UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL SILMARA DE MATTOS SGOTI A COMUNICAÇÃO COMUNITÁRIA DOS QUILOMBOLAS CARRAPATOS DA TABATINGA: O DIÁLOGO COMO PRÁXIS DA COMUNICAÇÃO INTERPESSOAL E GRUPAL SÃO BERNARDO DO CAMPO 2016
121
Embed
UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULOtede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1586/2/SilmaraSgoti.pdf · silmara de mattos sgoti a comunicaÇÃo comunitÁria dos quilombolas carrapatos
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL
SILMARA DE MATTOS SGOTI
A COMUNICAÇÃO COMUNITÁRIA DOS QUILOMBOLAS
CARRAPATOS DA TABATINGA: O DIÁLOGO COMO PRÁXIS DA
COMUNICAÇÃO INTERPESSOAL E GRUPAL
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2016
SILMARA DE MATTOS SGOTI
A COMUNICAÇÃO COMUNITÁRIA DOS QUILOMBOLAS
CARRAPATOS DA TABATINGA: O DIÁLOGO COMO PRÁXIS DA
COMUNICAÇÃO INTERPESSOAL E GRUPAL
Dissertação apresentada em cumprimento às exigências
do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social
da Universidade Metodista de São Paulo, para obtenção
do título de Mestre.
Orientação: Profa. Dra. Cícilia Krohling Peruzzo
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2016
FICHA CATALOGRÁFICA
Sg58c Sgoti, Silmara de Mattos
A comunicação comunitária dos Quilombolas Carrapatos da
Tabatinga: o diálogo como práxis da comunicação interpessoal e
grupal / Silmara de Mattos Sgoti. 2016.
121 p.
Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) --Escola de
Comunicação, Educação e Humanidades da Universidade
Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2016.
Orientação: Cicilia Maria Krohling Peruzzo.
1. Comunicação comunitária 2. Diálogo 3. Comunidade 4.
Quilombolas Carrapatos da Tabatinga - Bom Despacho (MG) 5.
Quilombos I. Título.
CDD 302.2
A dissertação de mestrado sob o título “A COMUNICAÇÃO COMUNITÁRIA DOS
QUILOMBOLAS CARRAPATOS DA TABATINGA: O DIÁLOGO COMO PRÁXIS
DA COMUNICAÇÃO INTERPESSOAL E GRUPAL”, elaborada por Silmara de Mattos
Sgoti, foi defendida e aprovada em 19 de Setembro de 2016, perante a banca examinadora
composta por: Profa. Dra. Cicília Maria Krohling Peruzzo (Presidente/UMESP), Prof. Dr.
José Salvador Faro (Titular/UMESP), Profa. Dra. Cristina Schmidt (Convidada/
Universidade Mogi das Cruzes).
__________________________________________
Profa. Dra. Cicília Maria Krohling Peruzzo
Orientadora e Presidente da Banca Examinadora
___________________________________________
Profa. Dra. Marli dos Santos
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação
Programa: Pós-Graduação em Comunicação Social
Área de Concentração: Processos Comunicacionais
Linha de Pesquisa: Comunicação comunitária, territórios de cidadania e desenvolvimento
social
Ao meu esposo Edilberto e minhas filhas
Thaís e Sophia, por trazerem luz e alegria à
minha vida. Por contribuírem para que eu
alcançasse esse objetivo, e com paciência e
tolerância suportaram minhas ausências. Meu
amor e minha sincera gratidão.
“A educação é comunicação, é diálogo, na
medida em que não é a transferência de saber,
mas um encontro de sujeitos interlocutores que
buscam a significação dos significados.”
Paulo Freire
AGRADECIMENTOS À minha querida professora Dra. Cicília M. Krohling Peruzzo, pela tranquilidade, confiança e
valiosa orientação.
Aos professores Dra. Magali do Nascimento Cunha e Dr. José Salvador Faro pela
contribuição na qualificação do projeto.
À professora Dra. Marli dos Santos, coordenadora do Pós-Com da UMESP, que nas horas
mais difíceis me ajudou a prosseguir.
À Kátia Bizan, secretária do Pós-Com da UMESP, pelos providenciais e-mails, responsáveis
por eu não perder se quer um prazo de entrega, e obrigado pela sua educação, alegria e
competência.
A UMESP por ter sido com muito orgulho aluna de uma instituição crível, e por todo apoio e
suporte dado para realizar a pesquisa.
Ao CNPq que concedeu a bolsa possibilitando o desenvolvimento da pesquisa e sua
conclusão.
Aos meus pais pelo amor e os valores que me deram. Sem vocês não estaria aqui no meu
caminho, pois já caminhei bastante, mais ainda falta chão para trilhar. Sempre os honrarei.
À minha companheira de caminhada no mestrado Cristiane Holanda, pelos momentos de bate-
papo que me encheram de motivação e alegria para continuar na caminhada rumo aos
objetivos.
Ao Douglas Marçal, meu coordenador no SENAC, Instituição que tenho orgulho de trabalhar
como docente, pela compreensão aos tantos pedidos de liberações, para ir aos congressos e
viagens para Bom Despacho. Aos meus queridos mestres da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Prof. Dr. Sérgio Lex e
Profa. Dra. Miriam Rodrigues, pela oportunidade de lecionar na Pós-Graduação desta
Instituição que tanto tenho orgulho de pertencer, e principalmente pelo incentivo para
prosseguir com o mestrado. Minha gratidão.
Aos Quilombolas Carrapatos da Tabatinga, por permitir relatar um pouco sobre a
comunidade, suas lutas e ideais. A Dona Tiana pela generosidade com que me recebeu em sua
casa para falar da vida e de seu povo, a própria força da mulher negra, que me inspirou a lutar
mais pelos meus ideais. A Sandra Andrade pela boa recepção desde o primeiro encontro.
Muito obrigada à toda comunidade.
SGOTI, Silmara de Mattos. A Comunicação Comunitária dos Quilombolas Carrapatos da
Tabatinga: o diálogo como práxis da comunicação interpessoal e grupal. São Bernardo do
Campo, 2016, p.121. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social), Faculdade de
Comunicação, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, SP, 2016.
RESUMO
O estudo enfatiza a comunicação comunitária dos Quilombolas Carrapatos da Tabatinga,
comunidade localizada na cidade de Bom Despacho, no Estado de Minas Gerais. Os objetivos
são compreender de modo sistemático e com base científica os processos de comunicação das
práticas participativas e de gestão existentes na comunidade, além de verificar se há um
trabalho desenvolvido nos meios de comunicação grupais ou midiáticos de alcance
comunitário ou local, para amplificar as demandas sociais dos quilombolas em Bom
Despacho. A pesquisa bibliográfica construiu o marco teórico sobre comunidades,
comunicação comunitária e uma breve explanação sobre o Quilombo como símbolo de
resistência no Brasil. Utilizou-se a pesquisa etnográfica, sob os parâmetros da dialética, com
apoio da observação participante na investigação de campo, em determinadas atividades e não
de forma permanente, que permitiu um estudo in loco. Foram aplicadas técnicas
complementares de coleta de dados: a entrevista semiestruturada como forma de obter com
clareza as descrições da comunidade e as relações comunicantes no meio cultural que está
inserida: a sua ancestralidade negra, o território real e simbólico e o convívio com a sociedade
local. As entrevistas foram com os líderes comunitários, membros da comunidade e alguns
atores da sociedade local. Complementou-se o estudo com análise documental referente a
comunidade quilombola citada e com dados secundários como: informações já disponíveis em
órgãos públicos e privados ou instituições vinculadas a comunidade. Na conclusão do estudo
verificou-se que o diálogo é a práxis da comunicação comunitária interpessoal e grupal dos
Quilombolas Carrapatos da Tabatinga. Nos processos comunicacionais entre os membros da
comunidade o diálogo crítico se faz presente nas discussões sobre as demandas sociais como:
a importância da identidade quilombola, a valorização da memória dos ancestrais escravos, a
necessidade de resistirem ao preconceito e a desigualdade social na sociedade local, e a luta
pelo direito constitucional de reaver os territórios quilombolas. A comunidade tem uma
comunicação dialógica com a sociedade local, por meio das manifestações culturais, como no
Congado, no qual constatou-se a força comunicante das demandas sociais nos cantos, danças
e indumentárias. Há participação da comunidade nos meios de comunicação de Bom
Despacho em espaços cedidos, de forma esporádica, em rádio comercial para divulgação dos
seus eventos e atividades culturais. A comunidade utiliza rede social para publicar seus
conteúdos, por ser um meio de comunicação de baixo custo e alta abrangência. Não foi
constatado na cidade de Bom Despacho nenhum trabalho desenvolvido nos meios de
comunicação midiáticos de alcance comunitário ou local, para amplificar as demandas sociais
dos Quilombolas Carrapatos da Tabatinga. O exercício da cidadania da comunidade em Bom
Despacho é prejudicado, por ser minoria tem baixa representatividade no poder público
municipal, o que resulta em falta de políticas públicas que atenda as demandas sociais da
comunidade, as conquistas sociais da comunidade vieram por meio do Governo Federal.
SGOTI, Silmara de Mattos. The Community Communication of Quilombolas Carrapatos of Tabatinga: dialogue as a practice of interpersonal communication and group. São Bernardo do Campo, 2016, p.121. Dissertation (Master in Social Communication), Faculdade de Comunicação, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, SP, 2016.
ABSTRACT The study emphasizes community communication of Quilombolas Carrapatos of Tabatinga,
community located in Bom Despacho in the State of Minas Gerais. The objectives are to
understand systematically and scientifically based communication processes of participatory
and management practices within the community, as well as check for a work in the group or
media community outreach or local media to amplify the demands social rights of quilombos
in Bom Despacho. The literature built the theoretical framework on communities, community
communication and a brief explanation of the Quilombo as a symbol of resistance in Brazil.
We used ethnographic research, in the dialectic of parameters, with the support of participant
observation in the field of research in certain activities and not permanently, which allowed an
on-site study. Additional technical data collection were applied: the interview semi-structured
in order to get a clear community descriptions to and interconnecting links in the cultural
milieu that is inserted: their black ancestry, the real and symbolic territory and the interaction
with the local society. The interviews were with community leaders, community members and
some actors of local society. The study of document analysis was complemented regarding
quoted Quilombo and secondary data as information already available in public and private
bodies or institutions linked to the community. At the conclusion of the study it was found
that dialogue is the practice of interpersonal communication and community group of
Quilombolas Carrapatos of Tabatinga. In the communication processes between the members
of the critical dialogue community is present in discussions about the social demands as the
importance quilombo identity, valuing the memory of slave ancestors, the need to resist the
prejudice and social inequality in the local society, and the struggle for the constitutional right
to repossess the quilombo territories. The community has a dialogical communication with the
local society through cultural events, such as the Congado in which it was found the
connecting force of social demands in songs, dances and costumes. There is community
participation in Bom Despacho media in assigned spaces, sporadically, on commercial radio
for dissemination of the cultural events and activities. The community uses social network to
publish their content to be a medium of low cost and high coverage. It was found in the city of
Bom Despacho no work in group or media community outreach or local, to amplify the social
demands of the Quilombo las Carrapatos of Tabatinga. The exercise of community citizenship
in Bom Despacho is impaired due to low representation in municipal government by a
minority in the city, resulting in a lack of public policies to meet the social demands of the
community. All community conquered came through the Federal Government. Key Words: Community Communication. Dialogue. Community. Quilombolas Carrapatos da Tabatinga. Quilombo.
dissertações, internet [...] rádio, gravações em fitas magnéticas e audiovisuais [...]”. Os
estudos empreendidos pelos autores citados nas referências bibliográficas serviram no
embasamento para a construção do marco teórico conceitual. No entanto, estaremos sempre
em movimento, quando necessário recorremos a outros autores e teorias, no intuito de fazer
um recorte da realidade estudada e dar explicações sobre a mesma.
Na segunda etapa, visando o desenvolvimento do estudo do tema proposto, utilizou-
se a metodologia da pesquisa etnográfica, sob os parâmetros do método dialético, com apoio
da observação participante no trabalho de campo.
Lapassade (1991), diz que a expressão etnografia começou a ser utilizada pelos
antropólogos para designarem o trabalho de campo, no decorrer dos quais são recolhidas
informações e materiais que servirão de objeto de uma elaboração teórica posterior.
Segundo Erick Saperas (1998, p. 163) o interesse da etnografia aplicada à pesquisa
de comunicação é formar um modelo de investigação de caráter não contextual destinado a
descrever como se produzem os atos de comunicação em distintas situações (apud
PERUZZO, 2005, p.135).
A metodologia da pesquisa etnográfica possibilitou uma investigação que na
descrição dos processos e práticas da comunicação dos quilombolas trouxe característica
singular no texto, devido à experiência participativa na comunidade como observadora,
conforme diz Oliveira (1996, p. 25), “talvez o que torne o texto etnográfico mais singular,
quando o comparamos com outros devotados à teoria social, seja a articulação que ele busca
fazer entre o trabalho de campo e a construção do texto”.
Ainda, a etnografia “é entendida como um método de pesquisa qualitativa e empírica
que apresenta características específicas” (TRAVANCAS, 2006, p. 100). Tais características
podem ser resumidas no caso do presente estudo da seguinte forma: a riqueza de detalhes que
a ida a campo proporcionou com as visitas à comunidade, a observação dos fenômenos
16
comunicacionais da realidade no lugar em que ocorrem, os eventos realizados com a
participação da comunidade dos Quilombolas dos Carrapatos da Tabatinga, os rituais nas
festas com a participação da comunidade onde se deu a comunicação com a sociedade local, o
contato próximo com o objeto de pesquisa e as interpretações e reflexões que puderam ser
feitas in loco a respeito dos processos comunicantes da comunidade.
Outro fator preponderante é que a presença no local trouxe a observação dos
comportamentos que os atores sociais, os quilombolas e a sociedade local, desenvolvem de
acordo com as situações e com os contextos em que estão envolvidos. As suas interpretações
diante das conversações apareceram em meio às múltiplas vozes e aos significados que
atribuem às diferentes situações sociais. Foram analisados os fenômenos comunicacionais
levando em consideração a realidade social da comunidade quilombola na atualidade e sua
relação com a sociedade local, principalmente em relação à verificação do convívio social, e
como se dá essa relação in loco.
Utilizou-se a observação participante como um pressuposto da investigação
etnográfica para estudar o sistema de gestão da comunicação comunitária dos quilombolas
Carrapatos da Tabatinga, e os mecanismos de participação popular nos veículos de
comunicação local da cidade de Bom Despacho. Sempre observando o que Cicília Peruzzo
(2005, p.136) cita: “Há que se dizer ainda que toda investigação etnográfica pressupõe a
observação participante, mas que nem toda observação participante é etnográfica”. Portanto,
utilizou-se para apoiar a pesquisa de campo do estudo etnográfico proposto com o foco nas
questões acima citadas.
A proximidade, por meio da inserção como observadora no ambiente quilombola,
auxiliou na interpretação das situações levando em consideração o modo como os próprios
integrantes da comunidade vivenciam suas experiências comunicantes.
A observação participante - ou investigação etnográfica - realizada com a
finalidade de observar comportamentos das pessoas em relação aos meios de
comunicação pressupõe a inserção do pesquisador no ambiente investigado
(uma família, uma gangue, um grupo profissional, uma comunidade etc.) e
em geral, objetiva observar como se processa a recepção das mensagens dos
mass media, como elas são entendidas, decodificadas e reelaboradas. Pode
também ter a finalidade de observar os processos comunicativos
interpessoais, grupais ou comunitários, envolvendo os meios massivos ou
outros processos de comunicação, como os grupais, e meios alternativos de
comunicação (PERUZZO, 2005, p. 136).
17
Observou-se as seguintes situações:
a) A gestão e os processos de comunicação interpessoal da comunidade nas
reuniões e decisões de participações em atividades culturais e políticas;
b) As atividades culturais que a comunidade Carrapatos da Tabatinga produz
envolvendo todas as gerações da comunidade, foi observada a participação no
Canjerê 1º Festival da Cultura Quilombola do Estado de Minas Gerais em
novembro de 2015, em Belo Horizonte, com as demais comunidades
quilombolas e indígenas do Estado de Minas Gerais.
c) No mês de abril de 2016 foi realizada a festa de São Benedito na cidade de Bom
Despacho, e a comunidade quilombola Carrapatos da Tabatinga tem participação
ativa com a apresentação do congado realizado pela Guarda Moçambique de São
Sebastião pelas ruas da cidade, momento de encontro com a sociedade local.
Houve a possibilidade de observar como essa comunicação se deu por meio da
manifestação cultural e religiosa;
d) Os possíveis espaços da comunidade nos meios de comunicação local, rádio e
mídia impressa, e como é realizada esta participação.
A observação participante foi realizada durante seis meses, não foi uma permanência
direta, houve participação em determinadas atividades no período de outubro de 2015 a abril
de 2016. O tempo foi suficiente para que a investigação em campo fosse realizada sem
prejuízos para os objetivos do estudo. De acordo com Cicília Peruzzo, (2005, p.143):
Não existe um tempo ideal que possa ser prefixado. Dependerá do tipo de objeto, de quão rápida, ou demoradamente ele se revela ao investigador, das condições em que os mecanismos internos do “objeto” se dão a conhecer ao pesquisador e da capacidade deste em captar suas manifestações explícitas e implícitas. Mas é obvio que o tempo não pode ser curto demais. Poderá ser de meses, um ano ou mais.
O papel de pesquisadora foi desempenhado somente como observadora, não houve
participação como membro da comunidade, ou seja, foi revelada para os Quilombolas
Carrapatos da Tabatinga. A autonomia foi plena, o grupo ou qualquer elemento do ambiente
não interferiu na pesquisa no tocante a formulação dos objetivos e demais fases do projeto,
18
nem no tipo de informação registrada e nas interpretações dadas ao que fora observado.
Utilizou-se como técnica complementar de coleta de dados a entrevista no formato
semiestruturado. Autores como Triviños (1987) e Manzini (1990, 1991, 2003) trazem em suas
publicações definições que caracterizam a entrevista semiestruturada.
Para Triviños (1987, p. 146) a entrevista semiestruturada tem como característica
questionamentos básicos que são apoiados em teorias e hipóteses que se relacionam ao tema
da pesquisa, e que o foco principal é colocado pelo investigador-entrevistador. Complementa
o autor, afirmando que a entrevista semiestruturada “[...] favorece não só a descrição dos
fenômenos sociais, mas também sua explicação e a compreensão de sua totalidade [...]” além
de manter a presença consciente e atuante do pesquisador no processo de coleta de
informações (TRIVIÑOS, 1987, p. 152).
Para Manzini (1990, 1991, 2003, p. 154), a entrevista semiestruturada está focalizada
em um assunto sobre o qual confeccionamos um roteiro com perguntas principais,
complementadas por outras questões inerentes às circunstâncias momentâneas à entrevista.
Para o autor, esse tipo de entrevista pode fazer emergir informações de forma mais livre e as
respostas não estão condicionadas a uma padronização de alternativas.
Um ponto semelhante para ambos os autores, se refere à necessidade de perguntas
básicas e principais para atingir o objetivo da pesquisa. Dessa forma, Manzini (2003) salienta
que é possível um planejamento da coleta de informações por meio da elaboração de um
roteiro com perguntas que atinjam os objetivos pretendidos. O roteiro serviria, então, além de
coletar as informações básicas, como um meio para o pesquisador se organizar para o
processo de interação com o informante.
Partindo do pressuposto de que uma boa entrevista começa com a formulação de
perguntas básicas, que deverão atingir o objetivo de pesquisa, é possível fazer uma análise do
roteiro para identificar a sua adequação em termos de linguagem, estrutura e sequência das
perguntas no roteiro (MANZINI, 2003).
A entrevista semiestruturada foi realizada com um roteiro preparado previamente,
com a utilização de perguntas descritivas e aplicadas no trabalho, objetivando atingir com
clareza as descrições da comunidade para descobrir os significados dos comportamentos dos
seus membros no seu meio cultural, bem como a relação com a sua ancestralidade, território
real e simbólico e a sociedade local (TRIVIÑOS, 1987, p. 151).
Utilizou-se os dados coletados das entrevistas com os líderes comunitários
quilombolas, e com alguns atores da sociedade local de Bom Despacho com o objetivo de
entender a relação comunicante:
19
a) Interpessoal dos membros da comunidade com sua identidade quilombola e suas
demandas sociais;
b) Da comunidade com a sociedade local de Bom Despacho, como se dá essa
comunicação na percepção dos quilombolas;
c) Dos meios de comunicação da cidade com a comunidade quilombola: os jornais
locais e a rádio comunitária de Bom Despacho.
As líderes da comunidade entrevistadas foram: Sandra Andrade e Dona Tiana. A
escolha de Sandra Andrade foi pelo seu envolvimento ativo na liderança não só da
comunidade Carrapatos da Tabatinga, a qual faz parte, mas também pelo fato de ser
presidente da Federação dos Quilombolas do Estado de Minas Gerais – N´GOLO. Está
diretamente envolvida nas políticas públicas relacionadas às demandas sociais dos
quilombolas em todas as esferas públicas. Tem participação ativa nos eventos e mobilizações
das demais comunidades do Estado e Nacionais, é reconhecida no Planalto Central em
Brasília por sua participação ativa nas audiências públicas no Ministério do Desenvolvimento
Social e Agrário, Secretária Nacional de Assistência Social, e na Secretária de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial. As entrevistas concedidas por Sandra Andrade foram
relevantes para a presente pesquisa no tocante ao conhecimento sobre as demandas sociais
dos quilombolas, as políticas públicas já realizadas e as não realizadas e o que ainda está em
curso. Foi importante para entender como são elaborados os processos comunicacionais entre
os membros das comunidades quilombola da Tabatinga, e se há participação nas discussões
políticas, bem como eram feitas as divulgações das políticas públicas para a comunidade.
Realizei uma entrevista com a líder comunitária Dona Tiana de 83 anos de idade, que
tem uma vitalidade ímpar e exerce uma liderança ativa na comunidade. A entrevista foi
fundamental para entender os processos comunicacionais entre os membros da comunidade
da Tabatinga e com a sociedade local. Foram momentos de muito aprendizado sobre as
matrizes africanas, a identidade quilombola e o que ela representa para os negros da
comunidade. Relatou a importância de reverenciar e homenagear os ancestrais escravos, pois
são símbolos de resistência e luta, e servem para motivar as lutas atuais contra o preconceito e
desigualdade social. Explicou a participação nos eventos religiosos e seus significados.
As entrevistas com a liderança da comunidade foram realizadas com facilidade, cito
os nomes reais das entrevistadas, pois foram autorizados. No decorrer do trabalho de campo
20
houve a tentativa de agendar mais uma entrevista com Sandra Andrade, mas devido ao
momento político do Brasil no início de 2016, a líder comunitária teve que priorizar a agenda
em Brasília e não pode atender à solicitação. As informações foram coletadas por e-mail,
assim não houve impacto no desenvolvimento do estudo.
Realizei também uma entrevista com a secretária de Cultura do Município de Bom
Despacho a Sra. Tânia Maria Teixeira Nakamura, para entender a relação do poder público
municipal com a comunidade dos quilombolas, principalmente nas atividades culturais da
cidade.
A secretária da Cultura do Município de Bom Despacho organiza os eventos na
cidade que tem a participação da sociedade local e da comunidade quilombola de Bom
Despacho. Não houve dificuldade em realizar a entrevista, a secretária atendeu prontamente a
solicitação e autorizou a publicação de seu nome no estudo. A secretária da Cultura relatou a
importância da comunidade quilombola da Tabatinga como patrimônio histórico de Bom
Despacho e falou sobre as verbas para os eventos culturais.
Não foi possível realizar a entrevista com os responsáveis pela rádio Ativa 87,9 FM,
dita comunitária, bem como não foi possível se quer confirmar a informação se a rádio era ou
não comunitária. Foram realizadas várias tentativas para agendar a entrevista com os
responsáveis, entretanto, não retornavam as solicitações. As informações que constam no
estudo sobre a participação da comunidade nos meios de comunicação em Bom Despacho
foram relatadas em entrevista por Dona Tiana. A entrevista com a rádio Ativa FM 87,9 era
significante para o estudo, porque seria uma forma de investigar se há um trabalho nos meios
de comunicação grupal ou midiático com alcance comunitário, ampliando as demandas
sociais da comunidade quilombola em Bom Despacho. Infelizmente não foi possível ouvir os
responsáveis da rádio. Mas o estudo não foi prejudicado, os depoimentos de Dona Tiana em
entrevistas foram suficientes para o desenvolvimento da investigação.
Não foi possível realizar entrevista com o padre Cristiano Caetano Leal da Paróquia
de Nossa Senhora do Rosário. Foram inúmeras tentativas, mas o Padre Cristiano sempre
estava sem horário em sua agenda, ora estava em Belo Horizonte, ora em Bom Despacho em
reunião. A versão dos fatos que envolve o Padre Cristiano e a comunidade dos quilombolas
Carrapatos da Tabatinga foi descrita no presente estudo mediante informações geradas nas
entrevistas com Dona Tiana e a Secretária de Cultura de Bom Despacho Sra. Tânia Maria
Teixeira Nakamura. Talvez a pesquisa ficasse mais completa se tivesse o depoimento do
padre Cristiano, entretanto a sua falta não prejudicou a conclusão do estudo. Ressalto que o
padre poderia detalhar bastante a Festa de Nossa Senhora do Rosário. Foram utilizados os
21
depoimentos das entrevistas realizadas com Dona Tiana e Sra. Tania, juntamente com o
material documental disponível online para complementar as informações sobre a Festa.
A paróquia de Nossa Senhora do Bom Despacho me atendeu prontamente por meio
da sua secretária, forneceu material sobre a Festa de São Benedito e até ofereceu um horário
com o Padre José Raimundo da Costa, responsável pela realização da festa, mas não houve
necessidade de realizar a entrevista, pois o material fornecido e as informações da secretária
foram suficientes para o estudo. A única observação da paróquia de Nossa Senhora do Bom
Despacho foi dizer que não daria depoimento sobre a questão da festa de Nossa Senhora do
Rosário, pois esta era de responsabilidade e administração do Padre Cristiano Caetano Leal.
A pesquisa documental complementou os dados coletados nas entrevistas
semiestruturadas. Segundo Triviños (1990, p. 51):
A pesquisa documental assemelha-se muito à pesquisa bibliográfica. A diferença essencial entre ambas está na natureza das fontes. Enquanto a pesquisa bibliográfica se utiliza fundamentalmente das contribuições dos diversos autores sobre determinado assunto, a pesquisa documental vale-se de materiais que não receberam ainda um tratamento analítico, ou que ainda podem ser reelaborados de acordo com os objetos de pesquisa.
A pesquisa documental foi realizada com materiais coletados em documentações
válidas, conforme a definição de Chizzotti (2001, p. 11): “Documentação é toda informação
sistemática, comunicada de forma oral, escrita, visual ou gestual, fixada em um suporte
material, como fonte durável de comunicação”. Foram coletados materiais disponíveis em
fontes como: sites oficiais governamentais, documentários e transcrições orais realizadas em
Institutos de pesquisa.
Os principais sites oficiais governamentais utilizados na pesquisa documental foram
do Governo Federal e Municipal de Bom Despacho: Fundação Cultural Palmares, Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), Ministério do Desenvolvimento
Social e Agrário, Secretária Nacional de Assistência Social, Secretária de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial e Câmara Municipal de Bom Despacho. E uma fonte
importante para a pesquisa documental foi a utilização do documentário “A Filha de São
Sebastião” realizado pela produtora Caturra Digital Filmes (2013), disponível em versão
online no You Tube. O roteiro traz a trajetória da comunidade com depoimentos significativos
de Dona Tiana e membros da comunidade, bem como apresenta a festa de São Benedito com
detalhe, o documentário foi importante para o estudo. Foram utilizadas outras fontes para a
pesquisa documental para atender os demais objetivos de pesquisa, necessárias à medida do
22
surgimento de fatos novos.
Encontram-se citadas nas notas de rodapé e referências bibliográficas dessa
dissertação.
O Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Metodista de São Paulo - (CEP-
Metodista) avaliou o projeto de pesquisa e seus riscos, por envolver seres humanos, e aprovou
a metodologia proposta no trabalho, autorizando a realização da presente pesquisa.
A escolha do tema e da pesquisa se justifica, pois não há nenhuma dissertação ou
tese sobre a comunicação comunitária dos quilombolas Carrapatos da Tabatinga, conforme
pesquisa prévia realizada em maio de 2014, portanto o tema é inédito.
O estudo da comunicação comunitária talvez deixe um ganho social para a
comunidade, uma vez entendida a importância da sua prática e gestão, poderão explicitar suas
demandas sociais por meio dos meios de comunicação e possivelmente avançar nas suas
reivindicações.
Existem mais de 3.000 comunidades quilombolas no Brasil, dado oficial segundo o
INCRA, conforme já foi citado anteriormente, com demandas sociais semelhantes aos dos
Carrapatos da Tabatinga, que poderão utilizar a presente pesquisa para desenvolver a
comunicação comunitária em suas comunidades, e possivelmente, avançar nas suas demandas
sociais, ampliando o exercício da cidadania, principalmente o da isegoria que é o direito de
falar e ser ouvido.
O campo da Comunicação Social tem como um dos objetivos “[...] realizar pesquisas
que possam contribuir com a sociedade, especialmente para solucionar graves problemas
provenientes das contradições de classe para promover a mudança social” (PERUZZO, 2005,
p. 131).
E assim me coloquei para a execução desta pesquisa.
No primeiro capítulo “Conceitos, teorias e reflexões: sobre comunicação e
comunidades” há uma reflexão sobre a compreensão da Comunicação, e propõe um olhar
além do modelo sociológico e linguístico que a define como processo transmissor de
informação, em favor do entendimento ético-político da comunicação, como conexão ou
organização originária do comum, o laço coesivo da comunidade. A communicatio como
referência ao diálogo estrutural base para o “agir em comum” nas comunidades e como
amplificador da participação cidadã. Propõe a reflexão do resgate filosófico, ético e político
da potência reflexiva do campo comunicacional, do qual se produz grandes ideias capazes de
reorientar o pensamento social.
23
São abordadas as teorias clássicas sobre comunidades e seu entendimento na
contemporaneidade, pois foram revistas em decorrência do avanço tecnológico e das
alterações no modo de vida. Veremos que apesar das alterações, muitos dos princípios
desenvolvidos pelos clássicos preservam grande validade até os dias atuais.
O capítulo faz reflexão sobre fortalecimento de identidade dos membros das
comunidades e sua construção, que podem nascer da intenção em manter o status quo, ou de
resistir aos processos dominantes e às efemeridades do mundo globalizado, ou ainda de
buscar a transformação da estrutura social. É abordado o espírito de comunidade presente na
atualidade nas mobilizações populares, que muito embora tenham sofrido modificações
devido a influências das evoluções tecnológicas e do modo de vida moderno, ainda preservam
o sentimento de pertença que é um dos identificadores da existência das comunidades, os
objetos comuns que são as demandas sociais de um grupo, e o diálogo em prol das discussões
para o encaminhamento das decisões coletivas visando o bem comum da comunidade.
É apresentada uma breve explanação sobre a comunidade quilombola no Brasil, sua
formação e sua continuidade como um símbolo de resistência. Relata como os negros
remanescentes quilombolas se organizam atualmente em comunidades, e resistem por meio
dos laços comunitários, e lutam pelas suas demandas sociais tão urgentes quanto nos tempos
da escravidão e pós-escravidão. Para entender um pouco a formação utilizou-se uma
interpretação do início do século sobre a representação dos quilombos no Brasil.
Os quilombos no Brasil já foram objetos de dissertações e teses de vários estudos e
ainda percebe-se, segundo bibliografia visitada, que devido a um quadro histórico amplo,
apresenta várias possibilidades interpretativas do fenômeno. Como o objeto da pesquisa é a
comunicação comunitária, o texto trará uma breve explanação com o objetivo de entender
como se formaram e permanecem até os dias de hoje.
No segundo capítulo “O Empoderamento da comunicação: do Direito garantido à
estratégia de ampliação da cidadania por meio da participação popular” é apresentada a
comunicação como um direito garantido juridicamente, mas também se faz uma reflexão
sobre além do direito legítimo: o do empoderamento da comunicação como instrumento para
ampliação da cidadania. É relatada a importância da comunicação comunitária na mobilização
popular, que poderá proporcionar maior visibilidade sobre as demandas sociais, e traz também
o “fazer comunicação” como possibilidade de educar por meio da produção dos conteúdos
comunicacionais. É proposta uma reflexão sobre o “fazer comunicativo” como uma das
formas de exercício de cidadania, incentivando a construção de pensamentos críticos. É
24
apresentada a comunicação comunitária como possibilidade para a participação popular,
possibilitando os membros da comunidade atuarem como: produtores de conteúdo, ouvintes,
leitores ou expectadores da própria história comunicada.
O terceiro Capítulo “Os Quilombolas Carrapatos da Tabatinga: 300 anos de
resistência” apresenta a origem da comunidade quilombola Carrapatos da Tabatinga, suas
lutas pelas demandas sociais que vão desde as reivindicações, de Direito já constituídos, mas
de Fato não, das terras dos remanescentes quilombolas, perpassando pela desigualdade social
abarcada pelo preconceito racial. São relatados os processos comunicacionais estabelecidos
entre os membros da comunidade, e suas atividades em eventos culturais e participações em
esferas políticas.
Há uma descrição sobre as forças comunicantes da comunidade com a sociedade
local por meio da devoção a Nossa Senhora do Rosário e a participação na Festa de São
Benedito com seu Congado. É realizada uma análise dos meios de comunicação comunitária
existentes na cidade de Bom Despacho e como se dá a relação comunicante da comunidade
quilombola nas medias existentes.
25
CAPÍTULO I – CONCEITOS, TEORIAS E REFLEXÕES: SOBRE COMUNICAÇÃO
E COMUNIDADE
Nota Introdutória ao capítulo
O presente capítulo faz reflexão sobre a compreensão da Comunicação e propõe um
olhar além do modelo sociológico e linguístico que a define como processo transmissor de
informação, em favor do entendimento ético-político da comunicação, como conexão ou
organização originária do comum, o laço coesivo da comunidade. Abordaremos as teorias
clássicas sobre comunidades e seu entendimento na contemporaneidade. Há uma breve
explanação sobre os Quilombos no Brasil como um símbolo de resistência, e como os negros
remanescentes quilombolas se organizam nos dias de hoje em comunidades.
1 A Comunicação: o “agir em comum”
A reflexão sobre a palavra comunicação é necessário porque atualmente, ou melhor,
a partir do século XX, atribuiu-se vários significados a ela, desde o ato da fala como troca de
informação, até seu uso na venda de objetos e serviços por meio da comunicação publicitária,
e muito associada também às mensagens informacionais enviadas através dos dispositivos
tecnológicos.
O distanciamento do significado original da palavra comunicação pode gerar
consequências sociais e acadêmicas relevantes quando há o esvaziamento do sentido maior da
palavra. Pode trazer ao significado nominal um empobrecimento no seu valor, e que não seja
mais capaz de constituir um saber, um conhecimento ou de provocar transformações sociais
como ocorreu nos séculos anteriores.
Originariamente, comunicar – “agir em comum” ou “deixar agir o comum” –
significa vincular, relacionar, concatenar, organizar ou deixar-se organizar pela dimensão
constituinte, intensiva que é viver, se relacionar com o mundo. Os seres humanos enquanto
espécie são comunicantes, não porque falam, porque se relacionam ou se organizam em
mediações simbólicas, de modo consciente ou inconsciente, em função de um comum
partilhado no espaço em que vive seja com o outro ou com as forças naturais.
Ressalta-se que esta convivência a partir do século XX foi impregnada com a
crescente cultura do consumo e os próprios dicionários embarcados nessa onda, apoiados
pelos norte-americanos através da publicidade, começaram a fazer referência a palavra
comunicação como mera transmissão de uma “coisa comunicada”.
26
Como cita Muniz Sodré (2014, p.14):
Entende-se assim como o termo comunicação – oriundo do latim communicatio/communicare com o sentido principal de “partilha”, “participar de algo” ou “pôr-se em comum” – pode terminar criando, no século XX, uma realidade própria a partir de sua antiga expansão do sentido de “coisa comunicada” (reforçada no inglês communication) com o concurso das técnicas de transmissão de informação e da publicidade. O foco na interação, que é uma instância inerente à partilha comunicacional, terminou sobrevalendo o significado de transmissão de mensagens.
Este tipo de entendimento é reforçado quando nos deparamos com o avanço da
tecnologia da comunicação e da informação, nos EUA e na Europa, é uma tendência os
acadêmicos destes países tratarem de referenciar o significado da comunicação como
transmissão de signos.
O significado “transmissão” em comunicação nos leva para o entendimento de
“comunicar uma notícia”, mas o seu entendimento cristalizado na contemporaneidade é
provavelmente da potência, até mesmo econômica, da palavra informação, ou seja, o fluxo de
dados que trafega de um pólo ao outro.
Continuando o fluxo da análise, sim porque foram inúmeras as consequências do
distanciamento da origem da palavra comunicação no século XX. Hoje o termo mídia muitas
vezes resume a diversidade dos dispositivos tecnológicos de informação. Embora comunicar
não seja realmente o mesmo que informar, a pretensão ideológica do sistema midiático é
atingir, por meio da informação, o horizonte humano da troca dialógica supostamente contida
na comunicação.
De fato, embora a ideia original de communicatio nada diga realmente sobre
transmissão de informações ou de mensagens, como vimos na citação de Sodré (2014), este
significado, determinado até mesmo pelos dicionários de línguas ocidentais, acabou impondo-
se sobre o sentido original transformador da “ação comum”.
Vemos também o reflexo na sociologia moderna, os estudos das relações sociais são
feitos no vago quadro teórico do par “comunicação/informação”, que é apenas outro nome
para a comunicação moderna, dita também “midiatizada”. Assim a comunicação/Informação
terminou sustentando noções de cunho civilizatório como “sociedade da informação” ou “era
da informação”. No âmbito desses efeitos socialmente valorizados, uma abordagem realista
da questão poderia, entretanto, conduzir ao seguinte raciocínio: não importa realmente saber o
que é comunicação/informação e sim, conhecer seus usos, sociotécnicas que disso se fazem
na vida contemporânea. Neste ponto vem inevitavelmente a seguinte reflexão: se
comunicação é a ação comum, precisa haver ação de todos os atores envolvidos, se não
27
participo então só replico a comunicação/informação quando faço o uso sóciotécnico? Eis a
reflexão. Este é um entendimento aceitável pelo senso comum dos públicos imersos no que se
tem chamado de “cultura das mídias” ou no consumo dos dispositivos técnicos continuamente
despejados no mercado pela indústria eletrônica, dos quais se aposta de forma otimista.
Entretanto, se faz necessário uma redefinição, ou renovação dos mecanismos
democráticos do acesso a comunicação/informação, todos concordam sobre a falta de
neutralidade da rede, as questões éticas que devem ser observadas na produção e o uso destas
informações. Cito a questão da cidadania que vai “além” dos parâmetros econômicos,
jurídicos, políticos e sociais.
No sentido puro da palavra é escolher/decidir por uma comunicação/informação que
visa o comum, não a imposta por um mercado global da financeirização da
informação/comunicação. A participação na comunicação é fundamental para o exercício da
cidadania, e quando alguns conglomerados detêm grandes bancos de dados despejando e
coletando informações, no mínimo é prudente desconfiar das intenções, muitas vezes
financistas de circular esta comunicação/informação.
Nesse caso, a pergunta “o que é comunicação” não pode ser desprezada, pois é
necessário “o certo ponto” de partida para uma orientação existencial frente ao poder da dita
comunicação/informação.
Não é secundário, portanto, a pergunta sobre o que significa realmente comunicação,
ainda mais quando se acompanha Wittgenstein na suposição que toda interrogação de
natureza filosófica diz respeito ao significado das palavras: “[...] as palavras da linguagem
denominam objetos – frases são ligações de tais denominações” (WITTGENSTEIN, 1999, p.
27).
Pode-se citar como algo semelhante que tem registro na história do pensamento
Marxiano, quando este no processo de definição dialética do capital distingue o capital em
geral de categorias como valor, trabalho, dinheiro, preço, circulação etc. Distingue a
determinação, sendo necessário: “[...] fixar a forma determinada na qual o capital é posto num
certo ponto” (MARX, 2011, p.37).
Este “certo ponto” que devemos sobrevir agora no campo comunicacional, no qual
os signos, os discursos, os instrumentos e os dispositivos técnicos são os pressupostos do
processo de formação de uma forma nova de socializar, de um novo ecossistema existencial
em que a comunicação equivale a um modo geral de organização. Como um mundo de
sistemas interligados de produção, circulação e consumo, a nova ordem sociotécnica fixa-se
no ponto histórico do aqui e agora, não como índice de um novo modo de produção
28
econômico, mas como a continuidade, com dominância financeira e tecnológica, da
mercantilização iniciada pelo capitalismo no início da Modernidade ocidental.
No necessário rearranjo de pessoas e coisas, a comunicação/informação revela-se
como principal forma organizativa.
Acentuarei o “revelar-se” porque comunicação significa de fato em sua radicalidade,
o fazer organizativo das mediações imprescindíveis ao comum humano, a resolução
aproximativa das diferenças pertinentes em formas simbólicas. As coisas, as diferenças
aproximam-se como entidades comunicantes porque se encadeiam no vínculo originário
estabelecido pelo símbolo.
Não entenda símbolo como figura de linguagem, mas como trabalho de relacionar,
concatenar ou pôr em formas comuns separadas, ao modo de um equivalente geral,
energeticamente investido de valor, ou seja, como originárias mediações simbólicas que se
desdobram em economia, parentesco, política e linguagem.
As forças vivas desse comum podem ser aprendidas como palavras, gestos, sinais ou
acolhidas como informação e suscetíveis de avaliações quantitativas (a informação técnica é
uma espécie de moeda corrente), mas a comunicação não se define por elas: a actiocommunis
é a dimensão simbólica, condição de possibilidade das trocas vitais, entre as quais
naturalmente, o sistema de diferenças e substituições dos signos linguísticos estão presentes e
são percebidos e sentidos.
Essa movimentação e essa reorganização, acionadas pela velocidade das ondas
eletromagnéticas, apontam para o cerne da questão comunicacional. Os fenômenos de trocas
discursivas ou de transformações na mídia, habitualmente tratados como marco regulatório do
campo comunicacional, apresentam-se como sintomas importantes, mas não como a
objetivação científica do problema da comunicação, porque são apenas resultantes
sociotécnicas da utilização e replicação de comunicação/informação através dos dispositivos
eletrônicos.
Sabe-se que os avanços tecnológicos são processos de um caminho sem volta, e
penso que seja um consenso seu desenvolvimento, inclusive para facilitar a vida cotidiana.
Ela tem um importante papel na questão da melhoria dos equipamentos na área da saúde, uma
pena que seja para poucos.
Imputar a estas tecnologias características da communicatio é querer substituir as
trocas simbólicas que vão além da linguagem, formadas por diferentes experiências de vida
somada a convivência com os outros no “pôr-se em comum”, seria abrir mão da capacidade
comunicante que somos compostos, para simplesmente reproduzir comunicação/informações.
29
Muitas vezes recheadas de intenções, no mínimo duvidosas, onde o caráter financista
se faz presente na sociedade capitalista que vivemos.
Talvez o exercício da cidadania seja prejudicado uma vez que os guardiões destas
informações são os grandes “big date” gestados na maioria das vezes por países ricos, que de
certa forma continuam ditando o que consumimos de comunicação/informação.
A questão tecnológica seria no caso um estudo secundário, o primário seria o estudo
do que fora partilhado em comum na comunicação, e o que potencializa reais mudanças
sociais, assim como acontecera no decorrer dos séculos passados.
Como última reflexão sobre a essência da palavra comunicação, citarei Herbert de
Souza, o sociólogo Betinho “o termômetro que mede a democracia numa sociedade é o
mesmo que mede a participação dos cidadãos na comunicação” (SOUZA apud GUARESCHI,
2002).
1.1 A Communicatio: o diálogo como laço coesivo da comunidade
Com vistas a uma ciência da comunicação humana, um começo estratégico é
associar à questão moderna a velha noção de communicatio (do latim ciceroniano) para
designar a coesão social sob o ângulo de uma transcendência, que é a do “diálogo” entre os
deuses e os homens. Diálogo, não como mero intercâmbio de palavras, mas como ação de
fazer ponte entre as diferenças, que concretiza a abertura da existência em todas as suas
dimensões e constitui o homem no seu espaço de habitação – portanto, diálogo como
categoria ética.
A obra de Wilden (2001) relata que na antiguidade o diálogo ritualístico entre
mortais e imortais era imprescindível, era a cola do mundo para o elevado: o espiritual, que
supostamente uniria corpo e espírito, fundando a sociedade dos homens em termos não
Tanto Atenas quanto Roma reservava uma data para as oferendas sacrificiais às
divindades, que os romanos denominavam dies communicarius. No contexto medieval, a
communicatio era o sistema organizativo das relações entre todos os entes, com Deus – um
Deus “comunicativo” – como princípio unificador:
Deus é a fonte de toda comunicação: como no Velho Testamento, a natureza
é entendida como um “grande livro”, no qual estão impressos os sinais de
Deus, com informações escritas que esperam ser lidas, ou seja, traduzidas
em conhecimento. A ordem dos cosmos é percebida como é porque a
intercomunicação existente entre todos os seres significa que estes cooperam
30
em simbiose no todo. Deus não é colocado num céu distante (como teria
acontecido no século XVIII), mas está “todo e totalmente” em todas as
partes do sistema, é ele quem informa (WILDEN, 2001, p. 130-131).
Mas já no século V da Era Cristã, a expressão communicatio assumiu uma inflexão
teológica, a communicatio idiomatum (comunicação das propriedades), destinada a explicar a
interação da divindade com o homem na encarnação de Cristo: os predicados crísticos,
propriamente divinos, seriam extensivos ao mundo. No século XVIII, entretanto, o importante
teólogo alemão J. Hamann (2007), antirracionalista e antikantiano, vai mais longe ao sustentar
a tese de que a communicatio se aplica não apenas a Cristo, mas toda ação humana
(HAMANN, 2007).
Hoje a expressão communicatioin sacris, ou seja, comunicação ou participação nas
coisas sagradas tem uso conciliar como acolhimento de práticas litúrgicas de cristãos com
outros não plenamente cristãos, o que cria para a expressão uma possibilidade interpretativa
no sentido da abertura para a diferença. Mas também a possibilidade de associá-la ao conceito
atual e positivo (no sentido da “ciência”) de comunicação, mesmo levando-se em conta que a
communicatio diz respeito a uma forma social antiga à “sociedade integral” descrita por
Durkheim (1895), na qual religião é imprescindível ao processo integrador.
É também possível instalar reflexivamente a communicatio no campo problemático
da comunicação moderna. Mas o que aqui deve-se levar agora em conta, por outro lado, é que
a communicatio, assim como a comunicação, não é transmissão de informação nem diálogo
verbal, e sim uma forma modeladora (organização de trocas reais) e um processo (ação) de
pôr diferenças em comum, sem que processo e ação possam ser considerados como arbitrários
(de livre escolha) por parte dos indivíduos, pois implicam a força de uma transcendência que,
na Antiguidade, era o sagrado. Isso implica também afirmar que o conceito de comunicação
não se restringe ao de prática discursiva.
Em discussão, que bem poderia ficar restrita à “cristologia”, oferece-se à
contemporânea redescrição comunicacional quando se pensa em autores capazes de
problematizar a vinculação social a partir de uma humanidade que não excluía
transcendência, seja qual for a sua denominação. Por exemplo, a denominação de espírito,
assimilado ao Verbo primordial:
O espírito não está no Eu, está na relação do Eu com o Tu. Ele não é
comparável como sangue que circula em ti, mas ao ar que tu respiras. O
homem vive em espírito quando sabe responder ao seu Tu. Ele pode fazê-lo
quando entra com todo seu ser na relação. É só em virtude de sua capacidade
de relação que o homem pode viver em espírito (BUBER, 1969, p. 70).
31
Buber (1969) inscreve-se na linha filosófica do existencialismo cristão. Mas não se
restringe a relação do homem com Deus. O seu ativismo social (ele foi também educador,
historiador da religião, sociólogo e militante político), centrado na busca de novos tipos de
laço comunitário, leva-o ao que está implícito na ideia antiga e dialógica de communicatio,
embora este vocábulo latino não conste de sua terminologia conceitual.
Seu foco na relação inter-humana faz dele um pensador do comum, (benquisto por
filósofos, antropólogos e, mesmo, teóricos da comunicação, como Vilém Flusser), conceito
que equipara ao de diálogo, entendido como relação visceral de encontro entre um Eu e um
Tu, portanto, entre singularidades. Pode-se iniciar uma pequena síntese de sua reflexão com o
conceito de “palavras-princípios”, que são pares de palavras – portanto, relações –
constitutivas da base da linguagem. O par Eu-Tu, diferente de Eu-Isso (ou Eu-Coisa), é uma
dessas bases.
“As palavras que são a base da linguagem não exprimem uma coisa que existiria fora
delas, mas uma vez ditas fundam uma existência” (BUBER, 1969, p.50-51). Antes do
encontro, nada existe. Assim, o par Eu-Tu funda o mundo da relação, ao passo que Eu-Isso
pertence ao mundo enquanto experiência.
A proposta teórica de Buber (1969) não deve ser confundida com análise de discurso.
Trata-se propriamente de uma filosofia da pessoa, em que o encontro e o diálogo fazem a
síntese do acontecimento e da eternidade, como bem assinala Bachelard: “É no reino dos
vetores, e não no reino dos pontos e centros, que é preciso colocar-se para obter um esquema
justo do buberismo. O Eu e o Tu não são pólos separáveis” (BACHELARD, G. “Prefácio”.
In: BUBER, M., 1969, p. 9). Não se pode, portanto, colocar um Tu no passado, como se faz
com uma coisa que se utilizou, uma vez que a relação Eu-Tu acontece no imediato, na
duração, em plena reciprocidade, fazendo eclodir a presença como “um ser que nos espera e
permanece”.
Para a afirmação da communicatio, é importante sublinhar no buberismo a
anterioridade fenomênica da relação apresentada como uma categoria do ser, uma disposição
de acolhimento, um continente, um molde psíquico: "o Tu inato é o a priori da relação”
(BUBER, 1969, p.50-51). Essa categoria resulta no que o autor chama de comunidade, mais
precisamente de “verdadeira comunidade”, deixando claro, entretanto, que ela não se constitui
por nenhuma livre decisão de viver em comum, nem pela efusão de livres sentimentos.
32
A verdadeira comunidade não nasce do fato de que as pessoas tenham
sentimentos umas pelas outras (embora não possa nascer isso), ela nasce
destas duas coisas: de que elas estejam todas em relação viva e recíproca
com um centro vivo e de que estejam ligadas umas às outras pelos laços de
uma viva reciprocidade. [...] A comunidade se edifica sobre a relação viva e
recíproca, mas é o centro atuante e vivo que é o verdadeiro obreiro”
(BUBER, 1969, p.74).
Vale assim, trazer de volta a reflexão de Buber (1969), para que o centro atuante
constitutivo do comum ou da vida pública não é feito de sentimentos, nem também de
instituições. Estas são uma dimensão externa, um “fora”, onde há trabalho, organização e
acontecimentos, enquanto os sentimentos são o “dentro”, a dimensão interna, onde se relaxa
da complexidade institucional, e o homem se sente realmente “em casa”.
Para Buber (1969) a finalidade da relação dual (Eu-Tu) é seu ser próprio, isto é, o
contato do Tu. Assim, “aquele que está na relação participa de uma realidade, ou seja, de um
ser que não está unicamente nele nem unicamente fora dele. Toda realidade é uma eficiência
da qual eu participo sem querer me apropriar dela. Onde falta participação, não existe
realidade” (BUBER, 1969, p.97-98). Essa participação coincide com o que a sociologia e a
sócio filosofia chamam de esfera pública, isto é, o espaço de comunicação em que cada
indivíduo passa do discurso dual à relação discursiva com a massa anônima, constituindo o
comum.
Em termos grupais os gregos chamam de philia, termo cujo sentido não se limita ao
de “amizade”, pois abrange o de laço comum, traçando o círculo do convívio e significado de
partilha como vizinhança. É, portanto, o comum que “cola” a cidade (o glutinummundi dos
alquimistas) e permite ao indivíduo transpor os limites da dualidade para a comunicação com
o anônimo social, dentro da forma representativa atinente a cada comunidade particular.
Por isso, a retomada contemporânea dos debates sobre a comunidade é importante
para discussão sobre os mecanismos da coesão ou do vínculo social em face das novas formas
de sociabilidade criadas pelo capitalismo transnacional e irradiadas por dispositivos de mídia.
Essa questão aparece, por exemplo, na reflexão de Cauquelin (1982) sobre as formações
urbanas. Para ela, quando alguém se indaga sobre o que poderia ser “primeiro” na formação
das cidades, aparece como ponto de partida o “viver juntos”, cujo móbile é precisamente a
philia – não entendida como mera convenção ou acordo de um contrato social regido por leis,
mas com a predisposição à sociabilidade (CAUQUELIN, 1982).
O comum é sentido antes de ser pensado ou expressado, portanto, é algo que ancora
diretamente na existência. O homem pensa porque existe, logo, é em comum. A contra
33
tradução, que abriga o sentido da fala, se torna possível pela sensibilidade comum num lugar
próprio, regido pela communicatio, que é o outro modo – o dialógico – de dizer o que se
pensa ou quer na societas (sociedade). Isto é referir-se ao companheiro (socius) que,
pluralizado, constitui o pronome “nós” de um agrupamento humano ou da rede complexa de
relações jurídicas e políticas em que se insere o cidadão de um Estado.
2 Comunidade nos Clássicos e seu entendimento na atualidade
A teorização clássica sobre comunidade foi elaborada tendo como parâmetro as
sociedades agrárias, a partir da tribo, aldeia, família, igreja, lugar etc. As transformações nas
sociedades exigiram a atualização nos conceitos de comunidade. As noções de
“territorialidade”, “autosuficiência” e “identidade” perfeita entre os membros, por exemplo,
foram revistas em decorrência do avanço tecnológico e das alterações no modo de vida.
Mas, o que não há como negar é que a palavra comunidade evoca sensações de
solidariedade, vida em comum, independentemente de época ou de região. Hoje em dia seria
o lugar ideal onde se almejaria viver, um esconderijo dos perigos da sociedade moderna.
Como nos mostra Bauman (2003, p. 7), “‘comunidade’ produz uma sensação boa por causa
dos significados que a palavra ‘comunidade’ carrega”: é a segurança em meio à hostilidade.
Parte-se de uma constatação de Palácios (2001, p. 1) de que a “ideia ou conceito de
Comunidade, tão central na Sociologia Clássica, é uma invenção da Modernidade”. Com
esta nova forma de organização social surgem teorizações que apresentam possíveis
contraposições entre comunidade e sociedade.
Para compreender os aspectos fundamentais e essenciais do conceito, resgatou-se
alguns detalhes das contribuições teóricas de pensadores clássicos, como Weber (apud
FERNANDES, 1973, p. 140-143) para quem a comunidade é um conceito amplo que
abrange situações heterogêneas, mas que, ao mesmo tempo apoia-se em fundamentos
afetivos, emotivos e tradicionais.
O autor Werber (apud FERNANDES, 1973, p. 140), chama de comunidade “uma
relação social quando a atitude na ação social – no caso particular, em termo médio ou no
tipo puro – inspira-se no sentimento subjetivo (afetivo ou tradicional) dos partícipes da
constituição de um todo”. Para Weber (apud FERNANDES, 1973, p. 141), assim como para
Ferdinand Tönnies, a “maioria das relações sociais participa em parte da comunidade e em
parte da sociedade”.
Weber (apud FERNANDES, 1973, p. 142-143) fala também que na comunidade os
fins são racionalmente sustentados por grande parte de seus participantes, o sentido
contrapõe-se a ideia de “luta”, participação comum em determinadas qualidades, da situação
34
ou da conduta, situação homogênea, sentimento da situação comum e de suas consequências
e mesma linguagem. Entretanto, em si, isto não implica uma comunidade.
Comunidade só existe propriamente quando, sobre a base desse sentimento
[da situação comum], a ação está reciprocamente referida – não bastando a
ação de todos e de cada um deles frente à mesma circunstância – e na
medida em que esta referência traduz o sentimento de formar um todo.
Ferdinand Tönnies (1855-1936), sociólogo alemão, membro de uma comunidade
rural, em Schlswig-Holstein, foi um dos grandes nomes que partiram em defesa da
comunidade, talvez por isso, tenha sido esquecido pelos que só tinham olhos para o progresso,
devido ao período de industrialização na Europa, contudo, sendo agora muito requisitado nas
reflexões contemporâneas a respeito do tema da Comunidade.
Além de trabalhar com as contraposições entre comunidade e sociedade, Tonnies
(apud FERNANDES, 1973, p. 104), apoia-se nas relações entre mãe e filho, entre esposos e
entre irmãos e irmãs que se reconhecem filhos da mesma mãe para explicar um tipo de
comunidade. A existência de processos comunitários estaria ligada, em primeiro lugar, aos
laços de sangue, em segundo lugar à aproximação espacial e em terceiro lugar à aproximação
espiritual. O autor Tonnies (apud FERNANDES, 1973, p. 104) ainda relaciona comunidade a
uma vontade comum, à compreensão, ao direito natural, à língua e à concórdia: “aonde quer
que os seres humanos estejam ligados de forma orgânica pela vontade e se afirmem
reciprocamente, encontra-se alguma espécie de comunidade”, ou seja, a vida em comunidade
baseia-se em relações sociais.
A teoria da comunidade se deduz, segundo as determinações da unidade completa
das vontades humanas, de um estado primitivo e natural que, apesar de uma separação
empírica e que se conserva através desta, caracteriza-se diversamente segundo a natureza das
relações necessárias e determinadas entre os diferentes indivíduos que dependem uns dos
outros (TÖNNIES apud FERNANDES, 1973, p. 98).
Tönnies (apud FERNANDES, 1973, p. 99) relata que a comunidade de sangue
(unidade de existência) tende a se desenvolver como comunidade de lugar (fundamentada na
habitação comum) que, consequentemente, desdobra-se em comunidade de espírito (baseada
em atividade comum). A comunidade de pensamento, que se expressa pelo conjunto
coerente de vida mental, seria para o autor a mais elevada forma de comunidade. Em outras
palavras, a base da vida comunitária estaria na comunhão de pensamento e de ideais.
Em outros termos, Tönnies (apud FERNANDES, 1973, p. 112) considera que as
características da comunidade podem estar relacionadas a três gêneros de comunidades: a)
35
parentesco; b) vizinhança; c) amizade. O parentesco relaciona-se aos laços de sangue e à
vida comum em uma mesma casa, mas podem não se limitar à proximidade física. Este
sentimento pode existir por si mesmo com o afastamento físico, entretanto, as pessoas
sempre estarão à procura da presença física e real da família e do parentesco. A vizinhança
caracteriza-se pela vida em comum entre pessoas próximas da qual nasce um sentimento
mútuo de confiança, de favores, etc. Dificilmente se mantém sem a proximidade física. A
amizade está ligada aos laços criados nas condições de trabalho ou no modo de pensar.
Nasce das preferências entre profissionais de uma mesma área ou daqueles que partilham da
mesma fé, trabalham pela mesma causa e reconhecem-se entre si.
Nesta perspectiva, o autor parece reconhecer a existência de comunidades na vida
urbana. Inclusive, para ele, a vida urbana pode ser representada pela comunidade de
vizinhança. Trata-se da tendência de Tönnies (apud FERNANDES, 1973, p. 113) de apanhar
a comunidade sempre em relação à vida em grupos coesos e unidos por interesses em
comum.
Tentando ir além da perspectiva de Ferdinand Tönnies, Martin Buber (1987, p.33)
expressa uma visão de comunidade ideal, em que “homens maduros, já possuídos por uma
serena plenitude, sintam que não podem crescer e viver de outro modo, exceto entrando
como membros” em fluxo de doação e entrega criativa em razão de uma liberdade maior. “A
nova comunidade tem por finalidade a Vida. Não esta vida ou aquela, vidas dominadas, em
última análise, por delimitações injustificáveis, mas a vida que liberta de limites e conceitos” (BUBER, 1987, p.33). Para ele, “comunidade e Vida são uma só coisa”.
Buber (1987, p. 34) acrescenta:
A comunidade que imaginamos é somente uma expressão de transbordante anseio pela Vida em sua totalidade. Toda Vida nasce de comunidades e aspira a comunidades. A comunidade é fim e fonte de Vida. Nossos sentimentos de vida, os que nos mostram o parentesco e a comunidade de toda a vida do mundo, não podem ser exercitados totalmente a não ser em comunidade. E, em uma comunidade pura nada podemos criar que não intensifique o poder, o sentido e o valor da Vida. Vida e comunidade são os dois lados de um mesmo ser. E temos o privilégio de tomar e oferecer a ambos de modo claro: vida por anseio à vida, comunidade por anseio à comunidade.
Importante registrar ainda que, para Buber (1987, p.39), a humanidade se originou
em uma comunidade primitiva, passou pela escravidão da sociedade e “chegará a uma nova
comunidade que, diferentemente da primeira, não terá mais como base laços de sangue, mas
laços de escolha”. Neste sentido, o autor já reconhecia e antecipava que as noções de
36
parentesco e de território não são condição essencial e obrigatória para se caracterizar uma
comunidade, mas sim a comunhão de escolhas, a vontade comum, a partilha de um mesmo
ideal, noções atualmente primordiais para se entender as comunidades virtuais.
Robert E. Park e Ernest W. Burgess (apud FERNANDES, 1973, p. 148) defendem
que uma comunidade deve ser considerada a partir da “distribuição geográfica dos
indivíduos e instituições de que são compostos”. Trabalhando na perspectiva de Tönnies,
para os autores “toda comunidade é uma sociedade, mas nem toda sociedade é uma
comunidade”.
Autores como R. M. MacIeaver e Charles Page (apud FERNANDES, 1973, p. 122-
123), já disseram que a noção do lócus territorial específico não é condição sine qua non
para a existência de vida comunitária, mas sim a participação na vida comum da
comunidade.
Ao discutir as formas de organização social na sociedade contemporânea, Marcos
Palácios (2001, p. 4) defende que alguns elementos fundamentais caracterizam uma
comunidade na atualidade: a) sentimento de pertencimento; b) sentimento de comunidade; c)
permanência (em contraposição à efemeridade); d) territorialidade (real ou simbólica); e)
forma própria de comunicação entre seus membros, através de veículos específicos. Para ele,
a questão da territorialidade assume novo sentido:
O sentimento de pertencimento, elemento fundamental para a definição de
uma Comunidade, desencaixa-se da localização: é possível pertencer a
distância. Evidentemente, isso não implica a pura e simples substituição de
um tipo de relação (face-a-face) por outro (à distância), mas possibilita a
coexistência de ambas as formas, com o sentimento de pertencimento
sendo comum às duas (PALÁCIOS, 2001, p. 7).
Neste sentido, a territorialidade pode assumir caráter físico ou simbólico. A
localidade geográfica passa a não ser considerada característica intrínseca de uma
comunidade, porque mesmo a distância pode se sentir parte.
Não é que o território não possui mais valor para a comunidade, porém, agora este
território pode ser físico-geográfico ou simbólico. Assim, adquire relevância o sentimento de
pertença, já que se pode pertencer à distância. O que está em jogo é à vontade e os interesses
dos membros.
Atualmente, vive-se outra conjuntura, marcada pela globalização e democracia, mas
as condições apontadas em parte, persistem como o acirramento de tendências
individualistas, por exemplo, embora outras sejam agregadas haja vista o aumento da
violência e, ao mesmo tempo, surgem sinais agregadores e de revitalização das identidades
37
locais e de laços comunitários os mais diferentes.
Segundo Manuel Castells (1999, p. 79) é justamente nas condições globalizantes do
mundo que “as pessoas resistem ao processo de individualização e atomização, tendendo a
agrupar-se em organizações comunitárias que, ao longo do tempo, geram um sentimento de
pertença e, em última análise, em muitos casos, uma identidade cultural, comunal”.
A hipótese do autor é de que, por meio de um processo de mobilização social, as
pessoas participem de movimentos urbanos defendendo interesses em comum. Trata-se de
uma dinâmica de fortalecimento de identidades, como mostrou Stuart Hall (2006, p. 85): “o
fortalecimento de identidades locais pode ser visto na forte reação defensiva daqueles
membros dos grupos étnicos dominantes que se sentem ameaçados pela presença de outras
culturas”.
São movimentos de construção de identidades, como ressalta Castells (1999, p. 24):
a) identidade legitimadora: representada pelas instituições dominantes interessadas em
expandir sua dominação; b) identidade de resistência: representada pelas pessoas em
condições desvalorizadas e que resistem à dominação; c) identidade de projeto: quando as
pessoas se mobilizam, criando uma identidade capaz de buscar a transformação social.
Ainda de acordo com Castells (1999, p. 84), no mundo atual as comunidades são
construídas a partir dos interesses e anseios de seus membros, o que faz delas fontes
específicas de identidades. Essas identidades podem nascer da intenção em manter o status
quo, ou de resistir aos processos dominantes e às efemeridades do mundo globalizado, ou
ainda de buscar a transformação da estrutura social. Em todas elas existem processos de
identidade, objetivos e interesses em comum, a participação em prol deste objetivo, o
sentimento de pertença, oriundo da identidade em questão. Talvez, nestas ideias de Castells
(1999) e Hall (2006), estejam pistas para se entender os processos comunitários da
contemporaneidade, algumas presentes desde as abordagens originárias.
Em perspectiva correlata Cicília Peruzzo (2002, p. 288-292) diz que entre as várias
formas de agregação solidária, no contexto da mobilização popular no Brasil nas últimas
décadas, estão aquelas de caráter comunitário inovador, capitaneadas por redes de
movimentos sociais, associações comunitárias territoriais, associações de ajuda mútua,
cooperativas populares, grupos religiosos, grupos étnicos, entre milhares de outras
manifestações.
Para a autora Cicília Peruzzo (2002, p. 289) neste nível se desenvolvem práticas
coletivas e de organização comunitária, além de elementos de uma nova cultura política, na
qual passa a existir a busca pela justiça social e participação do cidadão. Esse tipo de
38
mobilização e articulação popular se diferencia das concepções tradicionais de comunidade
porque constrói características comunitaristas inovadoras, e sem o sentido de perfeição
atribuído àquelas, as quais podem ser percebidas na:
Passagem de ações individualistas para ações de interesse coletivo, desenvolvimento de processos de interação, a confluência em torno de ações tendo em vista alguns objetivos comuns, constituição de identidades culturais em torno do desenvolvimento de aptidões associativas em prol do interesse público, participação popular ativa e direta e, maior conscientização das pessoas sobre a realidade em que estão inseridas (PERUZZO, 2002, p. 290).
Como pôde ser observado nos autores citados, as teorizações clássicas sobre
comunidades foram revistas. Diante das mudanças do modo de vida na Modernidade e
também pelo avanço da tecnologia, alguns princípios são válidos nos dias de hoje como:
sentimento de pertencimento, sentimento de comunidade, permanência (em contraposição à
efemeridade), territorialidade (real ou simbólica), forma própria de comunicação entre seus
membros, através de veículos específicos.
No Brasil apesar do modo de vida da Modernidade e avanços tecnológicos, temos a
existência de comunidades tradicionais, próximas ao conceito dos clássicos como as
comunidades quilombolas.
De acordo com o Decreto 60403, os povos e comunidades tradicionais são definidos
como "grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, possuem formas
próprias de organização social, ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição
para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando
conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos por tradição".
Entre os povos e comunidades tradicionais do Brasil estão quilombolas, ciganos,
matriz africana, seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco-de-babaçu, comunidades de
fundo de pasto, faxinalenses, pescadores artesanais, marisqueiras, ribeirinhos, varjeiros,
as Comunidades Tradicionais constituem aproximadamente 5 milhões de brasileiros e
ocupam ¼ do território nacional.
Por seus processos históricos e condições específicas de pobreza e desigualdade,
acabaram vivendo em isolamento geográfico e/ou cultural, tendo pouco acesso às políticas
públicas de cunho universal, o que lhes colocou em situação de maior vulnerabilidade
socioeconômica, além de serem alvos de discriminação racial, étnica e religiosa. O objetivo
do Governo Federal é promover para estas comunidades tradicionais o acesso a políticas
públicas e fazer valer todos os direitos estabelecidos na Constituição Federal de 1988.
Nesse contexto, a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais (PNPCT) tem por objetivo reconhecer formalmente a existência e
as especificidades desses segmentos populacionais, garantindo os seus direitos territoriais,
socioeconômicos, ambientais e culturais, sempre respeitando e valorizando suas identidades
e instituições.6
A da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), por meio
da Secretaria de Políticas para Comunidades Tradicionais (SECOMT), é responsável pela
execução da Política voltada a alguns grupos deste segmento: povos e comunidades
tradicionais de matriz africana, quilombolas e ciganos.7
As políticas públicas voltadas para os Povos e Comunidades Tradicionais são
recentes no âmbito do Estado brasileiro e tiveram como marco a Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), que foi ratificada em 1989 e trata dos direitos
dos povos indígenas e tribais no mundo.8
No Brasil, esse público passou a integrar a agenda do governo federal em 2007, por
meio do Decreto 6040, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos
Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), sob a coordenação da Secretaria de Políticas
de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) da Presidência da República.9
6Informações oficiais segundo o site da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Ver em:
<http://www.seppir.gov.br/comunidades-tradicionais/o-que-sao-comunidades-tradicionais>. 7 Informações oficiais segundo o site da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Ver em:
<http://www.seppir.gov.br/comunidades-tradicionais/o-que-sao-comunidades-tradicionais>. 8 Informações oficiais segundo o site da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Ver em:
<http://www.seppir.gov.br/comunidades-tradicionais/o-que-sao-comunidades-tradicionais>. 9 Informações oficiais segundo o site da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Ver em:
jurídicas de liberdade de expressão, tem se discutido o direito à comunicação como forma de
poder de comunicar, do cidadão e de suas organizações coletivas (PERUZZO, 2005, p.19).
No IV Fórum Social Mundial Irene León se pronunciou dizendo que é importante:
Pensar a comunicação como direito que não se restringe ao acesso à produção de informação e seus mecanismos teóricos, mas ao poder, pois na sociedade da informação, nada é mais poderoso que construir pensamentos críticos, plurais e autônomos (LEÓN apud BURCH, 2004, p.2).
Embora a história nos permita uma leitura a favor desses princípios, percebe-se que
isso ocorre em maior ou menor grau dependendo de cada cultura, de cada povo. Segundo a
pesquisadora Cicília Peruzzo (2004, p. 275), “esse processo tem a ver com as decisões dos
governantes e a capacidade do povo para exigir o cumprimento de seu direito, com vistas à
realização de seu dever de contribuir ativamente, como sujeito, para a construção da
sociedade”.
Dentre os mais variados aspectos da vida, o direito a exercer a comunicação
ativamente é um deles. Referimo-nos a comunicação de fato e de direito e não apenas
pensando o sujeito como consumidor, mas como sujeito ativo da comunicação.
Para Cicília Peruzzo (2004, p. 275), a democratização da comunicação no Brasil e
em outros países latino-americanos tem sido obstaculizada pelo Estado e por setores
dominantes que, em virtude de sua posição hegemônica ou pela imposição, acabam por
ganhar a cumplicidade da sociedade, embora exista certa resistência, como veremos adiante.
Contudo, antes de tratados matizes que envolvem essa temática, acredita-se ser necessário
fazer uma incursão a respeito dos direitos humanos a partir de um breve apanhado conceitual
sobre cidadania e sobre a inserção da comunicação como uma das dimensões desse conceito.
Conceitos de autores como T. H. Marshall, Liszt Vieira, Norberto Bobbio, tornam-se
importantes ao mostrar as mudanças históricas que conduzem as alterações no conceito de
cidadania, a partir das gerações de direitos e do sentido que são dados a eles.
T. H. Marshall (1967), em Cidadania, Classe social e Status, publicado
originalmente em 1949, compreende a cidadania moderna a partir do estabelecimento
primeiramente dos direitos civis, seguido dos políticos e por último dos direitos sociais.
Com esta finalidade, dividi a cidadania em três elementos: civil, político e
social. Tentei demonstrar que os direitos civis surgiram em primeiro lugar e
se estabeleceram de modo um tanto semelhante à forma moderna que
assumiram antes da entrada em vigor da primeira Lei de Reforma, em 1832.
Os direitos políticos se seguiram aos civis, e a ampliação deles foi uma das
principais características do século XIX, embora o princípio da cidadania
42
política universal não tenha sido reconhecido senão em 1918. Os direitos
sociais, por outro lado, quase que desapareceram no século XVIII e princípio
do XIX. O ressurgimento destes começou com o desenvolvimento da
educação primária pública, mas não foi senão no século XX que eles
atingiram um plano de igualdade com os outros dois elementos da cidadania
(MARSHALL, 1967, p.75).
Para Marshall (1967) a cidadania é histórica e é conformada pelo status comum,
conquistado e compartilhado pelos membros de uma comunidade. A caracterização moderna
do conceito de cidadania representa a promoção de um status de igualdade social, que atribui
ao indivíduo à posse legítima de direitos e a obediência comum aos deveres. Porquanto, ser
cidadão independe de sexo, cor ou classe social, sendo todos iguais perante a lei. Segundo
Marshall (1967, p.76) “A cidadania é um status concedido àqueles que são membros integrais
de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos
e obrigações pertinentes ao status”.
Liszt Vieira (2001, p. 35) compreende que o conceito de cidadania, como o direito a
ter direitos (e reconhecer seus deveres), foi abordado de variadas perspectivas. Os autores
Vieira e Marshall propuseram a primeira teoria sociológica de cidadania ao incluir os direitos
e as obrigações inerentes a condição de ser cidadão. Contudo, não se pode perder de vista que
a teoria desenvolvida por Marshall, na época, partia da sua concepção inglesa sobre o conflito
entre capitalismo e liberdade.
Os avanços e retrocessos da cidadania ocorrem de maneira diferenciada nos
diferentes países, principalmente no Brasil, onde temos um histórico marcado por
desigualdades sociais.
Por sua vez, Norberto Bobbio (1999, p. 32-33), filósofo italiano, também
compreende que o desenvolvimento dos direitos do homem passou por três fases, os direitos
civis, políticos e sociais:
[...] o desenvolvimento dos direitos do homem passou por três fases: num
primeiro momento, afirmaram-se os direitos de liberdade, isto é, todos
aqueles direitos que tendem a limitar o poder do Estado e a reservar para o
indivíduo, ou para os grupos particulares, uma esfera de liberdade em
relação ao Estado; num segundo momento, foram propugnados os direitos
políticos, os quais – concebendo liberdade não apenas negativamente, como
não impedimento, mas positivamente, como autonomia – tiveram como
consequência a participação cada vez mais ampla, generalizada e frequente
dos membros de uma comunidade no poder político (ou liberdade no
Estado); finalmente, foram proclamados os direitos sociais, que expressam o
amadurecimento de novas exigências – podemos mesmo dizer, de novos
valores –, como os do bem-estar e da igualdade não apenas formal, e que
poderíamos chamar de liberdade através ou por meio do Estado.
43
Segundo Norberto Bobbio (2004, p.32) “num primeiro momento, afirmaram-se os
direitos de liberdade”, os chamados direitos de primeira geração. Estes são os direitos
individuais, de natureza civil e política, e “foram reconhecidos para a tutela das liberdades
públicas, em razão de haver naquela época uma única preocupação, qual seja, proteger as
pessoas do poder opressivo do estado” (CUNHA JUNIOR, 2012, p. 617-618).
Eles surgiram juntamente com a Revolução Francesa, entre os séculos XVIII e XIX,
assegurando para a classe burguesa, então surgente, os direitos mínimos para o exercício da
sua atividade. Desta forma, tinham como fundamento a “limitação do poder do Estado e a
reserva para o indivíduo, ou para os grupos particulares, uma esfera de liberdade em relação
ao Estado” (BOBBIO, 2004, p. 32). Ou seja, contemplam os direitos de inspiração
individualista, demonstrando claramente a demarcação entre Estado e não-Estado, o qual é
composto pela sociedade religiosa e pela sociedade civil.
A segunda geração direitos do homem, segundo Bobbio (2004) surgiu no século XX,
tem como marco o pronunciamento da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948,
como reivindicação dos excluídos a participarem do "bem-estar social" como, por exemplo,
os direitos ao trabalho, a saúde e a educação, sendo o titular de tais direitos o indivíduo e o
sujeito passivo o Estado, pois na interação entre governados e governantes este assume a
responsabilidade de atendê-los (BOBBIO, 2004, p.41).
Celso Lafer afirma que estes direitos:
[...] podem ser encarados como direitos que tornam reais direitos formais:
procuram garantir a todos o acesso aos meios de vida e de trabalho num
sentido amplo, impedindo, desta maneira, a invasão do todo em relação ao
indivíduo, que também resulta da escassez dos meios de vida e de trabalho
(LAFER, 1988, p. 127-128).
O uso amplo da liberdade individual acabou por desequilibrar a sociedade ocidental,
criando enormes injustiças sociais. Dessa maneira, tivemos o conflito entre o trabalho e o
capital diante de um Estado indiferente, e favorecedor da opressão dos trabalhadores pela
burguesia.
Nesse contexto, Adriana Galvão Moura in Constituição e Construção da Cidadania
salienta que: “As normas constitucionais consagradoras desses direitos exigem do Estado uma
atuação positiva, através de ações concretas desencadeadas para favorecer o indivíduo
[também são conhecidos como direitos positivos ou direitos de prestação]” (MOURA, 2005,
44
p. 23).
A terceira geração são os direitos decorrentes da solidariedade ou de titularidade
coletiva, ditos difusos, e nascem em decorrência da generalidade da humanidade e do
“amadurecimento de novas exigências – podemos mesmo dizer - de novos valores”
(BOBBIO, 2004, p. 36). Justamente “[…] caracterizam-se por destinarem-se à proteção, não
do homem em sua individualidade, mas do homem em coletividade social, sendo, portanto, de
titularidade coletiva ou difusa” (CUNHA JUNIOR, 2012, p. 626).
Além das três gerações clássicas, descritas por Norberto Bobbio, atualmente se
estuda a existência de outras, decorrentes dos avanços sociais, genéticos e tecnológicos.
Neste sentido, Samuel Antonio Merbach de Oliveira (2013, p.18) diz que a quarta
geração dos direitos do homem se refere à manipulação genética, à biotecnologia e à
bioengenharia, abordando reflexões acerca da vida e da morte, pressupondo sempre um
debate ético prévio. Através dessa geração se determinam os alicerces jurídicos dos avanços
tecnológicos e seus limites constitucionais.
Diante dos avanços da revolução tecnológica e da nova ordem mundial, a quarta
geração vem suscitando controvérsias em relação aos direitos e obrigações decorrentes da
manipulação genética ou do controle de dados informatizados que muitas vezes podem ser
acessados via Internet de qualquer lugar do mundo. Também denominados “Direitos
Difusos”, colocam em evidência os direitos concernentes à evolução biogenética e
tecnológica (OLIVEIRA, 2013).
Bobbio (1992, p. 6) entende que a quarta geração de direitos do homem refere-se
“aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do
patrimônio genético de cada indivíduo”.
No intuito de relacionar as dimensões da cidadania à comunicação, Peruzzo (2005),
reflete sobre o acesso e o empoderamento popular do cidadão e dos movimentos sociais que
os representam, no que diz respeito à comunicação como um direito humano.
Peruzzo (2005) traz em seu texto o percurso da comunicação nas diversas dimensões
da cidadania, o qual é visto tratando desde os direitos de primeira à terceira geração.
Entretanto, ressalva que na atualidade a comunicação, dado os avanços tecnológicos, esteja
em via de ocupar lugar de destaque na construção da cidadania.
Assim, isso seria um “processo indicativo de movimento correlato àquele que
identifica a passagem da cidadania de uma fase à outra de maior qualidade” (PERUZZO,
2005, p. 38). Dessa forma, aponta nas dimensões da cidadania a inclusão de uma quinta
geração de direitos, os direitos comunicacionais, que englobam também a cultura.
45
Cidadania é desenvolvimento social com igualdade. Assim sendo, a riqueza
socialmente produzida, as descobertas científicas e tecnológicas, as artes, a educação, o lazer
e todas as demais benesses geradas no processo histórico deveriam ser desfrutadas com
igualdade e liberdade para a realização plena da cidadania. No entanto, na prática, o que há é
extrema desigualdade dentro dos países e entre nações. Enfim, uns são mais cidadãos que
outros, sendo estes a maioria. A situação desigual e de injustiça social é consequência do
modelo de desenvolvimento adotado e das estratégias implementadas para concretizá-lo
(PERUZZO, 2007b, p. 46).
A base da comunicação para a cidadania está no empoderamento popular, ou seja, na
apropriação e consciência coletiva dos cidadãos em utilizar a comunicação para desenhar
melhores mundos possíveis, para redesenhar sua própria realidade, tendo em vista à
transformação social. Este empoderamento, no limiar, só é possível quando os sujeitos
coletivos se apropriam da comunicação e tornam-se protagonistas, quando a comunicação
passa a ser considerada como um processo. Neste aspecto, sujeitos coletivos, movimentos
sociais populares engajados na luta pelos direitos sociais, forjam suas realidades e tentam
reinventá-las se empoderando da Comunicação Comunitária, por exemplo, é uma das formas
de exercitar o direito à comunicação.
Ramos (2005, p. 250), embora caracterize a comunicação como um direito de
“quarta geração” e não de quinta, como seria desejável, faz uma contribuição importante
quando aborda que a primeira e fundamental consequência de se reconhecer o direito à
comunicação é entender que ela precisa ser vista como passível de discussão e ação como
política pública essencial, assim como as demais direcionadas à saúde, à alimentação, ao
saneamento, ao trabalho, à segurança, entre outros.
Para Bobbio (1999, p. 25), o problema que temos diante de nós em relação a
conformação dos direitos de cidadania – incluí-se nessa esteira o direito à comunicação – não
é filosófico, mas num sentido mais amplo, político. O autor afirma que não se trata de saber
quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, neste caso, bastaria
observar a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Tampouco, se são direitos naturais
ou históricos, mas sim pensar qual o modo mais seguro de garantir esses direitos, já
amplamente expressados nas declarações.
46
2 A participação popular na comunicação: o exercício da cidadania
Cicília Peruzzo (2005, p.34) diz que “os meios comunitários” são os que mais
potencializam a participação direta do cidadão na esfera pública comunicacional no Brasil”.
Seja pela facilidade da localização que permite fácil acesso, porque ficam no mesmo ambiente
em que vivem, seja pelo processo participativo em que se realiza a comunicação, ou pela
recepção da mensagem que o atinge.
Para a autora a participação popular pode se dar como ouvintes, leitores ou
expectadores. Como também pode fazer parte da gestão e do planejamento da comunicação, e
processos de produção.
A participação do processo de fazer comunicação é essencial nas organizações
populares, é o envolvimento direto do cidadão, representa um avanço significativo na
democracia comunicacional.
A participação popular pode ser a constituinte para ampliar o exercício da cidadania,
não só pelos conteúdos críticos, as denúncias e reivindicações das demandas sociais da
comunidade, mas também pelo processo do fazer comunicativo.
Contribui para a formação da construção da cidadania por meio do processo que é
educativo e também pelo conteúdo das mensagens transmitidas.
Os meios de comunicação produzidos por setores organizados das classes subalternas, ou a elas organicamente ligados, acabam por criar um campo propício para o desenvolvimento da educação para a cidadania. As relações entre educação e comunicação se explicitam, pois as pessoas envolvidas em tais processos desenvolvem o seu conhecimento e mudam o seu modo de ver e relacionar-se com a sociedade e com o próprio sistema dos meios de comunicação de massa. Apropriam-se das técnicas e de instrumentos tecnológicos de comunicação, adquirem uma visão mais crítica, tanto pelas informações que recebem quanto pelo que aprendem através da vivência, da própria prática (PERUZZO, 2005, p. 36).
A participação popular na comunicação comunitária coloca o ser humano como
protagonista das mudanças sociais. Amplia sua cidadania através do conhecimento adquirido
nos processos comunicativos, educando no seu fazer responsável e compartilhado, assim
como na transmissão das mensagens através de seus conteúdos (PERUZZO, 2005, p. 35).
O Brasil nos últimos dez anos avançou timidamente, e a passos lentos, em algumas
questões sociais. Sabe-se das urgências sociais sérias que ainda não são contempladas por
políticas públicas. O clamor das classes menos favorecidas está aí, a frente de nossos olhos e
47
cada vez mais gritantes. E qual a participação da comunicação, a communicatio, neste
processo?
Temos passado por grandes transformações científicas e tecnológicas, porém o
acesso a estas tecnologias é restrito a uma parcela da população brasileira. Serviços com altos
preços e a falta infraestrutura fora dos grandes centros colaboram para uma segregação: a
exclusão digital, aumentando mais a distância no societas (sociedade) e seus socius
(parceiros) de vida.
O individualismo presente e o espírito capitalista ocidental da competitividade
presente só estão nos afastando do comum. Toda questão amplamente pensada por Buber
(1969) da relação dual Eu-Tu simplesmente fora desprezada.
Tomados por um discurso tecnológico, que a princípio é vendido como a solução
para nossa evolução social, de uma vida melhor, somos embebidos por uma narrativa da era
da comunicação/informação de que: “Agora está tudo bem, conhecemos nossas questões
sociais porque temos informações”. Mas vemos que no paraíso capitalista tecnicista o inferno
é bem presente e visível, ter somente a informação não basta. Necessitamos da retomada da
communicatio, a comunicação que produz narrativas sociais do comum.
Expostas, pesquisadas, comunicadas pelos meios de comunicação para surtir
mudanças sociais significativas, as diferenças sociais: falta de moradia, desemprego, direito a
terra, o desrespeito aos direitos fundamentais do Homem é visto e vivenciado na sociedade
brasileira. Resultado decorrente das ações pensadas e realizadas sem o espírito do comum.
A falta desta comunicação do comum traz à tona uma sociedade cada vez mais
individualista e gananciosa. Peruzo (1998, p.26) traz um pensamento contemporâneo sobre o
panorama da sociedade:
São contingentes de pessoas que vão perdendo valores intrinsecamente humanos, como o respeito pelo semelhante, a solidariedade, e a gratuidade, enquanto ajudam a valorizar cada vez mais a ganância e o individualismo. E assim o homem vai se tornando objeto, mercadoria, coisa manipulável, em detrimento de sua essência e do caráter de sua espécie
A comunicação nos movimentos sociais é um fator de extrema relevância, é ela que
faz a communicatio ter existência e a prática da relação dual “Eu-Tu” ser um fato recorrente
na sociedade. A capacidade de compartilhar “o viver” com todos anseios e desejos que uma
sociedade apresenta diante de suas transformações. A essência da condição humana está
justamente em ter na communicatio seu papel de agente de sua própria história, ter um
acolhimento na comunidade uma ordem de todas as diferenças e trocas possíveis no comum:
48
O homem tem como essência a potencialidade de ser sujeito da história. Alienando-se ele
perverte os seus valores próprios, transformando-se em objeto. Nessas condições, ele se
deforma, se embrutece, se desumaniza (PERUZZO, 1998, p.26).
Neste processo de comunicação/informação muitas vezes os mass media não
expressam, sem interesses financistas e apartidários, o grito das comunidades, com seus
movimentos sociais reivindicando até mesmo o direito à livre expressão.
Por isso há necessidade da existência de meios de comunicação voltados a questão
participativa das mudanças sociais. Ter um espaço comunicacional voltado para as questões
da communicatio é importante para ter resultados políticos que resultem em mudanças sociais
significativas. Os movimentos populares demonstraram, no decorrer da história recente do
Brasil, a necessidade de espaços de comunicação “alternativos” em relação a dita “grande
imprensa” como cita autora Peruzo (1998, p.114-115):
Numa conjuntura em que vinha à tona a insatisfação decorrente das precárias condições de existência de uma grande maioria e das restrições à liberdade de expressão pelos meios massivos, criaram-se instrumentos ‘alternativos’ dos setores populares, não sujeitos ao controle governamental ou empresarial direto. Era uma comunicação vinculada à prática de movimentos coletivos, retratando momentos de um processo democrático inerente aos tipos, às formas e aos conteúdos dos veículos, diferentes daqueles de estrutura então dominante, da chamada ‘grande imprensa’. Nesse patamar, a ‘nova’ comunicação representou um grito, antes sufocado, de denúncia e reivindicação por transformação, exteriorizado, sobretudo em pequenos jornais, boletins, alto-falantes, teatro, folhetos, volantes, vídeos, audiovisuais, faixas, cartazes, pôsteres, cartilhas, etc.
Esta comunicação com conteúdos feitos pelas comunidades e movimentos sociais
traz a possibilidade da realização da communicatio, que é justamente “pôr-se em comum”,
amplificando as demandas sociais coletivas, onde todos participam por meio do diálogo que
resulta na produção de uma comunicação transmitida por meio dos veículos comunitários,
isentos de qualquer compromisso financista.
Os mass media quando se propõem, até conseguem, mesmo com espaços diminutos,
compartilhar o comum, colocando questões levantadas pelos movimentos sociais. Vale
lembrar sempre que no momento da interação com estes meios de comunicação poderá haver
uma iminente possibilidade de caráter financista, e/ou interesses governamentais atuantes
nestas mediações.
49
CAPÍTULO III – QUILOMBO CARRAPATOS DA TABATINGA: 300 ANOS DE
RESISTÊNCIA
Nota Introdutória ao Capítulo
O capítulo inicia com a origem dos quilombos no Brasil de forma breve, pois o tema
é amplo, o objetivo é entender como se constituíram como unidades de resistência e
permanecem até os dias de hoje. Posteriormente abordaremos a origem da comunidade
quilombola Carrapatos da Tabatinga, suas lutas que persistem há mais de 300 anos, as
demandas sociais que vão desde as reivindicações de Direitos constitucionais garantidos, mas
de Fato não, das terras dos remanescentes quilombolas, perpassando pela desigualdade social
abarcada pelo preconceito racial. Dissertamos sobre os processos comunicacionais
estabelecidos entre os membros da comunidade e suas atividades, e sobre as forças
comunicantes do Congado com a sociedade local, por meio da participação das Festas de
Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Realizamos uma análise se há meios de
comunicação comunitários e como é a relação da comunidade com estes meios.
1 Quilombo: a materialização da resistência negra e a importância da territorialização
A escravidão de africanos nas Américas consumiu cerca de 15 milhões ou mais de
homens e mulheres arrancados de suas terras. O tráfico de escravos através do Atlântico foi
um dos grandes empreendimentos comerciais e culturais que marcaram a formação do mundo
moderno e a criação de um sistema econômico mundial. A participação do Brasil nessa
trágica aventura foi enorme. Para o Brasil estima-se que vieram perto de 40% dos escravos
africanos. Aqui, não obstante o uso intensivo da mão-de–obra cativa indígena (MONTEIRO,
1994), foram os africanos e seus descentes que constituíram a força de trabalho principal
durante anos de escravidão.
Os negros penetraram em cada aspecto na vida brasileira. Além de movimentarem
engenhos, fazendas, minas, cidades, plantações, fábricas, cozinhas e salões, os escravos da
África e seus descendentes imprimiram marcas próprias sobre vários outros aspectos da
cultura material e espiritual deste país, sua agricultura, culinária, religião, língua, música,
artes e arquitetura... a lista é longa e já estamos cansados de ouvir (REIS; GOMES, 1996).
Mas segundo Ribeiro (2004, p.118) a empresa escravista atuou como uma máquina
desumanizadora e desculturadora de eficácia incomparável. Submetido a essa compressão,
50
qualquer povo é desapropriado de si, deixando de ser ele próprio, primeiro, para ser ninguém
ao ver-se reduzido a uma condição de bem semovente, como um animal de carga.
A escravidão além de base econômica da colonização brasileira foi também o
fundamento de todas as esferas da vida social e política. O escravismo imprime a
desigualdade e a excludência como regras básicas do convívio social. A sociedade
escravocrata estabelece o império da violência, o trabalho compulsório prescinde da
hegemonia, pois se realiza diretamente pela força (MORAES, 2005, p. 97).
É certo também citar que onde houve escravidão houve resistência, e de vários tipos.
Mesmo sob a ameaça do chicote, o escravo negociava espaços de autonomia com os senhores
ou fazia corpo mole no trabalho, quebrava ferramentas, incendiava plantações, agredia
senhores e feitores, rebelava-se individual ou coletivamente. Aqui também a lista é longa e
conhecida (REIS; GOMES, 1996).
Houve, no entanto, um tipo de resistência que poderíamos caracterizar como típica
da escravidão – e de outras formas de trabalho forçado. Trata-se da fuga e formação de
escravos fugidos, é importante lembrar que a fuga nem sempre levava a formação desses
grupos. Ela podia ser individual ou grupal, mas os escravos terminavam procurando se diluir
no anonimato da massa escrava e de negros livres. Nesses casos, o destino podia ser as
cidades, onde não se estranhava a circulação de homens e mulheres de vários matizes raciais,
que vieram a formar setores consideráveis, em muitas regiões até majoritárias, da população
livre (REIS; GOMES, 1996).
A fuga que levava à formação de grupos de escravos fugidos, aos quais
frequentemente se associavam a outros personagens sociais, aconteceu nas Américas onde
ocorreu a escravidão. Tinha nomes diferentes, na América espanhola: palanques, cumbes etc.;
na inglesa marrons; na francesa grand marronage (para diferenciar de petit marronage, a fuga
individual, em geral temporária). No Brasil esses grupos eram chamados geralmente de
quilombos e mocambos e seus membros quilombolas, calhambolas ou mocambeiros (REIS;
GOMES, 1996, p.10).
No Brasil, a origem do termo quilombo remete a um documento administrativo do
período colonial que costuma ser citado como uma das primeiras referências sobre o assunto.
Trata-se de um mandato de repressão do Regimento dos capitães-do-mato do século XVIII
que diz o seguinte: “Pelos negros que forem presos em quilombos formados distantes de
povoação onde estejam acima de quatro negros, com ranchos, pilões e de modo de aí se
conservarem, haverão para cada negro destes 20 oitavas de ouro” (GUIMARÃES, 1988, p.
131).
51
Pouco tempo depois, o Conselho Ultramarino português definiria o quilombo ou
mocambo como: “Toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte
despovoada, ainda que não tenham ranchos e nem se achem pilões nele” (LEITE, 2000, p.
336).
Portanto, o quilombo foi uma inscrição colonial e jurídica que remitia à
criminalização e à fuga de escravos. Dentre os quilombos que se formaram no Brasil, um dos
que se tornaram mais célebres foi o de Palmares, que se tornou uma referência importante nos
debates das primeiras décadas do século XX sobre a resistência negra no Brasil,
principalmente a partir da obra Os Africanos no Brasil, de Rodriguez (1932). Nesta obra, o
autor acabava justificando as ações armadas que destruíram Palmares. Utilizando argumentos
do cientificismo racista do século XIX considerava que:
A Raça Negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis serviços à nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de que a cerco o revoltante abuso da escravidão, por maiores que se revelem os generosos exageros dos seus turiferários, há de constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo (RODRIGUES, 1932, p. 17).
Contudo, seu posicionamento sobre o tema foi muito ambíguo, pois acreditava na
importância da construção de um patrimônio cultural sobre os africanos no Brasil e colaborou
muito para isso. Mas considerava que a construção desse patrimônio podia ser tentada apenas
nas áreas em que considerava que essa cultura ainda sobrevivia, nas “manifestações
espirituais”, já que as territorialidades negras eram para ele um tema do passado que não tinha
deixado vestígios. Considerava que os negros acabaram sendo incorporados ao “nosso meio
étnico”, mas no que diz respeito à religião teria havido de fato uma “ilusão de catequeses”, ou
seja, considerava que as populações negras haviam deixado de existir como comunidades de
lugar, porém ainda existiam como comunidades de espírito.
Na década de 1940, Arthur Ramos (1942) retoma o tema de Palmares em sua obra
“A aculturação negra no Brasil” utilizando praticamente as mesmas referências documentais
que Rodrigues (1932) e um registro similar sobre o quilombo como “um Estado com tradições
africanas dentro do Brasil”. Contudo, observa que Palmares não era o único padrão de
organização de quilombos, refere-se a uma série de quilombos de “negros fugidos” que
existiram em diversas regiões do país e que denomina de “aldeamentos” (RAMOS, 1942,
p.76).
52
De fato, os quilombos que constituíram uma forma de organização comunitária e
pesquisas históricas mais contemporâneas, têm relativizado o quilombo como somente local
de fuga, transitório e isolado (FUNARI, 1996; GOMES, 1995; MATTOS, 1998). Os
quilombos constituíam territórios comunitários estáveis e economias autônomas com alto grau
de autos suficiência e em constantes relações de troca, não somente com os nativos moradores
das vilas coloniais, como também com colonizadores, fazendeiros e outros grupos sociais.
Nestas releituras de quilombos históricos também foi ganhando relevância a visão
de que os quilombos eram “espaços multiétnicos” (FUNARI; CARVALHO, 2005), uma vez
que as trocas comerciais e sociais promoviam a “fusão de culturas” colônias, europeias e
africanas (ALLEN, 1998).
A partir da década de 1960, o termo quilombo se desloca da referência histórica e
passa a ser utilizado como símbolo de resistência pelo movimento negro (ARRUTI, 2006).
Recém será no contexto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,
que o quilombo retorna à vida política de maneira inédita, não já como referência histórica,
nem como símbolo político, mas como um direito que abria a possibilidade de acesso à terra
para populações descendentes dessas comunidades quilombolas do período da escravidão
chamados de “remanescentes quilombolas”.13
A Constituição Brasileira de 1988, no Artigo 68 contempla que: “Aos remanescentes
das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”
(CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASI, 1988).
Embora a interpretação constitucional seja ainda motivo de disputas e debates
jurídicos, a política quilombola é inaugurada no primeiro mandato do presidente Luís Inácio
Lula da Silva, que começou a tornar visível um grande número de “comunidades negras”,
espalhadas em todo o país, estas comunidades quilombolas tinham diferentes origens.
O então presidente Lula em 2003, conforme o Decreto 4887/200314
define critérios
para o reconhecimento das comunidades quilombolas que diz:
“Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins
deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição,
com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas,
com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à
opressão histórica sofrida”.
13
Informações do site oficial da Casa Civil do Governo Federal do Brasil, da Constituição da República
Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm 14
As classes dominantes tiveram especial sucesso na destruição dos quilombos
históricos sem deixar praticamente vestígios materiais de sua existência (REIS; GOMES,
1996), as comunidades quilombolas brasileiras redescobertas, diferentemente das
comunidades negras de outros países da América, como Suriname, Jamaica e Colômbia,
tinham escassa consciência histórica e política do passado da escravidão, o que se refletia na
ausência de documentos escritos ou de testemunhas orais que as conectassem com os
quilombos históricos (PRICE, 2000).
Ao negro foi negada uma cidadania real mesmo após a abolição da escravatura.
Recusados e discriminados como mão de obra paga, muitos negros estabeleceram-se sob as
bases da agricultura de subsistência, comercializando, quando possível, seus excedentes. Na
maioria das vezes, posseiros ou pequenos proprietários os grupos rurais negros constroem
coletivamente a vida sob uma base material e social, formadora de uma territorialidade negra,
na qual se elaboram formas específicas de ser e existir como camponês e negro:
Um inventário parcial das informações existentes aponta para o fato de que os grupos negros vivem em bairros rurais, entendidos aqui na perspectiva desenvolvida por Cândido (1971) e por Queiroz (1976), ou então, em áreas esparsas reconhecidas como de negros. A especificidade do modo de vida demonstra existirem elementos que os diferenciam pela condição étnica e história particular de sua constituição (GUSMÃO, 1995, p.14).
Muitas das determinações coloniais permanecem vigentes mesmo após os processos
de emancipação política de tais países, uma vez que a nova ordem política é construída sobre
o arcabouço econômico e social gerado no período colonial (MORAES, 2005, p. 91).
Conforme o argumento de O´Dwyer (2002) essa “invisibilidade social e simbólica”
podia ser interpretada como uma estratégia utilizada pelos próprios quilombolas para se
distanciar de um passado traumático, mas de fato em muitas comunidades não se
reconheciam.
Persistiam como comunidades de lugar, mas o desvanecimento da comunidade de
espírito se revelava no abandono de expressões culturais locais como o jongo, o tambor,
terreiros de Umbanda, festividades e outras, configurando um processo abrangente de
desestruturação de uma identidade cultural comunitária que remontava ao período colonial.
Também constatou-se que há agentes - antropólogos, ONGs, pesquisadores de
universidades, agentes de turismo, agentes culturais, entre outros – que estavam participando
ativamente nas (re) construções dessas comunidades de espírito. Estes agentes estão
empenhados na “reconstrução” de danças, gastronomia, rituais de cura, festividades, música e
55
religião, utilizando “técnicas modernas”, como a cenografia, técnicas de dança, vídeos,
laudos, planejamento e produção cultural.
Assim a retomada das comunidades quilombolas que se reorganizam a partir do marco
da Constituição de 1988, principalmente após o Decreto de 2003, e a principal luta são pelas
devolutivas das terras quilombolas. Lutam hoje pelas terras que estão nas mãos de latifundiários
que muitas vezes são frutos de famílias oriundas do período colonial como diz Moraes (2005,
p.91): “Muitas das determinações coloniais permanecem vigentes mesmo após os processos
de emancipação política de tais países, uma vez que a nova ordem política é construída sobre
o arcabouço econômico e social gerado no período colonial”.
E essa é a lógica que persistirá em nossa história, pois dos colonizadores europeus
passamos às elites nacionais cujo projeto territorial e socioeconômico para o país eram
exatamente os mesmos, o de apropriação e consumo dos recursos naturais e das pessoas.
Assim, a independência é um ato formal que não altera a vida socioeconômica do Brasil. O
regime escravocrata, o latifúndio e a concentração de riquezas apenas fortaleceram-se.
A escravidão além de base econômica da colonização brasileira foi também o
fundamento de todas as esferas da vida social e política. O escravismo imprime a
desigualdade e a excludência como regras básicas do convívio social. A sociedade
escravocrata estabelece o império da violência, o trabalho compulsório prescinde da
hegemonia, pois se realiza diretamente pela força (MORAES, 2005, p. 97).
A questão fundiária em nosso país está extremamente vinculada à sorte da população
negra, pois ao instituir que as terras deveriam ser “compradas” naturalmente os negros foram
excluídos desse processo de apropriação destas, primeiro porque eram escravizados
(mercadorias), depois de 1888 por serem libertos, mas marginalizados na sociedade e,
portanto, sem a possibilidade de adquirir terras. Embora a questão da obrigatoriedade da
compra de terras afetasse também imigrantes e brasileiros brancos e pobres, pois também para
estes a terra tornou-se mais difícil, para os negros essa questão levou a uma maior
marginalização, visto que se o negro não tinha terras para sua subsistência, tampouco tinha
outras possibilidades de garantir seu sustento.
Neste trabalho adotou-se uma concepção de território integradora que transita da
definição política à cultural, pois se preocupa mais com o processo de territorialização como
domínio e apropriação do espaço por populações quilombolas do que propriamente com o
conceito de território.
56
De acordo com Haesbaert (2004, p.16):
Cada um de nós necessita, como um recurso ‟básico, territorializar-se. Não nos moldes de um espaço vital ‟darwinista-artesiano, que impõe o solo como um determinante da vida humana, mas num sentido muito mais múltiplo e relacional, mergulhado na diversidade e na dinâmica temporal do mundo.
O território foi visto como um espaço físico, mas também como um espaço de
referência para a construção da identidade quilombola.
Nesta pesquisa, na qual lidou-se por vezes com as subjetividades, com os desejos e
ânsias das comunidades quilombolas, o território foi considerado antes de tudo, um espaço de
referência para a construção da identidade quilombola, pois é físico-material, político,
econômico e também simbólico.
A invenção de identidades político-cultural é recorrente, ela acontece sempre que
determinado grupo põe-se em movimento para reivindicar o que lhe é essencial. No caso das
comunidades quilombolas, a terra. Terra aqui entendida num sentido amplo, englobando a
terra necessária para a reprodução material da vida, mas também a terra na qual o simbólico
paira, na qual a memória encontra lugar privilegiado, morada de mitos e lendas, fonte de
beleza, inspiração e do sentido sagrado da coletividade, tão essencial à vida quanto a terra de
trabalho. De acordo com Gonçalves (2003, p.379):
A construção de uma identidade coletiva é possível não só devido às condições sociais de vida semelhantes, mas também por serem percebidas como interessantes e, por isso, é uma construção e não uma inevitabilidade histórica ou natural. E, mais, na afirmação dessa identidade coletiva há uma luta intensa por afirmar os modos de percepção legítima da (di) visão social, da (di) visão do espaço, da (di)visão do tempo da divisão da natureza.
É necessário então entender a constituição da identidade quilombola face à
necessidade de luta pela manutenção ou reconquista de um território material e simbólico. Por
isso, talvez melhor do que discutir o conceito de território seja discutir o processo de
territorialização dessas comunidades. A territorialidade adquire um valor particular, pois
reflete a multidimensionalidade do vivido territorial pelos membros de uma coletividade.
Quando uma comunidade quilombola se organiza e reivindica seus direitos sobre um
território ancestral, quando ela luta para se territorializar, ela está negando o lugar marginal
que lhe havia sido designado pela sociedade abrangente, seja por grandes empresas privadas
que plantam eucalipto ou cana em seus territórios, seja pelo próprio poder público que lhes
impõe unidades de conservação ambientais estabelecendo uma nova territorialidade.
57
Para o surgimento da mobilização que busca a territorialização Gonçalves (2001)
enfatiza a importância dos movimentos sociais, inventando de baixo, por baixo e para os de
baixo, novos pactos, novas relações, novos direitos desse complexo processo de
reorganização social.
Todo movimento social se configura a partir daqueles que rompem a inércia e se movem, isto é, mudam de lugar, negam o lugar que historicamente estavam destinados em uma organização social, e buscam ampliar os espaços de expressão que, como já nos alertou Michel Foucault, têm fortes implicações de ordem política (GONÇALVES, 2001, p. 81).
As territorialidades são instituídas por sujeitos sociais em situações historicamente
determinadas. Se hoje existem territórios quilombolas é porque em um momento histórico um
grupo se posicionou aproveitando uma correlação de forças políticas favoráveis e instituiu um
direito que fez multiplicar os sujeitos sociais e as disputas territoriais.
Territorializar-se significa ter poder e autonomia para estabelecer determinado modo
de vida em um espaço, para estabelecer as condições de continuidade da reprodução material
e simbólica deste modo de vida. A sobreposição de territórios implica necessariamente em
uma disputa de poder.
As comunidades quilombolas ao se organizarem pelo direito aos territórios
ancestrais, não estão apenas lutando por demarcação de terras, as quais elas têm absoluto
direito, mas, sobretudo, estão fazendo valer seus direitos a um modo de vida. Antes e depois
da abolição da escravatura o território brasileiro esteve marcado pela presença de
comunidades negras que ainda hoje resistem às pressões de latifundiários, de especuladores
imobiliários e até mesmo do poder público pela manutenção ou reconquista de seus
territórios. Desta forma, o processo de territorialização quilombola constitui-se muitas vezes,
na luta para continuar a existir, na reinvenção de uma identidade política portadora de direitos
que é informada por uma memória ancestral.
A memória, neste sentido, tem grande importância, visto que em geral se tratam de
comunidades iletradas, de forte tradição oral e que encontram na reinvenção de suas
identidades sua força para atuarem como cidadãos.
Os quilombos são a materialização da resistência negra à escravização, foram uma
das primeiras formas de defesa dos negros, contra não só a escravização, mas também à
discriminação racial e ao preconceito.
58
2 Os quilombolas de Bom Despacho: a história marcada por luta desde a origem
A cidade de Bom Despacho está localizada na região centro-oeste do Estado de
Minas Gerais, a 147 km de Belo Horizonte, capital do Estado, tendo hoje 45.626 habitantes,
de acordo com dados do IBGE, censo 2010. Sua vida bucólica e tranquila desenvolve-se em
meio a campos, montanhas e cachoeiras ao longo dos seus 1212,7km2 de extensão. Os
quilombolas desta cidade habitam o bairro Ana Rosa (antiga Tabatinga) é uma comunidade
urbana composta por aproximadamente 500 pessoas, organizada desde 2006 pela Associação
Quilombola Carrapatos da Tabatinga.
E tem como uma de suas representantes Sandra Andrade, que também é presidente
da Federação Mineira Quilombola, considerada uma das principais articuladoras junto ao
poder público das políticas em prol das comunidades quilombolas mineiras e do Brasil.
A história dos quilombolas está intimamente ligada ao povoamento da cidade de
Bom Despacho. Embora tenha sido elevada à categoria de município e vila somente neste
século, em 30 de agosto de 1911, Bom Despacho possuí uma história que começa por volta da
metade do século XVIII e se liga intimamente a Pitangui, uma das primeiras vilas do ouro, a
qual pertenceu até o ano de 1880 (RODRIGUES, 1968, p.103).
A história revelada nos documentos de Antonio Rodrigues da Rocha (1968, p.36) é
de grande importância para o estudo, pois além de conter a primeira referência à presença de
negros da região de Bom Despacho, vem revelar que, na realidade, foram eles os primeiros
povoadores daquelas terras. Atrás desses “negros do mato” é que vai entrando mais gente.
Em diversos outros documentos, Laércio Rodrigues (1968) encontrou registros de que,
“no território compreendido pelos rios Lambari e São Francisco, eram numerosos os núcleos
tribais de escravos fugidos”. Considerados sérios obstáculos ao processo de povoamento
português da região, esses quilombos eram combatidos por expedições que, para esse fim, se
organizam em Pitangui. Os expedicionários, “exterminando os quilombos das áreas
enquistadas, ali lançam posses, alcançam sesmarias e estabelecem fazendas “ (RODRIGUES,
1968, p. 28).
A comunidade do Quilombolas Carrapatos da Tabatinga é formada por membros
com laços sanguíneos e ancestralidade negra, de origem africana e escrava, que resistem até
hoje, a opressão histórica sofrida. Pela sua formação, já foi autoatribuída e considerada
legalmente pelo governo federal brasileiro como comunidade remanescente quilombola de
acordo com o Decreto 4887/2003 que:
59
Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins
deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição,
com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas,
com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à
opressão histórica sofrida.19
No que diz respeito aos grupos africanos a que se ligam esses negros e mulatos da
comunidade dos Carrapatos da Tabatinga, os dados disponíveis referem-se aos de Pitangui, no
período de 1718 a 1723. Segundo artigo de Francisco Vidal Luna e Iraci de Nero da Costa
(1980, p.6-7), verifica-se ali pequena diferença entre bantos e sudaneses, a favor dos
primeiros. Os sudaneses não chegam a ser maioria em Pitangui, embora sua população
aumente durante o período da mineração. Porém até hoje há o uso dos vocábulos africanos da
Língua do Negro da Costa em Bom Despacho, os dados linguísticos parecem confirmar o
predomínio dos bantos na região.
Enfim, quer tenham predominado os bantos, quer os sudaneses, o negro
desempenhou um papel relevante no povoamento de Bom Despacho. Na condição de
quilombola, adentrando o sertão em busca da liberdade, ou na condição de cativo,
acompanhando seu senhor ao estabelecimento de fazendas de criação de gado e lavoura,
participou de modo ativo na formação cultural regional (RODRIGUES, 1968). A Língua do
Negro da Costa, como as festas do Congado, é documento vivo da presença marcante dos
africanos e de seus descendentes na região.
Segundo a obra de Sonia Queiroz (1998) o nome Tabatinga é uma referência ao
barro branco existente na principal rua do atual bairro. Este era amassado com os pés para ser
utilizado na construção de casebres. Mesmo com o processo de urbanização e os fortes
preconceitos de parte da população local, a Tabatinga resiste.
A identificação da comunidade se compõe também pela palavra Carrapatos que é
outro símbolo de resistência. O projeto piloto com comunidades quilombolas do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em parceria com a Universidade de São
Paulo (USP)20
, os pesquisadores realizaram uma entrevista com Dona Sebastiana, mais
conhecida pela comunidade como Dona Tiana, e perguntaram de onde vinha esse nome
Carrapatos e ela respondeu: “É..eh eh... Meu neto fez essa pergunta pra mim... eh...por que
Carrapato? Os policiais ia lá matava todo mundo...matava... e meus...meus antepassado
[furaram o buraco] deles no chão...fizeram o subterrâneo e entrou pra lá. E [plantou] até em
cima, né... então tinha um tampo que era só mato mas era tampo e eles ficou ali até passar a
época da... judiação, da matação, né... de medo... entendeu? Aí quando passou a época eles
O prédio possui em seu terreno uma área descoberta, um pátio onde realizam os
ensaios das apresentações de dança e teatro. Espaço este que a comunidade tem o desejo de
cobrir para que a chuva ou o forte calor que faz em Bom Despacho, não dificulte os ensaios e
os eventos culturais por eles promovidos.
Infelizmente as verbas são escassas por parte do poder público, mas a comunidade
continua lutando para conquistar esse objetivo. Foi presenciado no período de visitas na
Associação45
uma comunidade ativa, engajada e participativa nas questões relacionadas a
preservação e manutenção das matrizes africanas, consciente da sua luta contra o preconceito
racial, e com objetivos claros em relação a luta pelo direito dos territórios quilombolas.
Percebeu-se a coesão da comunidade nos seus objetivos e a uma mobilização de
todos os integrantes para as conquistas de suas demandas sociais, através das participações em
eventos culturais e manifestações de protestos, como também por meio do diálogo, a questão
do direito aos territórios quilombolas.
Um dos elementos constituintes do conceito de comunidade que é válida até os dias
de hoje é “[...] existência de um modo de relacionamento baseado na coesão, convergência de
objetivos e de visão de mundo, interação, sentimento de pertença, participação ativa,
compartilhamento de identidades culturais, corresponsabilidade e caráter cooperativo [...]
”(PERUZZO, 2005, p.14).
Para a prática deste relacionamento em uma comunidade é necessário o exercício da
comunicação em sua gênese literal. Entende-se assim como o termo comunicação – oriundo
do latim communicatio/communicare com o sentido principal de “partilha”, “participar de
algo” ou “pôr-se em comum” (SODRE, 2014, p. 10).
Para o filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas (1989), as sociedades atuais
complexas, estão estruturadas em condições precárias de integração social, arranjos que
potencializam os conflitos, dificultam a formação de unidades axiológicas e impedem a
emancipação do homem. Em meio a esse cenário, os indivíduos dirigem suas ações por
critérios de racionalidade meramente instrumentais, voltados à busca de interesses próprios,
espelhados através de cálculos de vantagens e decisões arbitrárias. Atua-se sobre o outro e
não com o outro, isto é, um “agir racional com direção a fins”, meramente estratégico. Para
Habermas (1989, p.79), as interações comunicativas são aquelas em que:
44
Entrevista realizada na sede da Associação em 09 de outubro de 2015. 45
Visitas realizadas no período de Outubro de 2015 a abril de 2016.
67
[...] as pessoas envolvidas se põem de acordo para coordenar seus planos de ação, o acordo alcançado em cada caso medindo-se pelo reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validez. No caso de processos de entendimento mútuo linguísticos, os atores erguem com seus atos de fala, ao se entenderem uns com os outros sobre algo, pretensões de validez, mais precisamente, pretensões de verdade, pretensões de correção e pretensões de sinceridade, conforme se refiram a algo no mundo objetivo (enquanto totalidade dos estados de coisas existentes), ou a algo no mundo social comum (enquanto totalidade das relações interpessoais legitimamente reguladas de um grupo social) ou a algo no mundo subjetivo próprio {enquanto totalidade das vivências a que têm acesso privilegiado.
Enquanto que no agir estratégico um atua sobre o outro para ensejar a continuação
desejada de uma interação, no agir comunicativo um é motivado racionalmente pelo outro
para uma ação e adesão – e isso em virtude do efeito ilocucionário (a ação que uns exercem
sobre os outros; e a concepção do sujeito da enunciação enquanto agente da interação social
no ato da fala) - de comprometimento que a oferta de um ato de fala suscita.
A teoria da ação comunicativa e ética discursiva, de Habermas (1989), busca
entender a moralidade sob a visão filosófica, sociológica e psicológica, apresentando a ética
discursiva como sendo parte da ação comunicativa, que com ela se confunde. Sales (2004)
analisando esta teoria habermasiana, afirma que:
A Teoria da Ação Comunicativa, de Jürgen Habermas (Theorie dês Kommunikativen Handels), procura um conceito comunicativo de razão e um novo entendimento da sociedade, ou seja, sociedade na qual os indivíduos participam ativamente das decisões individuais e coletivas conscientemente, ensejando-lhes a responsabilidade por suas decisões (SALES, 2004, p.171).
A perspectiva sociológica da teoria da ação comunicativa diz respeito a dois tipos de
ação, que Habermas (1989) identifica como: ação instrumental e ação comunicativa. As
sociedades que possuem locais onde há a prevalência da ação instrumental são identificadas
pelo filósofo Habermas (1989), como mundo sistêmico e aquelas nas quais a prevalência é da
ação comunicativa, a identificação é de mundo vivido ou mundo da vida.
Cittadino (2004) contextualizando Habermas (1989), afirma que “a ação
comunicativa, por facilitar o diálogo acaba por trazer uma melhor decisão para os indivíduos
e diferentemente do mundo sistêmico, o mundo da ação comunicativa é, o mundo vivido ou o
mundo da vida” (CITTADINO, 2004, p.108).
A ação comunicativa “[...] modifica a relação entre os indivíduos, transformando o
subjetivo em intersubjetivo, possibilitando maior compreensão do individual, e do coletivo e do
bem-estar social, permitindo a organização social, a elaboração e a validação de normas [...]”
68
(SALES, 2004, p. 175).
Neste sentido, os sujeitos têm capacidade de linguagem e ação e podem estabelecer
práticas argumentativas, por meio das quais há uma garantia intersubjetiva de
compartilhamento de um contexto comum, de um “mundo da vida”. Com isso, para Cittadino
(2004) há um despertar para o indivíduo quanto suas responsabilidades como membros da
sociedade, e como decorrência deste despertar, desta modificação, surge uma compreensão
não só das manifestações individuais, mas também daquelas ocorridas no mundo à volta, o
que acaba possibilitando o entendimento, cooperação e solidariedade permitindo, portanto,
uma compreensão maior dos fenômenos individuais, propiciando uma melhor percepção dos
sentimentos entre os envolvidos. Nesta perspectiva de interação, “[...] há desta forma, uma
inter-relação entre sujeito e sociedade, que se processa através de estruturas linguísticas,
formando aquilo que Habermas designa por intersubjetividade” (CITTADINO, 2004, p.91).
Temos, portanto, a construção de relações sociais apoiadas no princípio da
reciprocidade. Os processos se legitimam quando há o entendimento dos cidadãos acerca das
regras de sua convivência, o que somente é possível quando há comunhão de valores. Neste
caso, temos todos os interessados atuando ativamente, falando, agindo, intervindo, fazendo
afirmações, trazendo problemas, apresentando novas declarações e tudo sempre nas mesmas
condições de igualdade e com liberdade de comunicação, condições estas totalmente
favoráveis ao diálogo e que Habermas (1989) identificou como sendo uma ética discursiva.
As pessoas se valem da argumentação para buscar o entendimento e justamente, esta
argumentação racional, tem o condão de fazer com que as partes possam se convencer
mutuamente da veracidade das afirmações e declarações mútuas. O entendimento entre as
pessoas depende da argumentação entre elas (SALES, 2004, p. 176).
Como já afirmado, a formação discursiva da vontade que permite a interação
comunicativa com a utilização do melhor argumento, propiciaria aos sujeitos a possibilidade
de promoverem mudanças sobre algumas de suas convicções e com isso encontrariam razões
para seus atos. Assim, os próprios sujeitos orientariam suas ações alcançando a “situação
ideal de fala” proposta por Habermas (1989).
Habermas (1989) propõe uma teoria crítica da sociedade, que tem no agir
comunicativo o principal mecanismo de realização de entendimentos entre sujeitos, os quais
formam uma consciência moral dirigida por princípios de justiça, com igual respeito por cada
um dos integrantes do corpo social e consideração dos interesses de todos, orientados pela
ideia de reciprocidade. Assim, formam-se consensos com base nesses ideais de justiça e
solidariedade social.
69
Esta forma de restabelecer o consenso, com o uso de argumentos sobre o qual se
constrói uma razão comunicativa nos moldes propostos por Habermas (1989), tem como
fundamento a existência de uma sociedade fraterna, que tem como pilares a amizade e a
solidariedade, permitindo que as partes possam decidir suas próprias lides, promovendo o
diálogo e a cooperação entre si.
Quando se fala da teoria do Agir Comunicativo para uma sociedade de Estado de
Direito, institucionalizada, corre-se o risco da impossibilidade das partes decidirem suas
próprias lides, devido a institucionalização do acordo por meio das leis jurídicas e do interesse
individualista.
Mas quando se pensa em comunidades tradicionais, o agir comunicativo, em
pequenos núcleos como: vilas, associações e movimentos sociais, pode proporcionar avanços
surpreendentes. Tem possibilidade de desenvolver um cidadão crítico, com o olhar para o
outro, solidário, e com uma comunicação voltada para o partilhamento do comum. E assim os
indivíduos partiriam da comunidade local, capaz do diálogo e da cooperação para a vivência
na sociedade global com a possibilidade de uma melhor integração social.
Esta reflexão sobre a teoria do agir comunicativo serviu de referência na observação
participativa da comunidade pesquisada para este trabalho, para verificar as decisões das
práticas comunicativas e a gestão na comunidade dos Quilombola dos Carrapatos da
Tabatinga.
Observou-se no período da pesquisa de campo realizada entre outubro de 2015 a
abril de 2016, que as reuniões na Associação dos Quilombolas Carrapatos da Tabatinga são
realizadas de modo extraordinário de acordo com as necessidades. As reuniões são
convocadas de acordo com as demandas, principalmente para tratar dos eventos culturais e
manifestações de protestos, referentes às comunidades quilombolas realizados pelo Brasil,
onde há intensa participação dos jovens, além de outros assuntos locais. Há compartilhamento
de ideias sobre a atividade que será desenvolvida no evento. Existe a preocupação dos
membros da comunidade na expressão da identidade quilombola e resgate da memória nos
diálogos. Tem momentos que os jovens querem se distanciar um pouco do tradicional, e
inicia-se uma discussão crítica sobre o que pode ser modernizado na raiz cultural dos
quilombolas.
Foi nítido o processo de desenvolvimento dos indivíduos para um olhar mais crítico,
com diálogos e a discussões sobre a melhor forma de propagar a luta contra o preconceito
racial, os territórios quilombolas, bem como a exaltação aos matizes africanos. Chegam sim
70
ao consenso sobre quais atividades representarão a identidade quilombola.
As questões políticas ficam mais a cargo de Sandra Andrade, atual presidente da
Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais – N´Golo46
e membro
da comunidade quilombola Carrapatos da Tabatinga. Ativa nas comissões em Brasília que
discutem as causas quilombolas. As reuniões na Associação são para promover as discussões
de políticas públicas com a comunidade. Sandra Andrade é a porta voz da comunidade em
Brasília. Quando há avanços significativos para as demandas sociais da comunidade ela
comunica a todos.
Observou-se durante o período da pesquisa de campo-outubro de 2015 a abril de
2016, que as questões das políticas públicas são discutidas conforme a prática do agir
comunicativo proposto por Habermas (1989).
Não existiu neste período pautas para a realização de reuniões a fim de serem
discutidas ou voltadas para as questões das políticas públicas, colocando as demandas sociais
da comunidade. Talvez a prática do diálogo e da discussão crítica desenvolvesse um maior
engajamento dos mais jovens nas questões políticas, tão importantes para o alcance das
demandas sociais, já que os adultos, em geral, saem da comunidade em busca de trabalho em
outras cidades. A comunidade fica enfraquecida neste ponto, a liderança fica um pouco
sozinha nas decisões e sobrecarregada na função política.
Ressalta-se que a comunidade tem uma participação ativa dos jovens nos eventos
culturais, e por vezes, as universidades federais e estaduais de Minas Gerais realizam oficinas
culturais, para cultivo da identidade e memória quilombola. Os jovens são participativos e
comunicam sua identidade quilombola com ótima formação, e são conscientes das demandas
sociais da comunidade.
Dona Sebastiana, a Dandara47
mais idosa da comunidade, tem uma grande
participação na comunicação comunitária. Responsável por comunicar a importância da
participação de todos da comunidade nas questões dos negros, lembrando do sofrimento e de
todas as conquistas já alcançadas, e reverenciando os antepassados que não tinham essa
46
A Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais – N’Golo foi criada no ano de 2005
com o apoio de várias entidades, dentre elas, o Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva – CEDEFES. A
ideia de criar uma organização estadual das comunidades quilombolas adveio dos próprios quilombolas que
entenderam ser fundamental sua articulação. O movimento que culminou com a criação da Federação teve início
em 2003, quando vários eventos sobre os direitos quilombolas proporcionaram a mobilização das comunidades.
Guerreira do período colonial do Brasil, Dandara foi esposa de Zumbi, líder daquele que foi o maior quilombo das Américas: o Quilombo dos Palmares. Com ele, Dandara teve três filhos: Motumbo, Harmódio e Aristogíton. Valente, ela foi uma das lideranças femininas negras que lutou contra o sistema escravocrata do século XVII e auxiliou Zumbi quanto às estratégias e planos de ataque e defesa do quilombo. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/?p=33387.
tem Mãe tem tudo / Quem não tem Mãe não tem nada” (A FILHA DE SÃO SEBASTIÃO,
2013).
A aceitação por parte da Igreja Católica de Bom Despacho até hoje não é unânime
quanto à participação da comunidade quilombola Carrapatos da Tabatinga, representada pela
Guarda Moçambique de São Sebastião na festa, pelo fato de alguns padres da cidade acharem
que é uma festa católica e a comunidade é espírita umbandista.
Dona Tiana no documentário relata essa não aceitação, ela diz: “eles achavam difícil
eu ser espírita e frequentar a igreja e reza né, acha que gente espírita não reza, quanto mais
espírita, mais tem que rezar, tem que ter força para benzer curar, porque os preto véio cura,
tem curado, cura, os preto véio cura. Quando cheguei nesse Bom Despacho era uma miséria,
era sofrimento de tudo quanto é tipo, entendeu” (A FILHA DE SÃO SEBASTIÃO, 2013).
Ao entrevistar um dos padres da Paróquia de Nossa Senhora do Bom Despacho, não
citarei o nome, pois não foi autorizado, realmente constatei que não há muita aceitação da
comunidade quilombola, por parte da comunidade católica de Bom Despacho. Na breve
entrevista o padre chegou a relatar que a comunidade católica tem medo das “macumbas”
realizadas pela comunidade quilombola no terreiro de umbanda de Dona Tiana, e disse que a
festa de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário são festas católicas, e que não aceitam o
sincretismo.
Na observação participante realizada nas festas não posso afirmar que constatei
sincretismos nos rituais do Congado, o que notei foi uma convivência religiosa cultural, de
expressões de matrizes diferentes numa celebração, a uma entidade de devoção em comum,
ora Nossa Senhora do Rosário, ora São Benedito. Compartilho com a reflexão do autor
Jeremias Brasileiro (2012, p. 56) que em sua obra o tema de estudo é o Congado, ele diz:
O meu entendimento em relação ao Congado está centrado numa coexistência cultural religiosa em que podem existir situações toleráveis ou não, dependendo dos personagens que em determinado momento histórico estejam à frente das celebrações. Isto envolve comportamentos distintos em atuação num mesmo cenário de celebrações dos rituais do Congado [...] Assim, opto por utilizar no contexto do Congado a categoria de coexistência cultural religiosa quando trato de situações que envolvem o uso de símbolos ou comportamentos de religiosidades de matriz africana junto àquelas utilizadas pelo catolicismo popular.
93
Ficou claro nas manifestações do Congado que não há uma fusão de diferentes cultos
ou doutrinas religiosas, com reinterpretação de seus elementos, como é a definição de
sincretismo (FERREIRA, 1986, p.1589). Há uma convivência somente nos dias de festas de
duas matrizes religiosas e culturais de expressões diferentes cultuando os mesmos sujeitos:
Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Assim que as festas acabam a coexistência cultural
religiosa termina também, sinal que não houve fusão e sim coexistência temporária. Vale
lembrar que a reflexão é sobre se há ou não sincretismos nas manifestações do Congado, e
não se a religião católica e a de matriz africana são sincréticas.
Retomando a questão do impedimento dos negros frequentarem a Igreja católica, a única
coisa que mudou foi o fator motivador, antes era porque eram escravos na época colonial, hoje
por serem espíritas. Comportamentos que persistem desde o tempo Brasil colônia.
E hoje como um símbolo de resistência, observou-seque no dia da celebração da
Missa Conga, a atitude da Guarda Moçambique de São Sebastião de bater na porta da Igreja e
cantar para que o padre abra para que eles possam entrar, é uma constatação de que a porta,
ainda nos dias de hoje, em pleno século XXI não está aberta para a comunidade quilombola
de Bom Despacho.
O padre abre a porta sim, mas somente depois do pedido de permissão para a Igreja
Nossa Senhora do Bom Despacho, e assim a Guarda de Moçambique de São Sebastião entra
com seus tambores, gungas e indumentárias e cantam seus lamentos e agradecimento para São
Benedito.
A manifestação da coroação do Rei e da Rainha do Congo é a mais esperada, eles
são escolhidos com muito critério pela comunidade quilombola, como dizem:
O Rei e a Rainha é coisa muito boa né, são os que comanda mesmo a Corte,
é coisa fina rei e rainha não pode ser qualquer pessoa, qualquer um não... o
rei e a rainha tem que ter muita responsabilidade e comanda essa Nação
como diz o ditado, são os comandantes (A FILHA DE SÃO SEBASTIÃO,
2013).
A autora se inseriu na festa de São Benedito em abril de 2016, e constatou o
Congado da Guarda Moçambique de São Sebastião, com sua capitã à frente - Dona Tiana -, e
os membros da comunidade dos quilombolas Carrapatos da Tabatinga, saindo pelas ruas da
cidade de Bom Despacho, aos olhos de toda sociedade local, com sua guarda para
homenagear e expressar toda devoção para o santo dos negros: São Sebastião. Observou-se os
seus tambores, cantos e gungas ecoarem para a sociedade local todo sofrimento dos
antepassados africanos escravizados, mas também a luta pelos territórios quilombolas, a
94
resistência da comunidade contra a desigualdade social abarcado pelo preconceito racial em
Bom Despacho.
Pode-se dizer que foi um dos poucos momentos que a sociedade local ouve a voz da
Tabatinga entoada por meio dos seus cantos com palavras de agradecimentos, mas com o tom
de luta e resistência contra o preconceito. Afirma-se que o congado para a comunidade
quilombola dos Carrapatos da Tabatinga é a força comunicante entre a sociedade local de
Bom Despacho. Eles cantam a liberdade e dançam festejando seu lugar na sociedade local,
não deixando que ninguém esqueça a força do negro na cidade, reafirmados pela sua
identidade e memória.
Compreendeu-se a manifestação do Congado sob dois aspectos. O primeiro vem das
primeiras manifestações realizadas pelos negros escravizados que aqui chegaram. Presentes
numa outra terra, escravizados, sob outros contextos, ritualizar e constituir uma representação
por meio da dança, do ritmo, do canto, a respeito de outro tempo que se encontra na memória,
um tempo de reinos e reis que se transformam em reinados, com seus súditos, toda a corte a
relembrar um estado, uma cultura, um povo, um sistema de valores sociais, políticos,
religiosos, reconfigurados por uma necessidade de permanência ancestral, foram importantes
para a recriação de novas identidades.
Essas identidades foram necessárias porque também os povos não eram homogêneos
quando reunidos sob o sistema de escravidão, o que os forçava a interagir a partir de novas
configurações e num ambiente estranho, fazendo com que tivessem de se adaptar a outras
realidades que, para Stuart Hall (1998, p. 324-325) são “as condições de lugar, apropriações,
reapropriações, rearticulações, novos contextos que impõem outras necessidades de
construções de repertórios negros”.
O outro aspecto observado foi no campo das significações retratadas nas canções e
em suas indumentárias, como a toalha branca que (re) significada representa o algodão que os
escravos passavam na testa muitas vezes para limpar o sangue das torturas, hoje como cita
Dona Tiana é para limpar o suor de tanto dançar em agradecimento pela liberdade e devoção à
Nossa Senhora do Rosário. Um símbolo que fora de dor e sofrimento na época da escravidão,
hoje é um símbolo de celebração.
No campo das significações Glaura Lucas (2002) considera que o Congado perpassa
por um conjunto de valores que, reelaborados durante muito tempo, terminaram por
manifestar-se em várias condutas simbólicas e religiosas caracterizadas ainda por uma
vivência junto ao catolicismo.
Para a autora (LUCAS, 2002) o universo cultural e musical do congadeiro ultrapassa
95
o senso comum de muitos críticos, que nesses repertórios diagnosticam canções folclóricas ou
somente cantos de religião em homenagem aos santos de devoção. Nesse aspecto, o estudo
etnomusicológico do Congado desenvolvido por Lucas (2002) traz a lume novas
possibilidades de olhar a produção musical dos congadeiros. De acordo com a autora, é
possível compreender a musicalidade como uma intercomunicação de tempos e que a “música
congadeira apresenta uma complexa teia de significados em sua estrutura e em seus processos
de produção”, concluindo que muitos versos são ricos em metáforas, que demonstram “um
recurso criativo que remonta aos tempos da escravidão, utilizado para proteger a essência dos
conteúdos religiosos e promover a comunicação interna” (LUCAS, 2006, p. 32).
Já Leda Martins (2000) busca uma reflexão sobre o Congado envolvendo tempo e
memória. No entendimento da autora (2000, p.70), o Congado testemunha a sua permanência
como prova de que o esquecimento é incompleto, a matriz africana permanece viva nos
afrodescendentes, pois sua genealogia performática é capaz de restituir ao sujeito, pelo uso do
corpo, declarar as muitas matrizes da cultura brasileira.
E assim vi no desfile da Guarda de São Sebastião produzida pelos quilombolas
Carrapatos da Tabatinga, o uso do corpo presente na dança traz os movimentos que presenciei
no Terreiro de Umbanda da comunidade, o Terreiro de São Sebastião com o comando da mãe
de Santo Dona Tiana. E Jeremias Brasileiro cita em sua obra que estuda com maior amplitude
o Congado:
No ritmo dos moçambiqueiros essa linguagem corporal que menciono fica
mais evidente quando recriam com os movimentos não só uma memória de
antepassados, mas imprimem certas gestualidades comuns que se realizam
em outros rituais afrodescendentes, como no caso de terreiros de Umbanda.
O rodopiar do corpo com a mão esquerda nos dorsos e do tronco à cintura
curvilineamente abaixado numa posição de horizontalidade é o ápice desta
corporalidade ritual ou de ritual corpóreo impregnado em personagens que
na maioria das vezes têm acesso ou fazem parte dos ritos de religiosidade de
matriz africana” (BRASILEIRO, 2012, p.52).
Outra expressiva rede de sentidos que se percebe no Congado é a partir dos adereços,
indumentárias e objetos etnicoculturais. Uns como os tambores, trazem mensagens inscritas
nas peles ou nos seus envoltórios, nos adereços se vê – como ocorre nas partes superiores dos
ojás (bonés) - figuras de orixás ou de caboclos, de santos, de igrejas, perfilados nas abas dos
chapéus, e no couro cabeludo desfilam desenhos das mais variadas formas, como a de uma
estrela simbolizando o nome de um grupo, ou cabelos pintados com as cores do grupo. Leda
Martins (2000, p.75) cita em sua obra:
96
Em África, um dos modos da escrita do corpo está na utilização de conchas,
sementes, opelês e outros objetos côncavos, em tamanhos e cores diferentes
e significantes, para a feitura de colares, pulseiras e outros adornos que
escrevem o sujeito [...] As contas, sementes e conchas funcionam como
morfemas formando palavras, palavras formando frases e frases compondo
textos, o que faz da superfície corporal, literalmente, texto, e do sujeito,
signo, intérprete e interpretante, simultaneamente.
E assim foi observado no desfile da Guarda de São Sebastião, na festa de São
Benedito, produzida pelos quilombolas Carrapatos da Tabatinga o uso do corpo com
indumentárias: colares de contas e pulseiras. A dança traz os movimentos do Terreiro
umbandista de São Sebastião comandado pela mãe de Santo Dona Tiana e os membros da
comunidade quilombola Carrapatos da Tabatinga.
Esta força identitária comunicante com a sociedade local é explicita na festa de São
Benedito, onde há grande participação da população. A passagem da Guarda Moçambique de
São Sebastião é festejada com acenos dos populares e recheada de aplausos.
Neste momento é notado um certo reconhecimento da existência da comunidade
quilombola como participe da sociedade local. E a importância é grande para a comunidade
quilombola, pois numa festa católica podem comunicar suas matizes das religiões africanas,
numa sociedade em sua maioria católica branca, onde há diferenças de religião, raça e credo,
afirmando a presença do negro da sociedade local, desfilando com seus símbolos de
resistência contra a escravidão um dia vivida, e hoje se resignifica na luta contra a
desigualdade social abarcada pelo preconceito racial, e é o momento que se colocam na
posição de participes da sociedade. Colocam suas diferenças raciais de matizes africanas em
evidência para que a identidade quilombola seja comunicada a todo sociedade local,
posicionando a comunidade como sujeito social. Como diz a autora Kathryn Woodward:
A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos (WOODWARD apud SILVA, 2000, p. 17).
Uma análise mais apurada sobre a participação dos quilombolas Carrapatos da
Tabatinga na festa de São Benedito é a comunicação da identidade que é construída simbólica
e socialmente. Simbolicamente pode ser percebida a partir dos valores expressos nas
indumentárias, danças e cantos enfim toda expressão cultural da Guarda Moçambique de São
Sebastião capitaneada por Dona Tiana – evocado numa narrativa ilustrativa do festejo.
97
Socialmente, seria de muita riqueza para o entendimento desse aspecto a revisão de
Halbwachs (2006) em “A memória coletiva” o grupo social é apresentado como referência
essencial à memória, história, tempo e espaço – que também são noções que remetem à
compreensão da identidade. Sinteticamente, pode-se dizer que a representação é o meio pelo
qual o grupo cria símbolos que significa e que dá sentido à experiência humana.
Assim a maior expressão comunicacional com a sociedade local não é realizada por
nenhum meio de comunicação – rádio, TV - e sim com as indumentárias, cantos e danças na
procissão da festa de São Benedito, o santo dos negros como diz Dona Tiana, em Bom
Despacho. É a palavra dita em forma de cantos e lamentos, mas um som com tom de luta e
resistência. Como diz Dona Tiana: “Sou descendente de escravo, mas não sou escrava de
ninguém não! Vai pro meio do inferno!”
Destaca-se a identificação de alguns pontos relevantes da comunicação dialogada
grupal da comunidade na Festa de São Benedito com a sociedade local:
a) Comunicam de forma emocionante a importância de seus ancestrais escravos
educando a sociedade local para a reflexão do sofrimento do negro, e o que traz a
falta de liberdade: dor e tristeza;
b) Participam de uma festa de origem católica, e exibem ritos pertencentes as
matrizes africanas com os gestuais, cantos, ritmos e danças que são praticados na
umbanda. Observou-se que este processo de comunicação possibilita educar a
sociedade local para a tolerância religiosa e o respeito a diferença cultural;
c) Comunicam com o próprio corpo e por meio de suas indumentárias os significados
e (re) significados das lutas vividas, e da condição de vida do povo quilombola. Na
festa cantam e dançam as vitórias conquistadas e as que poderão alcançar. E esta
comunicação se dá face a face com a sociedade local nas ruas de Bom Despacho.
2.9 Canjerê: 1º Festival da Cultura Quilombola do Estado de Minas Gerais
No decorrer da pesquisa no mês de outubro de 2015 fui comunicada pela Sandra
Andrade, membro da comunidade quilombola Carrapatos da Tabatinga, a participação da
comunidade no evento Canjerê - 1º Festival de Cultura Quilombola do Estado de Minas Gerais de
06 a 08 de novembro de 2015, em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, na FUNARTE. A
98
Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais – N´Golo convocou
para o evento todas as comunidades quilombolas mineiras e também comunidades indígenas.
A autora da pesquisa decidiu realizar uma observação participante no evento, pois é
relevante para a investigação, uma oportunidade para ver os processos de comunicação da
comunidade com a sociedade da capital mineira, espectro maior em relação à sociedade local
de Bom Despacho. Também observar como seria a tratativa dos meios de comunicação em
relação ao evento: noticiários, informações e a relevância do evento para a sociedade.
Ao longo dos três dias, o público conferiu a feira de artesanato, produtos agrícolas e
da culinária quilombola, apresentações de grupos culturais, shows com artistas reconhecidos
da música afro-mineira, debates, oficinas e cortejo das Guardas dos Congados das
comunidades quilombolas de todo o Estado de Minas Gerais.
O festival foi belíssimo. Presenciou-se o povo quilombola e indígena desfilando em
cortejo comunicando toda sua cultura e homenageando seus ancestrais pelas ruas de Belo
Horizonte com a presença em massa da sociedade de Belo Horizonte aplaudindo e
reverenciando a cultura das comunidades.
Dona Tiana, discursou por alguns minutos no evento declarando a importância da
identidade quilombola, suas demandas sociais, inclusive ressaltando a diferença social
abarcada pelo preconceito que o negro sofre nos dias atuais. Convocou as comunidades à
resistir, que é o momento é para lutar pelos direitos do povo negro e indígena no Brasil.
Destaca-se os seguintes pontos relevantes do Festival Canjerê:
a) Durante o período da tarde houveram oficinas na Funarte MG, momento em que a
comunidade quilombola Carrapatos da Tabatinga pode participar por meio de
plenárias dialogadas com a sociedade (professores, doutores, universitários e
população) sobre a regularização dos territórios quilombolas e as políticas públicas
referente ao tema e tendo como representante a Sandra Andrade, membro da
comunidade. Foi discutido também a desigualdade social abarcada pelo preconceito
racial vivido pelas comunidades nas sociedades locais. Colocaram a dificuldade por
serem minoria com o poder público municipal em avançar nas conquistas das suas
demandas sociais como: infraestrutura básica para as comunidades, escolas, postos
de saúde e oportunidades de empregos, principalmente no comércio local onde é
claro para eles a preferência por brancos, e muitas vezes são as únicas
oportunidades pois, não há parques industriais nas cidades.
b)
99
b) A identidade quilombola comunicada pela interlocutora Dona Tiana, levando o
saber e educando os participantes na cultura quilombola por meio dos saberes
resultado das experiências vivenciadas de seus ancestrais;
c) Observou-se que este evento gerou notícias nos meios de comunicação, mas em
sua maioria com a atenção para a questão folclórica da cultura quilombola com
pequenas reportagens na grande imprensa, infelizmente.
Nas oficinas que ocorreram no período da tarde no dia 06/11/2015 na FUNART
foram realizadas plenárias dialogadas, onde a comunidade quilombola da Tabatinga pode
falar de sua identidade. Estavam presentes professores, doutores, estudantes universitários e
líderes de comunidades quilombolas e indígenas. Houve a discussão por meio do diálogo
sobre as questões da regularização de territórios quilombolas e os progressos das políticas
públicas sobre o tema.
Foram colocadas de formas claras as demandas sociais que ultrapassam a questão do
território. A questão da desigualdade social abarcada pelo preconceito racial foi também tema
de discussão.
As comunidades expressaram, na plenária dialogada das oficinas, que é nítido na
sociedade mineira (e nacional também) a forte rejeição sobre a questão da participação do
negro como cidadão nas regiões mais afastadas dos grandes centros do Estado de Minas
Gerais, em cidades pequenas como Bom Despacho, onde a representativa das comunidades é
pequena, e assim invisível para o poder público, principalmente na esfera municipal.
Relataram a dificuldade de conseguir progressos com políticas públicas a esfera municipal
para suas comunidades.
Declararam também o preconceito das sociedades locais, principalmente nas
oportunidades de emprego pela preferência pelas pessoas brancas, por exemplo, nos
comércios locais, que muitas vezes são as únicas oportunidades existentes nas cidades, pois
muitas não possuem parques industriais. Foram colocadas algumas propostas como marchas
locais para reivindicar as demandas sociais, e reafirmaram a necessidade do povo quilombolas
não desistir da luta e sim resistir ao modelo social imposto.
Percebeu-se também uma pista sobre o que encontraria na sociedade de Bom
Despacho em relação a participação cidadã da comunidade Quilombola Carrapatos da
Tabatinga na sociedade local, um dos objetivos da presente pesquisa.
100
3 A práxis da comunicação comunitária para além dos meios
A observação da pesquisa em campo trouxe a percepção de uma prática
comunicacional da comunidade dos quilombolas Carrapatos da Tabatinga que está associada
a construção de um conhecimento sobre sua identidade, memória e história. Esse
conhecimento é partilhado, discutido de forma democrática nas reuniões da Associação
fazendo com todos se beneficiem de forma coletiva do conhecimento.
É perceptível o resultado do fortalecimento da identidade quilombola por meio desse
diálogo, há uma intensa organização do movimento social dos Carrapatos da Tabatinga sobre
o consenso e a consciência das demandas sociais pelas quais a comunidade luta. O
engajamento de seus membros vem por meio desta educação não formal, que é transmitida
principalmente pelas diretrizes de sua líder maior comunitária Dona Tiana. Traz em sua
comunicação dialógica a provocação de ressaltar que são descentes de escravos, mas não mais
escravos. A luta existe, mas traz à lembrança a força do negro nas conquistas já obtidas, uma
delas que hoje podem falar, enfim se comunicar, então o façam. É uma fala de uma
comunicação libertadora. Em uma de suas falas Dona Tiana diz: “Não ajudamos a construir o
Brasil, nós fizemos e somos parte do Brasil, tudo isso está aí é por causa do negro!”.
A educação informal comunicada por Dona Tiana traz à tona a discussão de ser
sujeito da própria história. Paulo Freire em sua obra diz: “A vocação do homem [leia-se: e da
mulher] é a de ser sujeito. [...] Para ser válida, a educação deve considerar a vocação
ontológica do homem – vocação de ser sujeito – e as condições em que ele vive: em tal lugar
exato, em tal momento, em tal contexto” (FREIRE, 1979, p.34). Propõe se colocar como
protagonista na construção do Brasil, e trazer ao conhecimento dos membros da comunidade a
luz da cidadania. A comunicação de Dona Tiana resgata o negro de uma posição de objeto,
coisificado no sistema escravista, para uma posição de cidadão. A comunidade hoje tem a
práxis de discutir e criticar o modelo do contexto que vive, rever seus direitos e deveres.
Pela observação constatou-se que a comunidade quilombola Carrapatos da Tabatinga
se mobiliza por meio de ações: culturais, palestras, participações em Universidades, a fim de
promover, comunicar suas demandas sociais.
São movidos por essa educação informal proporcionada pela comunicação dialógica
de sua liderança que em reuniões discutem sobre a não acomodação e submissão do negro,
mas sim a persistência nas atitudes de resistência e crítica ao modelo social vigente
preconceituoso e racista, e lutar pelos direitos de reaver os territórios quilombolas, entre
outras demandas sociais que são discutidas nas reuniões. O diálogo participativo e
101
horizontalizado é a base da comunidade dos Carrapatos da Tabatinga. Todas as ações que a
comunidade pretende e se propõe a realizar é discutido e dialogado com o grupo. Uma vez
inserida nas dinâmicas cotidianas e de mobilização, como diálogo e intercâmbio de saberes,
se misturam formas de comunicação como a “coordenação de ações”, segundo entendimento
de Jorge González (2012).
Peruzzo (2015) faz reflexão no seu artigo sobre estudo das manifestações da
comunicação popular e comunitária em práticas organizativas de movimentos populares no
Brasil, e diz que há uma comunicação comunitária, baseado no diálogo, além dos meios
tecnológicos de transmissão:
Todos os assuntos que envolvem as comunidades são discutidos, tudo é
dialogado e combinado no coletivo. Ao fazer parte desse processo, a
comunicação popular incorporou o princípio do diálogo, ao se valer da
comunicação interpessoal e grupal, ao instituir a horizontalidade, ao
transformar receptores em emissores-receptores e ultrapassar a ideia de que
existe comunicação apenas quando ela se dá por intermédio de artefatos
tecnológicos (PERUZZO, 2015, p.10).
A comunidade quilombola Carrapatos da Tabatinga em seus processos
comunicacionais com a sociedade local, apresentou a utilização da comunicação dialógica.
Constatou-se nas manifestações comunicacionais da comunidade com a sociedade local, o uso
da história oral, por vezes em forma de canto e dança, para deixar público suas demandas
sociais. Essa troca comunicacional se dá face a face perante toda a sociedade de Bom
Despacho.
Como foi relatado anteriormente, os conteúdos dos versos cantados são permeados
de memórias de dor e sofrimento, homenagens aos antepassados africanos, exaltação a
identidade de matrizes africanas, bem como a força da resistência do negro ao modelo social
excludente e preconceituoso. Provoca na sociedade local a reflexão sobre a condição e a
presença do negro quilombola em Bom Despacho. Mais uma vez não há utilização de meios
de comunicação tecnológicos, a troca comunicante é realizada pelo Sujeito da história contada
e cantada, pela própria comunidade.
Por meio da práxis do diálogo na comunicação nas reuniões promovidas pela
Associação dos Quilombolas Carrapatos, com participação ativa de seus membros,
organizados desde 2006, foi constatado o desenvolvimento de um pensamento crítico da
comunidade em relação à percepção da identidade do negro quilombola, seus direitos e
deveres como Sujeito da sociedade, e a importância do exercício da cidadania.
102
Há conhecimento por meio da educação informal, fruto da práxis da comunicação
dialogada, que resulta para os membros da comunidade Carrapatos da Tabatinga um grau de
compreensão do seu entorno, despertando o engajamento mobilizador para ações coletivas
com objetivos comuns: o de transformar sua realidade social.
Hoje é percebida e necessita ser melhorada, como as comunicadas por eles: a
desigualdade abarcada pelo preconceito racial, os direitos garantidos por Lei não serem de
fato usufruídos pela comunidade, por exemplo o direito a territoriedade, entre outras
demandas sociais a serem conquistadas.
A comunidade tem plena consciência da importância da comunicação com poder
público, para reivindicar muitas vezes que se faça cumprir leis já existentes para o
desenvolvimento da comunidade. Inclusive em entrevista70
com Sandra Andrade, membro da
comunidade que faz parte da liderança e é uma das interlocutoras junto aos poderes públicos,
chegou a citar que o engajamento trouxe para ela a necessidade de ter que se comunicar, que
no início ela pensou: “Nossa mais não sei falar direito, bonito, mas quer saber vou falar do
meu jeito, com minha própria voz as necessidades da comunidade, do meu povo”. E ela
comentou na entrevista, que assim foi no começo, não se sentia capaz, mas o exercício da
comunicação trouxe que é possível sim falar, e que esta comunicação gerou muitos progressos
nas conquistas para a comunidade. Observou-se que neste exemplo é nítido o empoderamento
da comunicação. Como diz Peruzzo (2015, p.15):
Ao se engajar no processo de comunicação, a pessoa se desenvolve e ajuda a
desenvolver a comunidade. Aprende a compreender o seu entorno. Do
relacionamento com o poder público municipal compreende o
funcionamento do poder. Aprende a falar em público. Desenvolve a
autoestima. Aprende a se relacionar em grupo. Apreende as possibilidades
de manipulação da mídia. Aprende sobre o poder da mídia e assim por
diante. Do ponto de vista coletivo, há melhoria nas condições de vida, no
desenvolvimento do conhecimento e do poder popular, aspectos que se
somam ao próprio desenvolvimento comunitário.
Esse processo se verifica também na comunidade dos quilombolas Carrapatos da
Tabatinga, pois esta desenvolveu a práxis da comunicação por meio do diálogo também com
o poder público.
70
Entrevista realizada pela autora em 09 de outubro de 2015.
103
Há participação da comunidade em sessões da Câmara Municipal para discussões de
projetos para a comunidade. Dona Tiana fora algumas vezes homenageada pela Câmara
Municipal de bom Despacho, e aproveitou este momento para dialogar com os políticos da
casa, sobre as questões da comunidade. A comunicação comunitária não ocorre somente por
intermédio de aparatos tecnológicos. Conforme Peruzzo (2015, p.10):
O que há nela é uma comunicação entre pessoas do próprio lugar, uma
comunicação humana dialógica segundo a concepção de Freire, mas vai
mais além [v] ao concretizar uma comunicação também entre estas pessoas e
suas organizações representativas e congêneres, com o poder público, e na
sociedade. Ela se realiza basicamente pela expressão oral, a comunicação
face a face.
A Sandra Andrade, membro da comunidade e também Presidente da Associação dos
Quilombolas do Estado de Minas Gerais também utiliza diálogo com o poder público na
esfera Estadual e Federal para colocar as demandas sociais junto ao Ministério da Educação e
INCRA. Discute e critica o poder público em relação à morosidade da viabilidade dos
territórios quilombolas, bem como as políticas públicas de ensino para as comunidades
quilombolas, principalmente as rurais. Sempre presente em Brasília participa das audiências
públicas relacionadas às comunidades quilombolas. Já obteve algumas vitórias, mas chegou a
confessar que se não fosse a força contagiante de sua mãe, Dona Tiana, ela já teria desistido.
A autora por meio de acompanhamento das redes sociais da comunidade traz para
exemplificar o grau de compreensão do entorno dos membros da comunidade a publicação de
post do Facebook em 02 de maio de 2016, dia da posse de um membro da comunidade
Quilombola Carrapatos da Tabatinga como Presidente Jovem da Câmara Municipal de Bom
Despacho, ela relatou na sua rede social a seguinte mensagem71
:
“Hoje 02/05/2016 é um dia muito importante pra juventude negra sabe pq o
#Brasil é muito racista principalmente em Bom Despacho onde o racismo
vale mais que a qualidade e o caráter das pessoas, mais pra mim a palavra
racismo nunca existiu pq o que eu quero eu consigo i não é atoa que eu tô
aqui onde eu estou hoje. Primeiramente agradeço a Deus e aos meus
familiares que estão sempre mim apoiando e principalmente a quem mim,
pois aqui a juventude escolar, espero fazer um bom mandato como
presidente jovem da câmara municipal de Bom Despacho: e também como a
1 mulher negra dessa casa como presidente, com a participativo onde
apresentaremos projetos de desenvolvimento com geração de renda, lazer e
cultura para a juventude bom-despachense independente de raça, religião ou
credo e sempre valorizando os saberes tradicional da nossa população... “.