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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LITERATURA MATEUS DE NOVAES MAIA UM CERTO CARÁTER GEOGRÁFICO: A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DO SERTÃO EM O CABELEIRA, DE FRANKLIN TÁVORA NITERÓI 2022
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS ...

Mar 17, 2023

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LITERATURA

MATEUS DE NOVAES MAIA

UM CERTO CARÁTER GEOGRÁFICO: A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DO

SERTÃO EM O CABELEIRA, DE FRANKLIN TÁVORA

NITERÓI

2022

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LITERATURA

MATEUS DE NOVAES MAIA

UM CERTO CARÁTER GEOGRÁFICO: A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DO

SERTÃO EM O CABELEIRA, DE FRANKLIN TÁVORA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Estudos de Literatura da

Universidade Federal Fluminense, como

requisito parcial à obtenção do título de Mestre

em Estudos de Literatura. Subárea: Literatura

Brasileira e Teoria da Literatura. Linha de

Pesquisa: Literatura, História e Cultura.

Orientadora:

Prof.ª Dr.ª Claudete Daflon dos Santos

NITERÓI

2022

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Ficha catalográfica automática - SDC/BCGGerada com informações fornecidas pelo autor

Bibliotecário responsável: Debora do Nascimento - CRB7/6368

M217c Maia, Mateus de Novaes Um Certo Caráter Geográfico : A construção discursiva dosertão em O Cabeleira, de Franklin Távora / Mateus de NovaesMaia ; Claudete Daflon dos Santos, orientadora. Niterói, 2022. 118 f.

Dissertação (mestrado)-Universidade Federal Fluminense,Niterói, 2022.

DOI: http://dx.doi.org/10.22409/POSLIT.2022.m.13686936798

1. Literatura Brasileira. 2. Teoria da Literatura. 3.Sertão. 4. Sertão na literatura. 5. Produção intelectual.I. Santos, Claudete Daflon dos, orientadora. II. UniversidadeFederal Fluminense. Instituto de Letras. III. Título.

CDD -

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MATEUS DE NOVAES MAIA

UM CERTO CARÁTER GEOGRÁFICO: A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DO

SERTÃO EM O CABELEIRA, DE FRANKLIN TÁVORA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Estudos de Literatura da

Universidade Federal Fluminense, como

requisito parcial à obtenção do título de Mestre

em Estudos de Literatura. Subárea: Literatura

Brasileira e Teoria da Literatura. Linha de

Pesquisa: Literatura, História e Cultura.

Defesa em 16/02/2022.

BANCA EXAMINADORA

Prof.ª Dr.ª Claudete Daflon dos Santos – UFF

Orientadora

Prof.ª Dr.ª Márcia Regina Capelari Naxara – UNESP

Prof.ª Dr.ª Anita Martins Rodrigues de Moraes – UFF

Prof. Dr. Marcelo dos Santos – UNIRIO, suplente

Prof. Dr. Andre Cabral de Almeida Cardoso – UFF, suplente

NITERÓI

2022

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À minha avó, Maria, quem primeiro me ensinou o prazer de ler

À minha mãe, Márcia, que me ensinou que a arte é a graça da vida

Ao meu pai, Fernando, que me ensinou que a curiosidade é uma virtude

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior –

Brasil (CAPES), cujo fomento me possibilitou a dedicação exclusiva a essa pesquisa.

Agradeço à minha orientadora, Claudete Daflon, sem a qual este trabalho nunca

teria sido realizado. Seu apoio foi fundamental para o meu ingresso nos estudos de

literatura, e a sua perspectiva sobre a academia e o mundo foi o que fez desta dissertação

o que ela é.

À professora Anita Moraes, que também me guiou tanto nos meus primeiros

passos na área de letras quanto nas aulas do mestrado, inestimáveis para o

desenvolvimento desta pesquisa. Agradeço também por aceitar fazer parte desta banca e

pelos apontamentos preciosos por ocasião da minha qualificação.

À professora Márcia Naxara, a quem devo muito do arcabouço teórico deste

trabalho. Agradeço pela disposição em participar da minha banca mesmo nas condições

adversas em que nos encontramos, assim como sou grato pelas contribuições inestimáveis

feitas a esta pesquisa.

À minha companheira, Clara, que divide comigo os ônus e os louros desse

caminho. Obrigado por ser minha primeira revisora, aquela que lida com os voos mais

delirantes da minha prosa que — felizmente — ninguém mais precisa ler.

Ao meu irmão, Lucas, meu primeiro amigo e melhor consultor de francês que o

improviso pôde conceber.

Aos meus pais, Fernando e Márcia, que me apoiaram de todas as formas

possíveis por toda a minha vida.

A todos os que contribuíram de alguma forma para essa pesquisa.

Obrigado.

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RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo analisar como se dá a representação do sertão na

obra de Franklin Távora, debruçando-se em particular sobre o romance O Cabeleira

(1876). A reflexão proposta é ancorada nos estudos sobre a “colonialidade do poder”, em

especial no entendimento da historicidade da produção das categorias mobilizadas e a

centralidade conferida às perspectivas contra-hegemônicas. Pretende-se inferir tanto as

determinantes históricas da concepção da representação literária do sertão quanto o que

há de idiossincrático nas formulações de Távora sobre este espaço. Isso será feito a partir

da discussão da produção do autor à luz do contexto em que ela se desenvolveu, da fortuna

crítica relacionada ao tema e do cotejamento do romance de Távora com algumas de suas

demais produções, propondo um entendimento d’O Cabeleira enquanto realização

artística e em relação ao desenvolvimento de sua ação narrativa através de um prisma que

privilegie uma interpretação do tema por um viés espacial. Entende-se que as

circunstâncias históricas às quais a formulação da Literatura do Norte de Távora responde

são acionadas no romance a partir de uma espacialização do tecido social da sociedade

Pernambucana colonial. Tal divisão dos espaços narrativos em topos distintos

corresponderia a uma representação da dicotomia civilização x barbárie que norteia o

argumento do romance, no qual o sertão é apresentado como estando prenhe de uma carga

simbólica que perpassa a matéria literária d'O Cabeleira e se articula com o pensamento

de Távora sobre uma divisão espacial da literatura — e da própria história — do Brasil

entre uma região Norte e uma região Sul.

Palavras-chave: Franklin Távora; O Cabeleira; Literatura do Norte; Espaço literário;

Sertão.

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ABSTRACT

This study sought to analyze the representation of the sertão (backlands) in the works of

Franklin Távora, particularly addressing the novel O Cabeleira (1876). The proposed

reflection anchors itself on the studies on the “coloniality of power”, notably on the

understanding of the historicity of the production of the categories at hand and the

centrality conferred to counter-hegemonic perspectives. This study intends to infer the

historical determinants of the conception of the literary representation of the sertão and

what is idiosyncratic regarding Távora’s formulations about it. This is to be achieved

through a discussion that takes into consideration the author’s production within the

context in which it was written, the critical essays related to the theme, and the collating

of Távora’s novel with some of his other works, putting forward an understanding of O

Cabeleira, both as an artistical realization as well as regarding the development of its

narrative, through a spatial lens. It is our understanding that the historical circumstances

to which the formulation of Távora’s Northern Literature respond are presented in the

novel through the spatialization of colonial Pernambuco’s social fabric. Such division of

the narrative spaces in distinct topos would correspond to a representation of the

dichotomy between civilization and barbarism that drives the novel’s plot, in which the

sertão is present as being filled with a symbolic weight that runs across O Cabeleira’s

literary substance and articulates itself with Távora’s thoughts regarding a spatial division

of the literature — and the history itself — of Brazil between a Northern region and a

Southern one.

Keywords: Franklin Távora; O Cabeleira; Northern Literature; Literary space; Sertão

(Backlands).

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SUMÁRIO

Introdução........................................................................................................................1

1 – A colonialidade na construção discursiva do sertão.................................................6

1.1 - O sertão como produção ideológica..........................................................................6

1.2 - O sertão e a literatura na invenção do Brasil............................................................11

1.3 - Dos sertões nacionais ao sertão nordestino..............................................................19

2 – Historiador, crítico, político ou filósofo?.................................................................25

2.1 – De tabajaras, monarcas e romanos...........................................................................25

2.2 – O iconoclasta de imagens da terra............................................................................33

2.3 – A elegia da sociedade açucareira.............................................................................45

3 – Um romance para o Norte brasileiro.......................................................................57

3.1 – Da literatura e do Norte............................................................................................57

3.2 – Mise-en-scène para uma história pernambucana.....................................................66

4 – Por uma leitura através do espaço...........................................................................75

4.1 – Uma pena molhada em sangue.................................................................................75

4.2 – Medonhos sertões, medonhos sarcófagos................................................................84

4.3 – Uma Canudos grande..............................................................................................94

Conclusão.......................................................................................................................99

Referências Bibliográficas...........................................................................................102

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1

Introdução

Há na literatura centrada no sertão brasileiro uma miríade de interpretações,

significações e vozes dissonantes tal que só pode ser rivalizada pela polissemia que o

próprio termo sertão assumiu ao longo de séculos de reuso. Ainda que haja divergências

quanto à real origem do vocábulo, assim como suas diversas variantes, sempre foi

empregado para se referir às terras interiores e inexploradas, em oposição ao litoral. Se

na Carta de Pero Vaz de Caminha essa oposição toma a forma de mero referencial

geográfico, a subsequente exploração portuguesa das terras americanas, feita sempre

pelas beiradas, confirmaria essa oposição no campo ideológico, opondo a civilização que

se espraiava pelo litoral à barbárie do interior ainda não cartografado.

Com a modernidade e a consequente hegemonia da ideologia liberal, a dualidade

se atualiza: o progresso do litoral e dos grandes centros contra a periferia e os feudos

incultos de um Brasil profundo. Dada a reincidência de seu uso pelas elites econômicas e

políticas brasileiras que se sucederam em território nacional desde a América Portuguesa,

dos colonizadores à burguesia nacional hodierna, o termo sertão adquire, sob uma ótica

histórica, o caráter de um palimpsesto, continuamente reciclado e instrumentalizado por

aqueles interessados na projeção e ampliação do seu domínio rumo ao interior do

continente. Tendo em vista essa diversidade de discursos sobre o sertão, cabe indagar-se

sobre sua base material. É a partir desse questionamento que Antonio Carlos Robert

Moraes propõe que o sertão corresponderia a uma “ideologia geográfica”, termo cunhado

a partir de uma perspectiva gramsciana que se refere à formulação de concepções

hegemônicas acerca de determinadas porções do território nacional e que

corresponderiam às demandas políticas de uma elite conservadora (MORAES, 2003).

Sendo desprovido de delimitação precisa e, em última instância, materialidade

telúrica, o sertão seria não um recorte espacial, mas uma construção discursiva – uma

ideologia geográfica, nos termos de Moraes. Qualificar um espaço como sertão é,

portanto, uma forma de apropriação discursiva desse lugar a partir da difusão de um

discurso concebido por uma elite a fim de justificar o exercício de seu poder sobre esse

espaço.

Isso talvez explique a abrangência geográfica e histórica da utilização do

vocábulo, que já abarcou dos pampas gaúchos ao coração da selva amazônica, estando

hoje geralmente restrito ao polígono das secas nordestino. A popularização da

identificação do sertão como uma metonímia do semiárido nordestino pode ser traçada

desde o surgimento da “literatura das secas”, a longa tradição de romances centrados nas

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agruras que as estiagens severas afligem sobre a população sertaneja, os quais se

multiplicaram nas últimas décadas do século XIX em função da comoção nacional em

torno dos efeitos da Grande Seca que se estendeu de 1877 a 1880.

A escolha de O Cabeleira (1876) para o estudo desse fenômeno se dá pela

posição que ele ocupa na cronologia das narrativas sobre o sertão brasileiro. A produção

de Franklin Távora (1842-1888) se insere no período comumente identificado como

sendo o da inflexão entre os estertores do Romantismo e as primeiras experiências

realistas da literatura brasileira. O livro em questão foi seu primeiro romance de fôlego,

sendo o mais representativo de sua Literatura do Norte, projeto pessoal que buscava dar

ensejo a uma escola literária que exaltasse as particularidades do Brasil setentrional em

detrimento dos estrangeirismos literários correntes na capital do Império.

Apesar de ser o patrono da cadeira 14 da Academia Brasileira de Letras, Távora

foi uma figura marginalizada em vida, vindo a morrer na penúria, amargando o insucesso

de seu projeto político e literário. Preterido pela crítica em função de sua tendência a

descambar tanto para vícios típicos do Romantismo quanto do Realismo em suas histórias

repletas de preleções morais e clichês narrativos, a perenidade de sua obra se deve talvez

em parte pela presteza do autor em destrinchar o interior de um Pernambuco ainda

dependente da economia da cana, registrando os costumes de seu povo e as relações de

poder que estruturavam essa sociedade em declínio.

Por muito tempo, a abordagem da produção literária de Távora por parte da

academia se limitou à sua célebre polêmica com José de Alencar, as Cartas a Cincinato,

tendo esta sido tratada sob um prisma pouco lisonjeiro e mesmo pouco aprofundado em

relação, particularmente, à análise da posição do autor de O Cabeleira. Pesquisas de

fôlego como a biografia do escritor redigida por Cláudio Aguiar e a tese defendida por

Cristina Bertioli Ribeiro, assim como a compilação das próprias Cartas a Cincinato por

parte de Eduardo Vieira Martins, deram ensejo a novos trabalhos em torno da produção

de Távora nos últimos anos, sendo de suma importância a continuidade e o

aprofundamento das discussões acerca desse patrono esquecido da Academia Brasileira

de Letras, sobretudo quando essas reflexões se sustentam sobre novas bases

epistemológicas.

É justamente no encontro com essas questões que a discussão sobre a

interrrelação entre a criação literária e a produção de discursos políticos ganha relevância.

A retomada da obra de Távora, um autor marginalizado por seus pares em vida e renegado

pela crítica após sua morte, além de justificar-se por si só enquanto resgate histórico,

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oferece um novo prisma através do qual é possível contemplar o panorama das relações

de poder nas quais estava inserida e, de quebra, oferece também a reafirmação da potência

de vozes contra-hegemônicas, tanto no Brasil-Império quanto nos dias de hoje, em que a

apreensão discursiva, política e econômica do espaço sertanejo permanece em disputa.

O sertão é uma categoria basilar para o pensamento social brasileiro, seja pela

teia de imaginários que mobiliza, seja pela sua dimensão oficial enquanto recorte

territorial a partir do qual se pautam políticas públicas, do combate às secas à delimitação

da região Nordeste. Dada a contínua tendência de normalização dos discursos

hegemônicos correntes em favor da manutenção da exploração humana pelo capital,

torna-se relevante traçar a arqueologia de sua difusão e validação no intuito de

compreender os mecanismos que levam à sua reprodução e superá-los.

Diante disso, o trabalho objetiva compreender como se dá a representação do

sertão no romance O Cabeleira, de Franklin Távora. Ademais, busca-se discutir a

significação dessa representação frente ao projeto político-literário do autor e o contexto

histórico no qual ele se insere.

No primeiro capítulo, “A colonialidade na construção discursiva do sertão”,

pretende-se — a partir do precedente estabelecido pelo trabalho pioneiro de Nísia

Trindade Lima (2013), no qual a autora intentou realizar uma arqueologia da significação

do sertão no Brasil a partir de sua apreensão pela intelligentsia nacional — traçar um

breve panorama dos sentidos que o termo sertão adquiriu em território brasileiro. Essa

análise parte da proposição de Moraes de que a categoria corresponderia a uma “ideologia

geográfica” (2003), atentando-se também às formulações de Aníbal Quijano acerca do

que chama de “colonialidade do poder” (QUIJANO, 1992) — a soma das estruturas

político-econômicas e do substrato ideológico que reafirmam a validade de uma lógica

eurocêntrica baseada na naturalização do conceito de raça como eixo estruturante das

relações de poder desde os tempos coloniais — e seu peso na formulação do sertão como

categoria a ser instrumentalizada pelas elites políticas que se sucederam em solo

brasileiro.

Nessa recuperação da construção discursiva do sertão, o século XIX toma vulto

como período privilegiado de análise. A partir desse enfoque, dá-se particular atenção ao

processo dialógico de marginalização dos estados do nordeste do país e à progressiva

exclusividade da identificação do sertão com a região, privilegiando as reflexões acerca

da produção da identidade nordestina por Durval Muniz de Albuquerque Junior (2001,

2017).

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Buscando desenvolver uma reflexão acerca desses temas a partir da obra de

Franklin Távora, propõe-se o estudo das obras de crítica e prosa literária do autor, com

especial atenção ao romance O Cabeleira (1876), assim como à fortuna crítica dedicada

a ele, objetivando a produção de uma arqueologia da concepção do sertão de Távora. No

segundo capítulo, “Historiador, crítico, político ou filósofo?”, há um aprofundamento

particular na interrelação entre a elaboração da Literatura do Norte e as pressões históricas

a que ela respondia baseando-se sobretudo no estudo de algumas das demais produções

de Távora, na documentação histórica levantada por Evaldo Cabral de Mello Neto (1984,

2008) — a respeito do imaginário em torno da relação entre as elites do norte e o poder

central Imperial — e nas formulações de Angela Alonso (2002) — acerca das disputas

políticas dos últimos anos do Brasil-Império protagonizadas pela geração de Távora — a

fim de melhor situar as elaborações do autor sobre o sertão dentro de um projeto político-

literário bem definido.

As discussões iniciais sobre o paratexto e o Capítulo I d’O Cabeleira são

desenvolvidas detidamente no terceiro capítulo, “Um romance para o Norte brasileiro”.

É a partir do destrinchar dessas páginas iniciais do romance que se dá a articulação entre

as discussões levantadas acerca da representação do sertão, do conteúdo político do opus

tavoreano e da leitura proposta sobre a significação do sertão n’O Cabeleira.

No quarto capítulo, “Por uma leitura através do espaço”, a representação do

sertão no romance será analisada a partir das formulações de Anita Moraes (2006),

Eduardo Vieira Martins (2008a), Cristina Bertioli Ribeiro (2008) e Francisco Cerisara Gil

(2020) sobre as dicotomias entre civilização e barbárie, sertão e litoral, rural e urbano na

trama, articulando suas proposições com especial atenção à função discursiva que a

violência e o trabalho assumem no texto literário em questão. Será explorada, também, a

articulação entre as formulações de Távora sobre o sertão e os paradigmas literários de

sua época, pensando, a partir de desdobramentos da classificação de Cristóvão (1994), na

significação que uma representação do sertão como inferno assume em O Cabeleira e em

como a trajetória do protagonista do romance pode ser entendida como uma jornada

catabática.

Atentar-se-á, também, às aproximações entre as categorias propostas para a

análise do romance de Távora e as representações sobre o sertão cristalizadas pelo autor

Euclides da Cunha em seu clássico Os Sertões. Essas questões serão desenvolvidas à luz

das conclusões anteriores acerca das próprias formulações de Távora sobre o seu projeto

político-literário e as significações que essas dicotomias assumem dentro dele para

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compreender como a mobilização dessas categorias está implicada na produção

discursiva do sertão tavoreano.

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Capítulo 1 – A colonialidade na construção discursiva do sertão

A ideologia, sabemo-lo bem, não é reflexo do vivido, mas um projecto [sic] de

agir sobre ele. [...] [estudá-la] é defrontar uma das questões centrais que hoje se põem

à ciência do homem – a ciência das relações entre o material e o mental na evolução

das sociedades.

(Georges Duby)

1.1 – O sertão como produção ideológica

Em um trabalho que tome por objeto de estudo a categoria sertão, é de praxe

recorrer à etimologia da palavra em questão a fim de verificar em sua origem indícios da

acepção, tanto lata quanto estrita, que ela assumiu em terras brasileiras. Dessa forma,

procura-se, a partir da exposição de algumas das hipóteses mais correntes sobre a

evolução histórica do termo, situar os desdobramentos ideológicos de seu emprego, tal

como aventados pelos teóricos a que se recorre ao longo do texto, frente ao sentido

inequívoco que a palavra sertão adquiriu através dos séculos.

Gustavo Barroso, em comunicação à Academia Brasileira de Letras transcrita no

Jornal do Commercio (1947), descarta a hipótese, já bastante difundida na época, de que

o vocábulo seria uma abreviatura de “desertão”, fixando sua origem na língua mbunda de

Angola com a palavra muchitum, vertida para o latim como locus mediterraneum, local

no interior. O termo teria sido apropriado pelos colonizadores portugueses na forma de

“mulcetão”, sendo posteriormente reduzido a “celtão” e “certão”, tendo sido difundido

pelo império ultramarino ao longo dos primeiros séculos de sua expansão.

Uma contestação da hipótese “desertão” a partir dos estudos fonéticos é

apresentada por Jerusa Pires Ferreira, que reafirma a impossibilidade de sertão ser uma

corruptela do latim desertanu por conta da inversão que esse caminho significaria do

ponto de vista da lei do menor esforço, implicando em uma sonorização da oclusiva em

oposição ao ensurdecimento, que seria a progressão mais natural (FERREIRA, 2004).

Baseada em ampla amostragem, ela também verificou que o termo sertão (em suas

diversas grafias) aparece em textos portugueses dos séculos XV e XVI associado tanto a

“lugares povoados cheios de vegetação e árvores densas” quanto a áreas áridas e

desabitadas.

Dada a amplitude do emprego da palavra desde suas primeiras aparições em

relatos de viagem, cartas e documentos oficiais, a autora considera igualmente

improvável a recorrente hipótese, postulada por Joseph M. Piel, de que sertão derivaria

da palavra latina sertanus, particípio passado de sero, serui, sere, significando entrelaçar,

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entrançar, de forma que sua origem estaria associada à descrição de áreas com vegetação.

Piel ainda sugere que o termo possa ter sido importado de uma língua estrangeira para

suprir a necessidade de descrever as terras recém-descobertas, como supõe Barroso, uma

vez que ele não aparece em registros antes do século XV, mas pontua a ocorrência do

topônimo em terras lusitanas (PIEL apud FERREIRA, 2004).

Moacir M. F. Silva (1950), comentando a hipótese de Barroso, acredita ser mais

provável que os falantes da língua mbunda tenham tomado o termo dos portugueses do

que o contrário, uma vez que o termo só foi registrado no dicionário da língua africana a

que Barroso recorre no século XIX, quando seu emprego pelos portugueses já datava de

mais de três séculos. O autor sugere que à povoação de Sertã, na província portuguesa de

Beira Baixa, se deve a origem do termo.

Segundo a lenda de origem local, a povoação teria sido fundada em 74 AEC pelo

general romano exilado Quintos Sertório e por ele batizada de “Sertaga”, corrompida em

“Sartão”. Em uma ocasião em que tropas romanas fiéis à capital marcharam contra o

assentamento, uma mulher teria feito frente aos soldados armada de uma grande sertãa,

uma frigideira quadrada, garantindo assim a sobrevivência da vila.

Silva supõe que a lenda da mulher da sertãa se popularizou pela similaridade da

palavra com a corruptela do nome original do povoado, “Sartão”. Esta palavra teria sido

também utilizada, por extensão, para caracterizar os entornos dessa povoação, terras das

mais interiores do território continental lusitano, vindo a ser posteriormente difundida

como sinônimo de terras interiores por todo o nascente império português.

Quer sua origem remonte a quinhentos ou a dois mil anos no passado, fica clara

a sua associação histórica a “[...] pensar, se assentar e controlar terras que não as suas,

que estão distantes, que outros habitam e possuem1”, na definição de Edward Said do

conceito de imperialismo (SAID, 1994, p. 7, tradução nossa). Essa identificação se dá de

tal forma que Piel toma o vocábulo sertão como o “Signo Linguístico da Expansão

Portuguesa” (PIEL apud FERREIRA, 2004, p. 27), evidenciando o quanto, acima de

qualquer dúvida sobre sua origem, o termo “tem ampla realização social e sua vigência

procedeu da necessidade de nominar coisas novas, hoje tão trágicas” (FERREIRA, 2004,

p. 35).

1 No original: “[…] thinking about, settling on, controlling land that you do not possess, that is distant, that

is lived on and owned by others”.

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Assim, o sertão se constituiu no imaginário colonial como um termo guarda-

chuva para qualificar as áreas interiores das colônias portuguesas, o que, a rigor, implicou

sua associação à ideia de deserto ou ao lugar dos desertores, “terras sem fé, rei ou lei”

como proposto por Janaína Amado (1995) a despeito de sua origem etimológica

aparentemente diversa. Márcia Naxara aproxima as categorias sertão e deserto a partir da

polissemia coincidente que ambas assumiram ao longo da história do Brasil (NAXARA,

2010), do sentido literal das paisagens desérticas aos diversos empregos figurados que

perduraram em terras brasileiras ao longo do tempo.

Para a autora, tanto o sertão quanto o deserto se apresentariam como “espaços

em aberto – fronteiras em múltiplos sentidos” (NAXARA, 2010, p. 5). Essa perspectiva

é particularmente frutífera para o estabelecimento de paralelos com o avanço da fronteira

do oeste americano e as campanhas do deserto na Patagônia argentina na medida em que

esses processos também se fundamentam no estabelecimento desses respectivos espaços

como “vazios”, tanto de povos quanto de história, pela ótica colonial (Cf. MAIA, 2008;

DAFLON, 2020).

Arvorando-se nessa perspectiva, os poderes coloniais, em todos esses três casos,

empreenderam ativamente o esvaziamento desses espaços através do massacre dos povos

nativos e o apagamento de suas culturas, efetivando sua apreensão discursiva prévia

através do exercício de um poder outorgado a esses colonizadores por si próprios a partir

da instituição de sua ótica dual. Segundo a autora, é nesse sentido que “[p]ara o

colonizador, ‘sertão’ constitui o espaço do outro, o espaço por excelência da alteridade”

(AMADO, 1995, p. 149).

O processo de projeção de intenções sobre esses espaços pode ser melhor

apreendido a partir de uma reflexão acerca do conceito de “paisagem”, aqui entendido

como a percepção socialmente construída de um determinado espaço. Sobre sua

definição, Horácio Capel fala de uma "mirada consciente e intencional" a um determinado

espaço como a pré-condição da instituição de uma paisagem (CAPEL, 1973, p. 98).

Ele desenvolve que “Este olhar não se limita a reconhecer passivamente a

paisagem já existente, mas, pelo contrário, realiza uma função ativa de seleção e avaliação

dos elementos que se integram para formar a paisagem.” (CAPEL, 1973, p. 98, tradução

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nossa) 2. Simon Schama desenvolveria suas ideias acerca do conceito nesse mesmo

diapasão:

Paisagens são cultura antes de serem natureza; construtos da imaginação

projetados sobre madeira e água e rocha. [...] Mas deve-se reconhecer também

que, uma vez que uma certa ideia de paisagem, um mito, uma visão, se

estabelece em um lugar real, ela tem uma maneira peculiar de confundir

categorias, de tornar metáforas mais reais do que seus referentes; de se tornar,

de fato, parte do cenário (SCHAMA, 1996, tradução nossa). 3

A concepção de Schama é de que a paisagem, enquanto construto cultural,

projeta-se sobre e a partir de uma dada materialidade espacial, mas corresponde

exclusivamente à apreensão subjetiva de determinado grupo sobre esse espaço. Isso

acarreta o potencial deslocamento da centralidade do substrato referencial em detrimento

de sua projeção idealizada no campo discursivo, processo caro à apreensão dos discursos

sobre a paisagem sertaneja no presente estudo.

Longe de imbuir o termo sertão de qualquer objetividade, seu emprego

sistemático ao longo dos séculos lhe atribuiu significações as mais diversas por ser

colocado em oposição ao que era conhecido, entendido, explorado, em suma, ao que

constituía as próprias fronteiras, não só territoriais, do colonizador lusitano. É nesses

termos que Antonio Carlos Robert Moraes propõe que:

Na verdade, o sertão não é um lugar, mas uma condição atribuída a variados e

diferenciados lugares. Trata-se de um símbolo imposto – em certos contextos

históricos – a determinadas condições locacionais, que acaba por atuar como

um qualificativo local básico no processo de sua valoração. Enfim, o sertão

não é uma materialidade da superfície terrestre, mas uma realidade simbólica:

uma ideologia geográfica. Trata-se de um discurso valorativo referente ao

espaço, que qualifica os lugares segundo a mentalidade reinante e os interesses

vigentes neste processo. O objeto empírico desta qualificação varia

espacialmente, assim como variam as áreas sobre as quais incide tal

denominação. (MORAES, 2003, p. 2).

Qualificar um espaço como sertão seria, portanto, uma forma de se apropriar

discursivamente dele a partir de sua assimilação prévia dentro do sistema de ideias de um

grupo a fim de justificar o exercício de seu poder sobre esse espaço. Nos termos do autor,

2 No original: “Esta mirada no se limita a recoger pasivamente el paisaje ya existente, sino que por el

contrario realiza una función activa de selección y de valoración de los elementos que se integran formando

el paisaje”. 3 No original: “Landscapes are culture before they are nature; constructs of the imagination projected onto

wood and water and rock. [...] But it should also be acknowledged that once a certain idea of landscape, a

myth, a vision, establishes itself in an actual place, it has a peculiar way of muddling categories, of making

metaphors more real than their referents; of becoming, in fact, part of the scenery”.

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essa apreensão discursiva do espaço em questão implicaria uma produção de sentidos

sobre ele que justificasse sua captura dentro da esfera de um determinado poder

hegemônico, em uma perspectiva gramsciana (MORAES, 1991, p. 81-82), situando

dentro de um jogo de forças político e histórico uma acepção da produção discursiva da

paisagem condizente com a de Schama.

Esta proposição encontra eco nas ideias de Aníbal Quijano sobre a

“colonialidade do poder” (1992), que caracteriza, de maneira geral, as estruturas de poder

herdadas do colonialismo que se reproduzem nas relações de raça e gênero, além das

concepções sobre a natureza, tal como observamos ainda nos dias de hoje. Porque se essa

sociedade global se sustenta sobre relações desiguais estabelecidas desde os tempos

coloniais, estas só tomam forma a partir de uma concepção do humano enquanto ser

separado da natureza, uma noção, segundo Walter Mignolo (2018), exclusiva do

paradigma eurocêntrico/ocidental e imposta como uma visão de mundo na qual se

fundamenta a diferenciação entre pessoas.

Para Quijano, essa diferenciação social se funda na necessidade dos europeus, à

ocasião de sua expansão colonial, de estabelecerem bases epistemológicas nas quais

pudessem fundamentar suas práticas imperialistas. Ao reduzirem todos os povos

enredados nesse novo sistema global em que eles se impunham como conquistadores à

categoria de não-europeus, naturalizava-se a sua primazia nesse sistema-mundo enquanto

fator biológico, reafirmava-se a sua organização cultural, política e social como a

culminação do processo civilizacional em uma escala evolucional linear e, de quebra

justificava-se a opressão e submissão das “raças não-europeias” à sua condição marginal

na divisão do trabalho tanto no interior das sociedades globalizadas que se desenhavam

quanto em sua expressão territorial na divisão internacional do trabalho:

A constituição da Europa como nova identidade depois da América e da

expansão do colonialismo europeu sobre o resto do mundo levaram à

elaboração da perspectiva eurocêntrica do conhecimento e, com ela, à

elaboração teórica da ideia de raça como naturalização dessas relações

coloniais de dominação entre europeus e não-europeus. Legitimar as já antigas

ideias e práticas de relações de superioridade/inferioridade entre dominados e

dominantes. Desde então tem-se mostrado o mais eficaz e perdurável

instrumento de dominação social universal, pois dele passou a depender

inclusive outro igualmente universal, ainda que mais antigo: o intersexual ou

de gênero. Os povos conquistados e dominados foram situados em uma

posição natural de inferioridade e, consequentemente, também o foram seus

traços fenotípicos, assim como suas descobertas mentais e culturais. Desse

modo, raça se converteu no primeiro critério fundamental para a distribuição

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da população mundial em traços, lugares e papéis na estrutura de poder da nova

sociedade. (QUIJANO, 2000, tradução nossa). 4

No Brasil, a categoria sertão é prenhe de significações associadas à reprodução

desse colonialismo do poder desde o seu estabelecimento dentro de sua relação

dicotômica com o litoral a partir de uma ótica centrada e orquestrada em função do

imperialismo português. Essa dualidade espacial concorreria para a reprodução, em nível

nacional, desses mesmos mecanismos apontados por Quijano como as pedras-angulares

de uma epistemologia eurocêntrica e excludente.

A adoção dessa perspectiva permite compreender a perenidade do emprego do

termo sertão no léxico nacional a partir de sua contínua instrumentalização enquanto

recurso discursivo que identifica, segundo uma perspectiva eurocêntrica, o espaço do

Outro e oferece respaldo para a sua opressão ao longo dos séculos.Com base nisso, é

possível verificar como o sertão permanece relevante enquanto construto ideológico na

medida em que a sociedade brasileira, nos sucessivos contextos históricos em que

atualizou o termo para adequá-lo à sua nova lógica interna, continua a reproduzir uma

estrutura colonial de poder.

1.2 – O sertão e a literatura na invenção do Brasil

Já no primeiro relato europeu sobre terras brasileiras, Pero Vaz de Caminha

discorria: “Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos,

não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa.” (CAMINHA,

1500). Frei Vicente de Salvador, tido como o primeiro historiador do Brasil, também

escreveria em sua História do Brasil (1889):

Da largura que a terra do Brasil tem para o sertão não trato, porque até agora

não houve quem a andasse, por negligência dos portugueses que, sendo

4 No original: “La constitución de Europa como nueva identidad después de América y la expansión del

colonialismo europeo sobre el resto del mundo llevaron a la elaboración de la perspectiva eurocentrica de

conocimiento y con ella a la elaboración teórica de la idea de raza como naturalización de esas relaciones

coloniales de dominación entre europeos y no-europeos. Legitimar las ya antiguas ideas y prácticas de

relaciones de superioridad / inferioridad entre dominados y dominantes. Desde entonces ha demostrado ser

el más eficaz y perdurable instrumento de dominación social universal, pues de él pasó a depender inclusive

otro igualmente universal, pero más antiguo: el intersexual o de género. Los pueblos conquistados y

dominados fueron situados en una posición natural de inferioridad y, en consecuencia, también sus rasgos

fenotípicos, así como sus descubrimientos mentales y culturales. De ese modo, raza se convirtió en el primer

criterio fundamental para la distribución de la población mundial em los rangos, lugares y roles en la

estructura de poder de la nueva sociedad”.

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grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se

de as andar arranhando ao longo do mar como caranguejos. (VICENTE, 1889,

p. 8).

Se a oposição entre mar e sertão parece tomar a forma de mero referencial

geográfico na Carta de Pero Vaz de Caminha, a subsequente exploração portuguesa das

terras americanas, feita sempre pelas beiradas, confirmaria essa oposição no campo

ideológico. Uma vez transpostos os “mares nunca dantes navegados”, o sertão se

apresentava como a nova fronteira da civilização lusitana.

O estabelecimento desses espaços como pares opositivos em diferentes níveis

semânticos permearia o imaginário brasileiro de maneira duradoura, configurando uma

continuidade na apreensão das periferias do território nacional através de uma ótica

colonial. Rui Barbosa, em conferência intitulada Conferência de Alagoinhas, sintetizaria

essa antítese da seguinte forma:

O sertão não conhece o mar. O mar não conhece o sertão. Não se tocam. Não

se veem. Não se buscam. Mas há em ambos a mesma imponência, a mesma

inescrutabilidade. Sobre um e outro se estende esse mesmo enigma das

majestades indecifráveis. De um e outro ressalta a mesma expressão de

energia, força e poder a que se não resiste. Um e outro se nos antolham, do

mesmo modo, como dois reservatórios insondáveis e inesgotáveis de vida.

(BARBOSA, 1988, p. 57).

Como os primeiros colonos portugueses, o Brasil se veria ao longo de sua

história antolhado, como coloca Barbosa, entre o mar e o sertão, estando este último para

si da mesma maneira que o primeiro esteve para o império lusitano — como o horizonte

do seu devir e a categoria definidora de sua identidade nacional. Assim, o Brasil sempre

foi pensado em oposição ao sertão e em função da subjugação das áreas correspondentes

a ele, seu duplo invertido.

Com a multiplicação dos assentamentos portugueses ao longo da costa

americana, convencionou-se referir às terras interiores como os sertões de determinados

topônimos, fossem de serras, rios ou capitanias inteiras. Tornados múltiplos, os sertões

se caracterizavam cada um como uma frente diferente no tímido avanço português para

dentro do continente, mas continuavam ocupando o mesmo lugar no imaginário do

colonizador.

Ferreira, em seu esforço para caracterizar o sertão, acaba definindo-o como um

“longe perto” (2004), no sentido em que, se não era um espaço sobre o qual se exercia

diretamente o controle, já era um alvo de projeções de intenções e fabulações, familiar o

suficiente para se cobiçar, por demais fora de seu alcance para ser assimilado. Essa

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relação se mostra bem expressa na linguagem cartográfica desde os primórdios da

ocupação portuguesa, na qual os mapas apresentam enormes áreas vazias no centro do

continente ora recheadas com topônimos imaginários, criaturas fantásticas, sociedades

indígenas ainda desconhecidas e, sobretudo, riquezas ocultas (Cf. DELVAUX, 2009).

Essas riquezas ocultas não se limitariam a minerais preciosos ou matérias-

primas, mas abrangeriam as vastas populações indígenas a serem capturadas e tornadas

mão-de-obra cativa. As tribos que habitavam as faixas litorâneas foram as primeiras a

sofrerem os efeitos da colonização portuguesa na América, sendo dizimadas por

epidemias, escravizadas e destituídas de suas terras ancestrais, o que levou os

sobreviventes a procurarem refúgio cada vez mais para o interior a fim de sobreviver.

A interiorização da ocupação lusitana, que se deu de forma relutante e gradual

na medida em que a dependência da metrópole em relação à colônia americana tomava

vulto, foi primeiro devida às entradas e bandeiras organizadas em busca de indígenas a

serem escravizados e minas a serem dilapidadas. Às primeiras expedições se seguiu o

estabelecimento de comunidades permanentes, em um processo secular que resultou na

redução do que ainda se consideravam sertões a áreas cada vez mais dispersas e

circunscritas.

Após o processo de independência política, em 1822, surgiu a necessidade de se

construir uma identidade nacional a partir da mobilização de símbolos e tradições que

denotassem uma separação do império nascente em relação à coroa portuguesa. Eric

Hobsbawm (1997) salienta a potência imagética desses símbolos e tradições, ainda que

inventados, como fator de controle social e legitimação das nações soberanas.

Nesse sentido, a sociedade que se pretendia brasileira, tal qual se apresentava,

oferecia um desafio original aos seus ideólogos: era uma nação sem história. Ao menos

sem história própria.

Benedict Anderson (2006) entende a formação dos Estados-nação modernos a

partir da progressiva formulação de laços históricos e culturais a serem assumidos por

indivíduos e comunidades a princípio sem qualquer ligação, mas irmanados dentro de

uma “comunidade imaginada” fundada em signos comuns e produtora de uma identidade

a ser tacitamente assumida por todos que estivessem cerrados dentro de suas fronteiras

territoriais ou étnicas. A história do Brasil até então era equivalente ao tempo do domínio

português e às trevas pré-cabralinas, enquanto a unidade étnica dessa nação nascente era

desigualmente tripartida entre dois terços majoritários e amplamente desumanizados e

uma minoria cuja herança era justamente a efígie a que se procurava contrapor.

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Essa ausência de um substrato histórico fez com que a nação brasileira incorresse

em um movimento inverso ao que Benedict Anderson estudou na gênese de seus pares

europeus, vindo a buscar em sua dimensão espacial a validação que a história não lhe

conferia. Dessa forma, a manutenção da unidade territorial desse país de dimensões

continentais se afigurou como a pedra angular e o motor histórico pelo qual se matou e

morreu, como testificam as numerosas revoltas nativistas frustradas desse período, enfim,

pelo qual se fundou a ideia de Brasil.

A esse respeito, Maurice Ronai afirmaria a centralidade da construção discursiva

da paisagem na institucionalização do território nacional:

É através da paisagem que o território se torna visível aos cidadãos, o território

como rede de belas paisagens que dão crédito à bondade da nação, conforme a

ideia platônica do acordo entre a perfeição da forma (paisagem) e a excelência

da coisa (nação). Que o vocabulário designe o Estado, a nação e a paisagem

pela mesma palavra, país (pays [no original francês]), confirma o

funcionamento metonímico do discurso nacional que ignora as escalas e as

distâncias. (RONAI, 2015).

No caso brasileiro, em que o território se apresenta não só como a dimensão

espacial da expressão do poder do Estado, mas como signo de sua fundação e legitimação,

a formulação de Ronai ressoa de maneira contundente.

À ocasião da formação da Itália, outro Estado de fundação tardia, um de seus

estadistas, Massimo d’Azeglio, faria a seguinte afirmação: “Fizemos a Itália, agora

precisamos fazer os italianos.” (d’Azeglio, M, 1860 apud HOBSBAWM, 1979, p. 103).

A passagem encontraria eco na emancipação do Estado brasileiro, ao qual não faltaram

ideólogos para fabularem um substrato para a identidade nacional.

Nesse contexto, a literatura foi o principal plano a partir do qual se projetaram

os signos que viriam a compor a brasilidade, da natureza exuberante e indomada ao

melting pot tupiniquim. É particularmente interessante a convergência entre a nação e o

sertão na instrumentalização dos povos indígenas na construção do mito fundacional nos

romances do romantismo indianista.

Edward Said investigaria em seu Cultura e Imperialismo (1994) as imbricações

entre a literatura produzida nas metrópoles europeias e as práticas imperialistas desses

Estados. Ele identificaria nessas produções literárias o substrato de um imaginário em

torno do imperialismo europeu que serviria para justificá-lo e promovê-lo, em uma

relação que encontra paralelos lusófonos tanto, de forma mais óbvia, na obra máxima de

Luís de Camões quanto em certa medida no conjunto da obra de José do Alencar.

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Em Iracema (1865), de José de Alencar, é da junção entre a personagem

homônima e o português Martim que nasce o primeiro brasileiro, Moacir, o filho da dor.

Iracema, como toda personagem indígena mobilizada no contexto desse ciclo romântico,

é uma representação idealizada que serve somente como matéria-prima para a gênese do

Brasil. A “filha do sertão”, como ela é referida no romance, se confundia com a própria

natureza dos bosques onde vivia antes de abandoná-los em função de seu amor por

Martin, a quem passa a dedicar a vida.

Iracema definha a cada passo que dá em direção ao litoral em sua retirada do

interior das matas virgens, em um movimento no qual o sertão parece se caracterizar como

um cronotopo, uma interseção entre a representatividade de uma dimensão espacial e

outra temporal no plano literário (BAKHTIN, 2018). O caráter cronotópico que o sertão

apresenta nessa narrativa se apresenta como um símile expressivo do sentido que o termo

assume historicamente no Brasil — o de um espaço deslocado dos demais no plano

temporal.

Dessa forma, a travessia de Iracema condensa, narrativamente, a distância no

tempo e no espaço que separa os povos nativos da nação que se desenhava. Nessa nação

porvir, os indígenas, como Iracema, que morre após parir seu filho sozinha e amamentá-

lo até o retorno de Martin, só têm lugar como parte de um passado imaginário a ser

feitichizado.

Alfredo Bosi, ao analisar os romances indianistas de Alencar, afirmaria que "O

risco do sofrimento e morte é aceito pelo selvagem sem qualquer hesitação, como se sua

atitude devota para com o branco representasse o cumprimento dum destino, que Alencar

apresenta em termos heroicos e idílicos" (BOSI, 1972, p. 76), em uma interpretação do

período colonial que Bosi avalia como “pesadamente ideológica”. Antonio Candido, ao

se propor tratar da relação entre o desenvolvimento da literatura brasileira e a história

social do Brasil, condensaria a questão da seguinte forma:

[...] vê-se que no Brasil a literatura foi de tal modo expressão da cultura do

colonizador, e depois do colono europeizado, herdeiro dos seus valores e

candidato à sua posição de domínio, que serviu às vezes violentamente para

impor tais valores, contra as solicitações a princípio poderosas das culturas

primitivas que os cercavam de todos os lados. Uma literatura, pois, que do

ângulo político pode ser encarada como peça eficiente do processo

colonizador. (CANDIDO, 2006, p. 199).

É notável não só a intenção do apagamento do indígena através da miscigenação,

figurada aqui como um branqueamento chancelado pela educação europeia destinada a

Moacir, mas também a invisibilização do negro nessa narrativa de fundação nacional. Se

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a representação do papel do indígena podia ser falseada pela conjuração de um tipo ideal

habitante dos confins do tempo e do espaço, a escravização dos negros era uma realidade

sempre presente e incontornável na estruturação do Brasil-Império.

Irmanadas por esse passado colonial comum, as nações africanas lusófonas não

compartilham da significação e aderência que o termo sertão ganhou em terras brasileiras.

Segundo Mia Couto: “Os portugueses levaram a palavra para África e tentaram nomear

assim a paisagem da savana. Não resultou. A palavra não ganhou raiz. Apenas nos escritos

coloniais antigos se pode encontrar o termo ‘sertão’. Quase ninguém hoje, em

Moçambique e Angola, reconhece o seu significado.” (COUTO, 2011, p. 70).

A esse dado concorre a formulação de Quijano de que, enquanto determinantes

históricos gerais, como o processo colonial comum às ex-colônias portuguesas, apontam

para uma tendência convergente na formação das sociedades às quais se impõem, são as

articulações específicas entre as variáveis de cada contexto que determinarão em última

instância o processo de formação histórica destas:

Uma totalidade histórico-social é um campo de relações estruturado pela

articulação heterogênea e descontínua de diversas áreas da existência social,

cada uma delas por sua vez estruturada por elementos historicamente

heterogêneos, descontínuos no tempo e conflituosos. Isso quer dizer que as

partes em um campo de relações sociais de poder não são tão somente “partes”,

o sendo em relação ao conjunto do campo, da totalidade que ele constitui e,

consequentemente, se movem dentro da orientação geral do conjunto; mas elas

não o são em sua relação separada umas com as outras. Cada uma delas é uma

unidade total em sua própria configuração, pois também possui uma

constituição historicamente heterogênea. Cada elemento de uma totalidade

histórica é uma particularidade e, ao mesmo tempo, uma especificidade,

mesmo, eventualmente, uma singularidade. Todos eles se movem no sentido

da tendência geral do conjunto, mas têm, ou podem ter, uma autonomia relativa

e que pode ser, ou chegar a ser, conflituosa com a do conjunto. (QUIJANO,

2000, p. 298-299, tradução nossa)5.

No caso brasileiro, diferente das ex-colônias portuguesas na África, a

reelaboração do sertão como expressão da colonialidade do poder a ser reiteradamente

5 No original: “Una totalidad histórico-social es un campo de relaciones estructurado por la articulación

heterogénea y discontinua de diversos ámbitos de existencia social, cada uno de ellos a su vez estructurado

con elementos históricamente heterogéneos, discontinuos en el tiempo y conflictivos. Eso quiere decir que

las partes en un campo de relaciones de poder social no son sólo “partes”; lo son respecto del conjunto del

campo, de la totalidad que éste constituye y, en consecuencia, se mueven dentro de la orientación general

del conjunto; pero no lo son en su relación separada con cada una de las otras. Cada una de ellas es una

unidad total en su propia configuración, porque igualmente tiene una constitución históricamente

heterogénea. Cada elemento de una totalidad histórica es una particularidad y, al mismo tiempo, una

especificidad, incluso, eventualmente, una singularidad. Todos ellos se mueven dentro de la tendencia

general del conjunto, pero tienen o pueden tener una autonomía relativa y que puede ser, o llegar a ser,

conflictiva con la del conjunto”.

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instrumentalizada pelas elites concorreu para sua perenidade no pensamento social do

país até a atualidade. Isso não impediu o autor angolano Ruy Duarte de Carvalho de

buscar paralelos entre Brasil e Angola em seu livro, Desmedida (2006), que

extrapolassem sua condição partilhada de ex-colônias lusitanas.

Carvalho aproxima esses dois países a partir dos enfrentamentos históricos pela

superação dessa condição e da ressignificação de sua herança colonial (CARVALHO,

2013, p. 397-8), entendendo a literatura como um campo privilegiado para a expressão

dessas disputas epistemológicas. Ele confronta o sertão que conheceu através de

Guimarães Rosa com a região que ele percorre em sua viagem ao longo do rio São

Francisco, reconhecendo na potência poética que o sertão roseano confere ao sertão real

a expressão de uma alternativa ao discurso colonial que converge com suas aspirações de

autodeterminação para seu próprio país.

Carvalho sintetizaria suas proposições em um Decálogo Neo-Animista (2009),

em que propõe uma desobediência epistemológica ao paradigma ocidental europeizante

que se aproxima muito do que Walter Mignolo expõe como uma expressão do

pensamento decolonial (2018):

O paradigma humanista, imposto à espécie inteira pela via da ocidentalização

completa do mundo, e decorrente da colocação ideológica e idealista da terra

no centro do universo, e do homem no centro da criação e do lado do divino

em oposição ao resto da natureza, ao procurar garantir, no seio da criação, um

lugar de eleição e privilégio para o homem, produz necessária e

obrigatoriamente lugares de eleição e de privilégio para certos homens e

grupos de pessoas. [...]

Outros paradigmas postos de parte e arredados de consideração por advirem

de culturas dominadas ou anuladas pelo Ocidente, poderão ser recuperados e

adaptados a situações relidas agora, ou inventados a partir da reconsideração

dos seus fundamentais estigmatizados como arcaicos pelo processo de

imposição da civilização ocidental. (CARVALHO, 2009, p. 1).

Situando a ótica eurocêntrica como o paradigma a ser desafiado, ambas as

perspectivas convergem enquanto propositoras de alternativas que viabilizem a

interpretação dos espaços periféricos em seus próprios termos. Esses posicionamentos,

que emergem como resposta às condições históricas de fins do século XX e início do

XXI, não são decerto as primeiras formas de enfrentamento a esse paradigma totalizante,

mas elas permitem discutir alternativas anteriores sob uma nova luz.

O projeto de integração nacional, ao qual José de Alencar confessamente

subscrevia seu projeto político-literário, como expresso no texto Benção Paterna (1872),

correspondia a um processo de apagamento e sujeição dos espaços marginalizados do

Brasil em função de uma noção de progresso totalizadora e europeizante. Mesmo quando

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Alencar retrata o Brasil profundo do Sul e do Norte com O Gaúcho (1870) e O Sertanejo

(1875), os vaqueiros nos quais essas obras são centradas são idealizações de tipos rurais

heroicos que correspondem ao papel do indígena em Iracema enquanto depositários de

valores e virtudes europeias que Alencar pretendia serem nacionais.

Entretanto, nesse contexto, a condição de colono ou caboclo, ainda que

relacionada aos processos de mestiçagem, configurava-se em uma situação diferente

daquela do indígena “pré-histórico”. Se este estava destinado ao desaparecimento, os

tipos representados pelo sertanejo e o gaúcho já corresponderiam a um outro momento

histórico, mais associado à ocupação e colonização admissíveis no presente e no futuro.

O abandono de temas indianistas em favor de uma temática sertanista

corresponde a um esgotamento do próprio idealismo romântico que pautava suas obras.

Essa mudança no paradigma literário que se operava no início da década de 1870 era

devida ao influxo de teorias estrangeiras modernas que influenciaram toda uma geração

de intelectuais a buscarem novas formas de expressão estética e política.

Angela Alonso, em seu livro Ideias em Movimento: A Geração de 1870 na Crise

do Brasil-Império (2002), identifica nessa geração uma rejeição comum ao sistema social

dominante e às manifestações culturais que o subsidiavam. Politicamente marginalizados,

esses jovens encontrariam nas letras uma das principais frentes de contestação ao regime

hegemônico.

Um evento marcante desse período foi a publicação, entre 1871 e 1872, de uma

série de artigos no jornal Questões do Dia que criticavam os romances de José de Alencar

em diferentes frentes, mas sobretudo pelo excesso de imaginação e falta de observação

das realidades regionais que ele representava. Seu autor era o escritor Franklin Távora,

que nos anos seguintes viria a empreender seu próprio projeto político-literário a fim de

se aproximar de um “verdadeiro retrato” do Brasil, a Literatura do Norte, debruçando-se

para tanto sobre a história e as tradições do interior das províncias setentrionais do Brasil.

Para José Maurício Gomes de Almeida, o esforço de Távora em dar

representação a esses espaços marginalizados pela política imperial vigente constituiria o

primeiro movimento em prol de uma literatura regionalista no Brasil. Em seu livro A

Tradição Regionalista no Romance Brasileiro (1981), ele delimitaria os contornos do que

comporia uma obra regionalista da seguinte forma:

De vez que a região implica uma parte dentro de um todo mais amplo – o país

como tal – a arte regionalista stricto sensu seria aquela que buscaria enfatizar

os elementos diferenciais que caracterizariam uma região em oposição às

demais ou à totalidade nacional.

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Existe latente em todo posicionamento regionalista, manifeste-se ele no campo

artístico-cultural ou político-social, uma consciência orgulhosa dos valores

locais e um desejo de vê-los afirmados, reconhecidos, no plano nacional. No

caso brasileiro, essa atitude é facilmente observável em um Franklin Távora,

com sua “literatura do Norte”. (ALMEIDA, 1981, p. 47).

Conjugados dentro de um arcabouço imagético comum inventariado por esse

projeto literário e as demais obras de cunho regionalista que o seguiram, os sertões do

norte se individualizariam em relação às demais fronteiras civilizatórias no território

brasileiro. Sua identificação com o fenômeno das secas em particular seria tanto a linha

de força da literatura produzida sobre esses espaços quanto o fator agregador do que viria

a se constituir como a região Nordeste (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2017).

No caso específico de Távora, ele não só articulou esses temas sertanejos que

viriam a compor a matéria-prima do discurso regionalista nordestino, mas ele o fez a

partir das dicotomias que seriam consagradas posteriormente por Euclides da Cunha.

Opondo em sua obra o litoral e o sertão em equivalência às dualidades cidade x campo e

civilização x barbárie (Cf. MORAES, 2003), o sertão de Távora “[...] é um espaço

violento e perigoso, onde o poder da autoridade central não alcança” (MARTINS, 2008,

p. 11), pavimentando o caminho para os demais trabalhos que pintariam o sertão, tal qual

ele, a partir de uma matriz discursiva que se opunha àquela que fora até então a reinante.

1.3 – Dos sertões nacionais ao sertão nordestino

Em ilustrativa reflexão sobre as particularidades da discursividade do sertão no

imaginário brasileiro, o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire escreve, em um

relato de suas viagens pelas então províncias do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, que

“[o] nome de Sertão ou Deserto não designa uma divisão política do território; indica

apenas um tipo de divisão vaga e convencional determinada pela natureza particular do

país e, sobretudo, pela debilidade de seu povoamento” (SAINT-HILAIRE, 1830, p. 299-

300, tradução nossa)6, acrescentando, em nota de rodapé referente a essa passagem, que

“[v]árias províncias, todas, talvez, têm seu sertão, que é a sua parte mais deserta”

6 No original: “Le nom de Sertão ou Desert ne désigne point une division politique de territoire; il n'indique

qu'une sorte de division vague et conventionnelle déterminée par la nature particulière du pays et surtout

par la faiblesse de sa population”.

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(SAINT-HILAIRE, 1830, p. 300, tradução nossa)7. Aqui, ele sublinha a multiplicidade

dos sertões brasileiros no discurso corrente de sua época, assim como situa sua a

identificação mútua desses diferentes espaços a partir de sua aproximação com a noção

do deserto, dos espaços despovoados e, portanto, vazios.

Mais adiante, Saint-Hilaire oferece outro relato interessante sobre a apreensão

do sentido do sertão em sua época ao ressaltar que “[a]queles que falam do sertão

asseguram que ele se parece com um jardim, e essa comparação virou até uma espécie de

provérbio” (SAINT-HILAIRE, 1830, p. 300, tradução nossa)8, mas que, para ele, “[...]

por mais florido que seja, um jardim plantado quase que da mesma maneira em um espaço

de várias centenas de léguas cansa, afinal, pela sua monotonia” (SAINT-HILAIRE, 1830,

p. 300, tradução nossa)9. Se esses trechos expressam, respectivamente, a ideia corrente

que se fazia então do sertão em terras brasileiras e a opinião que o viajante francês faz

dela, a passagem que se segue, além de desenvolver mais detidamente a impressão de

Saint-Hilaire sobre o sertão, antecipa o tipo de discursividade que se tornaria corrente

anos mais tarde para tratar desses espaços:

Mas que tédio não é vivido por quem, como eu, atravessa o sertão em tempos

de seca, quando as pastagens perderam o frescor e a maior parte das árvores

estão despojadas de folhas. Então, um calor irritante toma conta do viajante;

uma poeira incômoda sobe sob seus pés, e às vezes ele nem mesmo encontra

água para matar sua sede. É toda a tristeza dos nossos invernos com um céu

brilhante e os fogos do verão (SAINT-HILAIRE, 1830, p. 300, tradução

nossa10).

Saint-Hilaire oferece aqui uma descrição do sertão quando acometido pelas

secas, um quadro diametralmente oposto àquele pintado por aqueles que o descreveram

para si como um “jardim”. Seria essa faceta da paisagem sertaneja que assomaria como a

determinante da produção discursiva sobre esses espaços algumas décadas depois da

publicação dos escritos do autor francês em função de uma série de elementos que

7 No original: “Plusieurs provinces, et toutes, peut-être, ont leur sertão, qui en est la partie la plus déserte”. 8 No original: “Ceux qui parlent du sertão assurent qu'il ressemble à un jardin, et cette comparaison est

même devenue une sorte de proverbe”. 9 No original: “[...] quelque fleuri qu'il soit, un jardin planté à peu prés sur le même modèle dans un espace

de plusieurs centaines de lieues, fatiguerait enfin par sa monotonie”. 10 No original: “Mais quel ennui ne doit pas éprouver celui qui, comme moi, parcout le Sertão dans le temps

des sécheresses, lorsque les pâturages ont perdu leur fraîcheur, et que la plupart des arbres sont dépouillés

de leurs feuilles. Alors une chaleur irritante accable le voyageur; une poussière incommode s'élève sous ses

pas, et quelquefois même il ne trouve pas d'eau por étancher sa soif. C'est toute la tristesse de nos hivers

avec un ciel brillant et le feux de l'été”.

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culminariam na transfiguração da paisagem sertaneja no imaginário nacional em um

avesso daquilo que fora até então.

Para Candice Vidal e Souza (1998), haveria uma inflexão em relação à apreensão

do espaço sertanejo pelo pensamento social brasileiro em fins do século XIX que

corresponderia às mudanças dos modelos literários em terras brasileiras. Se antes o sertão

era tido como um espaço cujas paisagens exuberantes e a população exótica eram

elementos caros a uma elite que buscava singularizar o Brasil em relação à sua antiga

metrópole, o que corresponderia para a autora a uma perspectiva romântica, a emergência

desse espaço como um problema nacional, um duplo distorcido da civilização que se

espraiava pelo litoral, estaria associada a uma perspectiva realista amplamente

identificada com um paradigma modernizador para o qual o sertão se apresentava como

uma fronteira a ser incorporada ao ciclo do capital.

Essas perspectivas, em especial, a identificação que a autora estabelece com suas

respectivas correntes literárias, seriam, consequentemente, tributárias dos processos

históricos aos quais elas estão atreladas. No caso da perspectiva realista sobre o sertão,

como apontada por Souza, um evento em particular corresponderia tanto ao

desenvolvimento da literatura realista acerca do sertão quanto ao motor histórico de

mudanças significativas na acepção da palavra sertão e na divisão política do país.

A Grande Seca que assolou as províncias atlânticas do norte do Brasil entre 1877

e 1880 atraiu os olhos de todo o país para a crise humanitária cíclica que se estabelecia

regularmente na região em função do despreparo da máquina pública frente aos rigores

do meio. O que particularizou esse período de estiagem em relação aos demais foi a

mortalidade sem precedentes que essa seca provocou em função da interiorização do

povoamento nessas províncias, realizado com o intuito de expandir a criação de gado e o

plantio de algodão na região.

Essa expansão produtiva rumo ao interior do continente se deu por conta do

permanente declínio da produção açucareira nessas áreas, a qual, apesar de ter sido o

carro-chefe da exportação nacional nos séculos anteriores, foi desbancada em função da

expansão das lavouras de café ao sul e das pressões do mercado internacional, subsistindo,

entretanto, como a pedra angular do decadente poder político das elites agrárias do Norte.

Um longo período de regularidade climática e a escassez da oferta global de algodão em

função da Guerra Civil nos EUA (NEVES, 2007, p. 87) estimularam a diversificação

produtiva dessas elites açucareiras, que impulsionaram o povoamento das porções

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interiores de suas respectivas províncias, antes esparsamente ocupadas por criadores de

gado de corte.

O impacto da Grande Seca nessas povoações do interior foi catastrófico,

ocasionando a migração forçada de dezenas de milhares de retirantes para cidades

litorâneas que não tinham meios para alocá-los devidamente. A tragédia social foi

esmiuçada pela ampla cobertura midiática dedicada às agruras da retirada do sertão

inclemente e ao caos instaurado pelas turbas de sertanejos desenraizados e desumanizados

nas cidades superlotadas do litoral.

As consequências para os empreendimentos das elites dessas províncias também

foram sentidas, somando-se à Lei do Ventre Livre, a concorrência com outros centros

produtores de açúcar e a transferência de subsídios para as lavouras de café foram como

um coup de grâce nas pretensões de restituir a centralidade política e econômica dessa

região já então marginalizada. É a partir da demanda por meios que resguardassem essas

oligarquias que se formou um bloco político que representasse a “região das secas” em

nível nacional.

Assim, esses grupos foram obrigados a se articularem em torno do “fechamento

imagético-discursivo de um espaço subalterno na rede de poderes” uma vez que já não

poderiam mais “aspirar ao domínio do espaço nacional” (ALBUQUERQUE JÚNIOR,

2009, p. 83). Convertendo essa ação política na delimitação de uma problemática comum

a essas províncias, seria empreendida a identificação de um espaço comum do qual

sobreviria o estigma compartilhado pelo recorte regional institucionalizado como o

Nordeste: o sertão das secas.

Pierre Bourdieu, em análise da correlação entre dominação simbólica e lutas

regionais, afirma ser esse processo de “revolução simbólica” pela via da reivindicação do

estigma imposto pelas forças hegemônicas um poderoso catalisador de identidades

regionais. Ele escreve que:

O estigma produz a revolta contra o estigma, que começa pela reivindicação

pública do estigma, constituído assim em emblema [...] e que termina na

institucionalização do grupo produzido (mais ou menos totalmente) pelos

efeitos econômicos e sociais da estigmatização. É, com efeito, o estigma que

dá à revolta regionalista ou nacionalista, não só as suas determinantes

simbólicas, mas também os seus fundamentos econômicos e sociais, princípios

de unificação do grupo e pontos de apoio objectivos da acção de mobilização

[sic]. (BOURDIEU, 1992, p. 125).

É assim que o sertão nordestino é assumido como categoria expressiva do signo

fundacional dessa identidade regional comum e simulacro último da significação que a

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categoria sertão assumiu ao longo dos séculos em terras brasileiras. Assim, tomaria

forma:

Um sertão que é o Nordeste, espaço mítico já presente na produção cultural

popular, no cordel e em romancistas do século XIX, como Franklin Távora e

José de Alencar, sistematizado definitivamente por Euclides da Cunha e, agora,

agenciado para representar uma região. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2009, p.

134)

Seria em 1902 com a publicação de Os Sertões que Euclides da Cunha sublimaria

toda a carga simbólica associada historicamente ao sertão em sua representação da Guerra

de Canudos (1893-1897). Opondo dois Brasis, um da civilização do litoral e outro da

barbárie sertaneja, o autor mobiliza teorias mesológicas, antropológicas e sociológicas,

mas elas não bastaram para acomodar o panorama que se descortinava diante de si.

Euclides se valeu de sua própria potência poética para capturar a dramaticidade

não só do embate entre aqueles dois Brasis, mas dos homens contra a própria terra e das

suas convicções contra a realidade inescapável de que aquela campanha militar se

configurara em um massacre impiedoso. Sua narrativa é subvertida pela força dos

acontecimentos, convertida de uma ode ao progresso republicano a uma elegia daquela

sociedade que ele reconheceu como a “rocha viva da nossa raça”, o “cerne de uma

nacionalidade” brasileira (CUNHA, 2019, p. 536).

Assim, ele retoma tematicamente a histórica oposição entre o litoral e o sertão

como a expressão espacial de tempos descompassados, como bem expresso na sua

afirmação de que “não no-los separa um mar, separam-no-los três séculos...” (CUNHA,

2019, p. 192). O sertão, derradeiro cronotopo brasileiro, apresenta-se simultaneamente

como a soma no campo discursivo do que separa Canudos e a República e como a

materialização dessa diferença no espaço geográfico.

Com Euclides, é reiterada mais uma vez a extensão da articulação da categoria

sertão com os mecanismos de reprodução da colonialidade do poder. A identificação do

sertão e do litoral como situados em tempos — lê-se, em estágios de desenvolvimento

civilizatório — distintos, além da centralidade das teorias raciais nas elaborações do

autor, apontam para a permanência desses mecanismos de dominação no pensamento

social brasileiro, fato que se consumou e aprofundou a partir da publicação do texto do

autor.

A impossibilidade colocada diante de Euclides de se apreender o sertão

fundamentando-se em cientificismos positivistas é sintomática da demanda por novas

epistemologias a partir das quais se pensar esse espaço e sua significação em relação ao

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país. A subversão do estigma da região das secas, do reflexo invertido do Brasil, em suma,

da homogeneização da região Nordeste com a própria ideia de sertão, passa pela

ressignificação dessa identidade a partir da produção de outros sentidos, ao que

convergiram desde os tempos de Távora uma sucessão de artistas que deram

prosseguimento à sua busca pela autodeterminação dessa região marginalizada.

Assim, ao mesmo tempo em que Euclides cristalizou uma concepção unívoca de

um sertão da seca associado ao Nordeste brasileiro com a publicação d'Os Sertões, de

forma que o plural no título de sua obra aparece de forma um tanto quanto paradoxal, ele

deu os meios para que os autores que o sucederam pudessem conceber veredas novas e

múltiplas a partir das quais formular uma imagética sertaneja a partir do diálogo com esse

arcabouço discursivo engendrado pela superimposição de sentidos associados ao sertão

ao longo dos séculos e consolidada por ele.

A superação das estruturas de poder coloniais que promoveram sucessivamente

as mortes de indígenas, retirantes e canudenses a partir da mobilização do sertão enquanto

ideologia reprodutora da colonialidade do poder passa pela compreensão de seus

símbolos e sua subversão. É remeter à frigideira da lenda de origem da vila de Sertã, ao

se converter o léxico da dominação colonial em símbolo de resistência.

Essa perspectiva encontra eco na proposição de Ruy Duarte de Carvalho da

aceitação da pluralidade de vivências como uma perspectiva a ser contemplada de

maneira universal em oposição à ótica totalizadora que se reafirma através da

colonialidade do poder:

E se o horizonte da nossa [idade] fosse a possibilidade, a descoberta, a

legitimação de múltiplos horizontes numa mesma idade? A simultaneidade dos

horizontes, até aqui múltiplos horizontes, fechados sempre sobre si mesmos,

no seu tempo, no seu espaço. E, quando em relação, horizontes dominantes,

horizontes dominados. (CARVALHO, 2007, p. 158).

Em relação ao sertão, Janaína Amado sintetizaria o caráter múltiplo do qual a

categoria é imbuída ao ser contemplada por perspectivas diversas da que se cristalizou

como a hegemônica, revelando uma polissemia invisibilizada, mas não por isso menos

relevante:

[...] para alguns degredados, para os homiziados, para os muitos perseguidos

pela justiça real e pela Inquisição, para os escravos fugidos, para os índios

perseguidos, para os vários miseráveis e leprosos, para, enfim, os expulsos da

sociedade colonial, "sertão" representava liberdade e esperança; liberdade em

relação a uma sociedade que os oprimia, esperança de outra vida, melhor, mais

feliz. (AMADO, 1995, p. 149-150)

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Franklin Távora reuniria em sua obra essas questões complexas e conflitantes

que tiveram em sua época um ponto de inflexão. Imbuído não só do zeitgeist dos últimos

anos do Império, mas de suas próprias idiossincrasias e contradições, Távora se apresenta

como uma vereda única, pois múltipla, nos estudos literários sobre o sertão.

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Capítulo 2 – Historiador, crítico, político ou filósofo?

No estado atual das coisas, a literatura não pode ser perfeitamente um culto, um dogma

intelectual, e o literato não pode aspirar a uma existência independente, mas sim

tornar-se um homem social, participando dos movimentos da sociedade em que vive e

de que depende.

(Machado de Assis)

2.1 – De tabajaras, monarcas e romanos

Ao longo do século XIX, o Império Brasileiro era organizado em torno de uma

rígida hierarquia social na qual uma elite tradicional que gravitava nos principais círculos

da capital imperial ditava os rumos políticos da jovem nação. Essa dominação se afirmava

não só na arena da política partidária, mas também no campo da produção discursiva,

impondo-se no campo literário através da instrumentalização do romantismo indianista

na fundação de signos nacionais coerentes com o projeto político-ideológico dessas elites.

Na década de 70 desse século, um “bando de ideias novas” tomou de chofre os

círculos intelectuais de norte a sul do país. Toda uma nova geração de intelectuais se

municiava de um arcabouço teórico estrangeiro e moderno que vinha contestar os

paradigmas vigentes no Brasil-Império a partir de posições das mais diversas, alardeando

“[...] o positivismo, o evolucionismo, o darwinismo, a crítica religiosa, o naturalismo, o

cientificismo nas artes, etc.” (ROMERO, 1900, p. XXIII–XXIV).

Em seu livro Ideias em Movimento: A Geração de 1870 na Crise do Brasil-

Império (2002), Angela Alonso identifica nessa geração uma rejeição comum ao sistema

de dominação política imperial e os seus desdobramentos no campo cultural, os quais a

autora reúne sob a epítome de “status quo saquarema”. Dada a indistinção entre as esferas

política e intelectual que marcava o período, a mobilização da geração 1870 se fez

concomitantemente em ambas (ALONSO, 2002, p. 162), sobretudo a partir da produção

literária, “a forma cultural por excelência do período e para a qual convergiam todos os

esforços de redefinição dos valores sociais, avassalados pelo processo de transformações

históricas” (SEVCENKO, 1983, p. 225-226).

Um dos eventos mais emblemáticos desse processo foi a publicação, por parte

de Franklin Távora, de uma série de artigos no jornal Questões do Dia, entre 1871 e 1872,

criticando duramente os romances de José de Alencar pelo excesso de imaginação e falta

de observação das realidades regionais que ele representava. Nos anos seguintes, Távora

empreenderia seu próprio projeto político-literário a fim de se aproximar de um

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“verdadeiro retrato” do Brasil, a Literatura do Norte, debruçando-se para tal sobre a

história e as tradições das províncias setentrionais do Brasil.

Tornado notório sobretudo em função da polêmica que protagonizou nos

primeiros anos da década de 1870 em torno da obra de Alencar, reunida posteriormente

sob o nome de Cartas a Cincinato (1872), o escritor se associou ao longo de toda a sua

vida a discussões públicas dos temas mais diversos, assim como imprimiu em cada uma

de suas obras literárias uma nota de crítica e de revolta. Távora era, antes de tudo, um

polemista.

João Franklin da Silveira Távora nasceu em 13 de janeiro de 1842 em Bauturité,

no Ceará, no seio de uma família profundamente implicada com a Revolução Praieira

(1848). Nos primeiros anos de vida do autor, sua família se mudou para a província de

Pernambuco, onde seu pai participou ativamente da Revolução de 1848 ao lado de José

Inácio Abreu e Lima, célebre general de Simón Bolívar e amigo da família Távora, vindo

a ser julgado e preso por sedição. Ainda em terras pernambucanas, ele próprio completou

seus estudos na Faculdade de Direito do Recife (Cf. AGUIAR, 1997, p.45-56)

Essa instituição, por sua vez, congregava grande parte da intelectualidade

nortista em formação nos tempos de Távora, servindo de palco para a ampla discussão de

pautas políticas, filosóficas e estéticas, antecipando os temas que dali tomariam as páginas

dos jornais e das rodas de conversas por toda a província. Não por coincidência, membros

dos corpos discente e docente encabeçaram diversos dos movimentos políticos e

vanguardas intelectuais que abalaram a província de Pernambuco ao longo do século XIX.

Imerso nesse meio, Távora trilharia o caminho das letras ainda em seus anos de

estudante ao escrever sua primeira peça, Um Mistério de Família (1862), na qual daria

mostras de uma tendência sempre presente em suas obras: o comentário social. Centrada

no drama da jovem Amélia, que vê recair sobre si e sua família uma série de transtornos

por conta da perda de sua castidade, a trama critica ostensivamente o artigo 219 do Código

Criminal do Império do Brasil, que instituía que a pena do crime de “deflorar mulher

virgem menor de dezessete anos” era “desterro para fóra da comarca, em que residir a

deflorada, por um a tres annos, e de dotar a esta [sic]”, mas que “seguindo-se o casamento,

não terão lugar as penas” (BRASIL, 1830).

A despeito da pouca idade do autor e da natureza pouco usual e polêmica da

discussão penal na qual se centra a narrativa, o drama foi um sucesso de crítica, sendo

posteriormente publicado em formato impresso. A obra não pavimentou o caminho para

uma carreira de dramaturgo, apesar de o autor ainda ter escrito uma segunda peça de

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menor repercussão intitulada Três Lágrimas (1870), mas foi sucedida por uma série de

romances cujo argumento central sempre ecoaria a indisposição do então jovem autor

para com as injustiças de seu tempo.

A respeito do drama Três Lágrimas, Cláudio Aguiar nota continuidades em

relação à primeira peça, em especial a tematização da desonra, dessa vez através da

mercantilização da virgindade da jovem Adelaide pelo pai, que busca alçá-la ao

casamento com um rico barão ao torná-la sua amante. Além desta, há também a

ressurgência de uma crítica social contundente neste segundo drama do autor, que

percorre aspectos diversos: desde os relacionados à etiqueta e às convenções sociais da

época até a defesa da libertação dos negros escravizados (AGUIAR, 2003, p. XXIII,

XXVII).

Outro elemento que subsiste é o caráter quase didático dessa crítica social,

formalizado aqui pelo emprego de um raisonneur, uma “personagem que representa a

moral ou o raciocínio adequado, encarregada de fazer com que se conheça, através de seu

comentário, uma visão ‘objetiva’ ou ‘autoral’ da situação” (PAVIS, 1996, p. 323),

presente na figura do empresário Coutinho, personagem que, de um papel secundário,

toma vulto ao longo da peça com seus juízos acerca da ação dramática e do panorama

social no qual ela se desenrola (AGUIAR, 2003, p. XXV-XXVI). O emprego de recursos

formais que balizassem o teor didático de sua produção ficcional seria uma constante da

parte de Távora, que recorreria à voz de um narrador onisciente intruso (Cf. FRIEDMAN,

2002, 172-174) para desenvolver a totalidade de seus romances.

A essa incursão pela dramaturgia, seguiu-se a publicação de seu primeiro

romance, Os Índios do Jaguaribe (1862), o qual convida a um exame mais detalhado em

razão de suas particularidades em relação às demais obras do autor. A despeito da

distância temporal que separa esse romance dos demais, aqui já se afirmavam, ainda que

de maneira incipiente, as linhas de força do cânone do escritor, expressas na sua fixação

do tempo da trama no passado remoto e o seu palco no norte do país, derivando dessa

ficcionalização de eventos históricos uma problematização das pautas políticas em voga

em sua própria época.

No romance de 1862, Távora empreende uma reconstrução fictícia dos

desdobramentos da expedição do capitão-mor Pero Coelho de Sousa, que em 1603 partiu

da Paraíba rumo às terras até então inexploradas em torno do rio Jaguaribe, fundando os

primeiros povoamentos portugueses no que viria a se tornar a província do Ceará. Do

substrato histórico propriamente dito, subsistem os nomes de Coelho de Sousa e de outro

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notório português que tomou parte na campanha, Martim Soares Moreno, assim como

dos chefes Potiguaras Camarão e Jacaúna e do cacique Tabajara Irapuã, este último

apenas referido por meio de diálogos.

Em contrapartida, os elementos ficcionais abundam e norteiam a trama, que

consiste na introdução dessas personagens históricas nas disputas políticas de uma tribo

de Tabajaras estabelecida às margens do rio referido no título da obra. As figuras

históricas retratadas nunca chegam a interagir diretamente com a tribo fictícia de Távora,

servindo antes para situá-las histórica e geograficamente — a narrativa se situa no período

em que a expedição de Coelho de Sousa estaria ainda nos preparativos para a última etapa

da viagem, ou seja, sua incursão até as margens do rio Jaguaribe, fato que contribuirá para

a ebulição das tensões sociais na tribo.

No enredo, Jurupary, primeiro entre os guerreiros da povoação Aracaty, dos

Tabajaras, é alvo das maquinações do cacique Jaguary e do pajé Inharé. Estes temem uma

subversão da ordem de poder na tribo, uma vez que os méritos do influente e querido

guerreiro levam seus companheiros a questionarem a validez da hereditariedade que dá

poder ao cacique e o aclamarem como líder:

— Cesse de uma vez o despotismo de Jaguary—disse Cayrara. Até hoje tem

sido sua vontade, apoiada na do pagé, o único movel da vida da tribu; cesse o

domínio de um só, O que quer dizer ser só Jaguary nosso chefe? Mandou-o

Tupana acaso? Já seu filho, ha pouco nascido, se desvanece de ser mais tarde

aquelle a quem caiba a honra de marchar para a guerra á frente de todos. Não;

a tribu se deve governar por si mesma. Fazer gyrar a autoridade de chefe em

uma só família é admittir que só n'essa família seja possível o merecimento de

governar, quando assim não é, guerreiros. Si nos lances arriscados todos

correm os perigos, si na guerra todos se expõem a morrer, na paz caiba também

a todos a possibilidade de governar.

Applausos phreneticos cobriram a voz do orador A democracia fazia

propaganda; a tribu assumia em fim a consciência de sua soberania e revoltava-

se contra o odioso, diremos mesmo criminoso privilegio da monarchia

hereditária do cacique e de sua dynastia. Tal em nosso mundo acorda um dia a

nação, que dormia como epiléptica, para contraporse e deitar por terra o

imperante depravado, ou antes o principio, mórbido anachronico, despotico,

fonte única da enfermidade, do atrazo, da corrupção da nação. [sic] (TÁVORA,

1870, p. 196-197)

O autor, então em seus vinte anos, vale-se reiteradamente da voz narrativa para

enunciar um juízo de valor acerca da história que desenvolve e traçar paralelos com as

questões políticas de sua época. Esse recurso se repetiria futuramente em seus demais

romances, sendo aqui empregado para propagandear seu posicionamento antimonárquico

explicitamente.

Poucas páginas antes, ao situar historicamente a narrativa nos tempos da “[...]

dynastia da casa d’Áustria, na pessoa de Felippe II, para ser substituida mais tarde em

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1700 pela casa de Bourbon, na pessoa de Felippe V [sic]” (TÁVORA, 1870, p. 107), ele

faz questão de ressaltar como “[t]rês séculos depois tanto uma como outra apenas

pertenciam á historia”, exultando o “[e]phemero destino da realeza!” (TÁVORA, 1870,

p. 107). Távora descreve então longamente as revoltas que se dariam futuramente na

península ibérica contra a instituição monárquica11, arrematando que “[e] reis ha

modernos, que não se arreceiam de provocar esses sublimes arremessos da soberana

indignação de nações, que querem e que hão de ser livres! Néscios! Perdoai-lhes, povos,

que não sabem o que fazem! [sic] (TÁORA, 1870, p. 108).

Essa tendência é uma constante ao longo do livro. Ela aparece não menos

explícita nesta digressão sobre a disputa pelo poder na tribo Aracaty:

Estabeleçamos um simile entre essa e nossa sociedade, precisemos

os caracteres. Jurupary representava, com todos que o acompanhavam, o

principio liberal, a política das grandes expansões, a causa santa, que é martyr

e que faz martyres; Jaguary, o chefe da tribu, não obstante dever como tal

collocar-se á cima de paixões partidárias e interesses subalternos, era o chefe

do principio conservador, nervo e mola do despotismo que comprime e faz

victimas. Inharé, que era o pagé, poderse-hia comparar aos nossos ministros

aconselhando a seu geito, incensando segundo seus interesses as vontades

caprichosas do cacique pérfido, que lembrava o imperante hypocrita de algum

moderno império, corroido de preconceitos, eivado de corrupção, nunca farto

de zumbaias e servis submissões.

[...] Luta da democracia nascente com o absolutismo radicado! [sic]

(TÁVORA, 1870, p. 127)

A abordagem dessas questões por parte do autor não primava pela sutileza. No

desfecho do romance, Cayru, a virgem mais bela da tribo de quem até então nenhum

homem merecera o amor, comove-se com a perseguição a Jurupary e seus partidários,

decepa a cabeça do déspota indígena e a deposita aos pés do jovem guerreiro como prova

de sua recém adquirida devoção.

11 Os eventos aos quais Távora alude parecem se referir à Revolução de 1868, também chamada de La

Gloriosa, em que a rainha Isabel II da Espanha foi deposta em favor de uma junta provisória de forte pendor

republicano. Sendo assim, esse comentário seria uma adição posterior à publicação original, de 1862, sendo

feito à ocasião da publicação da segunda edição, de 1870, da qual se extraiu o excerto. É notável que o

autor, à época já um homem público e não mais um jovem estudante, tenha se disposto a tecer comentários

dessa natureza abertamente. Corroborando a hipótese de que houve alterações diversas e não assinaladas

entre a primeira e a segunda edição do romance, há também nas notas uma repetição ipsis literis da

etimologia proposta por José de Alencar em Iracema (1865) para o vocábulo tupi ybiapaba, indicando que

houve alterações, ainda que não assinaladas, nessa segunda edição em relação à primeira. Há ainda

referências à etimologia de outras palavras tupis tal como proposto por Alencar, ainda que expostas a título

de contraexemplo, todas posteriormente reunidas na apreciação que Távora fez do trabalho de

reconstituição linguística de Alencar na décima segunda carta de Semprônio a Cincinato que trata de

Iracema. (Cf. TÁVORA, 2011, p. 246-258).

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Traçando um paralelo com a derrocada da realeza romana a partir da figura de

Lucrécia, Távora conclui o livro com os dizeres de que “Também tu, Cayrú, de um lado

o amor do homem, do outro o amor da pátria, acabas de inaugurar solemnemente a idéa

da republica livre no livre solo do Brazil. O resto fará o futuro.” [sic] (TÁVORA, 1870,

p. 214).

O autor afirma pretender dar continuidade à narrativa ao longo de mais três

volumes em que, baseado no final do livro, no qual notícias da proximidade das hostes

de Poti e seus aliados são recebidas na tribo Aracaty, é seguro supor que os caminhos da

comitiva de Coelho Soares e da tribo de Jurupary se cruzariam. Entretanto, essa intenção

nunca foi cumprida, e essa quadrilogia que inauguraria a carreira de Távora nunca veio a

lume.

Távora não se limitou a tomar como pauta a defesa do princípio republicano

nessa primeira incursão pelos meandros do romance. Ele dedica extensas passagens do

primeiro capítulo, dedicado a situar histórica e geograficamente a narrativa, à questão da

desigualdade entre as províncias do Norte e as do Sul do país, tema central de toda a sua

obra e atuação política.

As primeiras linhas deste primeiro livro dão a tônica de toda a produção ficcional

que sairia de sua pena pelos próximos vinte anos. Ele principia da seguinte forma:

Nas regiões austráes do continente já o lábaro da civilisação

espargia benefícios fecundos sobre as raças convertidas, e, com tudo, no

septentrião dormia ainda quasi a seu salvo o gentilismo, como em plácido e

escuso asylo, dentro do vasto seio da natureza selvagem.

Destino talvez. Ainda hoje só em porção muito escassa cabe por

sorte o proveito a esta zona do colosso, quando na outra o desenvolvimento

mais cooperado das forças vivas do paiz assegura que primeiro amadurecerá

em suas possessões, porque ahi a cultura é bem differente, a mésse da grandeza

nacional. [sic] (TÁVORA, 1870, p.7)

Já se encontra aí o gérmen do pensamento que ele desenvolveria mais tarde no

prefácio d’O Cabeleira, como se mostrará mais detidamente nas seções do trabalho

dedicadas à leitura do romance. Ao longo das próximas páginas d’Os índios do Jaguaribe,

o narrador retoma o argumento:

O norte é um hilota, para quem os horisontes se estreitam, em

contraposição ao sul, para quem elles se alargam, que pôde chamar-se o

moderno spartano.12

12 Como as referências greco-latinas clássicas no geral, a laconofilia estava muito em voga na época,

sobretudo entre pensadores liberais. A Esparta da Grécia Antiga era celebrada como lábaro da igualdade,

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[...] Quando no sul os vêzos caducos de um feudalismo anachronico,

que são, por assim dizer, a eiva, que corróe a pura massa dos costumes,

languem visivelmente, si é que já se não devem considerar completamente

espancados pela lúcida e vigorosa torrente das idéas livres, n'esta parte do

império se detém de caso pensado e pisa arrogante a bota ferrada de uma

fidalguia hybrida, truanêsca e deplorável; e as camadas populares cada vez

mais se abatem tão profundo e gelado é o sopro da tormenta, e a liberdade

definha no ergástulo do senhorio feudal evidentemente olygarchisado e

mantido pela ingrata política de um throno, que desconfia e se arreceia, sem

ter de que, de tudo quanto é tentamen ou aspiração liberal.

Foi destino de certo. Já lampeja para os nossos irmãos do sul um raio

de liberdade; só nós mal percebemos d'aqui, sepultados em nossa noite eterna,

esse clarão remoto do astro, que apenas de longe e timidamente se nos

annuncia. [sic] (TÁVORA, 1870, p. 8-9)

Para o autor, haveria no Norte a persistência de um modelo feudal que aparece

associado a um sistema autoritário. Tendo por alvo uma organização social e política

fundada na oligarquia, Távora expõe a distância entre o que se passa no Norte e no Sul a

partir da difusão de ideias liberais, representadas por imagens como “raio de liberdade”,

“clarão” e “astro” em oposição à “noite eterna” do esquecimento e atraso a que foram

destinadas regiões setentrionais.

Há uma diferença notável entre essas primeiras formulações sobre a

desigualdade regional no Brasil e as que embasariam sua argumentação por uma

Literatura do Norte. Na medida em que Távora lamenta o potencial inexplorado do norte

do país e aponta o sistema aristocrático como o principal entrave para o desenvolvimento

da região, ele celebra a possibilidade de superação desse sistema pela influência de ideias

liberais no Sul.

Não há qualquer exaltação do Norte ou particularização frente ao Sul que fuja a

essa relação comparativa de ausência e desalento. A exposição sobre a situação relativa

das regiões no tempo diegético do romance, prontamente seguida pela denúncia da

continuidade desse quadro de desigualdade na própria época do autor, estabelece um

símile eloquente não só entre esses tempos históricos distintos, mas entre o Norte em si e

a ideia de deserto, dada a perenidade da associação desses signos à região.

Essa associação do Norte a atributos estritamente negativos não encontraria eco

nas obras seguintes do autor, em que seu esforço é antes pela valorização da herança

histórica do Norte em face das adversidades impostas pelos poderes centrais. Em

contrapartida, já aqui o ressentimento em relação a esse atraso não se limita ao

seus modos e organização política tidos como modelos ideais (antes idealizados) para as repúblicas

modernas.

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subdesenvolvimento da porção setentrional do Brasil, estendendo-se também para a sua

exploração pelas províncias austrais, a qual seus irmãos iluminados do Sul observam

laconicamente enquanto monopolizam seus louros:

Que fim social visa o pensamento de manter a zona septentrional do

império em manifesta inferioridade comparativamente á zona austral? Porque

se monopolisa a luz no seio de um povo de irmãos, quando Deus a entorna com

igual e generosa liberalidade pelos mais recônditos latibulos do universo?

Partilha lesiva tem sido essa! Distribuição desigual de gozos, quando

a que se faz dos ônus toca a todos na mesma proporção, si é que não cabe em

porção mais avultada sobre o que menos participa dos benefícios, é um

attentado, que a rasão social e christãa condemna, e a justiça universal repelle.

Só ao futuro pertence desatar e erguer o véu; será tempo então de indemnisar-

se o norte dos menospreços e das humiliações. [sic] (TÁVORA, 1870, p. 9)

Acionando mais uma vez a imagética da partilha da “luz” para tratar do

desenvolvimento desigual das duas macrorregiões do país, Távora eleva sua indignação,

progressivamente, da esfera da razão para a do divino e, por fim, à da “justiça universal”.

A sua dramática inconformidade com esse quadro só seria apaziguada em um futuro no

qual ele vislumbra a reparação histórica dos males sofridos pelo Norte, objetivo ao qual

ele dedicaria seus esforços até o fim da vida.

A crítica de Távora à desigualdade entre as províncias austrais e setentrionais do

Brasil receberia nova têmpera após sua estadia continuada na corte, em que o afastamento

de sua própria terra e a proximidade com o centro cultural do império trouxeram novos

matizes para suas reflexões sobre o tema, resultando nos romances propriamente

incluídos no ciclo da Literatura do Norte. A rigor, a tomada de consciência sobre a

manutenção sistemática da marginalização das províncias distantes da corte seria uma

temática constante para os intelectuais da geração de 1870 no Brasil.

A esse respeito, apesar de Távora ser pouco menos que uma década mais velho

que a maioria daqueles usualmente identificados como pertencentes a esse grupo, seu

trânsito de ideias e companhias se deu muito mais intensamente com essa geração do que

com a que a precedeu. Ainda assim, essa identificação feita a despeito desse descompasso

cronológico não exclui, antes ressalta, o caráter quase transicional que a obra e o

pensamento de Távora adquirem quando postos em perspectiva histórica, como se

discutirá mais detidamente adiante.

Esse enfrentamento geracional não deixou de se estender também para o campo

das artes, em que a emergência de novas escolas literárias no velho continente vinha pôr

em xeque o romantismo indianista, estreitamente identificado com o projeto imperial de

produção de uma identidade nacional no pós-independência. A figura que melhor

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34

encarnava essa intenção comum era o romancista José de Alencar, cujo projeto político-

literário tinha por objetivo representar a totalidade da diversidade regional do país e

apresentar sua história nacional ao povo.

Este projeto de Alencar implicava a subscrição de todo o território brasileiro a

uma narrativa unívoca, na qual as idiossincrasias de cada região empalideciam frente ao

nacional. Para José Maurício Gomes de Almeida, “[i]nexiste [...] em Alencar, como nos

românticos em geral, o sentimento particularista que caracteriza o regionalismo. A

dimensão nacionalista está sempre em primeiro plano, em função mesmo do momento

histórico que o Brasil então atravessava.” (ALMEIDA, 1981, p. 47).

Ademais, a naturalidade com a qual é retratada a sujeição da natureza americana

e, consequentemente, dos povos ameríndios pelo homem branco nas obras do autor

acarreta não só na naturalização dos processos históricos que culminavam então na

instituição do Império Brasileiro, mas na invisibilização da violência implicada nestes.

Dado o interesse da coroa em legitimar sua posição e transparecer um controle harmônico

e inconteste do território no período tumultuoso que foi o do século XIX no Brasil, ambos

os efeitos eram desejáveis.

Nesse contexto, detratar publicamente os escritos de Alencar era uma ação

implicada em questões que iam além da mera crítica literária. E é justamente isso que

uma leitura cuidadosa das Cartas a Cincinato (2011) indica.

2.2 – O iconoclasta de imagens da terra

Publicadas originalmente entre 14 de setembro de 1871 e 22 de fevereiro de 1872

no periódico Questões do Dia, essas cartas eram redigidas por Távora sob o pseudônimo

de Semprônio, e eram endereçadas a José Feliciano de Castilho, cognominado Lúcio

Quinto Cincinato13 nas missivas em que, ainda antes da iniciativa de Távora, ele criticava

13 Eduardo Vieira Martins supõe que Feliciano de Castilho tomou seu cognome em função do general

romano Lucius Quintus Cincinnatus, símbolo da simplicidade e frugalidade romanas (cf. MARTINS, 2011,

p. 10), mas não especula sobre o nome escolhido por Távora, limitando-se a situá-lo também como de

origem romana (MARTINS, 2011, p. 11). Há diversos políticos e militares entre os membros da gens

Sempronia, havendo entre estes alguns que podem ter inspirado Távora a adotar a alcunha. Os irmãos

Tiberius Sempronius Gracchus e Gaius Sempronius Gracchus, celebrados na Roma Antiga como

defensores dos plebeus, estiveram à frente da Lex Sempronia Agraria, uma lei de terras que antagonizava

os interesses do setor conservador do senado romano, motivo pelo qual ambos foram assassinados. Seu

cognomen, Gracchi, significa “gralha”, coincide com o termo empregado jocosamente por Alencar para se

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publicamente a atuação política de José de Alencar. Feliciano de Castilho, português

emigrado e irmão do escritor Antônio Feliciano de Castilho, começou a editar o jornal

Questões do Dia no contexto dos debates acerca da Lei do Ventre Livre, redigindo textos

em defesa do projeto e criticando seus detratores, como o então deputado José de Alencar.

Sua empreitada se tornou gradualmente mais dirigida contra o escritor cearense,

que era notório, além de sua carreira literária, pela sua oratória na câmara, na qual se

manifestava contrariamente à nova lei, o que o tornava mais propenso a ataques públicos.

Tendo acompanhado os lances dessa discussão através dos jornais que lhe chegavam na

província, Távora decidiu tomar parte na empreitada de Feliciano de Castilho a partir da

análise da decadência literária de Alencar, que se apresentaria em paralelo ao seu

esboroamento como figura pública tal como apresentado pelo português.

A despeito de suas diferenças, há algumas coincidências nas biografias dos dois

autores. Além de serem ambos cearenses, os pais de um e de outro se envolveram em

revoluções de caráter democrático no Norte, o pai de Alencar nas de 1817 e 1824 e o de

Távora na de 1848, sendo Alencar sabidamente um bastardo de José Martiniano Pereira

de Alencar e Távora já tendo sido especulado também como filho natural de Camilo

Henrique da Silveira Távora (Cf. PINHEIRO TÁVORA, 1971, p. 85 e AGUIAR, 1997,

p. 23). Tanto um quanto o outro tomaram como substrato literário algumas das mesmas

figuras e acontecimentos históricos, a exemplo de Martim Soares, Camarão e o evento da

Guerra dos Mascates, assim como procuraram, cada um à sua maneira, dar ensejo a um

projeto político-literário que encetasse seu próprio ideal de uma literatura nacional.

A mais curiosa coincidência, entretanto, é o fato de os dois terem se envolvido

em polêmicas com autores mais velhos e já renomados ainda no início de suas carreiras,

condenando a estética estabelecida por seus antecessores e apregoando uma nova forma

de realizar uma literatura verdadeiramente brasileira, Távora contra o próprio Alencar e

este contra Gonçalves de Magalhães. Apesar de ser uma estratégia corriqueira de jovens

referir a Feliciano de Castilho, “gralha imunda”, em um episódio que teria contribuído para o início da

campanha pública contra sua figura perpetrada pelo insultado (MARTINS, 2011, p. 11). Outro romano,

Aulus Sempronius Atratinus, compartilhou o posto de tribuno consular com um Lucius Quintus

Cincinnatus, este filho do famoso general de mesmo nome. Távora pode ter pretendido associar seu

empreendimento conjunto com Feliciano de Castilho à cooperação dos cônsules romanos, mas acabou

tomando o filho menos célebre pelo pai homônimo. Por outro lado, o nome Semprônio, ao lado de Caio e

Tício, é comumente utilizado na área do direito penal para indicar uma pessoa indeterminada, prática que

deriva do uso corrente desses nomes em autores de língua italiana, na qual esses nomes equivalem aos

“Fulano, Cicrano e Beltrano” do português, podendo ter sido tomado por Távora simplesmente para

sublinhar seu anonimato.

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escritores em busca de visibilidade, a natureza similar das discussões travadas pelos dois

autores, quando ainda estreantes no mundo das letras, e o papel inverso que Alencar

assume nas duas situações pesam na assinalação desse fato.

As críticas feitas pelo então jovem Alencar à ocasião da publicação da

Confederação dos Tamoios (1856) foram publicadas em forma de cartas no Diário do

Rio de Janeiro, e versavam sobre a potencialidade do tema elegido por Gonçalves de

Magalhães e o quão aquém deste a epopeia do autor se apresentava. A notoriedade que

Alencar alcançou através de seu juízo crítico dessa obra contribuiu largamente para seu

intento, já distinguível em sua argumentação nestas cartas, de edificar uma literatura

indianista que fizesse frente à que ele vislumbrava nos versos do poeta mais velho, e que

fosse moldada a partir de suas próprias ideias sobre a representação da história nacional

(MAGALHÃES JÚNIOR, 1977, p. 65-74).

Távora, por sua vez, criticou diversas facetas do conjunto da obra alencariana,

detendo-se particularmente em aspectos concernentes a O Gaúcho (1870), ao qual dedica

as primeiras oito cartas endereçadas a Cincinato, e Iracema (1865), objeto de análise das

treze últimas. Seu argumento é sobretudo pela decadência artística do autor, atestada pelo

descompasso entre o seu método de escrita e a sua matéria-prima literária – a natureza

brasileira – e sedimentada pela recepção acrítica que recebia por parte da opinião pública.

Eduardo Vieira Martins reconhece uma alusão não creditada às ideias que

Hyppolyte Taine desenvolve em sua Philosophie De L’Art (1865) nessas formulações de

Távora sobre a divisão da carreira do artista entre uma fase de criação e outra de

decadência. Esse fato pode se dever tanto a uma omissão deliberada, opção

incaracterística frente ao amplo cabedal teórico em que ele faz questão de erigir sua

argumentação, quanto pelo desconhecimento da origem do conceito por parte do escritor,

dada a ampla circulação dos textos do autor francês à época (MARTINS, 2011, p. 33-34).

Seja por ironia ou antevisão de Alencar, a assinatura de “Sênio” que ele passa a

imprimir à maioria de seus romances na década de 1870 concorre para essa classificação.

Assim ele escreve à guisa de prólogo n’O Gaúcho:

Que significa este nome — Sênio — no frontespício de livros

que vozes benevolas da imprensa já attribuiram a outrem?

Cada um fará a supposição que entender.

Era preciso um apellido ao escriptor destas paginas, que se

tornou um anachronismo litterario. Acodiu esse que vale o outro e tem

de mais o sainete da novidade.

Porventura escolhendo aquella palavra, quiz o espirito

indicar que para elle já começou a velhice litteraria, e que estes livros

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não são mais as flôres da primavera, nem os fructos do outono, porem

sim as desfolhas do inverno?

Talvez.

Ha duas velhices; a do corpo que trazem os annos, e a da alma

que deixam as desillusões.

Aqui, onde a opinião é terra safara, e o mormaço da

corrupção vai crestando todos os estimulos nobres; aqui a alma

envelhece depressa. E ainda bem! A solidão moral dessa velhice

precoce é um refugio contra a idolatria de Moloch. [sic] (ALENCAR,

1870, s/p)

Os problemas que Távora reconhecia na escrita de Alencar eram, a rigor, de

ordem epistemológica. Seus argumentos são múltiplos, mas o ponto que interessa à

presente análise parte do célebre excerto no qual ele postula que "[...] Sênio tem a

pretensão de conhecer a natureza, todos os costumes dos povos [...] sem dar um só passo

fora de seu gabinete [...]. Por que não foi ao Rio Grande do Sul, antes de haver escrito o

Gaúcho?" (TÁVORA, 2011, p. 53).

Esse questionamento encerra em si o cerne do enfrentamento que Távora faz à

noção tipicamente romântica da centralidade da imaginação na elaboração artística,

apesar de não abarcar a totalidade do conteúdo que ele discute nas cartas. Ainda assim, é

a partir do sentido contido nesse breve excerto que as Cartas a Cincinato adquiriram o

caráter de marco da derrocada do romantismo no Brasil, como atesta a “cronologia do

romantismo” apresentada por Jacó Guinsburg em seu O Romantismo (2013), que se

encerra com a publicação das cartas de Távora (GUINSBURG, 2013, p. 319).

Isso porque a defesa que Távora faz de uma “exatidão daguerreotípica”

(TÁVORA, 2011, p. 51) na produção literária — ou seja, de uma fidelidade total à

realidade — marca a deflagração de uma oposição ferrenha à imaginatividade

característica da estética romântica. A crítica tecida por Távora a Alencar é, portanto,

profunda também não só no âmbito dos discursos políticos que subjazem em sua

discussão, mas na problematização da própria matriz literária em voga no país então.

Assim, no esteio dessa discussão sobre a preponderância da imaginação na

produção artística de Alencar, Távora estenderia sua crítica à aceitação tácita, quase

impositiva, que a opinião pública reservava aos romances alencarianos:

O escritor tem chegado à fase mais coruscante e mais elevada do seu

império de vaidade e anomalia; isto é, tem atingido o período mais decisivo da

mais formal decadência

É o chefe da literatura brasileira, um gênio talvez, porque cria a torto

e a direito, seja o que for; [...]

Hoje em dia entre nós, o candidato a gênio deve fazer versos

escabrosos, comédias híbridas, discursos túmidos, anasarcos, romances loucos.

[...] E o Brasil tem um patriarca e uma literatura! O que o Brasil tem é um

baixo império das letras. Isto sim. (TÁVORA, 2011, p. 134-135)

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Sua censura, enquanto direcionada ao escritor mais velho, abarcava as próprias

fundações do paradigma estético romântico e, tangencialmente, o status quo saquarema.

A associação entre a hegemonia do projeto literário de Alencar e um império, aliás, um

“baixo império das letras”, amplia o escopo dessa crítica ao explicitar os laços entre seu

réu declarado e o que está nas entrelinhas, lê-se, o autor de O Gaúcho e o sistema

monárquico.

Dessa forma, fica patente o quanto o conteúdo das cartas não se restringe

tematicamente à apreciação literária da obra de Alencar, mas abarca em certa medida as

tensões sociais de então. Em outro trecho, ele questiona: “Pois também cá pela república

das letras havemos de ter oráculos indiscutíveis, autoridades dogmáticas? Também por

cá os divinos, quando parece ter soado a hora dos papas e dos Soulouques14...”

(TÁVORA, 2011, p. 50).

As questões do dia se apresentam, assim, em disputa na arena das letras pátrias.

Nesse sentido, a representação da natureza é a principal problemática a partir da qual

Távora articula sua atuação política.

Isso é desenvolvido nas longas exposições acerca da categoria de gênio, que

emergem no tensionamento que o autor faz entre um fazer artístico que mimetize a

natureza e a prerrogativa do autor em interpretar o real, fazendo uma curadoria do que

seria passível de ser imitado e de como fazê-lo, concluindo que “[...] o artista não tem o

direito de perder de vista o belo ou o ideal, posto que combinando-o sempre com a

natureza” (TÁVORA, 2011, p. 185). O teor imaginativo do método alencariano,

entretanto, fugiria desses preceitos defendidos por Távora:

Admira-se, exalta-se a imaginação de J. Alencar. Admirável é, não

há dúvida; agora exaltável, isso é que não.

Deve-se festejar e aplaudir a imaginação que reproduz com encantos

novos e novas vivacidades os grupos, os acidentes, as atitudes, as cenas da

natureza; que faz esses grupos interessantes, esses acidentes pitorescos, essas

atitudes graciosas, essas cenas animadas e felizes. Isto é imaginar, no uso

rigoroso e didático da expressão. Daí vem que, quanto mais se apropria o

escritor dos matizes variados da criação, ou das sensações e fenômenos da

vida, e tanto mais fielmente os retrata ou reproduzam impregnados do cunho

da sua pessoal idealização, tanto mais se diz ser ele original, tanto mais gênio.

'Abusa-se da elasticidade de linguagem, quando se ousa falar de

inteligências criadoras. Em definitiva não há criação; reproduzir, imitar, eis

quanto nos cabe. Se Homero, Cervantes, Ariosto, Byron, tivessem vivido

encerrados num ergástulo, o que teriam podido imaginar? Que criação teriam

14 “Refere-se, provavelmente, a Faustin Élie Soulouque (1785-1867), um escravo negro que se tornou

presidente e, a seguir, imperador do Haiti” (MARTINS, 2011, p. 50).

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dado ao mundo?'[CHASLES, 185015]. Logo, a natureza, em primeiro lugar, e

depois, complexa e completa observação - eis os dois elementos, as duas

possantes asas do gênio. (TÁVORA, 2011, p. 135)

Portanto, o que haveria de condenável na escrita de Alencar seria a sua

dissociação do substrato real que ele buscava representar, fato decorrente de seu excesso

imaginativo ou, como posto acima, da influência desmedida de sua “pessoal idealização”.

Távora explicita esse ponto de vista em duas instâncias: na análise da representação dos

pampas em O Gaúcho e dos indígenas do norte em Iracema.

No primeiro caso, Alencar é acusado de dotar a paisagem gaúcha de um

imobilismo e morbidez incaracterísticos, patentes em trecho que merece longas

exprobações de Távora, e cujo sentido é retomado reiteradamente ao longo do romance:

“O pampa [...] é o pasmo, o torpor da natureza. O viandante perdido na immensa planície,

fica mais que isolado, fica opresso. Em torno delle faz-se o vácuo: subita paralysia invade

o espaço, que pesa sobre o homem como livida mortalha [sic]” (ALENCAR, 1870, p. 2-

3). A própria borrasca que assola os pampas, para Távora um símile dos furacões do norte

do continente americano (Cf. TÁVORA, 2011, p. 73-75), é descrita em tons sóbrios, sua

violência sendo de pouca consequência para a paisagem estática.

Nada menos verdadeiro para Távora. Assim ele investe contra essas descrições:

Aquela nuvem não está embutida no céu, divaga; aquela campina

não é melancólica, mas expande-se e sorri; aquela savana não é o torpor ou o

pasmo ou a paralisia, agita-se; aquele chão não se parece com a lápida do

claustro ou do túmulo, senão com as sinuosidades do vasto oceano; aquele

furacão não se espoja como o potro, mas subleva-se, contorce-se, revolve-se,

devasta e tala o deserto como vórtice ou cataclismo. A natureza protesta contra

o panorama traçado à custa do prolongado esforço estéril. (TÁVORA, 2011,

p. 78)

Araripe Júnior, primo, crítico e admirador de Alencar, ressalta que o escritor de

fato nunca tivera contato com o pampa, baseando suas descrições nas reminiscências que

ouvira na juventude de um parente militar que lá esteve, de forma que suas impressões

não passariam “[...] de um sonho, de um pesadelo: pintura mais exata das desolações, das

tristuras que povoam a mente do autor” (ARARIPE JR, 1958, p. 217). De fato, os últimos

anos de vida de Alencar foram turbulentos, mas a apreciação de Távora sobre os indígenas

15 Martins não precisa a data de publicação da obra em questão, Études sur la littérature et les moeurs des

Anglo-Americains au XIXe siecle, mas uma consulta à edição disponível no acervo digital da Bibliothèque

nationale de France situa o ano da primeira edição como sendo 1850.

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de Iracema, escrita na década anterior, não foge aos moldes do que ele verifica n’O

Gaúcho:

A impressão, que experimentei, ao entrar no pampa, segundo os

desenhos desvairados de Sênio, foi a de quem penetrasse num cemitério. [...]

Se, porém, das solidões do pampa retraindo-nos um poco vamos ter

às solitárias florestas e planícies dos tabajaras, o espetáculo muda, a impressão

é diversa, sim, mas congênita. As extensíssimas paragens que rios bordam e

florestas delimitam, figuram leitos de um hospital imenso, sombrio e

merencório! Contempla-se ali, seis anos antes, ainda a raça do homem, vítima

de morbidez e consumpção.

Ora, entre o hospital e o cemitério há um só passo. (TÁVORA,

2011, p. 130-131)

Nessa que foi a tentativa de Alencar de trazer a lume um livro que encetasse uma

escola indianista própria, Távora reprova a afetação da linguagem e a languidez das ações

dos indígenas. Ele enxerga nos problemas de Iracema a mesma raiz dos d’O Gaúcho, por

força que escreve as seguintes linhas:

Pela primeira vez aparecem os índios falando uma linguagem

banzeira e esmorecida; pela primeira vez são descritos os selvagens com

toques, com tintas de afetação mais visível, mas tintas linfáticas, quando o

selvagem é simples e singelo na sua majestosa grandeza.

Falta-lhes o colorido próprio, expressivo, interessante. O que aquela

linguagem tem, são demasias de arte. Debaixo da aglomeração fastidiosa de

comparações, as mais das vezes fora da vila e termo, e que haviam de ter

custado bom trabalho ao próprio autor, a natureza subverteu-se como num

abismo. A palidez visivelmente se mostra através das cores postiças, fugaces e

precárias. (TÁVORA, 2011, p. 166)

Dessa desfiguração da matéria literária pátria, ele inquire: “Está ou não

aniquilada, na obra do sr. Alencar, a teogonia dos Brasis? Quem matou o gaúcho

infirmou, se não matou também, o índio!” (TÁVORA, 2011, p. 221).

Há aí, talvez, um esforço de Alencar no sentido de pacificar os elementos da

natureza brasileira, os povos indígenas inclusos, esvaziando-os de ação e história próprios

e reservando a agência sobre esse meio às personagens brancas ou mestiças, conquanto

identificadas com o ímpeto civilizatório que era a força motriz do estabelecimento da

nascente nação brasileira. Em última análise, os quadros pintados por Alencar seriam

antes compostos a partir da disposição verborrágica e muitas vezes contraditória dos

elementos naturais do que pela reflexão feita sobre a observação direta, constituindo para

Távora um falseamento da realidade.

Na análise de Távora, esse descolamento não se daria só em relação à natureza

com a qual ele não tinha contato direto, mas com as fontes secundárias de relatos de

viagem, documentos históricos e estudos filológicos que ele fazia questão de desbaratar

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a partir de uma reconstituição própria das personagens e fatos históricos, bem como em

suas extensas notas explicativas. Sobre isso, ele diz que “Para Sênio, a verdade, dita por

muitos, perde o encanto. Ele não há de escrever pelo ramerrão; fora rebaixar-se. É preciso

dar coisa nova, e eis surge o monstro repugnante e desprezível.” (TÁVORA, 2011, p. 52).

É justamente esse sentido novo e inventivo, ancorado tão somente na ideação e

completamente dissociado da tradição que o precedeu, que Távora condena

veementemente em Alencar. Esse alheamento em relação aos autores que o precederam

era antes uma condição preliminar necessária para a obra de Alencar do que uma falta,

uma vez que seu projeto literário vinha a par de uma reformulação da identidade e dos

signos brasileiros sob a égide do Império.

Sendo assim, Távora não exagerava ao dizer que "J. de Alencar não quer fazer

somente uma nova língua, uma nova natureza, uma nova poesia: quer fazer também uma

nova história." (TÁVORA, 2011, p. 171). A contestação dos preceitos estéticos que

norteiam a representação da natureza brasileira em José de Alencar e a insubordinação

política de Távora constituem um mesmo movimento de sua parte, já que era justamente

na identificação com o projeto imperial de construção discursiva da nação brasileira que

se ancorava a legitimidade e o apelo da obra alencariana junto à corte.

Entretanto, a constituição dessa narrativa que identifica Alencar estreitamente

com os interesses da coroa imperial não se apresenta sem suas contradições. A oposição

desabrida que Feliciano de Castilho fazia ao autor d’O Gaúcho era também uma forma

de tentar cair nas graças do imperador (AGUIAR, 1997, p. 187), com quem Alencar

manteve uma relação bastante estremecida nos últimos anos de vida, o que inverte

radicalmente os fatores de uma análise da polêmica feita a partir de uma lente focada na

pauta antiabsolutista.

Outro elemento que vai de encontro a aproximações simplistas desse evento é o

fato notório do polemista português ter estado por todo esse período ligado ao monsenhor

Joaquim Pinto de Campos, antagonista ferrenho do general Abreu e Lima, supracitado

amigo íntimo da família Távora. O sacerdote, cuja peleja pública com o general fez com

que o bispo de Pernambuco negasse ao último uma sepultura cristã, era deputado e

correligionário de Feliciano de Castilho na defesa da Lei do Ventre Livre, cujos textos de

defesa ambos redigiram juntos. (AGUIAR, 1997, p. 166-167, 187-188)

O próprio teor das críticas do português pareceria a princípio refratário em

relação ao posicionamento político de Távora. Quando ocupado em atacar Alencar no

âmbito literário, Feliciano de Castilho se limitava a condenar os desvios da norma lusitana

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que o brasileiro empregava em seus livros indianistas, o que foi apontado por críticos da

época como uma “afronta à autonomia nacional” (ARARIPE JR., 1958, p. 234) e uma

“patriotada lusa, desejosa de deprimir a primeira figura literária brasileira do tempo”

(ROMERO apud AGUIAR, p. 196).

A tematização das disputas da época não dá margem para reducionismos nem

conclusões absolutas. À luz dessas contradições, as motivações do próprio Távora para

se somar a Feliciano de Castilho em suas invectivas contra Alencar são incertas. No

entanto, a versão mais corrente é a apresentada por Clóvis Bevilaqua, fundador da cadeira

n.º 14 da Academia Brasileira de Letras, a qual ele designou Franklin Távora como

patrono. Ele determina, a partir de um relato de Araripe Júnior, que foi a recepção d’Os

Índios do Jaguaribe por parte de Alencar o estopim do ocorrido:

Araripe refere-me o caso por este modo. Tendo Alencar recebido o

romance de Távora, lêra-o com muita curiosidade e interesse, annotando á

margem os trechos que lhe haviam merecido maior reparo, no intuito de

responder ao novel escriptor, agradecendo-lhe a offerta e dando-lhe a sua

opinião sobre o valor do trabalho.

Essa resposta, no emtanto, por motivos que não desconhecem os que

têm occupações literarias, demorou-se mais do que era de esperar. Susceptivel,

como todo artista, o auctor dos Indios do Jaguaribe sentiu-se do silencio e não

tardou em transformar essa magoa em irritação, quando um amigo lhe

informou que o glorioso cearense lhe havia desapiedadamente analysado a

obra, resumindo o seu parecer n’um dicto caustico: “taes indios precisam ainda

ser descascados”! [sic] (BEVILAQUA, C. 1904, p. 6-7)

Debalde as nuances e incertezas em torno das motivações e interesses em torno

da publicação das cartas, uma amostragem de sua recepção demonstra o caráter

polarizado dos ânimos da época. No Diário do Rio de Janeiro, um A. de Vasconcellos

sairia em defesa de Alencar, assinando uma série de seis breves artigos intitulados

“Palestras”, dos quais o excerto abaixo, extraído do primeiro, oferece uma ideia geral do

conteúdo compartilhado pelas demais:

Cincinnato, á laia de amigo, se dirige a um Sempronio, Ambo

florentes16, não na idade, pois que o de lá ainda está na espiga, quando o de cá

já chegou ao sabuge. Mas com certeza, arcades ambo17, e bom é que se saiba

que há diversas espécies de arcadios, sendo estes dous daquella da que trata

Juvenal, sat. 7 v. 160: Quod læva parte mamillœ salit juveni arcadico18, quando

faz allusão a certos orelhudos de bom volume, que pastavam a relva da

Arcadia. [sic] (VASCONCELLOS, 1871a, p. 2)

16 Ambos florescentes, vigorosos. (MARTINS, 2011, p. 120) 17 Ambos árcades (Ibid). 18 “Quanto ao fato de que [nada] pulsa sob o peito esquerdo/ Do jovem da Arcádia” (Ibid)

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Como a assinatura só veio no último dos seis artigos, Távora os tomou como

vindos da pena do próprio Alencar, estabelecendo com ele breve intercurso. Para tal

conclusão, deve ter concorrido o fato de que, em artigo posterior, Vasconcelos recomende

que Semprônio “Vá esbrugar os seus índios do Jaguaribe, e quando lhes tiver tirado o

cascão, volte para a Sabattina.” (VASCONCELLOS, 1871b, p. 2).

É notável que Vasconcellos use a mesmíssima expressão que Beviláqua atribui

a Alencar para se referir aos índios do romance de Távora, o que seria uma coincidência

curiosa proveniente ou de uma interlocução entre Alencar e Vasconcellos sobre o livro e

seu autor ou de uma confusão de Beviláqua na atribuição da autoria do julgamento. Seja

como for, Távora acusa o golpe, reproduzindo esse trecho em suas cartas e dedicando as

páginas que o seguem a discutir o papel da crítica literária, o qual, no cenário pintado por

Beviláqua, corresponderia ao que ele esperava de Alencar por ocasião da entrega do

manuscrito dos Índios do Jaguaribe19.

Ele afirma que “O mundo é uma escola, onde se pratica, não o elogio, senão o

ensino mútuo, com esta circunstância, porém – que não há magister super omnes20”

(TÁVORA, 2011, p. 124). Dessa forma, ele defende que o seu proceder em apontar as

falhas na obra alencariana teria um caráter patriota, posto que mirava o melhoramento da

literatura nacional, o que estaria sendo tolhido pela recepção irrefletidamente elogiosa

que vinham granjeando ao autor de Iracema:

Estou plena e profundamente convencido de que, procedendo assim,

presto serviço ao Brasil. A crítica, que se preza de justa e independente, é

inquestionável agente do progresso; põe diques (deixe lá falar) aos

extravasamentos das imaginações superabundantes, alimenta e aguça os

estímulos produtivos, apura o licor das boas fontes sem estancá-las.

Não são mais brasileiros do que eu, os que só têm o incenso que

embriaga, e nunca uma palavra judiciosa e firme admoestação. Muita vez o

aplauso é desserviço, e quando perene, converte-se em nojenta e nociva

idolatria. (TÁVORA, 2011, p. 125)

À luz da última metáfora, seu receio é que, criticando o autor idolatrado, ele seja

tachado de “iconoclasta de imagens da terra”. Nisso, Távora se antecipa aos seus críticos,

perguntando: “Quando J. de Alencar, simples neófito das letras, escrevia desabridas

19 Antes mesmo, Távora já teria dado indícios que corroboram a versão de Beviláqua, notadamente no início

da segunda carta, quando escreve: “Nunca tive nem terei uma palavra mais severa para exprobrar ao moço

a franqueza, em que incorrer, arriscando suas primeiras lutas na escabrosa arena das letras. A literatura,

como se há dito tanta vez, é um sacerdócio, e como todos os sacerdócios tem de ser servida por diversas

ordens de religionários. O neófito, em regra, paga irremissivelmente tributo do excesso de fervor, que

caracteriza todo o noviciado. Exigir serviço completo dele fora impiedade.” (TÁVORA, 2011, p. 48). 20 “Mestre acima de todas as pessoas” (MARTINS, p. 124)

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cartas contra [...] Gonçalves de Magalhães, alguém o chamou de iconoclasta de imagens

da terra? [...] Pois bem: não faço mais que seguir o edificante exemplo de J. de Alencar”

(TÁVORA, 2011, p. 125-126).

Em verdade, o que Távora faz no percurso das cartas é antes inverter a peça

acusatória, identificando no projeto literário alencariano e seu patente desdém pelos

trabalhos históricos e líricos que o precederam uma ruptura a ser condenada. Seus

argumentos progressivamente se justapõem ao longo da progressão do seu raciocínio, de

forma que o excesso imaginativo de Alencar se apresenta como consequência do seu

intuito de se desassociar daqueles que o precederam, projeto que, uma vez espicaçado

pela aceitação acrítica da corte, estagnou o panorama literário nacional:

Explica-se o desacerto de Alencar, empreendendo contrapor à

verdade a ficção da sua fantasia. [...]

Sopitada a chama íntima, a pretensão mais desbragada tomou o

lugar à razão e ao bom senso. O homem reputou-se logo com suficiente

autoridade e cabedais para demolir o que a idade e gênio tinham custosamente

construído. Mas demolir, sem ao mesmo tempo edificar, não era decente nem

plausível. E depois era preciso, antes de tudo, mostrar que o novo estava muito

acima dos velhos arquitetos; daí a ideia de inaugurar escola, que transmitisse à

posteridade o nome do seu fundador. (TÁVORA, 2011, p. 161-162).

Irônico, Távora remarca que "O Sr. Alencar parece ter a paixão de demolir. Basta

pertencer ao passado para provocar as suas iras; basta ser venerando para levá-lo ao

sacrilégio. Que índole! Que natureza! E chama-se àquilo conservador!" (TÁVORA,

2011, p. 220). Nota-se como, aqui, Távora subverte a ideia de que a crítica ao autor mais

velho configuraria alguma forma de iconoclastia, estabelecendo antes o próprio Alencar

como iconoclasta, e a si como um restaurador das letras pátrias.

Esse aspecto dos seus escritos e alguns dos demais pontos do pensamento de

Távora exposto nessas cartas serão retomados pontualmente nos capítulos seguintes, em

que serão analisados à luz do desenvolvimento do projeto político-literário do autor.

Conclui-se aqui a exposição de seus argumentos contra Alencar com esta síntese precisa

realizada por ele, com a qual arremata:

J. de Alencar dá poemas e romances de costumes, sem ter estudado

nem a natureza nem os povos, e condenando além disso os estudos dos mestres

e os dicionários existentes, que chama “espúrios”. Essas obras, ele as dá do

fundo do seu gabinete, assim a modo de quem expede avisos para um império

inteiro. Espécie de enciclicas literárias, trazem o cunho da autoridade

dogmática e infalível: são matéria de fé. (TÁVORA, 2011, p. 144)

Se na corte as Cartas a Cincinato foram recebidas com desassossego, tanto em

função de seu conteúdo quanto do contexto maior no qual estava envolvido o seu

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destinatário, na província de Távora a recepção foi outra. Na imprensa local de

Pernambuco, seus escritos foram amplamente celebrados:

Obras de natureza tal, sahidas de pennas da ordem da de Sempronio,

veem preencher uma lacuna, de que há muito se resente a nossa republica

litteraria.

Vem a proposito dizer que entre nós a litteratura, posto que mui

limitada, está mal organisada, devido sem duvida isso á centralisação que em

tudo se quer estabelecer, ou antes devido á uma especie de egoismo

concentrado.

Destarte facil é comprehender-se que as provincias nas letras, assim

como no mais, não teem uma autonomia propria. [...]

Dahi ha orgulho em que Sempronio seja pernambucano. [sic]

(ANÔNIMO, 1872, p. 2)

O excerto acima, retirado de um breve artigo sem assinatura no Jornal do Recife

de 24 de setembro de 1872, denota um ressentimento latente ao atestar que a falta de

autonomia das províncias nas letras se estendia para outros âmbitos. O apontamento da

má organização da literatura, aqui referida como república literária, como consequência

da centralização “que em tudo se quer estabelecer” também concorre para esse

entendimento.

A amplitude da significação que as Cartas a Cincinato tiveram junto ao público

local está mais bem delineada nos artigos publicados no mesmo jornal sob a assinatura

de Farwest nos dias 2 de outubro e 28 de novembro de 1872. Neles, o autor anônimo se

esmera em explicitar os paralelos entre os paradigmas literário e político brasileiros.

As cartas de Sempronio acham o Brasil litterario (como o politico)

em torpe abatimento; e trasem por isso um salutar desafogo aos espiritos justos.

Ellas veem, como uma consequencia logica, cheia de vigor e de verdade. [...]

A classica republica das lettras foi convertida em theocracia de

magnate; deram-lhe um pontifice rei e algumas duzias de grandes do imperio,

- pontifice infallivel, grandes do imperio incomparaveis. Nem mais a um foi

permittido largar o diadema, que lhes deram, nem aos outros o monopolio da

presumpção e da vaidade. A illustração e todos os meritos litterarios deviam

partir para o pais inteiro como reflexo desse foco, como irradiações desse

systema solar. [...]

Da côrte vem ás provincias a luz da inspiração e o padrão de todas

as concepções litterarias, como politicas. Nada nos é permittido ousar senão

pela pauta desses legisladores do bom gosto; nem uma concepção discorde do

seu criterio magistral, nem uma idéa fóra do seu ideal! – Critica, sómente a da

côrte!

E a côrte é a corrupção de tudo...

Quo usque tandem abutere21!?

21 “Até quando abusarás”, palavras que abrem as Catilinárias de Cícero, conjunto de discursos contra o

senador romano Catilina nos quais o autor o acusava de conspirar contra o senado. A citação completa é

“Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?”, que vertida para o português significa “Até

quando abusarás, Catilina, de nossa paciência?” (CICERO, 2009, p. 4)

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As cartas de Sempronio foram provocadas por essa miseria. [...]

Falla pelo seu orgão todo o Brazil litterario longamente escarneido por essa

oligarchia bastarda de cortezãos litteratos. [sic] (FARWEST, 1872a, p. 2)

O segundo artigo retoma os pontos do primeiro de forma a estreitar ainda mais

a identificação entre as instâncias literária e política do Brasil da época. Ao fazê-lo, o

autor adota um tom muito mais belicoso:

Depois de haverem reduzido a sociedade brazileira aos limites do

municipio neutro no ponto de vista administrativo e financeiro, os chineses

políticos do império querem também circumscrever nesses limites o

movimento e as tendencias litterarias do Brazil.

A iniciativa, a actividade, todas as forças locaes, que poderiamos

chamar oganicas da sociedade civil, disem-no a experiencia e o bom senso, ou

hão de ser estimuladas e desenvolvidas em cada ponto do territorio, em que

rebenta a vida social com a congregação da família, ou terão de esterilisar-se e

nulificar-se, se se deslocam para serem concentradas n’outro ponto. [...]

Não contentes com isto instituem a claque litteraria, o conchavo do

elogio mutuo; proclamam-se os unicos; arvoram um dictador para o seu baixo

imperio; e atiram-se à conquista da republica das lettras, que já contam por

conquistada. [...]

Razão tem para isso o Sr. José de Alencar; porque ainda um livro

seu não está publicado, e já os apologistas se acotovelam a qual mais cedo e

mais alto apregôe a nova pomada. O que quer que prometta elle publicar, há

de ser em todo o caso “um primor de litteratura, uma nova gemma, que mais

fulgor dará ainda ao diadema da sua realeza litteraria” e que os seus camaradas

põem logo nas cem boccas da imprensa. [sic] (FARWEST, 1872b, p. 2)

É notável como os argumentos de Távora são bem acolhidos no texto redigido

por Farwest. Não só isso, mas eles são retomados com o intuito de delimitar uma situação

ampla contra a qual se desenha uma sublevação em múltiplos âmbitos:

É por tudo isto que reagimos contra a centralisação litteraria, que

produz tão lamentaveis resultados.

Cumpre destruir o vicio original, concorrendo cada província, cada

municipio com o seu empenho e com a sua dedicação.

Em Pernambuco organisa-se felismente uma vigorosa reacção. Em

política, continua na vanguarda do movimento democratico o Jornal do Recife

[...]

Em religião, cuja centralisação nos arrasta para o estrangeiro, contra

a patria – tomou a iniciativa a sympathica e generosa redacção da Verdade22.

Em lettras congregam-se os elementos, e promettem dar batalha

campal a esses litteratos bastardos, que tão honerosamente conspurcam as

lettras nacionaes.

Poderá alguém negar que na côrte do imperio faz-se uma

centralisação litteraria, levanta-se uma aristocracia de talentos corrupta e

corruptora, que pelo conchavo do elogio mutuo proclama chefe da litteratura

brazileira um talento de má indole e decrepito [...]?

Não podem, tal é a evidencia da enormidade! [...]

22 O períodico A Verdade (1872-1874) teve como redator-chefe Franklin Távora, que fundou o jornal e

esteve à sua frente no contexto da Questão Religiosa, que opôs maçons e o clero pernambucano no debate

sobre a liberdade religiosa e a legalidade das sociedades secretas (Cf. AGUIAR, p. 203-219).

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Aberta como foi a brecha por Sempronio bateremos della. [sic]

(FARWEST, 1872b, p. 2)

Tal comoção, por certo, não teve início com o levantar da pena de Távora contra

Alencar, sendo este antes um sintoma de uma inquietação já posta, e cuja dimensão

superava os conflitos de ordem literária. A fim de verificá-lo, será analisada em maior

detalhe a natureza dessas tensões sociais que se manifestavam em Pernambuco e a sua

expressão na obra tavoreana, em especial a formação da sua “Literatura do Norte”.

2.3 – A elegia da sociedade açucareira

Nos anos que se seguiram à publicação das Cartas a Cincinato, Franklin Távora

continuou a atuar ativamente na arena pública em defesa de suas posições, sendo seu

esforço mais célebre nesse sentido a publicação do romance O Cabeleira (1876), a partir

do qual propunha inaugurar um projeto político-literário denominado “Literatura do

Norte”, reunindo obras que celebrassem os costumes e tradições das províncias

setentrionais do país como uma forma de representar um Brasil verdadeiro cuja essência

já teria sido perdida nas províncias do sul. No prefácio do livro, que serve também como

uma carta-manifesto do projeto ali encetado, ele argumenta que:

As lettras têm, como a politica, um certo caracter geographico; mais no

norte, porém, do que no sul abundam os elementos para a formação de uma

litteratura propriamente brazileira, filha da terra.

A razão é obvia: o norte ainda não foi invadido como está sendo o sul

de dia em dia pelo estrangeiro.

A feição primitiva, unicamente modificada pela cultura que as raças, as

indoles, e os costumes recebem dos tempos ou do progresso, póde-se affirmar

que ainda se conserva alli em sua pureza, em sua genuina expressão. [sic]

(TÁVORA, 1876, p. 12)

Consciente da condição subalterna da literatura produzida longe da capital

imperial, o autor se arvorava em tendências estéticas e ideológicas recém-chegadas da

Europa para contestar a hegemonia política e literária do sul do país, como se analisará

em detalhe nos capítulos seguintes. Entretanto, na mesma medida em que procurava

superar o status quo saquarema instrumentalizando essas ideias novas e estrangeiras, ele

simultaneamente reafirmava a necessidade de exaltação de uma “feição primitiva”

própria do Norte do Brasil, então entendido como o conjunto de todas as províncias da

Bahia ao Amazonas, o que confessadamente se traduziria em suas obras no registro de

tradições e costumes regionais, mas também implicaria uma defesa entusiástica da

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economia da cana como elemento basilar dessa sociabilidade rural que ele buscava

registrar e preservar.

Evaldo Cabral de Mello defende em Rubro Veio – O Imaginário da Restauração

Pernambucana (2008) a tese de que existe na historiografia pernambucana a recorrência

de uma certa “tradição revolucionária” ligada à permanência de uma elite fundada sobre

a cultura da cana, uma “nobreza da terra”, alienada tanto num primeiro momento do

centro de poder da metrópole portuguesa quanto posteriormente da corte imperial carioca.

Essa elite rural, a qual constituiria o que o autor chama de uma “açucarocracia”, primeiro

lideraria a resistência contra a ocupação holandesa, culminando na sua expulsão definitiva

em 1654, e posteriormente protagonizaria uma série de revoltas independentistas ao longo

de todo o período colonial até o fim da primeira metade do século XIX, quando seu capital

político declinava (MELLO, p. 11-19).

Há de se ter em conta que as fronteiras da capitania de Pernambuco eram

diferentes dos limites do território que hoje compõem o estado. À época de sua fundação,

a capitania de Pernambuco se estendia por toda a costa nordestina desde o que hoje

corresponde à fronteira sul do Alagoas, abarcando também o que hoje é a Paraíba, o Rio

Grande do Norte e o Ceará, seguindo com o rio São Francisco pelo oeste baiano adentro.

O desmembramento dessa capitania no que se tornariam os demais estados da

região Nordeste era um fato relativamente recente para Távora. Ceará, Paraíba e Rio

Grande do Norte tiveram sua independência em 1799, enquanto Alagoas se tornou

independente em 1817 e a região do Além São Francisco foi incorporada à Bahia no

mesmo ano. Nesse contexto, sua pretensão de dar ensejo a uma Literatura do Norte

empreendendo esforços tão somente na reconstituição da história de Pernambuco parece

fundada não em uma mera predileção pela província que o acolheu, mas em uma

identidade comum que fora até pouco tempo antes compartilhada por grande parte das

demais províncias do Norte.

Mello afirma que o imaginário que se formou em torno dessas revoltas se

acomodou ao longo dos séculos de acordo com as transformações das demandas da elite

açucareira. Nos anos que antecederam a independência do país, essa “tradição

revolucionária” progressivamente veio a ser entendida como uma suposta vocação

nativista que singularizava Pernambuco em relação ao resto do Brasil, culminando na

Revolução Pernambucana de 1817.

Da mesma forma, nos anos que se seguiram à proclamação da independência, os

nobres que se sublevaram durante o período colonial contra holandeses e portugueses

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seriam revistos como os primeiros a se revoltarem em prol de uma brasilidade nascente.

A recomposição estratégica dessa herança histórica foi um artifício do qual se valeram os

descendentes dessa nobreza da terra em um contexto no qual eles perdiam seu

protagonismo político em nível nacional.

Seria essa tradição que daria ensejo não só à particularização do Norte em

relação ao Sul tal como idealizava Távora, mas também à defesa que ele fazia de que o

verdadeiro Brasil se encontraria nessas províncias, não só depositárias de tradições

avoengas, mas também terra natal de revolucionários pioneiros. Em contrapartida, a

sociedade da corte não só teria dado as costas a esse legado, mas teria perpetuado em

nível nacional a própria relação de exploração que os antigos revolucionários

pernambucanos combateram quando exercida pelas metrópoles holandesa e portuguesa.

A disputa em torno da apreensão do papel da açucarocracia pernambucana e de

suas revoluções na historiografia brasileira ganharia fôlego em 1862 com a fundação do

Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano (IAGP), o qual procurava oferecer

um contraponto à perspectiva imperial unitarista promovida pelo Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro (IHGB), uma historiografia designada por Mello como de

tendência “saquarema” (MELLO, 2008, p. 57-58), em referência ao partido conservador

brasileiro da época ao qual a “ordem saquarema” aludida por Alonso também se refere.

As lembranças recentes dos eventos da Confederação do Equador (1824) e da Revolução

Praieira (1848) não poderiam deixar de imprimir a pecha de separatistas a quaisquer

exaltações oficiais às demais revoltas pernambucanas, sobretudo a revolução recente

protagonizada em 1817, naturalmente controversa por seu caráter republicano.

Essas disputas em torno da formulação de discursos históricos nacionais derivam

da preponderância que a consciência histórica assume no século XIX, sobretudo, de

acordo com Jacó Guinsburg, em função do Romantismo em sua manifestação como fato

histórico para além de uma configuração estilística nas artes, como evento sociocultural

(Cf. GUINSBURG, 2013, p. 14). A crescente laicização do pensamento e a centralidade

que o indivíduo assume desde o século anterior, dito o das Luzes, se cristalizam de forma

que “[o] discurso histórico sofre mudança revolucionária. Deixa de ser meramente

descritivo e repetitivo, para se tornar basicamente tanto interpretativo quanto formativo,

genético. É a história que produz a civilização. Mas não a História, e sim as histórias”

(GUINSBURG, 2013, p. 15).

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Há, assim, uma ruptura na estrutura do pensamento da época que, se não se

restringe ao meio artístico, é expressa de maneira contundente nele. O autor prossegue,

escrevendo que:

[O] Romantismo, na sua propensão historicizante, aglutina as sociedades em

mundos, comunidades, nações, raças, que têm antes culturas do que

civilizações, que secretam uma individualidade peculiar, uma identidade, não

de cada indivíduo, mas do grupo específico, diferenciado de quaisquer outros.

(GUINSBURG, 2013, p. 15)

Nesse contexto, a elaboração de mitos nacionais que individualizem uma

sociedade em relação às demais é um processo para o qual tanto a pesquisa historiográfica

quanto a produção literária contribuem enormemente, em um movimento no qual “[o]s

deuses por direito próprio estavam substituídos por semideuses ou simples heróis,

autóctones, talvez, mas sem dúvida cruzando o telúrico e o celestial” (GUINSBURG,

2013, p. 19). Assim, “tinha-se agora uma espécie de nova mitopoética histórica,

défroqueé, rica pela variedade e colorido nacionais de suas epopeias coletivas e de seus

heróis culturais” (GUINSBURG, 2013, p. 19), posta em marcha no Brasil, sobretudo,

pelo IHGB e pelo romantismo indianista.

Apesar de não ter seu nome formalmente associado ao IAGP, Távora não se

encontrava alheio a essas questões, as quais não só foram tema recorrente de sua produção

intelectual, mas influíram diretamente em sua vida pessoal. Como já referido, seu pai, o

major Camilo Henrique da Silveira Távora, participara ativamente da Revolução Praieira,

tendo sido julgado e condenado por crime de rebelião junto a outros membros da família

do autor e permanecido detido no presídio de Fernando de Noronha até os primeiros anos

da idade adulta do filho.

Em janeiro de 1873, o próprio Franklin Távora, ainda antes de dar ensejo à sua

Literatura do Norte, fundou junto aos amigos Aprígio Guimarães, seu professor na

Faculdade de Direito do Recife, e L. F. Maciel Pinheiro, antigo colega da mesma

instituição, a “União do Norte”, “sociedade litteraria, scientifica e histórica para

engrandecer o Norte do Brasil” (O Vinte e Dous de Maio, 1872, p. 2). Essa sociedade,

cujo nome à época era amplamente utilizado para se referir à república estadunidense,

atuou sobretudo nos anos de 1873 e 1874 no âmbito da Questão Religiosa, advogando

pela liberdade de culto e limitação da influência papal sobre as matérias de fé no Estado

brasileiro (Diário de S. Paulo, 1873, p. 2), e no requerimento da republicação das obras

de clérigos pernambucanos célebres por sua atuação política, nomeadamente Frei Caneca

e o Vigário Francisco Ferreira Barreto (A Província, 1874, p. 3).

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Ainda antes da reunião que instituiu sua fundação, surgiram artigos nos jornais

pernambucanos de cunho liberal celebrando a iniciativa de criação da sociedade. Em 19

de novembro de 1872, um “D.A” remetia à seção de publicações solicitadas d’A

Província, vinculado ao Partido Liberal, um artigo intitulado “União do Norte”, onde se

lia:

Sob esta denominação acabam de ser lançadas as bases d’uma

associação historico-litteraria, que, mui proveitosos serviços poderá prestar ás

provincias do norte, as quaes absortas na contemplação do brilhantismo quadro

de sua grandeza no passado, conservam-se inactivas, sem oppor um dique á

torrente devastadora, que, vindo do sul, ameaça em sua passagem derrubar os

monumentos de seu heroismo, os pedestaes de seus martyres, e apagar as

inscripções do túmulos de seus poetas. [...]

Que as venerandas riliquias do passado não se percam, que não nos

deixemos asfixiar pelos gazes da corrupção histórica e litteraria, eis o que todos

diziam, sem que ousassem tomar sobre os hombros o trabalhoso, porém

gloriosissimo encargo de empreender uma viagem pelos mares da historia e da

literatura, para recolher de suas profundezas as preciosíssimas perolas, que ja

diademaram este nosso Pernambuco e suas irmãs do norte, e que a mão da

iniquidade lh’as arrancou, arremessando-as ao pego do esquecimento. [sic]

(D.A., 1872, p. 4)

Em 13 de dezembro do mesmo ano, publicava-se no Liberal outra defesa dos

argumentos pela criação da sociedade feita nos mesmos termos, dessa vez sob a pena

anônima de “****”. Nela lê-se:

E’ triste que o Pernambuco de hoje seja tão differente do Pernambuco

de hontem!

[...] o que hontem havia e hoje não ha, é gosto e amor ao estudo; e o

que hoje ha em abundancia e hontem não havia, é enveja, egoísmo, sentimentos

bem pouco nobres, que esterilisam as intelligencias, matam as aspirações,

causando o atraso das lettras e conseguintemente do paiz [...].

Esses sentimentos são os que infelizmente preponderam no sul, em

relação ao norte e entre nós, o mesmo mal sente-se, vê-se, apalpa-se. [...]

Porque havemos de sujeitarmo-nos, nos domínios das letras

propriamente ditas, ás autoridades infallibilistas do sul do império,

suportando, que, até neste ponto, nos queiram dar o santo e a senha, já não se

contentando com a centralisação politica?

Se sem uma convulsão, é impossível reconquistar de chofre para as

provincias do norte a importância politica, que já tiveram e de que hoje se

acham exautoradas, o mesmo não se dá nas letras e na historia.

Na politica a obra da centralisação está consummada, soffremo-lhe as

terriveis consequencias, nas lettras, vae ainda em meio caminho.

Uma reação energica, porém sensata, chega a tempo de impossibilitar

o sequestro de nossas glorias, de nossas lettras.

Quem encetal-a? A União do Norte. [sic] (****, 1872, p. 3)

Há de se perceber a significação que a fundação de uma sociedade do tipo

assumia nesse meio, assim como os pontos de contato entre o discurso desses remetentes

e daqueles que haviam escrito a respeito das Cartas a Cincinato no que concerne à

disparidade entre o norte e o sul do país. Muitos desses argumentos seriam inclusive

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retomados por Távora em sua carta-manifesto pela Literatura do Norte e em outros

escritos subsequentes.

Em relação aos posicionamentos externados pelos próprios membros do grupo,

no aniversário de onze anos da fundação do IAGP foi publicado no jornal A Província

um discurso do orador da União do Norte, Maciel Pinheiro, em que, representando a

sociedade, realizava um balanço crítico da restauração pernambucana, comemorada

naquela mesma data. Ele escreve:

A União do Norte não pode acompanhar-vos, senhores, nesta festa,

sinão pela comemoração do vosso próprio anniversario, que será sempre um

dia notável nos annaes do Brazil, e que assingnala a exuberância de um

patriotismo fecundo, que veio protestar por factos contra o patriotismo esteril

de uns fazedores de discursos, que se intitulam representantes da nação.

[...] o resgate, que commemoraes, não foi a libertação do povo

brasileiro [...]. Foi a troca de um senhorio por outro, questão de interesses

estrangeiros, da qual os filhos do Brazil sairiam sempre escravos. [...]

Parece-vos, senhores, que muita razão tiveram os nossos avoengos

para preferir ao jugo hollandez o jugo de Portugal?

Si a raça hollandeza prevalecesse como seu domínio neste solo

fecundo, seria eficaz garantia das grandes prosperidades, que nos faltam, a sua

imensa actividade e o seu espirito empreendedor e enérgico, de que nos deixou

copia tão bastante. Teriamos sido colonos de melhor metropole. [sic]

(PINHEIRO, 1873, p. 4)

Evaldo Cabral de Mello percebe uma certa “conexão entre as atitudes

modernizantes de finais de Oitocentos e a apologia da ocupação holandesa23”, (MELLO,

2008, p. 342) o que serviria para “mascarar tendências republicanas [...] e de exigências

de pluralismo religioso e de liberdade de consciência, contrárias ao caráter oficial da

religião católica”, assim como “punha em pauta a valia do legado português, que dera ao

Império a dinastia reinante” (MELLO, 2008, p. 323-324). Essas tendências são

amplamente verificadas no decorrer do discurso de Pinheiro, como já aparece indicado

ao afirmar que sob o poder Holandês teriam tido “melhor metrópole”:

A denominada restauração de Pernambuco não foi de certo,

senhores, um acto de nacionalidade americana; e nem teve intuitos de

independência e liberdade do paiz; teve antes, sim, por objecto ligar uma

colônia rica aos anteriores domínios da corôa portuguesa. [...]

Para a União do Norte o dia 27 de Janeiro não lembra sinão uma

dacta memorável: – é a da inauguração do Instituto Archeologico

Pernambucano, cujas glorias trazem o cunho da nacionalidade brasileira. [...]

23 Evaldo Cabral de Mello se refere em específico a esta tendência tal como exposta por Francisco Augusto

Pereira da Costa e Joaquim Nabuco, mas verifica-se neste trabalho a pertinência de suas observações

também em relação ao discurso de Maciel Pinheiro que, mesmo os precedendo, encerra em si os mesmos

argumentos.

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Graças a vós, senhores modestos e devotados zeladores das honras

pátrias, é-nos licito esperar que não acabarão de todo os restos d’aquelle antigo

calor que animou as luctas da independência.

Graças a vós a geração futura saberá que não foram nunca

repudiados nesta terra aquelles heroicos sentimentos, por cujo amor correo o

sangue de Caneca e de Miguelinho.

Quaes vestaes do templo da pátria velareis de certo, para que se não

extinga o fogo santo da liberdade. [...]

Desse fogo sagrado espera a União do Norte que há de vir ainda a

nossa verdadeira restauração, a restauração da soberania nacional e da

liberdade de cultos, incompatível com todos e quaisquer privilegios perpetuos.

[sic] (PINHEIRO, 1873, p. 4)

Távora, por sua vez, se debruçaria individualmente sobre o tema das revoluções

em sua produção ensaística, tendo redigido em 1880 o ensaio Os Patriotas de 1817

tomando como tema a Revolução Pernambucana de 1817. Somente o sexto capítulo,

“Uma Sessão do Governo Provisório”, veio a lume no quarto tomo da Revista Brasileira,

mas mesmo esse excerto do trabalho deixa entrever como Távora trata dessa revolução

antes pelo seu caráter nativista do que pelo estigma separatista associado a ela pela

historiografia saquarema:

De feito, a revolução de 1817, mau grado os odios e invectivas infundadas, é

de ha muito considerada pelo paiz como a raiz da montanha que cresceu entre

Portugal e Brazil, e os separou definitivamente. [...] O que nelle [movimento

de 1822] teve de mais puro – a idéa da separação – tinha vindo da revolução

de 1817. Nesta revolução as ambições foram quasi nenhumas, o amor da pátria

foi quasi tudo. [sic] (TÁVORA, 1880, p. 38-39)

Ele ainda publicaria outro estudo polêmico na Revista Brasileira, As Obras de

Frei Caneca (1880), uma apreciação dos poemas do clérigo líder da Revolução de 1817

e mártir da Confederação do Equador que privilegiava a interpretação de suas obras à luz

de sua trajetória revolucionária e faria parte de uma obra de maior vulto jamais publicada

chamada A Constituinte e a Revolução de 1824. Dentre estes estudos, foi Os Patriotas de

1817 que o autor optou por apresentar ao IHGB à ocasião de sua candidatura como sócio

do Instituto, sendo sua natureza polêmica ressaltada pela comissão apreciadora do

Instituto, mas relevada em função dos fatos narrados serem “[...] lutas encandescentes de

nossos dias, e por isso ainda não ha a verdadeira paz de espírito para serem apreciadas,

como é de mister. Tanto é verdade que ainda hoje os diversos escriptores d’esses factos

não são concordes em seus julgamentos.” [sic] (MARQUES & VEIGA, 1880, p. 404).

A despeito do conteúdo controverso do estudo, em que pesaram as duras críticas

feitas por Távora a trabalhos dedicados ao mesmo tema empreendidos por membros do

próprio IHGB por se alinharem a uma ótica “saquarema”, como colocada por Mello, ele

foi aceito. Távora também apresentaria seus romances Os Índios do Jaguaribe (1862), O

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Cabeleira (1876) e O Matuto (1878) como credenciais para seu ingresso no Instituto, uma

vez que tratavam-se de romances históricos fundamentados em ampla pesquisa

historiográfica, fato que também pesou para sua acolhida na instituição.

Seria justamente em suas obras romanescas que Távora daria vazão de maneira

mais desabrida aos seus pensamentos em relação ao imaginário da tradição revolucionária

pernambucana. Dado a longas digressões na composição de seus romances, Távora

encetaria em cada um deles elementos concernentes a essa ótica particular.

Como observado, à época de Távora, esse nativismo pernambucano era

mobilizado menos com o intuito de inflamar a sedição separatista do que como uma forma

de reivindicar um protagonismo histórico perdido em decorrência do declínio da indústria

da cana, que relegou as províncias do Norte a um papel marginal na configuração de

poder do Império. Assim, a questão que ocupava a açucarocracia era o crescente

favorecimento dos cafeicultores do sul do império por parte do governo em detrimento

dos senhores de engenho, situação que era espelhada pelo avançado desenvolvimento das

províncias do sul em relação aos seus vizinhos do norte.

A já aludida obra da juventude de Távora, Os Índios do Jaguaribe,

coincidentemente publicado no mesmo ano da fundação do IAGP, é prenhe de

tensionamentos sobre as diferenças entre o sul e o norte do Império Brasileiro, como

analisado previamente, de forma que suas obras posteriores, reunidas sob o epíteto de

“Literatura do Norte”, encontrariam seu gérmen nessas questões que já ocupavam o

escritor em sua juventude e seriam exacerbadas à luz dos desdobramentos do quadro

histórico que as suscitou. Em O Matuto, escrito em 1878, quando o autor já havia

encetado seu projeto político-literário, sua demanda pelo reconhecimento do valor

histórico e cultural do Norte é mais estreitamente veiculado à defesa dos interesses da

açucarocracia.

A trama do romance é centrada nas ações de Lourenço, o matuto do título,

durante os eventos da Guerra dos Mascates, conflito travado entre 1710 e 1711, em

Pernambuco, entre a aristocracia rural produtora de cana e os comerciantes reinóis

citadinos, cognominados mascates por seus adversários.

A contenda foi deflagrada em função do desejo da burguesia portuguesa em

elevar a então povoação do Recife, onde estes se concentravam, ao nível de vila,

aumentando sua presença na câmara do senado e despindo a nobreza da terra, reunida em

torno da cidade de Olinda, do domínio político absoluto de que gozava desde a expulsão

dos holandeses séculos antes. No livro, Távora escreveria que “[...] a luta era menos de

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fidalgos e peões do que da agricultura ameaçada de ruina, e do commercio que apparecia

como tyranno” [sic] (TÁVORA, 1878, p. 136).

A parcialidade do autor pela nobreza pernambucana vislumbrada no excerto

acima é reafirmada ao longo do romance na medida em que Lourenço, a exemplo dos

demais habitantes dos engenhos, alinha-se aos nobres pernambucanos, testemunhando e

protagonizando atos de bravura ao lado de figuras históricas da aristocracia rural que

tomaram parte no conflito. Por sua vez, os mascates e seus partidários são pintados como

mamonistas ávidos pelo poder, empregando meios escusos em seus esforços de guerra e

contando com mercenários e criminosos em suas fileiras em razão de sua rejeição pela

população local.

A ideia de que haja uma indissociabilidade entre a identidade pernambucana e a

indústria da cana é explanada reiteradamente ao longo das digressões a que Távora se

entrega ao longo do livro com o intuito de situar o leitor alheio aos acontecimentos

históricos, em uma atitude que reverberava a atualidade das questões centrais do conflito.

O trecho transcrito abaixo, apesar de excessivamente extenso, justifica um detido exame

por ilustrar esse posicionamento de maneira inequívoca:

Parece que se prepara grande guerra á canna-de-assucar no norte.

Para levar a efeito este pensamento — o da destruição da planta abençoada,

servem-se do de cultivar com largueza o café no interior das provincias onde

até o presente se cultivou largamente a canna. [...]

Para o homem do norte o engenho de assucar é o representante de

immemoriaes e gloriosas tradições. Especialmente o pernambucano nasce

vendo com amigos olhos aquellas grandes propriedades que são como os seus

castellos feudaes. O engenho é o solar do norte. A nobreza do paiz principiou

por elle; não conheceu outro solar. Elle figura nas maiores paginas da historia

daquella parte do vasto império. Sua importância é lendária, histórica e santa.

E querem agora que á canna-de-assucar se substitua o café!

Promovem a extincção do giganteo elemento que produziu e perpetuou

fortunas respeitáveis naquella grande região!

Aperfeiçoar os processos de cultura dessa planta illustre, a que

Pernambuco deve brilho e grandeza immorredoura é digno do progresso. O

direito sinão o dever de melhorar as condições da agricultura, do commercio,

das industrias, está acima de toda duvida; mas suprimir um gênero de cultura

que tem por si a consagração de muitos séculos e elevou muitas gerações e

opulentou a provincia, não me parece nem justo, nem acertado nem

econômico.

Voz secreta e consoladora, dissipando os meus temores, segreda-me

que tú, ó planta bemfazeja — estandarte da independência e da riqueza do

pernambucano, seja qual fôr a conspiração tramada contra ti, não has de

desaparecer das nossas planícies, dos nossos oiteiros, dos nossos valles e

encostas, por onde estendes ha três séculos tua folhagem hospitaleira. [sic]

(TÁVORA, 1878, p. 77-80)

Essa transubstanciação da cana em símbolo da identidade pernambucana

encontra sua hipostasia na permanência da açucarocracia no seio da sociedade

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pernambucana. Assim, a valorização da história e o resgate das tradições nortistas

implicam necessariamente para Távora na defesa da decadente indústria da cana e dos

signos associados a ela.

A situação a que ele alude ao descrever uma “grande guerra à cana-de-açúcar no

Norte” que estaria sendo preparada era a recente política imperial de reservar às lavouras

de café das províncias do sul subsídios que eram negados aos engenhos de cana-de-açúcar

das províncias do norte. No ano de publicação d’O Matuto, realizou-se na capital do

Império o Congresso Agrícola do Rio, ao qual foram convocados exclusivamente os

cafeicultores das províncias do Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo,

classe que vinha se insinuando politicamente no centro das decisões imperiais em função

de sua crescente preponderância na economia nacional.

Acuados por esse sinal dos tempos, que se somaria à recente aprovação da Lei

do Ventre Livre, à competição com a produção de açúcar extraído da beterraba e à seca

de 1877 para impor à indústria da cana sua derrocada derradeira, os mais influentes

senhores de engenho da região norte se reuniram em Recife para realizar o Congresso

Agrícola do Norte, realizado naquele mesmo ano de 1878, cuja organização teve o intuito

confesso de “[...] contrabalançar a influencia que por ventura pudesse ter a do Congresso

Agrícola do Sul, convocado pelo governo imperial [sic] ” (Diário de Pernambuco, 1878,

p. 1). Em sua introdução à reedição dos Trabalhos do Congresso Agrícola do Recife,

Gadiel Perruci denominaria esse evento como “o canto do cisne dos barões do açúcar”

(Congresso Agrícola do Recife, 1978, p. i).

As pautas debatidas nessa reunião não se limitaram a estratégias para atrair os

subsídios governamentais dispensados às províncias do sul, indo desde a como substituir

a mão-de-obra escrava da qual dependia sua produção e a formas de como modernizar a

estrutura dos engenhos para aumentar sua produtividade até discussões inflamadas que

demandavam uma reedição das malfadadas tentativas separatistas protagonizadas pela

classe em outros tempos. O mote da reunião poderia ser situado na célebre frase do

romance O Leopardo (1958), de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, proferida pelo sobrinho

de Don Fabrizio, membro da nobreza italiana ameaçada pela revolução republicana e

protagonista da trama: “Se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo

mude.” (LAMPEDUSA, 2017, p. 31).

O fazer literário de Távora e, em última instância, seu projeto político-literário

como um todo, encontra-se, portanto, situado dentro de um contexto no qual o autor

procurava fazer coro às reivindicações de setores da sociedade pernambucana, entre eles

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essa elite rural carente de meios de reafirmar tanto sua vitalidade econômica baseada na

indústria da cana-de-açúcar quanto seu capital político assentado na construção de um

imaginário fundado na restauração pernambucana, ambos em vias de falência. Durval

Muniz de Albuquerque Júnior defende que a imagética construída por Távora ao transpor

para o campo literário essas disputas pelo poder acabaria por mobilizar um discurso

regionalista que se afirmaria com mais veemência nas décadas seguintes:

[...] o projeto literário de Távora se desenha a par com a crescente rivalidade

entre setores das elites do Norte e setores das elites do Sul, motivada pelo

crescimento da desigualdade entre esses dois espaços, tanto em termos

econômicos, como em termos políticos. O projeto literário de Távora se

articula à emergência de um sentimento regionalista que se materializará de

modo explícito daí há dois anos quando do Congresso Agrícola do Recife,

realizado no ano de 1878, onde discursos com tons claramente separatistas vão

se fazer ouvir. Embora diga que Norte e Sul são irmãos, Távora não deixa de

afirmar que eles são dois, procurando marcar as suas diferenças, diferenças

essas fundamentais para recortar esse espaço, seja do ponto de vista político,

seja do ponto de vista literário. Nessas imagens que servem para instituir um

recorte entre os dois espaços, algumas servirão de tema e permitirão figurar

literariamente, por muito tempo, esse espaço do Norte, depois o espaço do

Nordeste. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2017, p. 231)

Assim, o empenho de Távora pela emancipação discursiva do Norte perdurou com

a tradição regionalista que ele ajudou a municiar e da qual ele chega a ser apontado como

precursor (Cf. ALMEIDA, 1981). Ele lança mão de esforços em diversas frentes para

realizar esse intuito, fazendo valer a máxima que expôs no pós-escrito da segunda edição

de seu Um Casamento no Arrabalde, no qual afirma, em conformidade com a ideia que

Machado de Assis fazia então da literatura nacional, que “[o] romancista moderno deve

ser historiador, critico, político ou philosopho [sic]” (TÁVORA, 1881, p. 100).

Coerente e influente, Távora contribuiu com suas ações para moldar os

sucessivos movimentos organizados pela emancipação discursiva do então Norte do país.

A emergência desses discursos se verificará nos capítulos que se seguem, a partir do

exame minucioso do romance O Cabeleira e das continuidades e rupturas na

representação do sertão entre os pares coetâneos do autor.

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Capítulo 3 – Um romance para o Norte brasileiro

Gloria ao orador sublime!

O seu renome é já certo!

E ha de ter, por seu trabalho,

Sobre um tronco de carvalho,

Uma estatua no deserto! [sic]

(E. Califourchon)

3.1 – Da Literatura e do Norte

O romance O Cabeleira (1876) foi o mais célebre dos que saíram da pena de

Távora, inaugurando o ciclo de sua produção que ele denominou como sendo da

“Literatura do Norte”, na qual se incluíam O Matuto (1878), Lourenço (1881), O

Sacrifício (1881) e, retroativamente, Um Casamento no Arrabalde (1869). Este último

foi escrito ainda quando o autor residia no Recife, mas foi reeditado posteriormente no

Rio de Janeiro à ocasião da difusão do projeto político-literário do autor, tratamento que

ele previa estender às demais obras de sua juventude.

Foi justamente com o intuito de encetar sua carreira nas letras que Franklin

Távora se mudou com a família para o Rio de Janeiro em 1874, em um movimento

condizente com seu posicionamento de que a atenção da corte estava voltada antes para

si mesma do que para o resto do país. De fato, O Cabeleira e as obras subsequentes que

Távora editou no Rio de Janeiro, incluídas novas tiragens de escritos já publicados em

Pernambuco como o supracitado Um Casamento no Arrabalde, alcançaram um sucesso

que o autor até então desconhecia.

A carta-prefácio d’O Cabeleira endereça diretamente essa questão da

desigualdade no cenário literário nacional, ampliando a discussão para a esfera da

diferenciação da própria formação sócio-histórica entre as porções setentrional e austral

do Brasil, de forma que este preâmbulo se apresenta como uma verdadeira carta-

manifesto de seu projeto político-literário da Literatura do Norte. Na mesma medida, o

prefácio do livro não deixa de guardar uma relação estreita com os temas a serem

explorados nele, configurando-se como uma ferramenta de análise preciosa para a

investigação das categorias mobilizadas ao longo da narrativa e apresentando pontos de

contato relevantes entre o contexto no qual o livro foi escrito, seu conteúdo e a trajetória

do autor.

Gerard Genette, em seu esforço por enumerar as funções do prefácio, apresenta

a função de “definição genérica” como um recurso analítico a partir do qual se pode

analisar o prefácio d’O Cabeleira. Uma extensão da função prefacial de “declaração de

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intenção”, esta se configura como um esforço “[...] rumo a uma caracterização mais

institucional, ou mais preocupada com o campo, temático ou formal, no qual se inscreve

a obra singular” (GENETTE, 2009, p. 199), aparecendo sobretudo “[...] nas épocas de

‘transição’, [...] onde se procura definir esses desvios em relação a uma norma anterior

ainda sentida como tal” (GENETTE, 2009, p. 199).

Notavelmente, Genette afirma que “O prefácio-manifesto pode, enfim, militar a

favor de uma causa mais ampla do que a de um gênero literário” (GENETTE, 2009, p.

202). Esta definição parece corresponder à função divisada por Távora para esse prefácio,

uma vez que, mais do que apresentar a linha de força do projeto tavoreano, o texto que

antecede O Cabeleira delineia toda uma cosmovisão que se realiza ao longo das páginas

do romance, posicionando-se em relação a causas que extrapolam em muito a definição

de uma escola literária.

Távora endereça essa carta que prefacia o livro a um amigo pernambucano

anônimo que reside em Genebra, criando paralelos entre a situação em que ambos se

encontram, longe da terra onde se criaram, e trazendo a partir desse tópico discussões

sobre o espaço e as subjetividades associadas a ele que nortearão seu argumento ao longo

da carta — e também do romance. Ele dá início à carta descrevendo as transformações

atmosféricas que se desfraldam diante de sua janela em sua nova morada, no bairro de

Botafogo, e nota que, passada a tempestade, “[...] o céo mostra-se mais puro e bello, o

mar mais azul, as arvores mais verdes; a viração tem mais doçura, as flôres mais

deliciosos aromas” [sic] (TÁVORA, 1876, p. 5), afirmando em seguida que:

[...] Essa natureza brilhante e movel estava a cada instante convidando o meu

desanimo a romper o silencio a que vivo recolhido desde que cheguei do

extremo-norte do imperio.

Depois de cêrca de dous annos de hesitações, dispuz-me emfim a

escrever estas pallidas linhas — notas dissonantes de uma musa solitaria, que

no retiro, onde se refugiou com os desenganos da vida, não póde esquecer-se

da patria, anjo das suas esperanças e das suas tristezas.” [sic] (TÁVORA, 1876,

p.6)

Nesse pequeno excerto, entrevê-se a estreita relação que Távora estabelece entre

si mesmo e seu fazer literário com a natureza que o cerca e a dor da distância da terra

natal que lhe oprime. Para além do símile que ele estabelece entre as convulsões do clima

carioca e as dificuldades que marcaram sua aclimatação à vida na corte, é notável que o

retiro que o aflige, e que para si equivale ao do amigo estabelecido na Europa, não vai

para além das fronteiras imperiais, estando a pátria da qual ele se sente alheio no Rio de

Janeiro circunscrita a uma porção mesma do território nacional.

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Essas conclusões são reafirmadas nas linhas seguintes, em que o autor afirma ser

chegada a hora de cumprir a promessa feita ao amigo a quem a carta era endereçada e

iniciar a empreitada novelística a que ele se propunha “[...] conforme o permittirem as

minhas forças diminuidas pelo meu afastamento das cousas litterarias de nossa terra” [sic]

(TÁVORA, 1876, p. 6). O livro que daí resulta, primeiro de uma série do que ele propõe

serem “composições literárias, para não dizer estudos históricos” (TÁVORA, 1876, p. 6),

deriva especificamente da história pernambucana, mas seu intuito é que os demais

“estudos” que se seguirão a este:

[..] não se limitarão sómente aos typos notáveis e aos costumes da grande e

gloriosa provincia, onde tiveste o berço.

Pará e Amazonas, que não me são de todo desconhecidas; Ceará,

torrão do meu nascimento; todo o norte emfim, si Deus me ajudar, virá a figurar

nestes escriptos, que não se destinam a alcançar outro fim senão mostrar aos

que não a conhecem, ou por falso juizo a desprezam, a rica mina das tradições

e chronicas das nossas provincias septentrionaes. [sic] (TÁVORA, 1876, p.6-

7).

Assim, estabelece-se desde já que a pátria que Távora canta e da qual sente

saudades não se limita a Pernambuco, mas inclui também as demais províncias do norte

do Império. Esse posicionamento do autor é coerente com a defesa que ele desenvolve

mais adiante sobre as diferenças fundamentais que separariam o sul e norte do Brasil, das

quais ele deriva sua formulação de uma literatura do norte.

Em seu intuito de fazer conhecidas à corte as idiossincrasias do norte do país,

Távora se põe a traçar um breve panorama do que ele julga serem algumas de suas

paisagens mais marcantes. Para tal, ele principia por descrever o encanto do Recife,

capital pernambucana e então centro dinamizador da identidade nortista a que ele

subscreve, como analisado nos capítulos anteriores:

[Genebra] não póde ter a beleza dessa elegante e risonha cidade, que surge

d’entre mangues verdejantes, aguas limpidas, pontes soberbas, e se estende por

sobre vasta planicie, obrigando os matos a se afastarem de dia em dia ao

occidente para ter espaço onde alongue de improviso suas novas ruas, suas

estradas, seus trilhos, testemunhos de sua prosperidade material, comercial e

agricola; onde funde novas escolas e erija novos templos, testemunhos de sua

civilisação e grandeza moral. [sic] (TÁVORA, 1876, p. 7)

O caráter do elogio que Távora faz à cidade é indicativo da perspectiva que ele

adota em relação ao processo de expansão da fronteira do capital posto em prática através

do acúmulo material em fins do século XIX no Brasil, assumindo uma ótica utilitarista

do meio ambiente. Essa concepção é pautada na ideia de que a imposição de uma lógica

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modernizante a esses espaços de fronteira equivaleria a um “progresso” na direção de um

ideal civilizatório ocidental unívoco.

Dessa forma, a subjugação dos espaços ainda não submetidos a essa lógica é

celebrada com a expansão da malha urbana recifense e o consequente avanço da fronteira

continente adentro, paulatinamente apropriando espaços antes tidos como sertões alheios

à ordem civilizada. Essa visão se repete quando, logo em seguida, o autor diz ter visto o

Pará e nele antevisto “as incalculáveis riquezas ora occultas no regaço de um futuro que,

si não annunciou ainda a época precisa de sua realização, não se demorará muito, segundo

se infere do que apresenta, em traduzir-se na mais brilhante realidade” (TÁVORA, 1876,

p. 7).

Mais adiante ele dedica longas passagens à descrição das maravilhas naturais do

Amazonas e da grandiosidade da floresta que o recobre, valendo-se da estética do

sublime, tal como apresentada por Victor Hugo (1827), para narrar a experiência de

vivenciá-la. Ele começa da seguinte forma:

Não ha prodigio que se possa comparar com aquelle no descoberto.

[...] o homem crêa a grandeza ideal, a grandeza physica porém só Deus a

concebe e executa. [...]

Entrando alli, pareceu-me entrar em um templo fantástico e sem

proporções. E’ natural o phenomeno: sempre que nos achamos diante das obras

primas da creaçao, secreto instincto nos adverte que estamos na presença de

Deus. A admiração tem então a solemnidade de um recolhimento e de uma

homenagem. As impressões passam dos sentidos ao fundo da alma onde vão

repetir-se com maior intensidade. Todas as nossas faculdades —a intelligencia,

a imaginação, a propria vontade, deixam-se dominar de uma como volúpia que

não é sensual, mas deleitosa, e grande como é talvez o extase. Ainda quando

tenhamos o espirito cansado dos erros e injustiças dos homens, nós o

sentiremos levantar-se immediatamente cheio de vida diante da representação

enorme, como si elle se achasse em sua integridade virginal. E’ o effeito do

assombro que percorre, como fluido, o nosso organismo, despertando em nós

abruptas sensações que nunca experimentámos, e que são para nós verdadeiros

phenomenos do mundo physiologico. [sic] (TÁVORA, 1876, p. 7).

Nessa passagem, que ainda se alonga por mais páginas a fio, é palpável a

reverência que o autor dispensa a esse quadro da natureza, alçando-o não poucas vezes à

esfera do divino e sublinhando o quão deslocada a humanidade estaria no seio de sua

enormidade. Seguindo-se a esse introito, porém, ele emenda uma consideração que

oferece um contraste marcante com a imagem que ele acaba de apresentar:

— Que não seria deste mundo— pensei eu, descendo das eminências

da contemplação ás planiceis do positivismo, — si nestas margens se

sentassem cidades; si a agricultura liberalizasse nestas planicies os seus

thesouros; si as fabricas enchessem os ares com seu fumo, e nelles repercutisse

o ruido das suas machinas? [sic] (TÁVORA, 1876, p. 11)

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Essa fala de Távora aparenta um suposto alinhamento com uma concepção

predatória da relação do homem com a natureza, indo diretamente de encontro à fruição

e ao arrebatamento que o contato com a natureza oferece sob o ponto de vista do sublime

huguiano expresso anteriormente. Ela remete antes ao que Horacio Machado Aráoz

identifica como uma perspectiva extrativista, que assume os territórios coloniais como

sendo “meros espaços de saque e espólio para o aprovisionamento [das metrópoles

imperiais] (ARÁOZ, 2011, p. 454).

Enquanto esse discurso é fundado a partir de uma lógica colonial, ele se reproduz

e se atualiza historicamente na relação estabelecida entre as economias industrializadas e

os polos exportadores de commodities, remetendo diretamente ao “des(em)cobrimento

do extrativismo como dispositivo colonial do geometabolismo do capital” (ARÁOZ,

2011, p. 454). Desse modo, reafirma-se o quanto a natureza americana, antes assumida

como substrato lírico, aqui se constitui como “matéria-prima da acumulação capitalista

global; prove[ndo] as bases materiais e simbólicas da produção capitalista da Natureza e

da configuração da Natureza como objeto colonial do capital” (ARÁOZ, 2011, p. 454-

455).

A convicção de Távora no caráter iminentemente positivo do triunfo do

“progresso civilizatório” sobre os “desertos”, aqui expresso na conquista do espaço

natural pela técnica, também se estendia à sujeição destes a uma lógica modernizante

totalizadora. Anos antes de escrever O Cabeleira, à ocasião de sua eleição como deputado

em Pernambuco, ele atuou pela reorganização da instrução pública na província,

prevendo “a implementação de princípios reguladores e modernos baseados na liberdade

do ensino” (AGUIAR, 1997, p. 190), a partir de um modelo proposto por Victor Hugo

para o sistema de ensino francês.

Sua defesa desses princípios de baseava na ideia de que toda a província deveria

se submeter às mesmas diretrizes escolares, em um esforço pela democratização do ensino

que trazia em seu seio o pressuposto de que havia um modelo ideal e unívoco a que todas

as diferentes realidades de Pernambuco deveriam aspirar. O excerto abaixo, parte de uma

transcrição de um debate na Assembleia Provincial de Pernambuco, ilustra bem esse

caráter universalizante da proposta:

O Sr. Franklin Távora – [...] peço a liberdade do ensino desde as mais elevadas

até as mais humildes regiões; peço a liberdade do ensino desde a capital da

Província até ao arrabalde; desde o arrabalde até à vila remota; desde a vila

remota até à povoação solitária, perdida nos seios dos matos; desde a povoação

até... o deserto.

O Sr. Lopes Machado – Mesmo no deserto?

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63

O Sr. Franklin Távora – Sim. Mesmo no deserto. Não sabe vossa excelência

que os desertos obedecem a uma tendência natural e providencial de

povoarem-se? Mesmo ali, se instalada uma escola, mais o deserto se povoará.

[...]

O Sr. Ermínio Coutinho – Os desertos povoados deixarão de ser desertos...

(TÁVORA apud AGUIAR, 1997, p. 191-192)

Nesta fala de Távora aparece bem delineado o quanto ele concebia o ensino e

sua democratização como um meio a partir do qual se poderia propagar um esforço

civilizatório, em um movimento que viria a se repetir no romance objeto da presente

pesquisa. Este trecho em específico da eloquente defesa que o autor fez da liberdade do

ensino lhe rendeu uma série de provocações na imprensa pernambucana, em especial a

sarcástica composição em versos que abre o presente capítulo:

Inspira-me, ó grande genio,

Desconhecido á canalha,

Que móras lá no deserto,

Abrigado e bem coberto

Por uma caza de palha24!

[...]

Bonito! orador, bonito!

Tiveste uma grande idea,

Mostraste ser muito esperto.

Haja escolas no deserto,

Já que as tem até a aldea.

Que progresso para o mundo!

Vão as feras para o estudo,

Instruir-se na escriptura,

Vão aprender a leitura

Oh! vão aprender de tudo

[...]

Gloria ao orador sublime!

O seu renome é já certo!

E ha de ter, por seu trabalho,

Sobre um tronco de carvalho,

Uma estatua no deserto! [sic]

(CALIFOURCHON, 1868, p. 1-2)

Se a sua defesa enfática da universalização do ensino foi ridicularizada por seus

adversários políticos quando posta em plenário, o mesmo não ocorreu quando o autor

resolveu tematizá-la no curso de sua carreira de romancista, visto que foi justamente em

sua obra mais perene, O Cabeleira, que esse assunto teve maior desenvolvimento. Em

contrapartida, a imagem de uma estátua no deserto como homenagem dúbia a Távora

acabaria por corresponder tanto à eleição que o autor faria pelos temas “rústicos” na

24 A Casa de Palha (1866) teria sido um dos primeiros romances de Távora, o primeiro que teria tomado

expressamente como tema a representação da sociabilidade tradicional do interior do Norte.

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64

elaboração de suas obras, alçando a representação da sociabilidade tradicional do interior

nortista e uma visibilidade que ela não tinha até então, quanto à falta de reconhecimento

por parte da crítica literária radicada na corte que o autor experienciou em vida.

O argumento central d’O Cabeleira é prenhe da mesma concepção positiva

acerca do exercício de uma lógica modernizante sobre espaços considerados “bárbaros”

que permeia a fala destacada do debate na Assembleia Provincial de Pernambuco. A

tensão entre suas convicções liberais e suas influências românticas é muito característica

da escrita de Távora, como já analisado, e seus desdobramentos na produção do autor vão

além do romance em questão.

Sendo assim, a centralidade que o autor confere à transformação do espaço tanto

pela técnica quanto pela reprodução de práticas sociais “modernas” se faz presente desde

o prefácio. Dando continuidade ao seu descenso “das eminencias da contemplação às

planícies do positivismo”, Távora emenda:

O estado natural, espancado pelas correntes da immigração espontânea que lhe

viessem disputar os domínios improductivos para os converter em magníficos

emporios, ter-se-hia ido refugiar nos sertões remotos d’onde em breve seria

novamente desalojado. Uma face nova teria vindo succeder ao brilhante e

magestoso painel da virgem natureza. Não se mostrariam mais aqui as tendas

negras da fome e da nudez. O trabalho, o capital, a economia, a fartura, a

riqueza, agentes indispensáveis da civilização e grandeza dos povos, teriam

lugar eminente nesta immensidade onde vemos unicamente aguas, ilhas,

planicies, seringaes sem fim. [sic] (TÁVORA, 1876, p. 11).

É dessa forma que ele encerra sua incursão especulativa, perguntando-se por fim:

“Mas por onde ando eu, meu amigo? Em que alturas vou divagando nas azas da

phantasia? [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 11), ao que se encaminha, enfim, à discussão a que

se propunha desde o início. “Venhamos” ele diz, “ao assumpto desta carta [sic]”

(TÁVORA, 1876, p. 11).

A partir daqui, então, é que o prefácio passa a realizar sua função de “definição

genérica” tal como definida por Genette. Após toda essa contextualização preliminar, já

na décima segunda página, Távora brinda o leitor com sua célebre máxima sobre a

espacialização do fazer literário no Brasil, escrevendo que “[a]s lettras têm, como a

politica, um certo caracter geographico; mais no norte, porém, do que no sul abundam os

elementos para a formação de uma litteratura propriamente brazileira, filha da terra” [sic]

(TÁVORA, 1876, p. 12).

Essa é, se não a culminação, a elaboração mais bem acabada até então da questão

central na qual se funda a escrita de Távora. Logo em seguida, ele elabora:

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65

A razão é obvia: o norte ainda não foi invadido como está sendo o sul

de dia em dia pelo estrangeiro.

A feição primitiva, unicamente modificada pela cultura que as raças,

as indoles, e os costumes recebem dos tempos ou do progresso, póde-se

affirmar que ainda se conserva ali em sua pureza, em sua genuina expressão

[sic] (TÁVORA, 1876, p. 12).

A demanda que o perseguia desde a publicação d’Os índios do Jaguaribe (1862)

e que orientou sua atuação política desde os tempos de bacharel até a sua carreira como

editor, articulista e renomado polemista finalmente toma forma aqui como um problema

mensurável tanto temporal quanto espacialmente, fruto de processos sócio-históricos que,

dentro da lógica interna do autor, acomodavam-se confortavelmente à sua visão de

mundo. Mais do que isso, a identificação do que ele considerava a problemática

fundacional da literatura — quando não de toda a sociedade — brasileira oferecia para

Távora uma forma de enfrentamento tangível que vinha ao encontro daquelas que sempre

foram suas aspirações: a pesquisa historiográfica sobre a cultura nortista e a exaltação

literária desses traços culturais.

Em estudo sobre a Literatura do Norte de Távora, Eduardo Vieira Martins

compara o prefácio d’O Cabeleira à “Benção Paterna” de José de Alencar, preâmbulo

para o romance Sonhos d’Ouro (1872) no qual o autor cearense expõe seu próprio projeto-

político literário (MARTINS, 2008, p. 2-3). Ele também percebe a divisão da literatura

nacional entre Norte e Sul como uma reminiscência do pensamento de Madame de Stäel,

que divide de igual maneira a literatura europeia entre uma literatura do sul, “[..] clássica,

iluminada pela luz clara do Mediterrâneo e que lançava suas raízes na antiguidade greco-

romana”, e uma do norte, “[...] romântica, marcada pelas brumas da Escócia e da

Alemanha, cujas raízes remontavam, não à Antiguidade, mas à Idade Média e ao universo

da cavalaria”, divisão derivada de uma concepção da literatura “[...] como uma espécie

de organismo vivo, conformado pelo ambiente geográfico e cultural onde floresce,

concepção que também se encontra no horizonte de Távora” (MARTINS, 2008, p. 3).

Seriam sua “natureza magnificente e primorosa”, sua “história tão rica de feitos

heroicos” e seus “usos, tradições e poesia popular” (TÁVORA, 1876, p. 12) que

caracterizariam a superioridade relativa da Literatura do Norte frente à dita “Literatura do

Sul” no que tange à sua expressividade como propriamente brasileira. A despeito disso,

a defesa da Literatura do Norte, a qual ele acredita ser antes um edifício a ser construído

do que uma obra acabada (TÁVORA, 1876, p. 12), era uma bandeira a ser levantada em

função das determinantes históricas que conduziram a matriz literária brasileira a ser

irradiada a partir do Sul, levando inclusive à identificação de literatos nortistas,

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66

nomeadamente, José de Alencar (TÁVORA, 1876, p. 13), com um fazer literário

considerado por Távora como sendo estranho ao próprio Brasil, pois pautado em

estrangeirismos.

Daí deriva uma preocupação do autor em sopesar sua crítica em função de

possíveis tons veladamente separatistas em suas palavras, tema particularmente sensível

face às seguidas insurreições provincianas experienciadas ao longo do período imperial.

Ele afirma, em tom conciliatório:

Não vai nisto, meu amigo, um baixo sentimento de rivalidade que

não aninho em meu coração brazileiro. Proclamo uma verdade irrecusável.

Norte e sul são irmãos, mas são dous. Cada um ha de ter uma litteratura sua,

porque o genio de um não se confunde com o do outro. Cada um tem suas

aspirações, seus interesses, e ha de ter, si já não tem sua politica [sic]

(TÁVORA, 1876, p. 13-14).

O fato mais notável em relação à elaboração de Távora é o que ele defende ser

o que configuraria o “gênio” do Norte, diferenciando-o do Sul. Esse verdadeiro genius

loci do Norte faria referência à “feição primitiva” que este teria retido, feição essa passível

de modificação somente pelo “tempo” e pelo “progresso”, em um processo que já teria

ocorrido no Sul e assim custado sua identidade propriamente brasileira.

Esse ato de reivindicar um estigma imposto a si, ressignificando-o enquanto

signo fundacional de sua identidade, é um processo descrito por Bourdieu como sendo

característico da formulação de identidade regionais (BOURDIEU, 1992, p. 125), e

antecipa um movimento que seria consagrado pela tradição literária regionalista nas

décadas seguintes, não se dando, porém, sem suas próprias contradições internas. Isso

porque, ao longo da narrativa, como também já previamente exposto em trechos extensos

da própria carta-prefácio e dos discursos do autor nos autos da Questão da Liberdade de

Ensino, a defesa de Távora é justamente pela superação dessas condições materiais que

caracterizariam o Norte tal qual ele o celebra.

Se o que o autor supunha que se sucederia ao aporte técnico e ideológico do

modelo capitalista na região seria uma síntese dialética entre uma expressão ainda

tipicamente regional e os louros do “progresso” que ele almejava, a tendência

homogeneizante do capital e a história trágica da incorporação e manutenção dessas áreas

de fronteira provariam o contrário. No romance, entretanto, esses tensionamentos

delineiam situações interessantes a serem apreendidas sob uma perspectiva histórica, o

que se dará a seguir.

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67

3.2 – Mise-en-scène para uma história pernambucana

Se o prefácio prefigura muitos dos tópicos centrais do romance, o primeiro

capítulo d’O Cabeleira os expõe exemplarmente, a que se deve o seu exame detido. Nele

se dá a contextualização geo-histórica do livro, são introduzidas algumas das principais

personagens e, sobretudo, são estabelecidas algumas das dicotomias estruturantes da

narrativa, o que leva Cristina Bertioli Ribeiro a afirmar que “[o] primeiro capítulo [...] se

poderia chamar, retoricamente, de exórdio do romance” (RIBEIRO, 2008, p. 110).

Logo nas primeiras linhas já salta aos olhos a execução de seu objetivo confesso,

a exaltação da história de Pernambuco, a qual “offerece-nos exemplos de heroismo e

grandeza moral que podem figurar nos fastos dos maiores povos da antiguidade sem

desdoural-os [sic]”, ao que complementa não serem “estes os unicos exemplos que

despertam nossa attencao sempre que estudamos o passado desta illustre província [sic]”,

o “berço tradicional da liberdade brasileira” (TÁVORA, 1876, p. 15), tal como defendido

pelo autor.

Entretanto, a história que Távora se dispõe a contar não é a de um dos heróis

desse passado ilustre. Nestas páginas, ele narra a história de um daqueles que ele

considera serem

[...] vultos infelizes, em quem hoje veneraríamos talvez modelos de altas e

varonis virtudes, si certas circumstancias de tempo e lugar, que decidem dos

destinos das nacoes e ate da humanidade, nao pudessem desnaturar os homens,

tornando-os acoites das gerações coevas e algozes de si mesmos. Entra neste

numero o protagonista da presente narrativa, o qual se celebrizou na carreira

do crime, menos por maldade natural, do que pela crassa ignorancia que em

seu tempo agrilhoava os bons instinctos e deixava soltas as paixoes cannibaes

[sic] (TÁVORA, 1876, p. 16).

Há, portanto, uma preocupação com o resgate da memória dessa personagem

histórica, ainda que controversa, do passado pernambucano. É interessante pensar no

tratamento que Távora dá à figura do Cabeleira, como um homem cuja potência

excepcional foi transviada pelas circunstâncias, em paralelo com o seu posicionamento

em relação ao Norte e sua decadência.

A despeito de seu valor inerente, ambos teriam sido condenados pela conjuntura

na qual foram inseridos, mas seriam redimidos aos olhos da história pela arte. Fosse em

sua consagração pelos versos da musa popular ou pela pena de Távora.

Em função disso, a reconstituição dos fatos que compõem a narrativa, que se

propõe um romance histórico, se alicerça “[n]a tradição oral, [n]os versos dos trovadores

e [em] algumas linhas da historia que trouxeram seu nome aos nossos dias envolto em

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68

uma grande lição [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 16). O historiador que Távora referencia no

posfácio do livro é José Bernardo Fernandes Gama, autor dos quatro tomos das Memórias

Históricas da Província de Pernambuco (1844-1848), as quais tratam da figura histórica

do Cabeleira no último destes, em trecho transcrito no posfácio do romance de Távora

(Cf. GAMA, 1848, p. 360-361; TÁVORA, 1876, p. 306-307).

É interessante que no referencial histórico acionado por Távora, o Cabeleira é

identificado como sendo o pai, que compunha um trio com seu filho e Theodosio. O

próprio autor, no entanto, rebate essa hipótese baseando-se nos versos das trovas

populares a que ele remete ao longo do romance, citando aqueles nos quais Cabeleira é

apresentado em companhia de seu pai, e não de seu filho (TÁVORA, 1876, p. 307).

Cristina Ribeiro entende que, assim procedendo, Távora dá mostras de que “[a]

faceta folclorista do autor [...] confia na tradição oral como fonte superior ao registro

histórico (RIBEIRO, 2008, p. 117). O tratamento que Távora dá às fontes da tradição

popular, alçando-as ao patamar dos documentos históricos a que também remeteu em sua

pesquisa, é característico da verve folclorista que o autor cultivava e que posteriormente

resultaria na publicação de sua compilação de Lendas e Tradições Populares do Norte na

revista Illustração Brasileira, entre janeiro e junho do ano seguinte.

Fazendo-o, o autor assume o caráter pedagógico — diga-se, moralizante — das

cantigas centradas no Cabeleira, um bom menino transviado por uma má educação, a fim

de derivar paralelos com questões políticas e filosóficas prementes em seus próprios dias,

como a influência do meio sobre o homem, a questão da pena de morte, a manutenção

estrutural da pobreza e a responsabilização do Estado pela educação da população.

Dessa forma, a história deste “[...] como Cid, ou Robin-Hood pernambucano”

(TÁVORA, 1876, p. 16) tem seu valor atrelado antes à sua imagem como contraexemplo

ou pela sua derradeira contrição no fim da vida do que por uma identificação popular de

que tenha gozado em função dos atos moralmente ambíguos que o celebrizaram. Nestas

primeiras páginas, entretanto, qualquer valor heroico que ele venha a apresentar não

transparece, e o que se narra é um audacioso roubo orquestrado e executado pelo

Cabeleira, seu pai, e seu parceiro de crimes Theodosio.

A caracterização das personagens se dá primeiramente a partir de uma

perspectiva racial, sendo o pai do Cabeleira “[...] um mameluco por nome Joaquim

Gomes, sujeito de más entranhas, dado á pratica dos mais hediondos crimes [sic]”

(TÁVORA, 1876, p. 17) e Theodosio “[...] um pardo [...] que primou na astucia e nos

inventos para se apossar do que lhe não pertencia [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 17). Já a

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69

descrição da compleição do Cabeleira, como se verá mais adiante, muda ao sabor da

variação da moralidade de suas ações e do seu estado de espírito, a despeito do fato dele

ser reiteradamente referido como sendo um “matuto”.

Enterrados na mata, seu território por excelência em função de sua condição

marginalizada em relação à sociedade, os três bandidos arquitetam um assalto à então vila

do Recife, partindo na sua direção em seguida. Daí sucede que:

A’ noticia da sua approximacao a maior parte dos moradores, deixando os

povoados, então muito fracos por não terem ainda a densidão que so um seculo

depois tornou alguns deles respeitaveis, emigrou para os matos, unico abrigo

com que lhes era permitido contar, embora se achassem a poucas leguas do

Recife [sic] (TÁVORA, 1876, p. 18).

Essa passagem contém em si o primeiro exemplo de uma marcada clivagem

entre os espaços narrativos que se reafirma ao longo da trama. Cabeleira e seus

comparsas, emergindo dos matos, ameaçam com a sua aproximação os moradores do

povoado que, buscando segurança, embrenham-se naqueles mesmos matos de onde seus

algozes vieram.

O que é digno de nota não é o abandono de suas habitações, fato explicado pelo

autor como resultante da insegurança decorrente da dispersão populacional característica

da época, mas que os moradores dos povoados optem pela fuga em direção à mata a

despeito da proximidade que guardavam com a vila do Recife. Os matos eram o único

abrigo com que lhes era “permitido” contar, fosse pela vila lhes ser interditada em função

de sua condição social ou pela proximidade relativa ainda maior que guardava com suas

casas.

O fato é que se sublinha aqui uma maior aproximação dessas populações

campesinas, nem propriamente rurais e nem efetivamente urbanas, com a natureza

indomada em detrimento da urbe. À dualidade estruturante da narrativa, que é expressa

pelo binômio civilização x barbárie em suas mais variadas materializações e acepções,

impõe-se uma gradação em nível espacial.

Márcia Naxara chama a atenção para a variedade de sentidos comportada na

ideia de campo/natureza/interior/sertão. Segundo a autora:

Há o campo ocupado pelo homem [...], onde este imprimiu seu trabalho,

modificando a natureza; há o intermediário sertão, lugar que não é

propriamente um lugar, é móvel, na fronteira entre o civilizado e o não-

civilizado; há imensos domínios que são só a natureza, virgem, tropical,

intocada pelo homem (NAXARA, 2004, p. 33).

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Estas categorias, a despeito de não serem necessariamente universais como

representação das nuances dessa dualidade, servem para orientar um olhar dedicado a

perceber as minúcias de sua representação espacial. Dessa forma, as divisões espaciais,

ou topos, que se impõem à análise do romance em questão parecem ser a princípio a

cidade, enquanto manifestação da civilização, do que é associado ao litoral e à ordem; as

matas, o domínio da natureza indomada, o sertão onde se embrenham os elementos à

margem da sociedade; e o campo, das pequenas povoações, da zona da mata

pernambucana, caraterizado por uma ordem social difusa e uma natureza domesticada,

espaço de contato à margem e na fronteira daqueles outros espaços.

Eduardo Vieira Martins já antecipava em parte essa espacialização aqui proposta

ao identificar o Cabeleira como “[p]ersonagem telúrica” (MARTINS, 2008, p. 13) em

função de sua associação com o sertão pelo qual transita. Entende-se que essa estreita

relação entre o protagonista e o seu meio percebida por Martins é um elemento

fundamental da constituição da trama do romance, e elemento indissociável da

caracterização das demais personagens que nela transitam.

A este trecho do livro de Távora, tão breve quanto elucidativo, segue outro que

também ilustra bem alguns dos demais temas recorrentes ao longo do romance, além de

reforçar a divisão espacial da narrativa tal como exemplificada na análise do excerto

anterior. Neste momento da ação, os três malfeitores já se encontravam nas imediações

da vila do Recife e se preparavam para dar início à sua empreitada:

Sentaram-se no adro da capella de taipa que fôra ahi levantada por Henrique

Dias, para recordar aos vindouros que nesse lugar tivera elle o seu posto militar

pelas guerras da restauração. Esse posto era d’entre todos o que ficava mais

vizinho ao inimigo. Eloquente testemunho da bravura do troço da gente preta

a quem a patria reservou distincta menção nas maiores paginas da historia

colonial. [sic] (TÁVORA, 1876, p. 18-19).

A referida capela, que consta ter constituído a estrutura original da Capela de

Nossa Senhora de Assunção, cognominada Igreja de Nossa Senhora das Fronteiras e

tombada como patrimônio cultural brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Artístico e

Histórico Nacional (IPHAN), encerra em si uma série de significações interessantes.

Henrique Dias foi um célebre militar negro a quem foram conferidos títulos de fidalguia

em função de seu protagonismo na Restauração Pernambucana, tendo a capela que ergueu

nos limites de suas terras sido continuamente mantida e frequentada por comunidades

negras do entorno do Recife e pelas tropas do Regimento de Henrique Dias que, a

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71

exemplo dos demais batalhões militares formados por soldados negros até a

Independência do Brasil, eram simplesmente referidos como “Henriques”25.

Este breve tangenciar histórico, um dentre muitos que abundam ao longo do livro

em extensões por vezes muito maiores, é um recurso que o autor emprega tanto para situar

geográfica e historicamente o leitor familiarizado com o passado pernambucano quanto

para publicizá-lo ao leitor que o desconheça. Para além disso, essas frequentes incursões

históricas empreendidas pelo autor frequentemente põem em relevo paralelos entre o

passado colonial, particularmente do tempo do domínio holandês e da consequente

insurreição pernambucana, com o tempo em que se passa a narrativa, no século XVII, e

a própria época do autor, cem anos depois dos eventos narrados n’O Cabeleira.

Desse fato deriva que a permanência de objetos como a Igreja de Nossa Senhora

das Fronteiras na paisagem pernambucana evidencia o caráter transtemporal da trama,

caráter este intrínseco à própria paisagem, que é para Milton Santos “um conjunto de

objetos reais-concretos” que junta “objetos passados e presentes, uma construção

transversal” (SANTOS, 1997, p. 67). Desse modo, a paisagem corresponderia às formas

concretas do mundo material, e o espaço ao sistema de ações, à função que uma

determinada sociedade confere ao sistema de objetos correspondente à paisagem, de tal

maneira que:

O espaço é sempre um presente, uma construção horizontal, uma situação

única. Cada paisagem se caracteriza por uma dada distribuição de formas-

objetos, providas de um conteúdo técnico específico. Já o espaço resulta da

intrusão da sociedade nessas formas-objetos. Por isso, esses objetos não

mudam de lugar, mas mudam de função, isto é, de significação, de valor

sistémico. A paisagem é, pois, um sistema material e, nessa condição,

relativamente imutável: o espaço é um sistema de valores, que se transforma

permanentemente (SANTOS, 1997, p. 67).

Assim, no pensamento do autor, “[...] paisagem e espaço são sempre uma espécie

de palimpsesto onde, mediante acumulações e substituições, a ação das diferentes

gerações se superpõe” (SANTOS, 1997, p. 67). Por isso ele considera que “O espaço

constitui a matriz sobre a qual as novas ações substituem as ações passadas. É ele,

portanto, presente, porque passado e futuro” (SANTOS, 1997, p. 67).

25 Sobre a história da Igreja de Nossa Senhora das Fronteiras e seu fundador Henrique Dias, Cf.

<http://www.ipatrimonio.org/recife-igreja-de-nossa-senhora-das-fronteiras/#!/map=38329&loc=-

8.05863000000001,-34.89686700000001,17>

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72

Nesse jogo complexo de planos temporais que se intercruzam no espaço em que

o romance se desenvolve, a Igreja de Nossa Senhora das Fronteiras, então capela de taipa,

demarca tanto no passado colonial quanto no tempo narrativo o limite da jurisdição de

uma ordem oficial, de caráter nacional e militar no passado,

urbana/litorânea/civilizacional n’O Cabeleira, em ambas encarnando a própria fronteira

que leva no nome. Ela corresponde ao que Santos denomina como “rugosidade”, ao que

“[...] fica do passado como forma, espaço construído, paisagem, o que resta do processo

de supressão, acumulação, superposição, com que as coisas se substituem e acumulam

em todos os lugares”. (SANTOS, 1997, p. 92).

Esses objetos compõem uma parte considerável do cenário em que se desenvolve

a trama, exemplificando a máxima de Santos de que “[e]m cada lugar, pois, o tempo atual

se defronta com o tempo passado, cristalizado em formas”, configurando aquilo que ele

considera ser um caráter de “inércia dinâmica do espaço”. (SANTOS, 1997, p. 92). Ainda

sobre a igreja, mas para além de sua significação espacial, alguns dos descendentes de

Henrique Dias assumem papéis relevantes no desenrolar da trama, fazendo-o de uma

maneira que ecoa os fatos heroicos de seu antepassado ao mesmo tempo em que constitui

uma crítica à situação social nos tempos de Távora, como se verá mais adiante.

Uma vez sentados no adro da significativa capela, Theodosio se separa de

Cabeleira e do seu pai para preparar o roubo que planejam, e eles decidem se reunir mais

tarde sob uma ponte que se erguia sobre o rio Capibaribe, onde se cometerá o crime. Ao

entardecer, pai e filho tomam o rumo do ponto de encontro, e, enquanto passam pelas

casas da vila, o autor dubiamente grafa que “Em torno dellas [as casas] o deserto

começava a augmentar antes de por-se o sol [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 21).

O roubo se realizaria em função de uma grande festa organizada para aquele dia,

o primeiro domingo de dezembro de 1873 (dia 4), em que se celebrava a recente expulsão

dos jesuítas de Portugal e suas colônias por intermédio do papa Clemente XIV26. O evento

26 Expoente da polêmica da Questão Religiosa, Távora não se furtou ao paralelo que os fatos narrados

ofereciam à sua própria experiência. Nas notas que encerram o livro, ele afirmou que “Não é de data

moderna o sentimento pernambucano em desabono dos padres jesuitas que ainda ultimamente foram

mandados sahir de Pernambuco por acto do governo provincial com approvação do governo geral. Já em

1773 a villa se illuminára para solemnizar a extinção dessa companhia. Assim a manifestação de regozijo,

com” que a capital de Pernambuco solemnizou em 1873 o centenario da promulgação do breve Dominus-

ac-redemptor, não foi outra cousa que a repetição do que um século antes havia praticado o Recife [sic]”

(TÁVORA, 1876, p. 309-310).

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seria sediado sobre a ponte, conglomerando um grande público e oferecendo aos bandidos

a oportunidade de atingir o seu intento.

Essa ponte, à época da história chamada de Ponte do Recife, congrega níveis de

significação sobrepostos ainda mais diversos do que a já exaustivamente referida capela.

Tal qual esta, o caráter histórico da ponte é ressaltado pelo próprio autor em sua descrição

da estrutura:

No lugar onde hoje existe a formosa ponte Sete-de-setembro que

liga o bairro do Recife ao de Santo-Antonio, via-se nessa epoca uma ponte de

madeira, a qual fora mandada construir em 1737 sobre os solidos pilares de

pedra e cal da primitiva ponte, obra de Mauricio de Nassau, por Henrique Luiz

Vieira Freire de Andrade, um dos governadores que mais honrada e benemerita

memoria deixaram de si em Pernambuco.

Era uma rica construccao, nada menos do que uma rua suspensa

sobre as aguas do rio Capibaribe, que passa ahi reunido ao Beberibe, depois de

um curso de oitenta léguas por entre matas, por sobre pedras e ao pé de

pittorescas villas, povoações e arrabaldes [sic]. (TÁVORA, 1876, p. 22).

A obra, portanto, remete ao período da ocupação holandesa, sendo originalmente

construída com pedra e madeira em 1644; tendo passado por reformas estruturais

extensivas em 1683 e 1742 (não 1737, como referido pelo autor no romance); sendo

posteriormente substituída em 1865 por uma estrutura de ferro e sendo rebatizada como

Ponte 7 de Setembro; e, finalmente, passando por uma reconstrução completa com

concreto armado e sendo reinaugurada sob o nome de Ponte Maurício de Nassau,

adquirindo sua feição atual, em 191727. A imagem evocada por essa ponte erigida sobre

os alicerces deixados pelos holandeses, sobretudo levando-se em conta a posição pioneira

de Távora e seus colegas da União do Norte em prol da exaltação do período batavo, é

tão poderosa quanto provocante.

Em par com essa centralidade do aspecto histórico da estrutura, Távora lança luz

sobre o processo de perda que se efetivou em relação a esse patrimônio da história de

Pernambuco. Ele diz:

Destas obras com que dotou Pernambuco o genio desse illustre governador,

não resta hoje o menor vestigio. Tudo desappareceu, tudo, até as arcadas

hollandezas que ainda alcancei. O monumento das idades é mais depressa

destruido pelos homens do que pelo tempo, esse consumidor que, com ser

voraz, não deixa de respeitar a obra da virtude. (TÁVORA, 1876, p. 23)

27 Sobre a precisão das datas e demais informações sobre a ponte, Cf. FRANCA, R. O Capibaribe as Pontes

In. Monumentos do Recife. Recife: Secretaria de Educação e Cultura, 1977, p. 17-18.

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74

É patente o quanto o tema da ufania do glorioso passado perdido é desenvolvido

pelo autor, e o quanto ele se estende a toda a prosperidade da província pernambucana e

os demais territórios do Norte. A frase que encerra o excerto acima, entretanto, parece

apontar em certa medida para uma reparação dessa decadência pela memória histórica, a

qual, se não é capaz de reconstruir o que foi perdido, pode reconstituí-lo e consagrá-lo

eternamente aos olhos da posteridade.

No plano narrativo, o fato dessa literal “rua suspensa” se equilibrar sobre o rio

Capibaribe, eixo estruturante da então província e hoje estado de Pernambuco e cordão

umbilical que liga as praias recifenses ao sertão profundo do interior, cria um contraste

explícito entre a dualidade civilização x barbárie que estrutura a trama. O próprio fato de

o rio constituir-se como o eixo central — se não a própria espinha dorsal — a partir da

qual se delimita e articula o território da então província e hoje estado de Pernambuco

traz em si um tensionamento da natureza dessa identidade pernambucana que se apresenta

continuamente na medida em que a trajetória do protagonista pela província nunca dista

do rio, como não poderia deixar de ser; um tensionamento que ecoa a própria valoração

que Távora faz da personagem do Cabeleira.

Soma-se a essa interpretação o fato de que Cabeleira e os seus articulam sua ação

justamente a partir do rio Capibaribe, mais uma vez evidenciando uma separação espacial

bem demarcada entre as diferentes esferas de ação das personagens, com o rio servindo

como — ironicamente — “ponte” entre o espaço de exceção à margem da sociedade em

que o Cabeleira vive, na mata, e a sociedade oficial e ordeira que floresce sobre a ponte

propriamente dita. Sob seus pés pairam, ameaçadoras, as águas inelutáveis do rio que, ao

mesmo tempo em que definem territorialmente aquelas que constam oficialmente como

sendo as suas fronteiras, as da província, se lhes apresentam como uma manifestação

incontornável do avesso de sua civilização.

Enfim chegados ao centro da ação, Cabeleira e o pai são prontamente

reconhecidos e forçados a se defender. O povo, apavorado, foge de ambos “como rebanho

apavorado pela presença das onças” (TÁVORA, 1976, p. 28), ao que Joaquim exclama

“— Sim, é o Cabeleira, gente fraca. Elle não vem só, vem seu pai também [sic]”

(TÁVORA, 1976, p. 28), ecoando uma trova popular28 a que o autor recorre como forma

de autorizá-la como fonte de reconstituição histórica.

28 Corram, minha gente,

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75

Aqui se dá a primeira mostra da decência inata do Cabeleira. Seu pai, agitado,

desfere uma cutilada no primeiro transeunte que passa, ao que o rapaz questiona,

indignado, a necessidade do ato de violência.

Joaquim, cujas “baixas paixões” cresceram “[...] á sombra da ignorancia, da

impunidade e das florestas [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 29), retruca perguntando se o

Cabeleira tinha medo, e incita-o a agir a partir do seu exemplo. Movido pelas palavras do

pai, o jovem lança-se também à carnificina.

Assim, estabelece-se já aqui como a conduta imoral do protagonista é franqueada

pela influência negativa do pai, fato detidamente desenvolvido no quarto capítulo do

romance. A essa altura do livro, a violência que os congêneres perpetravam contra a

população recifense faz com que, em um movimento de quase retorno às pulsões de um

instinto primitivo, as pessoas se atirassem no rio para escapar aos seus algozes, o que só

cessa quando eles são abordados pelas tropas dispostas a lhes fazer frente.

É assim que os próprios bandidos empregam o mesmo recurso de suas vítimas,

lançando-se às águas do Capibaribe para escapar à lei e buscar abrigo no seio da natureza

selvagem. Uma vez em seus próprios domínios, eles se veem livres do jugo das

autoridades e encetam novas maquinações contra a ordem estabelecida.

Os capítulos seguintes do livro dão conta do aprofundamento da descrição das

normas sociais e veredas desses espaços de exceção em que o Cabeleira circula, ao mesmo

tempo em que apresentam a complexificação da caracterização da personagem, a qual

ocorre a par de seu percurso pela província. As categorias explicitadas neste primeiro

momento são ampliadas e desafiadas, preservando, contudo, a constância da

indissociabilidade entre a dimensão espacial do romance e o desenvolvimento da

narrativa e seu protagonista, o que se verificará a partir de um exame, enquanto menos

detido nos pormenores de cada passagem quando comparado a essa análise do primeiro

capítulo, igualmente atento às categorias esboçadas nessa leitura das páginas inaugurais

do livro.

Cabeleira ahi vem;

Elle não vem só,

Vem seu pai também [sic] (TÁVORA, 1976, p. 28).

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Capítulo 4 – Por uma leitura através do espaço

Só o deserto lhe appareceu, menos vago, mais real com sua taciturna immensidade, só

o deserto lhe respondeu com a mudez do descampado, das selvas profundas, e das

aguas mortas. [sic] (Franklin Távora)

4.1 – Uma pena molhada em sangue

Finda a ação descrita no primeiro capítulo, o trio de bandidos se dirige à casa do

taverneiro Thimoteo, homem que atuava como intermediário no contrabando de

mercadorias roubadas, para tratar da venda dos espólios conseguidos no assalto recente.

A moradia de Thimoteo era também seu ponto de negócios, funcionando como um

entreposto para aqueles e os demais fora-da-lei que atormentavam então a província, ao

passo que ela é descrita a certa altura do romance como:

[...] ponto obrigado das relações da capital com o centro [de operações dos

bandidos], quér fosse de dia quér de noite, assim de inverno como de verão,

tinham eles [os bandidos], como elle próprio [Thimoteo], grande interesse,

sinão maior do que elle tinha, em conservar, defender, amaparar esse poderoso

ponto de apoio para os seus dolos, violencias e infames ciladas de que era

victima o matuto simplorio, o sertanejo de boa fé, o mascate, emfim quem quer

que passava por aquella infernal estancia. [sic] (TÁVORA, 1876, p. 186).

A despeito dessa relação simbiótica firmada entre os malfeitores e o taverneiro,

expressa em função do papel de mediador a que o estabelecimento deste último se

prestava nas relações assimétricas estabelecidas entre o litoral e o sertão no romance, um

episódio do passado do Cabeleira ilustra a desproporcionalidade que também permeia o

vínculo entre seus pares e Thimoteo. Quando contava pouco menos de dezesseis anos,

ainda sem as madeixas que lhe valeram sua alcunha e apresentando uma “côr terrena e

pálida29 [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 45), o Cabeleira, então apenas José Gomes, surrou até

a morte a companheira do taverneiro, Chica, a troco de um desentendimento de pouca

29 Távora emprega essa curiosa escolha de palavras para apresentar o jovem Cabeleira, as mesmas com as

quais Luís de Camões descreve o gigante Adamastor, do Cabo das Tormentas, no verso 44 do Livro V de

seu épico Os Lusíadas (1572). No episódio referido do poema de Camões, o gigante encarna a natureza

terrível e indomada a ser superada pelos heróis portugueses, sendo a travessia das águas do sul da África

em que ele habita, tanto no plano ficcional quanto no histórico, um atestado da vitória desses navegadores

sobre os elementos e uma manifestação emblemática do sucesso da empresa colonial lusitana. A

transposição desses adjetivos para a personagem homônima d’O Cabeleira pode sugerir uma aproximação

por parte de Távora desse Cabeleira jovem, inconsequente e no pleno gozo de suas capacidades de infligir

uma violência gratuita e tremenda sobre seus semelhantes com a natureza terrível representada por

Adamastor na obra do escritor português.

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importância, fato a que Thimoteo testemunhou resignado, ainda que contrariado, e o qual

ele se veria obrigado a relevar nos tratos futuros com o bandido.

Na descrição dessa cena, ele é retratado como alguém que, apesar da pouca

idade, já era experimentado no uso da violência e na carreira de crimes. Essa condição é

explicada através do enfoque em uma ação que se desenrola ainda antes, na infância do

Cabeleira, em uma composição que expressa muitas das concepções de Távora sobre a

relação do homem com o meio.

Nessa ocasião o Cabeleira era ainda mais jovem, com apenas sete anos de idade.

No cenário disposto por Távora, o menino José Gomes se via dividido entre a influência

benigna da mãe, Joanna, uma mulher pia de quem teria herdado “[...] um natural brando

e um coração benevolo [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 69), e o contraexemplo de Joaquim,

seu pai, o qual desde cedo tentava dessensibilizar o garoto para os ensinamentos da esposa

e incutir nele o costume e o gosto pela prática da violência.

Mesmo que “[p]ela sua organização, pelos seus predicados naturaes, o Cabeleira

não est[ivesse] dedicado a ser o que foi [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 72), por fim “[o]s

máus conselhos e os pessimos exemplos que lhe foram dados pelo desnaturado pai

converteram seu coração, acessivel, em começo, ao bem e ao amor, em um musculo

bastardo que só pulsava por fim a paixões condemnadas [sic] (TÁVORA, 1876, p. 72).

Assim, pai e filho deixam para trás a mãe e dão início à sua carreira de crimes, que se

torna progressivamente mais hedionda e lhes granjeia uma reputação temível por toda a

região.

A constituição do caráter do Cabeleira, que derivaria desse embate dos pais pela

educação do filho, seria alvo de extensos debates entre os pesquisadores que se dedicaram

a estudar o livro de Távora. Há um consenso em torno da noção de que aqui, o autor

parece derivar suas noções sobre determinismo social e histórico de Hyppolyte Taine, que

no prefácio de sua Histoire de la littérature anglaise (1863) situa na tríade “raça,

momento e meio” os fatores que explicariam o desenvolvimento humano.

No entanto, há pesquisadores que defendem que a apropriação dessa teoria ao

longo do romance não parece obedecer a uma lógica consistente. Fernando Cerisara Gil,

em sua profunda análise d’O Cabeleira, questiona a validade do próprio tema central do

romance a partir do tratamento dispensado por Távora à questão.

Ele afirma haver uma incoerência na exposição dos elementos que

determinariam o caráter pernicioso do Cabeleira e de seu pai. Enquanto o protagonista

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78

tem sua maldade apresentada como sendo derivada da sua criação em um meio que o

predispôs ao crime, Joaquim Gomes

[...] é feroz e sanguinário por natureza e hábito, incorporando em si o gênio da

destruição e do crime, ou seja, seus atos brutais de violência e banditismo

constitui [sic] a “essência” mesmo do seu ser. A maldade seria intrínseca à sua

“personalidade” e ao seu “caráter”. Tudo começa e termina no próprio âmbito

do personagem, tornando-se esse a expressão manifesta do crime e da

destruição (GIL, 2020, p. 175).

Para Gil, a apresentação da maldade do pai como uma tendência inata de seu

caráter iria de encontro ao argumento da determinação pelo meio estabelecido na

exposição sobre a infância do Cabeleira. Assim, tal disposição dos fatos parece ao autor

comprometer o que se delineara até então no romance, e que viria reiterado mais à frente

no mesmo, como condição explicativa do desvio de caráter das personagens.

Cristina Bertioli Ribeiro, por sua vez, em seu seminal Um Norte para o Romance

Brasileiro (2008), entende que a caracterização do pai de José Gomes remete à associação

feita por Cesare Lombroso entre fisiologia e crime em seu influente L'uomo delinquente

(1876) (RIBEIRO, 2008, p. 115; 184). A ideia de Lombroso era que a partir de certas

características físicas seria possível determinar uma predisposição a comportamentos

socialmente nocivos por parte de indivíduos que ele caracteriza como sendo “criminosos

natos”.

Em conformidade com aquilo exposto por Ribeiro, Anita Moraes, em análise

sobre a dicotomia entre civilização e barbárie no romance, ressalta como Joaquim é “[...]

baixo, corpulento e desarmonioso nas formas;” e a sua “[...] bestialidade é denunciada

pelo desajeitado físico” (MORAES, 2006, p. 125). Entretanto, a autora vai além,

recuperando passagens do texto que apontam para o fato de que

Joaquim, “gênio da destruição", não deixa, por sua vocação ao mal, de ser

vítima. Regido por “baixas paixões”, “que à sombra da ignorância, da

impunidade e das florestas haviam crescido sem freio e lhe tinham apagado os

lampejos da consciência racional que todo homem traz do berço” [TÁVORA,

1876, p. 29], sua disposição ao mal foi exacerbada pelas circunstâncias, por

viver imerso na barbárie. No seio da civilização, sua consciência encontraria

abrigo, possibilidade de se desenvolver (MORAES, 2006, p. 125-126).

Dessa forma, Moraes compreende que a disposição das informações no romance

aponta para o fato de que a constituição do caráter da personagem não prescinde do meio

no qual ele está inserido. Ademais, o destaque dado por ela e Ribeiro ao aspecto físico do

pai do Cabeleira como denunciante da sua malícia parece apontar antes a uma

materialização da referida circunstância de imersão na barbárie expressa racialmente.

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Joaquim, referido como mameluco, tem a descrição de sua pessoa e de suas ações

sempre associada ao campo semântico da escuridão, do negro e do selvagem, enquanto

no extremo oposto sua esposa, Joanna, de “natural brando” e “coração benévolo”,

conquanto não seja descrita em detalhes para além dos “[...] cabellos que haviam de todo

embranquecido [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 296) em função do sofrimento pelo destino do

filho, é definida pela sua devoção religiosa e retidão moral, em paralelo a Luizinha,

sucintamente descrita como “menina branca” (TÁVORA, 1876, p. 89). O próprio

Cabeleira é ora referido como sendo matuto ou de face escura quando cometendo

iniquidades, mas tem sua pele descrita como branca após arrepender-se de seus crimes.

Diante do exposto, e também em função do fato de que as ideias de Lombroso

só foram divulgadas em livro no mesmo ano de publicação d’O Cabeleira, o que parece

determinar em última instância o caráter das personagens é essa clivagem fundamental

entre civilização e barbárie, expressa espacialmente na narrativa através do binômio

litoral e sertão e assumida em paralelo a uma classificação racial eurocêntrica. Dessa

forma, os elementos que constituem textualmente o caráter das personagens no livro ainda

parecem subscrever-se de certa maneira à tríade taineana.

Essa conclusão vai ao encontro do pensamento de Ribeiro, que aponta ser o

Cabeleira, dentro daquilo disposto por Távora, um “[...] produto da conjunção de uma

raça ‘selvagem’ (índio) com uma raça ‘civilizada’ (branco-europeu), afetado pela pobreza

e pelo meio inóspito e primitivo (sertão e zona da mata pernambucana), num momento

histórico ainda não alcançado pelo progresso” (RIBEIRO, 2008, p. 111), sinalizando a

interseção entre a raça, o meio e o momento na composição da personagem. Ademais, a

questão do momento histórico “ainda não alcançado pelo progresso” levantada pela

autora suscita questões próprias acerca das normas sociais que regulavam esse contexto

no qual se dá a gênese do Cabeleira.

À ocasião do aliciamento do jovem José Gomes para a prática do mal, Joaquim

expõe uma lógica singular que explica seu proceder. Em diálogo com a esposa sobre o

filho, ele diz:

— Hei de ensinal-o a ser valente. Ha de aprender comigo a jogar a

faca, a não desmaiar diante de sangue como desmaias tu, mulher sem espirito

que não tens animo para matar um bacorinho. Não sabes que o assassino é

respeitado e temido? Queres que não haja quem faça caso de teu filho?

(TÁVORA, 1876, p. 78-79).

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Em seguida, o menino chora em função das atitudes que Joaquim espera dele. O

pai lhe impõe: “— Não quero que chores. Quem é homem não chora; quem é homem faz

chorar” (TÁVORA, 1876, p. 79).

A violência aparece, aqui, como uma forma de afirmação do indivíduo do sexo

masculino frente à sociedade. Mais do que isso, nesse meio em que eles transitam, no

qual não só a autoridade estatal se insinua de maneira tímida e ineficaz, mas os próprios

elementos que compõem os construtos sociais do litoral são abalados, o exercício da força

se traduz como a principal linguagem a partir da qual se estabelecem as relações

interpessoais.

Mais adiante, ao presentear o filho com seu primeiro punhal, o pai do Cabeleira

lhe diz: “Sabes para que fim te dou este ferro, José? E’ para não soffreres desaforo de

ninguem, seja menino ou menina, homem ou mulher, velho ou moço, branco ou preto o

que te ofender [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 83). Nessa fala, a violência toma forma como

um verdadeiro nivelador social nesse meio marginalizado do sertão, o que é denotado

também em outras passagens do romance.

Outro exemplo disso é a cena centrada em Gabriel, negro livre cujo irmão

conhecera José Gomes na infância e em função disso lhe tinha simpatia. Ele avisa os

malfeitores da aproximação de um destacamento de tropas para prendê-los, e em

retribuição tem seu cavalo roubado por Cabeleira e seu pai.

Confrontado pela atitude dos dois, Gabriel tenta contornar a situação

tratando-os por “meus brancos” e demonstrando cortesia e submissão. Entretanto, quando

ameaçado pelo Cabeleira, ele se arma de uma faca e se apronta para o combate, dizendo:

“— Si quer brincar na ponta da faca, meu branco, a cousa é outra, e vosmecê encontra

homem [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 65).

Gabriel trava duro combate com o Cabeleira, mas é morto por um tiro de

Joaquim quando tentava escapar da luta parelha. A despeito de sua morte, é somente

através da violência que ele se exprime em pé de igualdade com seus interlocutores, ao

passo que, enquanto o trato entre eles se dava ainda pela via do diálogo, sua relação se

estabelecia a partir de uma hierarquia racial que se impunha a despeito de sua condição

de homem livre.

Também a composição e a organização do bando ao qual o Cabeleira, Joaquim

e Theodosio pertencem exprimem perfeitamente a ideia da violência como nivelador

social no romance. Instalado profundamente nas matas, esse grupo diversificado no qual

se contavam marginais das mais diferentes origens, idades e cores, é retratado

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confabulando sobre suas próximas empreitadas criminosas de maneira horizontal e

ordenada — uma democracia representativa e racial às avessas no coração do sertão.

Ribeiro nota que a forma como esse bando é apresentado “[...] reforça a hipótese

de que tais grupos criminosos podiam funcionar como atrativos aos excluídos da ordem

social e como meio de sobrevivência e nobilitação pessoal” (RIBEIRO, 2008, p. 112). E

é justamente nesses excluídos que se centraliza a ação do romance, aqueles que Gil

intitula de “a arraia-miúda do período colonial” (GIL, 2020, p. 174).

O crítico também desenvolve longamente essa noção do papel social da violência

na narrativa. Gil entende que esse fato não se limita ao romance de Távora, mas também

caracterizaria outros romances da época que tematizavam o meio rural, visto que:

A violência, como ‘forma rotinizada de ajustamento nas relações sociais’ está

presente das maneiras mais variadas neste romance e em outros romances

rurais. Mas o que se destaca no de Franklin Távora é a conjugação de dois

fatores que parecem funcionar como catalisadores, exacerbando a presença da

brutalidade. Por um lado, a dimensão ficcional relativamente autônoma do

mundo dos homens livres pobres sugere poder encenar uma única forma de

ação, que é a da brutalidade. Como se no mundo social por onde estes

personagens transitam, sem proprietários e com uma ordenação social muito

difusa, a anomia fosse a única regra possível. Por outro lado, tal anomia, bem

como a violência de que ela se reveste, tem um espaço social bem delimitado,

que é o mundo rural (GIL, 2020, p. 74).

Assim, o sertão, bem como as personagens que nele transitam, apresenta-se

como um espaço regido por regras próprias e opostas à do litoral, ou, como exposto por

Fernando Gil, por uma total ausência de regras, uma verdadeira anomia na qual os

indivíduos se impõem a partir da lei do mais forte. Sobre essa representação da

sociabilidade sertaneja, o pesquisador ainda afirma que “[...] o espaço que informa o

romance rural e as relações sociais que ali se encenam acabam por constituir o âmbito de

explicitação da brutalidade de nossa formação histórica” (GIL, 2020, 74).

Esse caráter de explicitação da violência histórica da formação nacional

brasileira, toma vulto com os descendentes do já referido Henrique Dias que aparecem na

trama. O primeiro deles, Gabriel — em um paralelo explícito com as condições nas quais

os negros livres se encontravam após serem libertos de sua condição da escravização —,

desencadeia o combate no qual acabaria morto ao exclamar ao Cabeleira e seu pai que

lhe roubavam o cavalo e o mandavam calar-se em função de sua cor: “— Sim, eu sou

negro, é verdade; mas os brancos tomam-me o que é meu, e deixam-me sem caminho

nem carreira, com uma mão adiante e a outra atraz [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 65).

O destino da família de seu irmão Liberato, que concentra na trama os demais

membros da estirpe de Henrique Dias, é igualmente desolador. Ainda que livres em

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função da condição de fidalgo e herói de seu antepassado ilustre, eles experienciavam

uma “omnimoda servidão [sic]” (TÁVORA, 1876, P. 113) por viverem segregados em

uma propriedade margeada pela vegetação densa tendo por vizinhos somente os

malfeitores entocados na mata, os quais vinham rotineiramente roubar-lhes a propriedade

e os frutos de seu trabalho.

Já contrariados pela contínua extorsão de seus bens e alienação produtos dos

seus esforços, eles são levados à ação contra os bandidos ao saberem da morte de Gabriel,

vindo a organizar uma expedição ao seu covil oculto nas matas para vingar o assassinato

do parente. Entretanto, os descendentes de Henrique Dias são delatados e, apesar de

infligirem pesados danos ao bando do Cabeleira, todos os homens da família são mortos

em combate, enquanto as mulheres perecem em um incêndio perpetrado pelos bandidos

em retaliação ao ataque liderado por Liberato.

Na altura do livro em que esses acontecimentos são descritos, o narrador, sempre

dado a intromissões, faz uma ressalva em relação à natureza sensível desse conteúdo. Ele

escreve:

Não é sem grande constrangimento, leitor, que a minha penna,

molhada em tinta, graças a Deus, e não em sangue, descreve scenas de estranho

cannibalismo como as que nesta historia se lêem. [...] desgraçadamente estas

scenas não são geradas pela minha phantasia. São factos acontecidos ha pouco

mais de um seculo. Si só alguns delles foram recolhidos pela historia, quasi

todos pertencem á tradicção que nol-os legou, antes como limpido espelho, que

como tenebrosa noticia do passado. Nao estou imaginando, estou, sim,

recordando; e recordar é instruir, e quasi sempre moralisar. Com estas razões

considero-me justificado aos teus olhos, leitor benevolo. [sic] (TÁVORA,

1876, p. 145-146).

O intuito dessa de Távora com essa intrusão é, tal qual na maior parte das demais

instâncias em que ele se vale desse recurso, reafirmar o caráter moralizante do seu

empreendimento literário em face da violência extrema da qual ele lança mão na

construção de sua narrativa. Não só isso, mas ele também justifica que o teor violento

dessas cenas se faz presente por elas serem pretensamente derivadas de acontecimentos

reais do passado, de forma que remeter a esses fatos, por mais cruentos que sejam, teria

um valor pedagógico que se sobreporia ao constrangimento do escritor em expô-los.

Ainda nessa mesma extensa intervenção da voz narrativa, é denotado mais uma

vez o teor determinista da retórica tavoreana. Em trecho que antecede as últimas linhas

do excerto acima, lê-se:

Eu vejo nestes horrores e desgraças a prova, infelizmente irrecusavel, de que o

ente por excellencia, a creatura fadada, como nenhuma outra, para altissimos

fins, póde cahir na abjecção mais profunda, si o afastam dos seus summos

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destinos circumstancias de tempo e lugar que, nada, ou muito pouco valendo

por si mesmas, são de grande peso para a perturbação do equilibrio moral do

rei da creacão, tal é a fragilidade da realeza, ou antes das realezas humanas

[sic] (TÁVORA, 1876, p. 145).

O relevo dado ao fator mesológico na constituição do “equilíbrio moral” remete,

mais uma vez, à ideia da determinação do caráter pelo meio. É digno de nota que a

insistência de Távora nessa relação entre o indivíduo e o contexto no qual ele está inserido

é repisada não somente no curso dos acontecimentos do romance, mas, sobretudo, nessas

copiosas digressões às quais o autor se entrega ao longo do livro.

Anita Moraes compreende que essas ostensivas intervenções da voz narrativa

que enchem as páginas d’O Cabeleira caracterizam o que Mikhael Bakhtin chama em seu

Problemas da Poética da Dostoiévski (1981) de “romance monológico”, no qual o

narrador sobrepõe-se às personagens, constantemente exprimindo juízos de valor sobre a

narrativa e enviesando sua leitura (Cf. MORAES, 2006, p. 127, 129). Fernando Gil, cuja

tese defendida em sua análise sobre O Cabeleira é justamente de que este e os demais

romances que ele categoriza como “rurais” seriam fundamentalmente definidos por uma

“duplicidade constitutiva” entre a feição social do narrador e a matéria narrativa, também

chama atenção para as características dessa voz narrativa intrusiva, defendendo que,

como matriz discursiva, o

narrador ostensivo é a dominante do romance rural. Um narrador que se

poderia chamar de narrador hipertrófico. Com isso quer-se referir à presença

excessiva, muitas vezes desmedida e desproporcional do narrador com relação

aos outros elementos de composição (personagens, relatos de ação, processos

descritivos etc.). Ele contém o narrador intruso, aquele que comenta ou opina,

mas o ultrapassa. Daí também por que o chamamos de autor-narrador. (GIL,

2020, p. 56)

Assim, Gil entende que o uso desse narrador hipertrófico, noção proposta por

Antonio Candido em “A literatura e a formação do homem” (2002), seria uma ferramenta

de autores de romances rurais como Távora para amenizar esse distanciamento

fundamental entre a matéria rural sobre a qual versavam e sua prosa. Também é possível

que, no caso específico d’O Cabeleira, sua constituição como manifesto da Literatura do

Norte e narrativa moralizante convirjam também para que o autor-narrador se faça tão

presente ao longo do romance.

Se Távora faz questão de explicitar tanto quanto possível suas intenções com a

escrita do romance e os seus posicionamentos acerca das temáticas que o rodeiam através

de uma voz narrativa ostensiva, sua condução do romance pela própria prosa, quando

despida dessas intervenções diretas, é quase tão eloquente quanto suas digressões. Ao

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descrever as paisagens que servem como pano de fundo da ação narrativa, mas que

transcendem simbolicamente sua significação como mero cenário, ou dar voz própria às

personagens em seu falar característico e expressar suas revoluções internas por

metáforas elaboradas, Távora deixa entrever um sistema complexo de significações que

compõem uma ótica particular sobre os elementos — históricos, geográficos, filosóficos,

teológicos e sociológicos — que ele mobiliza nesse romance.

A organização desse sistema n’O Cabeleira parece obedecer a uma já referida

divisão espacial entre os elementos que estariam alinhados à ideia de civilização e aqueles

correspondentes à barbárie — a repisada dicotomia entre litoral e sertão. Entretanto, o

ponto de contato entre esses espaços, na narrativa, a zona da mata pernambucana, oscila

entre esses dois polos opostos de influência, constituindo-se de certa forma como uma

zona de transição onde essas duas realidades conflitantes se entrecruzam.

No romance, o recorte espacial da zona da mata parece equivaler ao que se toma

exemplarmente pelo meio rural, o campo, meio por onde a “arraia miúda do período

colonial” transita em suas pequenas povoações, nas lavouras e nas usinas onde trabalham.

Nesse meio caminho entre as luzes da cidade e as sombras das matas, personagens tão

diversas quanto o pai e a mãe do Cabeleira tomam vulto, cada qual pendendo em sua

formação a favor de um dos extremos absolutos que regem a construção da narrativa.

É nesse frágil equilíbrio que se firma a tradição cultural que Távora pretende

celebrar nas páginas de seu romance. Se nesse espaço muitas vezes se impõe uma anomia

que espelha a lei das selvas que margeiam esses campos de uma natureza domesticada, é

também na contínua luta pela manutenção da existência desse entreposto de civilização

no interior da província que reside o drama das personagens vitimadas pelo Cabeleira.

A exaltação feita por Távora é a esse modo de vida tradicional, traduzida nas

páginas do romance na nostalgia por um passado no qual essa ruralidade — situada pelo

autor como base da identidade brasileira — ainda não estava em vias de se perder. A

centralidade dada ao reverso desse passado idealizado, o sanguinário Cabeleira, serve

antes, como já exposto, para reforçar a importância dessa formação moral rural e

tradicional que lhe foi negada pelo pai.

É justamente “para grande lição da sociedade do futuro” que José Gomes,

comparado por Távora a um “cometa que abrasava a terra”, “[...] percorreria a vastíssima

orbita que a Providencia lhe traçara, e se afundaria nos espaços, não entre refulgentes

auroras, mas dentro de profundas e medonhas escuridões [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 95).

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Dessa trajetória e dos sentidos atribuídos a ela pelo autor, importa muito a definição dos

espaços percorridos pelo cometa que foi o Cabeleira.

4.2 – Medonhos sertões, medonhos sarcófagos

Nesses anos em que o Cabeleira e o pai passaram “metidos no ôco do mundo

[sic]” (TÁVORA, 1876, p. 86), Luizinha cresceu à sombra das histórias contadas sobre

os feitos do pai e do filho. Adotada pela viúva Florinda e criada de acordo com “[...] a

educação que então se usava e que, com poucas modificações, e alguns acrescentamentos,

ainda hoje se usa no campo” (TÁVORA, 1876, p. 88), a menina cresceu para tornar-se o

perfeito exemplo da retidão moral que se esperava de uma jovem de sua posição simples.

Paralelamente, uma série catastrófica de acontecimentos se abatia sobre a

província de Pernambuco. No ano durante o qual transcorre a maior parte da narrativa,

1776, cem anos antes da publicação do romance, uma das secas mais severas até então

assolava a região, a de 1776 a 1778.

A tematização literária do fenômeno da seca remete ao surgimento da “literatura

das secas”, o tradicional nicho de romances voltados à representação das estiagens severas

que afligem a população sertaneja, os quais se multiplicaram nas últimas décadas do

século XIX em função da comoção nacional em torno dos efeitos da Grande Seca que se

estendeu de 1877 a 1880.

Fernando Cristóvão (1994) propõe que essa abundância de produções literárias

que tematizam o sertão a partir da seca configurariam o início de um período que se

estenderia até as primeiras décadas do século seguinte no qual o discurso literário sobre

o sertão se daria predominantemente a partir de sua representação como um “inferno”.

Esse período contrastaria com o anterior, que vigorava desde os tempos coloniais e se

reafirmava particularmente durante o auge do romantismo, correspondendo ao da

representação do sertão como um “paraíso”, e antecederia uma abordagem mais matizada

e reflexiva que o autor associa particularmente à obra Grande Sertão: veredas (1956),

configurando um sertão tomado como “purgatório”.

No período relativo à predominância de sua representação como um “inferno”,

o sertão é apresentado como um meio corrompedor dos homens em função da brutalidade

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dos flagelos naturais e sua consequente pobreza material. Ele seria, assim, um duplo

distorcido do Brasil dos grandes centros litorâneos.

A publicação do romance O Cabeleira (1876), antecede em um ano os eventos

que deflagraram esse novo paradigma literário na representação do sertão. Entretanto, o

livro de Franklin Távora não só apresenta uma construção discursiva sobre o sertão

análoga àquela que Cristóvão identifica como sendo a do período de representação desse

espaço como um “inferno”, mas o faz a partir da ambientação da trama em um

Pernambuco assolado pelos efeitos da seca.

Mesmo assim, em determinados momentos do romance o sertão não parece

restrito a essa feição, com determinadas passagens sugerindo uma coexistência pacífica

do homem com uma natureza luxuriante que estaria mais próxima de sua representação

como “paraíso”. Da mesma forma, na altura do romance em que o protagonista transpõe

o sertão “inferno”, aquele efetivamente hostil e flagelado pela seca, ocorre um processo

que parece configurar uma transposição, também, da condição infernal daquele espaço,

de forma que ele passa a se configurar como algo mais identificado com o que Cristóvão

dispõe como sendo um sertão como “purgatório”.

A coexistência simultânea dessas categorias discursivas a princípio

inconciliáveis n’O Cabeleira não nos parece desqualificar a formulação de Cristóvão por

si só, caracterizando antes um desafio à ideia de que ela possa se impor como uma

generalização totalizante. O próprio autor, no desenvolvimento de suas ideias, ressalta o

quanto essa divisão estritamente periodista não se sustenta como um absoluto, destacando

a título de exemplo excertos d’Os Sertões (1902) de Euclides da Cunha, a princípio a obra

que cristaliza o entendimento do sertão como “inferno”, em que o autor descreve cenas

verdadeiramente paradisíacas em sua caracterização da paisagem sertaneja, valendo-se

inclusive do adjetivo em questão para fazê-lo (Cf. CUNHA, 2019, p. 114).

O Cabeleira de Távora é referido no texto do pesquisador português como uma

das obras inauguradoras desse período de representação do sertão como

predominantemente infernal, mas o tratamento dado a esse espaço no romance em sua

interrelação com o desenvolvimento da narrativa parece sugerir que ele transcende essa

caracterização como meramente “infernal”. Assim, partindo do questionamento da

validez desses conceitos não como chaves de leitura, mas enquanto categorias

engessadas, procura-se estabelecer um diálogo com Cristóvão a partir da subversão que

o próprio romance faz de suas ideias.

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Essa seca retratada nas páginas d’O Cabeleira sobreveio após uma devastadora

epidemia de varíola e coincidiu com a conscrição dos homens sadios da província pelas

tropas destinadas a lutarem na fronteira meridional do país, configurando um “tríplice

flagelo” (TÁVORA, 1876, p. 179) ao qual se somou o consequente recrudescimento das

atividades do temido bando de malfeitores do Cabeleira. “A’ guerra”, lê-se, “seguiu-se a

peste, e a peste a fome [sic]”, (TÁVORA, 1876, p. 179).

Nesse contexto de hecatombe, em que cada flagelo encontra paralelo com um

cavaleiro do apocalipse e o Cabeleira faz as vezes da Morte, Luizinha e os demais

moradores do interior pernambucano ainda tentavam arrancar seu sustento da terra. É por

conta da seca que, certo dia, a menina vai buscar água longe da povoação, em um poço

num braço de rio distante de sua casa, e acaba no limiar das suas terras com a mata virgem.

A descrição do poço ressalta o aspecto de fronteira que ele assume na narrativa.

Távora escreve que “De um lado o terreno elevava-se gradualmente, e accidentava-se

mais adiante, formando zig-zagues quasi inacessiveis e esconderijos escuros, a que a

espessura das arvores dava um aspecto medonho [sic]”, enquanto que “Do lado opposto

a margem plana, igual e descampada, formava com a banda fronteira um admiravel

contraste [sic] (TÁVORA, 1876, p. 96-97)”.

O “admirável contraste” ressaltado pelo próprio autor parece configurar a

separação mesma entre um espaço transformado pelo trabalho, o meio rural de onde vem

Luizinha, e o sempre “medonho” e “escuro” sertão que oculta perigos dos mais diversos.

Em análise desse trecho, Eduardo Vieira Martins também percebe que

O que chama a atenção na descrição do poço é o aspecto simbólico

das suas margens: de um lado, a trilha errática e moralmente errada que conduz

a esconderijos escuros e medonhos; do outro, o terreno plano e descampado

que conduz à povoação. A primeira é a margem dos bandidos, que deixaram

os caminhos retos e corretos, trilhados pelos sertanejos de bem, e se

aventuraram pelo crime; a segunda, ainda que destruída pela seca, que lhe

confere aspecto aterrador, é a margem da ordem e das relações normais,

margem da povoação, de Luisinha, Florinda e Joana, triste mãe do Cabeleira

(MARTINS, 2008, p. 12).

É também notável nesse cenário a presença do rio, elo constante entre os

diferentes topos da narrativa e recurso sempre acionado à ocasião da travessia das

personagens entre um desses espaços e o outro. Por isso mesmo, quando Luizinha se põe

a pegar água nesse braço de rio, ela tem seu reencontro com José Gomes, tornado agora

Cabeleira.

Ao deparar-se com a menina, e sem reconhecê-la, o Cabeleira tenta arrastá-la à

força para o mato, exatamente no momento em que aparece Florinda, mãe adotiva da

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jovem, a quem o bandido prontamente agride e deixa sem sentidos. Em seus protestos

contra os procedimentos de José Gomes, Luizinha faz-se reconhecer pelo outro, de forma

que ele se constrange e a deixa ir sem lhe fazer mal.

A partir desse encontro começa a operar-se no Cabeleira uma transformação,

pois ele começa a questionar a moralidade de suas ações e a ansiar por sua redenção aos

olhos de Luizinha. Como aponta Fernando Gil, “Luísa funciona como espécie de

duplicação da imagem materna no que ambas representam de bondade, de virtude e

desprendimento humanitário cristãos”, e

Muito mais do que o amor romântico, ela, assim como Joana, incorpora a figura

feminina que atua na transformação purificadora e remissiva do protagonista.

Espécie de retorno à inocência perdida o qual somente sugere ser possível se

operado pelo contato e pela intermediação da figura feminina. Essa se torna a

ponte de passagem da “maldade” e da brutalidade do presente à tentativa

salvação e purificação no futuro. Assim, figura feminina e virtudes, de corte

religioso, se plasmam e se confundem num todo com tamanha força que se

tornam o elemento fundamental para a mudança do Cabeleira, que é o da sua

retirada da bandidagem (GIL, 2020, p. 176).

Confrontado com o reflexo inverso de si representado pela menina, o

protagonista resolve por abandonar seus modos violentos em favor da postura pacífica

apregoada por Luizinha, por quem sua paixão de infância havia reacendido. Seu encontro

com ela ocorrera perto do covil de seus companheiros e na mesma ocasião do ataque de

Liberato contra eles, de forma que Luizinha, desamparada, fugira para a casa da família

do descendente do Henrique Dias que seria alvo da retaliação dos bandidos dentro em

pouco.

Quando seus companheiros atearam fogo à casa da família de Liberato, o

Cabeleira fez frente aos demais bandidos e resgatou Luizinha, pretendendo embrenhar-se

com sua amada no sertão profundo. Agindo assim, supunha internar-se “[...] d’onde era

impossivel desentranhal-o por serem então, como são ainda hoje, quasi de todo

desconhecidos esses medonhos sertões [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 216).

Sua intenção era fugir para além dos domínios de todos os homens, fossem eles

agentes da ordem estabelecida ou do crime organizado do qual antes fazia parte. Sua

presunção era tal que:

Parecia-lhe que ninguem, nem a justiça dos homens nem a de Deus,

na qual desde os mais verdes annos o tinham ensinado a não acreditar, teriam

poder para arrancal-o desse sombrios e protectores esconderijos, dessas grutas

insondaveis, perpetuamente abertas ás onças e a elle, perpetuamente fechadas

ao restante dos animaes e dos homens que não se animavam a transpor-lhes o

escuro limiar com receio de ficarem sepultados para sempre em tão medonhos

sarcophagos [sic] (TÁVORA, 1876, p. 217-218).

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Este sertão “medonho” em questão corresponde a uma porção de terra

interiorana de uma continentalidade muito mais profunda, àquela efetivamente calcinada

pela seca — o Alto Sertão, tal como caracterizado por Távora, o “pleno deserto”

(TÁVORA, 1976, p. 218). Na travessia ao interior dessa terra, o Cabeleira guiava-se pelo

leito do rio Tapecurá, tributário do rio Capibaribe, transpondo mais uma vez um recorte

espacial bem delimitado por uma via fluvial.

Nesta ocasião, o rio opera em dois sentidos diversos e complementares, tanto

como ponte entre dois topos distintos, o sertão e o alto sertão, como em paralelo à

travessia do rio Estige, o rio que separava a terra dos mortos daquela dos vivos na

antiguidade clássica, uma vez que Cabeleira chegava a um sertão diverso daquele em que

circulara até então, um que se apresentava diante de si como um “sarcófago”. Se os efeitos

da estiagem já se haviam feito sentir do litoral ao coração da zona da mata pernambucana,

ali a paisagem fora transfigurada a ponto de tornar-se inabitável.

Ao menos assim ela o era para o agora transfigurado Cabeleira. Em sua fuga,

eles se deparam com uma roça que viceja em meio à ruína e a qual o Cabeleira tensiona

assaltar, mas Luizinha veta a tomada do alimento alheio pela força, o que faz o bandido

questionar a sensatez de seus votos recém-contraídos de mansidão.

Igualmente incapaz de produzir prodígio igual em função de sua incapacidade

de trabalhar a terra, resultado de sua criação voltada à espoliação dos bens dos outros,

Cabeleira não encontra modos de subsistir nesse espaço que antes lhe parecia ser seu por

excelência. Sem meios para garantirem seu sustento nesse ambiente hostil, o protagonista

e Luizinha percorrem a esmo o deserto agreste.

São nessas condições que as personagens se encontram ao se depararem com uma

cruz à beira da estrada que Cabeleira reconhece como o túmulo de um mercador

assassinado tempos atrás por ele próprio em um assalto. Estando então, como disposto

pela pena do autor, “[s]uperexcitado pela falta de alimentação, pelo cansaço da jornada,

pelo calor do dia, pelas recordações que o affligiam de envolta com o remorso incipiente

[sic]” (TÁVORA, 1876, p. 238), o protagonista vê aparecer diante de si o espectro do

morto, o que o faz confrontar definitivamente a natureza criminosa de seu caráter e

arrepender-se de seus atos, levando-o a prostrar-se diante da cruz e renunciar, enfim, à

violência que guiou seus atos por toda a vida.

É este evento que encima o que parece configurar a passagem da representação

do sertão como “inferno” àquela mais associada ao “purgatório”, uma vez que a travessia

do Alto Sertão como um todo, esse sertão tornado verdadeiro inferno calcinado pela seca,

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suscita uma transformação profunda no âmago do Cabeleira. A resolução da tensão que

se revelou ao protagonista através desse périplo, entre os vícios de sua vida pregressa e a

promessa de redenção pelo exemplo de Luizinha, dá-se pela via da contrição.

A revolução interna que se opera no Cabeleira só foi tornada possível diante de

sua impossibilidade de subsistir naquele espaço tanto pelo emprego da força quanto pela

transformação do espaço pelo trabalho. Assim, esse impasse, e consequentemente sua

superação, tem sua raiz justamente na ressignificação da relação do Cabeleira com esse

recorte espacial imposta pela sua travessia nas condições dispostas pela influência de

Luizinha, as quais, enfim, triunfam sobre o protagonista.

Essa jornada de transformação alimentada por um processo de autorreflexão e

descobrimento, além de corresponder aos paradigmas dispostos por Cristóvão para a

composição de um sertão apresentado como “purgatório”, também se associa a uma

tradição literária mais avoenga — o tema da catábase. Recorrente em textos clássicos de

matriz greco-romana, a catábase trata da descida de um herói aos infernos em busca de

redenção ou conhecimentos de outra maneira ocultos sobre o futuro, o mundo ou si

próprio, resultando no engrandecimento do herói face às adversidades que ele encontra

no caminho (FERNANDES, 1993).

Exemplos célebres são as jornadas pelo submundo de Orfeu, Héracles, Odisseu

e Eneias, cada qual empreendendo essa viagem com fins distintos. As descidas infernais

de Odisseu e Eneias são as que encontram maior símile com a travessia do sertão realizada

pelo Cabeleira.

As cenas em questão descritas no romance de Franklin Távora não

compreendem, por suposto, uma descida literal aos infernos tal qual aquelas

protagonizadas pelas figuras supracitadas. Pelo contrário, o movimento em direção ao

interior do país configura geograficamente, a rigor, uma subida, ou uma anábase, um

deslocamento que usualmente se refere ao avanço de tropas continente adentro, no jargão

coetâneo desses textos clássicos (FERNANDES, 1993, p. 347).

A despeito desse descompasso aparentemente fundamental, a jornada do

Cabeleira não deixa de guardar paralelos com essas narrativas no plano simbólico, ao que

concorrem as formulações da pesquisadora Rachel Falconer (2001) sobre a dimensão

eminentemente alegórica dessas viagens catabáticas. Em seu esforço pelo emprego do

tema da catábase no entendimento do conjunto da obra do autor Salman Rushdie, a autora

escreve que:

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Na descida ao submundo, o protagonista é forçado para fora de uma via de

desenvolvimento histórica e cronológica e descende rumo a um mundo

temporalmente suspenso. [...] Após uma série de testes físicos e espirituais, o

protagonista alcança o ponto mais profundo de sua jornada. Aqui, no que pode

ser tido como o “ponto zero” ou “de conversão” da jornada, o herói confronta

o mal supremo ou a face de Deus, ou os dois (FALCONER, 2001, p. 470,

tradução nossa).30

Sobre a possibilidade de uma jornada catabática que prescinda de um

deslocamento espacial necessariamente descendente rumo a um plano de existência

estritamente místico, Falconer defende que quaisquer deslocamentos em um plano

ficcional que operem um processo tal qual o descrito acima, ao menos metaforicamente,

“[...] implica[m] uma conversão ou uma transformação a partir de um eixo vertical de

valor” (FALCONER, 2001, p. 472, tradução nossa).31 Dessa forma, emerge a

possibilidade de entendimento do tema da catábase a partir de sua dimensão metafórica.

Em um trabalho que dialoga com essa leitura de Falconer, o dinamarquês Bent

Sørensen tenta sintetizar esse entendimento menos atrelado a uma descida aos infernos

literal do que à dimensão subjetiva da experiência esboçado pela autora através da

categoria de “catábase horizontal” (SØRENSEN, 2005, tradução nossa)32. Ele o faz com

o intuito de aplicar esse conceito à trama do romance Meridiano de Sangue (1985), de

Cormac McCarthy33.

Assim, é justamente a essa “catábase horizontal” que se recorre para

compreender a interrelação entre o espaço narrativo d’O Cabeleira, o deslocamento do

protagonista homônimo pelos diferentes espaços que compõem a trama e a transformação

de seu caráter. A apresentação que o próprio autor do romance faz à guisa de introdução

da personagem, caracterizando-a como um herói antes pelo caráter extraordinário de seus

feitos do que pela dimensão benéfica ou edificante destes (Cf. TÁVORA, 1876, p. 16),

aproxima-o da noção de um herói tal como aqueles dos textos da antiguidade greco-

30 No original: “In the descent to the underworld, the protagonist is forced out of a historical,

chronological path of development and driven downward into a temporally arrested world. […] After a

series of spiritual and physical tests, the protagonist reaches the lowest point of his journey. Here, at what

might be termed the journey’s ‘conversion’ or ‘zero point,’ the hero confronts either the ultimate evil, or

the face of God, or both”. 31 No original: “[...] entails a translation or transformation on a vertical axis of value”. 32 No original: “horizontal katabasis”. 33 Outros estudos que se valem do tema da catábase como chave de leitura de obras literárias modernas

incluem “O Regresso ao Ramalhete” (1983), análise de Maria Leonor Carvalhão Buescu sobre o capítulo

final do romance Os Maias (1988), de Eça de Queiroz, e “O Ano da Catábase de Ricardo Reis: um topos

homérico no romance de José Saramago”, de Luís Ricardo Duarte (2019), trabalho sobre O Ano da Morte

de Ricardo Reis (1984), de José Saramago.

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romana em detrimento do protótipo heroico moderno, o que autoriza ainda mais essa

leitura da obra ancorada na atualização de um tema literário clássico.

Recuperando a já referida aproximação feita por Távora nas primeiras páginas

do romance entre o Cabeleira e outras históricas figuras de moralidade dúbia,

nomeadamente El Cid e Robin Hood, o protagonista homônimo de seu romance aparece

como um “herói-bandido”, nos termos de Cristina Bertioli Ribeiro, cuja “[...] carreira do

crime [...] funciona como um caminho tortuoso para o destaque e o reconhecimento

público” (RIBEIRO, 2008, p. 119). É também sob este prisma que Ana Márcia Alves

Siqueira estuda a constituição heroica do Cabeleira em sua tese de doutoramento (Cf.

SIQUEIRA, 2007).

O que diferencia a leitura de Ribeiro é que ela defende que Cabeleira se aproxima

antes dos “antigos heróis gregos” do que dos exemplos de “ladrões nobres” históricos aos

quais Távora compara seu protagonista, justamente por não ser movido por “causas

nobres” como estes, sendo na verdade, a exemplo dos heróis gregos “[...] mais

identificado com os ímpetos demolidores do que com o senso de virtude e justiça”

(RIBEIRO, 2008, p. 121). Dessa forma, ela propõe que, numa leitura do romance que o

tomasse em paralelo aos modelos clássicos, “[...] o momento [de transfiguração moral do

Cabeleira] poderia ser comparado ao do ‘reconhecimento’ e da ‘peripécia’, elementos

trágicos que desencadeiam mudança de fortuna no percurso do herói (RIBEIRO, 2008, p.

120)”.

Em relação aos paralelos do percurso catabático do herói tavoreano com os de

seus precedentes greco-romanos, destaca-se o intercurso de Eneias e Odisseu pelo

submundo em busca de respostas a seus dilemas terrenos. Eneias, procurando visões de

um futuro que justificasse os suplícios e perdas aos quais ele e seu povo se submeteram

para cumprir os desígnios de seus deuses, assim como meios de reafirmar a validade de

sua posição como representante dos seus para si mesmo, desce aos infernos.

Enquanto Eneias efetivamente desce aos infernos, desfraldando sua geografia

tétrica e resolvendo seu conflito interno sobre sua identidade como herói do povo troiano

no processo, Odisseu não penetra as profundezas infernais, realizando tão somente uma

néquia, ritual necromante de invocação de uma alma penada, a fim de questionar o

fantasma do adivinho Tirésias sobre os rumos a tomar sobre seu futuro, ainda que o faça

nas profundezas da terra em um espaço que corresponderia às portas do inferno.

A experiência catabática do Cabeleira se assemelha a esses precedentes no

sentido transformador que o encontro com o fantasma tem sobre o herói e a resolução

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final de seu conflito interno que a experiência proporciona. É conversando com o

fantasma do profeta Tiresias que Odisseu encontra clareza para prosseguir sua jornada,

tal como se dá no caso do Cabeleira com seu intercurso com o fantasma do mercador.

Entretanto, a experiência do protagonista do romance surpassa esse encontro,

que apenas encima toda a travessia do sertão pelo qual ele passa, e que se alia a essa

néquia sertaneja para surtir um efeito similar, se não mais profundo, sobre João Gomes.

O resultado dessa provação talvez seja mais próximo daquele resultante da efetiva viagem

ao inferno protagonizada por Eneias, a qual organizou os sentimentos conflituosos do

herói troiano e reafirmou o próprio sentido de sua vida, permitindo que ele cumprisse a

sua incumbência heroica.

É assim que a penetração do sertão feita pelo protagonista, sobretudo a partir de

seu desfecho, equivale na narrativa a uma viagem ao inferno, ainda que estritamente em

sua dimensão metafórica, posto que “horizontal”. Uma vez que é a sua jornada às

profundezas desse sertão “infernal” que fatalmente define a sua mudança de caráter,

dispõe-se assim a dimensão espacial de sua metamorfose íntima.

A despeito de a essa altura da narrativa o conteúdo simbólico do sertão ter

transcendido da esfera de uma representação “infernal” para a de um “purgatório”, a

concretude da realidade de uma paisagem afligida por uma seca histórica ainda se afirma

na narrativa. É assim que Luizinha morre em meio ao sertão do fogo inclemente e o

Cabeleira se vê forçado a traçar o caminho inverso de sua fuga dos homens, fugindo, desta

vez, de uma natureza sobre a qual ele deixa de ter qualquer agência em função de sua

nova condição beata.

Assim ele é eventualmente capturado pelas autoridades e julgado como

criminoso a despeito de sua recém adquirida solicitude para com seus captores e seu

aflorado senso de arrependimento em relação aos seus crimes. Inocente aos olhos do povo

mesmo que culpado aos da lei, o Cabeleira é enforcado em praça pública, fato que encerra

a existência do homem, mas imortaliza a figura folclórica que ecoará na memória popular

através dos séculos até ser plasmada como foi pela pena de Franklin Távora.

Há uma certa circularidade presente no arcabouço teórico que sustenta esta

proposta de leitura da travessia do sertão tavoreano pelo prisma da experiência catabática.

A formulação de Cristóvão sobre os três paradigmas na representação do sertão é,

confessadamente, inspirada na imagem tripartida do além-túmulo imaginada por Dante

Alighieri em sua Divina Comédia (CRISTÓVÃO, 1994, p. 45).

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O poeta italiano, por sua vez, ecoa com seus nove círculos do Inferno a geografia

fantástica do Tártaro percorrido por Eneias. Não só isso, mas é justamente o autor da

Eneida, Virgílio, quem guia Dante em sua peregrinação pelo substrato infernal ao longo

das páginas de seu poema.

Essa é a manifestação clássica do tropo literário do homo viator, aquele em

permanente peregrinação e consequente transformação, — tal como apresentada na

poesia dantesca — que caracteriza a experiência do sertão que Cristóvão reserva para

Grande Sertão: veredas, mas que, aqui, procura-se alargar para abarcar, em alguma

medida, O Cabeleira. Nessa subversão metafórica do sertão como estritamente um locus

horribilis, busca-se justamente reforçar o caráter transformador que a descida aos infernos

encerra em si através da identificação de seus preceitos fundamentais em nível simbólico,

os quais independem da matéria fantástica que uma jornada infernal clássica compreende.

Assim, entendendo a jornada do Cabeleira pelo sertão a realização de uma

“catábase horizontal”, reconhece-se o caráter subjetivamente transformador da

experiência da personagem em conformidade com a indissociabilidade entre o

desenvolvimento da narrativa e a dimensão espacial da trama que se estabeleceu como

pressuposto de leitura da obra. Ademais, essa dimensão subjetiva da apreensão desse

espaço pela personagem está em certa medida contida nas ideias de Moraes em sua

caracterização do que constituiria o sertão em nível discursivo, sendo essa carga simbólica

aquela que se refere à sua condição infernal no que concerne ao romance.

A subjetivação do entendimento desse espaço se dá a partir de uma experiência

que transcende sua caracterização como “inferno”, mas não implica a superação efetiva

dessa condição no plano narrativo, antes concorrendo para alargar as possibilidades de

leitura do espaço literário descrito. Isto é expressado exemplarmente pela máxima grafada

por John Milton em seu Paraíso Perdido (1667): “A mente é em si mesma o seu lugar;/

Faz do inferno Céu, faz do Céu inferno” (MILTON, 2008, p. 53,55, v. 254-255), entoada

em desafio por um Lúcifer recém-decaído que se recusa a aceitar o caráter

monoliticamente negativo de sua prisão infernal, dispondo-se a subverter a lógica de sua

condição pela superação dos construtos discursivos predispostos sobre ela.

Assim também o faz, em proporções menos épicas, o Cabeleira. Fadado a

transpor o inferno da seca sertaneja, compartilhado pelas demais personagens e plasmado

indelevelmente em sua faceta infernal pela literatura de então, ele supera seu inferno

particular em uma jornada íntima de transformação no seio dessa terra calcinada.

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Diante do exposto, retoma-se a paráfrase com a qual se encerrou o primeiro

capítulo, agora ressignificada à luz das formulações desenvolvidas sobre o romance de

estudado:

[...] para alguns degredados, para os homiziados, para os muitos perseguidos

pela justiça real e pela Inquisição, para os escravos fugidos, para os índios

perseguidos, para os vários miseráveis e leprosos, para, enfim, os expulsos da

sociedade colonial, "sertão" representava liberdade e esperança; liberdade em

relação a uma sociedade que os oprimia, esperança de outra vida, melhor, mais

feliz. (AMADO, 19955, p. 149-150)

Ademais, expande-se a citação com um trecho originalmente omitido, que

reverbera mais agora, assim recontextualizado:

Desde o início da história do Brasil, portanto, uma perspectiva dual, contendo,

em seu interior, uma virtualidade: a da inversão. Inferno ou paraíso, tudo

dependeria do lugar de quem falava. (AMADO, 1995, p. 150).

O sentido dessa afirmativa está presente nas páginas d’O Cabeleira, e ecoa ao

longo da história brasileira em diferentes narrativas. Ela se faz sentir em sua elaboração

mais bem acabada, sobretudo, na obra imortal de Euclides da Cunha, Os Sertões (1902),

com a qual a leitura do livro de Távora pode, por essa via, estabelecer um diálogo.

4.3 – Uma Canudos grande

Além da travessia propriamente dita do sertão, a ação da captura do Cabeleira

tal como disposta por Távora é de particular interesse dentro da leitura proposta. Após a

morte de Luizinha, José Gomes se encerra novamente nas matas que antes lhe serviam de

abrigo, fazendo o caminho de volta para terras mais aprazíveis.

Enquanto vagueia assim, sem rumo e com fome, ele se depara com um canavial,

“[...] um mundo de verdura que lhe acenava com doces presentes” (TÁVORA, 1876, p.

168). A exposição da significação que aquele canavial tem para o protagonista naquele

momento segue a relação estabelecida no capítulo 2 entre o autor e a sociedade canavieira

dos tempos áureos de Pernambuco:

A planta que estava destinada a ser mais tarde a base principal da

fortuna e riqueza de um vasto imperio; essa planta abençoada que dalli punha

a sua disposição nutritivo e precioso suco offerecia-lhe tambem protecção a

sombra da sua basta folhagem. Podia elle, pobre foragido, refazer as forças no

seio dessa solidão generosa que lhe daria a sorver licor suavissimo, como o que

mana de um seio maternal (TÁVORA, 1876, p. 268).

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É particularmente interessante que, após a conversão moral que se operou sobre

o Cabeleira e o tornou incapaz de conduzir sua vida nas matas fechadas onde até então

usurpara o trabalho alheio através da violência, ele tenha se refugiado no equivalente mais

próximo de seu antigo habitat em um meio transformado pela ação do homem, um

canavial — antes, uma “ridente floresta” que lhe servia de “pitoresca muralha”

(TÁVORA, 1876, p. 274). Instalando-se ali, entretanto, o Cabeleira inadvertidamente

encaminhara seu fim, pois grandes destacamentos de tropas haviam sido mobilizados em

função de seus últimos roubos e batiam então a zona da mata à procura dele e de seu

bando.

Só ele ainda não fora capturado, mas a opinião pública ainda receava celebrar o

sucesso da operação porque

Tantos eram os crimes commettidos pelo Cabeleira, e estes crimes

haviam sido revestidos, na sua maior parte, de circumstancias tão odiosas, que,

quando se divulgou que o afamado bandido tinha escapado as malhas da rede

da justiça, mostras de justo pezar vieram substituir-se nos semblantes de todos

a expressão do regozijo recente que havia manifestado a populacão.

Com raras excepcões, não se contava familia, desde o Recife até o

alto sertão, a quem a peia, a faca ou o bacamarte do terrivel matador não

houvesse roubado uma existência querida.

Por isso, era elle o alvo em que todos haviam posto a mira, e perdel-

o montava perdera diligencia, ao parecer da maioria [sic] (TÁVORA, 1876, p.

206-207).

Percebe-se então que, a esta altura, a personagem estava longe de ser a figura

celebrada nas cantigas populares por estar envolta “em grande lição”. Para o povo

pernambucano, o Cabeleira era então “[...] um flagello não menos fatal do que a peste e

a fome que o reduziam a dor extrema [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 215), e sua opinião sobre

o bandido só mudaria à ocasião de sua captura e consequente execução, posto que o

arrependimento demonstrado pelo Cabeleira no patíbulo o redimira aos olhos do povo,

ainda que não aos da lei, como exposto nas cantigas.

Por isso, ao localizarem o bandido no canavial, as tropas circundaram toda a sua

extensão e puseram abaixo a cobertura vegetal que ocultava o Cabeleira. Após três dias

entre a invasão do canavial pelo Cabeleira e a sua destruição pelas tropas,

Desappareceu de todo o verde tufo aos olhos dos circumstantes; as

duas superfícies — a exterior e a interior — uniram-se como por encanto; o

Cabeleira surgiu d’entre as folhas com que pouco antes brincava a brisa, agora

confundidas com as palhas seccas, imagem, como aquellas, do seu perdido

poder [sic] (TÁVORA, 1876, p. 274-275).

A descrição dessa cena apresenta uma associação entre a devastação da cana e a

ruína do Cabeleira que parece transcender o ato da sua captura. Dada a significação que

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a cana apresenta na prosa tavoreana, como já estabelecido previamente, e a identificação

com a tradição popular que o Cabeleira passa a ter a partir de sua contrição, a derrocada

de ambos parece simbolizar também a derrocada do Norte. A aproximação do

protagonista a essa planta carregada de simbolismo para Távora, sobretudo à ocasião do

desfecho de seu destino trágico, parece sublinhar aquela relação estabelecida quando da

caracterização do Cabeleira, aquela que identificava a personagem com a própria região

Norte a partir da causa comum de seus males — uma trajetória determinada por

circunstâncias adversas.

Éverton Barbosa Correia enxerga no poema “Por que prenderam o ‘Cabeleira’”,

obra de João Cabral de Melo Neto presente no livro Agrestes (1985), uma aproximação

similar entre a figura do bandido e da decadente sociedade açucareira, a qual era também

um tema central para o autor. Para Correia, o enquadramento que Melo Neto dá à captura

do Cabeleira, preso no meio do canavial, incorre em uma representação do Cabeleira a

partir de uma posição de passividade e vulnerabilidade ante o exercício de um poder

oficial inclemente e ostensivo (Cf. CORREIA, 2010).

Ainda que ambos os textos se baseiem no relato pretensamente histórico da

tradição popular segundo a qual o Cabeleira foi de fato preso em um canavial, a carga

simbólica que a planta carrega para ambos os autores autoriza uma leitura que considere

a correlação da cana com o Cabeleira como sendo significativa. A prisão e a consequente

morte do Cabeleira, como a queima da cana, é a aniquilação da própria história do Norte.

Por isso, o posicionamento dos representantes do aparato estatal como aqueles

que levam a cabo a captura e execução do Cabeleira — e paralelamente, a destruição

literal e simbólica do canavial — também é significativo. Isso é aprofundado na narração

que segue à sua prisão.

As últimas páginas do livro são dedicadas à descrição do enforcamento do

Cabeleira, ao qual uma grande multidão compareceu para assistir ao desfecho da trajetória

daquele que até então fora plenamente odiado por todos. Entretanto, durante o breve

intervalo entre sua prisão e sua condução ao cadafalso em que Cabeleira fora exposto ao

público, a opinião geral sobre José Gomes se transfigurara da de um facínora inclemente

para a de um jovem de bom coração transviado pela má influência do pai, imagem que

seria transmitida por trovas populares nas gerações por vir.

Entretanto, a reabilitação do Cabeleira junto ao povo não o redimiu de suas

pendências com a lei e ele foi enforcado por seus crimes à frente de uma grande

quantidade de espectadores comovidos. Em sua última intervenção narrativa direta,

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98

Távora discorre, por cinco páginas, sobre a natureza bárbara do proceder do Estado de

então e as responsabilidades comuns da sociedade na incubação de um mal como o que

se abateu sobre o Cabeleira, encerrando assim o romance.

Em trecho expressivo de sua longa digressão, ele afirma que “[a] justiça

executou o Cabeleira por crimes que tiveram sua principal origem na ignorância e na

pobreza [sic]”, o que o leva a se questionar se “[...] o responsavel de males semelhantes

não será primeiro que todos a sociedade que não cumpre o dever de diffundir a instrucção,

fonte da moral, e de organizar o trabalho, fonte da riqueza? [sic]” (TÁVORA, 1876, p.

301). Para Fernando Gil, parece haver um descompasso entre o diagnóstico que Távora

faz ao fim do livro e o conteúdo que ele próprio desenvolve ao longo da narrativa.

Há como que uma inadequação entre a leitura histórica que o autor faz do quadro

social do qual emergiu o Cabeleira e a sua representação a partir de um prisma

moralizante. Gil escreve que:

[...] essa consciência dos possíveis motivos sociais [...] do destino

de violência e brutalidade do protagonista e seu grupo somente consegue se

explicitar do “lado de fora” da representação ficcional. É uma consciência

histórica do problema que não consegue se transformar em consciência

literária. (GIL, 2020, 183)

A identificação que Távora faz, ainda que de maneira difusa, do proceder do

poder oficial como sendo “bárbaro” em seu exercício da violência estatal sobre aqueles

prejudicados pelas circunstâncias, se não criadas, toleradas por esse mesmo Estado,

remete, irresistivelmente, às formulações de Euclides da Cunha em sua obra máxima, Os

Sertões (1902). Não só há uma espacialização bem delimitada entre as expressões da

civilização e da barbárie que é comum aos dois livros, mas essa mesma divisão é

desafiada no interior dessas próprias narrativas a partir da problematização dos

condicionantes que levaram às suas respectivas situações de “barbárie” e o

reconhecimento das ações “bárbaras” daqueles alinhados sob o estandarte da

“civilização”.

Távora pode mesmo ser considerado um precursor de Euclides da Cunha, ao

menos no sentido disposto por Jorge Luis Borges em seu texto “Kafka y sus precursores”

(1979), no qual ele defende que a percepção da influência de um autor mais antigo sobre

outro mais novo parte necessariamente de um ponto de vista centrado neste, que

estabelece um parâmetro ao qual seus leitores recorrem para identificar retroativamente

uma rede de influências, de forma que “[...] cada escritor cria seus precursores. Seu

trabalho modifica nossa concepção do passado, como há de modificar o futuro”

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(BORGES, 1979, p. 49, tradução nossa)34. Assim, o que se dispõe como sendo comum

entre O Cabeleira e Os Sertões só o é a partir de uma perspectiva anacrônica cuja ótica

se centra antes em Euclides da Cunha do que em seu pretenso precursor.

É a partir dessa perspectiva, portanto, que se poderia alinhar Franklin Távora ao

que Nísia Trindade Lima chama de uma “sociologia euclidiana”, que “[...] inverte o sinal

positivo atribuído ao litoral e às tendências modernizantes”, tratando-se “[...] da leitura

do dualismo litoral/interior, à luz da oposição entre civilização de copistas e civilização

autêntica”, transformando-se “[...] em uma perspectiva intelectual sobre a sociedade

brasileira” (LIMA, 2013, p. 271). Esta noção teria sido defendida por Guerreiro Ramos,

que a associou a diversos autores tanto anteriores quanto posteriores a Euclides da Cunha,

e que corresponde confortavelmente às formulações de Távora sobre a “influência

estrangeira” e o “Brasil verdadeiro”.

Em função disso, o já discutido estabelecimento do sertão enquanto cronotopo

ao longo da história do Brasil, consagrado sobretudo por Euclides da Cunha, assume uma

significação ainda mais ampla e diversificada quando situada dentro da obra de Távora.

Não se trata tão somente da distância historicamente construída entre a sociedade que se

desenvolveu no litoral e a que deixou de se desenvolver no interior, mas, assim como a

tríade formada pelos topos litoral, zona da mata e alto sertão no romance trata, de forma

subjacente, do estabelecimento dessa relação em paralelo com outra equivalente em

escala nacional: o sertão como espaço do atraso para o litoral pernambucano como o

Norte como um todo o era para a corte.

Essas relações se estabelecem como fractais, e expressam em escalas diferentes

essa mesma tensão que estrutura a lógica dual reiterada por Távora em suas diferentes

formas ao longo de seus romances, estudos e peças de opinião, sobretudo n’O Cabeleira.

Mesmo n’Os Sertões, essa identificação da região Norte como um grande sertão está

presente na descrição da chegada das tropas que convergiam para a Bahia vindas de

diversos pontos mais ao sul:

É que, generalizando-se de um conceito falso, havia no ânimo dos

novos expedicionários uma suspeita extravagante a respeito das crenças

monárquicas da Bahia. Ali saltavam com altaneria provocante de triunfadores

em praça conquistada. Aquilo, preestabelecera-se, era um Canudos grande. A

velha capital [...] aparecia-lhes como uma ampliação da tapera sertaneja.

(CUNHA, 2019, p. 508).

34 No original: “[...] cada escritor crea sus precursores. Su labor modifica nuestra concepción del pasado,

como ha de modificar el futuro”.

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A noção reproduzida por essas tropas, a partir da qual elas tomam toda a Bahia

pelo “outro” incivilizado a ser combatido, não é exclusiva do momento histórico retratado

por Euclides da Cunha, sendo tão representativa dos estereótipos pelos quais toda a região

nordestina é tomada hoje quanto o era da depreciação que o Norte sofria aos olhos da

corte nos tempos de Távora. O fato é que as discrepâncias regionais entre o Norte e o Sul

do país perduram, e, enquanto assim o for, Távora reterá sua atualidade.

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Conclusão

A oposição entre cidade e campo em O Cabeleira é representada, sobretudo,

enquanto expressão da dicotomia civilização x barbárie, esta mesma composta no

romance por uma gradação que vai do litoral, passa pela zona da mata e chega ao alto

sertão. A despeito disso, a cidade, na perspectiva desenvolvida por Távora, não se

apresenta como uma representação infalível do triunfo da civilização sobre a barbárie —

talvez pela distância que o tempo dialógico guarda com o autor, fazendo-se sentir na

brutalidade à qual Távora condiciona sua representação do período colonial —

apresentando-se antes como o espaço privilegiado do exercício da lei estatal, de uma

autoridade oficial, nesse caso tão bárbara, ou até pior, à luz de sua pretensa superioridade,

quanto a violência associada ao sertão.

Ademais, a cidade parece servir no romance antes para situar histórica e

geograficamente a narrativa, o que é feito a partir da permanência gótica de elementos do

período batavo, em relação ao tempo diegético e do período colonial em relação ao tempo

do autor. Isso se faz sentir na meticulosa descrição das ruas, pontes, e edifícios históricos

que compõem as longas descrições da vila do Recife e seus arredores.

Esse espaço aparece, sobretudo, como um contraponto vago ao arcabouço

imagético mobilizado por Távora na composição do sertão, este sim mais robusto. Isto

talvez se dê em parte pelo fato de o autor entender que à época a cidade pouco destoava

do campo, o que o leva a reservar uma parcela maior do desenvolvimento da ação a esse

recorte espacial e às personagens associadas a ele.

O campo, por sua vez, toma forma como o lugar por excelência das tradições

populares, oferecendo, ao longo da narrativa, um contraponto não à cidade do Recife

presente no livro, mas à soma das vivências associadas ao urbano nos tempos de Távora.

É o lugar em que o homem coexiste com uma natureza ostensiva e potencialmente

perigosa, posto que assombrosamente desabrida fora das fronteiras estreitas e bem

demarcadas dessa civilização incipiente, regida por padrões morais pretensamente

superiores àqueles usados nas urbes e que foram perdidos em função da passagem do

tempo.

Já o sertão se apresenta, num primeiro momento, como a vegetação fechada da

zona da mata, a natureza luxuriante e desabrida na qual os bandidos se arvoram para se

furtar das leis dos homens e de deus, a fim de instituir uma sociedade paralela regrada

pela lei do mais forte, a lei da selva. O sustento dos criminosos provém do exercício da

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violência sobre os demais que produzem riqueza e alimento, por isso não subsistem em

um espaço que aparece como desdobramento deste primeiro: o alto sertão, o sertão da

seca, em que não há quem roubar nem natureza para lhes suster.

Nesse contexto opera-se uma inversão, e a única forma de subsistir é transformar

o espaço por intermédio do trabalho, algo de que homens como Cabeleira são incapazes.

O exercício do trabalho assume aqui um caráter civilizatório, e a incapacidade de exercê-

lo equivale à submissão completa ao meio.

É por isso que no sertão, um espaço não transformado pelo trabalho e

abandonado pela autoridade pública, portanto não “civilizado”, institui-se um conjunto

de normas sociais próprias, que o configuram como um espaço regido pela própria lei da

natureza. Diante disso, a sociabilidade pautada pela violência que se exerce no sertão é

situada no romance como um produto do meio.

A captura de Cabeleira acontece no canavial, espaço que corresponde à natureza

transformada pelo homem. Mesmo ali, ele só é alcançado depois da queima da cana.

Em nível simbólico, é como se o Cabeleira, esse homem tornado um bárbaro

anacrônico pela própria ingerência da sociedade sobre si, fosse justiçado às custas dessa

mesma organização social que o excluiu. Em outra instância, a associação entre a queima

da cana e a captura do Cabeleira aponta para a ruína dos alicerces dessa sociedade

tradicional nortista, que se curva à marcha inexorável do tempo e condena essa figura

folclórica às custas de sua própria história.

Dessa forma, a solução violenta que o Estado propõe para o Cabeleira, a pena de

morte, é exposta no romance como sendo muito mais bárbara, posto que executada por

homens ilustrados contra quem justamente foi tornado daquela forma devido às condições

criadas por uma sociedade pretensamente esclarecida e civilizada. Essa ótica remete ao

posicionamento de Euclides da Cunha sobre a Campanha de Canudos expressa em seu

Os Sertões, cujas problematizações sobre a condição sertaneja já haviam sido levantadas

por Távora.

Para além do diálogo implícito — quando não debate aberto — com a obra de

Alencar, o pensamento de Távora convida o leitor que se permita o anacronismo ao

estabelecimento de outros paralelos com esse autor paradigmático na construção literária

do discurso sobre o sertão. Trata-se de uma relação pautada nos preceitos de Borges em

relação aos possíveis precursores de Kafka, que só poderiam ser reconhecidos como tais

em retrospectiva quando comparados a ele, da mesma forma que Távora, enquanto

representante exemplar do que se convencionaria chamar de sociologia euclidiana, só

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possa ser identificado com tal corrente de pensamento, que só se afirmaria anos depois de

sua morte, a partir de uma relação dialógica cuja perspectiva esteja centrada em Euclides

da Cunha e cujos padrões só possam ser reconhecidos retroativamente em Távora.

Essa relação permite o reconhecimento de padrões na organização do pensamento

do autor que encontram eco não só n’Os Sertões, mas em todo arcabouço imagético sobre

o espaço sertanejo que se cristalizou a partir dessa obra. Távora, em sua antecipação da

tensão fundamental do livro de Euclides da Cunha, abrange a significação da dicotomia

sertão x litoral para a desigualdade no desenvolvimento regional entre o Norte e o Sul do

país, questão que é o cerne nevrálgico de sua escrita e que permanece posta ainda nos dias

de hoje como uma problemática não superada.

É nesse sentido que o sertão de Távora se afirma como sendo múltiplo, por

apresentar interseções e diálogos entre demandas de diferentes vozes subjugadas.

Interessa, portanto, a formulação perene e pioneira que ela teve em nível literário com

Távora, precedente que ensejou alguns dos voos mais altos da literatura brasileira.

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