UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO TIAGO ABDALLA TEIXEIRA NETO “UM SER HUMANO EM ESPLENDOR É SEMELHANTE AOS ANIMAIS QUE PERECEM”: UMA ANÁLISE EXEGÉTICA DO SALMO 49 São Bernardo do Campo 2018
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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
TIAGO ABDALLA TEIXEIRA NETO
“UM SER HUMANO EM ESPLENDOR É SEMELHANTE AOS
ANIMAIS QUE PERECEM”: UMA ANÁLISE EXEGÉTICA DO
SALMO 49
São Bernardo do Campo
2018
TIAGO ABDALLA TEIXEIRA NETO
“UM SER HUMANO EM ESPLENDOR É SEMELHANTE AOS
ANIMAIS QUE PERECEM”: UMA ANÁLISE EXEGÉTICA DO
SALMO 49
Dissertação apresentada em cumprimento dos
requisitos do Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Religião da Universidade Metodista de
São Paulo, para obtenção do grau de Mestre.
Orientador: Dr. José Ademar Kaefer
São Bernardo do Campo
2018
FICHA CATALOGRÁFICA
T235q
Teixeira Neto, Tiago Abdalla
“Um ser humano em esplendor é semelhante aos animais que perecem”: uma
análise exegética do Salmo 49/ Tiago Abdalla Teixeira Neto -- São Bernardo
do Campo, 2018.
165fl.
Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Metodista de
São Paulo - Escola de Comunicação, Educação e Humanidades Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Religião São Bernardo do Campo.
Um antigo ditado latino, presente em relógios solares de várias igrejas barrocas
brasileiras, diz: “Vulnerant omnes, ultima necat” (“toda hora fere, a última mata”),1
lembrando que o ser humano é incapaz de fugir ou evitar a morte. Uma mensagem semelhante
também está presente na entrada da capela de ossos em Évora, Portugal, em que os restos
mortais dizem: “Os nossos ossos esperam pelos vossos”.
A morte é um tema de bastante reflexão em todas as culturas de todas as épocas. Não
há sociedade humana que não reflita a respeito da morte ou expresse reações de medo e temor
ou alegria e expectativa perante ela.2
A morte e a limitação que ela impõe a esta vida têm sido o foco de reflexão literária e
filosófica. O filósofo Sêneca dedicou um livro sobre a brevidade da vida,3 em que começa seu
ensaio com uma citação de Hipócrates, o pai da medicina:4 “Ars longa, vita brevis” (“A arte é
longa, a vida é breve”). A ideia central do que desejava comunicar é que a maioria dos
mortais demora muito tempo para adquirir e aperfeiçoar o conhecimento ou a habilidade, e
nós temos apenas pouco tempo para fazê-lo.5 Para Sêneca, o verdadeiro desafio do ser
humano não é somente a brevidade do tempo, mas também nossa tendência em desperdiçá-lo:
“Não temos exatamente uma vida curta, mas desperdiçamos uma grande parte dela. A vida, se
bem empregada, é suficientemente longa e nos foi dada com muita generosidade para a
realização de importantes tarefas”.6
Entretanto, a reflexão sobre a morte e a brevidade da vida não é uma característica
exclusiva da cultura greco-romana, ela também foi parte integrante da cultura do Antigo
Oriente Próximo: egípcios, mesopotâmicos, arameus, cananeus e israelitas pensaram acerca
da morte e o além.
No antigo Egito, o tema da morte como a partida, em que “a pessoa tem de deixar
para trás tudo o que possui” sem uma perspectiva pós-túmulo,7 é bastante enfatizado nas
1MIRANDA, 1999, p. 161.
2Ver MARTIN-ACHARD, 2015, p. 32ss. 3SÊNECA, 2006.
4SÊNECA, 2006, p. 25 (cf. nota 14).
5VANHOOZER, 2016, p. 89-90.
6SÊNECA, 2006, p. 26.
7ZANDEE, 1960, p. 55-6.
11
canções dos harpistas, embora não representasse a visão religiosa tradicional:8 “Veja!
Ninguém tem a permissão de levar seus bens consigo. Veja! Não há ninguém que tenha ido e
retornado!”.9 Outro texto egípcio antigo, do segundo milênio A.E.C., chamado “Debate sobre
o suicídio”, um homem inicia um diálogo com sua alma e diz que as misérias desta vida
tornam o suicídio uma opção atrativa. No entanto, sua alma tem uma visão bem pessimista da
morte e não considera o suicídio uma solução razoável.10
O texto não tem seu fim preservado
e, por isso, não sabemos qual foi o resultado do diálogo.
Em uma das três tabuletas de Ras Shamra (coleção de textos do noroeste da Síria-
Canaã) que narram a história de Aqhat, o filho prometido pelo deus El a um homem chamado
Danel,11
ocorre a cena em que Anat (deusa da guerra e da caça), desejosa em obter as armas
de Aqhat, oferece ao herói o maior de todos os presentes: a imortalidade. No entanto, a
resposta do herói é surpreendente: ele rejeita a oferta da deusa, afirmando que, apesar de suas
promessas, “a morte o aguardava, assim como o faz com todo o mortal”.12
Esses exemplos revelam como a questão da morte fazia parte da reflexão literária e
filosófica do homem e da mulher do Antigo Oriente Próximo. Como parte de tal contexto
cultural, os antigos israelitas também pensaram bastante acerca da morte e de seu significado.
Segundo observou Gerhard von Rad, para Israel “o âmbito de morte atingia muito mais
profundamente a área dos vivos. Fraqueza, doença, prisão e emergência criada por inimigos já
constituíam em si uma espécie de morte”.13
O autor do Salmo 49, vivendo sob a opressão de ricos injustos e que não temiam a
YHWH, usou a temática da morte e da impossibilidade de o ser humano comprar a vida
eterna para confrontar a maldade dos poderosos e confortar os justos sofredores com a
proteção da vida deles por YHWH. Como “o homem é mestre em fazer-se ilusões, em fátuas
‘confianças’”,14
o salmista adverte os ímpios de seu tempo de que “o rico não é mais forte por
sua riqueza, o pobre não é mais fraco por sua pobreza. O túmulo é a casa comum de todos”,
onde os seres humanos se encontram na reta final de suas vidas.15
8FISCHER, 2002, p. 106-8.
9LICHTHEIM, 1945, p. 193.
10CRAIGIE, 1983, p. 329.
11COOGAN; SMITH, 2012, p. 27-8
12COOGAN; SMITH, 2012, p. 28-9.
13VON RAD, 2006, 376.
14ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 672.
15BORTOLINI, 2000, p. 207.
12
O intuito desta dissertação é investigar a mensagem do Salmo 49 e o contexto em
que ela foi composta. Na análise hermenêutica do salmo, adota-se como abordagem básica o
modelo da exegese clássica, que envolve uma combinação eclética dos métodos diacrônico e
sincrônico.16
A abordagem diacrônica focaliza a origem e o desenvolvimento de um texto,
examinando os seguintes elementos: crítica textual, estudos sintáticos e semânticos e estudo
do ambiente histórico-cultural da produção do texto.17
Por outro lado, a abordagem
sincrônica se preocupa com a forma final do texto bíblico e investiga os elementos
relacionados à análise de seu gênero literário, à estrutura e coesão literária da passagem
bíblica e à crítica retórica do texto, bem como a relação da passagem com o contexto mais
amplo.18
Todos esses aspectos serão examinados ao longo dos capítulos 1 a 3 deste trabalho.
Em cada capítulo, este pesquisador buscará lidar com um/uma problema/pergunta central e
respondê-lo/a de forma exegética.
No primeiro capítulo, a pergunta que o norteará será a seguinte: Qual é o texto do
Salmo 49 e de que modo funcionam sua estrutura, aspectos retóricos e coesão?
Antes de perguntar: “O que o texto significa?”, é necessário indagar: “Qual é o
texto?”. Isso demanda uma análise da passagem usando os critérios da crítica textual. A
ciência da crítica textual é fundamental para a interpretação da passagem bíblica desta
dissertação, em especial para que se consiga discernir o texto produzido antes que o processo
de cópia e preservação dele gerasse alterações.19
Além disso, o Salmo 49 deve ser estudado conforme a identificação de sua
Gattung,20
uma forma de classificação literária21
que agrupa unidades poéticas identificadas e
associadas por características distintivas de forma, estilo e conteúdo.22
A Gattung possibilita
observar características literárias, temas e aspectos em comum do Salmo 49 com outros
16
GORMAN, 2001, p. 7-31. 17
SIMIAN-YOFRE et al., 2015, p. 77-114; GORMAN, 2001, p. 15-7. 18
GORMAN, 2001, p. 12-3. 19TOV, 2017, p. 20Por Gattung entende-se a classificação do “tipo literário” de um salmo, que é identificado por “características
formais, estilo, modo de composição, [e] terminologia” (MUILENBURG, Introduction, in: GUNKEL, 1967, p.
v). Claus Westermann identifica sete principais Gattungen: salmo de lamento comunitário, salmo de lamento do
indivíduo, salmo de louvor declarativo da comunidade, salmo de louvor declarativo do indivíduo, salmo de
louvor descritivo, salmo litúrgico e salmo de sabedoria (WESTERMANN, 1980, p. 25-8). 21Ver GUNKEL, 1967. 22BARTH, 1966, p. 13.
13
salmos que pertencem ao mesmo “tipo literário”, bem como auxilia na identificação do
ambiente de vida em que o texto foi produzido.23
O texto do Salmo 49 também apresenta estrutura, coesão e aspectos retóricos que
precisam ser examinados antes da análise de seu/sua conteúdo/mensagem. O estudo da
estrutura e da coesão literária contribuirá na percepção de como o discurso está construído
como uma unidade e de que modo as partes interagem entre si e esclarecem umas as outras.24
A crítica retórica implica a busca pelo entendimento dos recursos e estratégias literárias
empregados no texto para persuadir ou influenciar o leitor e embelezar o texto, bem como dos
objetivos ou efeitos gerais desses elementos retóricos.25
A questão central que guiará o capítulo 2 é: O que a análise de conteúdo do Salmo
49 (especialmente a análise sintática e semântica) revela sobre a mensagem desse hino a
respeito da morte e dos conflitos sociais em que o autor vivia? Para compreender a
perspectiva do salmista, é necessário investigar o salmo como um todo, visto que “qualquer
interpretação feita de uma parte do mesmo texto poderá ser aceita se for confirmada por outra
parte do mesmo texto, e deverá ser rejeitada se a contradisser”.26
Como bem observou Osborne, a sintaxe contribui para “elucidar o desenvolvimento
e significado” do enunciado como um todo, não apenas de uma de suas partes.27
O estudo
sintático analisa o relacionamento das palavras em uma locução, oração ou período,
observando a ordem em que foram organizadas e suas prováveis funções em uma passagem,28
tendo em mente a cadeia textual em que estão inseridas.
...sintaxe é a disposição de palavras de maneira a formarem locuções, orações ou
períodos. É um ramo da gramática.
Dificilmente uma palavra isolada transmite uma ideia completa. Como os tijolos de
uma construção, as palavras são elementos isolados que juntos formam frases, que
são unidades elementares do pensamento.29
Associado ao aspecto estrutural da sintaxe poética está o recurso literário do
paralelismo, em que duas ou três declarações são justapostas.30
Entender a dinâmica do
23BELLINGER, 2012, p. 18 24Embora Zenger e Hossfeld vejam duas camadas em tensão no Salmo 49 (ZENGER; HOSSFELD, 1993, p. 299-
301), a hipótese inicial é de uma coesão mais clara no salmo e sua produção por um único autor. A “Análise
Literária do Salmo 49” avaliará melhor a hipótese deste pesquisador. 25
GORMAN, 2001, p. 13. 26
ECO, 2012, p. 76. 27OSBORNE, 2009, p. 140-1. 28
WILLIAMS, 1976, p. 3. 29
ZUCK, 1994, p. 135. 30
CHISHOLM, 2016, p. 176.
14
paralelismo hebraico na poesia do Salmo 49 contribuirá bastante para o entendimento da
intentio operis a ser analisada.31
A análise semântica envolverá o exame de palavras-chave do Salmo 49, observando
as ocorrências delas — sua distribuição (e.g., usos na literatura de sabedoria ou hínica) e os
grupos sintáticos relacionados a ela (e.g., preferência por uma determinada preposição ou
verbo) —, organizando os dados e classificando-os conforme os sentidos primários,
secundários e metafóricos.32
Léxicos de referência33
e concordâncias são as fontes primárias
dessa pesquisa.
Por fim, a pergunta principal do capítulo 3 será: Qual é o contexto histórico do
Salmo 49 à luz dos dados coletados na investigação textual, na análise literária e no
estudo do conteúdo do salmo? Ou seja, em que ambiente do antigo Israel o texto do Salmo
49, com seu conteúdo e modo de refletir a respeito da vida, poderia ter sido produzido?
Como a religião bíblica se desenrola ao longo da história, é fundamental que o
intérprete investigue a sociedade e a cultura em que o texto foi produzido para ter condições
de “entendê-lo”, não apenas “usá-lo”; isso implica pesquisar os aspectos geográficos,
políticos, econômicos, religiosos entre outros do antigo Israel.34
O estudo do ambiente
histórico-cultural do Salmo 49 será o foco de parte do capítulo 3, em que se avaliará o
chamado “consenso” de que esse Salmo 49 é pós-exílico. Além disso, será desenvolvida uma
investigação sobre a possibilidade de ele pertencer ao contexto de vida do Israel pré-exílico.
Com essas perguntas e observações em mente, dá-se início à pesquisa exegética do
Salmo 49 delineada nesta introdução.
31
Ver ALTER, 2011. 32
OSBORNE, 2009, p. 125. 33
Léxicos de referência para o hebraico bíblico são: BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977; KOEHLER;
BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2000; CLINES, 1993-2011; ALONSO SCHÖKEL, 2004. 34
OSBORNE, 2009, p. 198-209.
15
1. ANÁLISE TEXTUAL E LITERÁRIA DO SALMO 49
Neste primeiro capítulo, será desenvolvida uma análise textual do Salmo 49 com
base no aparato crítico da BHS e no estudo realizado por eruditos textuais. Essa análise servirá
de fundamento, juntamente com o estudo sintático mais adiante, para a tradução do texto
hebraico do Salmo 49 apresentada no início deste capítulo. Não há como saber “o que o texto
significa”, sem antes definir “qual é o texto” a ser analisado. Por isso, a crítica textual é
importante. Em seguida, serão analisados aspectos literários centrais: a Gattung35 do salmo,
sua estrutura e coesão e os aspectos retóricos do texto.
1.1. Tradução Interlinear e Proposta de Tradução do Salmo 49
A seguir, elabora-se uma tradução interlinear do Texto Massorético (TM) do Salmo
49 e, com base nela, bem como em aspectos sintáticos e em reconstruções textuais, o autor
apresentará uma proposta de tradução por equivalência formal da mesma passagem.
1.1.1. Tradução Interlinear do Salmo 49
1 למנצח לבני־קרח מזמור
um salmo36
concernente aos filhos de Corá ao dirigente37
נוהאזי כל־ישבי חלד 2 שמעו־זאת כל־העמים
mundo todos os habitantes de dai ouvidos todos os povos escutai isto
35
Conforme explicado na introdução, por Gattung entende-se a classificação do “tipo literário” de um salmo, que
é identificado por “características formais, estilo, modo de composição, [e] terminologia” (MUILENBURG,
James, Introduction, in: GUNKEL, 1967, p. v). Outa definição útil de é a de Cristoph Barth: “Por ‘categoria
formal’ (Gattung) os eruditos bíblicos [...] se referem a um grupo de passagens inteiras de poesia ou prosa que
podem ser identificadas como estando associadas por características distintivas de forma, estilo e conteúdo”
(BARTH, 1966, p. 13). Claus Westermann identifica sete principais Gattungen: salmo de lamento comunitário,
salmo de lamento do indivíduo, salmo de louvor declarativo da comunidade, salmo de louvor declarativo do
indivíduo, salmo de louvor descritivo, salmo litúrgico e salmo de sabedoria (WESTERMANN, 1980, p. 25-8). 36
Para essa tradução do termo מזמור, ver KIRST, 2004, p. 121; HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 189;
SWANSON, 1997, verbete 4660 (edição eletrônica). 37 verbo, particípio, piel, masculino, singular. Para a tradução deste verbo no particípio por “dirigente”, ver - נצח
BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 664 (itálico acrescentado): “ח ,nos títulos de salmos tem למנצ
provavelmente, um sentido semelhante de dirigente musical ou regente de coro”. Ver apoio para essa
compreensão do termo em HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 244; GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 2003.
p. 562.
16
3 גם־בני אדם גם־בני־איש יחד עשיר ואביון
e pobre rico juntos também filhos de homem ser humano também filhos de
4 פי ידבר חכמות והגות לבי תבונות
entendimento38
do meu coração e a meditação sabedoria39
falará a minha boca
5 אטה למשל אזני אפתח בכנור חידתי
o meu enigma com cítara exporei o meu ouvido a um provérbio inclinarei
6 למה אירא בימי רע עון עקבי יסובני
me cercará os meus calcanhares maldade de mau dias de temerei por que
7 הבטחים על־חילם וברב עשרם יתהללו
gloriam-se a riquezas deles e na abundância de na40
posse deles os que confiam
8 אח לא־פדה יפדה איש לא־יתן לאלהים
para ’ não dará homem redimirá não redimir irmão
כפרו
o pagamento expiatório41
dele
9 ויקר פדיון נפשם וחדל לעולם
para sempre e cessará a vida deles o resgate de e é valioso42
38
Esse é um uso do plural para substantivos abstratos, cujo equivalente na tradução em português é a forma
singular do termo. Ver PINTO, 1998. p. 14; ROSS, 2009, p. 399; GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910,
p. 397, §124.d, e. 39
Esse é um uso do plural para substantivos abstratos, cujo equivalente na tradução em português é a forma
singular do termo. Ver GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 397, §124.d, e; PINTO, 1998, p. 14;
ROSS, 2009, p. 399. 40
Ver BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 752-3, uso II.1. 41
Sobre a tradução, ver discussão sobre o sentido do termo em “Análise do conteúdo do Salmo 49”. 42
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 431-2.
17
10 ויחי־עוד לנצח לא יראה השחת
a sepultura43
verá não para sempre para que44
viva ainda
11 כי יראה חכמים ימותו יחד כסיל ובער
e bruto insensato juntos morrerão os sábios verá certamente
יאבדו ועזבו לאחרים חילם
a posse deles para outros e deixarão perecerão
12 קרבם בתימו לעולם משכנתם לדר ודר
de geração e geração as suas habitações para sempre as suas casas seu pensamento íntimo45
קראו בשמותם עלי אדמות
terras sobre com seus nomes invocaram
13 ואדם ביקר בל־ילין נמשל כבהמות נדמו
perecerão aos animais é semelhante não permanece46
em esplendor mas ser humano
14 זה דרכם כסל למו ואחריהם בפיהם ירצו סלה
selá têm prazer na sua boca e seus seguidores para eles tolice o caminho deles este
ירדוו בם 15 כצאן לשאול שתו מות ירעם
sobre47
eles e dominarão os pastoreará morte dirigem-se48
para sheol como rebanho
43
KIRST et al, 2004. p. 249; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 1473. 44
Para esse uso final (indicando propósito) do verbo no jussivo + waw consecutivo subordinado a uma oração
com verbo no imperfeito, ver MITCHELL, 1915, p. 87-90; KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 351; GESENIUS;
KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 322, §109.f; NET Bible, 2005, Psalm 49.9, translator note 14. 45
KEIL; DELITZSCH, 1996. v. 5. p. 351; HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 324 (cf. Gn 18.12; Sl 5.10[9];
62.5[4]; 64.7[6]; Jr 4.14). 46
BROWN, DRIVER, BRIGGS, 1977, p. 533. 47
Ver esse uso da preposição ב com o verbo רדה em BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 922 (cf. os seguintes
texto bíblicos: Gn 1.26,28; Ne 9.28). 48
Ver GOLDINGAY, 2006, v. 1, Psalm 49, nota 10 da tradução do Salmo 49 (edição kindle).
18
ישרים לבקר וצירם לבלות שאול מזבל לו
para ele de mansão o sheol para engolir e a forma deles na manhã justos
ני סלה ך־אלהיםא יפדה נפשי מיד־שאול כי יקח 16
selá me tomará certamente da mão do sheol minha vida redimirá mas49
’
י־ירבהכ כבוד ביתו 17 אל־תירא כי־יעשר איש
a casa dele glória de se aumentar homem se multiplicar as riquezas não temas
מותוב יקח הכל לא־ירד אחריו כבודו 18 כי לא
a glória dele atrás dele não descerá o todo tomará na morte dele não certamente
19 כי־נפשו בחייו יברך ויודך כי־תיטיב לך
para ti pois vai bem e te louvam [ele] congratulasse: em suas vidas embora50
sua alma
20 תבוא עד־דור אבותיו עד־נצח לא יראו־אור
verão luz não para sempre os pais dele até a geração de ela irá
21 ואדם ביקר ולאיבין נמשל כבהמות נדמו
perecerão aos animais é semelhante e não entende em esplendor e ser humano
1.1.2. Proposta de Tradução do Salmo 49
Apresentamos a seguir uma tradução por equivalência formal de Salmo 49:51
49. 1Para o dirigente de música,
52 um salmo
53 concernente aos coraítas.
49
Ver KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 45. 50
Para o uso concessivo de כי, ver a discussão da análise do conteúdo de Salmo 49.19. Cf. também WILLIAMS,
1976, p. 73, 88, §448, 530; PINTO, 1998, p. 144, 19.64. 51
Várias decisões de tradução aqui são fruto da discussão ao longo da exegese contida nos dois primeiros
capítulos. 52
Ver BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 664: “ח nos títulos de salmos tem, provavelmente, um sentido למנצ
semelhante de dirigente de música ou regente de coro” (itálico acrescentado). Ver apoio para essa compreensão
do termo em HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 244; GESENIUS, 2003, p. 562.
19
2Escutai isto, todos os povos!
Dai ouvidos, todos os habitantes do mundo!
3Sim, seres humanos, [todas as] pessoas;
54
seja55
rico, seja pobre.
4Minha boca falará sabedoria,
56
e a meditação do meu coração [transmitirá]57
entendimento.58
5Inclinarei
59 a um provérbio o meu ouvido,
exporei60
com a cítara61
meu enigma.
6Por que temerei os dias maus,
[quando] a maldade dos que me atacam por trás62
me cercar?
7Os que confiam em suas posses
E na abundância de seus bens se gloriam.
8Um ser humano
63 não redimirá de modo algum [seu] irmão.
Não dará a Deus um substituto expiatório64
por ele
9(Pois é valioso
65 o resgate
66 da vida deles;
E cessará67
para sempre.)
10Para que
68 viva continuamente para sempre
69
53
KIRST et al, 2004, p. 121; HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 189; SWANSON, 1997, verbete 4660 (edição
eletrônica); KIDNER, 1980, p. 51. 54
Para a tradução desse verseto, ver a análise de conteúdo do versículo 3. 55
Para essa tradução de יחד, ver BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 403. 56
Esse é um uso do plural para substantivos abstratos; ver PINTO, 1998, p. 14; ROSS, 2009, p. 399. 57
O verbo aqui é pressuposto por elipse; ver comentário do versículo 4. 58
Esse é um uso do plural para substantivos abstratos; ver PINTO, 1998, p. 14; ROSS, 2009, p. 399. 59
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 693. 60
Para essa tradução de פתח, ver ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 552; BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p.
835. O verbo pode ter o sentido de “falar” ou “declarar”, especialmente quando é acompanhado do substantivo
.Cf. KIDNER, 1980, p. 203 .(boca”; cf. Ez 21.27; Jó 3.1; Dn 10.16; Sl 38.14“) פה61
Ver KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 484. 62
Ver discussão sobre essa opção de tradução na análise exegética do versículo 6. 63
Ver esse sentido amplo de איש em Jó 38.26; cf. KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM,
1994-2001, p. 48. 64
Sobre a tradução, ver discussão sobre o sentido do termo em “Análise do conteúdo do Salmo 49”. 65
O uso do verbo יקר no pretérito (wayyiqtol) tem função parentética (insere uma nota explicativa ou um
comentário), como ocorre em outras passagens da Bíblia Hebraica (1Rs 13.4; 1Cr 11.6; cf. CHISHOLM, 2016,
p. 151-2). 66
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 913. 67
O perfeito com waw consecutivo tem aspecto futuro (ver MERWE; NAUDÉ; KROEZE, 1999, p. 168, §21.3
[edição eletrônica]). Merwe, Naudé e Kroeze observam que a acentuação na última sílaba indica um perfeito + ו
consecutivo (ver também ROSS, 2009, p. 143-4). 68
Para esse uso final (indicando propósito) do verbo no jussivo + waw consecutivo subordinado a uma oração
com verbo no imperfeito, ver EWALD, 1870, p. 231, §347; KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 351;
20
E não veja a sepultura.
11Certamente, verá que os sábios morrem,
70
Insensato e bruto juntos são destruídos71
E deixam para outros suas posses.
12Seu pensamento íntimo
72 [é que] suas casas são eternas,
E suas habitações, de geração em geração.
Aclamam seus nomes sobre as terras.
13Mas um ser humano em esplendor
73 não permanece,
É semelhante aos animais [que] perecem.
14Este é o caminho daqueles [cuja] tola confiança [é] para si,
Mas seus seguidores têm prazer no que eles dizem. Selá.
15Como rebanho dirigem-se
74 para o Sheol,
Morte os pastoreará.
De manhã, os justos dominarão sobre75 eles.
O Sheol engolirá suas formas,76
Longe da77 mansão dele.
16Mas
78 Deus redimirá minha vida do poder
79 do Sheol,
GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 322, §109.f; NET Bible, 2005, Psalm 49.9, translator note 14.
Cf. também a discussão no capítulo 2 sobre o versículo 9. 69
O termo hebraico עוד indica continuidade, por isso, nossa tradução: “continuamente” (cf. ALONSO
SCHÖKEL, 2004, p. 481; KEIL; DELITZSCH, 1996. v. 5. p. 351; ver o único outro exemplo da Bíblia Hebraica
em que עוד e לנצח [“para sempre”] são empregados juntos em Jr 50.39, mas ali são precedidos pelo advérbio לא). 70
O imperfeito do verbo מות aqui tem a função de indicar uma ação que pode ocorrer repetidamente em qualquer
momento e que é conhecida pela experiência humana (GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 315-6,
§107.g). 71
Para essa tradução do imperfeito de אבד, ver GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 315-6, §107.g e
nota anterior. 72
Para a tradução de קרבם por “seu pensamento íntimo”, veja as ocorrências de קרב em Gn 18.12; Sl 5.10[9];
62.5[4]; 64.7[6]; Jr 4.14. Na antepenúltima referência (Sl 62.5), há claramente um contraste entre o ato da “boca”
dos homens falsos de “abençoar” e o “pensamento interior deles” (קרבם), que “amaldiçoa”. Em Jr 4.14, é no קרב
que estão presentes os “maus pensamentos” (מחשבותאונך). Cf. COPPES, Leonard J., קרב, in: HARRIS; ARCHER
Jr.; WALTKE, 1999, p. 813; HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 324; KOEHLER; BAUMGARTNER;
RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 1135, sentido 2. 73
Ver o uso do termo com esse sentido em Jr 20.5; Ez 22.25 (cf. PLEINS, 1996, p. 20-1). 74
Ver esse sentido de direção em GOLDINGAY, 2006, psalm 49, nota 10 da tradução do Salmo 49 (edição
cujo termo hebraico pode indicar tanto “animais selvagens” quanto “animais ,(כבהמות
domésticos”,370
mas neste hino é definido especificamente como um “rebanho” (צאן) de
ovelhas em outra símile que ocorre no versículo 15: “Como rebanho dirigem-se para o Sheol,
Morte os pastoreará” ( ירע םמות שלשאכצאן תוול ). Os símiles estabelecem uma coesão e
esclarecem o tipo de animal a que o salmista se refere.
Outra maneira figurada de falar das condições de indivíduos e do próprio ’E ao
lidarem com a morte dos humanos ocorre pelo uso de termos cúltico-comerciais como a raiz
verbal פדה (“redimir”, “resgatar”) e o substantivo פדיון (“resgate”, “preço de redenção”) (v. 8-
9,16), empregados geralmente para se referir ao resgate cultual tanto de animais quanto dos
filhos mais velhos dos israelitas (Êx 13.13,15; 34.20; Nm 18.15), em que um valor monetário
poderia ser usado para esse fim (Lv 27.27; Nm 18.15b).371 O emprego de כפר (“substituto
expiatório”, v. 8), que provém do contexto judicial das leis civis para indicar uma reparação
366
Ver a nota do aparato crítico do versículo 21 na Biblia Hebraica Stuttgartensia (ELLIGER; RUDOLPH, 1997,
p. 1131) 367
ESTES, 2004, p. 69-70. 368
RYKEN, 1992, p. 159-62. 369
Entende-se por símile uma figura de comparação explícita, que usa expressões “como”, “é semelhante a”, etc.
Ver CORLEY; LEMKE; LOVEJOY, 2002. p. 26. 370
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 111-2. 371
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 672-3; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON;
STAMM, 1994-2001, p. 912.
56
(Êx 21.30; Nm 35.31),372 também é usado como imagem para tratar da relação dos seres
humanos com a morte.
Bortolini também observa o uso de “imagens e palavras fortes do âmbito do campo e
da terra” para comunicar a mensagem do autor, listando uma série de termos: “cova (10), [...]
a besta que morre (13,21), caminho (14), rebanho [...], a figura da nobreza que murcha como
erva (15)...”.373
Em conclusão de nossa análise, podemos afirmar que o Salmo 49 fez parte da
produção literária dos mestres do antigo Israel, tanto por sua linguagem sapiencial
(“sabedoria”, “entendimento”, “parábola”, etc.), quanto por elementos formais da literatura
(e.g., o chamado inicial; trechos em primeira pessoa) e por temas que aparecem nele
(retribuição e riqueza e pobreza).
A melhor estrutura para estudar o salmo é aquela que mantém duas principais
estrofes, que seguem a introdução e são seguidas por dois refrões semelhantes, mas não
idênticos. Por fim, percebe-se uma ênfase na repetição de certos termos com o propósito de
chamar a atenção para sentimentos (temor), comparações (“como os animais”) e para retratar,
com certa ironia, a infeliz sina dos que confiam em riquezas transitórias ao serem incapazes
de alterar o curso final da vida humana: a morte.
372
MAAS, F., כפר, in: JENNI; WESTERMANN, 1997, p. 626. 373
BORTOLINI, 2002, p. 245; BORTOLINI, 2000, p. 208.
57
2. ANÁLISE DO CONTEÚDO DO SALMO 49
No presente capítulo, será desenvolvida uma análise exegética dos aspectos
sintáticos, semânticos e literários do Salmo 49, que examinará o texto conforme os blocos da
divisão literária proposta no capítulo anterior. Na sintaxe, o foco estará na interrelação das
palavras nas frases e orações dos versetos ou de grupos de versetos. No estudo semântico, será
dada atenção ao sentido de palavras centrais à luz do contexto literário específico do próprio
salmo e da Bíblia Hebraica em geral. Embora o cerne da análise literária esteja no capítulo
anterior, os tipos de paralelismos no conjunto de dois ou três versetos (bicólons ou ticólons)
também será objeto da pesquisa exegética deste capítulo.
2.1. Epígrafe do salmo (v. 1)
49.1Para o dirigente de música, um salmo concernente aos coraítas.
O Salmo 49 inicia com a informação de que foi composto למנצח (“para o dirigente de
música”; “para o mestre de música” [NVI]; ou “ao regente do coro” [A21]). Segundo o BDB,
“[a expressão] ח em títulos de salmos, tem, provavelmente, o sentido semelhante a ,למנצ
dirigente de música ou regente de coro”.374
O último vocábulo (מזמור) é uma designação bastante comum nos títulos da salmódia
israelita e também aparece ao final da epígrafe em outros salmos dos filhos de Corá (Sl 47.1;
84.1; 85.1; 87.1).375
O sentido básico de מזמור é o de “salmo”,376
mas parece indicar “uma
música cantada com o acompanhamento de um instrumento musical” (cf. Sl 33.2; 71.22; Sl
98.5; 147.7; 149.3).377 Geralmente, a LXX traduz essa palavra hebraica por ψα ς (“cântico
de louvor”, “salmo”, “música tocada com um instrumento”).378 Hans-Joachim Kraus explica
que a diferença básica entre מזמור e שיר (“canção”;379 outro termo bastante comum nos títulos
dos salmos) é que o segundo “designava provavelmente de modo original e dominante a
374
Ver BROWN.; DRIVER.; BRIGGS, 1977, p. 664. Ver apoio para essa compreensão do termo em
HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 244; GESENIUS, 2003, p. 562. 375CLINES, 1998, v. 4 p. 209. 376KIRST et al., 2004, p. 121; HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 189; SWANSON, 1997, verbete 4660 (edição
eletrônica); KIDNER, 1980, p. 51. 377
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, p. 566. 378
execução vocal e recitada de um salmo”, ao passo que o primeiro indicava, “antes de tudo, o
canto com acompanhamento de instrumentos”.380
A expressão hebraica רחלבני־ק pode ser entendida tanto como uma indicação de que o
salmo foi escrito por um dos descendentes de Corá quanto que ele foi escrito para ser cantado
por esses levitas.381
A grande problemática repousa na definição do uso semântico da
preposição ל,382
que pode ser traduzida de diversos modos, como “para”, “de”, “concernente
a”, “em relação a” ou “dedicado a”.383
Wilhelm Gesenius entendia o uso do ל nos títulos dos salmos como um lamed
auctoris, ou seja, um indicativo de autoria, por exemplo, em Salmo 3.1: לדוד salmo“ מזמור
pertencente a Davi como o autor”, com base em línguas semíticas (em especial, o árabe).384
No entanto, o uso da preposição le em ugarítico, como nos ciclos de Baal, por exemplo, na
expressão b‘ , não indica autoria, mas a tabuleta “pertencente a[os textos] de Baal” ou o texto
que fala “a respeito de Baal”.385
Clines classifica o uso dessa preposição nos salmos com o
sentido de posse, com as traduções “de”, “pertencente a”, “concernente a”, em vez de definir
se a ideia é de origem ou destinatário (e.g., “de Davi” ou “para o mestre de música”).386
Em usos específicos em títulos de cânticos ou poemas da Bíblia Hebraica, a
preposição ל parece ter o sentido de origem ou autoria (Hc 3.1: “oração de Habacuque” em
resposta à revelação divina dos caps. 1—2; cf. Is 38.9; Sl 18.1). Em outros casos pode indicar
a quem o salmo se destina ou de qual coleção faz parte (“para o / da coleção do mestre de
música” em Sl 4.1; 11.1), bem como o momento em que deveria ser cantado ou lido (“para [o
uso n]o dia de sábado” (Sl 92.1).
Na verdade, é muito provável que os coraítas não apenas fossem responsáveis pelo
louvor em Israel (“para os coraítas”) (2Cr 20.19), mas também compusessem músicas (“dos
coraítas”), como os Salmos 42—49; 84—85; 87—88.387 Hemã talvez seja representativo
dessa situação: ele era líder dos coraítas, dirigindo o canto no santuário de YHWH (1Cr 6.31-
380KRAUS, 1993, p. 29. 381
Ver a discussão sobre o lamed auctoris em CRAIGIE, 1983, p. 33-35. 382
ALTER, Robert, Salmos, in: ALTER; KERMODE, 1997, p. 264; GOULDER, 1982, p. 2. 383
FRANCISCO, Edson F. Antigo Testamento Interlinear: os Escritos, v. 4, Salmo 3.1: preposição lamed (no
prelo); BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 510-517; VANGEMEREN, 1991. v. 5., p. 19. KOEHLER;
BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2000, p. 507-510. 384GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 419-20, §129.c. 385CRAIGIE, 1983, p. 34; ver WEISER, 1994, p. 64 386CLINES,1998, v. 4, p. 479-80, sentido 1. 387BUSS, 1963, p. 382-92.
59
38, esp. v. 33,37; 15.17,19) ao mesmo tempo que aparece como autor do Salmo 88388 (להימן
יהאזרח – de [lamed auctoris] Hemã, o ezraíta), que tem a indicação לבני־קרח (“concernente aos
filhos de Corá”).
Embora seja provável que canções pertencentes aos coraítas fossem compostas por
levitas relacionados ao templo e à adoração,389 como parece ser o caso do Salmo 49,390 talvez
a questão central não seja definir o sentido exato de ל, mas vê-lo como indicador de que cada
salmo com o título לבני־קרח (“concernente aos filhos de Corá”) pertencia a uma coleção
atribuída aos “coraítas” antes de ser inserida no Saltério mais amplo.391
“Mais do que
qualquer outro grupo, o pessoal ligado ao serviço do culto [...] tinha o maior interesse na
coleção, conservação [...] do antigo patrimônio dos cânticos”.392
Quem eram os coraítas? A tradição bíblica os retrata como descendentes de Corá,
antigo líder de uma família levítica que teria se revoltado contra a liderança de Israel no
deserto.393
Corá ben Isar era um homem rico, primo de Moisés e fazia parte do clã dos
Coatitas (Êx 6.18-21; Nm 27.58-59; 1Cr 6.18-22[33-37]; 32.12-13). Ele se rebelou contra
Moisés e Arão com alguns rubenitas (Datã, Abirão e Om) e mais 250 levitas. Datã e Abirão
foram tragados vivos com suas famílias pela terra que se abriu e desceram ao Sheol (Nm
16.30-33). Isso também ocorreu com Corá, seus bens e os homens que o serviam.
No entanto, o texto de Números afirma que os filhos de Corá foram poupados394
por
YHWH e redimidos do Sheol: “... Mas os filhos de Corá não morreram” (Nm 26.10,11).395
O
evento foi tão marcante na vida dessa família que ela o guardou na memória ao atribuir nomes
a seus descendentes que recordavam o evento, conforme indicado por David C. Mitchell:
Elcana (“Aquele a quem Deus redimiu”, ou mesmo “Deus Zeloso”, Êx 6.24; 1Cr
6.8-12[23-27]; cf. v. 19-22[34-37]), Abiasafe (“Pai do Ajuntamento” ou mesmo
paronomasticamente: “Ele recolheu meu pai", Êx. 6.24; 1Cr 6.22 [37]). E os seus
descendentes eram Naate (“Afundado” [...] 1Cr 6.11[26],19[34]); Zufe
(“Submergido”, 1Cr 6.20 [35]); Aimote (“Irmão da morte”, 1Cr 6.10[25],20 [35] ); e
Taate (“Mundo inferior”, 1Cr 6.9[24],22[37]).396
388KIDNER, 1980, p. 48-9; ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 77; LONGMAN III, 2014, Introduction
2a (edição kindle). 389GOULDER, 1982, p. 2; BUSS, 1963, p. 382-92. 390Ver análise no cap. 3 sobre a relação entre o templo e os sábios no antigo Israel. 391
MITCHELL, 2006, p. 368. 392WEISER, 1994, p. 65. 393
SARNA, 1993b, p. 37. 394KIDNER, 1980, p. 48. 395
MENDONÇA, 2012, p. 26-8. 396MITCHELL, 2006, p. 369-70, 372-3.
60
A importância do Sheol e os horrores da morte assumiram grande ênfase em vários
salmos dos coraítas:397 “e a minha vida se aproxima do Sheol” (Sl 88.4[3]); “atirado entre os
mortos; como os feridos de morte que jazem na sepultura” (88.6[5], ARA); “e me livraste a
vida do mais profundo poder do Sheol” (86.13); “para nos esmagares onde vivem os chacais;
e nos envolveres com as sombras da morte” (44.20[19]).398 O Salmo 49, que é o foco desta
pesquisa, enfatiza ainda mais o tema da morte, do Sheol e do livramento deste:
Certamente, verá que os sábios morrem, insensato e bruto juntos são destruídos. (v.11)
Mas um ser humano em esplendor não permanece, é semelhante aos animais [que] perecem. (v. 13)
Como rebanho dirigem-se para o Sheol, Morte os pastoreará. De manhã, os justos dominarão sobre eles. O Sheol
engolirá suas formas. (v. 15)
Mas Deus redimirá minha vida do poder do Sheol; certamente me tomará. (v. 16)
O cronista apresenta informações importantes sobre esse grupo de levitas. Eles são
retratados como porteiros do santuário (1Cr 9.19; 26.19), responsáveis pelo preparo de bolos
das ofertas de sacrifício (1Cr 9.31) e por entoar louvores na casa de Deus, conduzindo o
louvor da congregação de Israel sob a liderança de Hemã (1Cr 6.31-38; 2Cr 20.19).399
Embora se questione o quadro histórico apresentado pelo autor bíblico como uma
projeção da época do segundo templo sobre um período anterior, os dados parecem confirmar
a atuação desse grupo no período pré-exílico. Em primeiro lugar, o livro de Esdras-Neemias,
ao relatar os grupos levíticos que voltaram do cativeiro, menciona apenas os asafitas (Ed 2.41;
Ne 7.44; ), que também atuaram na cerimônia de fundação do templo pós-exílico (Ed 3.10).
No entanto, Hemã, Etã e os coraítas, personagens e grupos levíticos que aparecem em
Crônicas (1Cr 6.31-38; 9.19,31; 15.17,19; 26.19; 2Cr 20.19) não recebem menção alguma. Se
eles eram levitas atuantes no segundo templo, por que não existe referência alguma a eles em
outros textos pós-exílicos? Por que o cronista teria inventado grupos leviticos que nunca
existiram?400
O segundo fator que corrobora a atuação do coraítas na Judá pré-exílica foi a
descoberta do templo em uma fortaleza em Tel-Arad, no sul de Judá, com estrutura
arquitetônica semelhante à de Jerusalém.401
No estrato VIII, que remonta ao século VIII
A.E.C. e apresenta indícios da destruição causada por Senaqueribe, rei da Assíria, foram
397MENDONÇA, 2012, p. 28-9. 398MITCHELL, 2006, p. 374-6. 399KRAUS, 1993; KIDNER, 1980, p. 48. 400SARNA, 1993a, p. 21-2. 401
SIQUEIRA, 2012, p. 44-51.
61
encontrados oito óstracos, um deles fazendo referência a Pasur, personagem sacerdotal
referido em 1Crônicas 9.11. Nesse mesmo nível da escavação, descobriu-se na base de um
vaso polido referência aos pagamentos ou às porções de alguns grupos, dentre eles os “filhos
de Corá”.402
Segundo o relato arqueológico, o templo desse estrato continha também um altar
demolido, que pode remontar à reforma de Ezequias — destruição de todos os altares
concorrentes em Judá (2Cr 32.11-12; 2Rs 18.22; Is 36.7) e a eventual transposição de levitas e
sacerdotes para o templo de Jerusalém (2Cr 29.1-17).403
Vários estudiosos têm reconhecido a antiguidade dos salmos dos filhos de Corá,404
em especial os capítulos 42—49, por ser uma coleção menor dentro de outra coleção do livro
de Salmos, a coleção Elohista.405
Se os coraítas já estavam em Arad, no sul do Judá no século
VIII A.E.C., a tese de que eles serviam no santuário de Dã, ao norte, e depois migraram para o
sul após a destruição de Samaria é bastante improvável.406
A lista antiga de Números 26.58
que cita os coraítas juntamente com outros grupos da região de Judá parece reforçar a tese de
que eles atuavam no Reino do Sul.407
A importância de Jerusalém e do culto nos salmos dos
coraítas (46.5,6; 48.3,4,9; 87.5) e a saudade do templo sentida pelo levita exilado (Sl 42.1-4)
reforçam essa tese.408
Portanto, parece adequado propor a origem do Salmo 49 nesse ambiente
cultual do sul de Judá
2.2. Introdução: convocação sapiencial (v. 2-5)
49.2Escutai isto, todos os povos!
Dai ouvidos, todos os habitantes do mundo!
3Sim, seres humanos, [todas as] pessoas;
seja rico, seja pobre.
4Minha boca falará sabedoria,
e a meditação do meu coração [transmitirá] entendimento.
5Inclinarei a um provérbio os meus ouvidos,
Exporei com a cítara meu enigma.
402
SARNA, 1993a, p. 21-2; AHARONI; HERZOG; RAINEY, 1987, p. 34-5. Esse achado desmonta a antiga tese
de C. H. Toy de uma data pós-exílica para os salmos dos coraítas e defende uma data final para a formação dessa
coleção no período dos macabeus (ver TOY, 1884, p. 80-92). 403
AHARONI; HERZOG; RAINEY, 1987, p. 23-6, 34-5. 404GERSTENBERGER, 1988, cap. 1.1 (edição kindle); SARNA, 1993b, p. 37. 405CRAIGIE, 1983, p. 28-30. 406MILLER, 1970, p. 62-64. Contra GOULDER, 1982, p. 1-84; MENDONÇA, 2012, p. 40-1). 407BUSS, 1963, p. 388. 408KRAUS, 1993.
62
O versículo 2 dá início ao salmo com dois versetos409
estruturados em um
paralelismo sinônimo direto410
da seguinte forma: A. verbo (“Ouvi”) / A’. verbo (“Dai
ouvidos”); B. pronome demonstrativo (“isto”) / B’. elipse (“—”); C. vocativo (“todos os
povos”) / C’. vocativo (“todos os habitantes do mundo”).
שמעו / זאת / כל־העמים
האזינו / ---- / כל־ישביחלד
Apesar de estar ausente por elipse no segundo verseto, o pronome demonstrativo זאת
é pressuposto411
na segunda linha e funciona como objeto dos dois verbos.412
Ele é usado
como um pronome neutro (“isto”), sem definir o que os ouvintes devem “ouvir”,413
pois o
conteúdo é determinado pelo texto a seguir (v. 6-21).
Os verbos paralelos (שמעו e האזינו) são recorrentes em textos da tradição sapiencial,
como um chamado a amigos (שמע em Jó 5.27; 13.6,17; 15.17; 21.2; 32.10; 33.1; אזן em Jó
33.1; 34.16; 37.14), a sábios (שמע em Pv 1.5), a esposas (שמע e אזן em Gn 4.23), ao povo (אזן
em Sl 78.1) ao filho/discípulo (שמע em Pv 1.8; Pv 4.1; 5.7; 7.24 et alli), aos céus e à terra
para ouvirem o ditado, o conselho ou a argumentação do falante (um (em Dt 32.1 אזן e שמע)
amigo, sábio, pai, marido, líder da nação), que supostamente tem algo sábio a dizer.414
Observa-se, neste versículo, um chamado universal do sábio dirigido a “todos os
povos” (כל־העמים) e a “todos os habitantes do mundo” (יחלד .(v. 2) (כל־ישב415
Os imperativos
são usados com o sentido de convite (”ouvi“) שמעו e (”dai ouvidos“) האזינו416
para que todos
ouçam ou prestem a atenção à resolução do enigma que o salmista apresentará.417
Essa
409
Seguimos a preferência de Robert Alter por “verseto”, em vez de usarmos hemistíquio ou colon (plural cola),
porque “ambos têm associações equivocadas com a versificação grega, o último termo também evoca, de forma
inadvertida, associações com órgãos intestinais ou refrigerantes” (ALTER, 2011, p. 8 [edição kindle]). 410
Ver RYKEN, 1992, p. 180-181; KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 240-1; CHISHOLM, 1998. cap.
6 (edição kindle). 411
Köstenberger e Patterson explicam o fenômeno da elipse na estrutura de versetos paralelos da poesia hebraica:
“a supressão de uma palavra presente apenas em um verso paralelo, embora se deva compreendê-lo nos dois”,
assim, o termo “do primeiro verso paralelo está ausente no segundo verso, porém, subentendido nos dois”
(KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 262). Ver também MILLER, 2003, p. 251-270. 412
GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle). 413
WALTKE; O’CONNOR, 2006, p. 312, 17.4.3.a. 414
Ver também BELLINGER, 2012, p. 130; KRAUS, 1993, p. 91. 415
O uso de כל duas vezes (כל־העמים e חלד ressalta o caráter universal do público ao qual o salmista se (כל־ישבי
A raiz verbal פדה (v. 8a) contém o sentido básico de “conseguir a transferência de
propriedade de uma pessoa para outra mediante pagamento de uma quantia ou de um
substituto equivalente”.569
O conceito de resgate estava muito presente na sociedade do antigo
Israel. Pessoas que se endividavam e acabavam tornando-se escravas para quitar uma dívida
poderiam ser “resgatadas” dessa condição por um parente ou um amigo próximo que tivesse
condições de pagar a dívida ao credor (e.g., והפדה em Êx 21.8; cf. talvez Jó 6.23).570
Mantendo a ideia básica de “resgatar”/“redimir”, פדה foi um termo que marcou a
libertação de Israel do Egito, da terra da escravidão, como se Deus estivesse comprando a
565
GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle). 566
RYKEN, 1992, p. 182; CHISHOLM, 2016, p. 176-7. 567
OSBORNE, 2009, p. 290; KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 242-3. 568JOÜON; MURAOKA, 2011, p. 395. Ver outras exceções em Amós 9.8 e Gênesis 3.4. Ver o texto de Levítico
Cf. AEJMELAEUS, v. 105, n. 2, p. 199, nota 19. Ele afirma que “uma interpretação concessiva pode ser vista
como uma alternativa para a condicional [...]. Particularmente, só não se pode dizer que כי tem a função de
introduzir concessões reais que envolvam um contraste marcante em relação à oração principal. A tradução
concessiva de uma oração introduzida por כי é, portanto, sempre um caso especial da condicional e um resultado
da exegese.” (p. 199). Cf. RAABE, 1990, p. 78. Sobre a função concessiva de כי, ver WILLIAMS, 1976, p. 73,
88, § 448, 530 809
WOLFF, 2008, p. 52-5. 810
GOULDER, 1982, p. 194. 811
והיהבשמעואת־דבריהאלההזאת812
KALLAND, 1991. p. 182. Ver o sentido negativo de לביבש ררות em Jr 3.17; 11.8; 13.10; 16.12; 23.17; Sl
81.12 [BHS 81.13] (cf. KALLAND, 1991, p. 184; C. F. KEIL, F. DELITZSCH, 1996, v. 3, p. 449). 813
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 389; BROWN; DRIVER;
BRIGGS, 1977, p. 392; HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 128.
121
Fala-se até de “confessar” os pecados a Deus (32.5). Em todas as demais passagens de
Salmos, Deus é sempre o foco do louvor, jamais o homem. Entretanto, Salmo 49.19 é a única
passagem do Saltério em que pessoas “louvam” um “ser humano” mortal. O verseto do
versículo 19b “é uma paródia da frase recorrente: ‘Louvai a YHWH, pois ele é bom’ (Sl
106.1; 107.1; 118.1,29)”.814
A linguagem do “louvor” é o ápice de uma série de termos teológicos significativos
usados em referência a YHWH, mas que no Salmo 49 são invertidos pelos ricos ímpios:
O salmista utilizou cinco palavras que são geralmente atribuídas à adoração de
YHWH à medida que descreveu a exaltação sem fundamento daqueles que são ricos
[...] Ao dar às suas posses a confiança, o louvor, a honra e as ações de graças que os
salmos em outras passagens dirigem a Yahweh, os ímpios estão de fato elevando seu
ouro [gold] à posição de Deus [god] [...] Ao usar termos teologicamente
significativos como ברך ,כבוד ,הלל ,בטח e ידה, o salmista transmitiu claramente sua
mensagem de que os ímpios estão buscando de maneira vã usurpar as prerrogativas
que pertencem somente a Yahweh.815
Esse homem rico e poderoso passa a dar ouvidos ao que as pessoas dizem (“eles te
louvam”) (v. 19b), em vez de escutar com atenção o que a sabedoria tem a dizer: “Escutai
isto, todos os povos! Dai ouvidos, todos os habitantes do mundo! [...] Minha boca falará
sabedoria, e a meditação do meu coração [transmitirá] entendimento” (v. 2, 4). Como
declarou Craigie: “uma pessoa ‘abençoada em sua vida’ (v. 19a) talvez adote com facilidade
uma falsa confiança no que diz respeito à morte porque o louvor em tempos de prosperidade
alimenta essa confiança (v. 19b)”.816
Entretanto, o rico insensato está profundamente enganado, como a oração concessiva
do versículo 19a deixa entrever. A aparente tranquilidade e prosperidade (“... as coisas vão
bem contigo”, v. 19b) é repentinamente substituída pelo quadro de seu destino final: “Ele817
irá até a geração de seus pais...” (v. 20a).
A ideia de ser reunido aos pais ( אל־אבותיוו יאסף ) é um eufemismo para a morte e
ressalta a condição mortal de todas as gerações,818
embora não seja totalmente negativa na
Bíblia Hebraica. Como Nicholas Tromp observou, essa expressão é autenticamente antiga e se
814
RAABE, 1990, p. 78. 815
ESTES, 2004, p. 66. 816
CRAIGIE, 1983, p. 360. 817
O sujeito aqui é entendido como o substantivo feminino נפש do versículo 19 (ver NET Bible, 2005, Psalm
49.19, translator note 42; RAABE, 1990, p. 78). Goulder também propõe נפש como o sujeito da construção do
TM (“ela [a alma] irá”), o que é plausível à luz de outro trecho do Saltério em que alma corre o risco de ser
lançada ao Sheol: לא־תעזבנפשילשאול (“não abandonarás minha נפש no Sheol”, Sl 16.10a) (GOULDER, 1982, p.
194). Observe-se que Goldingay também pensa ser absolutamente possível a leitura de נפש como sujeito de תבוא
(GOLDINGAY, 2006, psalm 49, nota 17 [edição kindle]). 818
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 677.
122
referia à união dos falecidos com seus antepassados no Sheol, que precedia o enterro
propriamente dito:819
“Expirou Abraão; morreu em ditosa velhice [...] e foi reunido ao seu
povo. Então, sepultaram-no Isaque e Ismael, seus filhos, na caverna de Macpela...” (Gn
25.8,9). Ela pressupunha, ainda que antecedesse, o enterro digno ao lado dos familiares (Gn
15.15; 49.29; Jz 2.8-10).820
O problema ressaltado no versículo 20a é que a morte chega cedo demais para os que
confiam em suas riquezas ou vivem desavisados e despreocupados com ela. “É um destino
terrível fazer o bem para si mesmo e, depois, descobrir-se de repente na companhia dos
ancestrais sem ter tido a chance de desfrutar de suas realizações”.821
No segundo verseto do versículo 20, o salmista declara uma realidade tenebrosa:
“não verão a luz para sempre” (ור יראו־א לא Janet K. Smith registra dezenove .(עד־נצח
referências metafóricas à “luz” no livro de Salmos, entre elas: vida (Sl 56.13), presença divina
(Sl 89.15), a Torá (119.105, 130), orientação/verdade divina etc.822
A figura de “ver a luz”
indica a salvação que Israel receberá de Deus após experimentar um período de tribulação (Is
9.2) ou que o indivíduo experimentará da parte de YHWH diante da perseguição de seus
inimigos (Sl 27.1).823
“Ver a luz” é sinônimo de vida e vigor, frutos da benevolência de Deus
(Sl 36.8-10 [7-9]). Crianças que nunca “viram a luz” são natimortos, que nascem sem vida (Jó
3.16). “Ver a luz” é ter a vida salva da morte prematura (Jó 33.28). Diante da temática da
morte que percorre todo o Salmo 49, desde a impossibilidade de redenção (v. 8-11), passando
pela descrição dos insensatos e brutos ricos no Sheol (v. 15), até a afirmação de que eles
descerão de mãos vazias à sepultura (v. 18), é provável que “não verão a luz” seja uma
referência à ausência de vida neste mundo.824
Na sepultura, já não resta mais esperança de salvação ou de vitalidade para aqueles
que apostaram tanto em seus bens. Quando o sepulcro for fechado, o cadáver não mais verá a
819
TROMP, 1969, p 168-9. 820
MARTIN-ACHARD, 2015, p. 47. 821
GOLDINGAY, 2006, psalm 49 (edição kindle). 822
SMITH, 2011, p. 132. 823
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 25. 824
CRAIGIE, 1983, p. 360; ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 677-8. BRIGGS, 1906, p. 412: “não
verão a luz, que brilha neste mundo, mas não brilha na caverna escura e sombria do Sheol, ou sua Cova,
decadência para a qual o rico deve ir”. WEISER, 1994, 289: “Encaminham-se para a noite eterna, não para a luz,
pois não há nenhuma esperança para além da morte”. Parece muito pouco provável que o foco de “ver a luz”
aqui seja a “imortalidade” ou “a luz da face de Deus nos campos da vida”, como propõe Dahood (DAHOOD,
1965, p. 303), seguido por Janet Smith (SMITH, 2011, p. 132). Ver KOEHLER; BAUMGARTNER;
RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 24: “ראהא׳ = estar vivo Sl 49.20”.
123
luz, assim como seus antepassados, e isso será “para sempre” (עד־נצח), um caminho sem volta
(2Sm 12.23).825
Eles não o podem salvar, na verdade, o abandonam ali na sepultura.
2.6. Refrão: O homem em esplendor e sem entendimento perecerá como os animais
(v. 21)
Pois um ser humano em esplendor não entende
É semelhante aos animais que perecem.
Assim como na primeira ocorrência do refrão (v. 13), o versículo 21 está estruturado
em um paralelismo progressivo826
ou de especificação/intensificação,827
em que a ideia geral é
transformada em uma imagem concreta, mais penetrante e enfática: a afirmação de que o ser
humano “não entende” é reforçada e enfatizada com a imagem dos “animais que perecem”.
Conforme discutido na seção de crítica textual, não há necessidade de se fazer
emendas para tornar os dois refrões exatamente iguais.828
Há certo complemento no emprego
de raízes verbais distintas, em que o uso de duas descrições com som semelhante (ילין e יבין)829
torna ainda mais trágica a situação do “ser humano em esplendor” (ביקר v. 13,21). O ,אדם
grande problema dos ímpios ricos não é somente o fato de eles perecerem como os animais (v.
13), mas também sua condição sem entendimento, rebaixando-se ao nível dos seres
irracionais.
A assonância entre ילין (v. 13) e יבין (v. 21) desempenha um papel fundamental no
desenvolvimento temático do salmista. O primeiro refrão resume o conteúdo dos
versículos 6-11, em que a presunção arrogante daqueles que confiam em sua riqueza
é subvertida. Portanto, o homem em sua pompa, como os animais que perecem, não
permanecerá (בל־ילין). A segunda referência segue os versículos 14-20, em que Deus
redime e recebe o justo, isto é, aqueles que têm entendimento espiritual. Portanto, o
versículo 21 é uma conclusão apropriada: em contraste com o justo que desfruta o
favor de Deus, “o homem em sua pompa, mas sem entendimento” (לאיבין), é como
os animais que perecem”. A mudança de uma única consoante indica que a posse de
entendimento ensinado no salmo [...], embora facilmente ignorada pelos ricos tolos,
tem consequência eterna definitiva.830
825
GOLDINGAY, 2006, psalm 49 (edição kindle). 826
OSBORNE, 2009, p. 290; KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 242-3. 827
Categoria desenvolvida por ALTER, 2011, p. 21ss. 828
GOULDER, 1982, p. 190; cf. BRIGGS, 1906, p. 409. GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle):
“Em relação à homogeneidade dos refrões, é verdade que as antigas versões — e os intérpretes modernos tendem
a adaptar um verbo ao outro. As expressões relevantes no Salmo 49, ba - , “ele não permanecerá” (v. 13), e
’ b n, “ele não entenderá” (v. 21), realmente são muito semelhantes em som e na escrita. Portanto, é mais
difícil explicar as diferenças [observe, aqui, e lectio difficilior] no vocabulário, e podemos considerar essas
diferenças como sendo mais provavelmente originais. Ademais, poesia não é tão rigidamente fixa a ponto de
proibir pequenas variações nos refrões, especialmente se um cântico é apresentado por um cantor como no caso
do Salmo 49.” Ver também SAUR, 2015, p. 192-3. 829
DUNN, 2009, p. 210; RAABE, 1990, p. 79. 830
ESTES, 2004, p.70.
124
Se o rico insensato tivesse dado ouvidos à sabedoria e ao “entendimento” (תבונות) (v.
4) proposto no início do salmo, certamente ele não seria alguém que “não entende” ( ולא
A tolice dos ricos e poderosos consiste de fato na falta de ‘entendimento’; por não“ 831.(יבין
entenderem plenamente as dimensões da morte, é inevitável que eles também não entendam
de modo pleno as dimensões da vida”.832
Como ressaltado por Donald K. Berry, a raiz verbal בין (“entender”) e seus termos
derivados se aplicam às ações de Deus na criação e preservação do mundo (Jó 26.12; Pv 3.19)
e auxiliam a pessoa sábia a distinguir entre a tolice e a sabedoria e entre a impiedade e a
retidão, tornando-se o objetivo final do estudante da sabedoria (Pv 2.3 com Jó 28.12).833
Novamente, “entender” implica muito mais que um exercício intelectual, significa
também, e principalmente, um caráter íntegro e obediência a YHWH:834
“Os homens maus
não entendem [יבינו] a justiça, mas os que buscam YHWH entendem [יבינו] tudo” (Pv 28.5).
Em Isaías 6.9-11, a indisposição da nação de Israel em “entender” (בין) a mensagem
anunciada pelo profeta os impediria de ser converter de seus maus caminhos e, assim,
receberiam o juízo divino de cidades “desoladas” e uma terra totalmente “assolada”.835
Em
Salmos 92.6-8, o “insensato” (כסיל)836
“não entende” (לאיבין)837
(v. 7) de modo proposital as
“obras de YHWH” (v. 6) e, assim, age como “os ímpios” (רשעים) e pratica a “maldade” (און);
por isso, “serão destruídos para sempre” ( מדםעדי־עדלהש ).
No Salmo 49, não é diferente: a constante recusa do rico “insensato” (כסיל) (v. 11)
em entender (יבין דרכם) resulta no triste destino (v. 21) (לא este é o destino”, v. 14) da“ ,זה
morte repentina (v. 15), “como os animais [que] perecem” (v. 21).
831SAUR, 2015, p. 193-4. 832
CRAIGIE, 1983, p. 360. Derek Kidner observa: “Conclama-se à coragem e à fé com visão clara; e o estribilho
final apresenta sua lição ao mudar de modo deliberado sua forma anterior [...]: ‘O homem, revestido de
honrarias, mas sem entendimento, é antes como os animais que perecem’” (KIDNER, 1980, p. 206). 833
BERRY, 1995, cap. 1 (edição kindle). 834
ROSS, 1991, p. 1103. 835
Ver análise desse texto em SMITH, Gary V. Isaiah 1–39. NAC. Nashville: Broadman & Holman, 2007. p.
194ss; CHILDS, Brevard. S. Isaiah. Louisville, London: Westminster John Knox, 2001. p. 56ss. 836
Cf. o mesmo termo em Sl 49.11. 837
Cf. o mesmo termo em Sl 49.21.
125
3. SABEDORIA, RIQUEZA E OPRESSÃO: O CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL
DO SALMO 49
3.1. O “consenso” da datação pós-exílica do Salmo 49: uma exposição crítica
Há algum tempo, estabeleceu-se um “consenso” de que os salmos sapienciais são por
natureza pós-exílicos838 e teriam sido produzidos por escribas judeus do período do segundo
templo, que se consideravam os herdeiros dos profetas e antigos salmistas.839 Essa ideia
desenvolvida por Mowinckel de uma “salmografia erudita”840 com perspectiva mais
racionalista e produzida por um grupo de sábios escribas de época posterior841 tem sido
pressuposta nas análises de eruditos posteriores,842 embora cada vez mais se rejeite a
concepção de que esses salmos sapienciais não tiveram “origem nos cantores do templo, mas
eram de uma natureza realmente particular, sem mais alguma relação direta com o culto”.843
A leitura do comentário de Gerstenberger revela a aceitação da tese de Mowinckel de
que os salmos de sabedoria são pós-exílicos:
Sua aparência transformada e sua mensagem diferente devem-se unicamente às
condições alteradas de adoração durante o Exílio e posterior a ele. A estrutura
política e social de Israel havia mudado. Temos de visualizar as comunidades de
judeus espalhadas por todo o mundo, não mais desfrutando a proteção de seu estado
nativo.844
No entanto, há um aspecto de outra profissão que desempenhou um papel
significativo na reconstrução da época pós-exílica [...] sem a dedicação dos escribas
à Lei de Moisés, Israel não teria se recuperado. O próprio Esdras era um escriba (Ed
7.1-10; Ne 8.4) e quem deveria ler a torá (Ne 8.4; v. 2 indica que ele era um
838
Sobre esse tema, ver a análise de DELL, 2004a, p. 452-3; GOULDER, 1982, p. 182-3. 839MOWINCKEL, 1969, p. 208; MOWINCKEL, 2004, p. 211-3. 840Expressão criada em MOWINCKEL, 1969, p. 208. 841MOWINCKEL, 2004, p. 93-4. 842KRAUS, 1993, p. 734-7, por exemplo, entende que o salmo é tardio (pós-exílico) e expressa uma esperança de
vida pós-morte dos pobres que sofrem sob a opressão dos ricos. O autor é um pobre que aguarda ser resgatado da
morte, em contraste com o destino do ímpio. Gerhard von Rad aceita, sem uma análise crítica profunda, tanto a
ideia de que os salmos são pós-exílicos quanto a visão de que eles estavam dissociados do culto: “Em qualquer
caso, o ‘Sitz im Leben’ desses poemas não pode estar no culto. [...] O círculo ao qual pertencem esses salmos às
vezes é mais amplo e, em outras, mais restrito, o que não deve surpreender, tendo em vista a ausência de
características exatas no que diz respeito ao gênero. Claramente, estamos aqui diante de uma espécie de poesia
escolar, que foi apresentada aos alunos nos tempos pós-exilicos. Também é possível que os sábios tenham
escrito esse tipo de oração visando à própria edificação” (VON RAD, 1973, p. 71-2 [itálico acrescentado]). Da
mesma forma, Leopold Sabourin aceita as conclusões de Mowinckel, sem questioná-las: “O problema, na
exegese de salmos, [...] não são os salmos cultuais, mas os não cultuais [...] originados nos círculos dos ‘sábios’,
os líderes eruditos das ‘escolas de sabedoria’. Na mais tardia salmografia, dissociada de situações claras de culto,
os escritores erutidos tentaram aderir às antigas regras de composição, mas sem muito sucesso...” (SABOURIN,
1974, p. 371). 843MOWINCKEL, 1969, p. 211. Ver as críticas a essa ideia em SNEED, 2011, p. 61-4; DELL, 2004a, p. 445-51. 844
GERSTENBERGER, 1988, Introduction to cultic poetry 4.f. (edição kindle).
126
sacerdote também). Como Esdras, inúmeros escribas devem ter se ocupado em
copiar e proclamar a lei nas comunidades judaicas pós-exílicas. [...] O conteúdo e a
forma dos salmos de sabedoria do AT e a literatura sapiencial pós-canônica revelam
o ativo envolvimento desses homens eruditos com as questões litúrgicas.845
Uma das razões para datar os salmos sapienciais, em especial o capítulo 49, no
período pós-exílico é a estratificação social entre ricos e pobres refletida de modo muito claro,
por exemplo, no livro de Neemias (Ne 5.1-13). Aqui, há uma discussão sobre qual seria o
grupo responsável pela produção. Pleins relaciona a crítica à riqueza dos salmos sapienciais
(esp. Sl 49 e 73) com um período sacerdotal pós-exílico, em que houve uma fusão dos papeis
de sábios, profetas e sacerdote e em que os textos de sabedoria passaram a proclamar a mesma
justiça social dos profetas pré-exílicos.846
Gerstenberger associa os salmos de sabedoria às
classes mais baixas da hierarquia profética, aos levitas e aos escribas, que assumiram o papel
de aconselhar indivíduos e grupos em aflição e passaram a defender a causa desses
marginalizados.847
Rainer Albertz elaborou a tese, seguida por Spangenberg, de que havia dois grupos
de classe alta no período pós-exílico. O primeiro grupo desfrutava de sua posição e era
indiferente ao pobre, fazendo empréstimos a juros altos e tirando proveito da crise econômica
(Ne 5.7; Ml 3.5). O segundo era representado por Neemias, compassivo com os pobres e
buscava aliviar o sofrimento deles, mesmo que isso afetasse suas condições financeiras
pessoais (Ne 5.9,15).848
Segundo os estudiosos, o autor do Salmo 49 fazia parte do segundo
grupo e escreveu sua reflexão poética tanto como um encorajamento para os ricos piedosos,
que não colocavam sua confiança na fortuna (v. 8,16), quanto como uma crítica aos ricos
indiferentes aos pobres e que os oprimiam, colocando sua confiança nas riquezas, mostrando-
lhes que a riqueza é passageira e a morte é inevitável (v. 11,18).849
845
GERSTENBERGER, 1988, cap. 1.1 (edição kindle, itálico acrescentado). 846PLEINS, 2003, p. 432-7. 847GERSTENBERGER, 1988, cap. 1.2 (edição kindle). 848ALBERTZ, 1999, p. 667-76; SPANGENBERG, 1997, p. 338-9. 849ALBERTZ, 1999, p. 675-7; SPANGENBERG, 1997, p. 338-9. Observe-se que essa tese também é seguida por
Tércio M. Siqueira em seu Comentário de Salmos (no prelo): “ [A] linguagem deste salmo é própria de uma
facção da classe alta da comunidade dos judeus, no período pós-exílico. Esta classe compunha-se de dois grupos:
(a) os judeus funcionários públicos ligados ao Império Persa e proprietários de terra cujas mentalidades
individualista desenvolvia uma prática religiosa bastante arrogante e egoista; (b) judeus, também membros da
classe alta, que expressavam uma prática piedosa voltada para os pobres e explorados. O Salmo 49 é fruto da
crise social que caiu sobre a comunidade dos judeus, na segunda metade do século V aC (cf. Sl 37, 52, 62, 73, 94
e 112). A reportagem do capítulo 5 do livro de Neemias expõe o estado do conflito vivido pela sociedade
judaica. Evidentemente que o autor do Salmo 49 encontra-se entre os que praticavam a lealdade para com as
famílias pobres. Por isso, é muito significativo observar que na comunidade judaica existia pessoas sensíveis à
situação dos pobres. A intenção do salmista era desafiar, no Templo, a posição dos bem-abastados judeus que
negavam às instruções da Torá. [...] Essa crise social, do século V aC, fez produzir uma rica literatura que
127
Além do tema da estratificação social como razão para uma datação pós-exílica,
David Pleins também elabora um quadro em que pressupõe certo desenvolvimento de crítica
social da literatura de sabedoria. Ele afirma que as máximas dos mestres da elite urbana do
livro de Provérbios não estabelecem uma crítica social como fizeram os profetas pré-exílicos,
mas estimulam apenas a prática da caridade (Pv 14.31; 19.17; 21.13; 22.9), relacionando a
pobreza com a preguiça (Pv 6.6-11; 10.4; 12.11; 19.15; 20.4) e mantendo as distinções de
classes socioeconômicas (Pv 14.31; 17.5).850
Pleins argumenta, então, que é apenas no
período exílico/sacerdotal, com os livros de Jó, Eclesiastes e o Salmos 49 e 73, que os sábios
passam a criticar o caráter efêmero das riquezas e a defender a ideia de que justos sofrem nas
mãos dos ímpios.851
Essa oposição entre a antiga tradição sapiencial e os grupos proféticos e sacerdotais
pré-exílicos é bastante enfatizada por R. B. Y. Scott, que vê os sábios do período monárquico
como “orientados para o indivíduo”, com um foco secular e mantendo-se indiferentes à
preocupação de “sacerdotes e profetas com a ‘história da salvação’”.852
Segundo o estudioso,
foi somente no período pós-exílico que as três correntes religiosas e teológicas dos profetas,
sacerdotes e sábios foram combinadas em uma “simbiose” de piedade com a antiga tradição
sapiencial e produziram textos como os salmos de sabedoria.853
Embora seja bastante atraente a tese elaborada por Mowinckel e desenvolvida por
estudiosos posteriores acerca dos salmos de sabedoria, em especial o 49, como pós-exílicos,
refletindo conflitos socioeconômicos tardios, um desenvolvimento religioso na crítica social e
uma aproximação das outras tradições, ela tem várias fraquezas e não se impõe como uma
tese definitiva.
Primeiramente, a estratificação social que produzia temor nas pessoas quando “um
homem alcançar riquezas” (Sl 49.17) e que era fruto da “maldade” dos que “confiam” nas
representou um poderoso desafio ético-religioso em toda a comunidade. Evidentemente que foram os sábios que
agiram em defesa dos explorados pela classe alta do povo judeu. Os sábios não foram os únicos que operaram
em favor pobres (cf, Ne 5).” (SIQUEIRA, Salmo 49 [no prelo]) 850PLEINS, 1987, p. 61-78. 851PLEINS, 2001, p. 432-7. John Day apresenta basicamente a mesma concepção que Pleins acerca da divisão de
dois tipos de literatura de sabedoria, sem uma dependência direta. Segundo ele, havia uma abrodagem mais
“ortodoxa”, em que os principais representantes eram o livro de Provérbios e os Salmos 1 e 112, e uma
abordagem “questionadora”, cujos textos representativos eram Jó, Eclesiastes e os Salmos 49 e 73 (ver DAY,
1990, p. 55). 852SCOTT, 1971, p. 17-20. 853SCOTT, 1971, p. 190-2 (cf. p. 17-18).
128
riquezas (49.6,7) não se constitui exclusividade da era pós-exílica, mas ocorre em vários
textos da bíblia Hebraica como uma realidade pré-exílica.854
Isaías de Jerusalém, por exemplo, retrata de forma vívida o conflito socioeconômico
e critica a ampliação egoísta de latifúndios na segunda metade do século VIII A.E.C:855 “Ai
dos que ajuntam casa a casa, reúnem campo a campo, até que não haja mais lugar, e ficam
como únicos moradores no meio da terra!” (Is 5.8, ARA). Da mesma forma, Miqueias,
originário de uma aldeia do interior em Judá, expõe os problemas de corrupção e injustiça
praticados pelos dirigentes da nação: “Os seus cabeças dão as sentenças por suborno, os seus
sacerdotes ensinam por interesse, e os seus profetas adivinham por dinheiro; e ainda se
encostam ao SENHOR, dizendo: Não está o SENHOR no meio de nós? Nenhum mal nos
sobrevirá” (Mq 3.11, ARA).856
Sem dúvida, as imagens plásticas dos profetas ficaram na memória, jamais
esquecidas nem perdoadas: a comparação das mulheres da elite com vacas gordas de
Bashan (Am 4.1), as descrições daqueles que ficam estirados e se banqueteiam nas
camas (Am 2.8; 6.4ss.; Mq 2.2), a insaciável cobiça por mais terra e mais posses
(Mq 2.2s.; Is 5.8).857
O historiador deuteronomista revela que o uso da máquina pública para oprimir o
povo comum já estava presente desde os primórdios da monarquia instituída em Jerusalém,
com os excessivos encargos tributários sobre a nação, os trabalhos forçados858
e a
concentração de construções e riqueza na capital e com a elite política (cf. 1Sm 8.10-18; Jz
inicialmente nascera com funções públicas de organização e defesa passa, pouco a pouco, a
ser um autêntico poder de classe (a classe que se constitui nele) para manter e aumentar a
exploração”.860
854GOTTWALD, 2001, p. 233-4. O próprio Gerstenberger reconhece que a estratificação econômica e a crise
social já haviam começado no período monáquico: “Por causa de seus interesses econômicos e militares
centralizados, a monarquia deu oriem a um feudalismo que explorava cruelmente os pequenos proprietérios de
terra e o proletariado urbano e agrário (Am 2.6-8; 5.11,12; Is 5.8-10)” (GERSTENBERGER, 1988, cap. 1.2
[edição kindle]). 855GOLDINGAY, 2001, p. 53. 856KAEFER, 2015, p. 98-9; LIVERANI, 2014, p. 201. Veja a crítica social contra o latifundiarismo proferida por
Miqueias: “Se cobiçam campos, os arrebatam; se casas, as tomam; assim, fazem violência a um homem e à sua
casa, a uma pessoa e à sua herança” (Mq 2.2). 857CRÜSEMANN, 2009, p. 161. 858VAUX, 2004. p. 173-5. 859BRINDLE, 1984, p. 223-30; MERRIL, 2003, p. 338-9. 860DA SILVA, 2011, p. 24-5.
129
Essa opressão continuou até o fim da monarquia antes da conquista definitiva de
Babilônia, como fica evidente na crítica do profeta Jeremias a Jehoaquim861
por sua “gestão
de poder”, movida por ganância e expressa na prática da injustiça e opressão (Jr 22.13-19).862
Em Jeremias 5.26-27, o profeta faz referência a pessoas “perversas” (רשעים) que “se
enriqueceram” (ויעשירו) à custa de outros, fazendo dos homens vítimas de suas maldades e os
tratando como um caçador que persegue pássaros.863
“Os pecados eram tanto de omissão
judicial quanto de ordem econômica. Apesar da posição social de poder que os perpetradores
desfrutavam, eles deixaram de defender a justiça”, pois “fecharam os olhos para as decisões
erradas” e nada fizeram para assegurar “direitos legais dos membros marginalizados da
comunidade”.864
Portanto, não há como estabelecer uma datação pós-exílica para o Salmo 49 com
base nas crises sociais da comunidade à qual o salmista se dirige, pois elas também exisitiram
de forma abundante e intensa no período monárquico de Judá. Assim, resta analisar o
argumento socioreligioso em favor da autoria pós-exílica.
A concepção de que o movimento sapiencial pré-exílico esteve em constante conflito
com o movimento profético,865
distante do âmbito do culto,866
com um foco secular e
mantendo-se distante “dos interesses e métodos das tradições proféticas e sacerdotais
religiosamente dominantes”,867
tem sido questionada há algum tempo.
Em sua obra sobre a escola deuteronomista do templo de Jerusalém no século VII
A.E.C., Moshe Weinfeld indicou as estreitas ligações entre a literatura sapiencial e a teologia
deuteronômica, a qual ele entendia estar ligada aos sacerdotes do templo de Jerusalém e ser a
base da reforma josiânica.868
André Lemaire também observa que “em Israel, assim como em
outras nações do Antigo Oriente Próximo, a sabedoria não era irreligiosa. Ao contrário, o
861Aqui, em vez de seguir as traduções de ARA ou da BJ, estabeleço uma tradução/transliteração aproximada
para o nome de יםיהויק , designando-o Jehoaquim. Seu filho será traduzido/transliterado por Jehoakin. 862LIVERANI, 2014, p. 229; CRÜSEMANN, 2009, p. 172-3. 863
ARCHER; WALTKE, 1999, p. 705-6. 864ALLEN, 2008, p. 81. 865WHYBRAY, 1972, p. 9-10. 866VON RAD, 1973, p. 71-2; MOWINCKEL, 1969, p. 208-11. 867SCOTT, 1971, p. 17-20; ver PEINS, 2001, p. 436-7. 868WEINFELD, 1972, p. 244-281. Em um trecho do livro, após fazer várias comparações entre a textos da
tradição sapiencial e o Deuteronômio, ele conclui: “Vimos, portanto, que, em todos os casos em que as pasagens
deuteronômicas tem paralelos claros e literais com a literatura de sabedoria, as prescrições sapienciais
demonstram estar em um contexto original e mais natural. Portanto, podemos apenas concluir que foi o livro de
Deusteronômio quem adotou o material temático específico da literatura de sabedoria, não o contrário” (p. 274).
130
comportamento religioso (‘o temor do Senhor’) desempenhou um papel dominante na
sabedoria tradicional”.869
Por ser a obra sapiencial reconhecidamente mais antiga, remontando em grande parte
ao período monárquico,870 o livro de Provérbios apresenta claros exemplos de como os sábios
do período pré-exílico estavam preocupados e envolvidos com a vida cultual de Israel. Uma
das máximas sapienciais critica o adorador que apresenta um sacrifício sem um caráter
íntegro: “O sacrifício dos perversos é abominável ao SENHOR, mas a oração dos retos é o seu
869LEMAIRE, 1990, p. 178. 870Vários estudiosos têm reconhecido a natureza palaciana de grande parte das máximas de Provérbios e sua
identificação com obras bem antigas do Egito e da Mesopotâmia que também estavam ligadas ou à monarquia ou
às escolas nos templos. Depois de um estudo profundo sobre o contexto social e teológico de Provérbios,
Katharine Dell reconhece que as seções 10.1—22.16; 22.17—24.22; 25—29; 30.1-14; 31.1-9 expressam
claramente um contexto palaciano (DELL, 2006, p. 88-9; 195-197) e que mesmo Provérbios 30.15-33, cujas
máximas refletem uma sabedoria da natureza, remontam ao tipo de sabedoria cultivada por Salomão em 1Rs
4.31-34 (DELL, 2006, p. 89). Então, ela conclui que a seção acrescentada por último no livro (Pv 1—9) tem
relação muito próxima com o movimento deuteronômico, o que indica uma coleção sapiencial editada entre o
período do século VII e o exílio; ela diz: “Entretanto, eu argumentaria aqui que nenhuma parte de Provérbios 1—
9 precisa ser datada bem depois do exílio” e ainda acrescenta que o exílio seria o “terminus ad quem para a
produção dessa seção e possivelmente a de todo o livro” (DELL, 2006, p. 196). Em outro texto, ela admite a
possibilidade de que os capítulos 1—9 tenham sido reunidos/editados no exílio ou imediatamente posterior a ele,
porém, sugere que boa parte desse trecho origine-se do período monárquico (DELL, 2009, p. 229-240)
Christopher Ansberry publicou sua pesquisa de doutorado sobre o livro de Provérbios em que compara o
propósito dos textos didáticos do Egito e da Síria/Mesopotâmia com os do antigo Israel. Ele mostra como as
obras egípcias, bem como as mesopotâmicas, visavam à preparação daqueles que trabalhariam na corte, portanto,
foram produzidos, em sua maioria no contexto da elite palaciana. Ele examina as várias seções do livro de
Provérbios e conclui que, devido ao contexto do discurso, o desenvolvimento do material e as ênfases temáticas,
a obra pode ser considerada o documento palaciano que servia para “prover o sensus communis ao jovem
palaciano ingênuo a fim de transformar sua disposição moral, introduzi-lo aos valores básicos os valores do
mundo sociorreligioso e lhe apresentar uma visão perspicaz de vida em suas várias dimensões” (ANSBERRY,
2011, p. 187). André Lemaire também defende um contexto social palaciano para o livro de Provérbios:
“Embora a data final do Livro de Provérbios ainda seja tema de debate, a influência da ‘Instrução de
Amenemope’ sobre Provérbios 22.17—23.12, bem como a importância de outros contatos literários com a
tradição de sabedoria do Egito, poderia ser melhor explicada por um contexto tanto no período salomônico
quanto no reinado de Ezequias. Ademais, em minha avaliação, esse livro é melho entendido como um ensino de
sabedoria transmitido no contexto de uma escola, mais preciamente uma escola monárquica, durante o período
do primeiro templo” (LEMAIRE, 1990, p. 172). Ver ainda a mesma conclusão de Bruce Waltke quanto à data
pré-exílica e o contexto palaciano: “As admoestações e provérbios no texto bíblico também parecem ter
originado-se nos lares cortesãos [...] Além disso, os temas de Provérbios se encaixam melhor nesse contexto.
Alguns deles são mais apropriados para os reis e para aqueles associados com eles, e.g., provérbios relacionados
à nação (11.14) ou ao rei (16.10; 20.2); jantares com a realeza (23.1-3); comportar-se de um modo digno de um
rei (31.4)” (WALTKE, 1979, p. 231-2). J. A. Loader, embora não atribua o processo de compilação e redação de
Provérbios à nobreza, reconhece que as coleções do livro foram reunidas e escritas por uma “classe de
profissionais” que trabalhava na corte real: “Redatores como os ‘homens do rei’ tinham propósitos específicos
com a seleção, edição e transmissão dos provérbios. Seria uma surpresa se isso [o material coletado] não
demonstrasse seu trabalho, isto é, tanto na forma do livro quanto nos provérbios individuais como temos hoje.
Particularmente, espera-se que o próprio Sitz im Leben e sua associação com a corte no Israel pré-exílico sejam
refletidos nos Provérbios.” (LOADER, 1999, p. 233). Até mesmo R. N. Whybray, que considera a seção 1—9
um trecho tardio (pós-exílico), reconhece “que a corte judaica ainda era um centro de atividade sapiencial
trezentos anos depois de Salomão, e é razoável supor que grande parte de Provérbios em sua forma atual seja
produto do desenvolvimento literário sapiencial contínuo ao longo de todo o período da monarquia, ou seja, do
século ao século VI a.C.” (WHYBRAY, 1972, p. 4-5).
cultuais nesse provérbio: a oração e o sacrifício, e a preocupação do sábio é com o modo de
vida do adorador,872
um tema de textos como os Salmos 15 e 24, bem como da tradição
sacerdotal ligada a Levítico 19.
Outro ditado sapiencial antigo está relacionado a um voto sagrado em um ambiente
cultual: “Laço é para o homem o dizer precipitadamente: É santo! E só refletir depois de fazer
o voto” (Pv 20.25). A advertência para que se avalie a condição de cumprir ou não um
determinado voto a YHWH está presente na literatura deuteronômica (Dt 23.21-23). A
referência ao “filho dos meus votos” (Pv 31.2) parece aludir à prática cultual de uma mulher
fazendo promessas a Deus em sua súplica por um filho (cf. 1Sm 1.11).873
A referência à “sorte [que] se lança no regaço” em Provérbios 16.33 parece ser uma
referência à prática religiosa dos sacerdotes para descobrir a vontade divina mediante o Urim
e Tumim (Êx 28.30; Dt 33.8; 1Sm 23.9-12). O sábio lembra que essa não é uma prática
mágica ou mecânica, mas uma forma de dispor-se a entender a vontade de YHWH (16.33b:
“mas do SENHOR procede toda decisão”, ARA).874
Esses são alguns exemplos de como o movimento sapiencial pré-exílico não era
oposto ou indiferente ao culto no antigo Israel, mas estava profundamente preocupado com a
forma correta de se adorar, pois a “religião cultual” era “uma parte importante e essencial
tanto da herança religiosa de Israel quanto da própria devoção religiosa do sábio”.875
Também é possível identificar um relacionamento entre a tradição sapiencial e os
profetas pré-exílicos, em que algumas formas e temas em comum revelam, em especial, a
influência sapiencial sobre o movimento profético.
O uso da linguagem, formas e ideias de sabedoria conhecidas da própria literatura de
sabedoria (Provérbios, Jó, Qoheleth, vários salmos) não demonstra que os autores ou
os profetas eram sábios. Isso simplesmente revela que eles conheciam essa literatura
ou tradições semelhantes a ela e compartilharam do pensamento de sabedoria geral a
israelitas instruídos.876
871Observe-se a “Instrução ao rei Merikare”: “Mais aceitável é o caráter de um justo de coração do que o boi do
ímpio” (PRITCHARD, 1969, p. 417, coluna 2). WHYBRAY, 1972, p. 88. 872LUCAS, 2015, p. 118. 873DELL, 2006, p. 179-80. 874HUBBARD, 1989, p. 327 875PERDUE, 1977, p. 211. 876
LEEUWEN, 1990, p. 298. Ver DELL, 2008, p. 141.
132
Estudiosos têm notado a influência da literatura sapiencial em Amós, profeta do século
VIII.877
Por exemplo, as perguntas retóricas do capítulo 3 (v. 3-8) e de 6.12 se assemelham
bastante com Provérbios 6.27,28; 23.29 e Jó 8.11 e estão presentes em ditados mesopotâmicos
antigos:878
Andarão dois juntos, se não houver entre eles acordo?
Rugirá o leão no bosque, sem que tenha presa?
Levantará o leãozinho no covil a sua voz, se nada tiver apanhado?
Poderão correr cavalos na rocha? E lavrá-la com bois?
Provérbios e salmos sapienciais apresentam, de modo recorrente, um chamado inicial
feito pelo mestre (cf. Sl 49.1; 78.1; cf. Pv 2.1; 5.1 7.24), conhecido também por sua
designação Lehreröffnungsruf (“exortações inaugurais do mestre”).879
O profeta Miqueias, do
interior da Judá do século VII A.E.C., usa também esse tipo de chamado: “Ouvi, todos os
povos, prestai atenção, ó terra e tudo o que ela contém, e seja o SENHOR Deus testemunha
contra vós outros, o Senhor desde o seu santo templo” (Mq 1.2)880
Além disso, o padrão “três-quatro” bastante comum em textos sapienciais da Bíblia
(Pv 30.15,18,21,29; cf. Jó 5.19; Pv 6.16-19) e de civilizações do Antigo Oriente Próximo881
são empregados também pelo profeta Amós (caps. 1 e 2) sob influência dos sábios de
Israel.882
Por exemplo: “Assim diz o SENHOR: Por três transgressões de Damasco e por quatro,
não sustarei o castigo, porque trilharam a Gileade com trilhos de ferro” (Am 1.3).883
Há também uma temática característica da literatura de sabedoria presente nos
profetas. O tema sapiencial da teodiceia, ou seja, a aparente falta de retribuição ao ímpio e de
877DELL, 2004b, p. 264. Segundo Schniedwind, o texto de Amós foi produzido no período de vida do profeta,
tese corroborada pela menção a Gate, destruída em 712 A.E.C., em Amós 6.2. O entendimento de que o profeta
havia previsto corretamente a queda de Samaria e o anúncio de futuros dias gloriosos para dinastia de Davi (Am
9.11) contribuiram para que o texto fosse preservado por escribas do reino do Sul. (SCHNIEDEWIND, 2011, p.
122-3) 878
BERRY, 1995, cap. 1 (edição kindle); VON RAD, 1973, p. 35; LASOR; HUBBARD; BUSH, 1999, p. 488-9:
“Engravidou-se ela sem cópula? Engordou sem ter comido”. Observem-se estes provérbios acádicos da primeira
metade do segundo milênio: “Acaso crescerá o fruto maduro? Como sabemos? Acaso crescerá o fruto seco?
Como sabemos?” (PRITCHARD, 1969, p. 425, coluna 2). Ezequiel 15.2,3 também apresenta uma série de
perguntas retóricas sapienciais que usam de imagens para ensinar sobre o futuro dos hierosolimitas: “[...] por que
mais é o sarmento de videira que qualquer outro, o sarmento que está entre as árvores do bosque? Toma-se dele
madeira para fazer alguma obra? Ou toma-se dele alguma estaca, para que se lhe pendure algum objeto?”
(ARA). O uso desse recurso em Ezequiel pode apontar para uma influência sapiencial sobre os sacerdotes (cf. Ez
1.1-3) anterior ao período exílico (ver adiante). 879
BELLINGER, 2012. p. 130; KRAUS, 1993, p. 91; VON RAD, 1973, p. 35-36. 880Há exemplos desse tipo de chamado também em Isaías: “Inclinai os ouvidos e ouvi a minha voz; atendei bem
e ouvi o meu discurso” (Is 28.23, ARA); “Chegai-vos, nações, para ouvir, e vós, povos, escutai; ouça a terra e a
sua plenitude, o mundo e tudo quanto produz” (Is 34.1, ARA). 881
VON RAD, 1973, p. 55. 882
CRENSHAW, 1967, p. 49. 883
LASOR; HUBBARD; BUSH, 1999, p. 497.
133
recompensa ao justo nesta vida — analisada em salmos didáticos, como 49 (vv. 6-19) e 73
(vv. 2-24), em Eclesiastes (7.15; 8.10-14) e no livro de Jó — ocorre também no livro de
Habacuque,884 em que o profeta se esforça para compreender a justiça de um Deus que
controla um mundo aparentemente sem justiça, como suas palavras iniciais indicam: “Por que
me mostras a iniquidade e me fazes ver a opressão? [...] Por esta causa, a lei se afrouxa, e a
justiça nunca se manifesta, porque o perverso cerca o justo, a justiça é torcida.” (Hc 1.3,4,
ARA).885
.
Além de empregar recursos retóricos comuns da literatura de sabedoria, o profeta
Amós também parece enfatizar temas característicos dos sábios, ao tratar do relacionamento
de Israel com as nações, ao usar palavras do movimento sapiencial como נכח (“reto”, Am
3.10; cf. Pv 4.25; 8.9; 24.26) e משפט (“justiça”, Am 5.7,15,24; 6.12; cf. Jó 29.14; Pv 18.5;
19.28; 21.15; 29.4), ao empregar pares antitéticos de palavras e demonstrar uma preocupação
com o pobre e o humilde (Am 2.7; 4.1; 5.11; 8.6).886
Isaías também utiliza ditados reais pré-exílicos de Provérbios (14.27,33;
16.10,12,13,16; 20.26,28; 21.30; 25.5; 29.4,14) para descrever o sábio messiânico ideal em
Isaías 9.1-6a e 11.1-5 e, assim, criticar de forma implícita a falha do rei e dos cortesãos
contemporâneos no exercício da sabedoria adequada a seu ofício. O mesmo profeta também
faz acusações severas e abertas contra os homens de estado usando as normas sapienciais que
se aplicavam a eles: um juiz não deveria se entregar à bebida para não corromper a justiça
nem ignorar o direito dos pobres (Is 5.11,22-23; cf. Pv 31.4,5; 20.1; 29.4,7,14,26; Ec 10.16-
17; cf. Os 7.5).887
Quando o profeta Jeremias deixou claro que cada indivíduo seria responsabilizado por
seus erros e punido por isso (Jr 31.29,30; Ez 18.2-20), não estava estabelecendo novos
padrões, mas remetendo a padrões bastante recorrentes na literatura de sabedoria (e.g.: Pv
5.22,23; 10.6,7), embora não exclusivos dela.888
Assim, fica evidente que a relação de sábios com profetas e sacerdotes não é fruto de
uma combinação tardia desses movimentos889
nem fruto de uma simbiose da piedade com a
884O trecho de Habacuque 1.2-4 é datado por Andersen de meados do século VII A.E.C. (ver ANDERSEN, 2008,
p. 24). ROBERTSON, 1990, p. 34-7, defende a data da obra no final do século VII A.E.C. 885
BERRY, 1995, cap. 1 (edição kindle). 886
HUBBARD, 1966, p. 8-9. 887
LEEUWEN, 19990, p. 302-303. 888HUBBARD, 1966, p. 11. 889PLEINS, 2001, p. 436-7.
134
antiga tradição de sabedoria (e.g., salmos sapienciais),890
mas uma realidade bastante antiga
em que sábios tiveram importante participação na produção das tradições do antigo Israel.891
Portanto, Goulder estava certo ao dizer que a “data tardia” para o Salmo 49 está
fundamentada na “visão do consenso, e não se demonstra por aramaismos no texto, como há
nos Cânticos de Subida, ou por evidências externas, como no Salmo 1”.892
Mas esse consenso
ainda é razoável? Diane Jacobson apresenta alguns comentários e questões que colocam em
xeque a tese de que os salmos de sabedoria são pós-exílicos e dissociados do culto:
A maioria dos estudiosos recentes não vê razão suficiente para excluir um contexto
cultual para os salmos de sabedoria ou salmos com elementos sapienciais. Parece
evidente que líderes e escolas de sabedoria interagiam com o culto. [...] Além disso,
a maioria está persuadida de que o pensamento sapiencial como tal está mais
relacionado com uma cosmovisão compartilhada por todos os antigos israelitas do
que com uma forma de refletir praticada apenas pelos sábios. Pode-se fazer a
pergunta se essa cosmovisão mudou consideravelmente do período pré-exílico para
o pós-exílico. [...] O que não sabemos são as diferenças ou ligações entre os
representantes da “sabedoria antiga” [...] e os escritores pós-exílicos.
[...] Estamos convidados a a examinar a evidência com grande cuidado e reconhecer
que simplesmente dizer que algo é pós-exílico não é suficiente em si para esclarecer
o que estava ocorrendo na tradição.893
Assim, abre-se caminho para a análise de uma produção pré-exílica do Salmo 49, um
texto sapiencial, numa época em que sabedoria, culto e profecia estavam em contato
constante, influenciando-se e criticando-se mutuamente, e produzindo textos de elevada
crítica social em uma estrutura poética inteligentemente estruturada.894
3.2. Salmo 49 como poesia sapiencial pré-exílica: redesenhando o processo histórico
Para a concepção do Salmo 49 como um texto sapiencial do período final da realeza
judaíta, é necessário redesenhar o processo em que o Reino do Sul tornou-se o locus de alta
produção literária. Uma das dificuldades de exegetas para aceitar a produção de textos como o
Salmo 49 em Israel na época do primeiro templo está no questionamento se havia escolas de
escribas capazes de produzir literatura como aquela encontrada na Bíblia Hebraica.895
890SCOTT, 1971, p. 191. 891DELL, 2004b, p. 265: a influência sapiencial “pode ser considerada formativa, e não simplesmente uma etapa
editorial em relação a esses textos [bíblicos] com os quais pode ser comparada”. 892 GOULDER, 1982, p. 183. 893JACOBSON, 2014, p. 152, 154. 894SNEED, 2011, p. 64, apresenta uma observação bastante pertinente em um artigo instigante: “Todos os livros
bíblicos são produtos dos escribas eruditos. Não importa que posição social eles tivessem (sacerdote, profeta,
sábio e assim por diante), todos os autores bíblicos estavam unidos em seu papel como escribas e em seu
treinamento escribal em comum. Com relação à cosmovisão dos autores bíblicos, seu papel como escribas
deveria receber mais importância do que a questão se eram ao mesmo tempo sacerdotes, profetas e sábios”. 895
LEMAIRE, 1984, p. 272-3
135
O período do século VIII A.E.C. — em que houve um processo de rápida
urbanização em Judá como resultado da expansão do império assírio e do influxo de pessoas
do Reino do Norte para o Sul com a queda de Samaria em 722 A.E.C. — parece ter
contribuído para a produção e preservação literária de diversos textos do antigo Israel, sob a
liderança de Ezequias e de seus escribas.896
Na parte final do Ferro II (séculos VIII e VII A.E.C.), Jerusalém se expandiu, sua
população cresceu, e uma grande área se formou ao redor da cidade, sendo o limite da parte
fortificada de Jerusalém definido, em especial, pelas muitas sepulturas que a cercavam.
Aldeias vizinhas sem fortificações foram construídas ao norte da cidade, e havia propriedades
agrícolas, ao derredor dela, com grandes vilas constituindo a parte mais remota do raio do
território conhecido como “grande Jerusalém”, atingindo um tamanho entre 900 e 1.000
dunans.897
Esse processo de crescimento da Judá do fim do século VIII A.E.C. e a consequente
intensificação da burocracia em Jerusalém demandou a ampliação da atividade literária na
capital e nas principais cidades associadas a ela, conforme a pesquisa arqueológica revela:
“deve-se observar que todos os sete sítios nos séculos VIII e VII contendo direta evidência de
escrita têm sido analisados em diversas conexões da perspectiva de sua dependência de
Jerusalém”, o que implica as demandas da realeza na administração da rede político-
econômica da região.898
Como Schniedewind sintetizou bem:
A urbanização seria o catalisador necessário para uma atividade literária mais
disseminada [...] as condições sociais favoreceram o florescimento da literatura
896
Ver descrição em QUICK, 2014, p. 14, 23-24. 897
MAZAR, 1990, p. 416-424; LIPSCHITS, 2005, p. 215. Ver também as descobertas de uma fortificação ao
norte da cidade que “testemunham um intenso assentamento nesse período [Idade do Ferro]” (BARKAY;
FANTALKIN, 2002, p. 49-71). Dados de uma pesquisa arqueológica realizada na Sefelá desde 1979
complementam o quadro apresentado pelas escavações arqueológicas. Durante os séculos VIII e IX, a Sefelá
experimentou um florescimento populacional, com crescimento de seus habitantes, muitos novos assentamentos
(especialmente, pequenas propriedades agrícolas) e uma ampliação das regiões habitadas. A campanha de
Senaqueribe, em 701 A.E.C., provocou uma diminuição da população, que, todavia, voltou a crescer ao longo do
século VII, experimentando um processo de refortificação e somando, ao final do século, uma área de construção
de cerca de 800 dunans nas principais cidades (FINKELSTEIN, 1994, p. 172-173; LIPSCHITS, 2005, p. 220-
221.). 898JAMIESON-DRAKE, 1991, p. 147-8. Isso também é confirmado por William Schniedewind: “No importante
aparato de um rei estavam incluídos seu escriba e a biblioteca real. Até mesmo aspirantes a reis como Abdi-
Heba, prefeito de Jerusalém no século XIV a.C., ou Mesá, chefe de Moabe no século IX a.C., tinham escribas.
Não é de surpreender que o florescimento da escrita e das artes escribais não fosse um fenômeno exclusivamente
judeu.” (SCHNIEDEWIND, 2011, p. 107). André Lemaire também observa que “escolas nas culturas vizinhas
[de Israel] parecem ter originado-se da necessidade de treinar escribas para o trabalho nas burocracias
governamentais. Com toda probabilidade houve escolas em Israel para o mesmo propósito de treinar futuros
membros da administração real...” (LEMAIRE, 1990, p. 169).
136
hebraica no séculos VIII e VII a.C. Essas mudanças na vida social do povo judeu
foram especialmente perceptíveis na cidade de Jerusalém. [...]899
O crescimento de Jerusalém foi um subproduto da ascensão do Império Assírio.
Antes de mais nada, a Assíria destruiu o reino setentrional de Israel, o que resultou
na imigração de israelitas para Jerusalém e outras cidades do Sul. [...] Em 722 a.C.,
Ezequias enfrentava um afluxo de imigrantes vindos do reino do norte derrotado.
Em vez de entricheirar suas fronteiras, Ezequias procurou integrar esses refugiados
em seu domínio, almejando assim restaurar a época de ouro de Israel, o rei Davi e
Salomão. [...] Uma burocracia real floresceu junto com a população de Jerusalém.900
Os dados da Bíblia Hebraica parecem confirmar a presença desse aparato real. Em
Provérbios 25.1, ocorre a menção aos escribas de Ezequias: “São também estes provérbios de
Salomão, os quais transcreveram os homens de Ezequias, rei de Judá” (ARA, itálico
acrescentado).901
Segundo James Crenshaw, durante o reinado de Ezequias, houve o patronato
monárquico que possibilitou a atividade escribal dos “homens de Ezequias”. Como este rei
buscou seguir Salomão em vários aspectos, parece que a referência aos “homens de Ezequias”
reflete a menção na história deuteronomista aos “teus homens”, em um elogio da rainha de
Sabá a Salomão, como uma expressão para os escribas que trabalhavam na corte em 1Rs
10.8.902
Schniedewind também observou que, embora o foco de Provérbios 25.1 seja indicar
que os provérbios ali contidos são de Salomão, a expressão “os homens de Ezequias” é
secundária, portanto, consiste no tipo de referência desinteressada que pode ser a chave para a
pesquisa histórica de que esses homens foram de fato responsáveis por registrar as máximas
de Provérbios 25—29, e não somente isso, mas também foram responsáveis pela primeira
etapa da composição da história deuteronomista.903
Halpern e Lemaire apresentam diversas
razões para uma história protodeuteronômica do livro de Reis produzida na época de
Ezequias.904
Além disso, a menção casual a Sebna em 1Reis 18.18, “escriba de estado” ou
“secretário do rei” (ספר),905
é significativa. A função do ספר ou “escriba” era muito importante
899
SCHNIEDEWIND, 2011, p. 98. 900SCHNIEDEWIND, 2011, p. 99, 101. 901
WHYBRAY, 1972, p. 146: “A referência aos homens de Ezequias, rei de Judá (cerca de 715-687 a.C), que
eram evidentemente escribas na corte real, revela que a literatura sapiencial, já associada com Salomão, ainda
era uma preocupação da corte judaíta dois séculos depois” (o primeiro itálico é do original; segundo itálico foi
acrescentado). 902CRENSHAW, 1985, p. 613-4. Em outra obra, Crenshaw faz observações semelhantes e conclui dizando: “a
posterior [depois dos conselheiros de Davi] aparição dos ‘homens de Ezequiel’ sugere que uma classe distintiva
de sábios existia no século VIII” (CRENSHAW, 1981, p. 29) 903SCHNIEDEWIND, 2011, p. 108-115. 904HALPERN; LEMAIRE, 2010, p. 143-5. 905
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 767.
137
no Antigo Oriente Próximo. As antigas tradições de escribas remontam aos centros da cultura
em cada um dos extremos do Crescente Fértil: Mesopotâmia e Egito — ambos com uma
vigorosa tradição sapiencial, com sábios profissionais que produziam extensas obras
literárias.906
Na Babilônia, a arte do escriba é bastante antiga e foi reforçada pelo
estabelecimento de escolas de escribas, cujas atividades estavam associadas a todas as etapas
da sociedade da Mesopotâmia.907
Do mesmo modo, no Egito, as escolas e seus ensinamentos
eram organizados, desde o Reino Médio, em uma proporção bem ampla, a ponto de todo
egípcio poder levar seu filho à escola no período do Reino Médio.908
A arte de escriba tornou-
se fundamental para a sociedade faraônica, tanto que, na famosa “Sátira sobre os Negócios”, a
profissão de escriba é designada, de modo eloquente, como “o maior de todos os
chamados”.909
Portanto, 2Reis 18.18 testemunha a presença de um escriba (talvez o chefe de um
grupo maior de “homens de Ezequias”) no palácio de Ezequias.910 Como Roland de Vaux
indica:
O secretário Sebna é um dos três ministros que discutem com o mensageiro de
Senaqueribe (2Rs 18.18,37; 19.2; Is 36.3,11,22) [...] esse funcionário era, ao mesmo
tempo, secretário particular do rei e secretário de Estado. Ele redige a
correspondência externa e interna, anota a soma das contribuições (2Rs 12.11);
desempenha um papel importante nos negócios públicos. É inferior ao administrador
do palácio: mas ele vem imediatamente depois do administrador do palácio em
2Reis 18.18s; Isaías 36.3s, e a missão que ambos realizam em conjunto põe em jogo
a sorte do reino.911
906
CRENSHAW, 1981, p. 55. 907
PATTERSON, ספר, in: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 632. 908
LEMAIRE, 1984, p. 275. 909
PATTERSON, ספר, in: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 632. “No Egito do Novo Império, o título
“escriba real” é freqüente, seja só, seja unido a outras funções. Mas, acima dos inumeráveis dedicados à escrita,
alguns escribas reais ocupam funções de primeiro plano e participam em todos os negócios do Estado” (DE
VAUX, 2004, p. 162). 910Rollston afirma: “O fato de um escriba estar presente, juntamente com outros oficiais, nas negociações com a
delegação de Senaqueribe, é também indicativo do poder e da proeminência alcançados às vezes por um escriba
real (2Rs 18.18)” (ROLLSTON, 2010, p. 89). Lester Grabbe faz a interessante síntese: “A Bíblia hebraica
pressupõe que os escribas foram empregados na administração dos reinos de Israel e Judá: os escribas de Davi
(2Sm 8.17; 20.25; 1Cr 18.16; 24.6); escriba de Salomão (1 Kgs 4.3); um escriba real no tempo de Jeoás (2Rs
12.11; 2Cr 24.11); Sebna, o escriba (2Rs 18.18,37; 19.2); Safã, o escriba (2Rs 22.3,8-10, 12; 2 Cr 34.15,18,20);
o escriba do comandante do exército (2Rs 25.19; Jr 52:25). Jeremias tem uma série de referências aos escribas: a
câmara de Gemarias, filho de Safã, o escriba no templo (36.10); câmara do escriba no palácio do rei (36.12);
Elisama, o escriba (36.12,20,21); Baruque, o escriba, desempenha um papel proeminente (36.26,32); Jeremias
foi preso na casa de Jônata, o escriba (3715.20).” (Ver GRABBE, 2014, p. 107) 911
DE VAUX, 2004, p. 162.
138
Como os escribas não estavam limitados ao palácio do rei, mas poderiam estar
associados ao templo ou ao ofício profético,912
observa-se o desenvolvimento do trabalho de
escribas no templo de Jerusalém, ocorrendo décadas depois de Ezequias, na segunda metade
do século VI A.E.C. O processo de urbanização do século VII A.E.C. gerou, ao que tudo
indica, uma “democratização” da escrita muito mais ampla do que David W. Jamieson-Drake
havia defendido,913 conforme a obserção de Alan Millard sobre a Judá a partir de 750 A.E.C.,
depois de uma análise das evidências arqueológicas e epigráficas:
A variedade de inscrições antigas — desde textos monumentais em prédios, tumbas
e obras públicas até cartas, selos, listas e nomes riscados em potes — certamente
indicam um difundido uso da escrita, especialmente quando se considera que a vasta
maioria dos documentos foi escrita em papiro, que não teria sobrevivido ao clima
úmido de Israel.914
Assim como ocorria no antigo Egito, em que o templo era uma extensão funcional da
instituição real,915 os escribas no templo de Jerusalém passaram a ter uma importância central
e o santuário tornou-se um dos principais loci de escrita na época de Josias:
Para compreender de que maneira o lugar social da escrita havia se modificado,
retornemos à famosa descoberta do pergaminho: “O sumo sacerdote Helcias disse ao
secretário Safan: ‘Encontrei na casa de YHWH o pergaminho da lei’” [2Rs 22.8]. O
fato de que tenha sido o sumo sacerdote que encontrou o pergaminho no templo é
crucial para compreender o novo lugar social da escrita: os sacerdotes e o templo.916
Antes de Schniedewind, André Lemaire já havia chamado a atenção para o fato de
que a famosa descoberta do “livro da lei/instrução” (התורה na “casa de YHWH” (2Rs (ספר
22.8) pelo sacerdote Hilquias (22.23) poderia ser uma indicação da existência de uma
biblioteca em uma sala no templo de Jerusalém, em que os arquivos e textos eram
armazenados.917
Em sua análise sobre a relação dos sábios do templo com o livro de
Deuteronômio, Lemaire indica que o papel principal na história da descoberta do livro da lei
em 2Reis 22 foi desempenhado por “Safã, filho de Azalias, filho de Mesulão, o escriba [ספר]”.
912SNEED, 2011, p. 62. James Crenshaw observa: “O locus da tradição sapiencial no Egito era faraônico,
enquanto na Mesopotâmia, os sábios atuavam primariamente no templo [...] Enquanto a sabedoria egípicia se
concentrava em fornecer instrução para uma vida bem sucedida na corte real, o seu correspondente
mesopotâmico dava especial atenção em garantir o bem estar por meio de práticas cultuais” (CRENSHAW,
1981, p. 56). Christopher Ansberry observa que os textos sapienciais egípcios também estavam ligados ao
templo e aos sacerdotes (ver ANSBERRY, 2011, p. 18-19). No outro espectro, Tremper Longman chama a
atenção para o fato de que “os escribas profissionais” atuavam “nas várias partes da sociedade, particularmente a
corte real e o templo”, indicando que a E.DUB.BA.A (escola mesopotâmica) não servia apenas ao templo, mas
ao palácio também (LONGMAN III, 2017, p. 192 [edição kindle]). 913JAMIESON-DRAKE, 1991, p. 148. 914MILLARD, 1987, p. 27. 915ANSBERRY, 2011, p. 34. 916SCHNIEDEWIND, 2011, p. 153-4. 917LEMAIRE, 1990, p. 176.
139
Ele foi enviado pelo rei Josias ao templo (v. 3), recebeu a mensagem e o livro de Hilquias, o
sumo sacerdote (v. 8), leu o livro para o rei (v. 10) e foi consultar a profetisa Hulda (v. 14).
Posteriormente, membros da família de Safã também tiveram um papel importante em relação
a outro livro, que continha os oráculos de Jeremias: “Leu, pois, Baruque naquele livro as
palavras de Jeremias na Casa do SENHOR, na câmara [בלשכת] de Gemarias, filho de Safã, o
escriba, no átrio superior, à entrada da Porta Nova da Casa do SENHOR, diante de todo o
povo” (Jr 36.10, ARA). Depois disso, o rolo de Jeremias foi depositado em outra “câmara” ou
“sala” (בלשכת) no palácio (36.20).918
O HALOT define לשכה como uma sala geralmente em um prédio religioso com
bancos de pedra dos três lados.919
A referência à לשכה associada a um descendente de um
“escriba” (ספר) e à leitura pública de um “livro” (ספר) no templo parece indicar uma sala em
que a atividade escribal era exercida, ao menos, em seu papel de ensino.920
O relato do
Cronista parece sugerir, fortemente, a presença de salas anexas (לשכות) no entorno do templo,
que tinham vários propósitos: armazéns, locais para os levitas ficarem (1Cr 9.33; 28.12; 2Cr
31.11)921 e, conforme Jeremias 36.10, o ambiente em que escribas desempenhavam suas
funções. Tendo em vista essa ligação entre o templo e a atividade escribal nos dias de Josias e
de Jeremias, parece bastante razoável a tese de Moshe Weinfeld de que o movimento
deuteronomista estava associado a um grupo de sábios do templo de Jerusalém nos dias de
Josias.922
Nessa relação entre o templo e o movimento sapiencial, haveria grande possibilidade
de que salmos sapienciais fossem compostos para celebrações do culto em Jerusalém no
período final do século VII a.C., pois a sabedoria era vista como “parte da mais antiga
918LEMAIRE, 1990, p. 177. 919KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 536-7. 920KAISER, לשך, in: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 483; LEMAIRE, 1990, p. 177-8. 921KELLERMAN, Diether, לשכה. In: BOTTERWECK, 1997, v. 8, p. 35-6. 922WEINFELD, 1972, p. 244-281, apresenta diversos paralelos entre Provérbios e Deuteronômio, indicando que
a literatura sapiencial precede à deuteronômica. Christopher Ansberry também estabelece várias ligações
temáticas entre os dois livros e diz: “A visão moral do livro de Provérbios procura reforçar o paradigma
deuteronômico de liderança. Semelhante ao programa deuterônico, o material sapiencial fornece aos jovens
nobres e inexperientes os valores fundamentais e as atitudes formativas da existência social: delineia o ethos
tradicional que devem incorporar para liderar os encarregados dos seus cuidados. As coleções individuais
incluem preocupações convencionais com material cortesão para inculcar valores estabelecidos e conselhos
práticos em seu público. Ao fazê-lo, o livro não só cultiva virtudes que coincidem com os interesses da
comunidade, mas também identifica certos valores que correspondem aos interesses, aspirações e tentações de
seu nobre destinatário. Esse programa ético complementa o modelo paradigmático de liderança apresentado no
Deuteronômio. Na visão deuterônica, os líderes das instituições sociais deveriam incorporar os valores da
comunidade e promover a justiça dentro de suas respectivas esferas sociais.” (ANSBERRY, 2011, p. 188)
140
autoexpressão de Israel em suas festas de adoração, bem como em outras áreas da vida, a
ponto de se manifestar em alguns salmos que revelam a influência sapiencial”.923
Assim,
Martin J. Buss parece estar correto em indicar que o Salmo 49 corresponde com toda
probabilidade à Judá pré-exílica.924 Markus Saur também entende que esse salmo é anterior ao
exílio, remontando a um período em que a realeza ainda não havia sido afetada pela
destruição babilônica.925
O desenvolvimento da análise anterior sobre o desenvolvimento histórico pré-exílico
da literatura sapiencial, leva à conclusão que se deve datar o Salmo 49 no final do século VII
A.E.C., provavelmente posterior a Josias. Existem elementos linguísticos que favorecem essa
datação, além do fato de que a coleção dos “filhos de Corá” geralmente é atribuída ao pré-
exílio.926 Por questão de limites deste projeto, exporemos a seguir somente alguns aspectos
linguísticos que parecem apoiar uma data no final do período pré-exílico.
Primeiramente, uma palavra significativa do Salmo 49 relacionada à crítica
socioeconômica — tema predominante dessa poesia sapiencial — ocorre nos profetas pré-
exílicos e em Ezequiel, mas não nos pós-exílicos.927
O substantivo אביון (v. 3: “pobre”) não
aparece em nenhum profeta considerado pós-exílico pela crítica bíblica (Ag, Ml, Zc, Is 56-
66),928
mas ocorre cinco vezes em Amós (2.6; 4.1; 5.12; 8.4,6),929
três vezes na primeira parte
do livro de Isaías (14.30; 29.19; 32.7; uma vez no chamado “Pequeno Apocalipse”930
: Is
25.4),931
quatro vezes na seção reconhecida como dominantemente pré-exílica de Jeremias (Jr
923DELL, 2004a, p. 458; LEMAIRE, 1990, p. 179: “[Os salmos] parecem refletir a variedade de tradições no
antigo Israel, e alguns deles dão evidência de que a sabedoria também estava presente no templo”. 924BUSS, 1963, p. 387. Embora discorde-se aqui da classificação feita por Buss de que o salmo é “quase secular”
e de natureza “não deuteronômica”. 925SAUR, 2015, p. 199, 201. Embora discordemos de Saur de que os salmos 49 e 73 remontem à época dos
antigos reinos de Israel e Judá. Parece melhor um período em que apenas o Reino do Sul ainda mantinha-se
firme (ver adiante). Como Goulder observou, não há nada no texto que indique uma data tardia para o salmo, a
não ser o “consenso” de que a literatura sapiencial é tardia (GOULDER, 1982, p. 182-3). 926Ver análise da epígrafe do Salmo 49. 927Nesta parte, não faremos comparação com os livros sapienciais, embora haja muitos vocábulos que ocorram
em Provérbios (texto basicamente pré-exílico), outros aparecem em Jó e em Eclesiastes, que são considerados
pós-exílicos pela crítica bíblica. Nesses casos, as palavras características da literatura sapiencial (esp. Pv, Jó, Ec)
não indicam diacronia (fenômenos antigos ou tardios), mas sincronia (aspectos linguísticos sapienciais ou não
sapienciais) (ver HURVITZ, 1988, p. 43-4, esp. nota 12) 928Na narrativa claramente pós-exílica de Ester, אביון aparece somente uma vez (Et 9.22). 929Para a redação final de Amós no período pré-exílico, ver SCHNIEDEWIND, 2011, p. 119,122-3; FINLEY,
2003, p. 102-5. 930PLEINS, 2001, p. 237. 931A ocorrência em Isaías 41.17 é duvidosa por um problema textual (ver ELLIGER; RUDOLPH, 1997, p. 738).
141
2.34; 5.28; 20.13; 22.16)932
e três vezes em Ezequiel (Ez 18.12; 16.49; 22.25ss.).933
Os
profetas pós-exílicos usam outros termos paralelos a אביון, por exemplo, עני (“pobre”,
“miserável”, “carente”, “sem posses”)934
(Zc 7.10; 9.9; 11.7,11) ou יתום (“órfão”, com o
sentido de indefeso)935 (Zc 7.10; Ml 3.5).936
A crítica que impera no Salmo 49 em favor do pobre (אביון), contra o rico (עשיר) (v.
3), que é capaz de provocar temor (Sl 49.6,7) nos menos favorecidos por suas prováveis
ameaças e opressão, está presente também em Amós (2.6; 4.1; 5.12; 8.4,6) e em Jeremias
(e.g., 2.34; 5.28).937
Em Jeremias 20.13, o próprio profeta se identifica como אביון a quem
YHWH salva (Jr 20.13),938
o que remete à perspectiva do Salmo 49, em que o autor começa
com uma pergunta retórica na primeira pessoa, colocando-se como um desfavorecido
ameaçado pelos ricos ímpios: “Por que temerei [...] a maldade dos que me atacam [...] os que
confiam em suas riquezas” (v. 6,7).
Chama a atenção o uso de חלד (“tempo de vida”; “mundo”)939
no versículo 2, um
substantivo que ocorre na literatura sapiencial (Sl 49.2; Jó 10.12,20; 11.17), no texto pré-
exílico Isaías 38.11940
e em um salmo que parece ser exílico (Sl 89.48; cf. v. 38-45).941
Assim,
a princípio, o terminus ad quem do uso do vocábulo favorece a produção do Salmo 49 até o
período exílico, pois חלד não ocorre em textos claramente pós-exílicos (e.g., Ag; Ml; Ne, Et).
Há também paralelos verbais entre o Salmo 49 e a primeira parte do livro de
Jeremias que reforçam certa contemporaneidade com o profeta e expressam uma preocupação
semelhante com as desigualdades socioeconômicas na Judá do final do século VI, embora não
sejam argumentos definitivos de datação. Enquanto o salmista menciona o rico (עשיר) (Sl
49.3) e critica aqueles que “se gloriam” ( לויתהל ) em “seus bens” ( םעשר ) (Sl 49.7), o profeta
Jeremias exorta “o rico” (עשיר) a não “gloriar-se” ( ליתהל ) no “seu bem” ( ובעשר ) (Jr 9.23).
932WESTERMANN, 1967, p. 155-63, atribui o primeiro estrato do livro aos capítulos 1—25, com exceção do
cap. 19. Ver também TOV, 1985, p. 211-37; LIPSCHITS, 2005, p. 305-7, que entendem ser o texto da LXX bem
próximo do primeiro estrato de Jeremias (mantendo basicamente o texto de 1—25, com alguns acréscimos de um
editor posterior). Cf. PLEINS, 2001, p. 278. 933BOTTERWECK, G. Johannes, אביון, in: BOTTERWECK, 1977, v. 1, p. 29-33. 934KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 856. 935BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 450 936Observe-se que esses dois substantivos hebraicos também estão presentes em textos pré-exílicos, mas o fato de
.ser usado de forma quase exclusiva no período pré-exílico favorece a autoria antiga do Salmo 49 אביון937BOTTERWECK, אביון, in: BOTTERWECK, 1977, v. 1, p. 31-3. 938PLEINS, 2001, p. 290. 939BRENSINGEN, Terry L., חלד, in: VANGEMEREN, 2011, p. 137, verbete 2689; HOLLADAY; KÖHLER,
2000, p. 104; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 316 940FREEDMAN, 1987, p. 21-2; SCHNIEDEWIND, 2011, p. 121-2. 941GROGAN, 2008, Psalm 89 (edição kindle); LONGMAN, 2014, Psalm 89 (edição kindle).
142
Jeremias afirma que é no קרב (“íntimo”) que estão presentes os “maus pensamentos” (מחשבות
(קרב) ”dos habitantes de Jerusalém (Jr 4.14), e o salmista expõe o que está no “íntimo (אונך
dos que colocam a confiança em suas riquezas (Sl 49.12).
Em Jeremias 5.26-27, a raiz verbal עשר é usada em referência a pessoas “perversas”
à custa de outros, o que parece remeter também a (ויעשירו) ”que “alcançaram riquezas (רשעים)
situação do Salmo 49, em que “alcançar riquezas” ( ריעש ) provoca o temor dos desafortunados
e pobres (Sl 49.17). Tanto Jeremias quanto o Salmo 49 utilizam a raiz עקב para comunicar
uma atitude fraudulenta, que usa de engano para prejudicar outros (Jr 9.4; Sl 49.6). O autor do
Salmo 49 e Jeremias utilizaram יקר (“preciosidade” e “honra”), atribuindo a esse substantivo o
sentido de riqueza (Jr 20.5; Sl 49.13,21).
Portanto, diante do quadro histórico de desenvolvimento da tradição de sabedoria e
das evidências linguísticas cumulativas, além do consenso sobre a datação da coleção dos
salmos de Corá,942
parece-nos adequado concluir que o balanço da probabilidade favorece a
redação do Salmo 49 no período final pré-exílico,943
quando a nação passava a experimentar
um novo momento de vassalagem à Babilônia, mas ainda não havia sido destruída por ela.944
Assim, o quadro de Jeremias 5.20-31; 7.5-6 e 22.11-17 parece corresponder à situação e às
mesmas preocupações do Salmo 49.
Assim como o profeta Jeremias se opunha aos profetas de sua época por praticarem
“a falsidade” (Jr 8.10) e profetizarem “o engano do seu íntimo”, o sábio levita que escreveu o
Salmo 49945 cultivava uma atitude diferente dos sábios do templo de sua época. Eles diziam
“Somos sábios, e a instrução [תורה] de YHWH está conosco” (Jr 8.8), mas, na verdade, “a
falsa pena dos escribas” “converteu em mentira” a tôrâ/instrução de YHWH (Jr 18.8). Em vez
942Ver análise da epígrafe do Salmo 49. 943DELL, 2004, p. 267, lembra que a discussão sobre as origens dos textos sapienciais no pré-exílio não pode ser
provada, mas pode ter “o balanço de probabilidade” a seu favor quando todos os elementos literários,
linguísticos, contexto social e teológico são avaliados. 944Depois da batalha de Carquemis, em que o exército babilônico infligiu uma completa derrota aos egípcios
(para o relato babilônico sobre a batalha de Carquemis, veja WISEMAN, 1956, p. 67-69, B.M. 21946.1-11),
impactando profundamente os moradores da Síria e de Canaã (cf. Jr 46.2-12.), e da ascensão de Nabucodonosor
ao trono (ambos os eventos ocorreram em 605 a.C.), o novo monarca invadiu a Síria-Palestina, subjugou a
cidade de Asquelom e conquistou o apoio de Jeoaquim (Eliaquim) de Judá, submetendo-o à vassalagem (2Rs
24.1) (PROVAN, Iain, A monarquia posterior: os reinos divididos, in: LONGMAN III; PROVAN; LONG, 2016,
p. 428-9). No entanto, os acontecimentos traumáticos viriam depois, nas duas deportações iniciais da população
judaica, em que os nobres e as pessoas da realeza foram exiladas (2Rs 24.14-15; 25.1-12; Jr 39.9-10). 945
Palavras do salmo como חכמה (“sabedoria”; cf. Pv 1.20; 9.1; 24.7), תבונה (“entendimento”; cf. Jó 12.12; 26.12;
Pv 5.1), משל (“provérbio”; cf. Pv 10.1; 25.1; Ec 12.9), חידה (“enigma”; cf. Pv 1.6; Sl 78.2) são característicos da
literatura de sabedoria do antigo Israel (ver as análises nos caps. 2 e 3 sobre as características sapienciais do