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UNIVERSIDADE VALE DO RIO DOCE - UNIVALE
FACULDADE DE DIREITO, CIÊNCIAS ADMINISTRATIVAS E ECONÔMICAS - FADE
CURSO DE DIREITO
Robson Tavares da Silva
CONSEQUÊNCIA DA PERDA DO PODER FAMILIAR SOB A PERSPECTIVA DA CRIANÇA E DA FAMÍLIA
CONSEQUÊNCIA DA PERDA DO PODER FAMILIAR SOB A PERSPECTIVA DA CRIANÇA E DA FAMÍLIA
Monografia para obtenção do grau de Bacharel em Direito apresentada à Faculdade de Direito, Ciências Administrativas e Econômicas da Universidade Vale do Rio Doce.
CONSEQUÊNCIA DA PERDA DO PODER FAMILIAR SOB A PERSPECTIVA DA
CRIANÇA E DA FAMÍLIA
Monografia para obtenção do grau de Bacharel em Direito apresentada à Faculdade de Direito, Ciências Administrativas e Econômicas da Universidade Vale do Rio Doce.
Governador Valadares, ___ de ____________ de _____.
Banca Examinadora:
__________________________________________ Prof. Yuri Dias Miranda - Orientador Universidade do Vale do Rio Doce
__________________________________________ Prof. -----------------------
Universidade do Vale do Rio Doce
__________________________________________ Prof. -----------------------
RESUMO No direito moderno, o poder familiar se caracteriza como um instituto de caráter protetivo em que, a par de alguns direitos, se encontram sérios e pesados deveres a cargo do pai e da mãe, em caráter de igualdade, a partir da Constituição Federal de 1988. A perda do poder familiar cabe sempre ao juiz, com auxílio de laudos de equipe interdisciplinar, sempre que necessário, para que possa melhor avaliar a urgência e a necessidade de cada situação em concreto, sempre visando o melhor para a criança e/ou adolescente, usando de seu poder geral de cautela, determinando medidas provisórias, deferindo e determinando a busca e apreensão e a guarda provisória dos menores a terceiros ou a estabelecimentos idôneos enquanto a matéria é discutida no curso do processo. O poder familiar deve ser exercido e ponderado com detida atenção ao mais importante dos princípios do poder familiar, no caso, o princípio da prioridade absoluta da criança e adolescente em nossa sociedade. Excessos ou abusos cometidos no exercício das prerrogativas consistentes no poder familiar poderão configurar violação do direito de intimidade do filho, circunstância que pode ocasionar a suspensão ou mesmo sua destituição. A ação de destituição desencadeia uma individualização da problemática da violência perpetrada aos filhos e, conseqüentemente uma criminalização e uma penalização das famílias pobres. A destituição é uma produção social, fruto de inúmeros agenciamentos sociais, culturais, econômicos e políticos. O Estado não pode se omitir em relação à situação jurídica de cada criança e adolescente a ponto de não respeitar o direito inerente a todos eles de nascerem, crescerem e se desenvolverem em uma família saudável, que lhes oriente, eduque e os respeitem como sujeitos de direitos e como seres em desenvolvimento. Palavras Chaves: Poder Familiar, Destituição do Poder Familiar, Princípio da Prioridade Absoluta da Criança e do Adolescente.
In modern law, the family can be characterized as an institute of protective character that, together with certain rights, are serious and heavy duties charged to the father and mother, on an equal footing, from the Constitution of 1988. The loss of the family power belongs to the judge, with the help of reports of an interdisciplinary team, where necessary, so you can better assess the need and urgency of each situation in particular, always seeking the best for the child and / or adolescents, using of his general power of care, determining measures, upholding and determining the search and seizure and provisional custody of minors to third parties or establishments suitable as the subject is discussed in the course of the process. The family power may be exercised and weighted arrested attention to the most important of the principles of the family, in the case, the principle of priority of children and adolescents in our society. Excesses or abuses in the exercise of State power in consistent violation of the family power can set the child's right to privacy, which may result in suspension or even their dismissal. The action triggers the removal of individualisation of the problem of violence to children, and therefore a crime and a penalty from poor families. The removal is a social production, the result of many social agency, cultural, economic and political. The State can not omit to the legal situation of each child and adolescent they have to respect their inherent right to be born, grow and develop in a healthy family, will guide, educate and respect them as subjects of rights and as human being in development. Keywords: Family Power, Dismissal of Family Power, Principle of priority the absolute of the Child and Adolescent.
1 INTRODUÇAO ……………………………………………………………. 09 2 PODER FAMILIAR ……………………………………………………..... 11 2.1 ANTECEDENTES HISTÓRICOS ……………………………………..... 11 2.2 DELIMITACAO CONCEITUAL …………………………………………. 13 2.3 A QUESTÃO TERMINOLOGICA ……………………………………….. 16 2.4 NATUREZA JURIDICA …………………………………………………. 19 3 CONTEÚDO DO PODER FAMILIAR ……………………………….… 21 3.1 DIREITOS E DEVERES DOS PAIS EM RELAÇÃO AOS FILHOS .… 23 3.1.1 Guarda, educação e correição ............................................................ 23 3.1.2 Assistência e representação ............................................................... 24 3.1.3 Vigência e fiscalização ........................................................................ 25 3.2 DEVERES CORRELATOS DOS FILHOS .......................................... 26 3.3 OUTROS ATRIBUTOS E O CONTROLE ESTATAL .......................... 26 4 AÇÃO DE SUSPENSÃO E DESTITUIÇÃO ....................................... 28 5 EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO CIVIL E CRIMINAL REFERENTE
ÀS CRIANÇAS E SUA FAMÍLIAS ..................................................... 29
6 DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR: CUMPRIMENTO DA LEI OU PUNIÇÃO DAS FAMÍLIAS POBRES? ........................................
32
7 A DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR E A OMISSÃO DO ESTADO .............................................................................................
36
8 RESPONSABILIDADE NA GARANTIA DOS DIREITOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES .......................................................
42
8.1 PROTEÇÃO INTEGRAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE ........ 42 8.2 PRINCIPIO DA PRIORIDADE ABSOLUTA ........................................ 44 9 CONCLUSÃO ..................................................................................... 46 10 REFERENCIAS .................................................................................. 48
O poder familiar é um dos institutos do direito com marcante presença na história do homem civilizado. Suas origens são tão remotas que transcendem às fronteiras das culturas mais conhecidas e se entroncam na aurora da humanidade mesma. A doutrina, em geral e de modo amplo, toma o direito romano como ponto de partida para o seu estudo evolutivo. (De Cicco, 1993 apud Grisard Filho, 2009, p. 37, nota 17):
Sem dúvida, as características especiais da instituição romana vieram a ser a
sua base nas legislações modernas, embora os antecedentes germânicos
encantassem por sua simplicidade.
Segundo conceito fornecido por Grisard Filho:
No direito romano, o pátrio poder - coluna central da família patriarcal - era considerado como um poder análogo ao da propriedade, exercido pelo cabeça da família sobre todas as coisas e componentes do grupo, incluindo a esposa, os filhos, os escravos, as pessoas assemelhadas e toda outra que fosse compreendida pela grande família romana. O pátrio poder em Roma era ao mesmo tempo um patriarcado, uma magistratura, um sacerdócio, um senhorio da vida e das fazendas dos filhos, um poder absoluto sem limites e de duração prolongada, sem exemplo em outros povos. (GRISARD FILHO, 2009, p. 37)
Gaio (I, 55) apud Árias (p. 191) apud Grisard Filho (2009, p. 37, nota 18)
afirma que, com semelhantes características, o pátrio poder só existia entre os
gaiatas. Para Gaio, o pátria potestas é instituto próprio dos civis romanis;
Nesse regime primitivo, em algumas circunstâncias, o pater famílias - que só
podia ser exercido pelo varão - tinha o direito de expor ou matar o filho (ius vitae et
necis), o de vendê-lo (ius vendendi), o de abandoná-lo (ius exponendi) e o de
Entre nós prevalece ainda acerca deste grave assumto a antiga legislação portuguesa que não é senão a reprodução do Direito Romano, no estado em que o deixara o imperador Justiniano, com as modificações que o tempo e os costumes lhe forão fazendo". (PEREIRA, L., 1910, v. 5, p. 234 apud Grisard Filho, p. 2009, p. 39).
Nosso Código Civil, promulgado em 1916 e que vigorou até 2002,
acompanhou a linha que nos legara o direito lusitano, passando por sensíveis
transformações, provocadas por diversos movimentos, que consagraram os ideais
de igualdade entre os cônjuges, entre os filhos, bem como entre estes e os pais. O
quadro legislativo logo absorveu as mudanças, vindo a lume - confiando a ambos os
pais a regência da pessoa dos filhos menores e no interesse desses - o Estatuto da
Mulher Casada, a Lei do Divórcio, a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e
do Adolescente. Por fim, o Código Civil de 2002, atribuindo a ambos os pais, em
unidade substancial, a direção da criação e da educação dos filhos (arts. 1.631 e
1.634).
2.2 DELIMITAÇÃO CONCEITUAL
Buscando delimitar o conceito de poder familiar, que evolui do velho pátrio
poder, por conta dos novos conceitos jurídicos e reformulação de valores sociais
inspirados no texto constitucional, ou poder parental, autoridade parental ou ainda,
responsabilidade parental, é de rigor destacar primeiramente as diferentes posições
doutrinárias sobre esse instituto.
Pereira (1910, p. 234.) apud Grisard Filho (2009, p. 33), em seu clássico
Direito de família, escrito em tempos pré-republicanos, propõe o seguinte conceito:
"O pátrio poder é o todo que resulta do conjunto dos diversos direitos que a lei
concede ao pai sobre a pessoa e bens do filho famílias". Não escapou também ao
seu espírito e à sua cultura a noção filosófica do instituto em questão, lamentando
não ter sido essa a compreensão do direito positivo:
No decurso da menoridade falece ao ente humano a capacidade indispensável para prover as suas necessidades e reger sua pessoa e bens. É mister que alguém tome o infante sob sua proteção, que o alimente, que cultive os germens que lhe brotam no espírito; que, em uma palavra, o eduque, e zele e defenda seus interesses. Esta nobre missão a natureza confiou-a ao pai e á mãe. Pressupõe ele tanto em um como em outro, certos direitos sobre a pessoa e bens do filho. Estes direitos em seu com-plexo constituem o que se chama pátrio poder. (Pereira, 1910, p. 233, apud Grisard Filho 2009, p. 33-34).
Para Pereira (1910, p. 471), referindo ao antigo e já extinto instituto do pátrio
poder: “a instituição do pátrio poder, tal como se acha constituída pelo nosso Direito,
é um invento absurdo, imaginado antes em utilidade e vantagem do pai do que em
benefício do filho".
No mesmo sentido, Beviláqua (1960, v. 2, 279) apud Grisard Filho (2009, p.
34) conceitua o instituto como sendo "o complexo dos direitos que a lei confere ao
pai, sobre a pessoa e os bens dos filhos", repetindo o que já externara em outra
obra de edição precedente (Direito de família), (1956, p. 363) sem correspondência
com a realidade, mas, certamente, à vista da inquebrantável soberania do chefe de
família, que reconhecia ser de "uma amplitude que se nos afigura hoje odiosa [...],
tendo mais em vista o egoísmo dos chefes da sociedade doméstica, do que o
benéfico altruísmo em arrimo à debilidade dos filhos". (BEVILAQUA 1956, p. 366)
Nesses conceitos, os dois consagrados juristas referidos não privilegiaram a
figura materna, que, hoje, desfruta da mais ampla e estrita igualdade, vale dizer,
absoluta, em direitos e deveres com a figura paterna referentemente à sociedade
conjugal, conforme os arts. 5.°, I, e 226, § 5.°, CF.
Autores há, como Monteiro (v.1, 32. ed., p. 288) e Sabino Júnior (p. 51), que,
embora considerem a figura materna no conceito do instituto em pauta, referem ser
ele apenas um conjunto de obrigações dos pais em relação aos filhos menores e
não emancipados, sem qualquer preocupação com os correlatos direitos deles.
Atentos à evolução desse instituto, como de resto à de todo o direito de
família, que reclamava conceituação mais ampla, há autores que melhor o
enunciam, como um complexo de direitos e deveres, quanto à pessoa e bens dos
filhos, exercidos pelos pais na mais estrita colaboração e em igualdade de condições
segundo o art. 226, § 5.°, da CF. (PEREIRA, v. 5, p. 238; FRANÇA, v. 2, t. I, p. 250;
RODRIGUES, v. 6, p. 360).
Desbaratando o cipoal doutrinário existente a respeito do tema, Santos Neto
J. A. E, propõe, sintetizando as várias considerações que refere, este conceito:
O pátrio poder é o complexo de direitos e deveres concernentes ao pai e à mãe, fundado no Direito Natural, confirmado pelo Direito Positivo e direcionado ao interesse da família e do filho menor não emancipado, que incide sobre a pessoa e o patrimônio deste filho e serve como meio para o manter, proteger e educar. (SANTOS NETO, J. A. E, p. 55)
Delimitando, então, o conceito, pode-se dizer que o poder familiar é o
conjunto de faculdades encomendadas aos pais, como instituição protetora da
menoridade, com o fim de lograr o pleno desenvolvimento e a formação integral dos
filhos, física, mental, moral, espiritual e social.
Lei 8.069, de 13.07.1990 - ECA, art. 3°:
A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Para alcançar tal desiderato impõe-se ainda aos pais satisfazerem outras
necessidades dos filhos, notadamente de índole afetiva, pois o conjunto de condutas
pautado no art. 1.634 do CC o é em caráter mínimo, sem excluir outros que
evidenciem aquela finalidade.
Modernamente, não se observam concepções contrapostas nas legislações.
O que existe é uma uniforme concepção filhocentrista, que desloca o seu fulcro da
pessoa dos pais para a pessoa dos filhos, não mais como objeto de direito daqueles,
mas ele próprio (o menor) é um sujeito de direitos e, conseqüentemente, com direito,
dentre outros, ao seu integral desenvolvimento, à filiação, ao respeito, à diferença, a
ser ouvido, à intimidade, à vida (art. 15 do ECA), enfim.
Os filhos não são (nem poderiam ser) objeto da autoridade parental. Em verdade, constituem um dos sujeitos da relação derivada da autoridade parental, mas não são sujeitos passivos, e sim no sentido de serem destinatários do exercício deste direito subjetivo, na modalidade de uma dupla realização de interesses do filho e dos pais “. (FACHIN, 1999, p. 223 apud GRISARD FILHO, 2009, p. 36, nota 13).
Em nosso direito, a titularidade do exercício dessas faculdades de conteúdo
altruísta, pertence conjuntamente aos pais, em absoluta igualdade, como advoga
Leite (1997, p. 245), conforme arts. 5°, I, e 226, § 5°, da CF, art. 1.631 do CC e art.
21 do ECA, quer na constância do matrimônio ou não, em função do melhor
interesse do menor. (RT, v. 205, p. 223; LEITE, 1997, p. 194-202.).
O art. 21 do ECA derrogou o art. 380 do antigo Código Civil, instituindo entre
nós, como nos mais modernos sistemas legislativos, o exercício conjunto do poder
familiar entre o pai e a mãe, pela conveniência à unidade na determinação dos atos
e na orientação da plena assistência aos filhos.
2.3 A QUESTÃO TERMINOLÓGICA
A evolução social determinou o declínio e a morte do pátrio poder de feição
romana, de dominação, discricionário, prevalente, absoluto, traduzido pela palavra
poder, para alcançar o sentido de proteção, como hoje se reconhece. Por isso,
propõe-se substituí-la por outra, diante das transformações estruturais que o instituto
sofreu em suas linhas mais gerais, buscando responder com maior precisão ao
alcance que tem modernamente. Embora não reflita cabalmente sua essência, é
expressão genericamente aceita e utilizada nas legislações modernas, v.g., o
Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 21.
Ao publicar em 1848 suas instituições de direito civil português, Manuel
Antônio Coelho da Rocha, regente da cadeira de direito civil da Universidade de
Coimbra, tratou das relações entre os pais e os filhos sob a denominação de poder
paternal. (ROCHA, v. 4, t. I, 1984, p. 153 apud GRISARD FILHO, p. 2009, p. 40).
A expressão paternal é usada pelo Código Civil português nos arts. 1.877 e
seguintes, em seu sentido lato, como derivado não de pater no singular, mas de
patres, no sentido colegial de pai e mãe, como é, aliás, vulgar na linguagem
corrente. (LIMA, Pires de; VARELA, Antunes. Código Civil anotado, v. 5, p. 331. In:
AMARAL, Jorge Augusto Pais de. Do casamento ao divórcio,1997, p. 163).
Rocha (1978, p. 35) apud Grisard Filho (2009, p. 40), em seu clássico O pátrio
poder, apresenta as expressões que pretendem substituir a tradicionalmente
utilizada: autoridade parental, para Luiz da Cunha Gonçalves, que se propõe até a
substituir a própria expressão poder paternal; poder de proteção, para Colin e
Capitant; função paternal, para Juan Carlos Rebora.
Pela primeira delas, Leite demonstra simpatia, preferindo:
"O termo 'autoridade parental' ao termo 'pátrio poder', de conotação romana e que privilegia a 'potestas' masculina, inadmissível no atual estágio de evolução do Direito brasileiro. Na realidade, hoje é unânime o entendimento de que o pátrio poder é muito mais pátrio dever, mas não só 'pátrio', na ótica do constituinte de 1988, mas sim 'parental', isto é, dos pais, do marido e da mulher, igualados em direitos e deveres, pelo art. 226, par. 5.°, da nova Constituição". (LEITE, 1997, p. 192, nota 17, apud GRISARD FILHO, 2009, P. 40).
O binômio poder-dever, em que se transforma a tradicional expressão pátrio
poder, diante das profundas alterações que esse instituto sofreu, como observa Leite
(1994, p. 134) apud Grisard Filho (2009, p. 41), embora mais adequado do que a
expressão que pretende substituir, não reflete toda a dimensão jurídica da função
que hoje se apresenta diárquica, como decorrência do princípio da igualdade
conjugal e, mais nitidamente, do art. 229 da CF, como deveres genéricos impostos
aos pais e aos filhos, fundando um dever de dupla face, pois os pais têm o dever de
assistir, criar e educar os filhos menores, e estes têm o dever de ajudar e amparar
os pais, como alude Fachin. (FACHIN, 1997, p. 585-604).
Na Câmara dos Deputados, o Projeto de Código Civil conservou a
denominação clássica. No Senado da República, pela Emenda 278 aí apresentada,
foi rebatizada, passando a denominar-se poder familiar, anotando alguns se ter
desperdiçado oportunidade de adequá-la à corrente e moderna expressão poder
parental, como prerrogativa dos pais e não da família. (CORTIANO JÚNIOR, 1998,
apud Grisard Filho, 2009, p. 41).
A questão terminológica esbarra na palavra poder, à qual se resiste por
guardar resquícios da patria potestas romana - com todos os seus nefastos direitos:
ius vitae et necis, ius exponendi, ius vendendi, noxae deditio -, mas, como alude
Santos Neto J. A. E (1994, p. 56), ela não padece da impropriedade que lhe
atribuem enquanto exprime a subordinação dos filhos em relação aos pais, a quem
devem, em contrapartida, respeito e obediência, conforme art. 1.634, VII do CC, e,
por isso, não há dificuldade em que se prossiga chamando o instituto com a
denominação que provém de seus antecedentes mais remotos.
Mas este poder tem de ser exercido, única e exclusivamente, no superior
interesse do menor e, por isso, deixa de ser um poder para constituir um dever, uma
responsabilidade.
Assim, a quesilha não está vencida. O Código de Família da Rússia, de 1918,
substituiu a expressão "pátrio poder" por "direitos e deveres respectivos dos filhos e
dos pais"; o da Espanha encima o título próprio com a expressão "Das relações
paterno-filiais"; o do Chile, no Título IX, cuida dos "direitos e obrigações entre os pais
e os filhos", semelhantemente ao Esboço de Teixeira de Freitas:
"Dos direitos e obrigações dos pais e filhos", conforme art. 1.509 e seguintes e "Dos direitos e obrigações das mães e filhos", conforme art. 1.547 e seguintes. No direito alemão, com a reforma de 1980, designa-se como "cuidado paterno a respeito do filho". Em França, de puissance parentale passou a autorité parentale e nos trabalhos do Conselho da Europa já se usa com freqüência a designação respon-sabilités parentales, adotada pelo Comitê de Ministros do Conselho da Europa em 27 de fevereiro de 1984. Já em 1992, o Parlamento Europeu, na Resolução sobre uma Carta Européia dos Direitos da Criança, indicava quais os princípios e noções necessárias para uma competente política familiar e a defesa dos direitos da criança, entre os quais a necessidade de o pai e a mãe assumirem uma responsabilidade solidária, ambos com as mesmas obrigações relativas ao desenvolvimento e educação dos filhos.
Comel, sobre as críticas adotadas pelo legislador de 2002, diz-nos:
A denominação adotada pelo Código não é a mais apropriada, na medida em que mantém a expressão poder, que não corresponde ao princípio da
igualdade entre os genitores. Por sua vez a expressão familiar não guarda relação ao pai e a mãe, mas à família toda, incluindo-se aí os avós, os tios e os irmãos nas funções parentais. (COMEL, 2003, p. 57-59)
Sugere então Fachin (p. 1997, 593) expressão conciliadora e não
discriminatória: poderes e deveres parentais, pois na sociedade familiar, com a
estrutura e a composição atuais (família nuclear, de base igualitária), acentua-se,
dentre outros princípios, o da co-respectividade de direitos e deveres entre pais e
filhos.
2.4 NATUREZA JURÍDICA
A controvérsia que se suscita a respeito da natureza jurídica do instituto está
longe de constituir mera disputa teórica, mas a adoção de uma ou outra posição
torna-se relevante para compreender o seu alcance.
A natureza jurídica do poder familiar tem enfoque diverso quando é vista em
face do Estado e terceiros e nas relações pai-filho. Em relação ao Estado, o poder
familiar é atribuído aos pais como um encargo (representação, administração dos
bens, guarda), um officium, supervisionado pelo Estado, a fim de que, no seu
exercício, sejam evitados abusos.
A respeito da postura dos pais em face de terceiros, escreve Santos Neto J.
A. E (1994, p. 60), cuida-se de um verdadeiro direito subjetivo, um atributo pessoal,
uma faculdade de agir legitimado pelo texto legal, diante do caso concreto.
Assim, diante do primeiro enfoque, o poder familiar constitui um direito
subjetivo dos pais nas relações externas, direito à função própria, para que possam
levar a cabo o ofício que lhes é encomendado. Mas, nas relações pai-filho, sob outro
enfoque, o poder familiar é um conjunto incindível de poderes-deveres, que deve ser
altruisticamente exercido pelos pais no interesse dos filhos, à vista de seu integral
desenvolvimento, até que se bastem a si mesmos. São poderes (autoridade) aos
quais correspondem deveres (obrigações) que o titular não pode deixar de cumprir,
pois é de interesse público que os cumpra. Por isso e por força do cunho social de
que se reveste, a vertente dos deveres sobrepõe-se largamente à dos poderes. O
desvio no exercício dessas características importará em limitação, suspensão ou
extinção desse munus, mediante decisão judicial.
Para outra orientação, o poder familiar constitui um amálgama indissociável
de direitos e deveres. Assim, o poder familiar, não é só um conjunto de direitos que
se exercem no interesse exclusivo de seus titulares, o pai e a mãe, mas do exercício
de um dever em atenção aos interesses dos filhos. Esses direitos-deveres integram
o conteúdo do poder familiar.
Outras teses procuram explicar a natureza jurídica do poder familiar, ora
como função, reflexo dos deveres dos pais de educar, manter e proteger os filhos
em todos os seus interesses enquanto incapazes, ora como poder-função e não
meras prerrogativas individuais, ora como direito natural, embora seja unânime o
reconhecimento da origem natural do poder familiar, como primazia desse caráter e
que pretende explicar sua essência. Verifica-se a esta altura um desencontro das
diversas posições que procuram evidenciar as características do poder familiar,
porém, indistintamente, radicam-no como instituição protetora da menoridade, que
requer o cumprimento de deveres e o exercício de direitos, tendo como território
natural e propício de funcionamento a família.
O âmbito de funcionamento do instituto é diverso segundo as distintas situações em que pode apresentar-se, dependendo cada uma delas de sua extensão e modo de cumprimento dos respectivos direitos e deveres, como na família matrimonializada, na família dissociada, na família monoparental, na união livre e, assim, a guarda. (GRISARD FILHO, 2009, p. 450, nota, 41)
Em brevíssima síntese, podemos dizer que hoje triunfa definitivamente a idéia
segundo a qual, no poder familiar, o que importa primordialmente é a proteção do
Do conjunto de direitos e deveres que a norma jurídica impõe aos pais
decorrem duas categorias de relações, tendo em vista os fins a que se destinam e o
bem jurídico que visam tutelar: uma, relativa à pessoa dos filhos menores, outra,
relativa aos seus bens; portanto, pessoais e patrimoniais. Somente as primeiras
interessam a este estudo e a elas nos restringiremos.
A titularidade desses encargos era, na redação original do Código Civil de
1916, exclusiva do pai. A mãe era admitida ao seu exercício só excepcionalmente. A
Lei 4.121, de 27 de agosto de 1962, conferiu à mãe a condição de colaboradora do
pai no exercício do poder parental. E o artigo peculiar daquele diploma ficou assim
redigido e acrescido:
Art. 380. Durante o casamento compete o pátrio poder aos pais, exercendo-o o marido com a colaboração da mulher. Na falta ou impedimento de um dos progenitores, passará o outro a exercê-lo com exclusividade. Parágrafo único. Divergindo os progenitores quanto ao exercício do pátrio poder, prevalecerá a decisão do pai, ressalvado à mãe o direito de recorrer ao juiz, para solução da divergência.
Posteriormente, a Lei 6.515, de 26 de dezembro de 1977, em seu art. 27,
indicou claramente que o pai e a mãe são os titulares dos encargos parentais, que
persistem mesmo após o divórcio ou quando sobrevenha novo casamento de
qualquer dos pais, muito embora a guarda de filho seja atribuída a somente um
deles, à luz do art. 16 do Dec.-lei 3.200/1941 e do art. 1.632 do CC (O tema da
atribuição da guarda, à luz da Lei 11.698/2008 tem nova disciplina).
Na atualidade, o Estatuto da Criança e do Adolescente, por seu art. 21,
fazendo eco com o art. 226, § 5.°, da CF, indicativo da co-titularidade da autoridade
parental, normatiza inteiramente a matéria, revogando o texto codificado:
Art. 21: "O pátrio poder será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência."
3.1 DIREITOS E DEVERES DOS PAIS EM RELAÇÃO À PESSOA DOS FILHOS
Os atributos do poder familiar em relação à pessoa dos filhos desdobram-se
sistematicamente pelos diferentes incisos do art. 1.634 do CC. São os que a seguir
englobadamente se detalham.
3.2.1 Guarda, educação e correição
Ordinariamente o filho deve permanecer na família e ligado aos pais,
conforme preconiza o art. 19 do ECA, em unidade de convivência. A guarda é, a um
tempo, um direito, como o de reter o filho no lar, conservando-o junto a si, o de reger
sua conduta, o de reclamar de quem ilegalmente o detenha, o de proibir-lhe compa-
nhias nefastas e de freqüentar determinados lugares, o de fixar-lhe residência e
domicílio e, a outro, um dever, como o de providenciar pela vida do filho, de velar por
sua segurança e saúde e prover ao seu futuro. Uma vez descumpridos estes, se
sujeita o titular relapso a sanções civis e penais, por abandono de família. A guarda
é da natureza do poder familiar, não da sua essência, tanto que transferida a terceiro
não implica a transferência deste. Como atributo do poder familiar, a guarda dele se
separa, não se exaurindo nem se confundindo com ele, podendo uma existir sem o
outro.
A cláusula que, em desquite por mútuo consentimento, estabelece a guarda de filho menor por terceira pessoa, não pode importar em redução, mesmo em parte, do pátrio poder, de modo a subordinar a vontade do pai àquele a quem foi confiado o menor (RT, v. 193, p. 322)". ( RT, v. 554, p. 209; v. 575, p. 134. Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 56, p. 53. Veja o voto do Min. Themístocles Cavalcante, do STF, no RE 61.887-SP (Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 46, p. 257-259):
Essa função decorre do dever constitucional de assistência aos filhos
menores, fazer-se presente na vida deles, manter contato e comunicação, o que
Ao reverso, a lei impõe aos filhos determinadas condutas, das quais nascem
direitos paternos. Assim, o art. 1.634, VII, do CC estabelece que os filhos devem
obediência e respeito a seus pais e também prestação de serviços próprios de sua
idade e condição, mais como conseqüência da comunidade doméstica. Também
impõe a lei que os filhos devem alimentos a seus pais (art. 1.696 do CC), em
contrapartida ao direito deles próprios.
3.3 OUTROS ATRIBUTOS E O CONTROLE ESTATAL
Compete ainda aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores, conceder-lhes
ou não autorização para o casamento (cabendo aqui lembrar a possibilidade do
suprimento do consentimento pelo juiz, conforme o art. 1.519 do CC), nomear-lhes
tutor e reclamá-los de quem ilegalmente os detenha por meio de ação cautelar de
busca e apreensão, prevista no art. 839 e seguintes do CPC.
Todos os atributos do poder familiar de ordem pessoal estão sujeitos, no seu
exercício, ao controle do Estado, seja administrativo ou judicial, com o escopo de
evitar o jugo paterno, limitando-o no tempo, restringindo-lhe o uso e dele
suspendendo ou destituindo os pais negligentes, nas hipóteses previstas em lei. Isso
porque hoje triunfa a idéia de que se fala mais em deveres do que em direitos e,
sobretudo, importa a proteção integral dos menores.
Segundo Perligieri,
A função serviente da família deve ser realizada de forma aberta, integrada na sociedade civil, com a colaboração com outras formações sociais: não como uma ilha, mas como um autônomo território, que é parte que não pode ser eliminada de um sistema de instituições civis predispostas para um escopo comum; todas essas formações sociais serão merecedoras de tutela se a regulamentação interna for inspirada no respeito da igual dignidade, na igualdade moral e jurídica dos componentes e na democracia. Valores que representam, juntamente com a solidariedade, o pressuposto, a consagração e a qualificação da unidade dos direitos e dos deveres no âmbito da família. A delineada função serviente da família, (...) explica o
papel da intervenção do Estado na comunidade familiar. (PERLINGIERI, 1997, p. 245-246 apud Grisard Filho, p. 51, nota 49)
A respeito do controle do Estado a que se submete todo o atributo pessoal a
que o poder familiar está sujeito é incisivo o parecer do STF:
"MENOR SOB GUARDA DE TERCEIROS - RECLAMAÇÃO DA MÃE - NÃO ATENDIMENTO - SUBMISSÃO DO PÁTRIO PODER AO CONTROLE DA AUTORIDADE PÚBLICA. Não basta, para reclamar menores, quando sob a guarda de terceiros, a condição de pai, mãe, tutor ou encarregado de sua guarda. A lei exige, ainda, no interesse deles, que às prerrogativas do pátrio poder concorram outros pressupostos, cuja verificação é simples 'quaestio facti'. A submissão desse poder ao controle da autoridade pública constitui um dos traços mais coloridos da socialização do Direito. Não deve ser restituído à mãe o menor por ela abandonado, cuja educação seria prejudicada com a sua volta". (STF - RE 11.601, Revista Forense, v. 143, p. 172)
5 EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO CIVIL E CRIMINAL REFERENTE ÀS CRIANÇAS
E SUAS FAMÍLIAS
A questão da Destituição do Poder Familiar (DPF) aponta para a forma como
a nossa sociedade articula a relação de poder, o direito e a verdade, que mudaram
de acordo com os interesses de cada época. Por isso, a exposição e a comparação
das inúmeras legislações são essenciais, pois nos permitem observar os efeitos do
poder estatal sobre as famílias e seus filhos.
Parece-nos que pensar o direito a partir desta concepção não-essencialista, em que a dimensão da historicidade assume um lugar fundamental, é uma das perspectivas mais importantes que a filosofia de Michel Foucault possibilita abrir. (FONSECA, 2002, p. 34).
No Código Civil dos Estados Unidos do Brasil de 1 de Janeiro de 1916, vemos
mais especificamente as legislações que regiam as relações familiares, incluindo
marido/esposa, pais/filhos. Além disso, havia as conseqüências civis quanto aos
crimes praticados contra crianças, no que diz respeito aos pais.
Art. 233 – O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos.
Art. 380 – Durante o casamento compete o pátrio poder aos pais, exercendo-o o marido com a colaboração da mulher. Na falta ou impedimento de um dos progenitores, passará o outro a exercê-lo com exclusividade.
Art. 384 – Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I – dirigir-lhes a criação e educação; II – tê-los em sua companhia e guarda; [...] VII – exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.
Art. 394 – Se o pai, ou mãe, abusar de seu poder, faltando aos deveres paternos, ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao Juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida, que lhe parece reclamada pela segurança do menor e seus haveres, suspendendo-se até, quando convenha, o pátrio poder.
Parágrafo único – Suspende-se igualmente o exercício do pátrio poder, ao pai ou mãe condenados por sentença irrecorrível, em crime cuja pena exceda de 2 (dois) anos de prisão.
Art. 395 – Perderá por ato judicial o pátrio poder o pai, ou mãe: I – que castigar imoderadamente o filho; II – que o deixar em abandono; III – que praticar atos contrários à moral e aos bons costumes.
No novo Código Civil de 2002, a denominação de pátrio poder é substituída
pelo poder familiar, visto que não há mais a distinção dos papéis conjugais dos
cônjuges devido ao sexo. Entretanto, em muitos artigos, permanece inalterado o
texto da lei de 1916.
Art. 1565 - Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiro e responsáveis pelos encargos da família. Art.1634 - Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I - dirigir-lhes a criação e educação; II - tê-los em sua companhia e guarda; [...] VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e serviços próprios de sua idade e condição. Art.1637 - Se o pai, ou a mãe, abusar da autoridade, faltando os deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo poder familiar, quando convenha. Art.1638 - Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou mãe que: I-castigar imoderadamente o filho; II-deixar o filho em abandono; III-praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; IV-incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.
A expressão “moral e bons costumes” possibilita variadas interpretações
subjetivas, especialmente porque não há conceito fechado e absoluto sobre o que
são “bons costumes”, à medida que eles estão atrelados aos valores morais de cada
época. Muitas vezes, os maus costumes estão ligados à toxicomania, à embriaguez
habitual, à prostituição, entre outros, independente das mudanças sociais, conforme
Código Penal pensado em 1889, mas efetivado em 1890.
[...] A lei de 1889 decide que se poderá decretar a perda dos direitos de pais e mães que, por sua embriaguês habitual, maus procedimentos notórios escandalosos, maus tratos, comprometam tanto a segurança como a saúde e a moralidade de seus filhos [...] Pois, por um lado, em nome da vigilância e da prevenção dos delitos cometidos contra as crianças, puderam organizar um sistema de delação legítima das pessoas próximas a elas e receber a missão de empreender a sua verificação. Por outro lado, puderam penetrar nas famílias através dos delitos cometidos por crianças de acordo com um procedimento legal instaurado desde o início da década de 1890, tornando-as intercessoras entre a justiça e as famílias. (DONZELOT, 1986, p.80).
Um bom exemplo para entendermos o texto da lei, a partir das
transformações sociais, são alguns artigos do ECA que se referem à atual
constituição familiar e à questão da destituição do poder familiar. Podemos ver a
posição legislativa quanto à moral e aos bons costumes, quanto à questão da
pobreza, que aparecia como um dos motivos para a perda do pátrio poder nos
antigos Códigos Penais e nos Códigos de Menores, bem como a uniformidade de
direitos entre os pais.
Art. 19 – toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoa dependente de substâncias entorpecentes.
Art.21 – O pátrio poder será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil. Assegurando a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência.
Art. 22 – Aos pais compete o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.
Art. 23 – A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do pátrio poder. Parágrafo único – Não existindo outro motivo que por si só autorize a decretação da medida, a criança ou o adolescente será mantido em sua família de origem, a qual deverá obrigatoriamente ser incluída em programas oficiais de auxílio.
Art. 24 – A perda e a suspensão do pátrio poder serão decretadas judicialmente, em procedimento contraditório, nos casos previstos na legislação civil, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações a que alude o art. 22.
6 DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR: CUMPRIMENTO DA LEI OU PUNIÇÃO
DAS FAMÍLIAS POBRES?
Desde sempre, a família é uma célula da sociedade e se transforma com as
mudanças sociais e econômicas. E dependendo de sua localização na pirâmide
social, sofrerá, mais ou menos, a interferência do Estado em seu seio, em termos de
controle e de abandono.
Sendo assim, a partir do século XIX, observar-se uma construção subjetiva e
jurídica da família ideal, a partir de uma qualificação do que seja normal ou anormal
em relação aos comportamentos familiares, a partir dos parâmetros sociais pré-
estabelecidos e importados das práticas científicas burguesas.
[...] se a questão é manter em ordem uma sociedade essencialmente injusta e desigual, é preciso treinar os indivíduos em seu seio para aceitarem o mundo como ele é. Dissuasão, obediência, respeito à tradição, submissão às regras da comunidade têm que ser inculcados no indivíduo desde o nascimento. As famílias pobres têm que ser as mais disciplinadas, porque têm a cruz de iniqüidades mais pesada a suportar. (YOUNG, 2002, p.229).
No Brasil, esse funcionamento político é claro, à medida que a maioria da
população é vulnerável social e economicamente, devido à má distribuição de
riquezas, o que a deixa em situação de dependência de políticas públicas
necessárias à sua sobrevivência.
É nesse mundo desigual que a criança pobre nasce, cresce, se desenvolve e
logo vê que seu futuro não será fácil e repleto de alegrias. No cotidiano, aprende que
a pobreza determina suas chances e limita seus sonhos, e sem a solidariedade e o
vínculo familiar será mais difícil sobreviver. Enfim, percebe que viverá num mundo
muito diferente da realidade das novelas de televisão, as quais mostram bairros
abastados repletos de objetos caros, prontos para o consumo.
É comum ver a desqualificação diária das famílias pobres quanto à sua
capacidade de cuidar e desejar seus filhos, como se a condição de miséria
impossibilitasse a existência de vínculos afetivos amorosos. “[...] os motivos que
levam a essa situação de risco não é, na maioria das vezes, a rejeição ou
negligência por parte de seus pais, e sim alternativas, às vezes desesperadas, de
sobrevivência”. (KALOUSTIAN, 1994, p.63).
Entretanto, não se deve perder a dimensão real da vida, em que é impossível
estar sempre paciente com os filhos, quando os genitores estão desempregados e
lhes faltam as condições de sobrevivência digna. Nessas condições, por vezes,
situações de agressão, uso abusivo de drogas, doenças ou desnutrição acontecem,
gerando as denúncias de negligência ou maus-tratos. Inicia-se um processo de
julgamento prévio e estigmatizante desta família.
[...] esse setor da infância que não tem garantida as condições de sobrevivência: crianças e jovens que não têm acesso à educação, ao sistema de saúde, não contam como uma família, ou para os que a possuem, ela não é um lugar de proteção sendo que às vezes é ali precisamente onde sofrem maus tratos, exploração e negligência. (LUNA, 2001, p.123)
Todavia, essas situações comuns nas vidas das famílias excluídas denunciam
a ineficiência proposital e estrutural do Estado, em termos de políticas públicas que
modifiquem a realidade de grande parcela da população brasileira e garanta seus
direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.
Sendo assim, as decisões de Destituição do Poder Familiar são tomadas em comparação a alguma situação anterior, onde a criança ou adolescente não tinha proteção contra os maus–tratos praticados contra ele, sem analisar se esta família foi atendida anteriormente em seu pedido de ajuda, que possivelmente é uma situação de negligência do próprio Estado em relação à família fragilizada. Na verdade, de um lado, podemos observar que a família atravessa uma intensa crise que a desqualifica enquanto elemento protetor da criança, e de outro, percebe-se que existe todo um movimento de preocupação com a criança, imputando à família uma série de responsabilidade sobre ela. Defendem-se os direitos da criança, mas a própria sociedade os solapa [...]. (GUERRA, 1985, p. 55).
Nas pesquisas históricas acerca da infância realizadas por Irene Rizzini
(1995), o Estado aparece como um dos mantenedores dessas instituições que
acolhiam crianças, visto que tutelava e desqualificava as famílias, produzindo uma
incompetência nata para o cuidado dos filhos, principalmente nas classes pobres,
[...] se apoderar dos destinos das crianças. Isto é, manipular seu presente e
seu futuro tomando decisões que não levem em conta seus desejos, sua história,
sua identidade, mas sim privilegiando o cumprimento das expectativas que
respondam ao modelo internalizado como bom, seja de criança, seja de família.
(LUNA, 2001, p.123-124).
Nessas condições de critérios questionáveis para a indicação de DPF, os
profissionais das Ciências Humanas, principalmente, psicólogos e assistentes
sociais, acabam por comprovar a necessidade de normatização das famílias e da
infância ameaçadora da ordem social, perpetuando a exclusão social da maior parte
da população. Com uma prática repleta de pré-conceitos, que estigmatiza e
normaliza os sujeitos, contribui para a manutenção dos processos de subjetivação e
controle social, a partir dos agenciamentos dos dispositivos de poder-saber.
[...] Reconhecer e acolher as justificativas da mulher-mãe-pobre como abandono e, portanto, passíveis de destituição do poder familiar é afastar-se das políticas de proteção; é optar por ações de cunho assistencial, emergencial e de repercussão social; é perpetuar a triste história da desigualdade social. É naturalizar, banalizar e culpabilizar a pobreza [...]. Em última análise, significa contribuir, pouco ou nada, para a transformação da realidade social e psicológica da infância em nosso País. (BRITO e AYRES, 2004, p.138).
A elaboração de laudos e pareceres imersos em preconceitos reforçam que
os casos de maus-tratos e de negligência são inadmissíveis em lares normais,
repletos de afetividade e intimidade. Os especialistas esquecem que família e
infância são produções históricas, mutáveis, temporais, e como tais devem ser
desmistificadas. Não mais se utiliza o termo família desestruturada, mas se repete a
lógica de tempos idos.
[...] São discursos que têm o poder de determinar uma decisão da justiça, inclusive sobre a vida e a morte de alguém. Ao mesmo tempo, são discursos que detém tal poder por apresentarem-se como discursos de verdade, dotados de um estatuto científico, pois formulados por pessoas qualificadas para dizê-los. Por fim, são discursos cotidianos de verdade que podem matar e que fazem rir. (FONSECA, 2002, p. 73-74).
8 RESPONSABILIDADE NA GARANTIA DOS DIREITOS DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES
8.1 PROTEÇÃO INTEGRAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei federal n° 8.069, de 13 de
julho de 1990, completou 19 anos de existencia. Embora essa Lei estabeleça
suficientes princípios à concretização dos direitos fundamentais de crianças e
adolescentes, o fato é que ainda há uma enorme distância entre a lei e a realidade.
O ECA detalhou a doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente,
que já havia sido abraçada pela Constituição Federal de 1988, no art. 227, o qual
estabelece:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Varalda, comentando o referido artigo, nos diz que:
Dessa forma, o ECA previu um sistema de co-responsabilidade no acatamento da doutrina da proteção integral da criança e do adolescente. Em síntese, no Estatuto há normas que disciplinam os princípios fundamentais das relações jurídicas que envolvam crianças e adolescentes no âmbito da família, da sociedade e do Estado. Por sua vez, a Convenção sobre os Direitos da Criança, no cenário internacional, ao adotar a doutrina da proteção integral aos direitos da criança e do adolescente, elevou-os à condição de sujeitos de direito, aos quais são assegurados todos os direitos e garantias fundamentais do adulto e outros especiais, provenientes de sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. O Artigo 3 da referida Convenção estabelece que as decisões públicas relacionadas com a criança devem ser tomadas atendendo ao seu interesse superior. A proteção integral se justifica em razão de serem pessoas incapazes, dada a condição temporária de, por si só, não estarem aptas a fazer valer seus próprios direitos.
O tratamento jurídico especial conferido à população infanto-juvenil e o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente estão correlacionados com o princípio da condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, o que significa dizer que a criança e o adolescente encontram-se em formação sob os aspectos físico, emocional e intelectual. Em razão dessa condição, esses sujeitos não conhecem totalmente os seus direitos nem são capazes de lutar por sua implementação. E é justamente por essa condição de pessoas em desenvolvimento que se configuram detentoras de direitos especiais. (VARALDA, 2008, p. 28)
Então, diante da ordem jurídica atual, como responsabilizar a familia, o
Estado e a sociedade pelo evidente descaso na concretização dos direitos
fundamentais infanto-juvenis e, por outro lado, pelo crescente aumento da prática de
atos infracionais por crianças e adolescentes em nosso país?
Todas as garantias acima mencionadas surgiram com a intenção de
minimizar os abusos praticados contra essas pessoas que se encontram em
condições especiais de desenvolvimento físico, mental e psicológico e, assim,
assegurar isonomia material com a população adulta. Desse modo, buscou-se
garantir um mínimo aceitável de condições adequadas de desenvolvimento, para
viabilizar o atingimento da idade adulta com dignidade. Contudo, inúmeras crianças
e adolescentes vivem à margem das mais básicas políticas públicas, como
educação, saúde, lazer, cultura, segurança etc. O desrespeito começa justamente
na falta de vontade política dos dirigentes do país não somente em priorizar recursos
orçamentários suficientes à garantia desses direitos fundamentais, mas também em
executá-los corretamente. Embora muitas vezes se possa identificar, nas leis
orçamentárias, rubricas para a área da infância e juventude, nem sempre tais
recursos são realmente utilizados no decorrer do ano para a finalidade inicialmente
prevista, seja pelo remanejamento para outras finalidades elegidas pela
administração ou simplesmente por falta de aplicação.
Em que pese as Promotorias da Infância e Juventude atenderem diariamente dezenas de crianças e adolescentes com os mais básicos direitos violados, há pouquíssimos inquéritos, denúncias e ações penais visando responsabilizar criminalmente a conduta dolosa ou culposa de genitores ou responsáveis que, muitas vezes, leva tais pessoas em desenvolvimento a se colocarem em situação de risco ou a praticarem atos
infracioriais contra terceiros. (VARALDA, 2008, p. 28)
Segundo o Princípio da Prioridade Absoluta, inserido na Constituição Federal,
a criança e o adolescente devem figurar, obrigatoriamente, entre as prioridades das
autoridades públicas, apesar da realidade do país estar em flagrante contradição
com o citado princípio constitucional. De acordo com o parágrafo único do art. 4o do
ECA, a garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e
socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços
públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e execução das
políticas sociais públicas e d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas
relacionadas com a proteção à infância e à juventude.
Diante da falta de cumprimento dos citados dispositivos, os órgãos
incumbidos de zelar pela proteção dos direitos da criança e do adolescente
(Ministério Público e Defensoria Pública) têm escolhido a via judicial como uma das
alternativas para forçar o Estado a cumprir suas obrigações, embora muitas
decisões judiciais tenham insistido na tese da insindicabilidade dos atos
administrativos, sob o amparo de doutrinas clássicas, como a da tripartição dos
poderes, sem, no entanto, atentar para a necessidade de redefini-las e adequá-las
ao Estado Social.
E é justamente objetivando retirar da política a efetividade necessária ao direito, que o Judiciário brasileiro avançou, ainda que timidamente, com a recente decisão, de 8 de julho de 2008, do Supremo Tribunal Federal, sob relatoria do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, ao manter a liminar concedida na Ação Civil Pública n° 2007,0000.2658-0/0, em curso perante o Juizado da Infância e Juventude da Comarca de Araguaína-TO, e, determinar ao Estado de Tocantins a implantação na cidade de Araguaína-TO, no prazo de 12 meses, de unidade especializada para cumprimento das medidas socioeducativas de internação e semiliberdade aplicadas a adolescentes-infratores, a fim de propiciar o atendimento do disposto nos arts. 94,120, § 2
o, e 124, do ECA, diante da inexistência de unidades de semiliberdade e de
internação e o encaminhamento de adolescentes-infratores para o Município de Ananás-TO, distante 160 quilômetros daquela localidade (o que dificulta o contato com os familiares), bem como o alojamento em cadeia local, em celas adjacentes a de presos adultos, em ambientes inóspito. (VARALDA, 2008, p. 28)
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