão de crítica a negro quilom-

bola; “nem para procriar ele serve mais”, disse Bolsonaro. Em

relação à demarcação das terras de comunidades indígenas

e quilombolas, ele também deixou nítido em sua campanha

que, caso fosse eleito presidente da República, iria acabar

com todas as demarcações de terra para essas comunida-

des. “Pode ter certeza de que, se eu chegar lá, não vai ter di-

nheiro pra ONG (...). Não vai ter um centímetro demarcado

para reserva indígena ou para quilombola. Onde tem uma

terra indígena, tem uma riqueza embaixo dela. Temos que 1.

As ideias e ações da equipe governamental do atual pre-

sidente não têm sido diferentes. A Fundação Cultural Pal-

mares (FCP), que desde a sua criação, em agosto de 1988,

anunciava como meta a “promoção e preservação dos valo-

res culturais, históricos, sociais e econômicos decorrentes

(BRASIL, 2020), hoje se encontra em direção contrária ao

que surgiu.

Em dezembro de 2019 o presidente da FCP, Sérgio Nasci-

mento de Camargo teve sua nomeação suspensa, pelo Tri-

bunal Regional Federal da 5ª Região devido às suas publi-

cações polêmicas em redes sociais. Disse publicamente que

o movimento negro precisa ser extinto e que a escravidão

1 VEJA. Bolsonaro é acusado de racismo por frase em palestra na He-

braica. Disponível em <https://veja.abril.com.br/brasil/bolsonaro-e-acu-

sado-de-racismo-por-frase-em-palestra-na-hebraica/>. Acesso em 17 de

junho de 2020.

Page 373: Untitled - Editora UFMG

371

também a política de cotas e o dia 20 de novembro, data de

comemoração ao Dia da Consciência Negra. Foram várias as

reações e manifestações de representantes do movimento

negro e da sociedade civil, a estas publicações. Um presiden-

te de uma instituição como a FCP deveria preservar a histó-

ria, as lutas e as conquistas da população negra, ao invés de

tentar destruí-las.

Apesar de toda a mobilização gerada em torno da suspen-

são da posse do referido presidente da FCP, em fevereiro de

2020, após tramitar pelos órgãos judiciais, a sua nomeação

foi liberada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), tendo

-

ções terem sido via redes sociais. No dia 13 de abril, data que

marca os 132 anos de assinatura da Lei Áurea de 1888, Sér-

que depreciam Zumbi dos Palmares, o chamando de “herói

da esquerda racialista, não do povo brasileiro”. E para fe-

char o mês de abril, volta a atacar o movimento negro, o

chamando de “escória maldita”, em uma reunião gravada,

tendo trechos divulgados pelo Estadão2. Comenta ainda, no

referido áudio, que está em “sintonia” com o governo Bolso-

naro. A esse respeito, não há dúvidas, os fatos falam por si

sós.

Por que, neste artigo, foi dado destaque à Fundação Cultu-

ral Palmares? Justamente pela história de sua criação, em

1988, como espaço de preservação da memória e valorização

2 ESTADÃO. Presidente da Fundação Cultural Palmares chama movimen-

to negro de ‘escória maldita’; ouça áudio. Disponível em <https://politica.

estadao.com.br/noticias/geral,presidente-da-fundacao-palmares-cha-

ma-movimento-negro-de-escoria-maldita-ouca-audio,70003322554>.

Acesso em 19 de junho de 2020.

Page 374: Untitled - Editora UFMG

372

de uma história que os livros de história não contam. O atual

presidente da FCP quer tentar apagar uma história que foi

construída com lutas e mobilizações. Mas, sabemos que uma

história não se apaga assim... Cada arbitrariedade cometida

por Sérgio Camargo tem apoio do atual presidente do Brasil.

Suas ações estão alinhadas a uma proposta maior de des-

monte de conquistas e direitos, inclusive constitucionais.

Reações surgem por todos os cantos do país, com destaque

do movimento negro. Denúncias em forma de Notas de Re-

púdio, publicadas em redes sociais, tem sido uma das for-

mas mais comuns de mobilização e protesto em tempos de

pandemia. Representações no Ministério Público Federal

(MPF) também têm sido buscadas para tentar barrar as ar-

bitrariedades cometidas pelo atual presidente da Fundação

Cultural Palmares.

Uma instituição pública, seja a Fundação Cultural Palma-

res ou qualquer outra, deveria atuar no combate ao racismo

por meio de ações, projetos e políticas sociais que contem-

plem as pessoas discriminadas racial e socialmente, e não fa-

zer o contrário. Em meio à pandemia causada pela Covid-19,

por exemplo, percebemos que as famílias negras da classe

trabalhadora, das regiões periféricas, são as mais vulnerá-

veis. Muitas vezes, estas famílias não têm sequer acesso ao

saneamento básico. Também não há políticas de saúde pú-

o racismo se manifesta estrutural e institucionalmente.

Enraizado na sociedade brasileira, o racismo continua

causando danos às pessoas, individual ou coletivamente. A

violência policial continua aniquilando crianças, adolescen-

tes e adultos negros. O racismo destrói sonhos, nega direito.

O racismo mata, cotidianamente, por isso o clamor da popu-

lação negra do Brasil e do mundo: vidas negras importam!

Page 375: Untitled - Editora UFMG

Penumbra Muitas formas

de se falar sobre racismo

Panmela Castro

Rio de Janeiro, de abril a junho de 2020

Page 376: Untitled - Editora UFMG

374

Os dados mostram que o número de mulheres negras

chefes de família são altos. Elas têm que trabalhar para sus-

companheiro, aumentando desta forma, a pobreza e as di-

do padrão de uma “mulher considerada para se casar”. São

preteridas pelas brancas.

“Branca para casar, mulata pra fuder, negra pra traba-

lhar”, intitula a pesquisa de Ana Cláudia Lemos Pacheco

sobre a solidão da mulher negra, que também é o objeto de

Ao apresentá-la ao público, recebi elogios pela ‘série sensu-

al”. Essa série não é sensual, é o registro das noites de soli-

dão durante a quarentena de 2020. O que a torna sensual é

o olhar racista que hipersexualiza o corpo de mulheres mis-

cigenadas como eu. É uma série que mostra que a solidão

também pode ser o desdobramento de um problema social.

-

des para manter a família durante esse período. Mas há de

Page 377: Untitled - Editora UFMG

vida minimamente decente, que de outra forma, como corpo

hipersexualizado, só serviria pra cama, pro lazer, para uma

noite ou como amante, abandonada e sem apoio. A vida está

digna, mas celibato é compulsório e a solidão também.

Page 378: Untitled - Editora UFMG

376

Page 379: Untitled - Editora UFMG

377

Page 380: Untitled - Editora UFMG

378

Memória de uma favelada

Maria Alice Balbino

Rio de Janeiro, 24 de junho de 2020

Page 381: Untitled - Editora UFMG

379

Final de fevereiro, relatos sobre o covid-19 começam a

aparecer, eu, como moradora de favela temo. Sei que muitas

pessoas serão afetadas pela pandemia que se alastra cada

dia mais o território do Rio de Janeiro. Sou nascida na

Rocinha e convivo com a falta de saneamento básico. Entre

podem acontecer para o controle do covid-19. Como pensar

em quarentena e distanciamento social com aproximada-

mente 100 mil “vizinhos”?

Março chegou, com ele, os primeiros contaminados. A cor-

reria aos mercados e farmácias começam acontecer à cada

dia mais. Os preços dispararam, principalmente o feijão, um

dos produtos mais procurados no comércio. Muito consumi-

do dentro da Rocinha, especialmente pela grande quantida-

de de nordestinos que residem nessa grande cidade, faz com

que a correria não seja somente pelo papel higiênico como

vemos na televisão.

A preocupação aumenta, assim como o pagamento de

aluguel, as incertezas ligadas ao mundo do trabalho, foram

adicionadas a outra situação, o cuidado básico contra o co-

que lavem as mãos constantemente, lavem a roupa, utilizem

Page 382: Untitled - Editora UFMG

380

álcool em gel, andem à 1,5m de distância, limpem a casa e

poderia escrever todas as recomendações.... A prática? Não

tenho água. E quando tem, ou tomo banho, ou lavo a roupa.

Álcool em gel é artigo de luxo, equivale à 3 quilos de macar-

rão, produtos de limpeza, a compra é a básica e seu consumo,

controlado. Casas pequenas, grande quantidade de pessoas

dividindo o mesmo teto, assim como dividimos os becos.

que meu tio, seu pai e sua mãe estavam com o covid-19. A se-

-

ra do Rio de Janeiro. Meu tio tinha apenas 45 anos, prome-

teu me levar em 2021 para a Sapucaí. Não tinha nenhuma

doença, corria, jogava futebol e vivia intensamente, faleceu,

durante a graduação sobre a História da Morte do Ocidente.

Tentei relembrar se Phillipe Ariès em algum momento nos

seus textos descrevia como lidar com pestes, pandemias e

como isso mudaria o trato direto com a morte no mundo.

Não lembrei de uma palavra dos textos lidos, ouso dizer

que a relação com a morte é abstrata, a vida é a mãe, contan-

mas ainda esperamos de alguma forma que os amigos, fami-

liares e conhecidos retornem, em algum momento, em algu-

ma hora. O choro é solitário, cada um em um canto... ainda

lidamos com um vírus letal. Cada família encontra um jeito

de lidar com a dor. Na minha, o choro é trocado por risadas e

implicâncias leves para que a família saia um pouco do luto.

Maio chegou e outros amigos, parentes e conhecidos se

foram. Os números de infectados e mortos aumentaram e no

meio desse caos, vi muitas mobilizações dentro da Rocinha,

feitos pelos próprios moradores devido à ausência do Estado

Page 383: Untitled - Editora UFMG

381

e de políticas públicas para as favelas. Olhando as redes so-

ciais vi o anúncio de um curso online sobre covid-19 tendo

como objetivo, jovens para que escrevessem, registrassem

ou expressassem por meio da arte o que acontece na Roci-

nha em tempos de pandemia.

Hoje, tento com toda equipe do projeto e os outros 9 jo-

vens selecionados, atingir aqueles que exercem as políticas

públicas dentro das favelas, os próprios moradores. Expli-

car a importância da memória, de suas histórias pessoais

e como nossa organização interna deve ser exaltada, é um

processo lindo que estou fazendo parte. Todos perderam al-

guém e é via internet que estou conhecendo o verdadeiro va-

lor de coletivo. Meu conhecimento acadêmico é validado no

momento em que coloco em prática e traduzo a linguagem

para aqueles que não puderam chegar onde cheguei e é com

esse sentimento que trabalhamos há um mês, durante esse

período pandêmico. Assim, vamos honrando as histórias da-

queles que partiram, compartilhando dores e transforman-

do o luto em luta.

Page 384: Untitled - Editora UFMG

382

Miguel

Paulo César Gomes

Rio de Janeiro, 20 de junho de 2020

Page 385: Untitled - Editora UFMG

383

Miguel foi assassinado. Tinha 5 anos. Morava em Recife.

A negligência causou a morte de Miguel. Esse tipo de negli-

gência perpassa toda a história do Brasil, mesmo antes da

ideia de Brasil e de brasileiros ser criada. Acontece quase

sempre com relação a vidas consideradas descartáveis e

facilmente substituíveis. Pretos, pobres e marginalizados.

Houve um tempo em que foram escravos. Hoje são empre-

colaboradores. Não importa. A realidade é que muitos traba-

lham para enriquecer alguns poucos. É assim em qualquer

lugar inserido no sistema capitalista. No socialista também,

mas este já exige outras ferramentas de compreensão.

-

po de trabalhadoras, pois predominantemente são mulhe-

pouco claros entre sua vida privada e a dos patrões. Os li-

mites são borrados, mas devem ser subentendidos. Dessas

mulheres é exigido que sejam domesticadas: dóceis e servis.

O desrespeito aos seus direitos foi naturalizado. Os traços

dessa violência histórica estão por todos os lados. Nas resi-

dências, mesmo os pequenos apartamentos de classe média,

Page 386: Untitled - Editora UFMG

384

pelos varais cheios de roupas. Um quarto tão minúsculo que

mal cabe uma cama de solteiro e, frequentemente, nem mes-

mo tem janela.

No dia em que Miguel morreu, eu chorei. Chorei por ele

e por sua mãe, chorei por mim e pela minha. Mal consegui

dormir.

No início dos anos 1980, Maria Paula, nordestina e em-

trabalhava na casa de uma família do, hoje, tradicional es-

tamento brasiliense dos servidores públicos. Antônio tam-

bém era nordestino e trabalhava como porteiro no mesmo

edifício de classe média alta da, ainda pouco desenvolvida,

Asa Norte. O namoro acabou durante a gravidez, ele sumiu e

nunca assumiria a criança. Casos que ainda se repetem com

frequência em todo o país.

-

nha havia alguns anos, deixando sua família no Maranhão.

Afora poucos amigos e parentes distantes, não tinha nin-

guém próximo que pudesse apoiá-la. Acreditara em mais

um dos mitos brasileiros: o de que a empregada doméstica

faz parte da família de seus patrões. As relações de trabalho

se confundem com um suposto pertencimento, o que favo-

rece a exploração dessa mão de obra barata e socialmente

desvalorizada.

Uma empregada doméstica com um bebê não cabe nesse

formato. A patroa de Maria Paula sugeriu cordialmente que

Maranhão. Ela resistiu e saiu do emprego. O vínculo com

essa família, no entanto, nunca foi rompido. Prevaleceu a

conciliação. De todo modo, entre idas e vindas, a história de

se encaminhando para um desfecho feliz. Foi uma exceção,

Page 387: Untitled - Editora UFMG

385

pois esse não é o modelo predominante construído pela so-

ciedade brasileira ao longo dos anos. Prevalecem as práticas

opressivas e as relações autoritárias, fortalecidas pela as-

sombrosa desigualdade social que estrutura o país.

Na década de 1980, as violências cometidas contra as vi-

não provocavam qualquer comoção social. E quantos atos

de violência foram cometidos e sofridos em silêncio. Nessa

época, o Estado e a sociedade entrelaçados atuavam para

manter o estado das coisas. Esperava-se que cada um conhe-

cesse seu lugar social e desempenhasse seu papel de acordo

com as regras subjacentes.

que sustentam as estruturas sociais brasileiras causaram

abalos desproporcionais. O terremoto desencadeado parece,

estão tensionadas de modo, talvez, inédito na história do

país.

provoca protestos. As feridas provocadas pelas desigualda-

des sociais e pelo racismo estão expostas. Ninguém mais

das violências provocadas em razão de sua posição social

e da cor de sua pele. Há quem negue o arbítrio. Sempre há

de haver quem busca conservar o status quo ou mesmo re-

gressar aos modos como as coisas funcionavam no passado.

Habitualmente, um passado idílico que, de fato, nunca exis-

tiu. Ao menos não a ponto de incluir a maioria, aqueles que

nunca puderam contar com privilégios.

sido criado longe da mãe, o menino que poderia ter subido

na grade de um edifício e caído. Assassinado. Eu poderia ter

sido o Miguel.

Page 388: Untitled - Editora UFMG

386

Pandemia, isolamento social e trabalho doméstico

Fabiane Popinigis

Rio de Janeiro, 10 de junho de 2020

Page 389: Untitled - Editora UFMG

387

Outro dia, fazendo, além da faxina básica, uma limpeza

nos papéis antigos (do tempo em que ainda se escreviam

cartas) encontrei uma da minha mãe. Magoada com minha

revolta adolescente, lá pela segunda e terceira páginas es-

crevia, com sua bela letra: “Se você usa o banheiro, porque

não contribuir para mantê-lo limpo? Se você tem as suas

roupas passadas, guardadas, que é que te custa guardar os

objetos que você própria usa? Isso não te faz inferior. Não

existe trabalho para pessoas inferiores. Eu trabalho fora,

mas não me envergonho de limpar a casa, de ir à cozinha,

de lavar o banheiro. Não é porque sou mulher que é minha

obrigação, é porquê estou dando minha contribuição para

o conforto da minha família”. Nessa época morávamos com

minha avó e meu irmão.

-

mésticas durante a pandemia, tento me lembrar de porque

minha mãe não conseguiu me convencer com aquelas pa-

lavras. Enquanto sinto um certo prazer, confesso, em ver

o banheiro limpinho por mim mesma e a cozinha cheirosa

pelo trabalho de todo mundo que usa e em comer a comida

feita coletivamente, penso em porquê eu relutava em fazer

minha parte naquela época.

Page 390: Untitled - Editora UFMG

388

No primeiro mês em que Isabel não veio às quintas-feiras,

devido às políticas de isolamento social durante a pande-

tarefas cotidianas, contávamos com o dia em que ela viria

para fazer a limpeza mais pesada da nossa casa. Depois, fo-

mos discutindo e conversando, aos poucos dividindo as tare-

fas de casa e aprendendo a fazê-las pouco a pouco para não

acumular.

remunerado – sem terceirizar o serviço doméstico da pró-

pria casa? Como evitar essa divisão sexual do trabalho em

que a massa de trabalho invisível e não pago, essencial para

o funcionamento da economia capitalista, recai avassala-

doramente sobre as mulheres? Para que algumas ganhem

tempo de qualidade, outras se ocupam daquele serviço, que

não diz respeito aos homens. E aí me lembrei de uns versos

que ouvi numa manifestação do primeiro de maio na Sué-

cia, em que o pessoal do Vänster Partiet (partido de esquer-

da) cantava: “burgueses lavem seus próprios banheiros”. O

tema ali era um cabo de guerra entre esquerda e direita, que

reivindicava subsídio estatal para o trabalho doméstico, já

que o pouco que existia era feito por imigrantes na informa-

lidade. Mesmo assim, poucos usavam o trabalho doméstico

assalariado, e certamente estava muito longe de ser uma

prática normal e corriqueira como no Brasil, onde é tam-

bém um dos maiores nichos do trabalho análogo ao escravo

na atualidade.

Se viajantes do século XIX se impressionaram com a ne-

cessidade dos brasileiros de terem um escravo ou uma escra-

va para carregar objetos ou fazer qualquer serviço manual,

no século XX se surpreendem com a grande dependência

Page 391: Untitled - Editora UFMG

389

de famílias de classe média dessa parte do setor de servi-

tão íntimo, tão colaborativo, que é cuidar da própria casa,

limpeza e alimentação, entrou para nossa história como a

primeira coisa a ser terceirizada? Como os cuidados mais

essenciais com a reprodução da vida e do trabalho das pes-

soas e das famílias – importantes e demandados – foram tão

desvalorizados ponto de imensa parte da classe trabalha-

dora, as empregadas domésticas, ser a última categoria a

ter seus direitos garantidos por lei, após muita luta? E, por

considerado trabalho?

Enquanto eu pensava no que escrever nessas páginas,

mais uma criança morreu. Dessa vez não de bala achada,

com a camisa da escola, ou dentro de casa com a família,

como o João Vitor e a Ágatha1. Miguel morreu porque a mãe

era empregada doméstica e foi obrigada a trabalhar, quando

o correto era que os empregadores pagassem seu trabalho

para que ela pudesse seguir as recomendações de isolamen-

ele caiu do prédio. Os cães voltaram bem. O menino negro,

-

chorros de raça dos patrões passeados por ela. (Mais uma

cena pitoresca desses tristes trópicos digna da pena de um

Debret.)

-

ter “morri várias vezes essa semana” após o assassinato

de João Vitor aqui e de George Floyd nos EUA. Na semana

1 https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADcia/agatha-%C3%A9-quinta-crian%C3%A7a-morta-por-bala-perdida-em-2019-no-rio-1.367495.

Page 392: Untitled - Editora UFMG

390

anterior, acompanhamos um caso de racismo num conheci-

do colégio do Rio, diretamente ligado a um colega e amigo.

Passamos alguns dias pensando em como agir para respon-

der e evitar outras situações como essa. O colégio de alta

renda, como os outros da mesma região, tem pouquíssimos

alunos negros. Como escreveu o pai da adolescente agredi-

da, o Brasil vive um apartheid social. Como disse Ângela Da-

vis por esses dias, “o racismo voltou a ser mais violento e

explícito.” Falava dos EUA, mas podemos repetir essa frase

aqui no Brasil também.

Finalmente, quando me sento para escrever esse texto,

depois de um dia inteiro de faxina para meu próprio confor-

to e de minha família, outra notícia que me faz sentir nas pá-

ginas de “O conto de aia”, de M. Atwood: duas funcionárias

de carreira do ministério da saúde foram exoneradas por

publicarem uma nota sobre o acesso à saúde sexual e saúde

reprodutiva das mulheres durante a pandemia, incluindo a

interrupção da gravidez nos casos garantidos por lei2. Para

o presidente as mulheres devem suportar todo o fardo re-

sultante das violências físicas e psicológicas, sem nenhum

apoio ou proteção social.

As mulheres, que carregam o peso de grande parte dos

chamados serviços de cuidados, estão na linha de frente do

combate à Covid, como enfermeiras e cuidadoras, como mé-

dicas, como mães e donas de casa para as quais o trabalho

doméstico se acumula; as mulheres às quais se atribui como

função exclusiva ou especialmente delas, serem responsá-

veis pela criação das crianças e pela limpeza e manutenção

da casa, sem remuneração, de forma invisível e naturalizada

estão mais expostas à violência nos tempos de isolamento,

2 https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-distorce-docu-

mento-e-sugere-falsa-tentativa-de-legalizar-o-aborto,70003325109.

Page 393: Untitled - Editora UFMG

391

com menos recursos para se proteger e com menos acesso a

quem recorrer3.

Algumas análises projetam em torno de 5.000 mortes di-

árias por COVID-19 no Brasil em agosto4, e muito disso pode-

ria ter sido evitado se a cadeira da presidência da República

não estivesse ocupada por um genocida. Outras ondas pós-

-pandemia vêm por aí, uma delas ligada aos resultados do

aumento da exposição das mulheres à violência e à gravidez

indesejada ou forçada.

E aí me lembro dos panelaços que ridicularizavam a pre-

sidenta Dilma, das injustiças que sofreu Marisa, que as fra-

ses que mais se disseminavam na própria esquerda era que,

“pela primeira vez as dondocas pegavam nas panelas e era

pra bater uma na outra”. Então amigos, quer dizer que as

panelas são para as mulheres? Que a responsabilidade pela

“cozinha” é delas, certo? Algumas mulheres podem, even-

tualmente ou sempre, livrar-se das panelas e impingir esse

serviço às mais pobres e geralmente mais negras ou indíge-

nas, reproduzindo a desigualdade e a violência em outros

termos.

-

nha mãe. Ao contrário do que ela me dizia, tudo à minha

valorizado, não pago e praticamente invisível. Lembro de

3 https://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2020/05/observatorio-

-aponta-aumento-da-violencia-contra-mulheres-na-pandemia; http://

-

-da-violencia-contra-a-mulher-na-pandemia-de-covid-19-um-problema-

4 https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/modelo-usado-pela-

-casa-branca-projeta-5-mil-mortes-diarias-por-covid-19-no-brasil-em-a-

gosto.shtml?utm_source=facebook&fbclid=IwAR2s0F3Vrpy_0OW9BR-

rHNFPa2D-Y5nUbZVjWu29MFQqskWEr_C2WtGXqPOY.

Page 394: Untitled - Editora UFMG

392

um pequeno ímã de geladeira com os dizeres: “Ninguém vê

o que eu faço, a não ser quando eu não faço”. Para falar de

igualdade é preciso falar do trabalho e do serviço domésti-

co, de sexualidade, da reprodução da vida. Para uma gran-

de transformação é preciso recomeçar do zero: dividindo e

a bens culturais e materiais de forma igualitária. Sem isso

não tem mudança, nem antes, nem pós-pandemia.

Terminando esse texto, vejo que os protestos antirracis-

tas nos EUA após o assassinato de George Floyd se irradiam

-

vos inglês em Bristol na Inglaterra; em São Paulo e no Rio

ocorrem protestos antifascistas; em Buenos Aires, sob a

bandeira do movimento Ni una a menos canta-se: “el pa-

triarcado se vai a caer se va a caer” e “a América Latina será

toda feminista”. Bate um sopro de esperança. Mas ao mesmo

tempo, os governos começam a fazer a abertura pós-quaren-

tena, quando o vírus chega com mais força nos subúrbios,

nas comunidades e favelas. Que mundo teremos no pós-pan-

demia? Teremos um aprofundamento de desigualdades e da

exploração do trabalho, pelo maior controle do grande capi-

tal, levando ao colapso e à destruição da própria terra e seus

recursos? Ou podemos acreditar que a partir da crise uma

grande transformação é possível, que a luta antirracistas,

feminista e socialista leve à um outro mundo de igualdade,

liberdade, justiça social e preservação ambiental?

Page 395: Untitled - Editora UFMG

O dia em que eu transbordei

Ana Maria Mauad

Rio de Janeiro, 1 de junho de 2020

Page 396: Untitled - Editora UFMG

394

Dia 1 de junho de 2020, pouco depois das 15 horas, ti-

nha acabado de almoçar, eu e meu marido, assistíamos ao

Estúdio I, programa vespertino de notícias, do canal de TV

a cabo, Globo News, quando logo depois de assistir a cena

abaixo na televisão, eu transbordei. Não consegui conter o

pranto e chorei copiosamente.

Não se trata, neste texto, de falar da minha dor ou dos mo-

tivos pelos quais eu precisava chorar, mas sim do gatilho que

detonou o meu choro desesperado. A imagem congelada da

cena do episódio que transcorreu, no bairro de Laranjeiras,

em frente ao palácio Guanabara, durante os protestos antir-

racista e antifascista, no domingo dia 31 de maio, sintetiza

a violência que estamos submetidos cotidianamente. De um

lado, o jovem negro, Jorge Hudson da Silva, de 27 anos, com

trajes informais e calçados típicos do carioca, a indefectível

sandália de borracha; de outro, um policial com colete a pro-

va de balas, máscara e um fuzil, uma arma de guerra. Atrás

no rosto e boné, acompanha a cena. Com certeza, se a arma

disparasse, ambos seriam atingidos, mas a cena os congela

nesse instante contínuo. Ela, com os braços estendidos ao

longo do corpo, parece entregue ao terror que a imobiliza

Page 397: Untitled - Editora UFMG

395

frente a uma tragédia iminente, ele, por sua vez, levanta

os braços em sinal de que está desarmado. Inclusive, se ob-

servamos com maior cuidado a imagem, ele leva, os pés do

Nada na imagem do jovem demonstra ou apresenta risco,

sua direção para atirar. Talvez a força explosiva de um pé

de chinelo de borracha seja uma arma letal… mas não serei

irônica.

O desequilíbrio entre um chinelo e um fuzil, fragilidade do

jovem de shorts e camiseta, seu corpo leve que se detém, as

mãos adejando como asinhas, frente ao paramentado poli-

chão. A cena me provoca tal desespero que a minha reação

imediata é a de me colocar diante do rapaz, e gritar na cara

do policial que ele não poderia estar fazendo aquilo… mas eu

estou vendo tudo isso como espectadora de algo que, embora

continue a acontecer na minha frente, já foi.

Em tempos de isolamento social por conta da pandemia

de Covid-19, causada pelo SARS-Cov-2, a passagem do tem-

po ganhou dimensões inusitadas. Vivemos a rotina déjà vu

se repetir. Entretanto, somos confrontados, por meio do no-

ticiário, com um tempo de brutalidade cuja velocidade nos

deixa atônitos. A cada dia, o número de óbitos por conta da

pandemia sobe em progressão geométrica, o que não impede

o ritmo alucinante de uma política de destruição dos corpos

e das esperanças, por parte das autoridades que deveriam

assegurar a saúde e a paz. No instante contínuo da sucessão

de cenas, eu transbordei.

Page 398: Untitled - Editora UFMG

396

Acredito que o meu transbordamento não foi isolado,

como em um tempo paralelo, outros organizaram manifes-

tos, abaixo-assinados, projetando o futuro da democracia

no Brasil. Já os mais jovens planejam manifestações para

o futuro próximo, outros só querem voltar a trabalhar para

garantir um amanhã. Todos transformando a epidemia em

passado. Eu só penso, nos meninos e meninas que por se-

rem negros são exterminados a balas de fuzil, como se suas

vidas não importassem para todos nós. Penso nas minhas

penso naqueles que perderam o emprego, em outros que es-

tão sem aula e não podem merendar, no pessoal que traba-

lhava na praia, na família que vende coco da Lagoa, no povo

da Aldeia de Cachoeira Seca, lá no Pará, que esperava tanto

da gente, todo mundo junto ao mesmo tempo agora, e só con-

sigo chorar em pânico.

Não sou dada a crises de desespero, por treinamento ou

formação racionalista, chorar funciona momentaneamente,

mas não resolve. Por isso, respiro. É preciso planejar, domi-

nar a força do tempo imposto pelo pânico de governantes

autoritários e conjugar as forças na hora da reação. Mas eu

nasci em 1960, portanto, não tenho os mesmos parâmetros

dos mais jovens que se lançam na vida que deve ser vivida.

Estarei velha demais? Entre o vírus e o verme conseguire-

mos frente à brutalidade do presente, transformar expecta-

tiva em esperança?

Page 399: Untitled - Editora UFMG

Militância e vizinhança:

a vida política que se vive da janela

Carmen Castro

Lapa, Rio de Janeiro, 15 de junho de 2020

Page 400: Untitled - Editora UFMG

398

No mundo todo, as janelas e sacadas se tornaram locais

de convivências e manifestações políticas e culturais, estabe-

lecendo, assim, um novo local de sociabilidade. No Brasil, os

panelaços pelo “Fora Bolsonaro” nas janelas se destacaram

durante a quarentena – tanto como manifestação organizada

pelas redes de Internet quanto de forma espontânea em várias

cidades. Nestes espaços, tiveram também shows, aniversários,

conversas, xingamentos e até tiros disparados em reação cri-

minosa aos protestos contra o presidente da república1.

1 https://catracalivre.com.br/entretenimento/mumuzinho-faz-show-

-na-varanda-de-casa-durante-quarentena-e-viraliza/; https://g1.globo.

com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/03/19/menina-de-14-anos-ganha-

-parabens-de-vizinhos-pela-varanda-no-rio.ghtml; https://g1.globo.

com/pe/pernambuco/noticia/2020/03/22/vizinhos-cantam-parabens-

-pela-janela-para-idosa-que-teve-festa-de-99-anos-cancelada-por-con-

ta-do-novo-coronavirus.ghtml; https://www.agazeta.com.br/es/norte/

da-sacada-de-predio-vizinhos-cantam-parabens-para-crianca-em-linha-

res-0320; https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/04/08/po-

licia-civil-investiga-disparos-contra-predios-em-perdizes-na-zona-o-

este-de-sp-durante-panelacos.ghtml; https://www.agazeta.com.br/es/

norte/da-sacada-de-predio-vizinhos-cantam-parabens-para-crianca-em-

-linhares-0320; https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/04/08/

Page 401: Untitled - Editora UFMG

399

O recorte sócio-antropológico deste texto sobre a quaren-

tena de Covid-19 incide na vivência política a partir da ja-

nela e junto à vizinhança, desde um apartamento no Centro

da Cidade do Rio de Janeiro. O Centro do Rio é marcado pela

dinâmica econômica do comércio e prestação de serviços. A

parte residencial do bairro é pequena e funciona como ni-

chos de moradores. Há uma parte pulsante da região que

corresponde à vida noturna dos bares nos arredores dos

Arcos da Lapa. Esta é uma intensa área de sociabilidade

na Zona Central da Cidade que junta moradores e a maio-

ria de frequentadores não moradores e turistas nacionais e

estrangeiros.

A dinâmica de sociabilidade nesta região da Cidade mu-

dou com a decretação da quarentena pela Prefeitura, na se-

gunda quinzena do mês de março. A agitação cultural foi pa-

ralisada com o fechamento de bares, restaurantes, espaços

de apresentação musical hotéis e hospedagens alternativas.

A parte residencial também mudou e passou a existir a so-

ciabilidade das janelas. A convivência da vizinhança, até en-

tão inexistente ou desconhecida por grande parte de quem

habita as unidades residenciais do Centro, passou a se con-

centrar nos quadrados de vidros que ligam os apartamentos

com o mundo externo.

A vizinhança se apresentou nas janelas com os panelaços

e gritos de “Fora Bolsonaro” – nuns dias, mais entusiasma-

da; noutros, menos; e em alguns dias, furiosa, como o dia

da demissão do Ministro da Saúde2. Através de gritos, batu-

cadas, apitos e cornetas, a vizinhança conseguia transpor

policia-civil-investiga-disparos-contra-predios-em-perdizes-na-zona-oes-

te-de-sp-durante-panelacos.ghtml2 https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-04-16/mandetta-e-demitido-

-por-bolsonaro.html

Page 402: Untitled - Editora UFMG

400

os seus pequenos apartamentos. Pelas janelas se comunica-

ram com o mundo lá fora – não necessariamente um com o

outro. Ainda que alguns intercâmbios tivessem sido trava-

dos entre janelas próximas – ao lado, em frente, em cima e/

ou embaixo. Nas janelas, houve discussões entre vizinhos,

xingamentos, cantorias, instrumentos musicais tocados,

vaias e aplausos.

que passaram a sair dos buracos envidraçados, mudou o

ambiente externo que passou a entrar nos apartamentos.

Os ruídos dos carros diminuíram e as músicas e conversas

dos bares cessaram. As sirenes de ambulâncias e da polícia

passaram a se destacar no ambiente. Pássaros – bem-te-vis,

-

mente, passaram a ser vistos e escutados.

Vizinhos começaram a se ver também. Ainda que de re-

lance. Disfarçadamente de canto de olho, “como quem não

está olhando”, mas está. Sorrateiramente entre cortinas e

persianas. Ou em declaradas aparições. A maioria que se

olhou e se ouviu não sabe o nome um do outro. Nos prédios,

muitas pessoas vivem sozinhas. Há algumas famílias. Tem

idosos, jovens, adultos e crianças. Homens, mulheres, gays

e homofóbicos que se manifestaram, segundo suas intole-

râncias sociopolíticas ou orientação sexual: “Viado!”; “Sou

viado, sim! Fora Bolsonaro!”. Têm também gatos, cachorros

e plantas pelas janelas com telas.

Durante a pandemia, também surgiram vizinhos novos.

No dia 31 de março, um grupo de moradores de rua que

dormia na Praça da Cruz Vermelha ocupou um casarão fe-

chado3. O sobrado que já tinha sido morada do Presidente

3 https://noticias.uol.com.br/reportagens-especiais/

ocupacao-no-rio-em-tempos-de-coronavirus/

Page 403: Untitled - Editora UFMG

401

Washington Luís, na rua de mesmo nome do político, pas-

sou a ser habitado por famílias sem teto impulsionadas pelo

-

cou com a diminuição do movimento no Centro.

O grupo marcadamente composto por mulheres e crian-

ças negras se comunicou com a vizinhança pelas janelas e

pela sacada do casarão ocupado. Gritavam para os morado-

res que haviam entrado naquele lugar com o objetivo de se

protegerem do coronavírus. Diziam que tinham limpado o

casarão que estava com ratos, baratas, água parada e mos-

quito da dengue. Quando os carros da polícia chegaram, su-

plicaram algum apoio aos vizinhos dizendo que precisavam

de teto, que “moradia é direito”, que não eram bandidos e

que por favor chamassem a televisão – a mídia.

Exatamente em frente ao prédio onde moro, a janela foi o

meu local de observação e de apoio à ocupação. Das janelas

dos edifícios estava posta a curiosidade com o novo agito na

rua. Aparentemente não foram bem recebidos pela maioria

dos já instalados na área. Poucas foram as demonstrações

de solidariedade. Pairava no ar a hostilidade da vizinhan-

ça com os novos moradores negros e pobres ocupantes do

casarão – ou “invasores” para quem não concorda com a

ação. Assim, o meu contato com a ocupação se deu em qua-

tro fases. Através da janela, na demonstração de apoio com

alguns gritos de solidariedade à luta pela moradia e um pu-

nho erguido. Nas fotos tiradas pelo celular para repassar

aos grupos e movimentos sociais de luta por moradia. Na ida

ao portão do casarão, do outro lado da rua, para conseguir

números de telefone e repassá-los ao Núcleo de Terras e Ha-

bitação da Defensoria Pública/RJ. E no contato com grupos

militantes para o fornecimento de comida para as pessoas

que ali estavam e reclamavam de fome.

Page 404: Untitled - Editora UFMG

402

Sair da quarentena no meu apartamento e ir até o portão

do casarão para estabelecer contato foi uma travessia longa

e tensa. Sob os olhos que vinham das janelas e das porta-

rias dos edifícios, vi-me principalmente acompanhada pelos

olhares condenatórios da síndica e de dois vizinhos idosos

do prédio onde moro. Vociferavam que “aquela gente” inva-

diu e que tinha “gente no prédio” que apoiava “a invasão”.

No portão da ocupação, tive que estabelecer em minutos um

me visto antes, de modo que me fornecessem números de ce-

lulares para um contato da Defensoria Pública. No momento

que tentava me comunicar com elas, apareceu um homem

que disse ser da Prefeitura. Ele tinha um crachá pendurado

-

balha como “segurança” do comércio ao lado. Dei-me conta

do que desconhecia: a presença de um tipo de milícia na rua.

Contudo, o mais importante foi o olhar de uma das mulhe-

seu, mas estamos dormindo na rua. Eu estudo no Instituto

Não sei o que assegurou a permanência até agora das fa-

mílias no casarão – se foi a ação da Defensoria que contatou

as mulheres da ocupação, através dos números de celula-

res; ou a determinação da Prefeitura que enquanto durasse

a quarentena fossem suspensas as ações de despejos; ou se

foi outra coisa. Sei que os novos vizinhos estão aqui em fren-

te e que é através das janelas e da sacada do casarão que

sabemos de parte de suas vidas.

Mulheres, homens, jovens e crianças são avistadas nas

de água e energia elétrica. Estabeleceram espaços para as

Page 405: Untitled - Editora UFMG

403

famílias e o coletivo – como o pátio em que crianças brincam

e aniversários foram comemorados. Lavam roupas e monta-

ram varais. Recebem doações de comida, algum mobiliário

e “utensílios para o lar”. Os sons do casarão são diversos.

Desde gritinhos de crianças brincando: “meus pintinhos ve-

nham cá! Tenho medo da raposa!...”. A integração nos pa-

nelaços de “Fora Bolsonaro”. Entusiasmados “parabéns pra

você” e animados funks e pagodes. E até um grito feminino

de dor e desespero que ocorreu numa noite e invadiu o es-

paço. Alguém se acidentou. “Fogo, fogo!”; “apaga, apaga!” A

vizinhança se postou nas janelas. Uma luz saiu pelas telhas

laterais de plástico evidenciando que era fogo. Peguei o celu-

bombeiros – e expor a ocupação ao escândalo da chegada dos

carros salvadores – ou acompanhar e esperar mais um pou-

co para ver se eles mesmos resolviam o acidente e o socorro.

Conseguiram resolver a situação de apagar o fogo e levar

uma moça do casarão possivelmente para uma emergência.

No caso deste recorte vivido, os panelaços e a ocupação

dos sem teto foram acompanhados como estratégias de per-

sistência da vida social e política. No espaço de um aparta-

mento no Centro do Rio, as manifestações políticas e cultu-

rais, a solidariedade, a empatia e também a hostilidade se

apresentaram de outro jeito. Em meio a tantas adversida-

des de uma quarentena, entraram pela janela sopros de es-

perança e de resistência popular. Surgiu a nova moradia de

quem não tem casa e, quiçá, poderá ter vida nova frente a

tantas precariedades. A sociabilidade nesta pandemia vem

sendo vivenciada tanto pelas molduras de smartphones e

computadores quanto pelas molduras de janelas e sacadas.

Distintas das redes de Internet por sua materialidade, as ja-

nelas se tornaram o espaço mais real de sociabilidade. Elas

Page 406: Untitled - Editora UFMG

404

trouxeram a concretude da vida. E a comunicação com o

-

são, audição e do olfato.

* Enquanto revisávamos o texto para esta publicação, no dia 15 de se-

tembro de 2020, a exatos cinco meses e meio de ocupação do casarão,

um forte aparato policial. Chegou o “novo normal” impondo a proprieda-

de privada sobre o direito à moradia através de uma série de despejos

iniciada há alguns dias. Ouviram-se argumentos sobre a necessidade da

moradia e o abandono do sobrado frente ao cumprimento da posse pelo

aparato estatal. A vizinhança se lançou em silêncio pela janela. Seguiu-

-se o desalento da retirada dos pertences de quem tem muito pouco, qua-

se nada. Para onde foram as mulheres, crianças, idosos, jovens e até um

cachorro – quase todos negros?

Page 407: Untitled - Editora UFMG

Curupaiti Vila 1 Casa 17 Taquara /

Jacarepaguá

Valéria Guimarães da Silva

Filha separada pelo isolamento compulsório de pais acometidos de Hanseníase (Lepra)

Rio de Janeiro, 15 de junho de 2020

Page 408: Untitled - Editora UFMG

406

Sim, esse é meu novo endereço, depois de 53 anos viven-

do fora da ex-Colônia de Curupaiti, lugar onde nasci, como a

maioria dos Filhos Separados pelo Isolamento Compulsório

de pais Acometidos de Hanseníase. Retornei para cuidar de

minha mãe e padrasto (Paidrasto), que eram internos da ex-

-Colônia, desde criança e adolescentes; aliás quase todo meu

histórico familiar tanto da parte biológica, como da parte da

família de criação, foram e ainda são internos da ex-Colônia

de Hanseníase Curupaiti/RJ.

Minha mãe e padrasto, já eram bem idosos e devido a

na casa que o Estado (ITERJ), através de uma concessão de

moradia me deu direito como Filha Separada pelo Isolamen-

to Compulsório de continuar residindo. Durante esse perí-

odo me deparei com várias situações e realidades que por

ter sido separada de minha mãe biológica, me foi um gran-

emoção!

E depois de quase um ano convivendo com vários amigos

de meus familiares, percebi que apesar de estarmos pas-

sando por um período de uma Pandemia Mundial, como a

Pandemia de Lepra (Hanseníase) em décadas passadas, ao

Page 409: Untitled - Editora UFMG

407

qual meus familiares foram internados compulsoriamente,

durante décadas, período esse que perdurou até os anos de

1986 (Lei Federal 11520/07), conseguimos manter uma

força e união que me surpreendeu muito. Realmente esses

seres humanos, apesar de sofrerem tudo que sofreram em

um Isolamento Compulsório, diferente do Isolamento Social,

da Pandemia atual, tem uma força e ensinamentos de con-

trole emocional, que chega dar inveja em muitos psicólogos,

psiquiatras e terapeutas, e por aí vai …

E nesse breve relato, entendo que o maior de os ensina-

mentos a seguir diante dessa Calamidade Pública, é que

mesmo dentro de uma ex-Colônia. Eu me senti amparada e

protegida por esses idosos “da antiga”, assim são chamados,

que nos orientam e nos mostram com suas vivências e expe-

riências de Isolamento Compulsório, que a União, Solidarie-

dade entre eles, que fez com que muitos deles conseguissem

suportar todo esse período de dor, solidão e falta do acon-

chego familiar entre eles.

Segue aqui alguns apelos aos historiadores desse País:

-

pulsório, não permitam que esse episódio da história de saú-

de pública que foi a Pandemia de Lepra (Hanseníase), seja

negligenciado da história de saúde pública no Brasil!

Somos o segundo país na incidência dessa “maldita doen-

ça”, que ainda excede os parâmetros de eliminação perante a

OMS, principalmente nas regiões Norte e Nordeste de nosso

país. Precisamos evidenciar mais essa Luta de Eliminação

da Hanseníase e conscientizar a sociedade tal qual a Pande-

mia de Covid19, para que juntos ao governo, autoridades,

instituições e a sociedade como um todo, não permita mais

arbitrariedades e violações de Direitos Humanos e Sociais.

Page 410: Untitled - Editora UFMG

408

Teresinha de Covid

Renata Otto Diniz

Belo Horizonte, 30 de junho de 2020

Page 411: Untitled - Editora UFMG

409

Teresinha de Covid-1

Primeiro, eu pensei: sim, teremos de nos esforçar aqui den-

tro de casa. Principalmente eu, distribuidora de horários e

tarefas. Mãe-esposa-eu-dona-de-casa. Agora, somos nós três

aqui dentro de casa sem intervalos e sem compromissos

fora de casa. E não mais eu mais em casa do que os outros.

Eu, dona de casa, mais que os outros, apesar de ninguém

ser mais dono de casa que o outro, eu, sim, normalmente

preparo e ofereço as refeições. Mas agora, nós três dentro

de casa, com apenas compromissos remotos, online, não di-

ários, nem regrados diferencialmente entre dias de semana

-

sabilizo pelos horários da casa? Mas eu? Horário? Inclusive

meu próprio horário de trabalho e de estudo, porque, sim,

tenho meus deveres pessoais, estou na pós-graduação, pre-

ciso escrever tese, tenho lá meus compromissos. Meus, sim.

Assim são vistas por mim e pelos outros, as coisas somente

minhas no “mar” de coisas coletivas que eu coordeno, como

“dona de casa.” Que palavras quadradas! Que expressão ul-

trapassada! Que posição ofensiva para as mulheres, desde o

tempo de minha mãe. Na infância tinha sempre notado esse

Page 412: Untitled - Editora UFMG

410

constrangimento quando ela precisava preencher qualquer

formulário. É preciso informar seu “estado civil”; e, depois,

talvez: casada (ou em união conjugal estável – mas que dia-

bos isso tem a ver com a minha saúde ou com a conta que

fazia, posso responder dona de casa. Ou, então, respondo:

antropóloga – mas não sou uma professora, não estou em-

pregada, meu emprego nem sequer é tomado como emprego,

todas as mulheres, se não temos um emprego fora, somos

primeiro e ainda donas de casa. Mas somos invariavelmente

donas de casa. Tanto é assim que se temos um emprego fora

de casa, somos acostumadas a deixar outra pessoa em nosso

lugar de dona de casa. Entre duas mulheres, se uma é uma

empregada fora de casa contratando outra para sua empre-

Essa pandemia e essa quarentena servem talvez para aju-

dar revelar um pouco, para os que podem ver, a estrutura

machista/racista da nossa sociedade. Sim, uma mulher que

contrata outra mulher para realizar os afazeres domésticos

uma mulher negra. Tudo isso é função de nossa regra mais

geral do patriarcado. Ela vige ainda hoje, ela vige talvez ain-

de casa, menos os que não podem. Nem preciso lembrar o

caso da morte do menino Miguel, em Recife!

Teresina de Covid-2

-

nado logo depois em conjunto pelos demais moradores dessa

Page 413: Untitled - Editora UFMG

411

casa. Na pandemia, deveremos nos cuidar. Mas será preciso

uma pandemia para nos lembrar de nossa mútua responsa-

bilidade com o cuidado uns dos outros? Era preciso cuidar

para não nos deixar soltos por aí sem rotina, sem contorno,

sem limite, tomados integralmente pela dúvida. Fiz um cro-

o caminho das chakras no corpo para que nos impulsionás-

semos para a prática da meditação, principalmente porque

a meditação se baseia no exercício da respiração. Precisa-

mos aprender a respirar diante desta doença que afeta mais

os pulmões e nossa capacidade de respirar. Nem preciso

lembrar o caso G. Floyd em Minneapolis dos EUA!

Mas abandonei os calendários na segunda ou terceira se-

mana. Adesão impossível. Eu mesma não poderia promover

um programa diário que não conseguia seguir sozinha. Ávi-

dos por notícias, atormentados, tontos como baratas tontas,

adolescente, mas ela também, zanzando nas mensagens de

WhatsApp, surfando na web, assistindo o JN sem parar. Eu,

-

pulsionar e coordenar os outros. Fiz um tanto de meditação,

Page 414: Untitled - Editora UFMG

412

Plataformas incríveis eram anunciadas como um remédio

para enfrentarmos a pandemia, com a promessa de apro-

veitarmos nosso tempo de quarentena para nos instruir,

jamais sem fazer nada em casa! Não! Jamais! Assisti, e as-

lives e mais lives,

encontros virtuais sobre muitas coisas. Muitas discussões

sobre a pandemia, sobre o vírus, sobre o contágio sobre pos-

sibilidades de vacinas... Mas também muitas outras sobre o

pandemônio que é ter um presidente da república que é um

negador perverso das práticas mínimas de saúde para con-

ter o avanço da doença e das mortes. Principalmente, sabe

que a esmagadora maioria dos mortos será parte das “mi-

norias”; indígenas, negras, faveladas, mulheres, pobres...

Aliás, é preciso não esquecer, que mais da metade de nossa

população vive com menos de quinhentos reais, enquanto 6

-

te, como eu, não consegue desligar a TV enquanto a noite

se torna madrugada e o dia se vespertina. Assim, passamos

a nos levantar meio dia, almoçar às quatro ou 6 da tarde...

Dentre todas as minhas promessas de rotina, eu consegui

mas ao vivo com meu professor amigo antigo que eu não via

há muito tempo, Alfredo Anglophone! Talvez a quarentena

e a pandemia com seus males, ensinem outra forma para re-

contatar os velhos amigos, realizar talvez um velho desejo,

escrever um conto, uma saída...

Page 415: Untitled - Editora UFMG

413

Teresinha de Covid-3

Hoje, no dia 29 de junho, quando escrevo este texto, já se

passaram 4 meses do início da quarentena. As lives foram

boas, animavam e tiravam a gente da falta de encontro e da

falta de qualquer horário realmente coletivo. Participei de

algumas como mediadora, assistindo e cooperando, ou só as-

ainda menor. Ainda mais porque caímos nessa necessidade

de esterilizar tudo, limpar compras, roupas, sapatos, bolsas,

carteira, cartão, óculos, máscara, corpo, tudo! Álcool, água

sanitária! Lixo! O lixo também se multiplicou talvez na mes-

ma proporção em que o tempo diminuiu. Quatro meses que

se passaram como semanas. Sim, gastamos meio ano nisso.

2020 parece um ano perdido e vago. Hoje, o Brasil é o segun-

do país no ranking de contágio e responsável por 11% das

mortes do planeta! Somos 57.774 mortos hoje! Os povos in-

dígenas têm 150% mais de mortalidade (morte por cem mil

habitantes) e 7% de letalidade (mortos por contagiado), en-

quanto a média nacional é de 5%. Nossos números, tão alar-

Page 416: Untitled - Editora UFMG

414

que não temos um ministro da saúde durante a pandemia.

O benefício emergencial de 600 pratas chegou para bastan-

te gente, milhares de presidiários, dezenas de milhares de

empresários, centenas de milhares de militares, mas mui-

tas pessoas pobres não alcançam seu direito. Aprendi nesse

comprar a janta”. São as pessoas que passam o dia coletan-

do sua única refeição, fazendo o corre de dia para voltar a

noite viva. As pessoas que precisam vender o almoço para

comprar a janta, tragicamente, não são exceção no país. Ao

contrário, como disse, 50% da nossa população deve fazer

literalmente isso com sua renda de nem 500 mangos. Mas

agora, hoje, durante a quarentena de meses, como podem

-

não têm água encanada, nem casa. Isso prova que devemos

lutar pela adoção da política da Renda Básica Universal. Não

-

mos doentes como civilização. Estamos exaustos, estamos

exaurindo nosso planeta, nossa casa, nossa terra-planeta.

O mundo não pode respirar. Eu não podia mais respirar.

Tirante o curso de inglês, larguei tudo! Fiquei totalmente

exausta! Não quero aderir a esse mundo sem intervalo!

Page 417: Untitled - Editora UFMG

415

Teresinha de Covid-4 na caixa de Pandora

“Toda essa destruição não é nossa marca, é a pegada dos

brancos, o rastro de vocês na terra”. Esta frase é do líder

yanomami, Davi Kopenawa, está publicada no site do Insti-

década de 1980 em função da luta pela demarcação da Ter-

ra Indígena Yanomami no contexto da epidemia de malária

disseminada pela invasão garimpeira sobre suas terras. So-

bre a pegada dos brancos sobre a terra o líder, Borum do rio

Watu, Aílton Krenak, disse que ela nada tem de leve. Foi o

desastre de nossa ocupação na face da terra que nos trouxe

à pandemia, e nada, tragicamente nada, faz com que as gen-

tes da terra, ou os pobres possam reverter os rumos ditados

por aqueles que querem se colocar num foguete quando o

projeto deles de destruição da Terra estiver mais perto de

se completar. Mesmo que nós, os que não estamos na mi-

núscula parcela que caberá no foguete, e nem entre os que

insanamente a apoiam, estejamos contra o projeto de extin-

ção da Terra, não estamos isentos de sofrer com o projeto

deles. Todos estamos sob os efeitos da pandemia, claro, mas

a pandemia é mortal para as gentes da terra, enquanto é

uma doença curável para o povo do foguete que, defendendo

a abertura para os outros e o isolamento para si, prospera

-

tura de todos os demônios, depois dos gafanhotos, depois da

estrela do cacique Raoni Metyktire ter subido novamente ao

céu, uma pedra reluzente, um vagalume, uma história, um

-

bos negros, os modos dos povos da terra, esses permanece-

rão. Os colonizadores, esses serão banidos. Depois da terra

Page 418: Untitled - Editora UFMG

416

chacoalhada, outra estação, outra Era. Ela virá. Esse é meu

Page 419: Untitled - Editora UFMG

Isolamento

Timeline

Agenda

Ministério da Saúde

Genocida

LOR

Belo Horizonte, isolamento por Covid-19 de 2020

Page 420: Untitled - Editora UFMG

418

Page 421: Untitled - Editora UFMG

419

Page 422: Untitled - Editora UFMG

420

Page 423: Untitled - Editora UFMG

421

Page 424: Untitled - Editora UFMG

422

Page 425: Untitled - Editora UFMG

Carta para minha avó Joana

Daniela Yabeta

Porto Velho, 9 de junho de 2020

Page 426: Untitled - Editora UFMG

424

Querida vovozinha, como estão as coisas por aí em Rio

das Ostras? Aqui em Porto Velho eu ando muito preocupada

com a senhora e com o povo que está no Rio de Janeiro. Sin-

to uma dor no peito danada quando penso que estou à 3.700

km de distância de vocês e sem poder fazer absolutamente

nada para mudar isso.

Minha rotina aqui na cidade mudou pouco. Como eu não

conheço ninguém, antes da pandemia minha vida era con-

centrada em casa, no trabalho, no salão de beleza para fazer

de semana. Agora, a universidade suspendeu as aulas. A úl-

tima vez que estive em sala de aula foi no dia 11 de março.

casa trabalhando. Sim, trabalhando. As aulas foram sus-

pensas, mas a universidade não parou. Continuo tocando

pesquisas, atividades de extensão, participando de bancas

e tudo mais. Nesse período de isolamento social eu criei um

grupo de estudos, o Núcleo de História Pública da Amazô-

nia (Nuhpam). Além disso, iniciei uma série de entrevistas

chamada “Amazônia em Quarentena”. Uma pena a senhora

não ter internet em casa, tenho certeza de que iria adorar

acompanhar as nossas conversas.

Page 427: Untitled - Editora UFMG

425

No mais, só saio para a padaria, mercado e farmácia. Uma

vez ao mês costumo passar no banco para sacar dinheiro. A

única vez que sai para algo fora dessa rota foi quando os ca-

chorros comeram o controle remoto da televisão. Caminhei

Por falar em bichos, divido a casa com três cachorros

e oito gatos. Os cachorros: Dudu, Cacau e Betinho, estão

amando a quarentena. Nem reclamam de terem deixado os

passeios na rua. Estão super grudados em mim. Acho que

quando eu voltar às aulas na universidade vão sentir muito

a minha falta. Quando eu preciso fazer alguma coisa na rua,

fazem um escândalo! Eu ouço o choro deles até depois de

virar a esquina. É de cortar o coração.

Já os gatos: Zeca, Chico, Tom Tom, Senhor Saraiva, Mi-

chelle, Luzia, Natasha e Rui, não estão muito felizes com mi-

nha presença 100% em casa. Às vezes eu penso que eles pre-

cisam de um tempo, sabe? Acho que estão de saco cheio de

mim. Ruizinho furou a quarentena porque precisou castrar.

O veterinário veio aqui buscá-lo e ele passou uma noite fora.

Dias depois de voltar para a casa ele começou a espirrar.

Logo o Senhor Saraiva e o Zeca também manifestaram os

mesmos sintomas. Adivinha? Gripe felina! Os oito entraram

no antibiótico. Teve gente me perguntando se era o corona-

é a moral da história: Ruizinho nos ensinou como o ciclo de

contaminação funciona. Não podemos vacilar que o vírus

pega a gente mesmo e diferente da gripe felina, não há re-

médio que cure a COVID19, por isso minha preocupação com

o povo no Rio de Janeiro e a senhora em Rio das Ostras.

Lá no Irajá, na casa do papai e da mamãe, Diogo tem fei-

to toda tarefa de rua. Os dois estão absolutamente isolados,

nem no quintal circulam. Meu pai não vai nem ver a mãe.

Page 428: Untitled - Editora UFMG

426

Eu ligo para eles através de vídeo chamada no celular todos

os dias. Minha mãe reclama do cabelo que está crescendo.

Acredita que ela chegou a ter a ideia de chamar alguém para

cortar? Eu e o Diogo brigamos com ela. É importante que

ela tenha consciência que faz parte do grupo de risco, assim

como a senhora. O Hospital de Laranjeiras mantém contato

com ela frequentemente. Como os exames dela estão ok, a

recomendação é que permaneça em casa. Tudo está cami-

nhando certo. Não precisa se preocupar.

O lance é que ao cumprir à risca o isolamento social, ma-

mãe deixou de jogar na quina todos os dias. Ficou com medo

-

rica. Daí sabe o que aconteceu? A senhora lembra daqueles

números que ela acompanhava desde que o vovô nos deixou

em 09 de agosto de 1988? Pois então, 32 anos depois deu a

quadra e ela perdeu 8mil reais! Vó, quando eu soube disso

eu não acreditei. Agora eu mesma faço o jogo daqui, com a

sorte não se brinca. Imagine se fosse a quina?

Sobre a senhora, apesar das nossas conversas por telefo-

ne serem constantes, sei que gosta de receber cartas. Como

não posso postar pelos Correios, envio essa por aqui. Imagi-

casa, mas por favor, entenda que é necessário. Soube que a

senhora anda lendo bastante (gostou do livro da Malala?)

e que a tia Ilka está produzindo máscaras. Isso é ótimo! É

muito importante que a senhora não se exponha ao vírus –

olha o que aconteceu com o Ruizinho! Ficando em casa e não

recebendo ninguém a senhora estará protegida. Não posso

dizer que logo isso vai passar, mas sei que vai passar e até

lá, preciso ter a certeza de que a senhora estará segura. Por-

tanto, não minta para mim! Nada de sair escondida, viu?

Page 429: Untitled - Editora UFMG

427

tempo. Quero passar muitos verões em Rio das Ostras ao seu

lado curtindo a praia e comendo camarão, esse vírus não vai

atrapalhar nossos planos.

Se proteja vozinha, é só o que te peço. A senhora é o meu

brilhante! Deixo aqui um enorme beijo e o mais gostoso

abraço.

*Joana da Conceição Ribeiro é minha avó materna. Ela

nasceu no Rio de Janeiro em 21 de março de 1933 e atu-

almente mora no município de Rio das Ostras (RJ) com a

irmã Ilka – nascida em 26 de junho de 1928. Falo com ela

toda semana por celular, ela não tem internet em casa. Há

duas semanas ela me pediu que escrevesse uma carta, sente

saudade de receber pelos Correios. Eu sempre mantive esse

costume com ela. Expliquei que não poderia enviar, mas ela

me pediu que guardasse até nosso reencontro. Foi assim que

eu tive a ideia de deixar registrado aqui.

Page 430: Untitled - Editora UFMG

428

Corrente de retorno

Mulambö

Rio de Janeiro, maio de 2020

Page 431: Untitled - Editora UFMG

429

Quem diria né, que a saudade que quebra tanto a gente ia

ser também o que nos faz ter força pra passar por isso. Por-

coisas, são essas mesmas coisas que nos fazem seguir.

Esse trabalho é sobre olhar para trás para poder andar

para frente.

Nesse período tão complexo em que vivemos, precisamos

de alguns respiros. No meu caso, por exemplo, além de man-

ter contato com quem eu amo, revisitar fotos antigas, ver

-

minho de samurai de vez em quando – porque ninguém é de

ferro né – é o que me dá força para entender que tudo isso vai

passar, e digo mais, que tudo isso tem que passar porque eu

preciso pegar uma praia e um churrasco lá no canto da Vila.

Lembrar desses momentos nos possibilitam uma perspec-

tiva de futuro.

Um olhar pra frente que, por ser o que nos resta, é o que

nos torna, sei lá, tipo criança.

Lembra quando tu era pequeno e escrevia de lápis ainda

na escola e só queria escrever de caneta porque era mais

maneiro? Sei lá, é meio assim que eu tô hahaha.

Page 432: Untitled - Editora UFMG

430

E essa vontade é o que tem me protegido, confesso. No

trabalho ‘Corrente de retorno’ podemos ver isso através dos

búzios que surgem a partir da relação com as máscaras de

proteção que usamos agora pensando no futuro. Eles nos

protegem através da ancestralidade, da família e da memó-

ria e nos leva ao ontem, ao hoje e ao amanhã.

E isso sempre nos protegeu – tivemos que aprender a nos

reinventar e reaprender a desenvolver novas sociabilidades

e criar laços desde que começaram a construir nessa ter-

ra uma nação em cima de nossas costas – e vai continuar

protegendo.

A ancestralidade nos protege, assim como minha vó me

protege e eu protejo a minha vó. Assim como protegemos

nossas crianças e elas nos protegem – e perturbam também,

né, não dá pra negar hahaha.

E é por aí que olhamos pra frente. Toda vez que levo as

crianças na praia ela me contam do futuro. Nossos pés sa-

ser criança é meio que isso, né?

Tô com saudade, mas não tenho medo da corrente de re-

torno, porque nós somos o mar.

Page 433: Untitled - Editora UFMG

Na perspectiva das janelas

Mario Brum

Rio de Janeiro, 15 de junho de 2020

Page 434: Untitled - Editora UFMG

432

Domingo, 7 de junho de 2020. Eu estava vendo com meu

Rio, em que numa pá-

gina o pássaro branco, vilão da história, aparece atrás das

grades, porque no primeiro plano estão as araras-azuis, pro-

achasse que o vilão estivesse preso, quando na verdade, nes-

sa cena eram as araras que estavam engaioladas.

Essa cena me remeteu à janela do meu apartamento, onde

-

ração, pois vem com tom de lamento. Mas que a cabeça sabe

que é o melhor para ele.

soltos? Onde e com quem está a liberdade? Liberdade é sim-

plesmente poder andar pela rua? Aqueles que saem por pre-

cisar trabalhar são mais livres do que aqueles que estão em

casa porque contam com salário garantido, ou têm reservas

De que lado das janelas está a liberdade?

A quem diga que o mundo irá mudar após a Pandemia.

Por enquanto, parece que os males se acirram. Que ao invés

de uma tomada de consciência geral por parte de autorida-

des, elites empresariais em geral… Ao contrário: os donos do

Page 435: Untitled - Editora UFMG

433

poder no Brasil, político e econômico, principalmente, têm

investido em nos manter presos um em um pesadelo distó-

pico que a ciência, a solidariedade e até o luto são maquina-

ções da esquerda…

A utopia parece ter se distanciado, fadados que estamos

a olhar o horizonte, de que nos fala Galeano, pela janela… e

vendo-a se afastar sem que sequer nos aproximemos dela.

Mas a esperança de mudança surge nesse mesmo domin-

go de junho. Vem de casas que têm janelas muito próximas

uma das outras, ou mesmo que não têm janelas e que a qua-

rentena é ela mesma uma utopia, até porque o direito ao iso-

lamento é restrito àqueles que têm condição. Vem das fave-

las que gritam, sofrem, morrem…

Moradores militantes – até porque morar em favela é uma

militância em uma sociedade que sempre negou o ir e vir

pleno a eles – ocuparam as ruas em junho de 2020, em plena

polícia e o medo, para defenderem suas vidas.

Diferente do que prega cinicamente o ocupante do Planal-

to, repetido por robôs virtuais ou reais, que a escolha é lutar

ou morrer por vírus ou por falta de emprego, a escolha da

favela é morrer em casa de tiro, de indiferença pela socieda-

de que teima em não se escandalizar com o genocídio sobre a

juventude negra moradora de favelas e periferias do Brasil,

ou ainda de desamparo. Esses jovens negaram essas alter-

-

mes que querem condená-los, no mínimo, à invisibilidade.

Deles, nos vêm a esperança, de não esperarmos nas jane-

las o mundo mudar, de não vermos a cidade como algo dis-

tante das nossas mãos, permitidas apenas ao olhar. De que

é necessário rompermos com a perspectiva de que estamos

condenados a viver com medo de vírus, decretos, tanques e

Page 436: Untitled - Editora UFMG

434

que há um mundo fora das janelas que nos prendem que não

Chegará, torço para que breve, o momento que poderemos

-

na. Que olharemos para as janelas na perspectiva de fora

para dentro, estaremos nas ruas… trabalhando, conversan-

do, protestando, amando, vivendo.

E teremos que abrir outras janelas, ventilar a sociedade,

iluminar questões e pessoas que reivindicam espaço e vida.

Teremos que mudar nossas perspectivas sobre os medos

que nos imobilizam, teremos que vencer os males que corro-

em e destroem nossos corpos… para os quais a única vacina

é a esperança de que vale a pena lutar, amar e abraçar.

não precisem ter grades. Que não se tenha mais as perspec-

tivas de quem tem medo e quem se sente temido.

Page 437: Untitled - Editora UFMG

Síntese emblemática fora de contexto

Bruno Pelego

Monsuaba, Angra dos Reis, 21 de junho de 2020

Page 438: Untitled - Editora UFMG

436

Ficha Técnica: lápis sobre papel A4.

Page 439: Untitled - Editora UFMG

tentativas-notícias do brasil suicidário

Christina Fornaciari

Belo Horizonte, 19 de junho de 2020

Page 440: Untitled - Editora UFMG

438

tentativa 1. tenho fome de pele.

tentativa 2. neste tempo de gelo, moldo abraços impossíveis.

tentativa 3. as fronteiras mentem. é impossível fechar-se.

tentativa 4. vejo a morte do outro;

Page 441: Untitled - Editora UFMG

439

tentativa 5. os dias não queimam, já nascem cinzas. dias quase iguais.

tentativa 6. tv mostra covas coletivas;

vejo navios negreiros, presídios, quartos de empregadas.

tentativa 8. ouço krenak. o amanhã não está à venda.

Page 442: Untitled - Editora UFMG

440

5.5 ou 5 de maio, respira!

Valmir Aleixo

Petrópolis, 5 de maio de 2020

Page 443: Untitled - Editora UFMG

441

Era 5 de maio, completávamos 52 dias de isolamento so-

cial, cumprindo todos os procedimentos de segurança desde

15 de março, quando resolvemos subir à serra imperial e ir-

mos para a casa de Petrópolis. Fomos todos, pai e mãe, irmã

grupo de risco para a pandemia de covid-19, por isso a ur-

anos recém completados, mamãe pela hipertensão, diabetes,

seus 76 anos e irmã ainda se recuperando de uma meningite

fúngica que havia lhe custado dois meses de internação.

Page 444: Untitled - Editora UFMG

442

Mas maio também é o mês do meu aniversário e esse ano

foram 49 outonos, porque aqui no hemisfério sul, maio é

propriedade dele, é quando as folhas das árvores, numa es-

tratégia de proteção do frio que se anuncia, tornam-se ama-

reladas ou avermelhadas e caem, economizando energia. E

nesse mês de maio, minha mãe lembrou que há 49 anos, ela

morava no Complexo da Maré, na rua Ouricuri e sentiu um

forte desejo de comer pirão de mocotó, mas na época, não

tinha dinheiro, o que não foi problema para sua prima Célia

que dividia a casa com ela. Célia namorava um rapaz que

servia num quartel do Exército próximo dali e pediu o di-

nheiro emprestado a ele, voltando com um suculento prato

de pirão. Minha mãe se empanturrou do mocotó e logo de-

pois entrou em trabalho de parto, sendo levada às presas ao

Hospital Geral de Bonsucesso, onde às 17 horas, eu nasci,

em meio a uma grande família de paraibanos.

Meu pai, Seu Severino, saiu de Serra Branca, uma cidade

no interior do Cariri em 1967, migrando para o Rio de Janei-

ro em busca de trabalho e o sonho de uma vida melhor. Foi

porteiro e pedreiro, casou-se com minha mãe, Dona Maria,

e a trouxe para o Rio. Construíram juntos uma família de

-

-

to, mas não é. Isso em meio a uma pandemia, que naquele

5 de maio havia contaminado 115.953 brasileiros e já con-

tava 7.958 mortos no país. Desse total, 11.721 contamina-

dos e 1.065 mortos eram do Rio de Janeiro, sem contar as

Seu Severino ou Biu, como era comumente apelidado na

Paraíba, era um vascaíno entusiasmado, mas há alguns anos

o Alzheimer vinha fustigando sua consciência. Suas reações

Page 445: Untitled - Editora UFMG

443

às situações e atividades do cotidiano passaram a ser mais

emocionais e menos cognitivas. Seu humor também era um

interessante termômetro de suas emoções, aborrecimentos

e gosto eram expressos num pequeno gesto de calma, como

um fechar tranquilo dos olhos. No entanto, de alguma for-

ma, os sentimentos e as emoções dos jogos de futebol da sua

infância e juventude permaneceram num resquício de sua

fala, que diversas vezes durante o dia repetia os números

dezessete e dezenove, talvez numa referência antiga à nu-

-

ma: do 1 ao 11 para equipe dona do campo, mandante, e do

12 ao 22 para equipe visitante, um costume muito usado no

Cariri, interior da Paraíba.

Naquela manhã de 5 de maio, um tanto quanto fria, mas

com um sol suave e céu limpo, ele acordou e o levantamos

para tomar seu banho matinal e começar o dia. Logo depois

ele comeu mingau de maizena com um cafezinho forte e

doce, seu preferido. O levamos para um banho de sol e na-

quele momento eu quis fotografá-lo por causa da luz linda

que fazia. A manhã seguiu e chegara a hora do almoço. Mi-

nha mãe preparou e lhe deu de comer na boca, o que já era

de costume. Arroz, feijão e frango cozido batidos no liqui-

uma geleia de mocotó, dada pelo Rafa. Depois que todos já

haviam almoçado, assistimos um pouco de TV e o noticiário

da tarde, descansamos e fomos ao quintal plantar as quatro

mudas de bougainville rosa e também podar alguns galhos

da mangueira, quando Viviane, minha irmã, chamou. Entra-

mos e pude ver que ele estava pálido. Peguei o aparelho de

pressão arterial numa tentativa de medir sua pressão, mas

não funcionou. Senti que seus batimentos estavam fracos.

Page 446: Untitled - Editora UFMG

444

Rafa já havia chamado uma ambulância e nesse momento,

eu o sentei na cadeira, tentei facilitar sua respiração. Ele

me olhou bem nos olhos e falou baixo, de certa forma forte,

a palavra que ecoou na minha mente por muito tempo: RES-

PIRA! Deu três suspiros profundos e nos deixou.

Page 447: Untitled - Editora UFMG

Recall pandêmico

Larry Antha

Rio de Janeiro, 13 de junho de 2020

Page 448: Untitled - Editora UFMG

446

“Meu pai me batia”, como dizia uma canção da banda Sex

Noise. Mas hoje em dia ele só faz horta. É intrigante como

o tempo nos escapa por entre os dedos. Outro dia mesmo

eu é que passava pelo crivo sensor e educativo de meu pai,

que erroneamente, como toda sua geração acreditava na fa-

mosa ‘palmada’ corretiva. Mas ao avançarmos no tempo,

em meio a uma pandemia, é curioso perceber toda sua doçu-

ra ao cuidar de singela horta, delicadamente cultivada em

baldes e bacias velhas. Todas as manhãs e tardes, do alto

dos seus oitenta anos, meu pai, aquele que me batia, rega

uma verdejante pequena plantação de salsa e coentro. Fico

anos evaporando no tempo. Invertendo-se os papéis, agora

quem acelera o coração e acende uma luz amarela de pre-

ocupação, toda vez que meu pai sai de casa, sou eu. Muito

antes da pandemia, eu já desenvolvera esta preocupação.

Mesmo meu pai sendo muito ativo e integrante de um gru-

po de futebol do bairro, o famoso “rola cansada”, meio que

sem perceber fui desenvolvendo este “medo” de perdê-lo. Na

verdade na vida estamos nos despedindo o tempo todo, sem-

pre. E é quase como um instinto animal, proteger os seus.

Mas para piorar minha situação, meu pai não possui celular

Page 449: Untitled - Editora UFMG

447

ou qualquer outro tipo de comunicação móvel. Ele diz que

são coisas complicadas demais para ele, e segue livre pe-

las ruas da cidade. Tive que por precaução, discretamente

como se fosse uma curiosidade inocente, passar a perguntar

aonde vai, fazer o quê, e quando volta? Nossa! Como minha

mãe me fez este tipo de pergunta. Lembro-me de um amigo

comentando que seu pai, da mesma faixa etária do meu, era

a mesma coisa. Como diziam pessoas de sua geração; “Pa-

rece que tem um bicho carpinteiro por dentro”. E tanto meu

pai quanto o pai de meu amigo, não perdem uma promoção

dos Supermercados Guanabara; Hoje é dia da carne! Ama-

nhã é dia de verdura! E depois é dia de produtos de limpe-

za! Era sempre uma das desculpas para sair da quarentena

e ir de encontro aos perigos, agora também microscópicos

do mundo lá fora. Pelo menos consegui convencê-lo a seguir

os cuidados de higiene, com o uso de máscaras (do Vasco da

Gama, é claro!) e álcool gel nas mãos. Mas mesmo assim não

socialite carioca; ‘Ai! Que loucura!’. O fato é que meu pai só

baixa o ritmo quando está regando sua hortinha. Pensativo

lendo algum livro, observo seu cuidado com as plantas e

com o tempo

da terra, para que assim cuidemos da alma. É certamente

uma sábia forma de observamos o tempo, e percebermos o

quão frágil e efêmero ele é. Oitenta anos! Meu Deus! Não

consigo me imaginar chegando lá. E tampouco consigo

pensar com tranquilidade no tempo que nós ainda temos

juntos. Mas voltando aos dias atuais, em tempos de pande-

mia, de certa forma, todos estes sentimentos de perda das

horas se tornam uma constante. Perdemos tempo demais

nas redes sociais ou assistindo TV, ou em jogos eletrônicos.

Page 450: Untitled - Editora UFMG

448

Quando na verdade deveríamos aproveitar o tempo ocioso

para empreendermos algum projeto deixado na gaveta, ou

até mesmo colocar a leitura em dia. Eu sei! Seu sei! Não é

fácil! A faxina não deixa! A faxina alivia o stress e a depres-

são, além de ocupar nosso tempo e nos fazer sentir úteis no

mundo, vendo nossos lares tão organizados e limpos como

há muito tempo não víamos. As atividades físicas; prome-

temos retomar assim que a quarentena termine. Mas se já

era difícil antes, imagine agora com a desculpa de que esta-

um produto daqueles comprados pela internet, eu ia que-

rer fazer devolução, uma espécie de recall. Não curti! Não

gostei! Se a lição deste vírus era nos tornar mais humanos.

Nós pouco mudaremos após a quarentena, ou até piores se-

remos; Mais consumistas, mais sedentos por sexo e mais

urgente nas relações. O único ponto positivo, que de certa

forma, é também um ponto negativo, e a percepção do tem-

po, que de forma cruel, como citado, nos escapa por entre os

dedos a cada minuto do relógio. Certo está o meu velho pai,

que minuciosamente rega cada raminho de salsa e coentro

em sua horta, com o pensamento ao longe, vendo o passar

das horas com paciência e doçura, talvez se lembrando que

o aniversário dos Supermercados Guanabara se aproxima.

Page 451: Untitled - Editora UFMG

Quarentena com Ive

Wilson Domingues

Rio de Janeiro, 14 de junho de 2020

Page 452: Untitled - Editora UFMG

450

Page 453: Untitled - Editora UFMG

Sob a luz da Lua

Fernando Vale Castro e Marcelle Dinis Castro

Rio de Janeiro, 18 de junho de 2020

Page 454: Untitled - Editora UFMG

452

O ano de 2020 seria mais um ano como outros: estabele-

ações que precisaríamos realizar, quais pensamentos posi-

tivos de saúde, união e de desejos a serem alcançados. Mas,

o que não imaginávamos é que o ano prometia… e muito…

-

namos pai e mãe em dezembro de 2019 com a chegada da

Lua, uma menina linda de 6 anos que veio completar nossa

família. Evidentemente, que ela passou a ser a prioridade

em nossas vidas. Escolher escola, pediatra, comprar brin-

-

nidade e organizar nossos horários com os dela. Estávamos

vivendo um misto de muita alegria, muito medo e grande

responsabilidade, uma loucura maravilhosa, mas com a cer-

teza que tudo estava sob controle.

Em fevereiro, nossa pequena estava na escola, bem adap-

tada, nossos horários de trabalho, estudo e lazer bem orga-

-

mos no processo de nos conhecermos, de construir nossas

relações, de fortalecer nossos afetos. Porém, em março

aconteceu o inesperado, o impensável: uma pandemia com

Page 455: Untitled - Editora UFMG

453

milhares de infectados e mortos, total desconhecimento

Uma nova realidade estava imposta a todos e particular-

mente ao nosso mundo novo.

Todas as concretudes e certezas da vida, as coisas que

funcionavam e estavam em seu devido lugar como deve-

riam estar (ou que pensávamos estar…) se desmanchavam

como areia na chuva. Compartilhávamos a sensação des-

crita por Marshall Berman “são todos movidos, ao mesmo

tempo, pelo desejo de mudança – de autotransformação e de

transformação do mundo em redor – e pelo terror da deso-

rientação e da desintegração, o terror da vida que se desfaz

em pedaços. Todos conhecem a vertigem e o terror de um

mundo no qual tudo que é sólido se desmancha no ar.”1 E

para nós que sempre buscamos ter o controle de tudo, com

a certeza de que as coisas estavam inseridas em seus “res-

pectivos quadrados” e que funcionavam perfeitamente bem

(ao menos teoricamente), nos deparamos com uma onda

imensa de ansiedade, de medo, de um porvir incerto. Nossos

comportamentos e percepções sempre direcionadas ao futu-

ro não permitiam cuidar daquele nosso presente.

Como lidar com uma situação extremamente inusitada,

tendo que ser pai, marido, mãe, esposa, professor e médica

24 horas por dia, todos os dias? Quanto tempo duraria essa

famílias? E as populações pobres e miseráveis das gigantes-

cas e insalubres periferias brasileiras? Nosso sistema de saú-

de estaria preparado para a enxurrada de doentes? Como

agiriam nossos políticos que se mostravam (e continuam!)

tão despreparados quanto ao cuidado e direcionamento da

1 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar. São Paulo:

Companhia das Letras, 1986. p. 13.

Page 456: Untitled - Editora UFMG

454

Nação, adotando discursos e medidas genocidas tendo como

Tantas indagações sem respostas eram absolutamente

desesperadoras. Parafraseando Lênin, o que fazer? Só nos

restava buscar saídas para uma situação nunca imaginada.

Pensar em estabelecer estratégias para a nossa nova reali-

-

sentes e com um presente maravilhoso que a vida nos deu.

E este presente é o principal responsável por descobrir-

mos que na vida não há espaço para grandes estratégias, ela

precisa ser vivida, um dia após o outro. Cada manhã repre-

senta uma página em branco em nossas histórias. No nosso

caso, somos diariamente acordados às 6 horas da manhã

-

acordar cedo, e no minuto seguinte já estamos a postos para

a diversão do dia.

Agora somos pai e mãe por tempo indeterminado, sem es-

cola, sem passeios, sem visitas. E querem saber de uma coi-

sa: descobrimos, nesta quarentena, que nada vale mais do

-

suras de um verdadeiro dínamo de um metro e vinte, colo-

cando para fora toda sua energia. Esta é a única certeza que

temos no momento e, sem sombra de dúvidas a melhor de

todas elas, certeza que estaremos sempre sob a luz da Lua.

Page 457: Untitled - Editora UFMG

O dia mais doido do ano

Gabraz

Rio de Janeiro, 2 de maio de 2020

Page 458: Untitled - Editora UFMG

456

Foi quando meu amigo Felappi Montparnasse ligou de

madrugada me convocando em caráter de extrema urgên-

naquela tarde em uma churrascaria australiana de Niterói.

Sem entender muito o que ele dizia e ciente de que talvez

há algum tempo, juntei minhas coisas e fui caminhando pelo

centro deserto até sua casa – um ateliê de 25 metros impro-

visado no escritório do pai, no décimo terceiro andar de um

edifício comercial cujo vão central é famoso pela recorrên-

cia de suicídios, onde décadas de acúmulo de quinquilharias

do shopping chão e uma gata se equilibram sobre antigos

processos trabalhistas em papéis grilados pela ação do tem-

po e amônia. Não lembrava o número, saí do elevador e se-

gui à direita o rastro de mijo de gato misturado com fuma-

ça de Minister vermelho. Como imaginei ele queria acertar

contas com o passado, o pai, o país e velhos amigos brancos

que na adolescência o curraram no playground aos gritos de

lincha bicha-preta, prenúncio do que o Brasil se tornaria nos

anos seguintes sem nunca ter deixado de ser. Ficamos horas

Page 459: Untitled - Editora UFMG

457

poucos foram se fechando. Voltei pra casa e no correr dos

Mais três anos correram sem que eu percebesse, agora

estou de fato trancado em meu quarto assistindo as imagens

conversas atravessadas pela cidade ao fundo. É primeiro de

maio outra vez, uma da tarde, acabei de fechar o último cor-

induzido por ocitocina.

Nilo segue lá dentro há quarenta e duas semanas e não

dá sinal que quer sair, o que no contexto atual parece bem

safo. Por vezes me pego imaginando o interior do útero em

contraponto ao desconforto de estar preso em um aparta-

mento infestado de animais castrados e plantas intoxicadas

pela água do Gandu, light cortada por distração e o vizinho

tocando Fool on the Hill em looping no piano, mas é uma

-

-

demia atravessa o mundo e se aloja no Rio, a cidade acolhe

o vírus de peito aberto contando piada como velhos médicos

em uma sala de parto. O anestesista toxicômano me explica

com detalhe todas as combinações possíveis de arrebite pra

suportar vinte e quatro horas de plantão, eu sem dormir há

quarenta e oito agora visito o covil da Ágata enquanto noto

uivo da mulher no quarto ao lado dando à luz uma criança

que todos ali já sabem, não irá sobreviver. Na cantina enfer-

meiros contam óbitos e casos da peste enquanto o Gabeira

fala alguma amenidade na TV muda. Gosto dos quadros na

parede da casa dele mas de longe não consigo reconhecer a

artista. Lembro das fotos que a Diana ia vender para um res-

taurante em Botafogo que nunca chegou a abrir. O telefone

Page 460: Untitled - Editora UFMG

458

apita junto da cafeteira, Guedes acaba de depositar 666

reais na minha conta que vão direto pro bolso dos Morei-

ra Salles. Moro vai caindo e junto dele minha máscara toda

vez que saio pra fumar, de quinze em quinze minutos. Na

porta uma enfermeira mostra as mãos necrosadas de Covid,

outro diz que a pressão nos pulmões é pior que afogamento

enquanto acende um Free mentolado e eu me pego em dis-

parada no corredor tomando banho de álcool a cada dez me-

tros – também pra testar o olfato. São quinze para as três da

tarde quando Diana se ajeita na cama quebrada e depois de

chorando tranquilo do lado de fora, alheio a qualquer crise

sanitária, correndo de mão em mão entre necroses, selfies

-

tar um plano de fuga.

Dois de maio é celebrado no interior de Minas como o dia

mais doido do ano, não faço ideia porquê. A cidade está si-

tiada e os ônibus intermunicipais foram cortados, o que me

demove da ideia de ir a Nilópolis registrar o moleque. Meio-

-dia ele já tem CPF e me vejo obrigado a abortar o projeto de

morrer devendo ao banco as cuecas extra-largas que herdei

de meu avô. Nunca imaginei que chegaria aos quarenta, ain-

vida de um jeito que nunca poderia prever. Minha vó, teste-

munha de jeová convicta, manda um zap contando a ven-

tura de Moisés no Nilo e parece confortada na ideia de ter

vivido pra ver o apocalipse. A história de um cesto descendo

o rio com uma criança recém-nascida me mantém atento,

os tiranos seguem nos bombardeando com seus robôs en-

quanto o vírus escorre das paredes entre os dedos das enfer-

meiras. Nilo deságua em choro profundo, olho no fundo do

seu olho e miro gerações futuras e antepassadas chamando

Page 461: Untitled - Editora UFMG

459

por socorro. Pedimos altas, ele é muito novo pra brincar. O

mesmo homem que 33 anos atrás tirou Diana do útero com

na buceta com ternura de avô e nos libera para iniciar a ven-

mundo se limite às paredes de um velho apartamento.

São seis horas da tarde, a lua acabou de nascer e um ven-

daval assola a rua das laranjeiras cobrindo o chão de folhas

mansa em meio à tempestade de raios, abrigo o Nilo em meu

quinhentos metros da maternidade até a porta do prédio. O

vento ainda assovia da fresta enquanto subo os três lances

de escada ao som onipresente do piano. Forjo impostação de

ópera feito criança a provocar os tenores do coral da igreji-

nha onde perdi a virgindade e repito com convicção o velho

mantra que meu pai sempre cantava: day after day, alone

on the hill...

Page 462: Untitled - Editora UFMG

460

Ao fazer chá

Carla Maia

Belo Horizonte, 15 de junho de 2020

Page 463: Untitled - Editora UFMG

461

Ao fazer chá, queimei a mão. No momento em que a tam-

pa da chaleira soltou, fazendo escoar a água fervente, tomei

por algo banal, um acidente pontual. Só no dia seguinte eu

percebi o pulso inchado, uma mancha escura, a pele enru-

gada. A pele enrugada. Tenho me olhado no espelho mais

que o habitual. A pele enrugada. Tenho dormido mais que

o habitual. Os olhos inchados. E tenho tomado mais café, o

que parece uma contradição. Tenho caído em contradições.

Diariamente.

Diariamente, prometo a mim mesma que vou meditar.

Vou me exercitar por 30 minutos. Vou comer na hora cer-

ta, bastante salada. Vou riscar toda a lista de pendências da

roupa acumulada e tirar um pouco de pó das estantes, entre

uma videoconferência e outra. Amanhã recomeço. Amanhã

serei coerente comigo mesma e com minhas promessas.

Ao entrar em casa, tirei o sapato. No momento em que

tive notícia de um vírus novo na China, tomei por algo ba-

nal, um incidente pontual. Só após a terceira semana de

isolamento social, eu percebi. A pele enrugada. Os olhos in-

chados. A cama por fazer todo dia, a comida para preparar,

Page 464: Untitled - Editora UFMG

462

a louça para lavar, a poeira se acumulando nos móveis, a

poeira, a sujeira, o medo. Tenho acumulado medo como o

tempo acumula a poeira. Mais, bem mais do que o habitual.

Desde que li sobre a criança que caiu do prédio da patroa,

enquanto a mãe, a empregada da casa, levava os cães para

passear e a patroa fazia as unhas, deixei de acompanhar as

pelos milhares desamparados pelo poder público. Temo pelo

Houve um tempo – nós o perdemos? – em que o futuro não

dava medo.

Minha mãe me mandou mensagem, outro dia, algum dos

noventa dias em que não nos encontramos. Ela acabara de

“Sua paixão não é sem razão... mas

carrega em si, veladamente, a angustiante

caverna... Ver a luz DÓI os olhos!

Escreveu assim, dói em caixa alta. Não soube responder

de imediato, ela tem tanta razão, tem tanta sensibilidade, eu

ando tão sensível, como doem meus olhos! Os olhos incha-

dos. Respondi com um emoji, um coração vermelho. Hou-

ve um tempo – quando foi mesmo? – em que as respostas

surgiam naturalmente e as palavras precisavam ser ditas.

Amor, por exemplo. Não um emoji de coração vermelho.

Amor.

um imenso trem, e as pessoas se organizavam em vagões se-

parados por classes ou castas. A Terra havia congelado, não

era possível sair do trem, nem parar sua marcha ao redor

Page 465: Untitled - Editora UFMG

463

do planeta. Nos últimos vagões as pessoas morriam de fome,

comiam umas às outras, e as crianças eram capturadas pela

central de comando para trabalhar gerando energia motora.

Era isso a vida, um imenso trem movido à energia infantil,

os vagões dianteiros repletos de luxuosos banquetes e festas

orgíacas, os últimos apinhados de gente morrendo e matan-

do. A metáfora doeu meus olhos.

Minha mãe tem sessenta e três anos e é do signo de aquá-

câncer, de uma mãe de elemento terra e um pai de elemento

fogo. Água, fogo, terra e ar – Antônio herdou de cada fami-

liar a sensibilidade dos quatro elementos. Outro dia, algum

dos noventa dias em que juntos jogamos paciência, ele me

“Eu e minha mãe andamos nos divertindo muito,

Mesmo trancados em casa.

Mas um dia minha mãe vai morrer.

Ela vai estar nas coisas,

Nas ginásticas, no sol, no mar, na praia

E principalmente no meu coração. “

Há dias eu tento escrever esse texto, um relato em qua-

rentena. Pensei em falar sobre o medo e sobre a perda, a per-

da do mundo como o conhecemos, o medo de perder, o medo

da morte. Pensei também em falar sobre possibilidades de

continuação, as pequenas alegrias cotidianas, amanhecer

com quem amo, afagar um cão, regar uma planta, partilhar

Page 466: Untitled - Editora UFMG

464

Está tudo dito: a celebração do cotidiano, a consciência da

morte, o amor perene, a palavra coração.

Page 467: Untitled - Editora UFMG

Ora-pro-nóbis / Maria Pureza

Ana Bia

Rio de Janeiro, maio de 2020

Page 468: Untitled - Editora UFMG

466

Page 469: Untitled - Editora UFMG

467

Page 470: Untitled - Editora UFMG

468

Page 471: Untitled - Editora UFMG

469

Page 472: Untitled - Editora UFMG

470

Page 473: Untitled - Editora UFMG

Mar azul

Diana Sandes

Macacos, Nova Lima/MG, 11 de junho de 2020

Page 474: Untitled - Editora UFMG

472

Uma mordida no peito me desperta de uma noite fria

mal dormida e me joga no dia ensolarado. A maternidade

recente me fez lembrar que, antes de mais nada, sou bicho

com meu bichinho no colo, dois mamíferos tentando sobre-

viver ao passar das horas, da fome, do sono. Lembro da vo-

racidade com que abocanhei algumas fatias de mamão logo

após o parto, o suco da fruta escorrendo pelo meu queixo,

o talher de plástico quebrado jogado sobre a mesa, as mãos

ainda um pouco trêmulas do jejum. Desde esse primeiro de

maio os dias vêm se confundindo e se atropelando, numa

valsa eterna de passos ainda desajeitados. Se o puerpério é

uma das experiências mais duras pelas quais uma mulher

pode passar, o puerpério em meio a uma pandemia é quase

intragável.

Vivo uma quarentena dentro da outra, e já não sei qual

veio antes. O distanciamento social se impôs desde as últi-

mas semanas de gravidez, quando meu corpo parecia não

saber mais como caber em si. Mas o parto operou uma fenda

entre duas temporalidades e abriu um portal para o univer-

nasceu de um parto normal induzido, com um trabalho de

parto rápido, assim como foi nossa estadia na maternidade,

Page 475: Untitled - Editora UFMG

473

-

dos – menos de 24h. Voltamos para casa a pé. Gabriel, com

Nilo no colo, se adiantou para fugir do vento e da chuva que

se anunciava, e eu segui logo atrás, assistindo àquela cena

a falta daquele pequeno corpo junto ao meu. Chegamos na

porta do prédio logo antes das primeiras gotas de chuva. Lá

minha mãe nos esperava para conhecer o neto, de longe e

de máscara.

Das primeiras semanas no cubo branco lembro de pouca

coisa, a memória está envolta em uma névoa de cansaço e

dor torturante da amamentação. A reclusão no puerpério

seria inevitável, mas essa quarentena escancarou nossa so-

lidão e principalmente a incapacidade de dar conta de tudo

ao mesmo tempo. No melhor momento dos dias, nos aper-

távamos próximos à janela em busca da luz do sol, que se

reservava a alguns ângulos da sala das treze às quinze. Com

três semanas de vida do Nilo partimos do Rio para Minas.

***

O exílio aparece, com alguma frequência, nas minhas pes-

quisas teóricas e estéticas. Gosto de pensar o exílio como

um estado deslocado de se estar no mundo, em geral funda-

do por uma situação de ruptura entre uma pessoa e o que

ela reconhece como lar. Essa separação, que surge de uma

privação, alimenta um sentimento de não-pertencimento,

de descontinuidade de si. Esse assunto é (por mais que eu

tente fugir dele) uma linha condutora dos meus trabalhos,

e não pude evitar de me aproximar dele durante essa dupla

quarentena.

Page 476: Untitled - Editora UFMG

474

Em uma das pontas dessa relação dialética da qual trata

o exílio, está o lar. No compasso do isolamento, comecei a

ler A poética do espaço

ele chama de imaginação poética, recorrendo a imagens re-

ferentes ao espaço, e no que mais me interessa aqui, à casa.

Esta é descrita como o lugar de acolhimento, de pertenci-

mento, que remonta ao que conhecemos de mais seguro e

íntimo, tal qual o berço – e, por que não?, o útero.

A morada, esse refúgio, ganha um novo e inesperado tom

na quarentena. Vivo, agora, uma espécie de exílio interno,

um deslocamento do mundo, dos lugares e pessoas que for-

mam e conformam minha identidade. A separação, aqui,

se dá através de um mergulho vertiginoso para dentro: da

minha casa, do meu próprio útero. Como encarar o mais

radical de mim e das pessoas que me acompanham nessa

empreitada? Como lidar com o medo constante de uma pan-

demia que bate à porta e todo dia mais esfrega na cara a ne-

cropolítica escancarada que se instalou no país? Me refúgio

em casa mas não caibo nela. Não há lugar possível. A casa

realiza essa dupla função – de acolhimento e desconforto, de

afago e corte.

***

na região metropolitana de Belo Horizonte, para fugir do

crescimento descontrolado da epidemia no Rio de Janeiro.

Aqui temos ajuda, além de céu aberto com sol e ar fresco. Um

refúgio temporário. A manhã, depois da primeira mamada,

segue mais leve do que costumava ser. Nos revezamos com

o bebê e até consigo um tempo para sentar e escrever. Não

dura muito e o pai, que está caindo de sono depois de uma

Page 477: Untitled - Editora UFMG

475

noite em claro com Nilo nos braços, pede para eu segurar as

pontas enquanto tira um cochilo. E seguimos o baile entre

mamadas doloridas, choros e alguns sorrisos que quase jus-

Apesar da quarentena dentro da quarentena, tenho al-

-

prestadores de serviço estão de portas fechadas e resolvo

pela primeira vez fazer uma série com a câmera digital. O

isolamento começa a mudar minha linguagem. Sinto falta

tirar as primeiras de uma série mineira de fotos. A arte ago-

ra precisa ser, mais do que nunca para mim, um exercício

experimental da liberdade. Estamos tateando desbravar

novos terrenos e reentrâncias de uma estrutura de criação

que precisa ser repensada. Arte e vida inevitavelmente se

aproximam nesse mergulho para dentro da casa e da ma-

ternidade. Como disse Iole, me encorajando a não largar o

grupo de estudos que ela coordena quando eu estava prestes

a parir: que os bons ventos dos anos 70 nos embalem.

Coloco os pés na estrada de terra e mal acredito. Caminho

em direção ao trecho bloqueado ao acesso de carros devido

ao risco de colapso das barragens da Mina Mar Azul, que

têm a mesma estrutura que as de Brumadinho e Mariana.

Desde que anunciada a possibilidade de um novo “desastre”,

coube à Vale tomar algumas medidas de segurança, como

fuga e pontos de encontro, implantação de sistema de alerta

e fechamento de trechos de estrada que estão na área de ris-

co de um possível rompimento das barragens. Caminho com

os olhos atentos e sou interrompida diversas vezes por por-

tões, obras, sinalizações, postos de vigilância. Imagino os

Page 478: Untitled - Editora UFMG

476

milhões de metros cúbicos de rejeito da mineradora corren-

do na minha direção e se amontoando nas estradas e casas.

Registro esses descaminhos, essas impossibilidades. Come-

ça a escurecer e meu peito jorra um tanto de leite anuncian-

do que é hora de voltar para casa.

Page 479: Untitled - Editora UFMG

Sobre os autores

Page 480: Untitled - Editora UFMG

478

ABILIO RODRIGUES

-

nimalista, cool, bossa-nova. Ex baterista da banda Picassos Fal-

Universidade Católica do Rio de Janeiro (com estágio de douto-

ramento na Brown University, EUA) e pós-doutorado na Univer-

sity of Oxford, Reino Unido.

ALLAN SIEBER

Artista plástico, cartunista e roteirista. Reside no Rio de Janei-

ro, onde mantém a galeria A Hostil Carioca, anexa ao seu ateliê

em Copacabana. De 1999 a 2014 manteve a Toscographics De-

senhos Animados, estúdio sediado no Rio de Janeiro e colaborou

para a Rede Globo e Globosat em roteiros e animações para a

TV. De 2005 a 2017 publicou as tiras “Preto no Branco” e “Bifa-

land, a cidade maldita” na Folha de S.Paulo. Foi colaborador

Trip, Playboy e atualmente publica na revista

Piauí e tem uma página semanal na revista Época. Principais

exposições: O artista não está presente, individual na Martha

Page 481: Untitled - Editora UFMG

479

Pagy Escritório de Arte. Pinturas e desenhos, Rio de Janeiro,

2019; BOTÂNICA!, com Bernardo Ramalho, na Casa Blu, com

curadoria de Guilherme Gutman, pinturas e desenhos, Rio de

Janeiro, 2019; Fui eu sim, individual na galeria Sancovsky, pin-

turas e desenhos, São Paulo, 2018; Não atire no mensageiro,

exposição com Gelson Mallorca, pinturas, desenhos e objetos,

Saracvra, Rio de Janeiro, 2017; Agora sem as mãos, individual

de pinturas, Rato Branko, Rio de Janeiro, 2016; 1º Festival In-

ternacional de Dibujo, Historieta e Ilustración Ciudad de Lima,

individual, Lima, Peru, 2013; Essa Terra é Minha Terra, indivi-

dual de desenhos, fotos e instalação com vídeo, Museu do Tra-

balho, Porto Alegre, 2005; Assim Rasteja a Humanidade, indi-

vidual de desenhos e instalação com vídeo, Museu do Trabalho,

Porto Alegre, 2001.

ALTINO FILHO

Jornalista, letrista e poeta. Morou dez anos fora do país onde

atuou no Serviço Brasileiro da BBC, em Londres. De volta ao

Brasil, trabalhou em diversos veículos de comunicação, com

ÁLVARO PEREIRA DO NASCIMENTO

Professor em História na UFRRJ, pesquisador de produtivi-

dade do CNPq, e autor de livros e artigos acadêmicos. Em sua

formação estão as carreiras de soldado do exército (57 BIMtz),

peão de obra (com uma obra no Grajaú e outra em Copacabana),

instalador de interfone (em diversos condomínios pela cidade)

e técnico em máquinas de escrever eletrônicas (numa empresa

multinacional e por “bicos”). Também graduou-se em História

pela UFF, e fez mestrado e doutorado pela Unicamp.

Page 482: Untitled - Editora UFMG

480

AMÉRICO FREIRE

Professor titular do CPDOC/FGV e Pesquisador do CNPq e da

Faperj. É autor de inúmeros livros e artigos dos quais destaca-

se Frei Betto: biografia (Civilização Brasileira, 2016).

ANA BIA

Carioca, nascida e criada em Guaratiba, subúrbio do Rio de Ja-

neiro. Em sua pesquisa tudo parte de um lugar, a terra. Seus

trabalhos pensam as relações da terra e do território (em espe-

histórias.

ANA KIFFER

Professora associada da Pós-Graduação em Literatura, Cultu-

ra e Contemporaneidade da PUC-Rio, cientista do Estado pela

Faperj e Bolsista de Produtividade no CNPq. É escritora, com

livros como Tiráspola e Desaparecimentos (Garupa, 2016); A

punhalada (7Letras, 2016); Todo Mar (Urutau, 2018); Colunis-

ta da Revista literária Pessoa, pesquisadora da obra do escritor

francês Antonin Artaud, vem desenvolvendo há muitos anos

uma investigação sobre os diversos modos de relação entre os

corpos e a escrita. Organizadora de A perda de si: cartas de A.

Artaud (Rocco, 2017); Antonin Artaud (Eduerj, 2016); e das co-

letâneas Sobre o corpo (7Letras, 2016); Expansões contempo-

râneas: literatura e outras formas (com Florência Garramuño,

UFMG, 2014); Experiência e arte contemporânea (Circuito,

2013); Ódios políticos e política do ódio (com Gabriel Giorgi, Ba-

zar do Tempo, 2019); entre muitos outros artigos e ensaios.

Page 483: Untitled - Editora UFMG

481

ANAMARIA ALVES DIAS DOS SANTOS

Pesquisadora Quilombola do Núcleo de Estudos Interdiscipli-

nares de Alteridade da Faculdade de Letras da UFMG. Possui

publicações em Teoria da Literatura pela Editora Letramento,

Mulheres Emergentes e nos Cadernos Negros pela Quilombhoje.

ANA MARIA MAUAD

Professora titular do departamento de História da UFF, pesqui-

-

e história pública, autora de Poses e flagrantes: ensaios sobre

história e fotografias

livros organizados sobre as temáticas de estudo.

ANDRÉ LAGE

Cineasta e artista visual. Doutor em Literatura Francesa pela

Universidade Paris 8, pós-doutor em Artes do espetáculo pela

ECA-USP. Realizou o longa metragem Los Leones (2016), pre-

miado em festivais nacionais e internacionais, e os curtas Lul-

laby (2014), Ilhas Pribilof (2019), Viagem ao Marrocos (2020).

Autor de Bichos (SQN biblioteca, 2019), livro com reproduções

de desenhos em pastel seco e tinta nanquim.

ANDRÉA CASA NOVA MAIA

Historiadora, Professora de História do Brasil e de História da

Arte do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de

Janeiro. Vice-Presidente da International Oral History Associa-

tion (IOHA, 2014-2016). Autora, dentre outros, dos livros Ética

e imagem (C/Arte), História oral e direito à cidade: paisagens

urbanas, narrativas e memória social (Letra & Voz, 2019) e

Waldir dos Santos, o sambista operário: história de uma mina

de ouro no tempo de Vargas (Gramma, 2019).

Page 484: Untitled - Editora UFMG

482

ANDRÉA CRISTINA DE BARROS QUEIROZ

Historiadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Dire-

tora da Divisão de Memória Institucional do Sistema de Biblio-

tecas e Informação da UFRJ; é Membro da Comissão da Memó-

ria e Verdade da UFRJ, onde coordena o grupo de trabalho de

pesquisa histórica da CMV-UFRJ. Possui Doutorado em História

Social pela UFRJ. Publicou o livro Universidade e seus lugares

de memória. Tem como pesquisas os principais temas: Rio de

Janeiro; Ditadura civil-militar (1964-1985); censura; imprensa

alternativa; O Pasquim (1969-1991); Millôr Fernandes; humor;

contracultura; ensino de história e sambas-enredos; memória

institucional e patrimônio; história institucional e história oral.

ANTONY HENRIQUE TOMAZ DINIZ

Mineiro, 36 anos, mora em Campinas desde 2013 onde trabalha

como sociólogo numa organização da sociedade civil. Formado

em Ciências Sociais pela PUC-MG e mestre em Antropologia pela

Unicamp. Tem um livro publicado sobre os ursos de São Paulo

e suas corporalidades e masculinidades. Foi professor por seis

anos, escreve poesia, desenha, pinta e trabalha com produção

teatral e operística.

BETO BIANCHI

premiado em vários concursos, dentre os quais destaca-se Rio

na Audio Rebel e mostra coletiva Mercadinho Mimosa (2019).

Rock e subúrbio.

Page 485: Untitled - Editora UFMG

483

BHUVI LIBANIO

Nascida Ana Luiza Libânio de Rezende Dantas, é formada em Le-

tras pela UFMG, com mestrado em Literatura/Estudos Latino-

-Americanos, especialização em Estudos de Mulheres/Estudos

de Gênero pela Ohio University e formação em Direitos Huma-

nos pela UEMG. É tradutora há vinte anos e escritora. Publicou

o ensaio The Autonomous Sex (Lambert Academic Publishing,

2010), o romance A história de Carmen Rodrigues (Ser Mais,

2014), a coletânea de contos 17 (Quintal Edições, 2018), e tex-

tos (contos e dramaturgia) em antologias. É roteirista do cur-

ta-metragem Parênteses e colunista da revista eletrônica Rio

Total. Bhuvi é sannyasin, dedicada à meditação e aos estudos

da espiritualidade.

BRUNO PELEGO

Bacharel em artes visuais pela UERJ, mora num sítio na Monsu-

aba em Angra dos Reis, onde tem o privilégio de estar durante a

quarentena da pandemia. Sem se obrigar a fazer nada artístico

no período, a não ser aquilo que sai porque já está feito, levando

um dia após o outro como se todos fossem o mesmo repetido de

forma diferente.

CARLA MAIA

Ensaísta, pesquisadora, curadora e professora. Possui douto-

rado em Comunicação Social pela UFMG. Leciona no curso de

Cinema e Audiovisual do Centro Universitário Una. Integra o co-

letivo Filmes de Quintal, que organiza o forumdoc.bh - Festival

-

retora do documentário Roda (2011).

Page 486: Untitled - Editora UFMG

484

CARLOS BARROSO

Poeta, artista, jornalista. Membro do grupo fundador da Revis-

ta CemFlores. Publicou Poetrecos (Poesia Orbital, 1997) e os li-

vros-objeto Carimbalas (2008); Sãos, usura e livraria (2010);

Futebol de barro (2014) e Cunilíngua pátria (2017). Lançou

em julho último a miniantologia (e-book) 41 POEMAS CONTRA.

Todas essas publicações pela Edições CemFlores. Participou

das mostras: Coletiv4 (UFSJ, 2015); Ocupação Poética (UFSJ,

2017); Além da Palavra (Biblioteca Pública de BH, 2018); mini-

masminas (Café Kahlua, BH, 2018); Além da Palavra2 (Casa dos

Contos, Ouro Preto, 2018) e Faculdade de Letras (UFMG, 2019).

Repórter em vários jornais, foi comentarista da Rede Bandei-

rantes e apresentador do programa Cena Política (BHNews).

Prêmio Esso de Reportagem (2001). Curador da Mostra de Arte

dos Jornalistas Mineiros.

CARLOS FALCI

Professor na Escola de Belas Artes da UFMG. Atua na gradua-

ção, na área de arte e tecnologia, e dá aulas na Pós-Graduação

em Artes. Desde 2010 investiga as relações entre arte, memória

e tecnologia, com foco na discussão sobre memória e espaço.

CARMEN CASTRO

Socióloga, doutora pelo IPPUR/UFRJ, professora e pesquisadora

sobre questões agrária e urbana e movimentos sociais, orienta-

dora no Curso de Energia e Sociedade no Capitalismo Contem-

porâneo – MAB e IPPUR/UFRJ e assessora política de deman-

das sociais e políticas públicas na Câmara Municipal do Rio de

Janeiro.

Page 487: Untitled - Editora UFMG

485

CAROLINA RUOSO

Mãe do Rudá, circulou por diferentes cidades, mas foi no Ceará

que aprendeu a ler o mundo; o lê, portanto, à nordeste. Cursou

Turismo na ETFCE, onde fez seus primeiros desenhos de inven-

tário do patrimônio imaterial, e História na UFC, época em que

foi educadora de museus. Durante o Mestrado na UFPE, se inte-

ressou em escrever uma história da arte a partir do Nordeste,

projeto que desenvolveu durante o doutorado em História da

Arte na Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne analisan-

do as circulações locais, nacionais e internacionais de traba-

lhadores de museus/artistas, obras de arte e saberes presentes

nas coleções, exposições e ateliês do Museu de Arte da UFC. Foi

curadora de museus de arte e, atualmente, é professora de His-

tória da Arte na Escola de Belas Artes da UFMG.

CHRISTINA FORNACIARI

Artista, professora e pesquisadora em Artes do Corpo. Docen-

te na Graduação em Dança da UFV, reside entre Viçosa e Belo

Horizonte, onde investiga o fazer artístico tendo o corpo como

plataforma. É doutora em Artes Cênicas pela UFBA, mestre em

Teorias e Práticas Teatrais pela ECA/USP e em Performance,

pela Queen Mary University of London, e pós-doutoranda em

Artes pela UFMG.

CLÁUDIA DIAS DE CARVALHO

Possui Graduação, Licenciatura e Mestrado em História pela

Universidade Paris 7. Professora de Francês e História.

CLÁUDIA VISCARDI

Possui graduação em História pela Universidade Federal de

Juiz de Fora (UFJF), mestrado em Ciência Política pela UFMG,

doutorado em História Social pela Universidade Federal do

Page 488: Untitled - Editora UFMG

486

Rio de Janeiro e pós-doutorados na Manchester Metropolitan

University (Reino Unido), na Universidade de Lisboa e na Uni-

rio. É professora titular da UFJF e professora do Programa de

Pós-Graduação em História na mesma instituição. É bolsista de

produtividade do CNPq e pesquisadora da Fapemig. Tem experi-

ência nas áreas de História Política e Social, com ênfase na Pri-

meira República. Foi Pró-Reitora de Pesquisa da UFJF (2002-

2006), pesquisadora visitante na Manchester Metropolitan

University (2007-2008, com apoio da Capes), na Fundação Casa

de Rui Barbosa (2011-2013) e na Universidade de Lisboa (2015,

com apoio da Capes).

CLAUDIANE TORRES DA SILVA

Doutora em História pelo Programa de Pós-Graduação em His-

tória, Política e Bens Culturais pelo Cpdoc na FGV com pesquisa

sobre o Tribunal Regional do Trabalho na ditadura civil-militar;

Professora de História na Secretaria Municipal de Educação do

Rio de Janeiro; membro do Laboratório de Estudos de História

dos Mundos do Trabalho na UFRJ; atualmente desenvolve pes-

quisa sobre Ensino de História e Mundos do Trabalho em livros

didáticos.

CONTRACONSCIÊNCIA

Contraconsciência é um comum de arte urbana de raízes anar-

quistas que, usando os muros da cidade como tela, busca conec-

tar a arte com a crítica político-social e levá-las a um espaço

onde todas as pessoas possam acessar algum tipo de subjetivida-

de que as possibilite questionar a real condição dos sistemas de

opressão que funcionam em nossa sociedade. O conceito de con-

traconsciência está presente na obra do historiador e educador

-

co da população, que vai de encontro à consciência dominante

Page 489: Untitled - Editora UFMG

487

de interesse e controle colonial (que nos atinge até hoje como

neocolonial). Constantino defende que é preciso romper com o

impacto escravizador da internalização dessa consciência e só o

envolvimento direto das massas populares no empreendimento

crítico é capaz de fazer isso. A escolha desse nome foi feita por-

que queremos, através da arte, ajudar a sociedade a catalisar

esse processo e para isso usamos a própria cidade como suporte.

DANIEL GANEM MISSE

Professor da UFF. Bacharel em Ciências Sociais pela UFF e Direi-

to pela UFRJ. Mestre e doutor em Sociologia e Direito pela UFF.

Sociólogo e advogado.

DANIELA YABETA

Professora adjunta do Departamento de História da Universi-

dade Federal de Rondônia (UNIR). Coordenadora do Núcleo de

História Pública da Amazônia (Nuhpam). Editora do Observa-

tório Quilombola de KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço.

Organizadora do Atlas Quilombola, uma parceria da UNIR com

KOINONIA através do projeto Territórios Quilombolas.

DIANA SANDES

Artista visual e fotógrafa. Seu trabalho, que tangencia áreas

-

sença e o distanciamento, a familiaridade e o estranhamento

para investigar noções como a ausência, o deslocamento e o

exílio. Graduada em História e mestre em Literatura, Cultura e

e grupos de estudo com artistas como Eustáquio Neves e Iole de

Freitas, que foram essenciais na sua formação. Paralelamente,

integra o Coletivo CLAP, que registra em imagens criações nos

campos da dança, da performance e da música.

Page 490: Untitled - Editora UFMG

488

DOLORES BOSSUYT

Artista belga formada na Academia Real de Bruxelas de Beau-

x-Arts, ensina as técnicas de desenho, pintura e escultura para

crianças e adultos nas academias belgas. Por muitos anos tra-

balhou em sua criação, que foi exibida e reconhecida em expo-

sições de arte em seu país de origem. Suas repetidas viagens

à África tornaram-se uma fonte importante para a estética de

seu trabalho, seu senso de cor e inspiração geral. Suas criações

artísticas compreendem desenhos, obras sobre tela, esculturas,

molduras e esculturas de vários materiais. Grande parte de seu

-

posição (instalação e tela) foi um show solo em Las Vegas, EUA.

EUDES BELO

Historiador. Professor da rede pública da Prefeitura de Capo-

eiras e do Estado de Pernambuco. Graduado em história pela

Universidade de Pernambuco, mestre em História pela Univer-

sidade Federal Fluminense e, atualmente, doutorando pela Uni-

versidade São Paulo. Pesquisa sobre cidades, memórias, domes-

ticidade, casa e cultura material.

EULÍCIA ESTEVES

Gestora cultural e historiadora. Mestre em Bens Culturais e

Projetos Sociais (CPDOC/FGV-RJ) e doutora em História Social

(IH/UFRJ). No PPGHIS/UFRJ, defendeu a tese Praça Onze: a in-

venção do berço do samba. É servidora da Fundação Nacional de

Artes - Funarte, onde atualmente responde pela Coordenação

de Música Popular.

Page 491: Untitled - Editora UFMG

489

EVERARDO PAIVA DE ANDRADE

Graduado em História e doutor em Educação pela UFF, foi pro-

fessor na escola básica por longos anos, ex-diretor do CIEP Lina

Bo Bardi e formador de professores em diversas instituições e

circunstâncias. Atualmente é professor do Programa de Pós-

-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense

e do Profhistória. Poeta bissexto em quarentena voluntária, de

tempos em tempos inverte os lados de fora e de dentro: publicou

os livros de poesia Inventário de tudo e Sortilégio antigo e zen

para viagem, e também organizou, em parceria com Juniele Ra-

bêlo de Almeida e Marcos Pinheiro Barreto, respectivamente, os

livros História oral e educação e Trajetórias docentes: professo-

res de história narram suas histórias na profissão.

EVERTON VIEIRA BARBOSA

Doutorando em História pela Universidade Federal Fluminen-

se. Bolsista Capes-Cofecub com estágio de pesquisa no Centre de

Recherche et de Documentation sur les Amériques (CREDA) e

no Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine (IHEAL) da

Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3. Autor do livro Páginas

de sociabilidade feminina: sensibilidade musical no Rio de Ja-

neiro Oitocentista (Alameda, 2018, impresso; 2020, ebook).

FABIANA SALLES

Formada em Gestão Estratégica, pós-graduada em Gestão de

Recursos Humanos e em Sistemas de Informação, funcionária

pública. Quarentener

mãe humana e propriedade do Bigode e da Tulipa, dois gatinhos

lindos que fornecem boas histórias e muita diversão. Contadora

de casos da vida real em redes sociais, admiradora da empatia,

sapatão autodidata e a ovelha boa da família.

Page 492: Untitled - Editora UFMG

490

FABIANE POPINIGIS

Doutora em História pela Unicamp, é professora associada do

Departamento de História da Universidade Federal Rural do Rio

de Janeiro (UFRRJ). Sua tese, sobre o movimento associativo e

reivindicativo pela regulamentação da jornada de trabalho no

comércio, resultou na publicação do livro Proletários de casaca:

empregados no comércio carioca (1850-1911), pela Editora

Unicamp. Tem artigos e capítulos sobre história do trabalho no

Brasil, escravidão e da liberdade e relações de gênero em pers-

pectiva de História Social. Atualmente é subcoordenadora do

Programa de Pós-Graduação em História da UFRRJ e é coorde-

nadora nacional do GT-ANPUH Mundos do Trabalho.

FERNANDO CARDOSO

Graduado em Desenho pela Escola de Belas Artes da UFMG.

Conta, em seu currículo, com diversos eventos e exposições,

como: 26o Salão Nacional de Arte de Belo Horizonte – MAP

Gales (2003); Projeto Intercâmbio Cultural Linha Imaginária –

Porto/Portugal (2005); Japan Brasil Creative Art Session 2008

– Kawasaki, Kanagawa, Japão (2008); Realidades: Desenho

Contemporâneo Brasileiro – SESC Pinheiros, São Paulo (2010);

Círculos Traçados – Galeria Deco, SP (2011); Sobre o que se de-

senha – MAP/BH (2015); e exposições individuais na Galeria

Ybakatu (em 2015 e 2019).

FERNANDO VALE CASTRO

Pai da Lua. Professor associado de História da América no Ins-

tituto de História da UFRJ. Graduado e Mestre em História pela

UFF. Doutor em História Social da Cultura pela PUC-Rio e pós-

-doutor pela USP. Autor de livros e artigos, dentre eles: Pensan-

do um continente: a Revista Americana e a criação de um pro-

jeto cultural para a América do Sul (2012).

Page 493: Untitled - Editora UFMG

491

FLÁVIO BOAVENTURA

Boave, como é conhecido, nasceu em Belo Horizonte, em 1972.

Poeta e ensaísta, tem textos publicados em inúmeros periódicos

desde os anos de 1990. Além de bolsista de Filosofía y Letras

da Universidad de Málaga, Espanha, em 2006, foi também bol-

sista da Fapemig no Pós-Lit/UFMG no período de 2008-10. De

sua autoria destacam-se, entre outros, os livros Delírio trêmulo

(7Letras, 2003), O amante da algazarra: Nietzsche na poesia

de Waly Salomão (UFMG, 2009) e sombraluz (7 Letras, 2011,

em parceria com Vera Casa Nova). Atualmente, tem se dedicado

a charges e trabalhos visuais utilizando técnicas mistas.

GABRAZ

Gabriel Sanna. Artista visual e cineasta. Desde 2004 vem rea-

documentário, exibidos em diversos países no circuito de festi-

vais e mostras.

GASTÃO FROTA

Artista visual. Cresceu em Belo Horizonte. Professor do IARTE

da Universidade Federal de Uberlândia e doutorando em Belas

Artes na Universidade de Lisboa.

HENRIQUE ESPADA LIMA

Professor do Departamento de História da UFSC. Autor de A

micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades

(2006), escreve sobre a história social e legal do trabalho escra-

vizado e livre.

HENRIQUE DE OLIVEIRA LEE

, Lee Kah Tche nasceu em 1979 em Asunción, Paraguai,

e reside no Brasil desde 1983. Atualmente mora em Cuiabá. Lê e

escreve, cultiva mandioca. É psicanalista e professor da UFMT.

Page 494: Untitled - Editora UFMG

492

ISABEL LUSTOSA

Autora de diversos livros e artigos sobre a história política e cul-

tural brasileira, é doutora em Ciência Política pelo antigo IUPERJ

atual IESP-UERJ, sócia titular do IHGB e foi pesquisadora da

FCRB por 30 anos. Ocupou a Cátedra Simon Bolívar, no IHEAL

Paris 3, e a Cátedra Sérgio Buarque de Holanda na Maison des

Sciences de l’Homme, atuando como professora visitante na

Universidade de Rennes-2. É, atualmente, professora visitante

sênior com bolsa da CAPES junto à Universidade Nova de Lisboa.

ISABEL TRAVANCAS

Professora associada do PPGCOM e coordenadora do curso de

Produção Editorial da Escola de Comunicação da UFRJ. É mes-

tre em Antropologia Social pelo PPGAS do Museu Nacional-U-

FRJ e doutora em Literatura Comparada pela UERJ. É autora

dos livros: O mundo dos jornalistas (Summus Editorial, 1993),

O livro no jornal (Ateliê Editorial, 2001) e Juventude e televisão

(FGV, 2007).

JANAÍNA MELLO LANDINI

Nascida em São Gotardo, Minas Gerais. Vive e trabalha em São

Paulo. Formou-se em Arquitetura e cursou Belas Artes, ambas

na Universidade Federal de Minas Gerais. Sua produção artísti-

ca abrange seu conhecimento de arquitetura, física e matemá-

tica e suas observações sobre o tempo, para tecer sua visão de

mundo. Seu trabalho transita entre diferentes escalas – do obje-

to aos espaços públicos. Nos últimos seis anos, mostrou seu tra-

balho em exposições em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belo

Horizonte, Belém, Itália, Inglaterra, França, Holanda, Japão, Co-

lômbia, entre outros lugares. Participa de várias coleções como

Fondation Carmignac, BIC Collection, Corinne Ricard, Sérgio

Carvalho, Graeme W. Briggs, Jorge Gruenberg e Shom Hinduja.

Page 495: Untitled - Editora UFMG

493

JAYME RIBEIRO

Possui graduação em História pela Universidade Federal Flu-

minense, mestrado e doutorado em História Social pela mesma

universidade. Atualmente é professor do Instituto Federal de

Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), do Pro-

grama de Pós-Graduação em História da Universidade Salgado

de Oliveira (PPGH-UNIVERSO) e da Escola Municipal Pio X. Tra-

balhou nos cursos de graduação da UERJ-FFP, da Universidade

-

dense. Foi professor dos cursos de Pós-Graduação lato sensu

das instituições: UFF, Cândido Mendes e Universo. Participou do

projeto “O Rio de Janeiro nos jornais: ideologias, culturas polí-

-

do da FAPERJ, coordenado pelo professor Jorge Ferreira. Como

historiador, publicou livros, capítulos e artigos nos campos da

História e do Ensino de História, tais como: Combatentes da paz:

os comunistas brasileiros e as campanhas pacifistas dos anos

1950 (7Letras, 2011), Ensino de História: usos do passado, me-

mória e mídia (Org.) (FGV, 2014) e Imaginando a revolução:

cultura política e iconografia comunista nas páginas de A Na-

ção (1927) (7Letras, 2015).

JEFFERSON MEDEIROS

Nascido em São Gonçalo-RJ, trabalha e reside na mesma cidade.

Formado em História pela UERJ-FFP, especializado em Ensino

de Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras pelo IFRJ,

mestre em Estudos Contemporâneos da Arte pela UFF, é músico

JOÃO ALFREDO COSTA DE CAMPOS MELO JÚNIOR

Professor associado da Universidade Federal de Viçosa - Cam-

pus Rio Paranaíba. Bacharel e licenciado em História e Mestre

Page 496: Untitled - Editora UFMG

494

em Ciências Sociais pela PUC-Minas, doutor em Ciências So-

ciais pela UFSCar, pós-doutor em Sociologia pela Universidade

do Porto. Autor do livro As novas ações coletivas e a crise do

modelo sindical corporativista (Argvmentvm, com apoio da

Fapemig). Autor do capítulo “Edward Thompson” na coletânea

Os Historiadores da PUC-RJ. Autor do capítulo “Fronteiras de

um mesmo diálogo: Edward Thompson, Charles Tilly e as pos-

sibilidades da pesquisa em História da Educação”, da coletânea

Nas dobras de Clio: história social e história da educação, pela

Mazza Edições.

JOSÉ LOPES AGULHÔ JR.

Psicólogo, consultor, ex-executivo de grandes empresas e ex-

-professor no Ibmec e na Fundação Dom Cabral, também é avô

de quatro netos: Liz, Valentin, Antônio e Helena.

JOSÉ NEWTON COELHO MENESES

Professor associado do Departamento de História da Universi-

dade Federal de Minas Gerais. Graduado em Medicina Veteriná-

ria pela EV-UFMG (onde foi professor adjunto de 2004 a 2009)

e em História pela FAFICH/UFMG. Possui Mestrado em História

pela Universidade Federal de Minas Gerais e Doutorado em His-

tória pela Universidade Federal Fluminense. É diretor do Centro

de Estudos Mineiros da FAFICH/UFMG.

JURANDIR MALERBA

Professor titular livre da Universidade Federal do Rio Grande do

Sul. Inaugurou a Cátedra Sérgio Buarque de Holanda de Estudos

Brasileiros da Universidade Livre de Berlim (2012-13); dessa

experiência resultou o livro Trem para Estação Varsóvia. Crô-

nicas Berlinenses (Edipucrs, 2014).

Page 497: Untitled - Editora UFMG

495

KAIO CARMONA

Poeta e professor de literatura. Pós-doutor em Poéticas da Mo-

dernidade pela UFMG, professor visitante no IFMG, professor

assistente na FAJE. Doutor em Estudos Literários pela UFMG,

publicou os livros Um lírico dos tempos (Scortecci, 2006), Com-

pêndios de amor (Scriptum, 2013), Para quando (Scriptum,

2017). Possui vários artigos publicados e organizou, junto com

Vera Casa Nova e Marcelo Dolabela, a coletânea Entrelinhas

Entremontes: versos contemporâneos mineiros (Quixote+Do,

2020). Vive em Belo Horizonte.

KAORI KODAMA

Pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz-Fiocruz e professora do

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saú-

de e do Programa de Pós-Graduação em Divulgação da Ciência,

Tecnologia e Saúde. Foi professora visitante na Université Pa-

ris-1, Panthéon-Sorbonne, com a supervisão de Dominique Ka-

de artigos, organizações de livros e capítulos em temas ligados

à constituição das ideias de raça e relações com o discurso mé-

-

menta pesquisa sobre a epidemia de cólera no Rio de Janeiro no

Oitocentos, tema ligado ao grupo de pesquisa do CNPq, Escravi-

dão, raça e saúde.

KARLA GUERRA

Doutora em Arquitetura e Urbanismo e mestre em Sociolo-

gia. Gestora Cultural. Padeira amadora. Fundou a Ohm Cul-

tura em 2008, onde atua com elaboração e consultoria para o

Page 498: Untitled - Editora UFMG

496

desenvolvimento de projetos em diversas áreas. Atualmente é

Gerente de Desenvolvimento Turístico na Empresa Municipal

de Turismo de Belo Horizonte - Belotur.

LAERTE

Laerte Coutinho OMC, ou simplesmente Laerte, é uma cartunis-

ta e chargista brasileira, considerada uma das artistas mais im-

portantes da área no país. Estudou comunicações e música na

Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo,

porém não se formou nestes cursos. Participou de diversas pu-

blicações como a Balão e O Pasquim. Também colaborou com as

revistas Veja e Istoé e os jornais Folha de S.Paulo e O Estado de

S. Paulo. Criou diversos personagens, como os Piratas do Tietê e

Overman. Em conjunto com Angeli e Glauco (e mais tarde Adão

Iturrusgarai) desenhou as tiras de Los Três Amigos. Em entre-

vista à Folha de S.Paulo, em 2010, revelou por que abandonou

alguns de seus personagens e optou pela prática pública do cros-

sdressing

participou de vários programas e matérias na mídia impressa e

eletrônica.

LARRY ANTHA

Carioca, nascido em 1970, formado em História e vocal e letris-

ta das bandas Sex Noise, LoveJoy, 100Tauro 100Tado e Katina

Surf. É autor de seis livros e, em 2018, ganhou dois prêmios li-

terários do Ministério da Cultura sobre o Bicentenário de Inde-

pendência do Brasil.

LAURA GUIMARÃES CORRÊA

É professora na Graduação e no Programa de Pós-Graduação em

Comunicação Social da UFMG. Leciona, faz pesquisa e coordena

o Coragem - Grupo de Pesquisa em Comunicação, Raça e Gênero.

Page 499: Untitled - Editora UFMG

497

Organizou e lançou recentemente o livro Vozes negras em co-

municação: mídia, racismos, resistências, pela Autêntica. Já

fotografar.

LIBÂNIA XAVIER

Professora titular do Programa de Pós-Graduação em Educação

da FE-UFRJ e Pesquisadora do CNPq. É autora de livros e arti-

gos, dos quais destaca-se Associativismo docente e construção

democrática (Brasil-Portugal:1970-1980) (Eduerj, 2013).

LOR

Luiz Oswaldo Carneiro Rodrigues. Cartunista. Médico. Profes-

-

bromatoses do Hospital das Clínicas da Universidade Federal

de Minas Gerais. Presidente da Associação Mineira de Apoio às

LÚCIA CASTELLO BRANCO

Possui graduação em Letras pela Universidade Federal de Mi-

nas Gerais, mestrado em Literatura Luso-brasileira pela India-

na University e doutorado em Estudos Literários pela Universi-

dade Federal de Minas Gerais. Realizou três pós-doutorados em

Literatura Comparada e em Teorias Psicanalíticas (Universida-

de Nova de Lisboa, University of California e Universidade Fede-

ral do Rio de Janeiro) e um estágio sênior, na Emory University,

sob a supervisão de Shoshana Felman. Professora permanente

do Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários

da Faculdade de Letras da UFMG e professora permanente do

Programa de Pós-graduação em Letras do Instituto de Letras da

UFBA. Escritora e psicanalista.

Page 500: Untitled - Editora UFMG

498

LUCIANA BRITO

Professora do curso de graduação e do mestrado em História

da África, da diáspora e dos povos indígenas na Universidade

Federal do Recôncavo da Bahia. É doutora em História Social

pela USP e é especialista em história da escravidão, abolição e

relações raciais no Brasil e nos EUA. É autora do livro Temos

da África: segurança, legislação e população africana na Bahia

oitocentista, que ganhou o prêmio Thomas Skidmore em 2019. É

autora de vários artigos e é colunista do Jornal Nexo.

LUCIANA HEYMANN

Bacharel e licenciada em História pela UFRJ, mestre em Antro-

pologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ e doutora em Socio-

logia pela IUPERJ. Pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz da

Fundação Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). Desenvolve pesquisas

no campo da memória, do patrimônio e dos arquivos.

LUCILIA NEVES

Historiadora. Poeta. Pintora. Ex-professora da UFMG, da

PUC-Minas e da UnB. Foi vice-presidente da Associação Nacio-

nal de História (ANPUH) e consultora ad hoc da CAPES, CNPq e

FAPESP. É presidente da ABHO e também do Conselho Curador

da FAPEMIG. Entre suas premiações se destacam a Medalha de

-

e capítulos de livros. Cidadã honorária de Belo Horizonte.

LUIZ HENRIQUE GARCIA

Graduado, mestre e doutor em História pela Faculdade de Fi-

sobre o Clube da Esquina e a música popular brasileira dos anos

1960-70. Coordenou por oito anos o Setor de Pesquisa do Museu

Page 501: Untitled - Editora UFMG

499

Histórico Abílio Barreto (MHAB) em Belo Horizonte. Atualmen-

te é professor associado da Escola de Ciência da Informação da

UFMG, atuando no curso de Museologia e no Programa de Pós-

-Graduação em Ciência da Informação. É um dos coordenadores

do grupo de pesquisa ESTOPIM - Núcleo de Estudos Interdisci-

plinares do Patrimônio Cultural e criador do SOMMUS - Grupo

de Estudos em Som e Museologia, sediados na UFMG. Também

atua como compositor e letrista, tendo parcerias gravadas com

-

cio Ribeiro, e muitas outras aguardando registro.

LUZIMAR SOARES

Bacharel em Turismo na Universidade Guarulhos, mestre em

História Social e doutoranda em História Social na PUC-SP. Gra-

duanda em Licenciatura em História na Uninter. Comissária de

voo desde 2001, com passagem pela Vasp (2001-2005), BRA

(2005-2007) e Latam (2008-atualmente).

MAHX

Artista plástico, músico, comunicólogo e professor. Trabalha

com diversos suportes técnicos, frequentemente em obras que

trazem contaminações entre mídias. É formado em Comunica-

ção pela UFMG, Artes Plásticas pela UEMG, com especialização

em Artes Plásticas e Contemporaneidade pela UEMG e mestra-

do em Comunicação pela PUC-MG. Atualmente é doutorando em

Artes na UFMG. Divide seu tempo entre pesquisas – o processo

criativo é um dos focos de interesse –, docência e produção de

trabalhos que vão do desenho à música autoral passando pela

pintura e realização de vídeos. Já participou de diversas exposi-

ções coletivas incluindo um vídeo em uma exposição internacio-

nal no CICA Museum (Coreia do Sul), realizou duas exposições

individuais e recebeu dois prêmios por trabalhos em vídeo.

Page 502: Untitled - Editora UFMG

500

MARCEL DE ALMEIDA FREITAS

Sociólogo, mestre em Psicologia, doutor em Educação, professor

da UEMG. Consultor ad hoc sobre Patrimônio Cultural Material

e Imaterial. Integrante do GSS/FaE/UFMG, Grupo de Estudos

em Gênero e Sexualidade na Educação.

MARCELLE DINIS CASTRO

Mãe da Lua. Médica psiquiatra com residência no Hospital Pe-

dro Ernesto - UERJ. Especialista em assistência a dependentes

em álcool e drogas NEPAD-UERJ. Mestre e doutora em Ciências

pela Fiocruz. Pós-graduada em Terapia Cognitiva Comporta-

mental. Coautora do livro Bem-estar mental e emocional na

atualidade. Saúde além do corpo (2019).

MARCELO KRAISER

Artista visual e sonoro, poeta, doutor em Literatura Compara-

da pela FALE/UFMG, construtor de instrumentos, integrante do

Trio Kallpp de arte sonora, compositor de trilhas, praticante de

-

do da Escola de Belas Artes da UFMG.

MARIA ALICE BALBINO

Historiadora formada pela PUC-RIO. Foi bolsista PIBIC com pes-

quisa sobre “Os pequenos clubes dançantes no Rio de Janeiro

no início da primeira República”. Também foi bolsista PIBID e

está ligada ao campo da História Oral, Memória e Patrimônio

Imaterial por meio do Jongo do Sudeste. Atualmente participa

do curso sobre comunicação comunitária para registro da pan-

demia do covid-19 na Rocinha, local em que nasceu e reside com

a família.

Page 503: Untitled - Editora UFMG

501

MARIA CLARETH GONÇALVES REIS

Professora associada da Universidade Estadual do Norte Flumi-

nense Darcy Ribeiro; coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-

-brasileiros e Indígenas (NEABI/UENF); coordenadora do curso

de Licenciatura em Pedagogia. Atua como docente no Programa

de Pós-Graduação em Políticas Sociais (PPGPS); coordena a área

Quilombos, Territorialidade e Saberes Emancipató-

rios da Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as)

(ABPN). Autora do livro Mulheres, negras e professoras: suas

histórias de vida (Brasil Multicultural).

MARIA PAULA NASCIMENTO ARAÚJO

Professora titular de História Contemporânea da Universida-

de Federal do Rio de Janeiro, onde integra o Programa de Pós-

-Graduação em História Social (UFRJ/PPGHIS) e o Mestrado

pesquisas sobre a História do Tempo Presente. É autora de A

utopia fragmentada: novas esquerdas no Brasil e no mundo na

década de 1970 (2000), Memórias estudantis: da fundação da

UNE aos nossos dias (2007), História e memória de Vigário Ge-

ral, com Écio Sales (2008). Nos últimos anos participou e orga-

nizou diversas coletâneas sobre justiça de transição e políticas

de memória como Marcas da memória: história oral da anistia

no Brasil, junto com Antonio Montenegro e Carla Rodeghero

(2012) e Democratização, memória e justiça de transição nos

países lusófonos, com Antonio Costa Pinto (2017).

MARIA PAULA PAES

Doutora em História da Sociedade e da Cultura (UFMG/UNL-

-Portugal). Foi professora do Departamento de História da PU-

C-Minas durante 10 anos. Em 2004 fez seu pós-doutoramen-

Page 504: Untitled - Editora UFMG

502

Investigadora Associada do CHAM-UNL-Portugal. Foi professora

na Metropolitan University of London de 2015 a 2019. Atualmen-

te trabalha para o Alto Comissariado dos Direitos Humanos da

ONU realizando trabalhos de pesquisa e análise com os refugia-

dos turcos e sírios na Inglaterra e Alemanha. Tem diversos ar-

tigos publicados em francês e inglês em revistas especializadas.

Destacam-se dois livros publicados pela Manchester University

Press: The Dutch Adventure in Portuguese America in the begin-

ning of the 17th Century (2012) e Prudence e Persuasion. The

Portuguese Colonization in Brazil - 18th Century (2014).

MARIO BRUM

Pesquisador e Professor de História urbana. Integra a Rede

Proprietas, hoje INCT - Instituto Nacional de Ciência e Tecno-

logia, projeto internacional: História Social das Propriedades e

Direitos de Acesso (www.proprietas.com.br). Possui graduação

em História, mestrado em História e doutorado em História, to-

dos pela Universidade Federal Fluminense, pós-doutorado em

Planejamento Urbano pela UFRJ e em Educação pela UERJ. Foi

professor das redes municipal e estadual do Rio de Janeiro. No

ensino superior, lecionou na Graduação em História da UFF, em

cursos de Extensão na PUC-RJ, no GPDES-UFRJ, no Programa

de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em

Periferias Urbanas da UERJ e na graduação em Pedagogia da

FEBF-UERJ.

MARISE DA SILVA MATTOS

Médica graduada pela UFRJ, mestre em Doenças Infecciosas e

Parasitárias pela UFRJ, Doutora em Medicina Tropical pelo Ins-

tituto Oswaldo Cruz/FIOCRUZ, professora aposentada do IBC-

CF/UFRJ, médica aposentada do INI/FIOCRUZ, médica infecto-

logista da DIVE/SES/SC.

Page 505: Untitled - Editora UFMG

503

MARJORIE MARONA

Doutora em Ciência Política. Professora do Programa de Pós-

-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Mi-

nas Gerais (PPGCP/UFMG). Coordenadora do Observatório da

Justiça no Brasil e na América Latina (OJb-AL/UFMG). Pesqui-

sadora do INCT/IDDC - Instituto da Democracia e Democratiza-

ção da Comunicação. Coorganizou, dentre outras, a obra Justiça

no Brasil: às margens da democracia (Arraes, 2018).

MARTA MEGA DE ANDRADE

Professora do Instituto de História da UFRJ, Historiadora da

Antiguidade Grega e coordenadora dos grupos de pesquisa de

-

-

nimo de Ana Madeira e compõe, canta, toca guitarra e teclados

no duo Deodorina, formado por ela e seu companheiro Junior

Teixeira.

MARTA NEVES

Mestre em Artes Plásticas pela UFMG. Trabalha com mídias

variadas, integrando projetos coletivos como Intercâmbio Cul-

tural Linha Imaginária, Nessa Rua Tem um Rio (Inst. Undió) e

Academia TransLiterária. Tem participado de eventos artísti-

cos diversos: Panorama da Arte Brasileira (2001); Contemporá-

neos Brasileños – Centro de Arte Contemporâneo Wifredo Lam,

Havana (2002); Amalgames Brésiliens, França (2005); Japan-

-Brazil – Creative Art Session 2008 – Kawasaki City Museum

(Japão, 2008); 31ª Bienal de São Paulo (2014); Um Canto, Dois

Sertões – Museu Bispo do Rosário, RJ (2015); “À boca pequena,

naturalmente” – Palácio das Artes, Belo Horizonte (2017); Es-

tamos aqui! Relevos no Horizonte do Acervo do MAC – MAC-PR

(2019).

Page 506: Untitled - Editora UFMG

504

MICHELLE VALÉRIA MACEDO SILVA

Defensora Pública Federal. Doutoranda em Direito na Universi-

dade de Lisboa. Curiosa. Investigadora. Nadadora. Poeta. Artis-

ta. Cuidadora da própria vida.

MONICA GRIN

Professora de História Contemporânea e do Programa de Pós-

-graduação em História Social da UFRJ. Coordenadora do Nú-

cleo de Estudos Judaicos (NIEJ/UFRJ)

MÔNICA OLENDER

“Móbile solto no furacão”, arquiteta e urbanista, professora uni-

versitária na UFJF e amante dos livros, das músicas e das artes.

Sua pesquisa de doutorado caminha na direção da (re)aproxi-

mação de professores e estudantes de arquitetura e urbanismo

do cotidiano do mundo, enquanto a dissertação de mestrado é

referência do sistema construtivo pau-a-pique na área de arqui-

tetura vernacular.

MONICA PIMENTA VELLOSO

Historiadora, pesquisadora titular da Fundação Casa de Rui

Barbosa. Dentre outros publicou O Modernismo no Rio de Ja-

neiro (2.ed., 2015); escreveu e organizou Histoire culturelle du

Brésil (XIX-XXI siécles) (Paris, IHEAL, 2019) e Magazines and

modernity transnational networks and cross-cultural exchan-

ges (Londres, Artherm, 2020). Participou de coletivas fotográ-

MULAMBÖ

João Motta nasceu e cresceu entre Saquarema e São Gonçalo

e trabalha a partir da restituição de potências, buscando a va-

lorização de símbolos do existir suburbano no Rio de Janeiro.

Page 507: Untitled - Editora UFMG

505

Explora desde a pintura, criação de bandeiras e objetos até a

internet como plataforma de trabalho e, assim, faz arte para

NOGENTA STREET ART

Surgimos principalmente como uma visão de indignação acerca

de todos os nossos problemas sociais e estruturais. Decidimos

que precisávamos ser agentes mais ativos em nossa sociedade.

Resolvemos usar as ruas como nossa principal rede social, com

intuito de levar nosso trabalho ao consciente de cada pessoa que

-

mento crítico e convidar as pessoas a se questionar sobre nossa

sociedade atual e principalmente o futuro que queremos ter.

PABLO PIRES FERNANDES

Jornalista. Trabalhou nas editorias de Cultura e Internacional

nos jornais O Tempo e Estado de Minas, onde foi editor do Ca-

derno Pensar. É diretor de redação do site Dom Total.

PANMELA CASTRO

Artista visual, performer. Mestre em Processos Artísticos Con-

temporâneos pela UERJ. Realizou trabalhos na África, Améri-

cas, Ásia e Europa. Suas obras integram acervos de coleções

como do Banco Interamericano de Desenvolvimento, Museu da

Câmara dos Deputados, Museu da República e Coleção das Na-

ções Unidas. Possui como objeto de pesquisa o corpo feminino

em diálogo com a paisagem urbana, a alteridade e as percep-

ções trazidas pelas experiências na rua, na produção de arte

pela urbe. Dentre suas experiências com performance está Por-

quê?, apresentada no Museu do Bispo do Rosário (2016) e Fem-

me Maison, apresentada Trienal de Artes do Sesc de Sorocaba

(2017), ambas realizadas a convite da curadora Daniela Labra.

Page 508: Untitled - Editora UFMG

506

PATRICIA ORFILA BARROS DOS REIS

Arquiteta e professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da

Universidade Federal do Tocantins. Doutora em História Social

e mestra em Engenharia Urbana. Realizou estágio de Pós-Dou-

torado no projeto [email protected], vinculado ao Centro Interdisci-

plinar de Estudos de Gênero, do Instituto Superior de Ciências

Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa. Atualmente pes-

quisa a relação da arquitetura e do urbanismo com perspectiva

de gênero e coordena o projeto de pesquisa Mulheres Construin-

do Espaços.

PAULO CÉSAR GOMES

Idealizador e editor-chefe do site História da Ditadura. Historia-

dor. Pós-doutorando do PPG em História da Universidade Fede-

ral de Fluminense, doutor em História Social pela UFRJ, com

período de estágio no Institut des Hautes Études de l’Amérique

Latine (IHEAL/Universidade Paris 3). É autor dos livros Os bis-

pos católicos e a ditadura militar brasileira: a visão da espio-

nagem (Record, 2014) e Liberdade vigiada: as relações entre

a ditadura militar brasileira e o governo francês – do golpe à

anistia (Record, 2019). Foi pesquisador da Comissão Nacional

da Verdade e professor de História do Brasil Republicano na

Universidade Federal Fluminense.

PEDRO CASTILHO

Psicanalista. Professor do curso de graduação e da pós-gra-

duação da Faculdade de Educação da UFMG, vem realizando

pesquisas nas áreas de Políticas Públicas, Adolescência em

-

cação Social, Toxicomania e Contemporaneidade. O professor é

membro da SIPP - International Society for Psychoanalysis and

Philosophy, um grupo de professores e pesquisadores de várias

Page 509: Untitled - Editora UFMG

507

universidades do mundo que discutem os temas relacionados à

sua pesquisa. Além disso, é editor da coleção Sala de Espera da

Editora Scriptum.

RAFO CASTRO

Um artista múltiplo, que conta com mais de 30 exposições entre

individuais e coletivas. É conhecido pelo traço marcante e pela

RAFAEL AMORIM

É poeta e artista visual, vive e trabalha no Rio de Janeiro,

graduado em Artes Visuais/Escultura pela Escola de Belas Artes

UFRJ. Como prática artística se vê interessado em construir uma

linguagem verbovisual, entendendo os percursos e as paisagens

cotidianas enquanto texto e o texto enquanto espaço. Além de

curador da mostra coletiva “Terreno baldio: experiência n.1” na

Pinacoteca da Universidade Federal de Viçosa-MG e propositor

do projeto de residência artística em “Terreno baldio: experiência

n.2” no Centro Cultural da UFMG, recentemente foi contemplado

pelo primeiro lugar na 4ª edição do Prêmio Rio de Literatura, ca-

tegoria Novo Autor Fluminense. Seu livro de estreia, Como tratar

paisagens feridas será publicado pela Editora Garamond.

RENATA OTTO DINIZ

Doutoranda em Antropologia Social na UnB, com pesquisa em

etnologia junto aos Awá-Guajá, tupi-guarani no Maranhão. É

mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional-UFRJ. Foi

Terras; e de Índios Isolados e de Recente Contato da FUNAI. In-

tegra o coletivo Filmes de Quintal, organizador do forumdoc.bh

Quando os Yamiy Vêm Dançar Conosco, entre outros.

Page 510: Untitled - Editora UFMG

508

RENATO COUTINHO

Professor de História do Brasil Republicano no Instituto de His-

tória da Universidade Federal Fluminense e pesquisador do la-

boratório Brasil Republicano - pesquisadores em História Cultu-

ral e Política.

RICARDO ALEXANDRE

Ilustrador e escultor autodidata, formado em Editoração eletrô-

-

grafo em diversas publicações do segmento turístico e gastro-

nômico em Angra dos Reis. Como ilustrador, trabalhou no Gibi

Omarzinho, o menino do mar, que aborda questões ambientais.

Atualmente trabalha como ilustrador digital freelancer.

ROSÂNGELA SAMPAIO

Historiadora. Trabalhou em diversas instituições culturais

como museus e centro de arte, como o Centro de Arte Popular-

-Circuito Praça da Liberdade, Centro de Referência Audiovisual

Graduada em História pela UFMG, e pós-graduada em Cidades e

Cultura pela PUC-MG. Foi assessora do IPHAN-MG.

SÉBASTIEN ROZEAUX

Historiador contemporâneo (Universidade de Toulouse - Jean-

-Jaurès), estuda história do Brasil, Portugal e América Lati-

na, história transnacional e construção de nações nos tempos

contemporâneos. Publicou Une préhistoire de la lusophonie. Les

relations culturelles entre le Portugal et le Brésil au XIXe siècle

(2019) e vai publicar em 2020 as Letras Pátrias. Les écrivains

et la création d’une identité nationale au Brésil (1822-1889).

Page 511: Untitled - Editora UFMG

509

SÍLVIA CORREIA

Professora de História Contemporânea no Instituto de História

da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi investigadora in-

tegrada no Instituto de História Contemporânea da Universida-

de Nova de Lisboa até 2013, especialmente em história cultural

e política, história comparada; cultura e memória, particular-

mente de guerra, e história oral. Licenciada em História pela

Universidade do Minho e doutorada pela Universidade Nova

de Lisboa com o projeto intitulado “A política da memória da I

Guerra Mundial em Portugal, 1918-1933. Entre a experiência

e o mito”. Coordenou, entre 2009 e 2011, a criação do Arquivo

de História Oral da Confederação Geral de Trabalhadores Por-

tugueses Intersindical Nacional (1970-1977). No ano de 2012

foi Fulbright Scholar na Brown University. Desenvolveu o pro-

jeto de pós-doutoramento, entre a Universidade Nova de Lisboa

e a Brown University, dedicado a uma abordagem comparativa

dos regimes memoriais da guerra colonial em França (Argélia,

1954-1962) e das guerras coloniais em Portugal (Angola, Mo-

çambique e Guiné, 1961-1974). Atualmente, dedica-se ao estudo

das memórias da experiência portuguesa na I Guerra Mundial.

É investigadora associada do Instituto de História Contemporâ-

nea da Universidade Nova de Lisboa e membro da Memory Stu-

dies Association.

THAÍS ROCHA DA SILVA

Historiadora e egiptóloga. PhD em Egiptologia pela Universida-

de de Oxford, Research Fellow, Harris Manchester College, Uni-

versidade de Oxford. Ama gatos.

VALÉRIA GUIMARÃES DA SILVA

Cidadã carioca. Filha Separada pelo isolamento compulsório de

pais acometidos de Hanseníase (Lepra) de Curupaiti.

Page 512: Untitled - Editora UFMG

510

VALMIR ALEIXO

Historiador, doutor em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-

-Graduação da UNIRIO, pesquisador na Fundação Casa de Rui

Barbosa, membro da Associação Nacional de História – ANPUH

e membro da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação

em Artes Cênicas – ABRACE.

VERA CASA NOVA

Possui graduação em Letras pela Universidade do Estado do Rio

de Janeiro, mestrado em Teoria da literatura (Poética) pela Uni-

versidade Federal do Rio de Janeiro e doutorado pela Universi-

dade Federal do Rio de Janeiro, em Semiologia. Estágio de Pós-

-doutorado pela Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales,

em Antropologia da imagem, supervisionada por Georges Didi-

-Huberman. Foi professora da Faculdade de Letras da UFMG,

atuando no mestrado e doutorado. Atuou em cursos de gradua-

ção e pós-graduação na Faculdade de Letras da UFMG e na Esco-

la de Belas Artes. Foi professora da escola Guignard (UEMG) e

do mestrado da FUMEC em Estudos Culturais. Pesquisa poéticas

contemporâneas e semiologia da imagem. Há 10 anos tem um

programa na Rádio UFMG educativa Toque de Poesia. É poeta

e tradutora.

WILSON DOMINGUES

Pai, skatista, artista visual, videomaker, ativista. Há décadas

desenvolve essas atividades, seja nos primeiros vídeos de

música após sua passagem pelo Circo Voador. Desenvolveu a

identidade visual da distribuidora de música digital ONErpm.

tábuas de skate como matriz ou como fundador e idealizador

do Coletivo XV (responsável pela legalização do skate na Praça

Page 513: Untitled - Editora UFMG

511

XV no centro do Rio de Janeiro) ele segue transitando pelas

linguagens da mesma forma que transita pelas ruas. Passou por

da Cidade e Estácio de Sá, Escola de Cinema Darcy Ribeiro.

Participou de exposições e exibições em Berlim, Nova Iorque,

Hong-Kong, Rotterdam, Prahova. Aqui no Brasil participou da

coletiva Deslize no Museu de Arte do Rio. E em outras galerias

como Museu de Arte Moderna, A Gentil Carioca, Parque Lage,

Centro Cultural da Justiça Federal e Museu da República.