UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LITERATURA MATEUS DE NOVAES MAIA UM CERTO CARÁTER GEOGRÁFICO: A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DO SERTÃO EM O CABELEIRA, DE FRANKLIN TÁVORA NITERÓI 2022
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LITERATURA
MATEUS DE NOVAES MAIA
UM CERTO CARÁTER GEOGRÁFICO: A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DO
SERTÃO EM O CABELEIRA, DE FRANKLIN TÁVORA
NITERÓI
2022
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LITERATURA
MATEUS DE NOVAES MAIA
UM CERTO CARÁTER GEOGRÁFICO: A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DO
SERTÃO EM O CABELEIRA, DE FRANKLIN TÁVORA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Estudos de Literatura da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre
em Estudos de Literatura. Subárea: Literatura
Brasileira e Teoria da Literatura. Linha de
Pesquisa: Literatura, História e Cultura.
Orientadora:
Prof.ª Dr.ª Claudete Daflon dos Santos
NITERÓI
2022
Ficha catalográfica automática - SDC/BCGGerada com informações fornecidas pelo autor
Bibliotecário responsável: Debora do Nascimento - CRB7/6368
M217c Maia, Mateus de Novaes Um Certo Caráter Geográfico : A construção discursiva dosertão em O Cabeleira, de Franklin Távora / Mateus de NovaesMaia ; Claudete Daflon dos Santos, orientadora. Niterói, 2022. 118 f.
Dissertação (mestrado)-Universidade Federal Fluminense,Niterói, 2022.
DOI: http://dx.doi.org/10.22409/POSLIT.2022.m.13686936798
1. Literatura Brasileira. 2. Teoria da Literatura. 3.Sertão. 4. Sertão na literatura. 5. Produção intelectual.I. Santos, Claudete Daflon dos, orientadora. II. UniversidadeFederal Fluminense. Instituto de Letras. III. Título.
CDD -
MATEUS DE NOVAES MAIA
UM CERTO CARÁTER GEOGRÁFICO: A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DO
SERTÃO EM O CABELEIRA, DE FRANKLIN TÁVORA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Estudos de Literatura da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre
em Estudos de Literatura. Subárea: Literatura
Brasileira e Teoria da Literatura. Linha de
Pesquisa: Literatura, História e Cultura.
Defesa em 16/02/2022.
BANCA EXAMINADORA
Prof.ª Dr.ª Claudete Daflon dos Santos – UFF
Orientadora
Prof.ª Dr.ª Márcia Regina Capelari Naxara – UNESP
Prof.ª Dr.ª Anita Martins Rodrigues de Moraes – UFF
Prof. Dr. Marcelo dos Santos – UNIRIO, suplente
Prof. Dr. Andre Cabral de Almeida Cardoso – UFF, suplente
NITERÓI
2022
À minha avó, Maria, quem primeiro me ensinou o prazer de ler
À minha mãe, Márcia, que me ensinou que a arte é a graça da vida
Ao meu pai, Fernando, que me ensinou que a curiosidade é uma virtude
AGRADECIMENTOS
Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior –
Brasil (CAPES), cujo fomento me possibilitou a dedicação exclusiva a essa pesquisa.
Agradeço à minha orientadora, Claudete Daflon, sem a qual este trabalho nunca
teria sido realizado. Seu apoio foi fundamental para o meu ingresso nos estudos de
literatura, e a sua perspectiva sobre a academia e o mundo foi o que fez desta dissertação
o que ela é.
À professora Anita Moraes, que também me guiou tanto nos meus primeiros
passos na área de letras quanto nas aulas do mestrado, inestimáveis para o
desenvolvimento desta pesquisa. Agradeço também por aceitar fazer parte desta banca e
pelos apontamentos preciosos por ocasião da minha qualificação.
À professora Márcia Naxara, a quem devo muito do arcabouço teórico deste
trabalho. Agradeço pela disposição em participar da minha banca mesmo nas condições
adversas em que nos encontramos, assim como sou grato pelas contribuições inestimáveis
feitas a esta pesquisa.
À minha companheira, Clara, que divide comigo os ônus e os louros desse
caminho. Obrigado por ser minha primeira revisora, aquela que lida com os voos mais
delirantes da minha prosa que — felizmente — ninguém mais precisa ler.
Ao meu irmão, Lucas, meu primeiro amigo e melhor consultor de francês que o
improviso pôde conceber.
Aos meus pais, Fernando e Márcia, que me apoiaram de todas as formas
possíveis por toda a minha vida.
A todos os que contribuíram de alguma forma para essa pesquisa.
Obrigado.
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo analisar como se dá a representação do sertão na
obra de Franklin Távora, debruçando-se em particular sobre o romance O Cabeleira
(1876). A reflexão proposta é ancorada nos estudos sobre a “colonialidade do poder”, em
especial no entendimento da historicidade da produção das categorias mobilizadas e a
centralidade conferida às perspectivas contra-hegemônicas. Pretende-se inferir tanto as
determinantes históricas da concepção da representação literária do sertão quanto o que
há de idiossincrático nas formulações de Távora sobre este espaço. Isso será feito a partir
da discussão da produção do autor à luz do contexto em que ela se desenvolveu, da fortuna
crítica relacionada ao tema e do cotejamento do romance de Távora com algumas de suas
demais produções, propondo um entendimento d’O Cabeleira enquanto realização
artística e em relação ao desenvolvimento de sua ação narrativa através de um prisma que
privilegie uma interpretação do tema por um viés espacial. Entende-se que as
circunstâncias históricas às quais a formulação da Literatura do Norte de Távora responde
são acionadas no romance a partir de uma espacialização do tecido social da sociedade
Pernambucana colonial. Tal divisão dos espaços narrativos em topos distintos
corresponderia a uma representação da dicotomia civilização x barbárie que norteia o
argumento do romance, no qual o sertão é apresentado como estando prenhe de uma carga
simbólica que perpassa a matéria literária d'O Cabeleira e se articula com o pensamento
de Távora sobre uma divisão espacial da literatura — e da própria história — do Brasil
entre uma região Norte e uma região Sul.
Palavras-chave: Franklin Távora; O Cabeleira; Literatura do Norte; Espaço literário;
Sertão.
ABSTRACT
This study sought to analyze the representation of the sertão (backlands) in the works of
Franklin Távora, particularly addressing the novel O Cabeleira (1876). The proposed
reflection anchors itself on the studies on the “coloniality of power”, notably on the
understanding of the historicity of the production of the categories at hand and the
centrality conferred to counter-hegemonic perspectives. This study intends to infer the
historical determinants of the conception of the literary representation of the sertão and
what is idiosyncratic regarding Távora’s formulations about it. This is to be achieved
through a discussion that takes into consideration the author’s production within the
context in which it was written, the critical essays related to the theme, and the collating
of Távora’s novel with some of his other works, putting forward an understanding of O
Cabeleira, both as an artistical realization as well as regarding the development of its
narrative, through a spatial lens. It is our understanding that the historical circumstances
to which the formulation of Távora’s Northern Literature respond are presented in the
novel through the spatialization of colonial Pernambuco’s social fabric. Such division of
the narrative spaces in distinct topos would correspond to a representation of the
dichotomy between civilization and barbarism that drives the novel’s plot, in which the
sertão is present as being filled with a symbolic weight that runs across O Cabeleira’s
literary substance and articulates itself with Távora’s thoughts regarding a spatial division
of the literature — and the history itself — of Brazil between a Northern region and a
Southern one.
Keywords: Franklin Távora; O Cabeleira; Northern Literature; Literary space; Sertão
(Backlands).
SUMÁRIO
Introdução........................................................................................................................1
1 – A colonialidade na construção discursiva do sertão.................................................6
1.1 - O sertão como produção ideológica..........................................................................6
1.2 - O sertão e a literatura na invenção do Brasil............................................................11
1.3 - Dos sertões nacionais ao sertão nordestino..............................................................19
2 – Historiador, crítico, político ou filósofo?.................................................................25
2.1 – De tabajaras, monarcas e romanos...........................................................................25
2.2 – O iconoclasta de imagens da terra............................................................................33
2.3 – A elegia da sociedade açucareira.............................................................................45
3 – Um romance para o Norte brasileiro.......................................................................57
3.1 – Da literatura e do Norte............................................................................................57
3.2 – Mise-en-scène para uma história pernambucana.....................................................66
4 – Por uma leitura através do espaço...........................................................................75
4.1 – Uma pena molhada em sangue.................................................................................75
4.2 – Medonhos sertões, medonhos sarcófagos................................................................84
4.3 – Uma Canudos grande..............................................................................................94
Conclusão.......................................................................................................................99
Referências Bibliográficas...........................................................................................102
1
Introdução
Há na literatura centrada no sertão brasileiro uma miríade de interpretações,
significações e vozes dissonantes tal que só pode ser rivalizada pela polissemia que o
próprio termo sertão assumiu ao longo de séculos de reuso. Ainda que haja divergências
quanto à real origem do vocábulo, assim como suas diversas variantes, sempre foi
empregado para se referir às terras interiores e inexploradas, em oposição ao litoral. Se
na Carta de Pero Vaz de Caminha essa oposição toma a forma de mero referencial
geográfico, a subsequente exploração portuguesa das terras americanas, feita sempre
pelas beiradas, confirmaria essa oposição no campo ideológico, opondo a civilização que
se espraiava pelo litoral à barbárie do interior ainda não cartografado.
Com a modernidade e a consequente hegemonia da ideologia liberal, a dualidade
se atualiza: o progresso do litoral e dos grandes centros contra a periferia e os feudos
incultos de um Brasil profundo. Dada a reincidência de seu uso pelas elites econômicas e
políticas brasileiras que se sucederam em território nacional desde a América Portuguesa,
dos colonizadores à burguesia nacional hodierna, o termo sertão adquire, sob uma ótica
histórica, o caráter de um palimpsesto, continuamente reciclado e instrumentalizado por
aqueles interessados na projeção e ampliação do seu domínio rumo ao interior do
continente. Tendo em vista essa diversidade de discursos sobre o sertão, cabe indagar-se
sobre sua base material. É a partir desse questionamento que Antonio Carlos Robert
Moraes propõe que o sertão corresponderia a uma “ideologia geográfica”, termo cunhado
a partir de uma perspectiva gramsciana que se refere à formulação de concepções
hegemônicas acerca de determinadas porções do território nacional e que
corresponderiam às demandas políticas de uma elite conservadora (MORAES, 2003).
Sendo desprovido de delimitação precisa e, em última instância, materialidade
telúrica, o sertão seria não um recorte espacial, mas uma construção discursiva – uma
ideologia geográfica, nos termos de Moraes. Qualificar um espaço como sertão é,
portanto, uma forma de apropriação discursiva desse lugar a partir da difusão de um
discurso concebido por uma elite a fim de justificar o exercício de seu poder sobre esse
espaço.
Isso talvez explique a abrangência geográfica e histórica da utilização do
vocábulo, que já abarcou dos pampas gaúchos ao coração da selva amazônica, estando
hoje geralmente restrito ao polígono das secas nordestino. A popularização da
identificação do sertão como uma metonímia do semiárido nordestino pode ser traçada
desde o surgimento da “literatura das secas”, a longa tradição de romances centrados nas
2
agruras que as estiagens severas afligem sobre a população sertaneja, os quais se
multiplicaram nas últimas décadas do século XIX em função da comoção nacional em
torno dos efeitos da Grande Seca que se estendeu de 1877 a 1880.
A escolha de O Cabeleira (1876) para o estudo desse fenômeno se dá pela
posição que ele ocupa na cronologia das narrativas sobre o sertão brasileiro. A produção
de Franklin Távora (1842-1888) se insere no período comumente identificado como
sendo o da inflexão entre os estertores do Romantismo e as primeiras experiências
realistas da literatura brasileira. O livro em questão foi seu primeiro romance de fôlego,
sendo o mais representativo de sua Literatura do Norte, projeto pessoal que buscava dar
ensejo a uma escola literária que exaltasse as particularidades do Brasil setentrional em
detrimento dos estrangeirismos literários correntes na capital do Império.
Apesar de ser o patrono da cadeira 14 da Academia Brasileira de Letras, Távora
foi uma figura marginalizada em vida, vindo a morrer na penúria, amargando o insucesso
de seu projeto político e literário. Preterido pela crítica em função de sua tendência a
descambar tanto para vícios típicos do Romantismo quanto do Realismo em suas histórias
repletas de preleções morais e clichês narrativos, a perenidade de sua obra se deve talvez
em parte pela presteza do autor em destrinchar o interior de um Pernambuco ainda
dependente da economia da cana, registrando os costumes de seu povo e as relações de
poder que estruturavam essa sociedade em declínio.
Por muito tempo, a abordagem da produção literária de Távora por parte da
academia se limitou à sua célebre polêmica com José de Alencar, as Cartas a Cincinato,
tendo esta sido tratada sob um prisma pouco lisonjeiro e mesmo pouco aprofundado em
relação, particularmente, à análise da posição do autor de O Cabeleira. Pesquisas de
fôlego como a biografia do escritor redigida por Cláudio Aguiar e a tese defendida por
Cristina Bertioli Ribeiro, assim como a compilação das próprias Cartas a Cincinato por
parte de Eduardo Vieira Martins, deram ensejo a novos trabalhos em torno da produção
de Távora nos últimos anos, sendo de suma importância a continuidade e o
aprofundamento das discussões acerca desse patrono esquecido da Academia Brasileira
de Letras, sobretudo quando essas reflexões se sustentam sobre novas bases
epistemológicas.
É justamente no encontro com essas questões que a discussão sobre a
interrrelação entre a criação literária e a produção de discursos políticos ganha relevância.
A retomada da obra de Távora, um autor marginalizado por seus pares em vida e renegado
pela crítica após sua morte, além de justificar-se por si só enquanto resgate histórico,
3
oferece um novo prisma através do qual é possível contemplar o panorama das relações
de poder nas quais estava inserida e, de quebra, oferece também a reafirmação da potência
de vozes contra-hegemônicas, tanto no Brasil-Império quanto nos dias de hoje, em que a
apreensão discursiva, política e econômica do espaço sertanejo permanece em disputa.
O sertão é uma categoria basilar para o pensamento social brasileiro, seja pela
teia de imaginários que mobiliza, seja pela sua dimensão oficial enquanto recorte
territorial a partir do qual se pautam políticas públicas, do combate às secas à delimitação
da região Nordeste. Dada a contínua tendência de normalização dos discursos
hegemônicos correntes em favor da manutenção da exploração humana pelo capital,
torna-se relevante traçar a arqueologia de sua difusão e validação no intuito de
compreender os mecanismos que levam à sua reprodução e superá-los.
Diante disso, o trabalho objetiva compreender como se dá a representação do
sertão no romance O Cabeleira, de Franklin Távora. Ademais, busca-se discutir a
significação dessa representação frente ao projeto político-literário do autor e o contexto
histórico no qual ele se insere.
No primeiro capítulo, “A colonialidade na construção discursiva do sertão”,
pretende-se — a partir do precedente estabelecido pelo trabalho pioneiro de Nísia
Trindade Lima (2013), no qual a autora intentou realizar uma arqueologia da significação
do sertão no Brasil a partir de sua apreensão pela intelligentsia nacional — traçar um
breve panorama dos sentidos que o termo sertão adquiriu em território brasileiro. Essa
análise parte da proposição de Moraes de que a categoria corresponderia a uma “ideologia
geográfica” (2003), atentando-se também às formulações de Aníbal Quijano acerca do
que chama de “colonialidade do poder” (QUIJANO, 1992) — a soma das estruturas
político-econômicas e do substrato ideológico que reafirmam a validade de uma lógica
eurocêntrica baseada na naturalização do conceito de raça como eixo estruturante das
relações de poder desde os tempos coloniais — e seu peso na formulação do sertão como
categoria a ser instrumentalizada pelas elites políticas que se sucederam em solo
brasileiro.
Nessa recuperação da construção discursiva do sertão, o século XIX toma vulto
como período privilegiado de análise. A partir desse enfoque, dá-se particular atenção ao
processo dialógico de marginalização dos estados do nordeste do país e à progressiva
exclusividade da identificação do sertão com a região, privilegiando as reflexões acerca
da produção da identidade nordestina por Durval Muniz de Albuquerque Junior (2001,
2017).
4
Buscando desenvolver uma reflexão acerca desses temas a partir da obra de
Franklin Távora, propõe-se o estudo das obras de crítica e prosa literária do autor, com
especial atenção ao romance O Cabeleira (1876), assim como à fortuna crítica dedicada
a ele, objetivando a produção de uma arqueologia da concepção do sertão de Távora. No
segundo capítulo, “Historiador, crítico, político ou filósofo?”, há um aprofundamento
particular na interrelação entre a elaboração da Literatura do Norte e as pressões históricas
a que ela respondia baseando-se sobretudo no estudo de algumas das demais produções
de Távora, na documentação histórica levantada por Evaldo Cabral de Mello Neto (1984,
2008) — a respeito do imaginário em torno da relação entre as elites do norte e o poder
central Imperial — e nas formulações de Angela Alonso (2002) — acerca das disputas
políticas dos últimos anos do Brasil-Império protagonizadas pela geração de Távora — a
fim de melhor situar as elaborações do autor sobre o sertão dentro de um projeto político-
literário bem definido.
As discussões iniciais sobre o paratexto e o Capítulo I d’O Cabeleira são
desenvolvidas detidamente no terceiro capítulo, “Um romance para o Norte brasileiro”.
É a partir do destrinchar dessas páginas iniciais do romance que se dá a articulação entre
as discussões levantadas acerca da representação do sertão, do conteúdo político do opus
tavoreano e da leitura proposta sobre a significação do sertão n’O Cabeleira.
No quarto capítulo, “Por uma leitura através do espaço”, a representação do
sertão no romance será analisada a partir das formulações de Anita Moraes (2006),
Eduardo Vieira Martins (2008a), Cristina Bertioli Ribeiro (2008) e Francisco Cerisara Gil
(2020) sobre as dicotomias entre civilização e barbárie, sertão e litoral, rural e urbano na
trama, articulando suas proposições com especial atenção à função discursiva que a
violência e o trabalho assumem no texto literário em questão. Será explorada, também, a
articulação entre as formulações de Távora sobre o sertão e os paradigmas literários de
sua época, pensando, a partir de desdobramentos da classificação de Cristóvão (1994), na
significação que uma representação do sertão como inferno assume em O Cabeleira e em
como a trajetória do protagonista do romance pode ser entendida como uma jornada
catabática.
Atentar-se-á, também, às aproximações entre as categorias propostas para a
análise do romance de Távora e as representações sobre o sertão cristalizadas pelo autor
Euclides da Cunha em seu clássico Os Sertões. Essas questões serão desenvolvidas à luz
das conclusões anteriores acerca das próprias formulações de Távora sobre o seu projeto
político-literário e as significações que essas dicotomias assumem dentro dele para
5
compreender como a mobilização dessas categorias está implicada na produção
discursiva do sertão tavoreano.
6
Capítulo 1 – A colonialidade na construção discursiva do sertão
A ideologia, sabemo-lo bem, não é reflexo do vivido, mas um projecto [sic] de
agir sobre ele. [...] [estudá-la] é defrontar uma das questões centrais que hoje se põem
à ciência do homem – a ciência das relações entre o material e o mental na evolução
das sociedades.
(Georges Duby)
1.1 – O sertão como produção ideológica
Em um trabalho que tome por objeto de estudo a categoria sertão, é de praxe
recorrer à etimologia da palavra em questão a fim de verificar em sua origem indícios da
acepção, tanto lata quanto estrita, que ela assumiu em terras brasileiras. Dessa forma,
procura-se, a partir da exposição de algumas das hipóteses mais correntes sobre a
evolução histórica do termo, situar os desdobramentos ideológicos de seu emprego, tal
como aventados pelos teóricos a que se recorre ao longo do texto, frente ao sentido
inequívoco que a palavra sertão adquiriu através dos séculos.
Gustavo Barroso, em comunicação à Academia Brasileira de Letras transcrita no
Jornal do Commercio (1947), descarta a hipótese, já bastante difundida na época, de que
o vocábulo seria uma abreviatura de “desertão”, fixando sua origem na língua mbunda de
Angola com a palavra muchitum, vertida para o latim como locus mediterraneum, local
no interior. O termo teria sido apropriado pelos colonizadores portugueses na forma de
“mulcetão”, sendo posteriormente reduzido a “celtão” e “certão”, tendo sido difundido
pelo império ultramarino ao longo dos primeiros séculos de sua expansão.
Uma contestação da hipótese “desertão” a partir dos estudos fonéticos é
apresentada por Jerusa Pires Ferreira, que reafirma a impossibilidade de sertão ser uma
corruptela do latim desertanu por conta da inversão que esse caminho significaria do
ponto de vista da lei do menor esforço, implicando em uma sonorização da oclusiva em
oposição ao ensurdecimento, que seria a progressão mais natural (FERREIRA, 2004).
Baseada em ampla amostragem, ela também verificou que o termo sertão (em suas
diversas grafias) aparece em textos portugueses dos séculos XV e XVI associado tanto a
“lugares povoados cheios de vegetação e árvores densas” quanto a áreas áridas e
desabitadas.
Dada a amplitude do emprego da palavra desde suas primeiras aparições em
relatos de viagem, cartas e documentos oficiais, a autora considera igualmente
improvável a recorrente hipótese, postulada por Joseph M. Piel, de que sertão derivaria
da palavra latina sertanus, particípio passado de sero, serui, sere, significando entrelaçar,
7
entrançar, de forma que sua origem estaria associada à descrição de áreas com vegetação.
Piel ainda sugere que o termo possa ter sido importado de uma língua estrangeira para
suprir a necessidade de descrever as terras recém-descobertas, como supõe Barroso, uma
vez que ele não aparece em registros antes do século XV, mas pontua a ocorrência do
topônimo em terras lusitanas (PIEL apud FERREIRA, 2004).
Moacir M. F. Silva (1950), comentando a hipótese de Barroso, acredita ser mais
provável que os falantes da língua mbunda tenham tomado o termo dos portugueses do
que o contrário, uma vez que o termo só foi registrado no dicionário da língua africana a
que Barroso recorre no século XIX, quando seu emprego pelos portugueses já datava de
mais de três séculos. O autor sugere que à povoação de Sertã, na província portuguesa de
Beira Baixa, se deve a origem do termo.
Segundo a lenda de origem local, a povoação teria sido fundada em 74 AEC pelo
general romano exilado Quintos Sertório e por ele batizada de “Sertaga”, corrompida em
“Sartão”. Em uma ocasião em que tropas romanas fiéis à capital marcharam contra o
assentamento, uma mulher teria feito frente aos soldados armada de uma grande sertãa,
uma frigideira quadrada, garantindo assim a sobrevivência da vila.
Silva supõe que a lenda da mulher da sertãa se popularizou pela similaridade da
palavra com a corruptela do nome original do povoado, “Sartão”. Esta palavra teria sido
também utilizada, por extensão, para caracterizar os entornos dessa povoação, terras das
mais interiores do território continental lusitano, vindo a ser posteriormente difundida
como sinônimo de terras interiores por todo o nascente império português.
Quer sua origem remonte a quinhentos ou a dois mil anos no passado, fica clara
a sua associação histórica a “[...] pensar, se assentar e controlar terras que não as suas,
que estão distantes, que outros habitam e possuem1”, na definição de Edward Said do
conceito de imperialismo (SAID, 1994, p. 7, tradução nossa). Essa identificação se dá de
tal forma que Piel toma o vocábulo sertão como o “Signo Linguístico da Expansão
Portuguesa” (PIEL apud FERREIRA, 2004, p. 27), evidenciando o quanto, acima de
qualquer dúvida sobre sua origem, o termo “tem ampla realização social e sua vigência
procedeu da necessidade de nominar coisas novas, hoje tão trágicas” (FERREIRA, 2004,
p. 35).
1 No original: “[…] thinking about, settling on, controlling land that you do not possess, that is distant, that
is lived on and owned by others”.
8
Assim, o sertão se constituiu no imaginário colonial como um termo guarda-
chuva para qualificar as áreas interiores das colônias portuguesas, o que, a rigor, implicou
sua associação à ideia de deserto ou ao lugar dos desertores, “terras sem fé, rei ou lei”
como proposto por Janaína Amado (1995) a despeito de sua origem etimológica
aparentemente diversa. Márcia Naxara aproxima as categorias sertão e deserto a partir da
polissemia coincidente que ambas assumiram ao longo da história do Brasil (NAXARA,
2010), do sentido literal das paisagens desérticas aos diversos empregos figurados que
perduraram em terras brasileiras ao longo do tempo.
Para a autora, tanto o sertão quanto o deserto se apresentariam como “espaços
em aberto – fronteiras em múltiplos sentidos” (NAXARA, 2010, p. 5). Essa perspectiva
é particularmente frutífera para o estabelecimento de paralelos com o avanço da fronteira
do oeste americano e as campanhas do deserto na Patagônia argentina na medida em que
esses processos também se fundamentam no estabelecimento desses respectivos espaços
como “vazios”, tanto de povos quanto de história, pela ótica colonial (Cf. MAIA, 2008;
DAFLON, 2020).
Arvorando-se nessa perspectiva, os poderes coloniais, em todos esses três casos,
empreenderam ativamente o esvaziamento desses espaços através do massacre dos povos
nativos e o apagamento de suas culturas, efetivando sua apreensão discursiva prévia
através do exercício de um poder outorgado a esses colonizadores por si próprios a partir
da instituição de sua ótica dual. Segundo a autora, é nesse sentido que “[p]ara o
colonizador, ‘sertão’ constitui o espaço do outro, o espaço por excelência da alteridade”
(AMADO, 1995, p. 149).
O processo de projeção de intenções sobre esses espaços pode ser melhor
apreendido a partir de uma reflexão acerca do conceito de “paisagem”, aqui entendido
como a percepção socialmente construída de um determinado espaço. Sobre sua
definição, Horácio Capel fala de uma "mirada consciente e intencional" a um determinado
espaço como a pré-condição da instituição de uma paisagem (CAPEL, 1973, p. 98).
Ele desenvolve que “Este olhar não se limita a reconhecer passivamente a
paisagem já existente, mas, pelo contrário, realiza uma função ativa de seleção e avaliação
dos elementos que se integram para formar a paisagem.” (CAPEL, 1973, p. 98, tradução
9
nossa) 2. Simon Schama desenvolveria suas ideias acerca do conceito nesse mesmo
diapasão:
Paisagens são cultura antes de serem natureza; construtos da imaginação
projetados sobre madeira e água e rocha. [...] Mas deve-se reconhecer também
que, uma vez que uma certa ideia de paisagem, um mito, uma visão, se
estabelece em um lugar real, ela tem uma maneira peculiar de confundir
categorias, de tornar metáforas mais reais do que seus referentes; de se tornar,
de fato, parte do cenário (SCHAMA, 1996, tradução nossa). 3
A concepção de Schama é de que a paisagem, enquanto construto cultural,
projeta-se sobre e a partir de uma dada materialidade espacial, mas corresponde
exclusivamente à apreensão subjetiva de determinado grupo sobre esse espaço. Isso
acarreta o potencial deslocamento da centralidade do substrato referencial em detrimento
de sua projeção idealizada no campo discursivo, processo caro à apreensão dos discursos
sobre a paisagem sertaneja no presente estudo.
Longe de imbuir o termo sertão de qualquer objetividade, seu emprego
sistemático ao longo dos séculos lhe atribuiu significações as mais diversas por ser
colocado em oposição ao que era conhecido, entendido, explorado, em suma, ao que
constituía as próprias fronteiras, não só territoriais, do colonizador lusitano. É nesses
termos que Antonio Carlos Robert Moraes propõe que:
Na verdade, o sertão não é um lugar, mas uma condição atribuída a variados e
diferenciados lugares. Trata-se de um símbolo imposto – em certos contextos
históricos – a determinadas condições locacionais, que acaba por atuar como
um qualificativo local básico no processo de sua valoração. Enfim, o sertão
não é uma materialidade da superfície terrestre, mas uma realidade simbólica:
uma ideologia geográfica. Trata-se de um discurso valorativo referente ao
espaço, que qualifica os lugares segundo a mentalidade reinante e os interesses
vigentes neste processo. O objeto empírico desta qualificação varia
espacialmente, assim como variam as áreas sobre as quais incide tal
denominação. (MORAES, 2003, p. 2).
Qualificar um espaço como sertão seria, portanto, uma forma de se apropriar
discursivamente dele a partir de sua assimilação prévia dentro do sistema de ideias de um
grupo a fim de justificar o exercício de seu poder sobre esse espaço. Nos termos do autor,
2 No original: “Esta mirada no se limita a recoger pasivamente el paisaje ya existente, sino que por el
contrario realiza una función activa de selección y de valoración de los elementos que se integran formando
el paisaje”. 3 No original: “Landscapes are culture before they are nature; constructs of the imagination projected onto
wood and water and rock. [...] But it should also be acknowledged that once a certain idea of landscape, a
myth, a vision, establishes itself in an actual place, it has a peculiar way of muddling categories, of making
metaphors more real than their referents; of becoming, in fact, part of the scenery”.
10
essa apreensão discursiva do espaço em questão implicaria uma produção de sentidos
sobre ele que justificasse sua captura dentro da esfera de um determinado poder
hegemônico, em uma perspectiva gramsciana (MORAES, 1991, p. 81-82), situando
dentro de um jogo de forças político e histórico uma acepção da produção discursiva da
paisagem condizente com a de Schama.
Esta proposição encontra eco nas ideias de Aníbal Quijano sobre a
“colonialidade do poder” (1992), que caracteriza, de maneira geral, as estruturas de poder
herdadas do colonialismo que se reproduzem nas relações de raça e gênero, além das
concepções sobre a natureza, tal como observamos ainda nos dias de hoje. Porque se essa
sociedade global se sustenta sobre relações desiguais estabelecidas desde os tempos
coloniais, estas só tomam forma a partir de uma concepção do humano enquanto ser
separado da natureza, uma noção, segundo Walter Mignolo (2018), exclusiva do
paradigma eurocêntrico/ocidental e imposta como uma visão de mundo na qual se
fundamenta a diferenciação entre pessoas.
Para Quijano, essa diferenciação social se funda na necessidade dos europeus, à
ocasião de sua expansão colonial, de estabelecerem bases epistemológicas nas quais
pudessem fundamentar suas práticas imperialistas. Ao reduzirem todos os povos
enredados nesse novo sistema global em que eles se impunham como conquistadores à
categoria de não-europeus, naturalizava-se a sua primazia nesse sistema-mundo enquanto
fator biológico, reafirmava-se a sua organização cultural, política e social como a
culminação do processo civilizacional em uma escala evolucional linear e, de quebra
justificava-se a opressão e submissão das “raças não-europeias” à sua condição marginal
na divisão do trabalho tanto no interior das sociedades globalizadas que se desenhavam
quanto em sua expressão territorial na divisão internacional do trabalho:
A constituição da Europa como nova identidade depois da América e da
expansão do colonialismo europeu sobre o resto do mundo levaram à
elaboração da perspectiva eurocêntrica do conhecimento e, com ela, à
elaboração teórica da ideia de raça como naturalização dessas relações
coloniais de dominação entre europeus e não-europeus. Legitimar as já antigas
ideias e práticas de relações de superioridade/inferioridade entre dominados e
dominantes. Desde então tem-se mostrado o mais eficaz e perdurável
instrumento de dominação social universal, pois dele passou a depender
inclusive outro igualmente universal, ainda que mais antigo: o intersexual ou
de gênero. Os povos conquistados e dominados foram situados em uma
posição natural de inferioridade e, consequentemente, também o foram seus
traços fenotípicos, assim como suas descobertas mentais e culturais. Desse
modo, raça se converteu no primeiro critério fundamental para a distribuição
11
da população mundial em traços, lugares e papéis na estrutura de poder da nova
sociedade. (QUIJANO, 2000, tradução nossa). 4
No Brasil, a categoria sertão é prenhe de significações associadas à reprodução
desse colonialismo do poder desde o seu estabelecimento dentro de sua relação
dicotômica com o litoral a partir de uma ótica centrada e orquestrada em função do
imperialismo português. Essa dualidade espacial concorreria para a reprodução, em nível
nacional, desses mesmos mecanismos apontados por Quijano como as pedras-angulares
de uma epistemologia eurocêntrica e excludente.
A adoção dessa perspectiva permite compreender a perenidade do emprego do
termo sertão no léxico nacional a partir de sua contínua instrumentalização enquanto
recurso discursivo que identifica, segundo uma perspectiva eurocêntrica, o espaço do
Outro e oferece respaldo para a sua opressão ao longo dos séculos.Com base nisso, é
possível verificar como o sertão permanece relevante enquanto construto ideológico na
medida em que a sociedade brasileira, nos sucessivos contextos históricos em que
atualizou o termo para adequá-lo à sua nova lógica interna, continua a reproduzir uma
estrutura colonial de poder.
1.2 – O sertão e a literatura na invenção do Brasil
Já no primeiro relato europeu sobre terras brasileiras, Pero Vaz de Caminha
discorria: “Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos,
não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa.” (CAMINHA,
1500). Frei Vicente de Salvador, tido como o primeiro historiador do Brasil, também
escreveria em sua História do Brasil (1889):
Da largura que a terra do Brasil tem para o sertão não trato, porque até agora
não houve quem a andasse, por negligência dos portugueses que, sendo
4 No original: “La constitución de Europa como nueva identidad después de América y la expansión del
colonialismo europeo sobre el resto del mundo llevaron a la elaboración de la perspectiva eurocentrica de
conocimiento y con ella a la elaboración teórica de la idea de raza como naturalización de esas relaciones
coloniales de dominación entre europeos y no-europeos. Legitimar las ya antiguas ideas y prácticas de
relaciones de superioridad / inferioridad entre dominados y dominantes. Desde entonces ha demostrado ser
el más eficaz y perdurable instrumento de dominación social universal, pues de él pasó a depender inclusive
otro igualmente universal, pero más antiguo: el intersexual o de género. Los pueblos conquistados y
dominados fueron situados en una posición natural de inferioridad y, en consecuencia, también sus rasgos
fenotípicos, así como sus descubrimientos mentales y culturales. De ese modo, raza se convirtió en el primer
criterio fundamental para la distribución de la población mundial em los rangos, lugares y roles en la
estructura de poder de la nueva sociedad”.
12
grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se
de as andar arranhando ao longo do mar como caranguejos. (VICENTE, 1889,
p. 8).
Se a oposição entre mar e sertão parece tomar a forma de mero referencial
geográfico na Carta de Pero Vaz de Caminha, a subsequente exploração portuguesa das
terras americanas, feita sempre pelas beiradas, confirmaria essa oposição no campo
ideológico. Uma vez transpostos os “mares nunca dantes navegados”, o sertão se
apresentava como a nova fronteira da civilização lusitana.
O estabelecimento desses espaços como pares opositivos em diferentes níveis
semânticos permearia o imaginário brasileiro de maneira duradoura, configurando uma
continuidade na apreensão das periferias do território nacional através de uma ótica
colonial. Rui Barbosa, em conferência intitulada Conferência de Alagoinhas, sintetizaria
essa antítese da seguinte forma:
O sertão não conhece o mar. O mar não conhece o sertão. Não se tocam. Não
se veem. Não se buscam. Mas há em ambos a mesma imponência, a mesma
inescrutabilidade. Sobre um e outro se estende esse mesmo enigma das
majestades indecifráveis. De um e outro ressalta a mesma expressão de
energia, força e poder a que se não resiste. Um e outro se nos antolham, do
mesmo modo, como dois reservatórios insondáveis e inesgotáveis de vida.
(BARBOSA, 1988, p. 57).
Como os primeiros colonos portugueses, o Brasil se veria ao longo de sua
história antolhado, como coloca Barbosa, entre o mar e o sertão, estando este último para
si da mesma maneira que o primeiro esteve para o império lusitano — como o horizonte
do seu devir e a categoria definidora de sua identidade nacional. Assim, o Brasil sempre
foi pensado em oposição ao sertão e em função da subjugação das áreas correspondentes
a ele, seu duplo invertido.
Com a multiplicação dos assentamentos portugueses ao longo da costa
americana, convencionou-se referir às terras interiores como os sertões de determinados
topônimos, fossem de serras, rios ou capitanias inteiras. Tornados múltiplos, os sertões
se caracterizavam cada um como uma frente diferente no tímido avanço português para
dentro do continente, mas continuavam ocupando o mesmo lugar no imaginário do
colonizador.
Ferreira, em seu esforço para caracterizar o sertão, acaba definindo-o como um
“longe perto” (2004), no sentido em que, se não era um espaço sobre o qual se exercia
diretamente o controle, já era um alvo de projeções de intenções e fabulações, familiar o
suficiente para se cobiçar, por demais fora de seu alcance para ser assimilado. Essa
13
relação se mostra bem expressa na linguagem cartográfica desde os primórdios da
ocupação portuguesa, na qual os mapas apresentam enormes áreas vazias no centro do
continente ora recheadas com topônimos imaginários, criaturas fantásticas, sociedades
indígenas ainda desconhecidas e, sobretudo, riquezas ocultas (Cf. DELVAUX, 2009).
Essas riquezas ocultas não se limitariam a minerais preciosos ou matérias-
primas, mas abrangeriam as vastas populações indígenas a serem capturadas e tornadas
mão-de-obra cativa. As tribos que habitavam as faixas litorâneas foram as primeiras a
sofrerem os efeitos da colonização portuguesa na América, sendo dizimadas por
epidemias, escravizadas e destituídas de suas terras ancestrais, o que levou os
sobreviventes a procurarem refúgio cada vez mais para o interior a fim de sobreviver.
A interiorização da ocupação lusitana, que se deu de forma relutante e gradual
na medida em que a dependência da metrópole em relação à colônia americana tomava
vulto, foi primeiro devida às entradas e bandeiras organizadas em busca de indígenas a
serem escravizados e minas a serem dilapidadas. Às primeiras expedições se seguiu o
estabelecimento de comunidades permanentes, em um processo secular que resultou na
redução do que ainda se consideravam sertões a áreas cada vez mais dispersas e
circunscritas.
Após o processo de independência política, em 1822, surgiu a necessidade de se
construir uma identidade nacional a partir da mobilização de símbolos e tradições que
denotassem uma separação do império nascente em relação à coroa portuguesa. Eric
Hobsbawm (1997) salienta a potência imagética desses símbolos e tradições, ainda que
inventados, como fator de controle social e legitimação das nações soberanas.
Nesse sentido, a sociedade que se pretendia brasileira, tal qual se apresentava,
oferecia um desafio original aos seus ideólogos: era uma nação sem história. Ao menos
sem história própria.
Benedict Anderson (2006) entende a formação dos Estados-nação modernos a
partir da progressiva formulação de laços históricos e culturais a serem assumidos por
indivíduos e comunidades a princípio sem qualquer ligação, mas irmanados dentro de
uma “comunidade imaginada” fundada em signos comuns e produtora de uma identidade
a ser tacitamente assumida por todos que estivessem cerrados dentro de suas fronteiras
territoriais ou étnicas. A história do Brasil até então era equivalente ao tempo do domínio
português e às trevas pré-cabralinas, enquanto a unidade étnica dessa nação nascente era
desigualmente tripartida entre dois terços majoritários e amplamente desumanizados e
uma minoria cuja herança era justamente a efígie a que se procurava contrapor.
14
Essa ausência de um substrato histórico fez com que a nação brasileira incorresse
em um movimento inverso ao que Benedict Anderson estudou na gênese de seus pares
europeus, vindo a buscar em sua dimensão espacial a validação que a história não lhe
conferia. Dessa forma, a manutenção da unidade territorial desse país de dimensões
continentais se afigurou como a pedra angular e o motor histórico pelo qual se matou e
morreu, como testificam as numerosas revoltas nativistas frustradas desse período, enfim,
pelo qual se fundou a ideia de Brasil.
A esse respeito, Maurice Ronai afirmaria a centralidade da construção discursiva
da paisagem na institucionalização do território nacional:
É através da paisagem que o território se torna visível aos cidadãos, o território
como rede de belas paisagens que dão crédito à bondade da nação, conforme a
ideia platônica do acordo entre a perfeição da forma (paisagem) e a excelência
da coisa (nação). Que o vocabulário designe o Estado, a nação e a paisagem
pela mesma palavra, país (pays [no original francês]), confirma o
funcionamento metonímico do discurso nacional que ignora as escalas e as
distâncias. (RONAI, 2015).
No caso brasileiro, em que o território se apresenta não só como a dimensão
espacial da expressão do poder do Estado, mas como signo de sua fundação e legitimação,
a formulação de Ronai ressoa de maneira contundente.
À ocasião da formação da Itália, outro Estado de fundação tardia, um de seus
estadistas, Massimo d’Azeglio, faria a seguinte afirmação: “Fizemos a Itália, agora
precisamos fazer os italianos.” (d’Azeglio, M, 1860 apud HOBSBAWM, 1979, p. 103).
A passagem encontraria eco na emancipação do Estado brasileiro, ao qual não faltaram
ideólogos para fabularem um substrato para a identidade nacional.
Nesse contexto, a literatura foi o principal plano a partir do qual se projetaram
os signos que viriam a compor a brasilidade, da natureza exuberante e indomada ao
melting pot tupiniquim. É particularmente interessante a convergência entre a nação e o
sertão na instrumentalização dos povos indígenas na construção do mito fundacional nos
romances do romantismo indianista.
Edward Said investigaria em seu Cultura e Imperialismo (1994) as imbricações
entre a literatura produzida nas metrópoles europeias e as práticas imperialistas desses
Estados. Ele identificaria nessas produções literárias o substrato de um imaginário em
torno do imperialismo europeu que serviria para justificá-lo e promovê-lo, em uma
relação que encontra paralelos lusófonos tanto, de forma mais óbvia, na obra máxima de
Luís de Camões quanto em certa medida no conjunto da obra de José do Alencar.
15
Em Iracema (1865), de José de Alencar, é da junção entre a personagem
homônima e o português Martim que nasce o primeiro brasileiro, Moacir, o filho da dor.
Iracema, como toda personagem indígena mobilizada no contexto desse ciclo romântico,
é uma representação idealizada que serve somente como matéria-prima para a gênese do
Brasil. A “filha do sertão”, como ela é referida no romance, se confundia com a própria
natureza dos bosques onde vivia antes de abandoná-los em função de seu amor por
Martin, a quem passa a dedicar a vida.
Iracema definha a cada passo que dá em direção ao litoral em sua retirada do
interior das matas virgens, em um movimento no qual o sertão parece se caracterizar como
um cronotopo, uma interseção entre a representatividade de uma dimensão espacial e
outra temporal no plano literário (BAKHTIN, 2018). O caráter cronotópico que o sertão
apresenta nessa narrativa se apresenta como um símile expressivo do sentido que o termo
assume historicamente no Brasil — o de um espaço deslocado dos demais no plano
temporal.
Dessa forma, a travessia de Iracema condensa, narrativamente, a distância no
tempo e no espaço que separa os povos nativos da nação que se desenhava. Nessa nação
porvir, os indígenas, como Iracema, que morre após parir seu filho sozinha e amamentá-
lo até o retorno de Martin, só têm lugar como parte de um passado imaginário a ser
feitichizado.
Alfredo Bosi, ao analisar os romances indianistas de Alencar, afirmaria que "O
risco do sofrimento e morte é aceito pelo selvagem sem qualquer hesitação, como se sua
atitude devota para com o branco representasse o cumprimento dum destino, que Alencar
apresenta em termos heroicos e idílicos" (BOSI, 1972, p. 76), em uma interpretação do
período colonial que Bosi avalia como “pesadamente ideológica”. Antonio Candido, ao
se propor tratar da relação entre o desenvolvimento da literatura brasileira e a história
social do Brasil, condensaria a questão da seguinte forma:
[...] vê-se que no Brasil a literatura foi de tal modo expressão da cultura do
colonizador, e depois do colono europeizado, herdeiro dos seus valores e
candidato à sua posição de domínio, que serviu às vezes violentamente para
impor tais valores, contra as solicitações a princípio poderosas das culturas
primitivas que os cercavam de todos os lados. Uma literatura, pois, que do
ângulo político pode ser encarada como peça eficiente do processo
colonizador. (CANDIDO, 2006, p. 199).
É notável não só a intenção do apagamento do indígena através da miscigenação,
figurada aqui como um branqueamento chancelado pela educação europeia destinada a
Moacir, mas também a invisibilização do negro nessa narrativa de fundação nacional. Se
16
a representação do papel do indígena podia ser falseada pela conjuração de um tipo ideal
habitante dos confins do tempo e do espaço, a escravização dos negros era uma realidade
sempre presente e incontornável na estruturação do Brasil-Império.
Irmanadas por esse passado colonial comum, as nações africanas lusófonas não
compartilham da significação e aderência que o termo sertão ganhou em terras brasileiras.
Segundo Mia Couto: “Os portugueses levaram a palavra para África e tentaram nomear
assim a paisagem da savana. Não resultou. A palavra não ganhou raiz. Apenas nos escritos
coloniais antigos se pode encontrar o termo ‘sertão’. Quase ninguém hoje, em
Moçambique e Angola, reconhece o seu significado.” (COUTO, 2011, p. 70).
A esse dado concorre a formulação de Quijano de que, enquanto determinantes
históricos gerais, como o processo colonial comum às ex-colônias portuguesas, apontam
para uma tendência convergente na formação das sociedades às quais se impõem, são as
articulações específicas entre as variáveis de cada contexto que determinarão em última
instância o processo de formação histórica destas:
Uma totalidade histórico-social é um campo de relações estruturado pela
articulação heterogênea e descontínua de diversas áreas da existência social,
cada uma delas por sua vez estruturada por elementos historicamente
heterogêneos, descontínuos no tempo e conflituosos. Isso quer dizer que as
partes em um campo de relações sociais de poder não são tão somente “partes”,
o sendo em relação ao conjunto do campo, da totalidade que ele constitui e,
consequentemente, se movem dentro da orientação geral do conjunto; mas elas
não o são em sua relação separada umas com as outras. Cada uma delas é uma
unidade total em sua própria configuração, pois também possui uma
constituição historicamente heterogênea. Cada elemento de uma totalidade
histórica é uma particularidade e, ao mesmo tempo, uma especificidade,
mesmo, eventualmente, uma singularidade. Todos eles se movem no sentido
da tendência geral do conjunto, mas têm, ou podem ter, uma autonomia relativa
e que pode ser, ou chegar a ser, conflituosa com a do conjunto. (QUIJANO,
2000, p. 298-299, tradução nossa)5.
No caso brasileiro, diferente das ex-colônias portuguesas na África, a
reelaboração do sertão como expressão da colonialidade do poder a ser reiteradamente
5 No original: “Una totalidad histórico-social es un campo de relaciones estructurado por la articulación
heterogénea y discontinua de diversos ámbitos de existencia social, cada uno de ellos a su vez estructurado
con elementos históricamente heterogéneos, discontinuos en el tiempo y conflictivos. Eso quiere decir que
las partes en un campo de relaciones de poder social no son sólo “partes”; lo son respecto del conjunto del
campo, de la totalidad que éste constituye y, en consecuencia, se mueven dentro de la orientación general
del conjunto; pero no lo son en su relación separada con cada una de las otras. Cada una de ellas es una
unidad total en su propia configuración, porque igualmente tiene una constitución históricamente
heterogénea. Cada elemento de una totalidad histórica es una particularidad y, al mismo tiempo, una
especificidad, incluso, eventualmente, una singularidad. Todos ellos se mueven dentro de la tendencia
general del conjunto, pero tienen o pueden tener una autonomía relativa y que puede ser, o llegar a ser,
conflictiva con la del conjunto”.
17
instrumentalizada pelas elites concorreu para sua perenidade no pensamento social do
país até a atualidade. Isso não impediu o autor angolano Ruy Duarte de Carvalho de
buscar paralelos entre Brasil e Angola em seu livro, Desmedida (2006), que
extrapolassem sua condição partilhada de ex-colônias lusitanas.
Carvalho aproxima esses dois países a partir dos enfrentamentos históricos pela
superação dessa condição e da ressignificação de sua herança colonial (CARVALHO,
2013, p. 397-8), entendendo a literatura como um campo privilegiado para a expressão
dessas disputas epistemológicas. Ele confronta o sertão que conheceu através de
Guimarães Rosa com a região que ele percorre em sua viagem ao longo do rio São
Francisco, reconhecendo na potência poética que o sertão roseano confere ao sertão real
a expressão de uma alternativa ao discurso colonial que converge com suas aspirações de
autodeterminação para seu próprio país.
Carvalho sintetizaria suas proposições em um Decálogo Neo-Animista (2009),
em que propõe uma desobediência epistemológica ao paradigma ocidental europeizante
que se aproxima muito do que Walter Mignolo expõe como uma expressão do
pensamento decolonial (2018):
O paradigma humanista, imposto à espécie inteira pela via da ocidentalização
completa do mundo, e decorrente da colocação ideológica e idealista da terra
no centro do universo, e do homem no centro da criação e do lado do divino
em oposição ao resto da natureza, ao procurar garantir, no seio da criação, um
lugar de eleição e privilégio para o homem, produz necessária e
obrigatoriamente lugares de eleição e de privilégio para certos homens e
grupos de pessoas. [...]
Outros paradigmas postos de parte e arredados de consideração por advirem
de culturas dominadas ou anuladas pelo Ocidente, poderão ser recuperados e
adaptados a situações relidas agora, ou inventados a partir da reconsideração
dos seus fundamentais estigmatizados como arcaicos pelo processo de
imposição da civilização ocidental. (CARVALHO, 2009, p. 1).
Situando a ótica eurocêntrica como o paradigma a ser desafiado, ambas as
perspectivas convergem enquanto propositoras de alternativas que viabilizem a
interpretação dos espaços periféricos em seus próprios termos. Esses posicionamentos,
que emergem como resposta às condições históricas de fins do século XX e início do
XXI, não são decerto as primeiras formas de enfrentamento a esse paradigma totalizante,
mas elas permitem discutir alternativas anteriores sob uma nova luz.
O projeto de integração nacional, ao qual José de Alencar confessamente
subscrevia seu projeto político-literário, como expresso no texto Benção Paterna (1872),
correspondia a um processo de apagamento e sujeição dos espaços marginalizados do
Brasil em função de uma noção de progresso totalizadora e europeizante. Mesmo quando
18
Alencar retrata o Brasil profundo do Sul e do Norte com O Gaúcho (1870) e O Sertanejo
(1875), os vaqueiros nos quais essas obras são centradas são idealizações de tipos rurais
heroicos que correspondem ao papel do indígena em Iracema enquanto depositários de
valores e virtudes europeias que Alencar pretendia serem nacionais.
Entretanto, nesse contexto, a condição de colono ou caboclo, ainda que
relacionada aos processos de mestiçagem, configurava-se em uma situação diferente
daquela do indígena “pré-histórico”. Se este estava destinado ao desaparecimento, os
tipos representados pelo sertanejo e o gaúcho já corresponderiam a um outro momento
histórico, mais associado à ocupação e colonização admissíveis no presente e no futuro.
O abandono de temas indianistas em favor de uma temática sertanista
corresponde a um esgotamento do próprio idealismo romântico que pautava suas obras.
Essa mudança no paradigma literário que se operava no início da década de 1870 era
devida ao influxo de teorias estrangeiras modernas que influenciaram toda uma geração
de intelectuais a buscarem novas formas de expressão estética e política.
Angela Alonso, em seu livro Ideias em Movimento: A Geração de 1870 na Crise
do Brasil-Império (2002), identifica nessa geração uma rejeição comum ao sistema social
dominante e às manifestações culturais que o subsidiavam. Politicamente marginalizados,
esses jovens encontrariam nas letras uma das principais frentes de contestação ao regime
hegemônico.
Um evento marcante desse período foi a publicação, entre 1871 e 1872, de uma
série de artigos no jornal Questões do Dia que criticavam os romances de José de Alencar
em diferentes frentes, mas sobretudo pelo excesso de imaginação e falta de observação
das realidades regionais que ele representava. Seu autor era o escritor Franklin Távora,
que nos anos seguintes viria a empreender seu próprio projeto político-literário a fim de
se aproximar de um “verdadeiro retrato” do Brasil, a Literatura do Norte, debruçando-se
para tanto sobre a história e as tradições do interior das províncias setentrionais do Brasil.
Para José Maurício Gomes de Almeida, o esforço de Távora em dar
representação a esses espaços marginalizados pela política imperial vigente constituiria o
primeiro movimento em prol de uma literatura regionalista no Brasil. Em seu livro A
Tradição Regionalista no Romance Brasileiro (1981), ele delimitaria os contornos do que
comporia uma obra regionalista da seguinte forma:
De vez que a região implica uma parte dentro de um todo mais amplo – o país
como tal – a arte regionalista stricto sensu seria aquela que buscaria enfatizar
os elementos diferenciais que caracterizariam uma região em oposição às
demais ou à totalidade nacional.
19
Existe latente em todo posicionamento regionalista, manifeste-se ele no campo
artístico-cultural ou político-social, uma consciência orgulhosa dos valores
locais e um desejo de vê-los afirmados, reconhecidos, no plano nacional. No
caso brasileiro, essa atitude é facilmente observável em um Franklin Távora,
com sua “literatura do Norte”. (ALMEIDA, 1981, p. 47).
Conjugados dentro de um arcabouço imagético comum inventariado por esse
projeto literário e as demais obras de cunho regionalista que o seguiram, os sertões do
norte se individualizariam em relação às demais fronteiras civilizatórias no território
brasileiro. Sua identificação com o fenômeno das secas em particular seria tanto a linha
de força da literatura produzida sobre esses espaços quanto o fator agregador do que viria
a se constituir como a região Nordeste (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2017).
No caso específico de Távora, ele não só articulou esses temas sertanejos que
viriam a compor a matéria-prima do discurso regionalista nordestino, mas ele o fez a
partir das dicotomias que seriam consagradas posteriormente por Euclides da Cunha.
Opondo em sua obra o litoral e o sertão em equivalência às dualidades cidade x campo e
civilização x barbárie (Cf. MORAES, 2003), o sertão de Távora “[...] é um espaço
violento e perigoso, onde o poder da autoridade central não alcança” (MARTINS, 2008,
p. 11), pavimentando o caminho para os demais trabalhos que pintariam o sertão, tal qual
ele, a partir de uma matriz discursiva que se opunha àquela que fora até então a reinante.
1.3 – Dos sertões nacionais ao sertão nordestino
Em ilustrativa reflexão sobre as particularidades da discursividade do sertão no
imaginário brasileiro, o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire escreve, em um
relato de suas viagens pelas então províncias do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, que
“[o] nome de Sertão ou Deserto não designa uma divisão política do território; indica
apenas um tipo de divisão vaga e convencional determinada pela natureza particular do
país e, sobretudo, pela debilidade de seu povoamento” (SAINT-HILAIRE, 1830, p. 299-
300, tradução nossa)6, acrescentando, em nota de rodapé referente a essa passagem, que
“[v]árias províncias, todas, talvez, têm seu sertão, que é a sua parte mais deserta”
6 No original: “Le nom de Sertão ou Desert ne désigne point une division politique de territoire; il n'indique
qu'une sorte de division vague et conventionnelle déterminée par la nature particulière du pays et surtout
par la faiblesse de sa population”.
20
(SAINT-HILAIRE, 1830, p. 300, tradução nossa)7. Aqui, ele sublinha a multiplicidade
dos sertões brasileiros no discurso corrente de sua época, assim como situa sua a
identificação mútua desses diferentes espaços a partir de sua aproximação com a noção
do deserto, dos espaços despovoados e, portanto, vazios.
Mais adiante, Saint-Hilaire oferece outro relato interessante sobre a apreensão
do sentido do sertão em sua época ao ressaltar que “[a]queles que falam do sertão
asseguram que ele se parece com um jardim, e essa comparação virou até uma espécie de
provérbio” (SAINT-HILAIRE, 1830, p. 300, tradução nossa)8, mas que, para ele, “[...]
por mais florido que seja, um jardim plantado quase que da mesma maneira em um espaço
de várias centenas de léguas cansa, afinal, pela sua monotonia” (SAINT-HILAIRE, 1830,
p. 300, tradução nossa)9. Se esses trechos expressam, respectivamente, a ideia corrente
que se fazia então do sertão em terras brasileiras e a opinião que o viajante francês faz
dela, a passagem que se segue, além de desenvolver mais detidamente a impressão de
Saint-Hilaire sobre o sertão, antecipa o tipo de discursividade que se tornaria corrente
anos mais tarde para tratar desses espaços:
Mas que tédio não é vivido por quem, como eu, atravessa o sertão em tempos
de seca, quando as pastagens perderam o frescor e a maior parte das árvores
estão despojadas de folhas. Então, um calor irritante toma conta do viajante;
uma poeira incômoda sobe sob seus pés, e às vezes ele nem mesmo encontra
água para matar sua sede. É toda a tristeza dos nossos invernos com um céu
brilhante e os fogos do verão (SAINT-HILAIRE, 1830, p. 300, tradução
nossa10).
Saint-Hilaire oferece aqui uma descrição do sertão quando acometido pelas
secas, um quadro diametralmente oposto àquele pintado por aqueles que o descreveram
para si como um “jardim”. Seria essa faceta da paisagem sertaneja que assomaria como a
determinante da produção discursiva sobre esses espaços algumas décadas depois da
publicação dos escritos do autor francês em função de uma série de elementos que
7 No original: “Plusieurs provinces, et toutes, peut-être, ont leur sertão, qui en est la partie la plus déserte”. 8 No original: “Ceux qui parlent du sertão assurent qu'il ressemble à un jardin, et cette comparaison est
même devenue une sorte de proverbe”. 9 No original: “[...] quelque fleuri qu'il soit, un jardin planté à peu prés sur le même modèle dans un espace
de plusieurs centaines de lieues, fatiguerait enfin par sa monotonie”. 10 No original: “Mais quel ennui ne doit pas éprouver celui qui, comme moi, parcout le Sertão dans le temps
des sécheresses, lorsque les pâturages ont perdu leur fraîcheur, et que la plupart des arbres sont dépouillés
de leurs feuilles. Alors une chaleur irritante accable le voyageur; une poussière incommode s'élève sous ses
pas, et quelquefois même il ne trouve pas d'eau por étancher sa soif. C'est toute la tristesse de nos hivers
avec un ciel brillant et le feux de l'été”.
21
culminariam na transfiguração da paisagem sertaneja no imaginário nacional em um
avesso daquilo que fora até então.
Para Candice Vidal e Souza (1998), haveria uma inflexão em relação à apreensão
do espaço sertanejo pelo pensamento social brasileiro em fins do século XIX que
corresponderia às mudanças dos modelos literários em terras brasileiras. Se antes o sertão
era tido como um espaço cujas paisagens exuberantes e a população exótica eram
elementos caros a uma elite que buscava singularizar o Brasil em relação à sua antiga
metrópole, o que corresponderia para a autora a uma perspectiva romântica, a emergência
desse espaço como um problema nacional, um duplo distorcido da civilização que se
espraiava pelo litoral, estaria associada a uma perspectiva realista amplamente
identificada com um paradigma modernizador para o qual o sertão se apresentava como
uma fronteira a ser incorporada ao ciclo do capital.
Essas perspectivas, em especial, a identificação que a autora estabelece com suas
respectivas correntes literárias, seriam, consequentemente, tributárias dos processos
históricos aos quais elas estão atreladas. No caso da perspectiva realista sobre o sertão,
como apontada por Souza, um evento em particular corresponderia tanto ao
desenvolvimento da literatura realista acerca do sertão quanto ao motor histórico de
mudanças significativas na acepção da palavra sertão e na divisão política do país.
A Grande Seca que assolou as províncias atlânticas do norte do Brasil entre 1877
e 1880 atraiu os olhos de todo o país para a crise humanitária cíclica que se estabelecia
regularmente na região em função do despreparo da máquina pública frente aos rigores
do meio. O que particularizou esse período de estiagem em relação aos demais foi a
mortalidade sem precedentes que essa seca provocou em função da interiorização do
povoamento nessas províncias, realizado com o intuito de expandir a criação de gado e o
plantio de algodão na região.
Essa expansão produtiva rumo ao interior do continente se deu por conta do
permanente declínio da produção açucareira nessas áreas, a qual, apesar de ter sido o
carro-chefe da exportação nacional nos séculos anteriores, foi desbancada em função da
expansão das lavouras de café ao sul e das pressões do mercado internacional, subsistindo,
entretanto, como a pedra angular do decadente poder político das elites agrárias do Norte.
Um longo período de regularidade climática e a escassez da oferta global de algodão em
função da Guerra Civil nos EUA (NEVES, 2007, p. 87) estimularam a diversificação
produtiva dessas elites açucareiras, que impulsionaram o povoamento das porções
22
interiores de suas respectivas províncias, antes esparsamente ocupadas por criadores de
gado de corte.
O impacto da Grande Seca nessas povoações do interior foi catastrófico,
ocasionando a migração forçada de dezenas de milhares de retirantes para cidades
litorâneas que não tinham meios para alocá-los devidamente. A tragédia social foi
esmiuçada pela ampla cobertura midiática dedicada às agruras da retirada do sertão
inclemente e ao caos instaurado pelas turbas de sertanejos desenraizados e desumanizados
nas cidades superlotadas do litoral.
As consequências para os empreendimentos das elites dessas províncias também
foram sentidas, somando-se à Lei do Ventre Livre, a concorrência com outros centros
produtores de açúcar e a transferência de subsídios para as lavouras de café foram como
um coup de grâce nas pretensões de restituir a centralidade política e econômica dessa
região já então marginalizada. É a partir da demanda por meios que resguardassem essas
oligarquias que se formou um bloco político que representasse a “região das secas” em
nível nacional.
Assim, esses grupos foram obrigados a se articularem em torno do “fechamento
imagético-discursivo de um espaço subalterno na rede de poderes” uma vez que já não
poderiam mais “aspirar ao domínio do espaço nacional” (ALBUQUERQUE JÚNIOR,
2009, p. 83). Convertendo essa ação política na delimitação de uma problemática comum
a essas províncias, seria empreendida a identificação de um espaço comum do qual
sobreviria o estigma compartilhado pelo recorte regional institucionalizado como o
Nordeste: o sertão das secas.
Pierre Bourdieu, em análise da correlação entre dominação simbólica e lutas
regionais, afirma ser esse processo de “revolução simbólica” pela via da reivindicação do
estigma imposto pelas forças hegemônicas um poderoso catalisador de identidades
regionais. Ele escreve que:
O estigma produz a revolta contra o estigma, que começa pela reivindicação
pública do estigma, constituído assim em emblema [...] e que termina na
institucionalização do grupo produzido (mais ou menos totalmente) pelos
efeitos econômicos e sociais da estigmatização. É, com efeito, o estigma que
dá à revolta regionalista ou nacionalista, não só as suas determinantes
simbólicas, mas também os seus fundamentos econômicos e sociais, princípios
de unificação do grupo e pontos de apoio objectivos da acção de mobilização
[sic]. (BOURDIEU, 1992, p. 125).
É assim que o sertão nordestino é assumido como categoria expressiva do signo
fundacional dessa identidade regional comum e simulacro último da significação que a
23
categoria sertão assumiu ao longo dos séculos em terras brasileiras. Assim, tomaria
forma:
Um sertão que é o Nordeste, espaço mítico já presente na produção cultural
popular, no cordel e em romancistas do século XIX, como Franklin Távora e
José de Alencar, sistematizado definitivamente por Euclides da Cunha e, agora,
agenciado para representar uma região. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2009, p.
134)
Seria em 1902 com a publicação de Os Sertões que Euclides da Cunha sublimaria
toda a carga simbólica associada historicamente ao sertão em sua representação da Guerra
de Canudos (1893-1897). Opondo dois Brasis, um da civilização do litoral e outro da
barbárie sertaneja, o autor mobiliza teorias mesológicas, antropológicas e sociológicas,
mas elas não bastaram para acomodar o panorama que se descortinava diante de si.
Euclides se valeu de sua própria potência poética para capturar a dramaticidade
não só do embate entre aqueles dois Brasis, mas dos homens contra a própria terra e das
suas convicções contra a realidade inescapável de que aquela campanha militar se
configurara em um massacre impiedoso. Sua narrativa é subvertida pela força dos
acontecimentos, convertida de uma ode ao progresso republicano a uma elegia daquela
sociedade que ele reconheceu como a “rocha viva da nossa raça”, o “cerne de uma
nacionalidade” brasileira (CUNHA, 2019, p. 536).
Assim, ele retoma tematicamente a histórica oposição entre o litoral e o sertão
como a expressão espacial de tempos descompassados, como bem expresso na sua
afirmação de que “não no-los separa um mar, separam-no-los três séculos...” (CUNHA,
2019, p. 192). O sertão, derradeiro cronotopo brasileiro, apresenta-se simultaneamente
como a soma no campo discursivo do que separa Canudos e a República e como a
materialização dessa diferença no espaço geográfico.
Com Euclides, é reiterada mais uma vez a extensão da articulação da categoria
sertão com os mecanismos de reprodução da colonialidade do poder. A identificação do
sertão e do litoral como situados em tempos — lê-se, em estágios de desenvolvimento
civilizatório — distintos, além da centralidade das teorias raciais nas elaborações do
autor, apontam para a permanência desses mecanismos de dominação no pensamento
social brasileiro, fato que se consumou e aprofundou a partir da publicação do texto do
autor.
A impossibilidade colocada diante de Euclides de se apreender o sertão
fundamentando-se em cientificismos positivistas é sintomática da demanda por novas
epistemologias a partir das quais se pensar esse espaço e sua significação em relação ao
24
país. A subversão do estigma da região das secas, do reflexo invertido do Brasil, em suma,
da homogeneização da região Nordeste com a própria ideia de sertão, passa pela
ressignificação dessa identidade a partir da produção de outros sentidos, ao que
convergiram desde os tempos de Távora uma sucessão de artistas que deram
prosseguimento à sua busca pela autodeterminação dessa região marginalizada.
Assim, ao mesmo tempo em que Euclides cristalizou uma concepção unívoca de
um sertão da seca associado ao Nordeste brasileiro com a publicação d'Os Sertões, de
forma que o plural no título de sua obra aparece de forma um tanto quanto paradoxal, ele
deu os meios para que os autores que o sucederam pudessem conceber veredas novas e
múltiplas a partir das quais formular uma imagética sertaneja a partir do diálogo com esse
arcabouço discursivo engendrado pela superimposição de sentidos associados ao sertão
ao longo dos séculos e consolidada por ele.
A superação das estruturas de poder coloniais que promoveram sucessivamente
as mortes de indígenas, retirantes e canudenses a partir da mobilização do sertão enquanto
ideologia reprodutora da colonialidade do poder passa pela compreensão de seus
símbolos e sua subversão. É remeter à frigideira da lenda de origem da vila de Sertã, ao
se converter o léxico da dominação colonial em símbolo de resistência.
Essa perspectiva encontra eco na proposição de Ruy Duarte de Carvalho da
aceitação da pluralidade de vivências como uma perspectiva a ser contemplada de
maneira universal em oposição à ótica totalizadora que se reafirma através da
colonialidade do poder:
E se o horizonte da nossa [idade] fosse a possibilidade, a descoberta, a
legitimação de múltiplos horizontes numa mesma idade? A simultaneidade dos
horizontes, até aqui múltiplos horizontes, fechados sempre sobre si mesmos,
no seu tempo, no seu espaço. E, quando em relação, horizontes dominantes,
horizontes dominados. (CARVALHO, 2007, p. 158).
Em relação ao sertão, Janaína Amado sintetizaria o caráter múltiplo do qual a
categoria é imbuída ao ser contemplada por perspectivas diversas da que se cristalizou
como a hegemônica, revelando uma polissemia invisibilizada, mas não por isso menos
relevante:
[...] para alguns degredados, para os homiziados, para os muitos perseguidos
pela justiça real e pela Inquisição, para os escravos fugidos, para os índios
perseguidos, para os vários miseráveis e leprosos, para, enfim, os expulsos da
sociedade colonial, "sertão" representava liberdade e esperança; liberdade em
relação a uma sociedade que os oprimia, esperança de outra vida, melhor, mais
feliz. (AMADO, 1995, p. 149-150)
25
Franklin Távora reuniria em sua obra essas questões complexas e conflitantes
que tiveram em sua época um ponto de inflexão. Imbuído não só do zeitgeist dos últimos
anos do Império, mas de suas próprias idiossincrasias e contradições, Távora se apresenta
como uma vereda única, pois múltipla, nos estudos literários sobre o sertão.
26
Capítulo 2 – Historiador, crítico, político ou filósofo?
No estado atual das coisas, a literatura não pode ser perfeitamente um culto, um dogma
intelectual, e o literato não pode aspirar a uma existência independente, mas sim
tornar-se um homem social, participando dos movimentos da sociedade em que vive e
de que depende.
(Machado de Assis)
2.1 – De tabajaras, monarcas e romanos
Ao longo do século XIX, o Império Brasileiro era organizado em torno de uma
rígida hierarquia social na qual uma elite tradicional que gravitava nos principais círculos
da capital imperial ditava os rumos políticos da jovem nação. Essa dominação se afirmava
não só na arena da política partidária, mas também no campo da produção discursiva,
impondo-se no campo literário através da instrumentalização do romantismo indianista
na fundação de signos nacionais coerentes com o projeto político-ideológico dessas elites.
Na década de 70 desse século, um “bando de ideias novas” tomou de chofre os
círculos intelectuais de norte a sul do país. Toda uma nova geração de intelectuais se
municiava de um arcabouço teórico estrangeiro e moderno que vinha contestar os
paradigmas vigentes no Brasil-Império a partir de posições das mais diversas, alardeando
“[...] o positivismo, o evolucionismo, o darwinismo, a crítica religiosa, o naturalismo, o
cientificismo nas artes, etc.” (ROMERO, 1900, p. XXIII–XXIV).
Em seu livro Ideias em Movimento: A Geração de 1870 na Crise do Brasil-
Império (2002), Angela Alonso identifica nessa geração uma rejeição comum ao sistema
de dominação política imperial e os seus desdobramentos no campo cultural, os quais a
autora reúne sob a epítome de “status quo saquarema”. Dada a indistinção entre as esferas
política e intelectual que marcava o período, a mobilização da geração 1870 se fez
concomitantemente em ambas (ALONSO, 2002, p. 162), sobretudo a partir da produção
literária, “a forma cultural por excelência do período e para a qual convergiam todos os
esforços de redefinição dos valores sociais, avassalados pelo processo de transformações
históricas” (SEVCENKO, 1983, p. 225-226).
Um dos eventos mais emblemáticos desse processo foi a publicação, por parte
de Franklin Távora, de uma série de artigos no jornal Questões do Dia, entre 1871 e 1872,
criticando duramente os romances de José de Alencar pelo excesso de imaginação e falta
de observação das realidades regionais que ele representava. Nos anos seguintes, Távora
empreenderia seu próprio projeto político-literário a fim de se aproximar de um
27
“verdadeiro retrato” do Brasil, a Literatura do Norte, debruçando-se para tal sobre a
história e as tradições das províncias setentrionais do Brasil.
Tornado notório sobretudo em função da polêmica que protagonizou nos
primeiros anos da década de 1870 em torno da obra de Alencar, reunida posteriormente
sob o nome de Cartas a Cincinato (1872), o escritor se associou ao longo de toda a sua
vida a discussões públicas dos temas mais diversos, assim como imprimiu em cada uma
de suas obras literárias uma nota de crítica e de revolta. Távora era, antes de tudo, um
polemista.
João Franklin da Silveira Távora nasceu em 13 de janeiro de 1842 em Bauturité,
no Ceará, no seio de uma família profundamente implicada com a Revolução Praieira
(1848). Nos primeiros anos de vida do autor, sua família se mudou para a província de
Pernambuco, onde seu pai participou ativamente da Revolução de 1848 ao lado de José
Inácio Abreu e Lima, célebre general de Simón Bolívar e amigo da família Távora, vindo
a ser julgado e preso por sedição. Ainda em terras pernambucanas, ele próprio completou
seus estudos na Faculdade de Direito do Recife (Cf. AGUIAR, 1997, p.45-56)
Essa instituição, por sua vez, congregava grande parte da intelectualidade
nortista em formação nos tempos de Távora, servindo de palco para a ampla discussão de
pautas políticas, filosóficas e estéticas, antecipando os temas que dali tomariam as páginas
dos jornais e das rodas de conversas por toda a província. Não por coincidência, membros
dos corpos discente e docente encabeçaram diversos dos movimentos políticos e
vanguardas intelectuais que abalaram a província de Pernambuco ao longo do século XIX.
Imerso nesse meio, Távora trilharia o caminho das letras ainda em seus anos de
estudante ao escrever sua primeira peça, Um Mistério de Família (1862), na qual daria
mostras de uma tendência sempre presente em suas obras: o comentário social. Centrada
no drama da jovem Amélia, que vê recair sobre si e sua família uma série de transtornos
por conta da perda de sua castidade, a trama critica ostensivamente o artigo 219 do Código
Criminal do Império do Brasil, que instituía que a pena do crime de “deflorar mulher
virgem menor de dezessete anos” era “desterro para fóra da comarca, em que residir a
deflorada, por um a tres annos, e de dotar a esta [sic]”, mas que “seguindo-se o casamento,
não terão lugar as penas” (BRASIL, 1830).
A despeito da pouca idade do autor e da natureza pouco usual e polêmica da
discussão penal na qual se centra a narrativa, o drama foi um sucesso de crítica, sendo
posteriormente publicado em formato impresso. A obra não pavimentou o caminho para
uma carreira de dramaturgo, apesar de o autor ainda ter escrito uma segunda peça de
28
menor repercussão intitulada Três Lágrimas (1870), mas foi sucedida por uma série de
romances cujo argumento central sempre ecoaria a indisposição do então jovem autor
para com as injustiças de seu tempo.
A respeito do drama Três Lágrimas, Cláudio Aguiar nota continuidades em
relação à primeira peça, em especial a tematização da desonra, dessa vez através da
mercantilização da virgindade da jovem Adelaide pelo pai, que busca alçá-la ao
casamento com um rico barão ao torná-la sua amante. Além desta, há também a
ressurgência de uma crítica social contundente neste segundo drama do autor, que
percorre aspectos diversos: desde os relacionados à etiqueta e às convenções sociais da
época até a defesa da libertação dos negros escravizados (AGUIAR, 2003, p. XXIII,
XXVII).
Outro elemento que subsiste é o caráter quase didático dessa crítica social,
formalizado aqui pelo emprego de um raisonneur, uma “personagem que representa a
moral ou o raciocínio adequado, encarregada de fazer com que se conheça, através de seu
comentário, uma visão ‘objetiva’ ou ‘autoral’ da situação” (PAVIS, 1996, p. 323),
presente na figura do empresário Coutinho, personagem que, de um papel secundário,
toma vulto ao longo da peça com seus juízos acerca da ação dramática e do panorama
social no qual ela se desenrola (AGUIAR, 2003, p. XXV-XXVI). O emprego de recursos
formais que balizassem o teor didático de sua produção ficcional seria uma constante da
parte de Távora, que recorreria à voz de um narrador onisciente intruso (Cf. FRIEDMAN,
2002, 172-174) para desenvolver a totalidade de seus romances.
A essa incursão pela dramaturgia, seguiu-se a publicação de seu primeiro
romance, Os Índios do Jaguaribe (1862), o qual convida a um exame mais detalhado em
razão de suas particularidades em relação às demais obras do autor. A despeito da
distância temporal que separa esse romance dos demais, aqui já se afirmavam, ainda que
de maneira incipiente, as linhas de força do cânone do escritor, expressas na sua fixação
do tempo da trama no passado remoto e o seu palco no norte do país, derivando dessa
ficcionalização de eventos históricos uma problematização das pautas políticas em voga
em sua própria época.
No romance de 1862, Távora empreende uma reconstrução fictícia dos
desdobramentos da expedição do capitão-mor Pero Coelho de Sousa, que em 1603 partiu
da Paraíba rumo às terras até então inexploradas em torno do rio Jaguaribe, fundando os
primeiros povoamentos portugueses no que viria a se tornar a província do Ceará. Do
substrato histórico propriamente dito, subsistem os nomes de Coelho de Sousa e de outro
29
notório português que tomou parte na campanha, Martim Soares Moreno, assim como
dos chefes Potiguaras Camarão e Jacaúna e do cacique Tabajara Irapuã, este último
apenas referido por meio de diálogos.
Em contrapartida, os elementos ficcionais abundam e norteiam a trama, que
consiste na introdução dessas personagens históricas nas disputas políticas de uma tribo
de Tabajaras estabelecida às margens do rio referido no título da obra. As figuras
históricas retratadas nunca chegam a interagir diretamente com a tribo fictícia de Távora,
servindo antes para situá-las histórica e geograficamente — a narrativa se situa no período
em que a expedição de Coelho de Sousa estaria ainda nos preparativos para a última etapa
da viagem, ou seja, sua incursão até as margens do rio Jaguaribe, fato que contribuirá para
a ebulição das tensões sociais na tribo.
No enredo, Jurupary, primeiro entre os guerreiros da povoação Aracaty, dos
Tabajaras, é alvo das maquinações do cacique Jaguary e do pajé Inharé. Estes temem uma
subversão da ordem de poder na tribo, uma vez que os méritos do influente e querido
guerreiro levam seus companheiros a questionarem a validez da hereditariedade que dá
poder ao cacique e o aclamarem como líder:
— Cesse de uma vez o despotismo de Jaguary—disse Cayrara. Até hoje tem
sido sua vontade, apoiada na do pagé, o único movel da vida da tribu; cesse o
domínio de um só, O que quer dizer ser só Jaguary nosso chefe? Mandou-o
Tupana acaso? Já seu filho, ha pouco nascido, se desvanece de ser mais tarde
aquelle a quem caiba a honra de marchar para a guerra á frente de todos. Não;
a tribu se deve governar por si mesma. Fazer gyrar a autoridade de chefe em
uma só família é admittir que só n'essa família seja possível o merecimento de
governar, quando assim não é, guerreiros. Si nos lances arriscados todos
correm os perigos, si na guerra todos se expõem a morrer, na paz caiba também
a todos a possibilidade de governar.
Applausos phreneticos cobriram a voz do orador A democracia fazia
propaganda; a tribu assumia em fim a consciência de sua soberania e revoltava-
se contra o odioso, diremos mesmo criminoso privilegio da monarchia
hereditária do cacique e de sua dynastia. Tal em nosso mundo acorda um dia a
nação, que dormia como epiléptica, para contraporse e deitar por terra o
imperante depravado, ou antes o principio, mórbido anachronico, despotico,
fonte única da enfermidade, do atrazo, da corrupção da nação. [sic] (TÁVORA,
1870, p. 196-197)
O autor, então em seus vinte anos, vale-se reiteradamente da voz narrativa para
enunciar um juízo de valor acerca da história que desenvolve e traçar paralelos com as
questões políticas de sua época. Esse recurso se repetiria futuramente em seus demais
romances, sendo aqui empregado para propagandear seu posicionamento antimonárquico
explicitamente.
Poucas páginas antes, ao situar historicamente a narrativa nos tempos da “[...]
dynastia da casa d’Áustria, na pessoa de Felippe II, para ser substituida mais tarde em
30
1700 pela casa de Bourbon, na pessoa de Felippe V [sic]” (TÁVORA, 1870, p. 107), ele
faz questão de ressaltar como “[t]rês séculos depois tanto uma como outra apenas
pertenciam á historia”, exultando o “[e]phemero destino da realeza!” (TÁVORA, 1870,
p. 107). Távora descreve então longamente as revoltas que se dariam futuramente na
península ibérica contra a instituição monárquica11, arrematando que “[e] reis ha
modernos, que não se arreceiam de provocar esses sublimes arremessos da soberana
indignação de nações, que querem e que hão de ser livres! Néscios! Perdoai-lhes, povos,
que não sabem o que fazem! [sic] (TÁORA, 1870, p. 108).
Essa tendência é uma constante ao longo do livro. Ela aparece não menos
explícita nesta digressão sobre a disputa pelo poder na tribo Aracaty:
Estabeleçamos um simile entre essa e nossa sociedade, precisemos
os caracteres. Jurupary representava, com todos que o acompanhavam, o
principio liberal, a política das grandes expansões, a causa santa, que é martyr
e que faz martyres; Jaguary, o chefe da tribu, não obstante dever como tal
collocar-se á cima de paixões partidárias e interesses subalternos, era o chefe
do principio conservador, nervo e mola do despotismo que comprime e faz
victimas. Inharé, que era o pagé, poderse-hia comparar aos nossos ministros
aconselhando a seu geito, incensando segundo seus interesses as vontades
caprichosas do cacique pérfido, que lembrava o imperante hypocrita de algum
moderno império, corroido de preconceitos, eivado de corrupção, nunca farto
de zumbaias e servis submissões.
[...] Luta da democracia nascente com o absolutismo radicado! [sic]
(TÁVORA, 1870, p. 127)
A abordagem dessas questões por parte do autor não primava pela sutileza. No
desfecho do romance, Cayru, a virgem mais bela da tribo de quem até então nenhum
homem merecera o amor, comove-se com a perseguição a Jurupary e seus partidários,
decepa a cabeça do déspota indígena e a deposita aos pés do jovem guerreiro como prova
de sua recém adquirida devoção.
11 Os eventos aos quais Távora alude parecem se referir à Revolução de 1868, também chamada de La
Gloriosa, em que a rainha Isabel II da Espanha foi deposta em favor de uma junta provisória de forte pendor
republicano. Sendo assim, esse comentário seria uma adição posterior à publicação original, de 1862, sendo
feito à ocasião da publicação da segunda edição, de 1870, da qual se extraiu o excerto. É notável que o
autor, à época já um homem público e não mais um jovem estudante, tenha se disposto a tecer comentários
dessa natureza abertamente. Corroborando a hipótese de que houve alterações diversas e não assinaladas
entre a primeira e a segunda edição do romance, há também nas notas uma repetição ipsis literis da
etimologia proposta por José de Alencar em Iracema (1865) para o vocábulo tupi ybiapaba, indicando que
houve alterações, ainda que não assinaladas, nessa segunda edição em relação à primeira. Há ainda
referências à etimologia de outras palavras tupis tal como proposto por Alencar, ainda que expostas a título
de contraexemplo, todas posteriormente reunidas na apreciação que Távora fez do trabalho de
reconstituição linguística de Alencar na décima segunda carta de Semprônio a Cincinato que trata de
Iracema. (Cf. TÁVORA, 2011, p. 246-258).
31
Traçando um paralelo com a derrocada da realeza romana a partir da figura de
Lucrécia, Távora conclui o livro com os dizeres de que “Também tu, Cayrú, de um lado
o amor do homem, do outro o amor da pátria, acabas de inaugurar solemnemente a idéa
da republica livre no livre solo do Brazil. O resto fará o futuro.” [sic] (TÁVORA, 1870,
p. 214).
O autor afirma pretender dar continuidade à narrativa ao longo de mais três
volumes em que, baseado no final do livro, no qual notícias da proximidade das hostes
de Poti e seus aliados são recebidas na tribo Aracaty, é seguro supor que os caminhos da
comitiva de Coelho Soares e da tribo de Jurupary se cruzariam. Entretanto, essa intenção
nunca foi cumprida, e essa quadrilogia que inauguraria a carreira de Távora nunca veio a
lume.
Távora não se limitou a tomar como pauta a defesa do princípio republicano
nessa primeira incursão pelos meandros do romance. Ele dedica extensas passagens do
primeiro capítulo, dedicado a situar histórica e geograficamente a narrativa, à questão da
desigualdade entre as províncias do Norte e as do Sul do país, tema central de toda a sua
obra e atuação política.
As primeiras linhas deste primeiro livro dão a tônica de toda a produção ficcional
que sairia de sua pena pelos próximos vinte anos. Ele principia da seguinte forma:
Nas regiões austráes do continente já o lábaro da civilisação
espargia benefícios fecundos sobre as raças convertidas, e, com tudo, no
septentrião dormia ainda quasi a seu salvo o gentilismo, como em plácido e
escuso asylo, dentro do vasto seio da natureza selvagem.
Destino talvez. Ainda hoje só em porção muito escassa cabe por
sorte o proveito a esta zona do colosso, quando na outra o desenvolvimento
mais cooperado das forças vivas do paiz assegura que primeiro amadurecerá
em suas possessões, porque ahi a cultura é bem differente, a mésse da grandeza
nacional. [sic] (TÁVORA, 1870, p.7)
Já se encontra aí o gérmen do pensamento que ele desenvolveria mais tarde no
prefácio d’O Cabeleira, como se mostrará mais detidamente nas seções do trabalho
dedicadas à leitura do romance. Ao longo das próximas páginas d’Os índios do Jaguaribe,
o narrador retoma o argumento:
O norte é um hilota, para quem os horisontes se estreitam, em
contraposição ao sul, para quem elles se alargam, que pôde chamar-se o
moderno spartano.12
12 Como as referências greco-latinas clássicas no geral, a laconofilia estava muito em voga na época,
sobretudo entre pensadores liberais. A Esparta da Grécia Antiga era celebrada como lábaro da igualdade,
32
[...] Quando no sul os vêzos caducos de um feudalismo anachronico,
que são, por assim dizer, a eiva, que corróe a pura massa dos costumes,
languem visivelmente, si é que já se não devem considerar completamente
espancados pela lúcida e vigorosa torrente das idéas livres, n'esta parte do
império se detém de caso pensado e pisa arrogante a bota ferrada de uma
fidalguia hybrida, truanêsca e deplorável; e as camadas populares cada vez
mais se abatem tão profundo e gelado é o sopro da tormenta, e a liberdade
definha no ergástulo do senhorio feudal evidentemente olygarchisado e
mantido pela ingrata política de um throno, que desconfia e se arreceia, sem
ter de que, de tudo quanto é tentamen ou aspiração liberal.
Foi destino de certo. Já lampeja para os nossos irmãos do sul um raio
de liberdade; só nós mal percebemos d'aqui, sepultados em nossa noite eterna,
esse clarão remoto do astro, que apenas de longe e timidamente se nos
annuncia. [sic] (TÁVORA, 1870, p. 8-9)
Para o autor, haveria no Norte a persistência de um modelo feudal que aparece
associado a um sistema autoritário. Tendo por alvo uma organização social e política
fundada na oligarquia, Távora expõe a distância entre o que se passa no Norte e no Sul a
partir da difusão de ideias liberais, representadas por imagens como “raio de liberdade”,
“clarão” e “astro” em oposição à “noite eterna” do esquecimento e atraso a que foram
destinadas regiões setentrionais.
Há uma diferença notável entre essas primeiras formulações sobre a
desigualdade regional no Brasil e as que embasariam sua argumentação por uma
Literatura do Norte. Na medida em que Távora lamenta o potencial inexplorado do norte
do país e aponta o sistema aristocrático como o principal entrave para o desenvolvimento
da região, ele celebra a possibilidade de superação desse sistema pela influência de ideias
liberais no Sul.
Não há qualquer exaltação do Norte ou particularização frente ao Sul que fuja a
essa relação comparativa de ausência e desalento. A exposição sobre a situação relativa
das regiões no tempo diegético do romance, prontamente seguida pela denúncia da
continuidade desse quadro de desigualdade na própria época do autor, estabelece um
símile eloquente não só entre esses tempos históricos distintos, mas entre o Norte em si e
a ideia de deserto, dada a perenidade da associação desses signos à região.
Essa associação do Norte a atributos estritamente negativos não encontraria eco
nas obras seguintes do autor, em que seu esforço é antes pela valorização da herança
histórica do Norte em face das adversidades impostas pelos poderes centrais. Em
contrapartida, já aqui o ressentimento em relação a esse atraso não se limita ao
seus modos e organização política tidos como modelos ideais (antes idealizados) para as repúblicas
modernas.
33
subdesenvolvimento da porção setentrional do Brasil, estendendo-se também para a sua
exploração pelas províncias austrais, a qual seus irmãos iluminados do Sul observam
laconicamente enquanto monopolizam seus louros:
Que fim social visa o pensamento de manter a zona septentrional do
império em manifesta inferioridade comparativamente á zona austral? Porque
se monopolisa a luz no seio de um povo de irmãos, quando Deus a entorna com
igual e generosa liberalidade pelos mais recônditos latibulos do universo?
Partilha lesiva tem sido essa! Distribuição desigual de gozos, quando
a que se faz dos ônus toca a todos na mesma proporção, si é que não cabe em
porção mais avultada sobre o que menos participa dos benefícios, é um
attentado, que a rasão social e christãa condemna, e a justiça universal repelle.
Só ao futuro pertence desatar e erguer o véu; será tempo então de indemnisar-
se o norte dos menospreços e das humiliações. [sic] (TÁVORA, 1870, p. 9)
Acionando mais uma vez a imagética da partilha da “luz” para tratar do
desenvolvimento desigual das duas macrorregiões do país, Távora eleva sua indignação,
progressivamente, da esfera da razão para a do divino e, por fim, à da “justiça universal”.
A sua dramática inconformidade com esse quadro só seria apaziguada em um futuro no
qual ele vislumbra a reparação histórica dos males sofridos pelo Norte, objetivo ao qual
ele dedicaria seus esforços até o fim da vida.
A crítica de Távora à desigualdade entre as províncias austrais e setentrionais do
Brasil receberia nova têmpera após sua estadia continuada na corte, em que o afastamento
de sua própria terra e a proximidade com o centro cultural do império trouxeram novos
matizes para suas reflexões sobre o tema, resultando nos romances propriamente
incluídos no ciclo da Literatura do Norte. A rigor, a tomada de consciência sobre a
manutenção sistemática da marginalização das províncias distantes da corte seria uma
temática constante para os intelectuais da geração de 1870 no Brasil.
A esse respeito, apesar de Távora ser pouco menos que uma década mais velho
que a maioria daqueles usualmente identificados como pertencentes a esse grupo, seu
trânsito de ideias e companhias se deu muito mais intensamente com essa geração do que
com a que a precedeu. Ainda assim, essa identificação feita a despeito desse descompasso
cronológico não exclui, antes ressalta, o caráter quase transicional que a obra e o
pensamento de Távora adquirem quando postos em perspectiva histórica, como se
discutirá mais detidamente adiante.
Esse enfrentamento geracional não deixou de se estender também para o campo
das artes, em que a emergência de novas escolas literárias no velho continente vinha pôr
em xeque o romantismo indianista, estreitamente identificado com o projeto imperial de
produção de uma identidade nacional no pós-independência. A figura que melhor
34
encarnava essa intenção comum era o romancista José de Alencar, cujo projeto político-
literário tinha por objetivo representar a totalidade da diversidade regional do país e
apresentar sua história nacional ao povo.
Este projeto de Alencar implicava a subscrição de todo o território brasileiro a
uma narrativa unívoca, na qual as idiossincrasias de cada região empalideciam frente ao
nacional. Para José Maurício Gomes de Almeida, “[i]nexiste [...] em Alencar, como nos
românticos em geral, o sentimento particularista que caracteriza o regionalismo. A
dimensão nacionalista está sempre em primeiro plano, em função mesmo do momento
histórico que o Brasil então atravessava.” (ALMEIDA, 1981, p. 47).
Ademais, a naturalidade com a qual é retratada a sujeição da natureza americana
e, consequentemente, dos povos ameríndios pelo homem branco nas obras do autor
acarreta não só na naturalização dos processos históricos que culminavam então na
instituição do Império Brasileiro, mas na invisibilização da violência implicada nestes.
Dado o interesse da coroa em legitimar sua posição e transparecer um controle harmônico
e inconteste do território no período tumultuoso que foi o do século XIX no Brasil, ambos
os efeitos eram desejáveis.
Nesse contexto, detratar publicamente os escritos de Alencar era uma ação
implicada em questões que iam além da mera crítica literária. E é justamente isso que
uma leitura cuidadosa das Cartas a Cincinato (2011) indica.
2.2 – O iconoclasta de imagens da terra
Publicadas originalmente entre 14 de setembro de 1871 e 22 de fevereiro de 1872
no periódico Questões do Dia, essas cartas eram redigidas por Távora sob o pseudônimo
de Semprônio, e eram endereçadas a José Feliciano de Castilho, cognominado Lúcio
Quinto Cincinato13 nas missivas em que, ainda antes da iniciativa de Távora, ele criticava
13 Eduardo Vieira Martins supõe que Feliciano de Castilho tomou seu cognome em função do general
romano Lucius Quintus Cincinnatus, símbolo da simplicidade e frugalidade romanas (cf. MARTINS, 2011,
p. 10), mas não especula sobre o nome escolhido por Távora, limitando-se a situá-lo também como de
origem romana (MARTINS, 2011, p. 11). Há diversos políticos e militares entre os membros da gens
Sempronia, havendo entre estes alguns que podem ter inspirado Távora a adotar a alcunha. Os irmãos
Tiberius Sempronius Gracchus e Gaius Sempronius Gracchus, celebrados na Roma Antiga como
defensores dos plebeus, estiveram à frente da Lex Sempronia Agraria, uma lei de terras que antagonizava
os interesses do setor conservador do senado romano, motivo pelo qual ambos foram assassinados. Seu
cognomen, Gracchi, significa “gralha”, coincide com o termo empregado jocosamente por Alencar para se
35
publicamente a atuação política de José de Alencar. Feliciano de Castilho, português
emigrado e irmão do escritor Antônio Feliciano de Castilho, começou a editar o jornal
Questões do Dia no contexto dos debates acerca da Lei do Ventre Livre, redigindo textos
em defesa do projeto e criticando seus detratores, como o então deputado José de Alencar.
Sua empreitada se tornou gradualmente mais dirigida contra o escritor cearense,
que era notório, além de sua carreira literária, pela sua oratória na câmara, na qual se
manifestava contrariamente à nova lei, o que o tornava mais propenso a ataques públicos.
Tendo acompanhado os lances dessa discussão através dos jornais que lhe chegavam na
província, Távora decidiu tomar parte na empreitada de Feliciano de Castilho a partir da
análise da decadência literária de Alencar, que se apresentaria em paralelo ao seu
esboroamento como figura pública tal como apresentado pelo português.
A despeito de suas diferenças, há algumas coincidências nas biografias dos dois
autores. Além de serem ambos cearenses, os pais de um e de outro se envolveram em
revoluções de caráter democrático no Norte, o pai de Alencar nas de 1817 e 1824 e o de
Távora na de 1848, sendo Alencar sabidamente um bastardo de José Martiniano Pereira
de Alencar e Távora já tendo sido especulado também como filho natural de Camilo
Henrique da Silveira Távora (Cf. PINHEIRO TÁVORA, 1971, p. 85 e AGUIAR, 1997,
p. 23). Tanto um quanto o outro tomaram como substrato literário algumas das mesmas
figuras e acontecimentos históricos, a exemplo de Martim Soares, Camarão e o evento da
Guerra dos Mascates, assim como procuraram, cada um à sua maneira, dar ensejo a um
projeto político-literário que encetasse seu próprio ideal de uma literatura nacional.
A mais curiosa coincidência, entretanto, é o fato de os dois terem se envolvido
em polêmicas com autores mais velhos e já renomados ainda no início de suas carreiras,
condenando a estética estabelecida por seus antecessores e apregoando uma nova forma
de realizar uma literatura verdadeiramente brasileira, Távora contra o próprio Alencar e
este contra Gonçalves de Magalhães. Apesar de ser uma estratégia corriqueira de jovens
referir a Feliciano de Castilho, “gralha imunda”, em um episódio que teria contribuído para o início da
campanha pública contra sua figura perpetrada pelo insultado (MARTINS, 2011, p. 11). Outro romano,
Aulus Sempronius Atratinus, compartilhou o posto de tribuno consular com um Lucius Quintus
Cincinnatus, este filho do famoso general de mesmo nome. Távora pode ter pretendido associar seu
empreendimento conjunto com Feliciano de Castilho à cooperação dos cônsules romanos, mas acabou
tomando o filho menos célebre pelo pai homônimo. Por outro lado, o nome Semprônio, ao lado de Caio e
Tício, é comumente utilizado na área do direito penal para indicar uma pessoa indeterminada, prática que
deriva do uso corrente desses nomes em autores de língua italiana, na qual esses nomes equivalem aos
“Fulano, Cicrano e Beltrano” do português, podendo ter sido tomado por Távora simplesmente para
sublinhar seu anonimato.
36
escritores em busca de visibilidade, a natureza similar das discussões travadas pelos dois
autores, quando ainda estreantes no mundo das letras, e o papel inverso que Alencar
assume nas duas situações pesam na assinalação desse fato.
As críticas feitas pelo então jovem Alencar à ocasião da publicação da
Confederação dos Tamoios (1856) foram publicadas em forma de cartas no Diário do
Rio de Janeiro, e versavam sobre a potencialidade do tema elegido por Gonçalves de
Magalhães e o quão aquém deste a epopeia do autor se apresentava. A notoriedade que
Alencar alcançou através de seu juízo crítico dessa obra contribuiu largamente para seu
intento, já distinguível em sua argumentação nestas cartas, de edificar uma literatura
indianista que fizesse frente à que ele vislumbrava nos versos do poeta mais velho, e que
fosse moldada a partir de suas próprias ideias sobre a representação da história nacional
(MAGALHÃES JÚNIOR, 1977, p. 65-74).
Távora, por sua vez, criticou diversas facetas do conjunto da obra alencariana,
detendo-se particularmente em aspectos concernentes a O Gaúcho (1870), ao qual dedica
as primeiras oito cartas endereçadas a Cincinato, e Iracema (1865), objeto de análise das
treze últimas. Seu argumento é sobretudo pela decadência artística do autor, atestada pelo
descompasso entre o seu método de escrita e a sua matéria-prima literária – a natureza
brasileira – e sedimentada pela recepção acrítica que recebia por parte da opinião pública.
Eduardo Vieira Martins reconhece uma alusão não creditada às ideias que
Hyppolyte Taine desenvolve em sua Philosophie De L’Art (1865) nessas formulações de
Távora sobre a divisão da carreira do artista entre uma fase de criação e outra de
decadência. Esse fato pode se dever tanto a uma omissão deliberada, opção
incaracterística frente ao amplo cabedal teórico em que ele faz questão de erigir sua
argumentação, quanto pelo desconhecimento da origem do conceito por parte do escritor,
dada a ampla circulação dos textos do autor francês à época (MARTINS, 2011, p. 33-34).
Seja por ironia ou antevisão de Alencar, a assinatura de “Sênio” que ele passa a
imprimir à maioria de seus romances na década de 1870 concorre para essa classificação.
Assim ele escreve à guisa de prólogo n’O Gaúcho:
Que significa este nome — Sênio — no frontespício de livros
que vozes benevolas da imprensa já attribuiram a outrem?
Cada um fará a supposição que entender.
Era preciso um apellido ao escriptor destas paginas, que se
tornou um anachronismo litterario. Acodiu esse que vale o outro e tem
de mais o sainete da novidade.
Porventura escolhendo aquella palavra, quiz o espirito
indicar que para elle já começou a velhice litteraria, e que estes livros
37
não são mais as flôres da primavera, nem os fructos do outono, porem
sim as desfolhas do inverno?
Talvez.
Ha duas velhices; a do corpo que trazem os annos, e a da alma
que deixam as desillusões.
Aqui, onde a opinião é terra safara, e o mormaço da
corrupção vai crestando todos os estimulos nobres; aqui a alma
envelhece depressa. E ainda bem! A solidão moral dessa velhice
precoce é um refugio contra a idolatria de Moloch. [sic] (ALENCAR,
1870, s/p)
Os problemas que Távora reconhecia na escrita de Alencar eram, a rigor, de
ordem epistemológica. Seus argumentos são múltiplos, mas o ponto que interessa à
presente análise parte do célebre excerto no qual ele postula que "[...] Sênio tem a
pretensão de conhecer a natureza, todos os costumes dos povos [...] sem dar um só passo
fora de seu gabinete [...]. Por que não foi ao Rio Grande do Sul, antes de haver escrito o
Gaúcho?" (TÁVORA, 2011, p. 53).
Esse questionamento encerra em si o cerne do enfrentamento que Távora faz à
noção tipicamente romântica da centralidade da imaginação na elaboração artística,
apesar de não abarcar a totalidade do conteúdo que ele discute nas cartas. Ainda assim, é
a partir do sentido contido nesse breve excerto que as Cartas a Cincinato adquiriram o
caráter de marco da derrocada do romantismo no Brasil, como atesta a “cronologia do
romantismo” apresentada por Jacó Guinsburg em seu O Romantismo (2013), que se
encerra com a publicação das cartas de Távora (GUINSBURG, 2013, p. 319).
Isso porque a defesa que Távora faz de uma “exatidão daguerreotípica”
(TÁVORA, 2011, p. 51) na produção literária — ou seja, de uma fidelidade total à
realidade — marca a deflagração de uma oposição ferrenha à imaginatividade
característica da estética romântica. A crítica tecida por Távora a Alencar é, portanto,
profunda também não só no âmbito dos discursos políticos que subjazem em sua
discussão, mas na problematização da própria matriz literária em voga no país então.
Assim, no esteio dessa discussão sobre a preponderância da imaginação na
produção artística de Alencar, Távora estenderia sua crítica à aceitação tácita, quase
impositiva, que a opinião pública reservava aos romances alencarianos:
O escritor tem chegado à fase mais coruscante e mais elevada do seu
império de vaidade e anomalia; isto é, tem atingido o período mais decisivo da
mais formal decadência
É o chefe da literatura brasileira, um gênio talvez, porque cria a torto
e a direito, seja o que for; [...]
Hoje em dia entre nós, o candidato a gênio deve fazer versos
escabrosos, comédias híbridas, discursos túmidos, anasarcos, romances loucos.
[...] E o Brasil tem um patriarca e uma literatura! O que o Brasil tem é um
baixo império das letras. Isto sim. (TÁVORA, 2011, p. 134-135)
38
Sua censura, enquanto direcionada ao escritor mais velho, abarcava as próprias
fundações do paradigma estético romântico e, tangencialmente, o status quo saquarema.
A associação entre a hegemonia do projeto literário de Alencar e um império, aliás, um
“baixo império das letras”, amplia o escopo dessa crítica ao explicitar os laços entre seu
réu declarado e o que está nas entrelinhas, lê-se, o autor de O Gaúcho e o sistema
monárquico.
Dessa forma, fica patente o quanto o conteúdo das cartas não se restringe
tematicamente à apreciação literária da obra de Alencar, mas abarca em certa medida as
tensões sociais de então. Em outro trecho, ele questiona: “Pois também cá pela república
das letras havemos de ter oráculos indiscutíveis, autoridades dogmáticas? Também por
cá os divinos, quando parece ter soado a hora dos papas e dos Soulouques14...”
(TÁVORA, 2011, p. 50).
As questões do dia se apresentam, assim, em disputa na arena das letras pátrias.
Nesse sentido, a representação da natureza é a principal problemática a partir da qual
Távora articula sua atuação política.
Isso é desenvolvido nas longas exposições acerca da categoria de gênio, que
emergem no tensionamento que o autor faz entre um fazer artístico que mimetize a
natureza e a prerrogativa do autor em interpretar o real, fazendo uma curadoria do que
seria passível de ser imitado e de como fazê-lo, concluindo que “[...] o artista não tem o
direito de perder de vista o belo ou o ideal, posto que combinando-o sempre com a
natureza” (TÁVORA, 2011, p. 185). O teor imaginativo do método alencariano,
entretanto, fugiria desses preceitos defendidos por Távora:
Admira-se, exalta-se a imaginação de J. Alencar. Admirável é, não
há dúvida; agora exaltável, isso é que não.
Deve-se festejar e aplaudir a imaginação que reproduz com encantos
novos e novas vivacidades os grupos, os acidentes, as atitudes, as cenas da
natureza; que faz esses grupos interessantes, esses acidentes pitorescos, essas
atitudes graciosas, essas cenas animadas e felizes. Isto é imaginar, no uso
rigoroso e didático da expressão. Daí vem que, quanto mais se apropria o
escritor dos matizes variados da criação, ou das sensações e fenômenos da
vida, e tanto mais fielmente os retrata ou reproduzam impregnados do cunho
da sua pessoal idealização, tanto mais se diz ser ele original, tanto mais gênio.
'Abusa-se da elasticidade de linguagem, quando se ousa falar de
inteligências criadoras. Em definitiva não há criação; reproduzir, imitar, eis
quanto nos cabe. Se Homero, Cervantes, Ariosto, Byron, tivessem vivido
encerrados num ergástulo, o que teriam podido imaginar? Que criação teriam
14 “Refere-se, provavelmente, a Faustin Élie Soulouque (1785-1867), um escravo negro que se tornou
presidente e, a seguir, imperador do Haiti” (MARTINS, 2011, p. 50).
39
dado ao mundo?'[CHASLES, 185015]. Logo, a natureza, em primeiro lugar, e
depois, complexa e completa observação - eis os dois elementos, as duas
possantes asas do gênio. (TÁVORA, 2011, p. 135)
Portanto, o que haveria de condenável na escrita de Alencar seria a sua
dissociação do substrato real que ele buscava representar, fato decorrente de seu excesso
imaginativo ou, como posto acima, da influência desmedida de sua “pessoal idealização”.
Távora explicita esse ponto de vista em duas instâncias: na análise da representação dos
pampas em O Gaúcho e dos indígenas do norte em Iracema.
No primeiro caso, Alencar é acusado de dotar a paisagem gaúcha de um
imobilismo e morbidez incaracterísticos, patentes em trecho que merece longas
exprobações de Távora, e cujo sentido é retomado reiteradamente ao longo do romance:
“O pampa [...] é o pasmo, o torpor da natureza. O viandante perdido na immensa planície,
fica mais que isolado, fica opresso. Em torno delle faz-se o vácuo: subita paralysia invade
o espaço, que pesa sobre o homem como livida mortalha [sic]” (ALENCAR, 1870, p. 2-
3). A própria borrasca que assola os pampas, para Távora um símile dos furacões do norte
do continente americano (Cf. TÁVORA, 2011, p. 73-75), é descrita em tons sóbrios, sua
violência sendo de pouca consequência para a paisagem estática.
Nada menos verdadeiro para Távora. Assim ele investe contra essas descrições:
Aquela nuvem não está embutida no céu, divaga; aquela campina
não é melancólica, mas expande-se e sorri; aquela savana não é o torpor ou o
pasmo ou a paralisia, agita-se; aquele chão não se parece com a lápida do
claustro ou do túmulo, senão com as sinuosidades do vasto oceano; aquele
furacão não se espoja como o potro, mas subleva-se, contorce-se, revolve-se,
devasta e tala o deserto como vórtice ou cataclismo. A natureza protesta contra
o panorama traçado à custa do prolongado esforço estéril. (TÁVORA, 2011,
p. 78)
Araripe Júnior, primo, crítico e admirador de Alencar, ressalta que o escritor de
fato nunca tivera contato com o pampa, baseando suas descrições nas reminiscências que
ouvira na juventude de um parente militar que lá esteve, de forma que suas impressões
não passariam “[...] de um sonho, de um pesadelo: pintura mais exata das desolações, das
tristuras que povoam a mente do autor” (ARARIPE JR, 1958, p. 217). De fato, os últimos
anos de vida de Alencar foram turbulentos, mas a apreciação de Távora sobre os indígenas
15 Martins não precisa a data de publicação da obra em questão, Études sur la littérature et les moeurs des
Anglo-Americains au XIXe siecle, mas uma consulta à edição disponível no acervo digital da Bibliothèque
nationale de France situa o ano da primeira edição como sendo 1850.
40
de Iracema, escrita na década anterior, não foge aos moldes do que ele verifica n’O
Gaúcho:
A impressão, que experimentei, ao entrar no pampa, segundo os
desenhos desvairados de Sênio, foi a de quem penetrasse num cemitério. [...]
Se, porém, das solidões do pampa retraindo-nos um poco vamos ter
às solitárias florestas e planícies dos tabajaras, o espetáculo muda, a impressão
é diversa, sim, mas congênita. As extensíssimas paragens que rios bordam e
florestas delimitam, figuram leitos de um hospital imenso, sombrio e
merencório! Contempla-se ali, seis anos antes, ainda a raça do homem, vítima
de morbidez e consumpção.
Ora, entre o hospital e o cemitério há um só passo. (TÁVORA,
2011, p. 130-131)
Nessa que foi a tentativa de Alencar de trazer a lume um livro que encetasse uma
escola indianista própria, Távora reprova a afetação da linguagem e a languidez das ações
dos indígenas. Ele enxerga nos problemas de Iracema a mesma raiz dos d’O Gaúcho, por
força que escreve as seguintes linhas:
Pela primeira vez aparecem os índios falando uma linguagem
banzeira e esmorecida; pela primeira vez são descritos os selvagens com
toques, com tintas de afetação mais visível, mas tintas linfáticas, quando o
selvagem é simples e singelo na sua majestosa grandeza.
Falta-lhes o colorido próprio, expressivo, interessante. O que aquela
linguagem tem, são demasias de arte. Debaixo da aglomeração fastidiosa de
comparações, as mais das vezes fora da vila e termo, e que haviam de ter
custado bom trabalho ao próprio autor, a natureza subverteu-se como num
abismo. A palidez visivelmente se mostra através das cores postiças, fugaces e
precárias. (TÁVORA, 2011, p. 166)
Dessa desfiguração da matéria literária pátria, ele inquire: “Está ou não
aniquilada, na obra do sr. Alencar, a teogonia dos Brasis? Quem matou o gaúcho
infirmou, se não matou também, o índio!” (TÁVORA, 2011, p. 221).
Há aí, talvez, um esforço de Alencar no sentido de pacificar os elementos da
natureza brasileira, os povos indígenas inclusos, esvaziando-os de ação e história próprios
e reservando a agência sobre esse meio às personagens brancas ou mestiças, conquanto
identificadas com o ímpeto civilizatório que era a força motriz do estabelecimento da
nascente nação brasileira. Em última análise, os quadros pintados por Alencar seriam
antes compostos a partir da disposição verborrágica e muitas vezes contraditória dos
elementos naturais do que pela reflexão feita sobre a observação direta, constituindo para
Távora um falseamento da realidade.
Na análise de Távora, esse descolamento não se daria só em relação à natureza
com a qual ele não tinha contato direto, mas com as fontes secundárias de relatos de
viagem, documentos históricos e estudos filológicos que ele fazia questão de desbaratar
41
a partir de uma reconstituição própria das personagens e fatos históricos, bem como em
suas extensas notas explicativas. Sobre isso, ele diz que “Para Sênio, a verdade, dita por
muitos, perde o encanto. Ele não há de escrever pelo ramerrão; fora rebaixar-se. É preciso
dar coisa nova, e eis surge o monstro repugnante e desprezível.” (TÁVORA, 2011, p. 52).
É justamente esse sentido novo e inventivo, ancorado tão somente na ideação e
completamente dissociado da tradição que o precedeu, que Távora condena
veementemente em Alencar. Esse alheamento em relação aos autores que o precederam
era antes uma condição preliminar necessária para a obra de Alencar do que uma falta,
uma vez que seu projeto literário vinha a par de uma reformulação da identidade e dos
signos brasileiros sob a égide do Império.
Sendo assim, Távora não exagerava ao dizer que "J. de Alencar não quer fazer
somente uma nova língua, uma nova natureza, uma nova poesia: quer fazer também uma
nova história." (TÁVORA, 2011, p. 171). A contestação dos preceitos estéticos que
norteiam a representação da natureza brasileira em José de Alencar e a insubordinação
política de Távora constituem um mesmo movimento de sua parte, já que era justamente
na identificação com o projeto imperial de construção discursiva da nação brasileira que
se ancorava a legitimidade e o apelo da obra alencariana junto à corte.
Entretanto, a constituição dessa narrativa que identifica Alencar estreitamente
com os interesses da coroa imperial não se apresenta sem suas contradições. A oposição
desabrida que Feliciano de Castilho fazia ao autor d’O Gaúcho era também uma forma
de tentar cair nas graças do imperador (AGUIAR, 1997, p. 187), com quem Alencar
manteve uma relação bastante estremecida nos últimos anos de vida, o que inverte
radicalmente os fatores de uma análise da polêmica feita a partir de uma lente focada na
pauta antiabsolutista.
Outro elemento que vai de encontro a aproximações simplistas desse evento é o
fato notório do polemista português ter estado por todo esse período ligado ao monsenhor
Joaquim Pinto de Campos, antagonista ferrenho do general Abreu e Lima, supracitado
amigo íntimo da família Távora. O sacerdote, cuja peleja pública com o general fez com
que o bispo de Pernambuco negasse ao último uma sepultura cristã, era deputado e
correligionário de Feliciano de Castilho na defesa da Lei do Ventre Livre, cujos textos de
defesa ambos redigiram juntos. (AGUIAR, 1997, p. 166-167, 187-188)
O próprio teor das críticas do português pareceria a princípio refratário em
relação ao posicionamento político de Távora. Quando ocupado em atacar Alencar no
âmbito literário, Feliciano de Castilho se limitava a condenar os desvios da norma lusitana
42
que o brasileiro empregava em seus livros indianistas, o que foi apontado por críticos da
época como uma “afronta à autonomia nacional” (ARARIPE JR., 1958, p. 234) e uma
“patriotada lusa, desejosa de deprimir a primeira figura literária brasileira do tempo”
(ROMERO apud AGUIAR, p. 196).
A tematização das disputas da época não dá margem para reducionismos nem
conclusões absolutas. À luz dessas contradições, as motivações do próprio Távora para
se somar a Feliciano de Castilho em suas invectivas contra Alencar são incertas. No
entanto, a versão mais corrente é a apresentada por Clóvis Bevilaqua, fundador da cadeira
n.º 14 da Academia Brasileira de Letras, a qual ele designou Franklin Távora como
patrono. Ele determina, a partir de um relato de Araripe Júnior, que foi a recepção d’Os
Índios do Jaguaribe por parte de Alencar o estopim do ocorrido:
Araripe refere-me o caso por este modo. Tendo Alencar recebido o
romance de Távora, lêra-o com muita curiosidade e interesse, annotando á
margem os trechos que lhe haviam merecido maior reparo, no intuito de
responder ao novel escriptor, agradecendo-lhe a offerta e dando-lhe a sua
opinião sobre o valor do trabalho.
Essa resposta, no emtanto, por motivos que não desconhecem os que
têm occupações literarias, demorou-se mais do que era de esperar. Susceptivel,
como todo artista, o auctor dos Indios do Jaguaribe sentiu-se do silencio e não
tardou em transformar essa magoa em irritação, quando um amigo lhe
informou que o glorioso cearense lhe havia desapiedadamente analysado a
obra, resumindo o seu parecer n’um dicto caustico: “taes indios precisam ainda
ser descascados”! [sic] (BEVILAQUA, C. 1904, p. 6-7)
Debalde as nuances e incertezas em torno das motivações e interesses em torno
da publicação das cartas, uma amostragem de sua recepção demonstra o caráter
polarizado dos ânimos da época. No Diário do Rio de Janeiro, um A. de Vasconcellos
sairia em defesa de Alencar, assinando uma série de seis breves artigos intitulados
“Palestras”, dos quais o excerto abaixo, extraído do primeiro, oferece uma ideia geral do
conteúdo compartilhado pelas demais:
Cincinnato, á laia de amigo, se dirige a um Sempronio, Ambo
florentes16, não na idade, pois que o de lá ainda está na espiga, quando o de cá
já chegou ao sabuge. Mas com certeza, arcades ambo17, e bom é que se saiba
que há diversas espécies de arcadios, sendo estes dous daquella da que trata
Juvenal, sat. 7 v. 160: Quod læva parte mamillœ salit juveni arcadico18, quando
faz allusão a certos orelhudos de bom volume, que pastavam a relva da
Arcadia. [sic] (VASCONCELLOS, 1871a, p. 2)
16 Ambos florescentes, vigorosos. (MARTINS, 2011, p. 120) 17 Ambos árcades (Ibid). 18 “Quanto ao fato de que [nada] pulsa sob o peito esquerdo/ Do jovem da Arcádia” (Ibid)
43
Como a assinatura só veio no último dos seis artigos, Távora os tomou como
vindos da pena do próprio Alencar, estabelecendo com ele breve intercurso. Para tal
conclusão, deve ter concorrido o fato de que, em artigo posterior, Vasconcelos recomende
que Semprônio “Vá esbrugar os seus índios do Jaguaribe, e quando lhes tiver tirado o
cascão, volte para a Sabattina.” (VASCONCELLOS, 1871b, p. 2).
É notável que Vasconcellos use a mesmíssima expressão que Beviláqua atribui
a Alencar para se referir aos índios do romance de Távora, o que seria uma coincidência
curiosa proveniente ou de uma interlocução entre Alencar e Vasconcellos sobre o livro e
seu autor ou de uma confusão de Beviláqua na atribuição da autoria do julgamento. Seja
como for, Távora acusa o golpe, reproduzindo esse trecho em suas cartas e dedicando as
páginas que o seguem a discutir o papel da crítica literária, o qual, no cenário pintado por
Beviláqua, corresponderia ao que ele esperava de Alencar por ocasião da entrega do
manuscrito dos Índios do Jaguaribe19.
Ele afirma que “O mundo é uma escola, onde se pratica, não o elogio, senão o
ensino mútuo, com esta circunstância, porém – que não há magister super omnes20”
(TÁVORA, 2011, p. 124). Dessa forma, ele defende que o seu proceder em apontar as
falhas na obra alencariana teria um caráter patriota, posto que mirava o melhoramento da
literatura nacional, o que estaria sendo tolhido pela recepção irrefletidamente elogiosa
que vinham granjeando ao autor de Iracema:
Estou plena e profundamente convencido de que, procedendo assim,
presto serviço ao Brasil. A crítica, que se preza de justa e independente, é
inquestionável agente do progresso; põe diques (deixe lá falar) aos
extravasamentos das imaginações superabundantes, alimenta e aguça os
estímulos produtivos, apura o licor das boas fontes sem estancá-las.
Não são mais brasileiros do que eu, os que só têm o incenso que
embriaga, e nunca uma palavra judiciosa e firme admoestação. Muita vez o
aplauso é desserviço, e quando perene, converte-se em nojenta e nociva
idolatria. (TÁVORA, 2011, p. 125)
À luz da última metáfora, seu receio é que, criticando o autor idolatrado, ele seja
tachado de “iconoclasta de imagens da terra”. Nisso, Távora se antecipa aos seus críticos,
perguntando: “Quando J. de Alencar, simples neófito das letras, escrevia desabridas
19 Antes mesmo, Távora já teria dado indícios que corroboram a versão de Beviláqua, notadamente no início
da segunda carta, quando escreve: “Nunca tive nem terei uma palavra mais severa para exprobrar ao moço
a franqueza, em que incorrer, arriscando suas primeiras lutas na escabrosa arena das letras. A literatura,
como se há dito tanta vez, é um sacerdócio, e como todos os sacerdócios tem de ser servida por diversas
ordens de religionários. O neófito, em regra, paga irremissivelmente tributo do excesso de fervor, que
caracteriza todo o noviciado. Exigir serviço completo dele fora impiedade.” (TÁVORA, 2011, p. 48). 20 “Mestre acima de todas as pessoas” (MARTINS, p. 124)
44
cartas contra [...] Gonçalves de Magalhães, alguém o chamou de iconoclasta de imagens
da terra? [...] Pois bem: não faço mais que seguir o edificante exemplo de J. de Alencar”
(TÁVORA, 2011, p. 125-126).
Em verdade, o que Távora faz no percurso das cartas é antes inverter a peça
acusatória, identificando no projeto literário alencariano e seu patente desdém pelos
trabalhos históricos e líricos que o precederam uma ruptura a ser condenada. Seus
argumentos progressivamente se justapõem ao longo da progressão do seu raciocínio, de
forma que o excesso imaginativo de Alencar se apresenta como consequência do seu
intuito de se desassociar daqueles que o precederam, projeto que, uma vez espicaçado
pela aceitação acrítica da corte, estagnou o panorama literário nacional:
Explica-se o desacerto de Alencar, empreendendo contrapor à
verdade a ficção da sua fantasia. [...]
Sopitada a chama íntima, a pretensão mais desbragada tomou o
lugar à razão e ao bom senso. O homem reputou-se logo com suficiente
autoridade e cabedais para demolir o que a idade e gênio tinham custosamente
construído. Mas demolir, sem ao mesmo tempo edificar, não era decente nem
plausível. E depois era preciso, antes de tudo, mostrar que o novo estava muito
acima dos velhos arquitetos; daí a ideia de inaugurar escola, que transmitisse à
posteridade o nome do seu fundador. (TÁVORA, 2011, p. 161-162).
Irônico, Távora remarca que "O Sr. Alencar parece ter a paixão de demolir. Basta
pertencer ao passado para provocar as suas iras; basta ser venerando para levá-lo ao
sacrilégio. Que índole! Que natureza! E chama-se àquilo conservador!" (TÁVORA,
2011, p. 220). Nota-se como, aqui, Távora subverte a ideia de que a crítica ao autor mais
velho configuraria alguma forma de iconoclastia, estabelecendo antes o próprio Alencar
como iconoclasta, e a si como um restaurador das letras pátrias.
Esse aspecto dos seus escritos e alguns dos demais pontos do pensamento de
Távora exposto nessas cartas serão retomados pontualmente nos capítulos seguintes, em
que serão analisados à luz do desenvolvimento do projeto político-literário do autor.
Conclui-se aqui a exposição de seus argumentos contra Alencar com esta síntese precisa
realizada por ele, com a qual arremata:
J. de Alencar dá poemas e romances de costumes, sem ter estudado
nem a natureza nem os povos, e condenando além disso os estudos dos mestres
e os dicionários existentes, que chama “espúrios”. Essas obras, ele as dá do
fundo do seu gabinete, assim a modo de quem expede avisos para um império
inteiro. Espécie de enciclicas literárias, trazem o cunho da autoridade
dogmática e infalível: são matéria de fé. (TÁVORA, 2011, p. 144)
Se na corte as Cartas a Cincinato foram recebidas com desassossego, tanto em
função de seu conteúdo quanto do contexto maior no qual estava envolvido o seu
45
destinatário, na província de Távora a recepção foi outra. Na imprensa local de
Pernambuco, seus escritos foram amplamente celebrados:
Obras de natureza tal, sahidas de pennas da ordem da de Sempronio,
veem preencher uma lacuna, de que há muito se resente a nossa republica
litteraria.
Vem a proposito dizer que entre nós a litteratura, posto que mui
limitada, está mal organisada, devido sem duvida isso á centralisação que em
tudo se quer estabelecer, ou antes devido á uma especie de egoismo
concentrado.
Destarte facil é comprehender-se que as provincias nas letras, assim
como no mais, não teem uma autonomia propria. [...]
Dahi ha orgulho em que Sempronio seja pernambucano. [sic]
(ANÔNIMO, 1872, p. 2)
O excerto acima, retirado de um breve artigo sem assinatura no Jornal do Recife
de 24 de setembro de 1872, denota um ressentimento latente ao atestar que a falta de
autonomia das províncias nas letras se estendia para outros âmbitos. O apontamento da
má organização da literatura, aqui referida como república literária, como consequência
da centralização “que em tudo se quer estabelecer” também concorre para esse
entendimento.
A amplitude da significação que as Cartas a Cincinato tiveram junto ao público
local está mais bem delineada nos artigos publicados no mesmo jornal sob a assinatura
de Farwest nos dias 2 de outubro e 28 de novembro de 1872. Neles, o autor anônimo se
esmera em explicitar os paralelos entre os paradigmas literário e político brasileiros.
As cartas de Sempronio acham o Brasil litterario (como o politico)
em torpe abatimento; e trasem por isso um salutar desafogo aos espiritos justos.
Ellas veem, como uma consequencia logica, cheia de vigor e de verdade. [...]
A classica republica das lettras foi convertida em theocracia de
magnate; deram-lhe um pontifice rei e algumas duzias de grandes do imperio,
- pontifice infallivel, grandes do imperio incomparaveis. Nem mais a um foi
permittido largar o diadema, que lhes deram, nem aos outros o monopolio da
presumpção e da vaidade. A illustração e todos os meritos litterarios deviam
partir para o pais inteiro como reflexo desse foco, como irradiações desse
systema solar. [...]
Da côrte vem ás provincias a luz da inspiração e o padrão de todas
as concepções litterarias, como politicas. Nada nos é permittido ousar senão
pela pauta desses legisladores do bom gosto; nem uma concepção discorde do
seu criterio magistral, nem uma idéa fóra do seu ideal! – Critica, sómente a da
côrte!
E a côrte é a corrupção de tudo...
Quo usque tandem abutere21!?
21 “Até quando abusarás”, palavras que abrem as Catilinárias de Cícero, conjunto de discursos contra o
senador romano Catilina nos quais o autor o acusava de conspirar contra o senado. A citação completa é
“Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?”, que vertida para o português significa “Até
quando abusarás, Catilina, de nossa paciência?” (CICERO, 2009, p. 4)
46
As cartas de Sempronio foram provocadas por essa miseria. [...]
Falla pelo seu orgão todo o Brazil litterario longamente escarneido por essa
oligarchia bastarda de cortezãos litteratos. [sic] (FARWEST, 1872a, p. 2)
O segundo artigo retoma os pontos do primeiro de forma a estreitar ainda mais
a identificação entre as instâncias literária e política do Brasil da época. Ao fazê-lo, o
autor adota um tom muito mais belicoso:
Depois de haverem reduzido a sociedade brazileira aos limites do
municipio neutro no ponto de vista administrativo e financeiro, os chineses
políticos do império querem também circumscrever nesses limites o
movimento e as tendencias litterarias do Brazil.
A iniciativa, a actividade, todas as forças locaes, que poderiamos
chamar oganicas da sociedade civil, disem-no a experiencia e o bom senso, ou
hão de ser estimuladas e desenvolvidas em cada ponto do territorio, em que
rebenta a vida social com a congregação da família, ou terão de esterilisar-se e
nulificar-se, se se deslocam para serem concentradas n’outro ponto. [...]
Não contentes com isto instituem a claque litteraria, o conchavo do
elogio mutuo; proclamam-se os unicos; arvoram um dictador para o seu baixo
imperio; e atiram-se à conquista da republica das lettras, que já contam por
conquistada. [...]
Razão tem para isso o Sr. José de Alencar; porque ainda um livro
seu não está publicado, e já os apologistas se acotovelam a qual mais cedo e
mais alto apregôe a nova pomada. O que quer que prometta elle publicar, há
de ser em todo o caso “um primor de litteratura, uma nova gemma, que mais
fulgor dará ainda ao diadema da sua realeza litteraria” e que os seus camaradas
põem logo nas cem boccas da imprensa. [sic] (FARWEST, 1872b, p. 2)
É notável como os argumentos de Távora são bem acolhidos no texto redigido
por Farwest. Não só isso, mas eles são retomados com o intuito de delimitar uma situação
ampla contra a qual se desenha uma sublevação em múltiplos âmbitos:
É por tudo isto que reagimos contra a centralisação litteraria, que
produz tão lamentaveis resultados.
Cumpre destruir o vicio original, concorrendo cada província, cada
municipio com o seu empenho e com a sua dedicação.
Em Pernambuco organisa-se felismente uma vigorosa reacção. Em
política, continua na vanguarda do movimento democratico o Jornal do Recife
[...]
Em religião, cuja centralisação nos arrasta para o estrangeiro, contra
a patria – tomou a iniciativa a sympathica e generosa redacção da Verdade22.
Em lettras congregam-se os elementos, e promettem dar batalha
campal a esses litteratos bastardos, que tão honerosamente conspurcam as
lettras nacionaes.
Poderá alguém negar que na côrte do imperio faz-se uma
centralisação litteraria, levanta-se uma aristocracia de talentos corrupta e
corruptora, que pelo conchavo do elogio mutuo proclama chefe da litteratura
brazileira um talento de má indole e decrepito [...]?
Não podem, tal é a evidencia da enormidade! [...]
22 O períodico A Verdade (1872-1874) teve como redator-chefe Franklin Távora, que fundou o jornal e
esteve à sua frente no contexto da Questão Religiosa, que opôs maçons e o clero pernambucano no debate
sobre a liberdade religiosa e a legalidade das sociedades secretas (Cf. AGUIAR, p. 203-219).
47
Aberta como foi a brecha por Sempronio bateremos della. [sic]
(FARWEST, 1872b, p. 2)
Tal comoção, por certo, não teve início com o levantar da pena de Távora contra
Alencar, sendo este antes um sintoma de uma inquietação já posta, e cuja dimensão
superava os conflitos de ordem literária. A fim de verificá-lo, será analisada em maior
detalhe a natureza dessas tensões sociais que se manifestavam em Pernambuco e a sua
expressão na obra tavoreana, em especial a formação da sua “Literatura do Norte”.
2.3 – A elegia da sociedade açucareira
Nos anos que se seguiram à publicação das Cartas a Cincinato, Franklin Távora
continuou a atuar ativamente na arena pública em defesa de suas posições, sendo seu
esforço mais célebre nesse sentido a publicação do romance O Cabeleira (1876), a partir
do qual propunha inaugurar um projeto político-literário denominado “Literatura do
Norte”, reunindo obras que celebrassem os costumes e tradições das províncias
setentrionais do país como uma forma de representar um Brasil verdadeiro cuja essência
já teria sido perdida nas províncias do sul. No prefácio do livro, que serve também como
uma carta-manifesto do projeto ali encetado, ele argumenta que:
As lettras têm, como a politica, um certo caracter geographico; mais no
norte, porém, do que no sul abundam os elementos para a formação de uma
litteratura propriamente brazileira, filha da terra.
A razão é obvia: o norte ainda não foi invadido como está sendo o sul
de dia em dia pelo estrangeiro.
A feição primitiva, unicamente modificada pela cultura que as raças, as
indoles, e os costumes recebem dos tempos ou do progresso, póde-se affirmar
que ainda se conserva alli em sua pureza, em sua genuina expressão. [sic]
(TÁVORA, 1876, p. 12)
Consciente da condição subalterna da literatura produzida longe da capital
imperial, o autor se arvorava em tendências estéticas e ideológicas recém-chegadas da
Europa para contestar a hegemonia política e literária do sul do país, como se analisará
em detalhe nos capítulos seguintes. Entretanto, na mesma medida em que procurava
superar o status quo saquarema instrumentalizando essas ideias novas e estrangeiras, ele
simultaneamente reafirmava a necessidade de exaltação de uma “feição primitiva”
própria do Norte do Brasil, então entendido como o conjunto de todas as províncias da
Bahia ao Amazonas, o que confessadamente se traduziria em suas obras no registro de
tradições e costumes regionais, mas também implicaria uma defesa entusiástica da
48
economia da cana como elemento basilar dessa sociabilidade rural que ele buscava
registrar e preservar.
Evaldo Cabral de Mello defende em Rubro Veio – O Imaginário da Restauração
Pernambucana (2008) a tese de que existe na historiografia pernambucana a recorrência
de uma certa “tradição revolucionária” ligada à permanência de uma elite fundada sobre
a cultura da cana, uma “nobreza da terra”, alienada tanto num primeiro momento do
centro de poder da metrópole portuguesa quanto posteriormente da corte imperial carioca.
Essa elite rural, a qual constituiria o que o autor chama de uma “açucarocracia”, primeiro
lideraria a resistência contra a ocupação holandesa, culminando na sua expulsão definitiva
em 1654, e posteriormente protagonizaria uma série de revoltas independentistas ao longo
de todo o período colonial até o fim da primeira metade do século XIX, quando seu capital
político declinava (MELLO, p. 11-19).
Há de se ter em conta que as fronteiras da capitania de Pernambuco eram
diferentes dos limites do território que hoje compõem o estado. À época de sua fundação,
a capitania de Pernambuco se estendia por toda a costa nordestina desde o que hoje
corresponde à fronteira sul do Alagoas, abarcando também o que hoje é a Paraíba, o Rio
Grande do Norte e o Ceará, seguindo com o rio São Francisco pelo oeste baiano adentro.
O desmembramento dessa capitania no que se tornariam os demais estados da
região Nordeste era um fato relativamente recente para Távora. Ceará, Paraíba e Rio
Grande do Norte tiveram sua independência em 1799, enquanto Alagoas se tornou
independente em 1817 e a região do Além São Francisco foi incorporada à Bahia no
mesmo ano. Nesse contexto, sua pretensão de dar ensejo a uma Literatura do Norte
empreendendo esforços tão somente na reconstituição da história de Pernambuco parece
fundada não em uma mera predileção pela província que o acolheu, mas em uma
identidade comum que fora até pouco tempo antes compartilhada por grande parte das
demais províncias do Norte.
Mello afirma que o imaginário que se formou em torno dessas revoltas se
acomodou ao longo dos séculos de acordo com as transformações das demandas da elite
açucareira. Nos anos que antecederam a independência do país, essa “tradição
revolucionária” progressivamente veio a ser entendida como uma suposta vocação
nativista que singularizava Pernambuco em relação ao resto do Brasil, culminando na
Revolução Pernambucana de 1817.
Da mesma forma, nos anos que se seguiram à proclamação da independência, os
nobres que se sublevaram durante o período colonial contra holandeses e portugueses
49
seriam revistos como os primeiros a se revoltarem em prol de uma brasilidade nascente.
A recomposição estratégica dessa herança histórica foi um artifício do qual se valeram os
descendentes dessa nobreza da terra em um contexto no qual eles perdiam seu
protagonismo político em nível nacional.
Seria essa tradição que daria ensejo não só à particularização do Norte em
relação ao Sul tal como idealizava Távora, mas também à defesa que ele fazia de que o
verdadeiro Brasil se encontraria nessas províncias, não só depositárias de tradições
avoengas, mas também terra natal de revolucionários pioneiros. Em contrapartida, a
sociedade da corte não só teria dado as costas a esse legado, mas teria perpetuado em
nível nacional a própria relação de exploração que os antigos revolucionários
pernambucanos combateram quando exercida pelas metrópoles holandesa e portuguesa.
A disputa em torno da apreensão do papel da açucarocracia pernambucana e de
suas revoluções na historiografia brasileira ganharia fôlego em 1862 com a fundação do
Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano (IAGP), o qual procurava oferecer
um contraponto à perspectiva imperial unitarista promovida pelo Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB), uma historiografia designada por Mello como de
tendência “saquarema” (MELLO, 2008, p. 57-58), em referência ao partido conservador
brasileiro da época ao qual a “ordem saquarema” aludida por Alonso também se refere.
As lembranças recentes dos eventos da Confederação do Equador (1824) e da Revolução
Praieira (1848) não poderiam deixar de imprimir a pecha de separatistas a quaisquer
exaltações oficiais às demais revoltas pernambucanas, sobretudo a revolução recente
protagonizada em 1817, naturalmente controversa por seu caráter republicano.
Essas disputas em torno da formulação de discursos históricos nacionais derivam
da preponderância que a consciência histórica assume no século XIX, sobretudo, de
acordo com Jacó Guinsburg, em função do Romantismo em sua manifestação como fato
histórico para além de uma configuração estilística nas artes, como evento sociocultural
(Cf. GUINSBURG, 2013, p. 14). A crescente laicização do pensamento e a centralidade
que o indivíduo assume desde o século anterior, dito o das Luzes, se cristalizam de forma
que “[o] discurso histórico sofre mudança revolucionária. Deixa de ser meramente
descritivo e repetitivo, para se tornar basicamente tanto interpretativo quanto formativo,
genético. É a história que produz a civilização. Mas não a História, e sim as histórias”
(GUINSBURG, 2013, p. 15).
50
Há, assim, uma ruptura na estrutura do pensamento da época que, se não se
restringe ao meio artístico, é expressa de maneira contundente nele. O autor prossegue,
escrevendo que:
[O] Romantismo, na sua propensão historicizante, aglutina as sociedades em
mundos, comunidades, nações, raças, que têm antes culturas do que
civilizações, que secretam uma individualidade peculiar, uma identidade, não
de cada indivíduo, mas do grupo específico, diferenciado de quaisquer outros.
(GUINSBURG, 2013, p. 15)
Nesse contexto, a elaboração de mitos nacionais que individualizem uma
sociedade em relação às demais é um processo para o qual tanto a pesquisa historiográfica
quanto a produção literária contribuem enormemente, em um movimento no qual “[o]s
deuses por direito próprio estavam substituídos por semideuses ou simples heróis,
autóctones, talvez, mas sem dúvida cruzando o telúrico e o celestial” (GUINSBURG,
2013, p. 19). Assim, “tinha-se agora uma espécie de nova mitopoética histórica,
défroqueé, rica pela variedade e colorido nacionais de suas epopeias coletivas e de seus
heróis culturais” (GUINSBURG, 2013, p. 19), posta em marcha no Brasil, sobretudo,
pelo IHGB e pelo romantismo indianista.
Apesar de não ter seu nome formalmente associado ao IAGP, Távora não se
encontrava alheio a essas questões, as quais não só foram tema recorrente de sua produção
intelectual, mas influíram diretamente em sua vida pessoal. Como já referido, seu pai, o
major Camilo Henrique da Silveira Távora, participara ativamente da Revolução Praieira,
tendo sido julgado e condenado por crime de rebelião junto a outros membros da família
do autor e permanecido detido no presídio de Fernando de Noronha até os primeiros anos
da idade adulta do filho.
Em janeiro de 1873, o próprio Franklin Távora, ainda antes de dar ensejo à sua
Literatura do Norte, fundou junto aos amigos Aprígio Guimarães, seu professor na
Faculdade de Direito do Recife, e L. F. Maciel Pinheiro, antigo colega da mesma
instituição, a “União do Norte”, “sociedade litteraria, scientifica e histórica para
engrandecer o Norte do Brasil” (O Vinte e Dous de Maio, 1872, p. 2). Essa sociedade,
cujo nome à época era amplamente utilizado para se referir à república estadunidense,
atuou sobretudo nos anos de 1873 e 1874 no âmbito da Questão Religiosa, advogando
pela liberdade de culto e limitação da influência papal sobre as matérias de fé no Estado
brasileiro (Diário de S. Paulo, 1873, p. 2), e no requerimento da republicação das obras
de clérigos pernambucanos célebres por sua atuação política, nomeadamente Frei Caneca
e o Vigário Francisco Ferreira Barreto (A Província, 1874, p. 3).
51
Ainda antes da reunião que instituiu sua fundação, surgiram artigos nos jornais
pernambucanos de cunho liberal celebrando a iniciativa de criação da sociedade. Em 19
de novembro de 1872, um “D.A” remetia à seção de publicações solicitadas d’A
Província, vinculado ao Partido Liberal, um artigo intitulado “União do Norte”, onde se
lia:
Sob esta denominação acabam de ser lançadas as bases d’uma
associação historico-litteraria, que, mui proveitosos serviços poderá prestar ás
provincias do norte, as quaes absortas na contemplação do brilhantismo quadro
de sua grandeza no passado, conservam-se inactivas, sem oppor um dique á
torrente devastadora, que, vindo do sul, ameaça em sua passagem derrubar os
monumentos de seu heroismo, os pedestaes de seus martyres, e apagar as
inscripções do túmulos de seus poetas. [...]
Que as venerandas riliquias do passado não se percam, que não nos
deixemos asfixiar pelos gazes da corrupção histórica e litteraria, eis o que todos
diziam, sem que ousassem tomar sobre os hombros o trabalhoso, porém
gloriosissimo encargo de empreender uma viagem pelos mares da historia e da
literatura, para recolher de suas profundezas as preciosíssimas perolas, que ja
diademaram este nosso Pernambuco e suas irmãs do norte, e que a mão da
iniquidade lh’as arrancou, arremessando-as ao pego do esquecimento. [sic]
(D.A., 1872, p. 4)
Em 13 de dezembro do mesmo ano, publicava-se no Liberal outra defesa dos
argumentos pela criação da sociedade feita nos mesmos termos, dessa vez sob a pena
anônima de “****”. Nela lê-se:
E’ triste que o Pernambuco de hoje seja tão differente do Pernambuco
de hontem!
[...] o que hontem havia e hoje não ha, é gosto e amor ao estudo; e o
que hoje ha em abundancia e hontem não havia, é enveja, egoísmo, sentimentos
bem pouco nobres, que esterilisam as intelligencias, matam as aspirações,
causando o atraso das lettras e conseguintemente do paiz [...].
Esses sentimentos são os que infelizmente preponderam no sul, em
relação ao norte e entre nós, o mesmo mal sente-se, vê-se, apalpa-se. [...]
Porque havemos de sujeitarmo-nos, nos domínios das letras
propriamente ditas, ás autoridades infallibilistas do sul do império,
suportando, que, até neste ponto, nos queiram dar o santo e a senha, já não se
contentando com a centralisação politica?
Se sem uma convulsão, é impossível reconquistar de chofre para as
provincias do norte a importância politica, que já tiveram e de que hoje se
acham exautoradas, o mesmo não se dá nas letras e na historia.
Na politica a obra da centralisação está consummada, soffremo-lhe as
terriveis consequencias, nas lettras, vae ainda em meio caminho.
Uma reação energica, porém sensata, chega a tempo de impossibilitar
o sequestro de nossas glorias, de nossas lettras.
Quem encetal-a? A União do Norte. [sic] (****, 1872, p. 3)
Há de se perceber a significação que a fundação de uma sociedade do tipo
assumia nesse meio, assim como os pontos de contato entre o discurso desses remetentes
e daqueles que haviam escrito a respeito das Cartas a Cincinato no que concerne à
disparidade entre o norte e o sul do país. Muitos desses argumentos seriam inclusive
52
retomados por Távora em sua carta-manifesto pela Literatura do Norte e em outros
escritos subsequentes.
Em relação aos posicionamentos externados pelos próprios membros do grupo,
no aniversário de onze anos da fundação do IAGP foi publicado no jornal A Província
um discurso do orador da União do Norte, Maciel Pinheiro, em que, representando a
sociedade, realizava um balanço crítico da restauração pernambucana, comemorada
naquela mesma data. Ele escreve:
A União do Norte não pode acompanhar-vos, senhores, nesta festa,
sinão pela comemoração do vosso próprio anniversario, que será sempre um
dia notável nos annaes do Brazil, e que assingnala a exuberância de um
patriotismo fecundo, que veio protestar por factos contra o patriotismo esteril
de uns fazedores de discursos, que se intitulam representantes da nação.
[...] o resgate, que commemoraes, não foi a libertação do povo
brasileiro [...]. Foi a troca de um senhorio por outro, questão de interesses
estrangeiros, da qual os filhos do Brazil sairiam sempre escravos. [...]
Parece-vos, senhores, que muita razão tiveram os nossos avoengos
para preferir ao jugo hollandez o jugo de Portugal?
Si a raça hollandeza prevalecesse como seu domínio neste solo
fecundo, seria eficaz garantia das grandes prosperidades, que nos faltam, a sua
imensa actividade e o seu espirito empreendedor e enérgico, de que nos deixou
copia tão bastante. Teriamos sido colonos de melhor metropole. [sic]
(PINHEIRO, 1873, p. 4)
Evaldo Cabral de Mello percebe uma certa “conexão entre as atitudes
modernizantes de finais de Oitocentos e a apologia da ocupação holandesa23”, (MELLO,
2008, p. 342) o que serviria para “mascarar tendências republicanas [...] e de exigências
de pluralismo religioso e de liberdade de consciência, contrárias ao caráter oficial da
religião católica”, assim como “punha em pauta a valia do legado português, que dera ao
Império a dinastia reinante” (MELLO, 2008, p. 323-324). Essas tendências são
amplamente verificadas no decorrer do discurso de Pinheiro, como já aparece indicado
ao afirmar que sob o poder Holandês teriam tido “melhor metrópole”:
A denominada restauração de Pernambuco não foi de certo,
senhores, um acto de nacionalidade americana; e nem teve intuitos de
independência e liberdade do paiz; teve antes, sim, por objecto ligar uma
colônia rica aos anteriores domínios da corôa portuguesa. [...]
Para a União do Norte o dia 27 de Janeiro não lembra sinão uma
dacta memorável: – é a da inauguração do Instituto Archeologico
Pernambucano, cujas glorias trazem o cunho da nacionalidade brasileira. [...]
23 Evaldo Cabral de Mello se refere em específico a esta tendência tal como exposta por Francisco Augusto
Pereira da Costa e Joaquim Nabuco, mas verifica-se neste trabalho a pertinência de suas observações
também em relação ao discurso de Maciel Pinheiro que, mesmo os precedendo, encerra em si os mesmos
argumentos.
53
Graças a vós, senhores modestos e devotados zeladores das honras
pátrias, é-nos licito esperar que não acabarão de todo os restos d’aquelle antigo
calor que animou as luctas da independência.
Graças a vós a geração futura saberá que não foram nunca
repudiados nesta terra aquelles heroicos sentimentos, por cujo amor correo o
sangue de Caneca e de Miguelinho.
Quaes vestaes do templo da pátria velareis de certo, para que se não
extinga o fogo santo da liberdade. [...]
Desse fogo sagrado espera a União do Norte que há de vir ainda a
nossa verdadeira restauração, a restauração da soberania nacional e da
liberdade de cultos, incompatível com todos e quaisquer privilegios perpetuos.
[sic] (PINHEIRO, 1873, p. 4)
Távora, por sua vez, se debruçaria individualmente sobre o tema das revoluções
em sua produção ensaística, tendo redigido em 1880 o ensaio Os Patriotas de 1817
tomando como tema a Revolução Pernambucana de 1817. Somente o sexto capítulo,
“Uma Sessão do Governo Provisório”, veio a lume no quarto tomo da Revista Brasileira,
mas mesmo esse excerto do trabalho deixa entrever como Távora trata dessa revolução
antes pelo seu caráter nativista do que pelo estigma separatista associado a ela pela
historiografia saquarema:
De feito, a revolução de 1817, mau grado os odios e invectivas infundadas, é
de ha muito considerada pelo paiz como a raiz da montanha que cresceu entre
Portugal e Brazil, e os separou definitivamente. [...] O que nelle [movimento
de 1822] teve de mais puro – a idéa da separação – tinha vindo da revolução
de 1817. Nesta revolução as ambições foram quasi nenhumas, o amor da pátria
foi quasi tudo. [sic] (TÁVORA, 1880, p. 38-39)
Ele ainda publicaria outro estudo polêmico na Revista Brasileira, As Obras de
Frei Caneca (1880), uma apreciação dos poemas do clérigo líder da Revolução de 1817
e mártir da Confederação do Equador que privilegiava a interpretação de suas obras à luz
de sua trajetória revolucionária e faria parte de uma obra de maior vulto jamais publicada
chamada A Constituinte e a Revolução de 1824. Dentre estes estudos, foi Os Patriotas de
1817 que o autor optou por apresentar ao IHGB à ocasião de sua candidatura como sócio
do Instituto, sendo sua natureza polêmica ressaltada pela comissão apreciadora do
Instituto, mas relevada em função dos fatos narrados serem “[...] lutas encandescentes de
nossos dias, e por isso ainda não ha a verdadeira paz de espírito para serem apreciadas,
como é de mister. Tanto é verdade que ainda hoje os diversos escriptores d’esses factos
não são concordes em seus julgamentos.” [sic] (MARQUES & VEIGA, 1880, p. 404).
A despeito do conteúdo controverso do estudo, em que pesaram as duras críticas
feitas por Távora a trabalhos dedicados ao mesmo tema empreendidos por membros do
próprio IHGB por se alinharem a uma ótica “saquarema”, como colocada por Mello, ele
foi aceito. Távora também apresentaria seus romances Os Índios do Jaguaribe (1862), O
54
Cabeleira (1876) e O Matuto (1878) como credenciais para seu ingresso no Instituto, uma
vez que tratavam-se de romances históricos fundamentados em ampla pesquisa
historiográfica, fato que também pesou para sua acolhida na instituição.
Seria justamente em suas obras romanescas que Távora daria vazão de maneira
mais desabrida aos seus pensamentos em relação ao imaginário da tradição revolucionária
pernambucana. Dado a longas digressões na composição de seus romances, Távora
encetaria em cada um deles elementos concernentes a essa ótica particular.
Como observado, à época de Távora, esse nativismo pernambucano era
mobilizado menos com o intuito de inflamar a sedição separatista do que como uma forma
de reivindicar um protagonismo histórico perdido em decorrência do declínio da indústria
da cana, que relegou as províncias do Norte a um papel marginal na configuração de
poder do Império. Assim, a questão que ocupava a açucarocracia era o crescente
favorecimento dos cafeicultores do sul do império por parte do governo em detrimento
dos senhores de engenho, situação que era espelhada pelo avançado desenvolvimento das
províncias do sul em relação aos seus vizinhos do norte.
A já aludida obra da juventude de Távora, Os Índios do Jaguaribe,
coincidentemente publicado no mesmo ano da fundação do IAGP, é prenhe de
tensionamentos sobre as diferenças entre o sul e o norte do Império Brasileiro, como
analisado previamente, de forma que suas obras posteriores, reunidas sob o epíteto de
“Literatura do Norte”, encontrariam seu gérmen nessas questões que já ocupavam o
escritor em sua juventude e seriam exacerbadas à luz dos desdobramentos do quadro
histórico que as suscitou. Em O Matuto, escrito em 1878, quando o autor já havia
encetado seu projeto político-literário, sua demanda pelo reconhecimento do valor
histórico e cultural do Norte é mais estreitamente veiculado à defesa dos interesses da
açucarocracia.
A trama do romance é centrada nas ações de Lourenço, o matuto do título,
durante os eventos da Guerra dos Mascates, conflito travado entre 1710 e 1711, em
Pernambuco, entre a aristocracia rural produtora de cana e os comerciantes reinóis
citadinos, cognominados mascates por seus adversários.
A contenda foi deflagrada em função do desejo da burguesia portuguesa em
elevar a então povoação do Recife, onde estes se concentravam, ao nível de vila,
aumentando sua presença na câmara do senado e despindo a nobreza da terra, reunida em
torno da cidade de Olinda, do domínio político absoluto de que gozava desde a expulsão
dos holandeses séculos antes. No livro, Távora escreveria que “[...] a luta era menos de
55
fidalgos e peões do que da agricultura ameaçada de ruina, e do commercio que apparecia
como tyranno” [sic] (TÁVORA, 1878, p. 136).
A parcialidade do autor pela nobreza pernambucana vislumbrada no excerto
acima é reafirmada ao longo do romance na medida em que Lourenço, a exemplo dos
demais habitantes dos engenhos, alinha-se aos nobres pernambucanos, testemunhando e
protagonizando atos de bravura ao lado de figuras históricas da aristocracia rural que
tomaram parte no conflito. Por sua vez, os mascates e seus partidários são pintados como
mamonistas ávidos pelo poder, empregando meios escusos em seus esforços de guerra e
contando com mercenários e criminosos em suas fileiras em razão de sua rejeição pela
população local.
A ideia de que haja uma indissociabilidade entre a identidade pernambucana e a
indústria da cana é explanada reiteradamente ao longo das digressões a que Távora se
entrega ao longo do livro com o intuito de situar o leitor alheio aos acontecimentos
históricos, em uma atitude que reverberava a atualidade das questões centrais do conflito.
O trecho transcrito abaixo, apesar de excessivamente extenso, justifica um detido exame
por ilustrar esse posicionamento de maneira inequívoca:
Parece que se prepara grande guerra á canna-de-assucar no norte.
Para levar a efeito este pensamento — o da destruição da planta abençoada,
servem-se do de cultivar com largueza o café no interior das provincias onde
até o presente se cultivou largamente a canna. [...]
Para o homem do norte o engenho de assucar é o representante de
immemoriaes e gloriosas tradições. Especialmente o pernambucano nasce
vendo com amigos olhos aquellas grandes propriedades que são como os seus
castellos feudaes. O engenho é o solar do norte. A nobreza do paiz principiou
por elle; não conheceu outro solar. Elle figura nas maiores paginas da historia
daquella parte do vasto império. Sua importância é lendária, histórica e santa.
E querem agora que á canna-de-assucar se substitua o café!
Promovem a extincção do giganteo elemento que produziu e perpetuou
fortunas respeitáveis naquella grande região!
Aperfeiçoar os processos de cultura dessa planta illustre, a que
Pernambuco deve brilho e grandeza immorredoura é digno do progresso. O
direito sinão o dever de melhorar as condições da agricultura, do commercio,
das industrias, está acima de toda duvida; mas suprimir um gênero de cultura
que tem por si a consagração de muitos séculos e elevou muitas gerações e
opulentou a provincia, não me parece nem justo, nem acertado nem
econômico.
Voz secreta e consoladora, dissipando os meus temores, segreda-me
que tú, ó planta bemfazeja — estandarte da independência e da riqueza do
pernambucano, seja qual fôr a conspiração tramada contra ti, não has de
desaparecer das nossas planícies, dos nossos oiteiros, dos nossos valles e
encostas, por onde estendes ha três séculos tua folhagem hospitaleira. [sic]
(TÁVORA, 1878, p. 77-80)
Essa transubstanciação da cana em símbolo da identidade pernambucana
encontra sua hipostasia na permanência da açucarocracia no seio da sociedade
56
pernambucana. Assim, a valorização da história e o resgate das tradições nortistas
implicam necessariamente para Távora na defesa da decadente indústria da cana e dos
signos associados a ela.
A situação a que ele alude ao descrever uma “grande guerra à cana-de-açúcar no
Norte” que estaria sendo preparada era a recente política imperial de reservar às lavouras
de café das províncias do sul subsídios que eram negados aos engenhos de cana-de-açúcar
das províncias do norte. No ano de publicação d’O Matuto, realizou-se na capital do
Império o Congresso Agrícola do Rio, ao qual foram convocados exclusivamente os
cafeicultores das províncias do Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo,
classe que vinha se insinuando politicamente no centro das decisões imperiais em função
de sua crescente preponderância na economia nacional.
Acuados por esse sinal dos tempos, que se somaria à recente aprovação da Lei
do Ventre Livre, à competição com a produção de açúcar extraído da beterraba e à seca
de 1877 para impor à indústria da cana sua derrocada derradeira, os mais influentes
senhores de engenho da região norte se reuniram em Recife para realizar o Congresso
Agrícola do Norte, realizado naquele mesmo ano de 1878, cuja organização teve o intuito
confesso de “[...] contrabalançar a influencia que por ventura pudesse ter a do Congresso
Agrícola do Sul, convocado pelo governo imperial [sic] ” (Diário de Pernambuco, 1878,
p. 1). Em sua introdução à reedição dos Trabalhos do Congresso Agrícola do Recife,
Gadiel Perruci denominaria esse evento como “o canto do cisne dos barões do açúcar”
(Congresso Agrícola do Recife, 1978, p. i).
As pautas debatidas nessa reunião não se limitaram a estratégias para atrair os
subsídios governamentais dispensados às províncias do sul, indo desde a como substituir
a mão-de-obra escrava da qual dependia sua produção e a formas de como modernizar a
estrutura dos engenhos para aumentar sua produtividade até discussões inflamadas que
demandavam uma reedição das malfadadas tentativas separatistas protagonizadas pela
classe em outros tempos. O mote da reunião poderia ser situado na célebre frase do
romance O Leopardo (1958), de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, proferida pelo sobrinho
de Don Fabrizio, membro da nobreza italiana ameaçada pela revolução republicana e
protagonista da trama: “Se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo
mude.” (LAMPEDUSA, 2017, p. 31).
O fazer literário de Távora e, em última instância, seu projeto político-literário
como um todo, encontra-se, portanto, situado dentro de um contexto no qual o autor
procurava fazer coro às reivindicações de setores da sociedade pernambucana, entre eles
57
essa elite rural carente de meios de reafirmar tanto sua vitalidade econômica baseada na
indústria da cana-de-açúcar quanto seu capital político assentado na construção de um
imaginário fundado na restauração pernambucana, ambos em vias de falência. Durval
Muniz de Albuquerque Júnior defende que a imagética construída por Távora ao transpor
para o campo literário essas disputas pelo poder acabaria por mobilizar um discurso
regionalista que se afirmaria com mais veemência nas décadas seguintes:
[...] o projeto literário de Távora se desenha a par com a crescente rivalidade
entre setores das elites do Norte e setores das elites do Sul, motivada pelo
crescimento da desigualdade entre esses dois espaços, tanto em termos
econômicos, como em termos políticos. O projeto literário de Távora se
articula à emergência de um sentimento regionalista que se materializará de
modo explícito daí há dois anos quando do Congresso Agrícola do Recife,
realizado no ano de 1878, onde discursos com tons claramente separatistas vão
se fazer ouvir. Embora diga que Norte e Sul são irmãos, Távora não deixa de
afirmar que eles são dois, procurando marcar as suas diferenças, diferenças
essas fundamentais para recortar esse espaço, seja do ponto de vista político,
seja do ponto de vista literário. Nessas imagens que servem para instituir um
recorte entre os dois espaços, algumas servirão de tema e permitirão figurar
literariamente, por muito tempo, esse espaço do Norte, depois o espaço do
Nordeste. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2017, p. 231)
Assim, o empenho de Távora pela emancipação discursiva do Norte perdurou com
a tradição regionalista que ele ajudou a municiar e da qual ele chega a ser apontado como
precursor (Cf. ALMEIDA, 1981). Ele lança mão de esforços em diversas frentes para
realizar esse intuito, fazendo valer a máxima que expôs no pós-escrito da segunda edição
de seu Um Casamento no Arrabalde, no qual afirma, em conformidade com a ideia que
Machado de Assis fazia então da literatura nacional, que “[o] romancista moderno deve
ser historiador, critico, político ou philosopho [sic]” (TÁVORA, 1881, p. 100).
Coerente e influente, Távora contribuiu com suas ações para moldar os
sucessivos movimentos organizados pela emancipação discursiva do então Norte do país.
A emergência desses discursos se verificará nos capítulos que se seguem, a partir do
exame minucioso do romance O Cabeleira e das continuidades e rupturas na
representação do sertão entre os pares coetâneos do autor.
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Capítulo 3 – Um romance para o Norte brasileiro
Gloria ao orador sublime!
O seu renome é já certo!
E ha de ter, por seu trabalho,
Sobre um tronco de carvalho,
Uma estatua no deserto! [sic]
(E. Califourchon)
3.1 – Da Literatura e do Norte
O romance O Cabeleira (1876) foi o mais célebre dos que saíram da pena de
Távora, inaugurando o ciclo de sua produção que ele denominou como sendo da
“Literatura do Norte”, na qual se incluíam O Matuto (1878), Lourenço (1881), O
Sacrifício (1881) e, retroativamente, Um Casamento no Arrabalde (1869). Este último
foi escrito ainda quando o autor residia no Recife, mas foi reeditado posteriormente no
Rio de Janeiro à ocasião da difusão do projeto político-literário do autor, tratamento que
ele previa estender às demais obras de sua juventude.
Foi justamente com o intuito de encetar sua carreira nas letras que Franklin
Távora se mudou com a família para o Rio de Janeiro em 1874, em um movimento
condizente com seu posicionamento de que a atenção da corte estava voltada antes para
si mesma do que para o resto do país. De fato, O Cabeleira e as obras subsequentes que
Távora editou no Rio de Janeiro, incluídas novas tiragens de escritos já publicados em
Pernambuco como o supracitado Um Casamento no Arrabalde, alcançaram um sucesso
que o autor até então desconhecia.
A carta-prefácio d’O Cabeleira endereça diretamente essa questão da
desigualdade no cenário literário nacional, ampliando a discussão para a esfera da
diferenciação da própria formação sócio-histórica entre as porções setentrional e austral
do Brasil, de forma que este preâmbulo se apresenta como uma verdadeira carta-
manifesto de seu projeto político-literário da Literatura do Norte. Na mesma medida, o
prefácio do livro não deixa de guardar uma relação estreita com os temas a serem
explorados nele, configurando-se como uma ferramenta de análise preciosa para a
investigação das categorias mobilizadas ao longo da narrativa e apresentando pontos de
contato relevantes entre o contexto no qual o livro foi escrito, seu conteúdo e a trajetória
do autor.
Gerard Genette, em seu esforço por enumerar as funções do prefácio, apresenta
a função de “definição genérica” como um recurso analítico a partir do qual se pode
analisar o prefácio d’O Cabeleira. Uma extensão da função prefacial de “declaração de
59
intenção”, esta se configura como um esforço “[...] rumo a uma caracterização mais
institucional, ou mais preocupada com o campo, temático ou formal, no qual se inscreve
a obra singular” (GENETTE, 2009, p. 199), aparecendo sobretudo “[...] nas épocas de
‘transição’, [...] onde se procura definir esses desvios em relação a uma norma anterior
ainda sentida como tal” (GENETTE, 2009, p. 199).
Notavelmente, Genette afirma que “O prefácio-manifesto pode, enfim, militar a
favor de uma causa mais ampla do que a de um gênero literário” (GENETTE, 2009, p.
202). Esta definição parece corresponder à função divisada por Távora para esse prefácio,
uma vez que, mais do que apresentar a linha de força do projeto tavoreano, o texto que
antecede O Cabeleira delineia toda uma cosmovisão que se realiza ao longo das páginas
do romance, posicionando-se em relação a causas que extrapolam em muito a definição
de uma escola literária.
Távora endereça essa carta que prefacia o livro a um amigo pernambucano
anônimo que reside em Genebra, criando paralelos entre a situação em que ambos se
encontram, longe da terra onde se criaram, e trazendo a partir desse tópico discussões
sobre o espaço e as subjetividades associadas a ele que nortearão seu argumento ao longo
da carta — e também do romance. Ele dá início à carta descrevendo as transformações
atmosféricas que se desfraldam diante de sua janela em sua nova morada, no bairro de
Botafogo, e nota que, passada a tempestade, “[...] o céo mostra-se mais puro e bello, o
mar mais azul, as arvores mais verdes; a viração tem mais doçura, as flôres mais
deliciosos aromas” [sic] (TÁVORA, 1876, p. 5), afirmando em seguida que:
[...] Essa natureza brilhante e movel estava a cada instante convidando o meu
desanimo a romper o silencio a que vivo recolhido desde que cheguei do
extremo-norte do imperio.
Depois de cêrca de dous annos de hesitações, dispuz-me emfim a
escrever estas pallidas linhas — notas dissonantes de uma musa solitaria, que
no retiro, onde se refugiou com os desenganos da vida, não póde esquecer-se
da patria, anjo das suas esperanças e das suas tristezas.” [sic] (TÁVORA, 1876,
p.6)
Nesse pequeno excerto, entrevê-se a estreita relação que Távora estabelece entre
si mesmo e seu fazer literário com a natureza que o cerca e a dor da distância da terra
natal que lhe oprime. Para além do símile que ele estabelece entre as convulsões do clima
carioca e as dificuldades que marcaram sua aclimatação à vida na corte, é notável que o
retiro que o aflige, e que para si equivale ao do amigo estabelecido na Europa, não vai
para além das fronteiras imperiais, estando a pátria da qual ele se sente alheio no Rio de
Janeiro circunscrita a uma porção mesma do território nacional.
60
Essas conclusões são reafirmadas nas linhas seguintes, em que o autor afirma ser
chegada a hora de cumprir a promessa feita ao amigo a quem a carta era endereçada e
iniciar a empreitada novelística a que ele se propunha “[...] conforme o permittirem as
minhas forças diminuidas pelo meu afastamento das cousas litterarias de nossa terra” [sic]
(TÁVORA, 1876, p. 6). O livro que daí resulta, primeiro de uma série do que ele propõe
serem “composições literárias, para não dizer estudos históricos” (TÁVORA, 1876, p. 6),
deriva especificamente da história pernambucana, mas seu intuito é que os demais
“estudos” que se seguirão a este:
[..] não se limitarão sómente aos typos notáveis e aos costumes da grande e
gloriosa provincia, onde tiveste o berço.
Pará e Amazonas, que não me são de todo desconhecidas; Ceará,
torrão do meu nascimento; todo o norte emfim, si Deus me ajudar, virá a figurar
nestes escriptos, que não se destinam a alcançar outro fim senão mostrar aos
que não a conhecem, ou por falso juizo a desprezam, a rica mina das tradições
e chronicas das nossas provincias septentrionaes. [sic] (TÁVORA, 1876, p.6-
7).
Assim, estabelece-se desde já que a pátria que Távora canta e da qual sente
saudades não se limita a Pernambuco, mas inclui também as demais províncias do norte
do Império. Esse posicionamento do autor é coerente com a defesa que ele desenvolve
mais adiante sobre as diferenças fundamentais que separariam o sul e norte do Brasil, das
quais ele deriva sua formulação de uma literatura do norte.
Em seu intuito de fazer conhecidas à corte as idiossincrasias do norte do país,
Távora se põe a traçar um breve panorama do que ele julga serem algumas de suas
paisagens mais marcantes. Para tal, ele principia por descrever o encanto do Recife,
capital pernambucana e então centro dinamizador da identidade nortista a que ele
subscreve, como analisado nos capítulos anteriores:
[Genebra] não póde ter a beleza dessa elegante e risonha cidade, que surge
d’entre mangues verdejantes, aguas limpidas, pontes soberbas, e se estende por
sobre vasta planicie, obrigando os matos a se afastarem de dia em dia ao
occidente para ter espaço onde alongue de improviso suas novas ruas, suas
estradas, seus trilhos, testemunhos de sua prosperidade material, comercial e
agricola; onde funde novas escolas e erija novos templos, testemunhos de sua
civilisação e grandeza moral. [sic] (TÁVORA, 1876, p. 7)
O caráter do elogio que Távora faz à cidade é indicativo da perspectiva que ele
adota em relação ao processo de expansão da fronteira do capital posto em prática através
do acúmulo material em fins do século XIX no Brasil, assumindo uma ótica utilitarista
do meio ambiente. Essa concepção é pautada na ideia de que a imposição de uma lógica
61
modernizante a esses espaços de fronteira equivaleria a um “progresso” na direção de um
ideal civilizatório ocidental unívoco.
Dessa forma, a subjugação dos espaços ainda não submetidos a essa lógica é
celebrada com a expansão da malha urbana recifense e o consequente avanço da fronteira
continente adentro, paulatinamente apropriando espaços antes tidos como sertões alheios
à ordem civilizada. Essa visão se repete quando, logo em seguida, o autor diz ter visto o
Pará e nele antevisto “as incalculáveis riquezas ora occultas no regaço de um futuro que,
si não annunciou ainda a época precisa de sua realização, não se demorará muito, segundo
se infere do que apresenta, em traduzir-se na mais brilhante realidade” (TÁVORA, 1876,
p. 7).
Mais adiante ele dedica longas passagens à descrição das maravilhas naturais do
Amazonas e da grandiosidade da floresta que o recobre, valendo-se da estética do
sublime, tal como apresentada por Victor Hugo (1827), para narrar a experiência de
vivenciá-la. Ele começa da seguinte forma:
Não ha prodigio que se possa comparar com aquelle no descoberto.
[...] o homem crêa a grandeza ideal, a grandeza physica porém só Deus a
concebe e executa. [...]
Entrando alli, pareceu-me entrar em um templo fantástico e sem
proporções. E’ natural o phenomeno: sempre que nos achamos diante das obras
primas da creaçao, secreto instincto nos adverte que estamos na presença de
Deus. A admiração tem então a solemnidade de um recolhimento e de uma
homenagem. As impressões passam dos sentidos ao fundo da alma onde vão
repetir-se com maior intensidade. Todas as nossas faculdades —a intelligencia,
a imaginação, a propria vontade, deixam-se dominar de uma como volúpia que
não é sensual, mas deleitosa, e grande como é talvez o extase. Ainda quando
tenhamos o espirito cansado dos erros e injustiças dos homens, nós o
sentiremos levantar-se immediatamente cheio de vida diante da representação
enorme, como si elle se achasse em sua integridade virginal. E’ o effeito do
assombro que percorre, como fluido, o nosso organismo, despertando em nós
abruptas sensações que nunca experimentámos, e que são para nós verdadeiros
phenomenos do mundo physiologico. [sic] (TÁVORA, 1876, p. 7).
Nessa passagem, que ainda se alonga por mais páginas a fio, é palpável a
reverência que o autor dispensa a esse quadro da natureza, alçando-o não poucas vezes à
esfera do divino e sublinhando o quão deslocada a humanidade estaria no seio de sua
enormidade. Seguindo-se a esse introito, porém, ele emenda uma consideração que
oferece um contraste marcante com a imagem que ele acaba de apresentar:
— Que não seria deste mundo— pensei eu, descendo das eminências
da contemplação ás planiceis do positivismo, — si nestas margens se
sentassem cidades; si a agricultura liberalizasse nestas planicies os seus
thesouros; si as fabricas enchessem os ares com seu fumo, e nelles repercutisse
o ruido das suas machinas? [sic] (TÁVORA, 1876, p. 11)
62
Essa fala de Távora aparenta um suposto alinhamento com uma concepção
predatória da relação do homem com a natureza, indo diretamente de encontro à fruição
e ao arrebatamento que o contato com a natureza oferece sob o ponto de vista do sublime
huguiano expresso anteriormente. Ela remete antes ao que Horacio Machado Aráoz
identifica como uma perspectiva extrativista, que assume os territórios coloniais como
sendo “meros espaços de saque e espólio para o aprovisionamento [das metrópoles
imperiais] (ARÁOZ, 2011, p. 454).
Enquanto esse discurso é fundado a partir de uma lógica colonial, ele se reproduz
e se atualiza historicamente na relação estabelecida entre as economias industrializadas e
os polos exportadores de commodities, remetendo diretamente ao “des(em)cobrimento
do extrativismo como dispositivo colonial do geometabolismo do capital” (ARÁOZ,
2011, p. 454). Desse modo, reafirma-se o quanto a natureza americana, antes assumida
como substrato lírico, aqui se constitui como “matéria-prima da acumulação capitalista
global; prove[ndo] as bases materiais e simbólicas da produção capitalista da Natureza e
da configuração da Natureza como objeto colonial do capital” (ARÁOZ, 2011, p. 454-
455).
A convicção de Távora no caráter iminentemente positivo do triunfo do
“progresso civilizatório” sobre os “desertos”, aqui expresso na conquista do espaço
natural pela técnica, também se estendia à sujeição destes a uma lógica modernizante
totalizadora. Anos antes de escrever O Cabeleira, à ocasião de sua eleição como deputado
em Pernambuco, ele atuou pela reorganização da instrução pública na província,
prevendo “a implementação de princípios reguladores e modernos baseados na liberdade
do ensino” (AGUIAR, 1997, p. 190), a partir de um modelo proposto por Victor Hugo
para o sistema de ensino francês.
Sua defesa desses princípios de baseava na ideia de que toda a província deveria
se submeter às mesmas diretrizes escolares, em um esforço pela democratização do ensino
que trazia em seu seio o pressuposto de que havia um modelo ideal e unívoco a que todas
as diferentes realidades de Pernambuco deveriam aspirar. O excerto abaixo, parte de uma
transcrição de um debate na Assembleia Provincial de Pernambuco, ilustra bem esse
caráter universalizante da proposta:
O Sr. Franklin Távora – [...] peço a liberdade do ensino desde as mais elevadas
até as mais humildes regiões; peço a liberdade do ensino desde a capital da
Província até ao arrabalde; desde o arrabalde até à vila remota; desde a vila
remota até à povoação solitária, perdida nos seios dos matos; desde a povoação
até... o deserto.
O Sr. Lopes Machado – Mesmo no deserto?
63
O Sr. Franklin Távora – Sim. Mesmo no deserto. Não sabe vossa excelência
que os desertos obedecem a uma tendência natural e providencial de
povoarem-se? Mesmo ali, se instalada uma escola, mais o deserto se povoará.
[...]
O Sr. Ermínio Coutinho – Os desertos povoados deixarão de ser desertos...
(TÁVORA apud AGUIAR, 1997, p. 191-192)
Nesta fala de Távora aparece bem delineado o quanto ele concebia o ensino e
sua democratização como um meio a partir do qual se poderia propagar um esforço
civilizatório, em um movimento que viria a se repetir no romance objeto da presente
pesquisa. Este trecho em específico da eloquente defesa que o autor fez da liberdade do
ensino lhe rendeu uma série de provocações na imprensa pernambucana, em especial a
sarcástica composição em versos que abre o presente capítulo:
Inspira-me, ó grande genio,
Desconhecido á canalha,
Que móras lá no deserto,
Abrigado e bem coberto
Por uma caza de palha24!
[...]
Bonito! orador, bonito!
Tiveste uma grande idea,
Mostraste ser muito esperto.
Haja escolas no deserto,
Já que as tem até a aldea.
Que progresso para o mundo!
Vão as feras para o estudo,
Instruir-se na escriptura,
Vão aprender a leitura
Oh! vão aprender de tudo
[...]
Gloria ao orador sublime!
O seu renome é já certo!
E ha de ter, por seu trabalho,
Sobre um tronco de carvalho,
Uma estatua no deserto! [sic]
(CALIFOURCHON, 1868, p. 1-2)
Se a sua defesa enfática da universalização do ensino foi ridicularizada por seus
adversários políticos quando posta em plenário, o mesmo não ocorreu quando o autor
resolveu tematizá-la no curso de sua carreira de romancista, visto que foi justamente em
sua obra mais perene, O Cabeleira, que esse assunto teve maior desenvolvimento. Em
contrapartida, a imagem de uma estátua no deserto como homenagem dúbia a Távora
acabaria por corresponder tanto à eleição que o autor faria pelos temas “rústicos” na
24 A Casa de Palha (1866) teria sido um dos primeiros romances de Távora, o primeiro que teria tomado
expressamente como tema a representação da sociabilidade tradicional do interior do Norte.
64
elaboração de suas obras, alçando a representação da sociabilidade tradicional do interior
nortista e uma visibilidade que ela não tinha até então, quanto à falta de reconhecimento
por parte da crítica literária radicada na corte que o autor experienciou em vida.
O argumento central d’O Cabeleira é prenhe da mesma concepção positiva
acerca do exercício de uma lógica modernizante sobre espaços considerados “bárbaros”
que permeia a fala destacada do debate na Assembleia Provincial de Pernambuco. A
tensão entre suas convicções liberais e suas influências românticas é muito característica
da escrita de Távora, como já analisado, e seus desdobramentos na produção do autor vão
além do romance em questão.
Sendo assim, a centralidade que o autor confere à transformação do espaço tanto
pela técnica quanto pela reprodução de práticas sociais “modernas” se faz presente desde
o prefácio. Dando continuidade ao seu descenso “das eminencias da contemplação às
planícies do positivismo”, Távora emenda:
O estado natural, espancado pelas correntes da immigração espontânea que lhe
viessem disputar os domínios improductivos para os converter em magníficos
emporios, ter-se-hia ido refugiar nos sertões remotos d’onde em breve seria
novamente desalojado. Uma face nova teria vindo succeder ao brilhante e
magestoso painel da virgem natureza. Não se mostrariam mais aqui as tendas
negras da fome e da nudez. O trabalho, o capital, a economia, a fartura, a
riqueza, agentes indispensáveis da civilização e grandeza dos povos, teriam
lugar eminente nesta immensidade onde vemos unicamente aguas, ilhas,
planicies, seringaes sem fim. [sic] (TÁVORA, 1876, p. 11).
É dessa forma que ele encerra sua incursão especulativa, perguntando-se por fim:
“Mas por onde ando eu, meu amigo? Em que alturas vou divagando nas azas da
phantasia? [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 11), ao que se encaminha, enfim, à discussão a que
se propunha desde o início. “Venhamos” ele diz, “ao assumpto desta carta [sic]”
(TÁVORA, 1876, p. 11).
A partir daqui, então, é que o prefácio passa a realizar sua função de “definição
genérica” tal como definida por Genette. Após toda essa contextualização preliminar, já
na décima segunda página, Távora brinda o leitor com sua célebre máxima sobre a
espacialização do fazer literário no Brasil, escrevendo que “[a]s lettras têm, como a
politica, um certo caracter geographico; mais no norte, porém, do que no sul abundam os
elementos para a formação de uma litteratura propriamente brazileira, filha da terra” [sic]
(TÁVORA, 1876, p. 12).
Essa é, se não a culminação, a elaboração mais bem acabada até então da questão
central na qual se funda a escrita de Távora. Logo em seguida, ele elabora:
65
A razão é obvia: o norte ainda não foi invadido como está sendo o sul
de dia em dia pelo estrangeiro.
A feição primitiva, unicamente modificada pela cultura que as raças,
as indoles, e os costumes recebem dos tempos ou do progresso, póde-se
affirmar que ainda se conserva ali em sua pureza, em sua genuina expressão
[sic] (TÁVORA, 1876, p. 12).
A demanda que o perseguia desde a publicação d’Os índios do Jaguaribe (1862)
e que orientou sua atuação política desde os tempos de bacharel até a sua carreira como
editor, articulista e renomado polemista finalmente toma forma aqui como um problema
mensurável tanto temporal quanto espacialmente, fruto de processos sócio-históricos que,
dentro da lógica interna do autor, acomodavam-se confortavelmente à sua visão de
mundo. Mais do que isso, a identificação do que ele considerava a problemática
fundacional da literatura — quando não de toda a sociedade — brasileira oferecia para
Távora uma forma de enfrentamento tangível que vinha ao encontro daquelas que sempre
foram suas aspirações: a pesquisa historiográfica sobre a cultura nortista e a exaltação
literária desses traços culturais.
Em estudo sobre a Literatura do Norte de Távora, Eduardo Vieira Martins
compara o prefácio d’O Cabeleira à “Benção Paterna” de José de Alencar, preâmbulo
para o romance Sonhos d’Ouro (1872) no qual o autor cearense expõe seu próprio projeto-
político literário (MARTINS, 2008, p. 2-3). Ele também percebe a divisão da literatura
nacional entre Norte e Sul como uma reminiscência do pensamento de Madame de Stäel,
que divide de igual maneira a literatura europeia entre uma literatura do sul, “[..] clássica,
iluminada pela luz clara do Mediterrâneo e que lançava suas raízes na antiguidade greco-
romana”, e uma do norte, “[...] romântica, marcada pelas brumas da Escócia e da
Alemanha, cujas raízes remontavam, não à Antiguidade, mas à Idade Média e ao universo
da cavalaria”, divisão derivada de uma concepção da literatura “[...] como uma espécie
de organismo vivo, conformado pelo ambiente geográfico e cultural onde floresce,
concepção que também se encontra no horizonte de Távora” (MARTINS, 2008, p. 3).
Seriam sua “natureza magnificente e primorosa”, sua “história tão rica de feitos
heroicos” e seus “usos, tradições e poesia popular” (TÁVORA, 1876, p. 12) que
caracterizariam a superioridade relativa da Literatura do Norte frente à dita “Literatura do
Sul” no que tange à sua expressividade como propriamente brasileira. A despeito disso,
a defesa da Literatura do Norte, a qual ele acredita ser antes um edifício a ser construído
do que uma obra acabada (TÁVORA, 1876, p. 12), era uma bandeira a ser levantada em
função das determinantes históricas que conduziram a matriz literária brasileira a ser
irradiada a partir do Sul, levando inclusive à identificação de literatos nortistas,
66
nomeadamente, José de Alencar (TÁVORA, 1876, p. 13), com um fazer literário
considerado por Távora como sendo estranho ao próprio Brasil, pois pautado em
estrangeirismos.
Daí deriva uma preocupação do autor em sopesar sua crítica em função de
possíveis tons veladamente separatistas em suas palavras, tema particularmente sensível
face às seguidas insurreições provincianas experienciadas ao longo do período imperial.
Ele afirma, em tom conciliatório:
Não vai nisto, meu amigo, um baixo sentimento de rivalidade que
não aninho em meu coração brazileiro. Proclamo uma verdade irrecusável.
Norte e sul são irmãos, mas são dous. Cada um ha de ter uma litteratura sua,
porque o genio de um não se confunde com o do outro. Cada um tem suas
aspirações, seus interesses, e ha de ter, si já não tem sua politica [sic]
(TÁVORA, 1876, p. 13-14).
O fato mais notável em relação à elaboração de Távora é o que ele defende ser
o que configuraria o “gênio” do Norte, diferenciando-o do Sul. Esse verdadeiro genius
loci do Norte faria referência à “feição primitiva” que este teria retido, feição essa passível
de modificação somente pelo “tempo” e pelo “progresso”, em um processo que já teria
ocorrido no Sul e assim custado sua identidade propriamente brasileira.
Esse ato de reivindicar um estigma imposto a si, ressignificando-o enquanto
signo fundacional de sua identidade, é um processo descrito por Bourdieu como sendo
característico da formulação de identidade regionais (BOURDIEU, 1992, p. 125), e
antecipa um movimento que seria consagrado pela tradição literária regionalista nas
décadas seguintes, não se dando, porém, sem suas próprias contradições internas. Isso
porque, ao longo da narrativa, como também já previamente exposto em trechos extensos
da própria carta-prefácio e dos discursos do autor nos autos da Questão da Liberdade de
Ensino, a defesa de Távora é justamente pela superação dessas condições materiais que
caracterizariam o Norte tal qual ele o celebra.
Se o que o autor supunha que se sucederia ao aporte técnico e ideológico do
modelo capitalista na região seria uma síntese dialética entre uma expressão ainda
tipicamente regional e os louros do “progresso” que ele almejava, a tendência
homogeneizante do capital e a história trágica da incorporação e manutenção dessas áreas
de fronteira provariam o contrário. No romance, entretanto, esses tensionamentos
delineiam situações interessantes a serem apreendidas sob uma perspectiva histórica, o
que se dará a seguir.
67
3.2 – Mise-en-scène para uma história pernambucana
Se o prefácio prefigura muitos dos tópicos centrais do romance, o primeiro
capítulo d’O Cabeleira os expõe exemplarmente, a que se deve o seu exame detido. Nele
se dá a contextualização geo-histórica do livro, são introduzidas algumas das principais
personagens e, sobretudo, são estabelecidas algumas das dicotomias estruturantes da
narrativa, o que leva Cristina Bertioli Ribeiro a afirmar que “[o] primeiro capítulo [...] se
poderia chamar, retoricamente, de exórdio do romance” (RIBEIRO, 2008, p. 110).
Logo nas primeiras linhas já salta aos olhos a execução de seu objetivo confesso,
a exaltação da história de Pernambuco, a qual “offerece-nos exemplos de heroismo e
grandeza moral que podem figurar nos fastos dos maiores povos da antiguidade sem
desdoural-os [sic]”, ao que complementa não serem “estes os unicos exemplos que
despertam nossa attencao sempre que estudamos o passado desta illustre província [sic]”,
o “berço tradicional da liberdade brasileira” (TÁVORA, 1876, p. 15), tal como defendido
pelo autor.
Entretanto, a história que Távora se dispõe a contar não é a de um dos heróis
desse passado ilustre. Nestas páginas, ele narra a história de um daqueles que ele
considera serem
[...] vultos infelizes, em quem hoje veneraríamos talvez modelos de altas e
varonis virtudes, si certas circumstancias de tempo e lugar, que decidem dos
destinos das nacoes e ate da humanidade, nao pudessem desnaturar os homens,
tornando-os acoites das gerações coevas e algozes de si mesmos. Entra neste
numero o protagonista da presente narrativa, o qual se celebrizou na carreira
do crime, menos por maldade natural, do que pela crassa ignorancia que em
seu tempo agrilhoava os bons instinctos e deixava soltas as paixoes cannibaes
[sic] (TÁVORA, 1876, p. 16).
Há, portanto, uma preocupação com o resgate da memória dessa personagem
histórica, ainda que controversa, do passado pernambucano. É interessante pensar no
tratamento que Távora dá à figura do Cabeleira, como um homem cuja potência
excepcional foi transviada pelas circunstâncias, em paralelo com o seu posicionamento
em relação ao Norte e sua decadência.
A despeito de seu valor inerente, ambos teriam sido condenados pela conjuntura
na qual foram inseridos, mas seriam redimidos aos olhos da história pela arte. Fosse em
sua consagração pelos versos da musa popular ou pela pena de Távora.
Em função disso, a reconstituição dos fatos que compõem a narrativa, que se
propõe um romance histórico, se alicerça “[n]a tradição oral, [n]os versos dos trovadores
e [em] algumas linhas da historia que trouxeram seu nome aos nossos dias envolto em
68
uma grande lição [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 16). O historiador que Távora referencia no
posfácio do livro é José Bernardo Fernandes Gama, autor dos quatro tomos das Memórias
Históricas da Província de Pernambuco (1844-1848), as quais tratam da figura histórica
do Cabeleira no último destes, em trecho transcrito no posfácio do romance de Távora
(Cf. GAMA, 1848, p. 360-361; TÁVORA, 1876, p. 306-307).
É interessante que no referencial histórico acionado por Távora, o Cabeleira é
identificado como sendo o pai, que compunha um trio com seu filho e Theodosio. O
próprio autor, no entanto, rebate essa hipótese baseando-se nos versos das trovas
populares a que ele remete ao longo do romance, citando aqueles nos quais Cabeleira é
apresentado em companhia de seu pai, e não de seu filho (TÁVORA, 1876, p. 307).
Cristina Ribeiro entende que, assim procedendo, Távora dá mostras de que “[a]
faceta folclorista do autor [...] confia na tradição oral como fonte superior ao registro
histórico (RIBEIRO, 2008, p. 117). O tratamento que Távora dá às fontes da tradição
popular, alçando-as ao patamar dos documentos históricos a que também remeteu em sua
pesquisa, é característico da verve folclorista que o autor cultivava e que posteriormente
resultaria na publicação de sua compilação de Lendas e Tradições Populares do Norte na
revista Illustração Brasileira, entre janeiro e junho do ano seguinte.
Fazendo-o, o autor assume o caráter pedagógico — diga-se, moralizante — das
cantigas centradas no Cabeleira, um bom menino transviado por uma má educação, a fim
de derivar paralelos com questões políticas e filosóficas prementes em seus próprios dias,
como a influência do meio sobre o homem, a questão da pena de morte, a manutenção
estrutural da pobreza e a responsabilização do Estado pela educação da população.
Dessa forma, a história deste “[...] como Cid, ou Robin-Hood pernambucano”
(TÁVORA, 1876, p. 16) tem seu valor atrelado antes à sua imagem como contraexemplo
ou pela sua derradeira contrição no fim da vida do que por uma identificação popular de
que tenha gozado em função dos atos moralmente ambíguos que o celebrizaram. Nestas
primeiras páginas, entretanto, qualquer valor heroico que ele venha a apresentar não
transparece, e o que se narra é um audacioso roubo orquestrado e executado pelo
Cabeleira, seu pai, e seu parceiro de crimes Theodosio.
A caracterização das personagens se dá primeiramente a partir de uma
perspectiva racial, sendo o pai do Cabeleira “[...] um mameluco por nome Joaquim
Gomes, sujeito de más entranhas, dado á pratica dos mais hediondos crimes [sic]”
(TÁVORA, 1876, p. 17) e Theodosio “[...] um pardo [...] que primou na astucia e nos
inventos para se apossar do que lhe não pertencia [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 17). Já a
69
descrição da compleição do Cabeleira, como se verá mais adiante, muda ao sabor da
variação da moralidade de suas ações e do seu estado de espírito, a despeito do fato dele
ser reiteradamente referido como sendo um “matuto”.
Enterrados na mata, seu território por excelência em função de sua condição
marginalizada em relação à sociedade, os três bandidos arquitetam um assalto à então vila
do Recife, partindo na sua direção em seguida. Daí sucede que:
A’ noticia da sua approximacao a maior parte dos moradores, deixando os
povoados, então muito fracos por não terem ainda a densidão que so um seculo
depois tornou alguns deles respeitaveis, emigrou para os matos, unico abrigo
com que lhes era permitido contar, embora se achassem a poucas leguas do
Recife [sic] (TÁVORA, 1876, p. 18).
Essa passagem contém em si o primeiro exemplo de uma marcada clivagem
entre os espaços narrativos que se reafirma ao longo da trama. Cabeleira e seus
comparsas, emergindo dos matos, ameaçam com a sua aproximação os moradores do
povoado que, buscando segurança, embrenham-se naqueles mesmos matos de onde seus
algozes vieram.
O que é digno de nota não é o abandono de suas habitações, fato explicado pelo
autor como resultante da insegurança decorrente da dispersão populacional característica
da época, mas que os moradores dos povoados optem pela fuga em direção à mata a
despeito da proximidade que guardavam com a vila do Recife. Os matos eram o único
abrigo com que lhes era “permitido” contar, fosse pela vila lhes ser interditada em função
de sua condição social ou pela proximidade relativa ainda maior que guardava com suas
casas.
O fato é que se sublinha aqui uma maior aproximação dessas populações
campesinas, nem propriamente rurais e nem efetivamente urbanas, com a natureza
indomada em detrimento da urbe. À dualidade estruturante da narrativa, que é expressa
pelo binômio civilização x barbárie em suas mais variadas materializações e acepções,
impõe-se uma gradação em nível espacial.
Márcia Naxara chama a atenção para a variedade de sentidos comportada na
ideia de campo/natureza/interior/sertão. Segundo a autora:
Há o campo ocupado pelo homem [...], onde este imprimiu seu trabalho,
modificando a natureza; há o intermediário sertão, lugar que não é
propriamente um lugar, é móvel, na fronteira entre o civilizado e o não-
civilizado; há imensos domínios que são só a natureza, virgem, tropical,
intocada pelo homem (NAXARA, 2004, p. 33).
70
Estas categorias, a despeito de não serem necessariamente universais como
representação das nuances dessa dualidade, servem para orientar um olhar dedicado a
perceber as minúcias de sua representação espacial. Dessa forma, as divisões espaciais,
ou topos, que se impõem à análise do romance em questão parecem ser a princípio a
cidade, enquanto manifestação da civilização, do que é associado ao litoral e à ordem; as
matas, o domínio da natureza indomada, o sertão onde se embrenham os elementos à
margem da sociedade; e o campo, das pequenas povoações, da zona da mata
pernambucana, caraterizado por uma ordem social difusa e uma natureza domesticada,
espaço de contato à margem e na fronteira daqueles outros espaços.
Eduardo Vieira Martins já antecipava em parte essa espacialização aqui proposta
ao identificar o Cabeleira como “[p]ersonagem telúrica” (MARTINS, 2008, p. 13) em
função de sua associação com o sertão pelo qual transita. Entende-se que essa estreita
relação entre o protagonista e o seu meio percebida por Martins é um elemento
fundamental da constituição da trama do romance, e elemento indissociável da
caracterização das demais personagens que nela transitam.
A este trecho do livro de Távora, tão breve quanto elucidativo, segue outro que
também ilustra bem alguns dos demais temas recorrentes ao longo do romance, além de
reforçar a divisão espacial da narrativa tal como exemplificada na análise do excerto
anterior. Neste momento da ação, os três malfeitores já se encontravam nas imediações
da vila do Recife e se preparavam para dar início à sua empreitada:
Sentaram-se no adro da capella de taipa que fôra ahi levantada por Henrique
Dias, para recordar aos vindouros que nesse lugar tivera elle o seu posto militar
pelas guerras da restauração. Esse posto era d’entre todos o que ficava mais
vizinho ao inimigo. Eloquente testemunho da bravura do troço da gente preta
a quem a patria reservou distincta menção nas maiores paginas da historia
colonial. [sic] (TÁVORA, 1876, p. 18-19).
A referida capela, que consta ter constituído a estrutura original da Capela de
Nossa Senhora de Assunção, cognominada Igreja de Nossa Senhora das Fronteiras e
tombada como patrimônio cultural brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Artístico e
Histórico Nacional (IPHAN), encerra em si uma série de significações interessantes.
Henrique Dias foi um célebre militar negro a quem foram conferidos títulos de fidalguia
em função de seu protagonismo na Restauração Pernambucana, tendo a capela que ergueu
nos limites de suas terras sido continuamente mantida e frequentada por comunidades
negras do entorno do Recife e pelas tropas do Regimento de Henrique Dias que, a
71
exemplo dos demais batalhões militares formados por soldados negros até a
Independência do Brasil, eram simplesmente referidos como “Henriques”25.
Este breve tangenciar histórico, um dentre muitos que abundam ao longo do livro
em extensões por vezes muito maiores, é um recurso que o autor emprega tanto para situar
geográfica e historicamente o leitor familiarizado com o passado pernambucano quanto
para publicizá-lo ao leitor que o desconheça. Para além disso, essas frequentes incursões
históricas empreendidas pelo autor frequentemente põem em relevo paralelos entre o
passado colonial, particularmente do tempo do domínio holandês e da consequente
insurreição pernambucana, com o tempo em que se passa a narrativa, no século XVII, e
a própria época do autor, cem anos depois dos eventos narrados n’O Cabeleira.
Desse fato deriva que a permanência de objetos como a Igreja de Nossa Senhora
das Fronteiras na paisagem pernambucana evidencia o caráter transtemporal da trama,
caráter este intrínseco à própria paisagem, que é para Milton Santos “um conjunto de
objetos reais-concretos” que junta “objetos passados e presentes, uma construção
transversal” (SANTOS, 1997, p. 67). Desse modo, a paisagem corresponderia às formas
concretas do mundo material, e o espaço ao sistema de ações, à função que uma
determinada sociedade confere ao sistema de objetos correspondente à paisagem, de tal
maneira que:
O espaço é sempre um presente, uma construção horizontal, uma situação
única. Cada paisagem se caracteriza por uma dada distribuição de formas-
objetos, providas de um conteúdo técnico específico. Já o espaço resulta da
intrusão da sociedade nessas formas-objetos. Por isso, esses objetos não
mudam de lugar, mas mudam de função, isto é, de significação, de valor
sistémico. A paisagem é, pois, um sistema material e, nessa condição,
relativamente imutável: o espaço é um sistema de valores, que se transforma
permanentemente (SANTOS, 1997, p. 67).
Assim, no pensamento do autor, “[...] paisagem e espaço são sempre uma espécie
de palimpsesto onde, mediante acumulações e substituições, a ação das diferentes
gerações se superpõe” (SANTOS, 1997, p. 67). Por isso ele considera que “O espaço
constitui a matriz sobre a qual as novas ações substituem as ações passadas. É ele,
portanto, presente, porque passado e futuro” (SANTOS, 1997, p. 67).
25 Sobre a história da Igreja de Nossa Senhora das Fronteiras e seu fundador Henrique Dias, Cf.
<http://www.ipatrimonio.org/recife-igreja-de-nossa-senhora-das-fronteiras/#!/map=38329&loc=-
8.05863000000001,-34.89686700000001,17>
72
Nesse jogo complexo de planos temporais que se intercruzam no espaço em que
o romance se desenvolve, a Igreja de Nossa Senhora das Fronteiras, então capela de taipa,
demarca tanto no passado colonial quanto no tempo narrativo o limite da jurisdição de
uma ordem oficial, de caráter nacional e militar no passado,
urbana/litorânea/civilizacional n’O Cabeleira, em ambas encarnando a própria fronteira
que leva no nome. Ela corresponde ao que Santos denomina como “rugosidade”, ao que
“[...] fica do passado como forma, espaço construído, paisagem, o que resta do processo
de supressão, acumulação, superposição, com que as coisas se substituem e acumulam
em todos os lugares”. (SANTOS, 1997, p. 92).
Esses objetos compõem uma parte considerável do cenário em que se desenvolve
a trama, exemplificando a máxima de Santos de que “[e]m cada lugar, pois, o tempo atual
se defronta com o tempo passado, cristalizado em formas”, configurando aquilo que ele
considera ser um caráter de “inércia dinâmica do espaço”. (SANTOS, 1997, p. 92). Ainda
sobre a igreja, mas para além de sua significação espacial, alguns dos descendentes de
Henrique Dias assumem papéis relevantes no desenrolar da trama, fazendo-o de uma
maneira que ecoa os fatos heroicos de seu antepassado ao mesmo tempo em que constitui
uma crítica à situação social nos tempos de Távora, como se verá mais adiante.
Uma vez sentados no adro da significativa capela, Theodosio se separa de
Cabeleira e do seu pai para preparar o roubo que planejam, e eles decidem se reunir mais
tarde sob uma ponte que se erguia sobre o rio Capibaribe, onde se cometerá o crime. Ao
entardecer, pai e filho tomam o rumo do ponto de encontro, e, enquanto passam pelas
casas da vila, o autor dubiamente grafa que “Em torno dellas [as casas] o deserto
começava a augmentar antes de por-se o sol [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 21).
O roubo se realizaria em função de uma grande festa organizada para aquele dia,
o primeiro domingo de dezembro de 1873 (dia 4), em que se celebrava a recente expulsão
dos jesuítas de Portugal e suas colônias por intermédio do papa Clemente XIV26. O evento
26 Expoente da polêmica da Questão Religiosa, Távora não se furtou ao paralelo que os fatos narrados
ofereciam à sua própria experiência. Nas notas que encerram o livro, ele afirmou que “Não é de data
moderna o sentimento pernambucano em desabono dos padres jesuitas que ainda ultimamente foram
mandados sahir de Pernambuco por acto do governo provincial com approvação do governo geral. Já em
1773 a villa se illuminára para solemnizar a extinção dessa companhia. Assim a manifestação de regozijo,
com” que a capital de Pernambuco solemnizou em 1873 o centenario da promulgação do breve Dominus-
ac-redemptor, não foi outra cousa que a repetição do que um século antes havia praticado o Recife [sic]”
(TÁVORA, 1876, p. 309-310).
73
seria sediado sobre a ponte, conglomerando um grande público e oferecendo aos bandidos
a oportunidade de atingir o seu intento.
Essa ponte, à época da história chamada de Ponte do Recife, congrega níveis de
significação sobrepostos ainda mais diversos do que a já exaustivamente referida capela.
Tal qual esta, o caráter histórico da ponte é ressaltado pelo próprio autor em sua descrição
da estrutura:
No lugar onde hoje existe a formosa ponte Sete-de-setembro que
liga o bairro do Recife ao de Santo-Antonio, via-se nessa epoca uma ponte de
madeira, a qual fora mandada construir em 1737 sobre os solidos pilares de
pedra e cal da primitiva ponte, obra de Mauricio de Nassau, por Henrique Luiz
Vieira Freire de Andrade, um dos governadores que mais honrada e benemerita
memoria deixaram de si em Pernambuco.
Era uma rica construccao, nada menos do que uma rua suspensa
sobre as aguas do rio Capibaribe, que passa ahi reunido ao Beberibe, depois de
um curso de oitenta léguas por entre matas, por sobre pedras e ao pé de
pittorescas villas, povoações e arrabaldes [sic]. (TÁVORA, 1876, p. 22).
A obra, portanto, remete ao período da ocupação holandesa, sendo originalmente
construída com pedra e madeira em 1644; tendo passado por reformas estruturais
extensivas em 1683 e 1742 (não 1737, como referido pelo autor no romance); sendo
posteriormente substituída em 1865 por uma estrutura de ferro e sendo rebatizada como
Ponte 7 de Setembro; e, finalmente, passando por uma reconstrução completa com
concreto armado e sendo reinaugurada sob o nome de Ponte Maurício de Nassau,
adquirindo sua feição atual, em 191727. A imagem evocada por essa ponte erigida sobre
os alicerces deixados pelos holandeses, sobretudo levando-se em conta a posição pioneira
de Távora e seus colegas da União do Norte em prol da exaltação do período batavo, é
tão poderosa quanto provocante.
Em par com essa centralidade do aspecto histórico da estrutura, Távora lança luz
sobre o processo de perda que se efetivou em relação a esse patrimônio da história de
Pernambuco. Ele diz:
Destas obras com que dotou Pernambuco o genio desse illustre governador,
não resta hoje o menor vestigio. Tudo desappareceu, tudo, até as arcadas
hollandezas que ainda alcancei. O monumento das idades é mais depressa
destruido pelos homens do que pelo tempo, esse consumidor que, com ser
voraz, não deixa de respeitar a obra da virtude. (TÁVORA, 1876, p. 23)
27 Sobre a precisão das datas e demais informações sobre a ponte, Cf. FRANCA, R. O Capibaribe as Pontes
In. Monumentos do Recife. Recife: Secretaria de Educação e Cultura, 1977, p. 17-18.
74
É patente o quanto o tema da ufania do glorioso passado perdido é desenvolvido
pelo autor, e o quanto ele se estende a toda a prosperidade da província pernambucana e
os demais territórios do Norte. A frase que encerra o excerto acima, entretanto, parece
apontar em certa medida para uma reparação dessa decadência pela memória histórica, a
qual, se não é capaz de reconstruir o que foi perdido, pode reconstituí-lo e consagrá-lo
eternamente aos olhos da posteridade.
No plano narrativo, o fato dessa literal “rua suspensa” se equilibrar sobre o rio
Capibaribe, eixo estruturante da então província e hoje estado de Pernambuco e cordão
umbilical que liga as praias recifenses ao sertão profundo do interior, cria um contraste
explícito entre a dualidade civilização x barbárie que estrutura a trama. O próprio fato de
o rio constituir-se como o eixo central — se não a própria espinha dorsal — a partir da
qual se delimita e articula o território da então província e hoje estado de Pernambuco
traz em si um tensionamento da natureza dessa identidade pernambucana que se apresenta
continuamente na medida em que a trajetória do protagonista pela província nunca dista
do rio, como não poderia deixar de ser; um tensionamento que ecoa a própria valoração
que Távora faz da personagem do Cabeleira.
Soma-se a essa interpretação o fato de que Cabeleira e os seus articulam sua ação
justamente a partir do rio Capibaribe, mais uma vez evidenciando uma separação espacial
bem demarcada entre as diferentes esferas de ação das personagens, com o rio servindo
como — ironicamente — “ponte” entre o espaço de exceção à margem da sociedade em
que o Cabeleira vive, na mata, e a sociedade oficial e ordeira que floresce sobre a ponte
propriamente dita. Sob seus pés pairam, ameaçadoras, as águas inelutáveis do rio que, ao
mesmo tempo em que definem territorialmente aquelas que constam oficialmente como
sendo as suas fronteiras, as da província, se lhes apresentam como uma manifestação
incontornável do avesso de sua civilização.
Enfim chegados ao centro da ação, Cabeleira e o pai são prontamente
reconhecidos e forçados a se defender. O povo, apavorado, foge de ambos “como rebanho
apavorado pela presença das onças” (TÁVORA, 1976, p. 28), ao que Joaquim exclama
“— Sim, é o Cabeleira, gente fraca. Elle não vem só, vem seu pai também [sic]”
(TÁVORA, 1976, p. 28), ecoando uma trova popular28 a que o autor recorre como forma
de autorizá-la como fonte de reconstituição histórica.
28 Corram, minha gente,
75
Aqui se dá a primeira mostra da decência inata do Cabeleira. Seu pai, agitado,
desfere uma cutilada no primeiro transeunte que passa, ao que o rapaz questiona,
indignado, a necessidade do ato de violência.
Joaquim, cujas “baixas paixões” cresceram “[...] á sombra da ignorancia, da
impunidade e das florestas [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 29), retruca perguntando se o
Cabeleira tinha medo, e incita-o a agir a partir do seu exemplo. Movido pelas palavras do
pai, o jovem lança-se também à carnificina.
Assim, estabelece-se já aqui como a conduta imoral do protagonista é franqueada
pela influência negativa do pai, fato detidamente desenvolvido no quarto capítulo do
romance. A essa altura do livro, a violência que os congêneres perpetravam contra a
população recifense faz com que, em um movimento de quase retorno às pulsões de um
instinto primitivo, as pessoas se atirassem no rio para escapar aos seus algozes, o que só
cessa quando eles são abordados pelas tropas dispostas a lhes fazer frente.
É assim que os próprios bandidos empregam o mesmo recurso de suas vítimas,
lançando-se às águas do Capibaribe para escapar à lei e buscar abrigo no seio da natureza
selvagem. Uma vez em seus próprios domínios, eles se veem livres do jugo das
autoridades e encetam novas maquinações contra a ordem estabelecida.
Os capítulos seguintes do livro dão conta do aprofundamento da descrição das
normas sociais e veredas desses espaços de exceção em que o Cabeleira circula, ao mesmo
tempo em que apresentam a complexificação da caracterização da personagem, a qual
ocorre a par de seu percurso pela província. As categorias explicitadas neste primeiro
momento são ampliadas e desafiadas, preservando, contudo, a constância da
indissociabilidade entre a dimensão espacial do romance e o desenvolvimento da
narrativa e seu protagonista, o que se verificará a partir de um exame, enquanto menos
detido nos pormenores de cada passagem quando comparado a essa análise do primeiro
capítulo, igualmente atento às categorias esboçadas nessa leitura das páginas inaugurais
do livro.
Cabeleira ahi vem;
Elle não vem só,
Vem seu pai também [sic] (TÁVORA, 1976, p. 28).
76
Capítulo 4 – Por uma leitura através do espaço
Só o deserto lhe appareceu, menos vago, mais real com sua taciturna immensidade, só
o deserto lhe respondeu com a mudez do descampado, das selvas profundas, e das
aguas mortas. [sic] (Franklin Távora)
4.1 – Uma pena molhada em sangue
Finda a ação descrita no primeiro capítulo, o trio de bandidos se dirige à casa do
taverneiro Thimoteo, homem que atuava como intermediário no contrabando de
mercadorias roubadas, para tratar da venda dos espólios conseguidos no assalto recente.
A moradia de Thimoteo era também seu ponto de negócios, funcionando como um
entreposto para aqueles e os demais fora-da-lei que atormentavam então a província, ao
passo que ela é descrita a certa altura do romance como:
[...] ponto obrigado das relações da capital com o centro [de operações dos
bandidos], quér fosse de dia quér de noite, assim de inverno como de verão,
tinham eles [os bandidos], como elle próprio [Thimoteo], grande interesse,
sinão maior do que elle tinha, em conservar, defender, amaparar esse poderoso
ponto de apoio para os seus dolos, violencias e infames ciladas de que era
victima o matuto simplorio, o sertanejo de boa fé, o mascate, emfim quem quer
que passava por aquella infernal estancia. [sic] (TÁVORA, 1876, p. 186).
A despeito dessa relação simbiótica firmada entre os malfeitores e o taverneiro,
expressa em função do papel de mediador a que o estabelecimento deste último se
prestava nas relações assimétricas estabelecidas entre o litoral e o sertão no romance, um
episódio do passado do Cabeleira ilustra a desproporcionalidade que também permeia o
vínculo entre seus pares e Thimoteo. Quando contava pouco menos de dezesseis anos,
ainda sem as madeixas que lhe valeram sua alcunha e apresentando uma “côr terrena e
pálida29 [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 45), o Cabeleira, então apenas José Gomes, surrou até
a morte a companheira do taverneiro, Chica, a troco de um desentendimento de pouca
29 Távora emprega essa curiosa escolha de palavras para apresentar o jovem Cabeleira, as mesmas com as
quais Luís de Camões descreve o gigante Adamastor, do Cabo das Tormentas, no verso 44 do Livro V de
seu épico Os Lusíadas (1572). No episódio referido do poema de Camões, o gigante encarna a natureza
terrível e indomada a ser superada pelos heróis portugueses, sendo a travessia das águas do sul da África
em que ele habita, tanto no plano ficcional quanto no histórico, um atestado da vitória desses navegadores
sobre os elementos e uma manifestação emblemática do sucesso da empresa colonial lusitana. A
transposição desses adjetivos para a personagem homônima d’O Cabeleira pode sugerir uma aproximação
por parte de Távora desse Cabeleira jovem, inconsequente e no pleno gozo de suas capacidades de infligir
uma violência gratuita e tremenda sobre seus semelhantes com a natureza terrível representada por
Adamastor na obra do escritor português.
77
importância, fato a que Thimoteo testemunhou resignado, ainda que contrariado, e o qual
ele se veria obrigado a relevar nos tratos futuros com o bandido.
Na descrição dessa cena, ele é retratado como alguém que, apesar da pouca
idade, já era experimentado no uso da violência e na carreira de crimes. Essa condição é
explicada através do enfoque em uma ação que se desenrola ainda antes, na infância do
Cabeleira, em uma composição que expressa muitas das concepções de Távora sobre a
relação do homem com o meio.
Nessa ocasião o Cabeleira era ainda mais jovem, com apenas sete anos de idade.
No cenário disposto por Távora, o menino José Gomes se via dividido entre a influência
benigna da mãe, Joanna, uma mulher pia de quem teria herdado “[...] um natural brando
e um coração benevolo [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 69), e o contraexemplo de Joaquim,
seu pai, o qual desde cedo tentava dessensibilizar o garoto para os ensinamentos da esposa
e incutir nele o costume e o gosto pela prática da violência.
Mesmo que “[p]ela sua organização, pelos seus predicados naturaes, o Cabeleira
não est[ivesse] dedicado a ser o que foi [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 72), por fim “[o]s
máus conselhos e os pessimos exemplos que lhe foram dados pelo desnaturado pai
converteram seu coração, acessivel, em começo, ao bem e ao amor, em um musculo
bastardo que só pulsava por fim a paixões condemnadas [sic] (TÁVORA, 1876, p. 72).
Assim, pai e filho deixam para trás a mãe e dão início à sua carreira de crimes, que se
torna progressivamente mais hedionda e lhes granjeia uma reputação temível por toda a
região.
A constituição do caráter do Cabeleira, que derivaria desse embate dos pais pela
educação do filho, seria alvo de extensos debates entre os pesquisadores que se dedicaram
a estudar o livro de Távora. Há um consenso em torno da noção de que aqui, o autor
parece derivar suas noções sobre determinismo social e histórico de Hyppolyte Taine, que
no prefácio de sua Histoire de la littérature anglaise (1863) situa na tríade “raça,
momento e meio” os fatores que explicariam o desenvolvimento humano.
No entanto, há pesquisadores que defendem que a apropriação dessa teoria ao
longo do romance não parece obedecer a uma lógica consistente. Fernando Cerisara Gil,
em sua profunda análise d’O Cabeleira, questiona a validade do próprio tema central do
romance a partir do tratamento dispensado por Távora à questão.
Ele afirma haver uma incoerência na exposição dos elementos que
determinariam o caráter pernicioso do Cabeleira e de seu pai. Enquanto o protagonista
78
tem sua maldade apresentada como sendo derivada da sua criação em um meio que o
predispôs ao crime, Joaquim Gomes
[...] é feroz e sanguinário por natureza e hábito, incorporando em si o gênio da
destruição e do crime, ou seja, seus atos brutais de violência e banditismo
constitui [sic] a “essência” mesmo do seu ser. A maldade seria intrínseca à sua
“personalidade” e ao seu “caráter”. Tudo começa e termina no próprio âmbito
do personagem, tornando-se esse a expressão manifesta do crime e da
destruição (GIL, 2020, p. 175).
Para Gil, a apresentação da maldade do pai como uma tendência inata de seu
caráter iria de encontro ao argumento da determinação pelo meio estabelecido na
exposição sobre a infância do Cabeleira. Assim, tal disposição dos fatos parece ao autor
comprometer o que se delineara até então no romance, e que viria reiterado mais à frente
no mesmo, como condição explicativa do desvio de caráter das personagens.
Cristina Bertioli Ribeiro, por sua vez, em seu seminal Um Norte para o Romance
Brasileiro (2008), entende que a caracterização do pai de José Gomes remete à associação
feita por Cesare Lombroso entre fisiologia e crime em seu influente L'uomo delinquente
(1876) (RIBEIRO, 2008, p. 115; 184). A ideia de Lombroso era que a partir de certas
características físicas seria possível determinar uma predisposição a comportamentos
socialmente nocivos por parte de indivíduos que ele caracteriza como sendo “criminosos
natos”.
Em conformidade com aquilo exposto por Ribeiro, Anita Moraes, em análise
sobre a dicotomia entre civilização e barbárie no romance, ressalta como Joaquim é “[...]
baixo, corpulento e desarmonioso nas formas;” e a sua “[...] bestialidade é denunciada
pelo desajeitado físico” (MORAES, 2006, p. 125). Entretanto, a autora vai além,
recuperando passagens do texto que apontam para o fato de que
Joaquim, “gênio da destruição", não deixa, por sua vocação ao mal, de ser
vítima. Regido por “baixas paixões”, “que à sombra da ignorância, da
impunidade e das florestas haviam crescido sem freio e lhe tinham apagado os
lampejos da consciência racional que todo homem traz do berço” [TÁVORA,
1876, p. 29], sua disposição ao mal foi exacerbada pelas circunstâncias, por
viver imerso na barbárie. No seio da civilização, sua consciência encontraria
abrigo, possibilidade de se desenvolver (MORAES, 2006, p. 125-126).
Dessa forma, Moraes compreende que a disposição das informações no romance
aponta para o fato de que a constituição do caráter da personagem não prescinde do meio
no qual ele está inserido. Ademais, o destaque dado por ela e Ribeiro ao aspecto físico do
pai do Cabeleira como denunciante da sua malícia parece apontar antes a uma
materialização da referida circunstância de imersão na barbárie expressa racialmente.
79
Joaquim, referido como mameluco, tem a descrição de sua pessoa e de suas ações
sempre associada ao campo semântico da escuridão, do negro e do selvagem, enquanto
no extremo oposto sua esposa, Joanna, de “natural brando” e “coração benévolo”,
conquanto não seja descrita em detalhes para além dos “[...] cabellos que haviam de todo
embranquecido [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 296) em função do sofrimento pelo destino do
filho, é definida pela sua devoção religiosa e retidão moral, em paralelo a Luizinha,
sucintamente descrita como “menina branca” (TÁVORA, 1876, p. 89). O próprio
Cabeleira é ora referido como sendo matuto ou de face escura quando cometendo
iniquidades, mas tem sua pele descrita como branca após arrepender-se de seus crimes.
Diante do exposto, e também em função do fato de que as ideias de Lombroso
só foram divulgadas em livro no mesmo ano de publicação d’O Cabeleira, o que parece
determinar em última instância o caráter das personagens é essa clivagem fundamental
entre civilização e barbárie, expressa espacialmente na narrativa através do binômio
litoral e sertão e assumida em paralelo a uma classificação racial eurocêntrica. Dessa
forma, os elementos que constituem textualmente o caráter das personagens no livro ainda
parecem subscrever-se de certa maneira à tríade taineana.
Essa conclusão vai ao encontro do pensamento de Ribeiro, que aponta ser o
Cabeleira, dentro daquilo disposto por Távora, um “[...] produto da conjunção de uma
raça ‘selvagem’ (índio) com uma raça ‘civilizada’ (branco-europeu), afetado pela pobreza
e pelo meio inóspito e primitivo (sertão e zona da mata pernambucana), num momento
histórico ainda não alcançado pelo progresso” (RIBEIRO, 2008, p. 111), sinalizando a
interseção entre a raça, o meio e o momento na composição da personagem. Ademais, a
questão do momento histórico “ainda não alcançado pelo progresso” levantada pela
autora suscita questões próprias acerca das normas sociais que regulavam esse contexto
no qual se dá a gênese do Cabeleira.
À ocasião do aliciamento do jovem José Gomes para a prática do mal, Joaquim
expõe uma lógica singular que explica seu proceder. Em diálogo com a esposa sobre o
filho, ele diz:
— Hei de ensinal-o a ser valente. Ha de aprender comigo a jogar a
faca, a não desmaiar diante de sangue como desmaias tu, mulher sem espirito
que não tens animo para matar um bacorinho. Não sabes que o assassino é
respeitado e temido? Queres que não haja quem faça caso de teu filho?
(TÁVORA, 1876, p. 78-79).
80
Em seguida, o menino chora em função das atitudes que Joaquim espera dele. O
pai lhe impõe: “— Não quero que chores. Quem é homem não chora; quem é homem faz
chorar” (TÁVORA, 1876, p. 79).
A violência aparece, aqui, como uma forma de afirmação do indivíduo do sexo
masculino frente à sociedade. Mais do que isso, nesse meio em que eles transitam, no
qual não só a autoridade estatal se insinua de maneira tímida e ineficaz, mas os próprios
elementos que compõem os construtos sociais do litoral são abalados, o exercício da força
se traduz como a principal linguagem a partir da qual se estabelecem as relações
interpessoais.
Mais adiante, ao presentear o filho com seu primeiro punhal, o pai do Cabeleira
lhe diz: “Sabes para que fim te dou este ferro, José? E’ para não soffreres desaforo de
ninguem, seja menino ou menina, homem ou mulher, velho ou moço, branco ou preto o
que te ofender [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 83). Nessa fala, a violência toma forma como
um verdadeiro nivelador social nesse meio marginalizado do sertão, o que é denotado
também em outras passagens do romance.
Outro exemplo disso é a cena centrada em Gabriel, negro livre cujo irmão
conhecera José Gomes na infância e em função disso lhe tinha simpatia. Ele avisa os
malfeitores da aproximação de um destacamento de tropas para prendê-los, e em
retribuição tem seu cavalo roubado por Cabeleira e seu pai.
Confrontado pela atitude dos dois, Gabriel tenta contornar a situação
tratando-os por “meus brancos” e demonstrando cortesia e submissão. Entretanto, quando
ameaçado pelo Cabeleira, ele se arma de uma faca e se apronta para o combate, dizendo:
“— Si quer brincar na ponta da faca, meu branco, a cousa é outra, e vosmecê encontra
homem [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 65).
Gabriel trava duro combate com o Cabeleira, mas é morto por um tiro de
Joaquim quando tentava escapar da luta parelha. A despeito de sua morte, é somente
através da violência que ele se exprime em pé de igualdade com seus interlocutores, ao
passo que, enquanto o trato entre eles se dava ainda pela via do diálogo, sua relação se
estabelecia a partir de uma hierarquia racial que se impunha a despeito de sua condição
de homem livre.
Também a composição e a organização do bando ao qual o Cabeleira, Joaquim
e Theodosio pertencem exprimem perfeitamente a ideia da violência como nivelador
social no romance. Instalado profundamente nas matas, esse grupo diversificado no qual
se contavam marginais das mais diferentes origens, idades e cores, é retratado
81
confabulando sobre suas próximas empreitadas criminosas de maneira horizontal e
ordenada — uma democracia representativa e racial às avessas no coração do sertão.
Ribeiro nota que a forma como esse bando é apresentado “[...] reforça a hipótese
de que tais grupos criminosos podiam funcionar como atrativos aos excluídos da ordem
social e como meio de sobrevivência e nobilitação pessoal” (RIBEIRO, 2008, p. 112). E
é justamente nesses excluídos que se centraliza a ação do romance, aqueles que Gil
intitula de “a arraia-miúda do período colonial” (GIL, 2020, p. 174).
O crítico também desenvolve longamente essa noção do papel social da violência
na narrativa. Gil entende que esse fato não se limita ao romance de Távora, mas também
caracterizaria outros romances da época que tematizavam o meio rural, visto que:
A violência, como ‘forma rotinizada de ajustamento nas relações sociais’ está
presente das maneiras mais variadas neste romance e em outros romances
rurais. Mas o que se destaca no de Franklin Távora é a conjugação de dois
fatores que parecem funcionar como catalisadores, exacerbando a presença da
brutalidade. Por um lado, a dimensão ficcional relativamente autônoma do
mundo dos homens livres pobres sugere poder encenar uma única forma de
ação, que é a da brutalidade. Como se no mundo social por onde estes
personagens transitam, sem proprietários e com uma ordenação social muito
difusa, a anomia fosse a única regra possível. Por outro lado, tal anomia, bem
como a violência de que ela se reveste, tem um espaço social bem delimitado,
que é o mundo rural (GIL, 2020, p. 74).
Assim, o sertão, bem como as personagens que nele transitam, apresenta-se
como um espaço regido por regras próprias e opostas à do litoral, ou, como exposto por
Fernando Gil, por uma total ausência de regras, uma verdadeira anomia na qual os
indivíduos se impõem a partir da lei do mais forte. Sobre essa representação da
sociabilidade sertaneja, o pesquisador ainda afirma que “[...] o espaço que informa o
romance rural e as relações sociais que ali se encenam acabam por constituir o âmbito de
explicitação da brutalidade de nossa formação histórica” (GIL, 2020, 74).
Esse caráter de explicitação da violência histórica da formação nacional
brasileira, toma vulto com os descendentes do já referido Henrique Dias que aparecem na
trama. O primeiro deles, Gabriel — em um paralelo explícito com as condições nas quais
os negros livres se encontravam após serem libertos de sua condição da escravização —,
desencadeia o combate no qual acabaria morto ao exclamar ao Cabeleira e seu pai que
lhe roubavam o cavalo e o mandavam calar-se em função de sua cor: “— Sim, eu sou
negro, é verdade; mas os brancos tomam-me o que é meu, e deixam-me sem caminho
nem carreira, com uma mão adiante e a outra atraz [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 65).
O destino da família de seu irmão Liberato, que concentra na trama os demais
membros da estirpe de Henrique Dias, é igualmente desolador. Ainda que livres em
82
função da condição de fidalgo e herói de seu antepassado ilustre, eles experienciavam
uma “omnimoda servidão [sic]” (TÁVORA, 1876, P. 113) por viverem segregados em
uma propriedade margeada pela vegetação densa tendo por vizinhos somente os
malfeitores entocados na mata, os quais vinham rotineiramente roubar-lhes a propriedade
e os frutos de seu trabalho.
Já contrariados pela contínua extorsão de seus bens e alienação produtos dos
seus esforços, eles são levados à ação contra os bandidos ao saberem da morte de Gabriel,
vindo a organizar uma expedição ao seu covil oculto nas matas para vingar o assassinato
do parente. Entretanto, os descendentes de Henrique Dias são delatados e, apesar de
infligirem pesados danos ao bando do Cabeleira, todos os homens da família são mortos
em combate, enquanto as mulheres perecem em um incêndio perpetrado pelos bandidos
em retaliação ao ataque liderado por Liberato.
Na altura do livro em que esses acontecimentos são descritos, o narrador, sempre
dado a intromissões, faz uma ressalva em relação à natureza sensível desse conteúdo. Ele
escreve:
Não é sem grande constrangimento, leitor, que a minha penna,
molhada em tinta, graças a Deus, e não em sangue, descreve scenas de estranho
cannibalismo como as que nesta historia se lêem. [...] desgraçadamente estas
scenas não são geradas pela minha phantasia. São factos acontecidos ha pouco
mais de um seculo. Si só alguns delles foram recolhidos pela historia, quasi
todos pertencem á tradicção que nol-os legou, antes como limpido espelho, que
como tenebrosa noticia do passado. Nao estou imaginando, estou, sim,
recordando; e recordar é instruir, e quasi sempre moralisar. Com estas razões
considero-me justificado aos teus olhos, leitor benevolo. [sic] (TÁVORA,
1876, p. 145-146).
O intuito dessa de Távora com essa intrusão é, tal qual na maior parte das demais
instâncias em que ele se vale desse recurso, reafirmar o caráter moralizante do seu
empreendimento literário em face da violência extrema da qual ele lança mão na
construção de sua narrativa. Não só isso, mas ele também justifica que o teor violento
dessas cenas se faz presente por elas serem pretensamente derivadas de acontecimentos
reais do passado, de forma que remeter a esses fatos, por mais cruentos que sejam, teria
um valor pedagógico que se sobreporia ao constrangimento do escritor em expô-los.
Ainda nessa mesma extensa intervenção da voz narrativa, é denotado mais uma
vez o teor determinista da retórica tavoreana. Em trecho que antecede as últimas linhas
do excerto acima, lê-se:
Eu vejo nestes horrores e desgraças a prova, infelizmente irrecusavel, de que o
ente por excellencia, a creatura fadada, como nenhuma outra, para altissimos
fins, póde cahir na abjecção mais profunda, si o afastam dos seus summos
83
destinos circumstancias de tempo e lugar que, nada, ou muito pouco valendo
por si mesmas, são de grande peso para a perturbação do equilibrio moral do
rei da creacão, tal é a fragilidade da realeza, ou antes das realezas humanas
[sic] (TÁVORA, 1876, p. 145).
O relevo dado ao fator mesológico na constituição do “equilíbrio moral” remete,
mais uma vez, à ideia da determinação do caráter pelo meio. É digno de nota que a
insistência de Távora nessa relação entre o indivíduo e o contexto no qual ele está inserido
é repisada não somente no curso dos acontecimentos do romance, mas, sobretudo, nessas
copiosas digressões às quais o autor se entrega ao longo do livro.
Anita Moraes compreende que essas ostensivas intervenções da voz narrativa
que enchem as páginas d’O Cabeleira caracterizam o que Mikhael Bakhtin chama em seu
Problemas da Poética da Dostoiévski (1981) de “romance monológico”, no qual o
narrador sobrepõe-se às personagens, constantemente exprimindo juízos de valor sobre a
narrativa e enviesando sua leitura (Cf. MORAES, 2006, p. 127, 129). Fernando Gil, cuja
tese defendida em sua análise sobre O Cabeleira é justamente de que este e os demais
romances que ele categoriza como “rurais” seriam fundamentalmente definidos por uma
“duplicidade constitutiva” entre a feição social do narrador e a matéria narrativa, também
chama atenção para as características dessa voz narrativa intrusiva, defendendo que,
como matriz discursiva, o
narrador ostensivo é a dominante do romance rural. Um narrador que se
poderia chamar de narrador hipertrófico. Com isso quer-se referir à presença
excessiva, muitas vezes desmedida e desproporcional do narrador com relação
aos outros elementos de composição (personagens, relatos de ação, processos
descritivos etc.). Ele contém o narrador intruso, aquele que comenta ou opina,
mas o ultrapassa. Daí também por que o chamamos de autor-narrador. (GIL,
2020, p. 56)
Assim, Gil entende que o uso desse narrador hipertrófico, noção proposta por
Antonio Candido em “A literatura e a formação do homem” (2002), seria uma ferramenta
de autores de romances rurais como Távora para amenizar esse distanciamento
fundamental entre a matéria rural sobre a qual versavam e sua prosa. Também é possível
que, no caso específico d’O Cabeleira, sua constituição como manifesto da Literatura do
Norte e narrativa moralizante convirjam também para que o autor-narrador se faça tão
presente ao longo do romance.
Se Távora faz questão de explicitar tanto quanto possível suas intenções com a
escrita do romance e os seus posicionamentos acerca das temáticas que o rodeiam através
de uma voz narrativa ostensiva, sua condução do romance pela própria prosa, quando
despida dessas intervenções diretas, é quase tão eloquente quanto suas digressões. Ao
84
descrever as paisagens que servem como pano de fundo da ação narrativa, mas que
transcendem simbolicamente sua significação como mero cenário, ou dar voz própria às
personagens em seu falar característico e expressar suas revoluções internas por
metáforas elaboradas, Távora deixa entrever um sistema complexo de significações que
compõem uma ótica particular sobre os elementos — históricos, geográficos, filosóficos,
teológicos e sociológicos — que ele mobiliza nesse romance.
A organização desse sistema n’O Cabeleira parece obedecer a uma já referida
divisão espacial entre os elementos que estariam alinhados à ideia de civilização e aqueles
correspondentes à barbárie — a repisada dicotomia entre litoral e sertão. Entretanto, o
ponto de contato entre esses espaços, na narrativa, a zona da mata pernambucana, oscila
entre esses dois polos opostos de influência, constituindo-se de certa forma como uma
zona de transição onde essas duas realidades conflitantes se entrecruzam.
No romance, o recorte espacial da zona da mata parece equivaler ao que se toma
exemplarmente pelo meio rural, o campo, meio por onde a “arraia miúda do período
colonial” transita em suas pequenas povoações, nas lavouras e nas usinas onde trabalham.
Nesse meio caminho entre as luzes da cidade e as sombras das matas, personagens tão
diversas quanto o pai e a mãe do Cabeleira tomam vulto, cada qual pendendo em sua
formação a favor de um dos extremos absolutos que regem a construção da narrativa.
É nesse frágil equilíbrio que se firma a tradição cultural que Távora pretende
celebrar nas páginas de seu romance. Se nesse espaço muitas vezes se impõe uma anomia
que espelha a lei das selvas que margeiam esses campos de uma natureza domesticada, é
também na contínua luta pela manutenção da existência desse entreposto de civilização
no interior da província que reside o drama das personagens vitimadas pelo Cabeleira.
A exaltação feita por Távora é a esse modo de vida tradicional, traduzida nas
páginas do romance na nostalgia por um passado no qual essa ruralidade — situada pelo
autor como base da identidade brasileira — ainda não estava em vias de se perder. A
centralidade dada ao reverso desse passado idealizado, o sanguinário Cabeleira, serve
antes, como já exposto, para reforçar a importância dessa formação moral rural e
tradicional que lhe foi negada pelo pai.
É justamente “para grande lição da sociedade do futuro” que José Gomes,
comparado por Távora a um “cometa que abrasava a terra”, “[...] percorreria a vastíssima
orbita que a Providencia lhe traçara, e se afundaria nos espaços, não entre refulgentes
auroras, mas dentro de profundas e medonhas escuridões [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 95).
85
Dessa trajetória e dos sentidos atribuídos a ela pelo autor, importa muito a definição dos
espaços percorridos pelo cometa que foi o Cabeleira.
4.2 – Medonhos sertões, medonhos sarcófagos
Nesses anos em que o Cabeleira e o pai passaram “metidos no ôco do mundo
[sic]” (TÁVORA, 1876, p. 86), Luizinha cresceu à sombra das histórias contadas sobre
os feitos do pai e do filho. Adotada pela viúva Florinda e criada de acordo com “[...] a
educação que então se usava e que, com poucas modificações, e alguns acrescentamentos,
ainda hoje se usa no campo” (TÁVORA, 1876, p. 88), a menina cresceu para tornar-se o
perfeito exemplo da retidão moral que se esperava de uma jovem de sua posição simples.
Paralelamente, uma série catastrófica de acontecimentos se abatia sobre a
província de Pernambuco. No ano durante o qual transcorre a maior parte da narrativa,
1776, cem anos antes da publicação do romance, uma das secas mais severas até então
assolava a região, a de 1776 a 1778.
A tematização literária do fenômeno da seca remete ao surgimento da “literatura
das secas”, o tradicional nicho de romances voltados à representação das estiagens severas
que afligem a população sertaneja, os quais se multiplicaram nas últimas décadas do
século XIX em função da comoção nacional em torno dos efeitos da Grande Seca que se
estendeu de 1877 a 1880.
Fernando Cristóvão (1994) propõe que essa abundância de produções literárias
que tematizam o sertão a partir da seca configurariam o início de um período que se
estenderia até as primeiras décadas do século seguinte no qual o discurso literário sobre
o sertão se daria predominantemente a partir de sua representação como um “inferno”.
Esse período contrastaria com o anterior, que vigorava desde os tempos coloniais e se
reafirmava particularmente durante o auge do romantismo, correspondendo ao da
representação do sertão como um “paraíso”, e antecederia uma abordagem mais matizada
e reflexiva que o autor associa particularmente à obra Grande Sertão: veredas (1956),
configurando um sertão tomado como “purgatório”.
No período relativo à predominância de sua representação como um “inferno”,
o sertão é apresentado como um meio corrompedor dos homens em função da brutalidade
86
dos flagelos naturais e sua consequente pobreza material. Ele seria, assim, um duplo
distorcido do Brasil dos grandes centros litorâneos.
A publicação do romance O Cabeleira (1876), antecede em um ano os eventos
que deflagraram esse novo paradigma literário na representação do sertão. Entretanto, o
livro de Franklin Távora não só apresenta uma construção discursiva sobre o sertão
análoga àquela que Cristóvão identifica como sendo a do período de representação desse
espaço como um “inferno”, mas o faz a partir da ambientação da trama em um
Pernambuco assolado pelos efeitos da seca.
Mesmo assim, em determinados momentos do romance o sertão não parece
restrito a essa feição, com determinadas passagens sugerindo uma coexistência pacífica
do homem com uma natureza luxuriante que estaria mais próxima de sua representação
como “paraíso”. Da mesma forma, na altura do romance em que o protagonista transpõe
o sertão “inferno”, aquele efetivamente hostil e flagelado pela seca, ocorre um processo
que parece configurar uma transposição, também, da condição infernal daquele espaço,
de forma que ele passa a se configurar como algo mais identificado com o que Cristóvão
dispõe como sendo um sertão como “purgatório”.
A coexistência simultânea dessas categorias discursivas a princípio
inconciliáveis n’O Cabeleira não nos parece desqualificar a formulação de Cristóvão por
si só, caracterizando antes um desafio à ideia de que ela possa se impor como uma
generalização totalizante. O próprio autor, no desenvolvimento de suas ideias, ressalta o
quanto essa divisão estritamente periodista não se sustenta como um absoluto, destacando
a título de exemplo excertos d’Os Sertões (1902) de Euclides da Cunha, a princípio a obra
que cristaliza o entendimento do sertão como “inferno”, em que o autor descreve cenas
verdadeiramente paradisíacas em sua caracterização da paisagem sertaneja, valendo-se
inclusive do adjetivo em questão para fazê-lo (Cf. CUNHA, 2019, p. 114).
O Cabeleira de Távora é referido no texto do pesquisador português como uma
das obras inauguradoras desse período de representação do sertão como
predominantemente infernal, mas o tratamento dado a esse espaço no romance em sua
interrelação com o desenvolvimento da narrativa parece sugerir que ele transcende essa
caracterização como meramente “infernal”. Assim, partindo do questionamento da
validez desses conceitos não como chaves de leitura, mas enquanto categorias
engessadas, procura-se estabelecer um diálogo com Cristóvão a partir da subversão que
o próprio romance faz de suas ideias.
87
Essa seca retratada nas páginas d’O Cabeleira sobreveio após uma devastadora
epidemia de varíola e coincidiu com a conscrição dos homens sadios da província pelas
tropas destinadas a lutarem na fronteira meridional do país, configurando um “tríplice
flagelo” (TÁVORA, 1876, p. 179) ao qual se somou o consequente recrudescimento das
atividades do temido bando de malfeitores do Cabeleira. “A’ guerra”, lê-se, “seguiu-se a
peste, e a peste a fome [sic]”, (TÁVORA, 1876, p. 179).
Nesse contexto de hecatombe, em que cada flagelo encontra paralelo com um
cavaleiro do apocalipse e o Cabeleira faz as vezes da Morte, Luizinha e os demais
moradores do interior pernambucano ainda tentavam arrancar seu sustento da terra. É por
conta da seca que, certo dia, a menina vai buscar água longe da povoação, em um poço
num braço de rio distante de sua casa, e acaba no limiar das suas terras com a mata virgem.
A descrição do poço ressalta o aspecto de fronteira que ele assume na narrativa.
Távora escreve que “De um lado o terreno elevava-se gradualmente, e accidentava-se
mais adiante, formando zig-zagues quasi inacessiveis e esconderijos escuros, a que a
espessura das arvores dava um aspecto medonho [sic]”, enquanto que “Do lado opposto
a margem plana, igual e descampada, formava com a banda fronteira um admiravel
contraste [sic] (TÁVORA, 1876, p. 96-97)”.
O “admirável contraste” ressaltado pelo próprio autor parece configurar a
separação mesma entre um espaço transformado pelo trabalho, o meio rural de onde vem
Luizinha, e o sempre “medonho” e “escuro” sertão que oculta perigos dos mais diversos.
Em análise desse trecho, Eduardo Vieira Martins também percebe que
O que chama a atenção na descrição do poço é o aspecto simbólico
das suas margens: de um lado, a trilha errática e moralmente errada que conduz
a esconderijos escuros e medonhos; do outro, o terreno plano e descampado
que conduz à povoação. A primeira é a margem dos bandidos, que deixaram
os caminhos retos e corretos, trilhados pelos sertanejos de bem, e se
aventuraram pelo crime; a segunda, ainda que destruída pela seca, que lhe
confere aspecto aterrador, é a margem da ordem e das relações normais,
margem da povoação, de Luisinha, Florinda e Joana, triste mãe do Cabeleira
(MARTINS, 2008, p. 12).
É também notável nesse cenário a presença do rio, elo constante entre os
diferentes topos da narrativa e recurso sempre acionado à ocasião da travessia das
personagens entre um desses espaços e o outro. Por isso mesmo, quando Luizinha se põe
a pegar água nesse braço de rio, ela tem seu reencontro com José Gomes, tornado agora
Cabeleira.
Ao deparar-se com a menina, e sem reconhecê-la, o Cabeleira tenta arrastá-la à
força para o mato, exatamente no momento em que aparece Florinda, mãe adotiva da
88
jovem, a quem o bandido prontamente agride e deixa sem sentidos. Em seus protestos
contra os procedimentos de José Gomes, Luizinha faz-se reconhecer pelo outro, de forma
que ele se constrange e a deixa ir sem lhe fazer mal.
A partir desse encontro começa a operar-se no Cabeleira uma transformação,
pois ele começa a questionar a moralidade de suas ações e a ansiar por sua redenção aos
olhos de Luizinha. Como aponta Fernando Gil, “Luísa funciona como espécie de
duplicação da imagem materna no que ambas representam de bondade, de virtude e
desprendimento humanitário cristãos”, e
Muito mais do que o amor romântico, ela, assim como Joana, incorpora a figura
feminina que atua na transformação purificadora e remissiva do protagonista.
Espécie de retorno à inocência perdida o qual somente sugere ser possível se
operado pelo contato e pela intermediação da figura feminina. Essa se torna a
ponte de passagem da “maldade” e da brutalidade do presente à tentativa
salvação e purificação no futuro. Assim, figura feminina e virtudes, de corte
religioso, se plasmam e se confundem num todo com tamanha força que se
tornam o elemento fundamental para a mudança do Cabeleira, que é o da sua
retirada da bandidagem (GIL, 2020, p. 176).
Confrontado com o reflexo inverso de si representado pela menina, o
protagonista resolve por abandonar seus modos violentos em favor da postura pacífica
apregoada por Luizinha, por quem sua paixão de infância havia reacendido. Seu encontro
com ela ocorrera perto do covil de seus companheiros e na mesma ocasião do ataque de
Liberato contra eles, de forma que Luizinha, desamparada, fugira para a casa da família
do descendente do Henrique Dias que seria alvo da retaliação dos bandidos dentro em
pouco.
Quando seus companheiros atearam fogo à casa da família de Liberato, o
Cabeleira fez frente aos demais bandidos e resgatou Luizinha, pretendendo embrenhar-se
com sua amada no sertão profundo. Agindo assim, supunha internar-se “[...] d’onde era
impossivel desentranhal-o por serem então, como são ainda hoje, quasi de todo
desconhecidos esses medonhos sertões [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 216).
Sua intenção era fugir para além dos domínios de todos os homens, fossem eles
agentes da ordem estabelecida ou do crime organizado do qual antes fazia parte. Sua
presunção era tal que:
Parecia-lhe que ninguem, nem a justiça dos homens nem a de Deus,
na qual desde os mais verdes annos o tinham ensinado a não acreditar, teriam
poder para arrancal-o desse sombrios e protectores esconderijos, dessas grutas
insondaveis, perpetuamente abertas ás onças e a elle, perpetuamente fechadas
ao restante dos animaes e dos homens que não se animavam a transpor-lhes o
escuro limiar com receio de ficarem sepultados para sempre em tão medonhos
sarcophagos [sic] (TÁVORA, 1876, p. 217-218).
89
Este sertão “medonho” em questão corresponde a uma porção de terra
interiorana de uma continentalidade muito mais profunda, àquela efetivamente calcinada
pela seca — o Alto Sertão, tal como caracterizado por Távora, o “pleno deserto”
(TÁVORA, 1976, p. 218). Na travessia ao interior dessa terra, o Cabeleira guiava-se pelo
leito do rio Tapecurá, tributário do rio Capibaribe, transpondo mais uma vez um recorte
espacial bem delimitado por uma via fluvial.
Nesta ocasião, o rio opera em dois sentidos diversos e complementares, tanto
como ponte entre dois topos distintos, o sertão e o alto sertão, como em paralelo à
travessia do rio Estige, o rio que separava a terra dos mortos daquela dos vivos na
antiguidade clássica, uma vez que Cabeleira chegava a um sertão diverso daquele em que
circulara até então, um que se apresentava diante de si como um “sarcófago”. Se os efeitos
da estiagem já se haviam feito sentir do litoral ao coração da zona da mata pernambucana,
ali a paisagem fora transfigurada a ponto de tornar-se inabitável.
Ao menos assim ela o era para o agora transfigurado Cabeleira. Em sua fuga,
eles se deparam com uma roça que viceja em meio à ruína e a qual o Cabeleira tensiona
assaltar, mas Luizinha veta a tomada do alimento alheio pela força, o que faz o bandido
questionar a sensatez de seus votos recém-contraídos de mansidão.
Igualmente incapaz de produzir prodígio igual em função de sua incapacidade
de trabalhar a terra, resultado de sua criação voltada à espoliação dos bens dos outros,
Cabeleira não encontra modos de subsistir nesse espaço que antes lhe parecia ser seu por
excelência. Sem meios para garantirem seu sustento nesse ambiente hostil, o protagonista
e Luizinha percorrem a esmo o deserto agreste.
São nessas condições que as personagens se encontram ao se depararem com uma
cruz à beira da estrada que Cabeleira reconhece como o túmulo de um mercador
assassinado tempos atrás por ele próprio em um assalto. Estando então, como disposto
pela pena do autor, “[s]uperexcitado pela falta de alimentação, pelo cansaço da jornada,
pelo calor do dia, pelas recordações que o affligiam de envolta com o remorso incipiente
[sic]” (TÁVORA, 1876, p. 238), o protagonista vê aparecer diante de si o espectro do
morto, o que o faz confrontar definitivamente a natureza criminosa de seu caráter e
arrepender-se de seus atos, levando-o a prostrar-se diante da cruz e renunciar, enfim, à
violência que guiou seus atos por toda a vida.
É este evento que encima o que parece configurar a passagem da representação
do sertão como “inferno” àquela mais associada ao “purgatório”, uma vez que a travessia
do Alto Sertão como um todo, esse sertão tornado verdadeiro inferno calcinado pela seca,
90
suscita uma transformação profunda no âmago do Cabeleira. A resolução da tensão que
se revelou ao protagonista através desse périplo, entre os vícios de sua vida pregressa e a
promessa de redenção pelo exemplo de Luizinha, dá-se pela via da contrição.
A revolução interna que se opera no Cabeleira só foi tornada possível diante de
sua impossibilidade de subsistir naquele espaço tanto pelo emprego da força quanto pela
transformação do espaço pelo trabalho. Assim, esse impasse, e consequentemente sua
superação, tem sua raiz justamente na ressignificação da relação do Cabeleira com esse
recorte espacial imposta pela sua travessia nas condições dispostas pela influência de
Luizinha, as quais, enfim, triunfam sobre o protagonista.
Essa jornada de transformação alimentada por um processo de autorreflexão e
descobrimento, além de corresponder aos paradigmas dispostos por Cristóvão para a
composição de um sertão apresentado como “purgatório”, também se associa a uma
tradição literária mais avoenga — o tema da catábase. Recorrente em textos clássicos de
matriz greco-romana, a catábase trata da descida de um herói aos infernos em busca de
redenção ou conhecimentos de outra maneira ocultos sobre o futuro, o mundo ou si
próprio, resultando no engrandecimento do herói face às adversidades que ele encontra
no caminho (FERNANDES, 1993).
Exemplos célebres são as jornadas pelo submundo de Orfeu, Héracles, Odisseu
e Eneias, cada qual empreendendo essa viagem com fins distintos. As descidas infernais
de Odisseu e Eneias são as que encontram maior símile com a travessia do sertão realizada
pelo Cabeleira.
As cenas em questão descritas no romance de Franklin Távora não
compreendem, por suposto, uma descida literal aos infernos tal qual aquelas
protagonizadas pelas figuras supracitadas. Pelo contrário, o movimento em direção ao
interior do país configura geograficamente, a rigor, uma subida, ou uma anábase, um
deslocamento que usualmente se refere ao avanço de tropas continente adentro, no jargão
coetâneo desses textos clássicos (FERNANDES, 1993, p. 347).
A despeito desse descompasso aparentemente fundamental, a jornada do
Cabeleira não deixa de guardar paralelos com essas narrativas no plano simbólico, ao que
concorrem as formulações da pesquisadora Rachel Falconer (2001) sobre a dimensão
eminentemente alegórica dessas viagens catabáticas. Em seu esforço pelo emprego do
tema da catábase no entendimento do conjunto da obra do autor Salman Rushdie, a autora
escreve que:
91
Na descida ao submundo, o protagonista é forçado para fora de uma via de
desenvolvimento histórica e cronológica e descende rumo a um mundo
temporalmente suspenso. [...] Após uma série de testes físicos e espirituais, o
protagonista alcança o ponto mais profundo de sua jornada. Aqui, no que pode
ser tido como o “ponto zero” ou “de conversão” da jornada, o herói confronta
o mal supremo ou a face de Deus, ou os dois (FALCONER, 2001, p. 470,
tradução nossa).30
Sobre a possibilidade de uma jornada catabática que prescinda de um
deslocamento espacial necessariamente descendente rumo a um plano de existência
estritamente místico, Falconer defende que quaisquer deslocamentos em um plano
ficcional que operem um processo tal qual o descrito acima, ao menos metaforicamente,
“[...] implica[m] uma conversão ou uma transformação a partir de um eixo vertical de
valor” (FALCONER, 2001, p. 472, tradução nossa).31 Dessa forma, emerge a
possibilidade de entendimento do tema da catábase a partir de sua dimensão metafórica.
Em um trabalho que dialoga com essa leitura de Falconer, o dinamarquês Bent
Sørensen tenta sintetizar esse entendimento menos atrelado a uma descida aos infernos
literal do que à dimensão subjetiva da experiência esboçado pela autora através da
categoria de “catábase horizontal” (SØRENSEN, 2005, tradução nossa)32. Ele o faz com
o intuito de aplicar esse conceito à trama do romance Meridiano de Sangue (1985), de
Cormac McCarthy33.
Assim, é justamente a essa “catábase horizontal” que se recorre para
compreender a interrelação entre o espaço narrativo d’O Cabeleira, o deslocamento do
protagonista homônimo pelos diferentes espaços que compõem a trama e a transformação
de seu caráter. A apresentação que o próprio autor do romance faz à guisa de introdução
da personagem, caracterizando-a como um herói antes pelo caráter extraordinário de seus
feitos do que pela dimensão benéfica ou edificante destes (Cf. TÁVORA, 1876, p. 16),
aproxima-o da noção de um herói tal como aqueles dos textos da antiguidade greco-
30 No original: “In the descent to the underworld, the protagonist is forced out of a historical,
chronological path of development and driven downward into a temporally arrested world. […] After a
series of spiritual and physical tests, the protagonist reaches the lowest point of his journey. Here, at what
might be termed the journey’s ‘conversion’ or ‘zero point,’ the hero confronts either the ultimate evil, or
the face of God, or both”. 31 No original: “[...] entails a translation or transformation on a vertical axis of value”. 32 No original: “horizontal katabasis”. 33 Outros estudos que se valem do tema da catábase como chave de leitura de obras literárias modernas
incluem “O Regresso ao Ramalhete” (1983), análise de Maria Leonor Carvalhão Buescu sobre o capítulo
final do romance Os Maias (1988), de Eça de Queiroz, e “O Ano da Catábase de Ricardo Reis: um topos
homérico no romance de José Saramago”, de Luís Ricardo Duarte (2019), trabalho sobre O Ano da Morte
de Ricardo Reis (1984), de José Saramago.
92
romana em detrimento do protótipo heroico moderno, o que autoriza ainda mais essa
leitura da obra ancorada na atualização de um tema literário clássico.
Recuperando a já referida aproximação feita por Távora nas primeiras páginas
do romance entre o Cabeleira e outras históricas figuras de moralidade dúbia,
nomeadamente El Cid e Robin Hood, o protagonista homônimo de seu romance aparece
como um “herói-bandido”, nos termos de Cristina Bertioli Ribeiro, cuja “[...] carreira do
crime [...] funciona como um caminho tortuoso para o destaque e o reconhecimento
público” (RIBEIRO, 2008, p. 119). É também sob este prisma que Ana Márcia Alves
Siqueira estuda a constituição heroica do Cabeleira em sua tese de doutoramento (Cf.
SIQUEIRA, 2007).
O que diferencia a leitura de Ribeiro é que ela defende que Cabeleira se aproxima
antes dos “antigos heróis gregos” do que dos exemplos de “ladrões nobres” históricos aos
quais Távora compara seu protagonista, justamente por não ser movido por “causas
nobres” como estes, sendo na verdade, a exemplo dos heróis gregos “[...] mais
identificado com os ímpetos demolidores do que com o senso de virtude e justiça”
(RIBEIRO, 2008, p. 121). Dessa forma, ela propõe que, numa leitura do romance que o
tomasse em paralelo aos modelos clássicos, “[...] o momento [de transfiguração moral do
Cabeleira] poderia ser comparado ao do ‘reconhecimento’ e da ‘peripécia’, elementos
trágicos que desencadeiam mudança de fortuna no percurso do herói (RIBEIRO, 2008, p.
120)”.
Em relação aos paralelos do percurso catabático do herói tavoreano com os de
seus precedentes greco-romanos, destaca-se o intercurso de Eneias e Odisseu pelo
submundo em busca de respostas a seus dilemas terrenos. Eneias, procurando visões de
um futuro que justificasse os suplícios e perdas aos quais ele e seu povo se submeteram
para cumprir os desígnios de seus deuses, assim como meios de reafirmar a validade de
sua posição como representante dos seus para si mesmo, desce aos infernos.
Enquanto Eneias efetivamente desce aos infernos, desfraldando sua geografia
tétrica e resolvendo seu conflito interno sobre sua identidade como herói do povo troiano
no processo, Odisseu não penetra as profundezas infernais, realizando tão somente uma
néquia, ritual necromante de invocação de uma alma penada, a fim de questionar o
fantasma do adivinho Tirésias sobre os rumos a tomar sobre seu futuro, ainda que o faça
nas profundezas da terra em um espaço que corresponderia às portas do inferno.
A experiência catabática do Cabeleira se assemelha a esses precedentes no
sentido transformador que o encontro com o fantasma tem sobre o herói e a resolução
93
final de seu conflito interno que a experiência proporciona. É conversando com o
fantasma do profeta Tiresias que Odisseu encontra clareza para prosseguir sua jornada,
tal como se dá no caso do Cabeleira com seu intercurso com o fantasma do mercador.
Entretanto, a experiência do protagonista do romance surpassa esse encontro,
que apenas encima toda a travessia do sertão pelo qual ele passa, e que se alia a essa
néquia sertaneja para surtir um efeito similar, se não mais profundo, sobre João Gomes.
O resultado dessa provação talvez seja mais próximo daquele resultante da efetiva viagem
ao inferno protagonizada por Eneias, a qual organizou os sentimentos conflituosos do
herói troiano e reafirmou o próprio sentido de sua vida, permitindo que ele cumprisse a
sua incumbência heroica.
É assim que a penetração do sertão feita pelo protagonista, sobretudo a partir de
seu desfecho, equivale na narrativa a uma viagem ao inferno, ainda que estritamente em
sua dimensão metafórica, posto que “horizontal”. Uma vez que é a sua jornada às
profundezas desse sertão “infernal” que fatalmente define a sua mudança de caráter,
dispõe-se assim a dimensão espacial de sua metamorfose íntima.
A despeito de a essa altura da narrativa o conteúdo simbólico do sertão ter
transcendido da esfera de uma representação “infernal” para a de um “purgatório”, a
concretude da realidade de uma paisagem afligida por uma seca histórica ainda se afirma
na narrativa. É assim que Luizinha morre em meio ao sertão do fogo inclemente e o
Cabeleira se vê forçado a traçar o caminho inverso de sua fuga dos homens, fugindo, desta
vez, de uma natureza sobre a qual ele deixa de ter qualquer agência em função de sua
nova condição beata.
Assim ele é eventualmente capturado pelas autoridades e julgado como
criminoso a despeito de sua recém adquirida solicitude para com seus captores e seu
aflorado senso de arrependimento em relação aos seus crimes. Inocente aos olhos do povo
mesmo que culpado aos da lei, o Cabeleira é enforcado em praça pública, fato que encerra
a existência do homem, mas imortaliza a figura folclórica que ecoará na memória popular
através dos séculos até ser plasmada como foi pela pena de Franklin Távora.
Há uma certa circularidade presente no arcabouço teórico que sustenta esta
proposta de leitura da travessia do sertão tavoreano pelo prisma da experiência catabática.
A formulação de Cristóvão sobre os três paradigmas na representação do sertão é,
confessadamente, inspirada na imagem tripartida do além-túmulo imaginada por Dante
Alighieri em sua Divina Comédia (CRISTÓVÃO, 1994, p. 45).
94
O poeta italiano, por sua vez, ecoa com seus nove círculos do Inferno a geografia
fantástica do Tártaro percorrido por Eneias. Não só isso, mas é justamente o autor da
Eneida, Virgílio, quem guia Dante em sua peregrinação pelo substrato infernal ao longo
das páginas de seu poema.
Essa é a manifestação clássica do tropo literário do homo viator, aquele em
permanente peregrinação e consequente transformação, — tal como apresentada na
poesia dantesca — que caracteriza a experiência do sertão que Cristóvão reserva para
Grande Sertão: veredas, mas que, aqui, procura-se alargar para abarcar, em alguma
medida, O Cabeleira. Nessa subversão metafórica do sertão como estritamente um locus
horribilis, busca-se justamente reforçar o caráter transformador que a descida aos infernos
encerra em si através da identificação de seus preceitos fundamentais em nível simbólico,
os quais independem da matéria fantástica que uma jornada infernal clássica compreende.
Assim, entendendo a jornada do Cabeleira pelo sertão a realização de uma
“catábase horizontal”, reconhece-se o caráter subjetivamente transformador da
experiência da personagem em conformidade com a indissociabilidade entre o
desenvolvimento da narrativa e a dimensão espacial da trama que se estabeleceu como
pressuposto de leitura da obra. Ademais, essa dimensão subjetiva da apreensão desse
espaço pela personagem está em certa medida contida nas ideias de Moraes em sua
caracterização do que constituiria o sertão em nível discursivo, sendo essa carga simbólica
aquela que se refere à sua condição infernal no que concerne ao romance.
A subjetivação do entendimento desse espaço se dá a partir de uma experiência
que transcende sua caracterização como “inferno”, mas não implica a superação efetiva
dessa condição no plano narrativo, antes concorrendo para alargar as possibilidades de
leitura do espaço literário descrito. Isto é expressado exemplarmente pela máxima grafada
por John Milton em seu Paraíso Perdido (1667): “A mente é em si mesma o seu lugar;/
Faz do inferno Céu, faz do Céu inferno” (MILTON, 2008, p. 53,55, v. 254-255), entoada
em desafio por um Lúcifer recém-decaído que se recusa a aceitar o caráter
monoliticamente negativo de sua prisão infernal, dispondo-se a subverter a lógica de sua
condição pela superação dos construtos discursivos predispostos sobre ela.
Assim também o faz, em proporções menos épicas, o Cabeleira. Fadado a
transpor o inferno da seca sertaneja, compartilhado pelas demais personagens e plasmado
indelevelmente em sua faceta infernal pela literatura de então, ele supera seu inferno
particular em uma jornada íntima de transformação no seio dessa terra calcinada.
95
Diante do exposto, retoma-se a paráfrase com a qual se encerrou o primeiro
capítulo, agora ressignificada à luz das formulações desenvolvidas sobre o romance de
estudado:
[...] para alguns degredados, para os homiziados, para os muitos perseguidos
pela justiça real e pela Inquisição, para os escravos fugidos, para os índios
perseguidos, para os vários miseráveis e leprosos, para, enfim, os expulsos da
sociedade colonial, "sertão" representava liberdade e esperança; liberdade em
relação a uma sociedade que os oprimia, esperança de outra vida, melhor, mais
feliz. (AMADO, 19955, p. 149-150)
Ademais, expande-se a citação com um trecho originalmente omitido, que
reverbera mais agora, assim recontextualizado:
Desde o início da história do Brasil, portanto, uma perspectiva dual, contendo,
em seu interior, uma virtualidade: a da inversão. Inferno ou paraíso, tudo
dependeria do lugar de quem falava. (AMADO, 1995, p. 150).
O sentido dessa afirmativa está presente nas páginas d’O Cabeleira, e ecoa ao
longo da história brasileira em diferentes narrativas. Ela se faz sentir em sua elaboração
mais bem acabada, sobretudo, na obra imortal de Euclides da Cunha, Os Sertões (1902),
com a qual a leitura do livro de Távora pode, por essa via, estabelecer um diálogo.
4.3 – Uma Canudos grande
Além da travessia propriamente dita do sertão, a ação da captura do Cabeleira
tal como disposta por Távora é de particular interesse dentro da leitura proposta. Após a
morte de Luizinha, José Gomes se encerra novamente nas matas que antes lhe serviam de
abrigo, fazendo o caminho de volta para terras mais aprazíveis.
Enquanto vagueia assim, sem rumo e com fome, ele se depara com um canavial,
“[...] um mundo de verdura que lhe acenava com doces presentes” (TÁVORA, 1876, p.
168). A exposição da significação que aquele canavial tem para o protagonista naquele
momento segue a relação estabelecida no capítulo 2 entre o autor e a sociedade canavieira
dos tempos áureos de Pernambuco:
A planta que estava destinada a ser mais tarde a base principal da
fortuna e riqueza de um vasto imperio; essa planta abençoada que dalli punha
a sua disposição nutritivo e precioso suco offerecia-lhe tambem protecção a
sombra da sua basta folhagem. Podia elle, pobre foragido, refazer as forças no
seio dessa solidão generosa que lhe daria a sorver licor suavissimo, como o que
mana de um seio maternal (TÁVORA, 1876, p. 268).
96
É particularmente interessante que, após a conversão moral que se operou sobre
o Cabeleira e o tornou incapaz de conduzir sua vida nas matas fechadas onde até então
usurpara o trabalho alheio através da violência, ele tenha se refugiado no equivalente mais
próximo de seu antigo habitat em um meio transformado pela ação do homem, um
canavial — antes, uma “ridente floresta” que lhe servia de “pitoresca muralha”
(TÁVORA, 1876, p. 274). Instalando-se ali, entretanto, o Cabeleira inadvertidamente
encaminhara seu fim, pois grandes destacamentos de tropas haviam sido mobilizados em
função de seus últimos roubos e batiam então a zona da mata à procura dele e de seu
bando.
Só ele ainda não fora capturado, mas a opinião pública ainda receava celebrar o
sucesso da operação porque
Tantos eram os crimes commettidos pelo Cabeleira, e estes crimes
haviam sido revestidos, na sua maior parte, de circumstancias tão odiosas, que,
quando se divulgou que o afamado bandido tinha escapado as malhas da rede
da justiça, mostras de justo pezar vieram substituir-se nos semblantes de todos
a expressão do regozijo recente que havia manifestado a populacão.
Com raras excepcões, não se contava familia, desde o Recife até o
alto sertão, a quem a peia, a faca ou o bacamarte do terrivel matador não
houvesse roubado uma existência querida.
Por isso, era elle o alvo em que todos haviam posto a mira, e perdel-
o montava perdera diligencia, ao parecer da maioria [sic] (TÁVORA, 1876, p.
206-207).
Percebe-se então que, a esta altura, a personagem estava longe de ser a figura
celebrada nas cantigas populares por estar envolta “em grande lição”. Para o povo
pernambucano, o Cabeleira era então “[...] um flagello não menos fatal do que a peste e
a fome que o reduziam a dor extrema [sic]” (TÁVORA, 1876, p. 215), e sua opinião sobre
o bandido só mudaria à ocasião de sua captura e consequente execução, posto que o
arrependimento demonstrado pelo Cabeleira no patíbulo o redimira aos olhos do povo,
ainda que não aos da lei, como exposto nas cantigas.
Por isso, ao localizarem o bandido no canavial, as tropas circundaram toda a sua
extensão e puseram abaixo a cobertura vegetal que ocultava o Cabeleira. Após três dias
entre a invasão do canavial pelo Cabeleira e a sua destruição pelas tropas,
Desappareceu de todo o verde tufo aos olhos dos circumstantes; as
duas superfícies — a exterior e a interior — uniram-se como por encanto; o
Cabeleira surgiu d’entre as folhas com que pouco antes brincava a brisa, agora
confundidas com as palhas seccas, imagem, como aquellas, do seu perdido
poder [sic] (TÁVORA, 1876, p. 274-275).
A descrição dessa cena apresenta uma associação entre a devastação da cana e a
ruína do Cabeleira que parece transcender o ato da sua captura. Dada a significação que
97
a cana apresenta na prosa tavoreana, como já estabelecido previamente, e a identificação
com a tradição popular que o Cabeleira passa a ter a partir de sua contrição, a derrocada
de ambos parece simbolizar também a derrocada do Norte. A aproximação do
protagonista a essa planta carregada de simbolismo para Távora, sobretudo à ocasião do
desfecho de seu destino trágico, parece sublinhar aquela relação estabelecida quando da
caracterização do Cabeleira, aquela que identificava a personagem com a própria região
Norte a partir da causa comum de seus males — uma trajetória determinada por
circunstâncias adversas.
Éverton Barbosa Correia enxerga no poema “Por que prenderam o ‘Cabeleira’”,
obra de João Cabral de Melo Neto presente no livro Agrestes (1985), uma aproximação
similar entre a figura do bandido e da decadente sociedade açucareira, a qual era também
um tema central para o autor. Para Correia, o enquadramento que Melo Neto dá à captura
do Cabeleira, preso no meio do canavial, incorre em uma representação do Cabeleira a
partir de uma posição de passividade e vulnerabilidade ante o exercício de um poder
oficial inclemente e ostensivo (Cf. CORREIA, 2010).
Ainda que ambos os textos se baseiem no relato pretensamente histórico da
tradição popular segundo a qual o Cabeleira foi de fato preso em um canavial, a carga
simbólica que a planta carrega para ambos os autores autoriza uma leitura que considere
a correlação da cana com o Cabeleira como sendo significativa. A prisão e a consequente
morte do Cabeleira, como a queima da cana, é a aniquilação da própria história do Norte.
Por isso, o posicionamento dos representantes do aparato estatal como aqueles
que levam a cabo a captura e execução do Cabeleira — e paralelamente, a destruição
literal e simbólica do canavial — também é significativo. Isso é aprofundado na narração
que segue à sua prisão.
As últimas páginas do livro são dedicadas à descrição do enforcamento do
Cabeleira, ao qual uma grande multidão compareceu para assistir ao desfecho da trajetória
daquele que até então fora plenamente odiado por todos. Entretanto, durante o breve
intervalo entre sua prisão e sua condução ao cadafalso em que Cabeleira fora exposto ao
público, a opinião geral sobre José Gomes se transfigurara da de um facínora inclemente
para a de um jovem de bom coração transviado pela má influência do pai, imagem que
seria transmitida por trovas populares nas gerações por vir.
Entretanto, a reabilitação do Cabeleira junto ao povo não o redimiu de suas
pendências com a lei e ele foi enforcado por seus crimes à frente de uma grande
quantidade de espectadores comovidos. Em sua última intervenção narrativa direta,
98
Távora discorre, por cinco páginas, sobre a natureza bárbara do proceder do Estado de
então e as responsabilidades comuns da sociedade na incubação de um mal como o que
se abateu sobre o Cabeleira, encerrando assim o romance.
Em trecho expressivo de sua longa digressão, ele afirma que “[a] justiça
executou o Cabeleira por crimes que tiveram sua principal origem na ignorância e na
pobreza [sic]”, o que o leva a se questionar se “[...] o responsavel de males semelhantes
não será primeiro que todos a sociedade que não cumpre o dever de diffundir a instrucção,
fonte da moral, e de organizar o trabalho, fonte da riqueza? [sic]” (TÁVORA, 1876, p.
301). Para Fernando Gil, parece haver um descompasso entre o diagnóstico que Távora
faz ao fim do livro e o conteúdo que ele próprio desenvolve ao longo da narrativa.
Há como que uma inadequação entre a leitura histórica que o autor faz do quadro
social do qual emergiu o Cabeleira e a sua representação a partir de um prisma
moralizante. Gil escreve que:
[...] essa consciência dos possíveis motivos sociais [...] do destino
de violência e brutalidade do protagonista e seu grupo somente consegue se
explicitar do “lado de fora” da representação ficcional. É uma consciência
histórica do problema que não consegue se transformar em consciência
literária. (GIL, 2020, 183)
A identificação que Távora faz, ainda que de maneira difusa, do proceder do
poder oficial como sendo “bárbaro” em seu exercício da violência estatal sobre aqueles
prejudicados pelas circunstâncias, se não criadas, toleradas por esse mesmo Estado,
remete, irresistivelmente, às formulações de Euclides da Cunha em sua obra máxima, Os
Sertões (1902). Não só há uma espacialização bem delimitada entre as expressões da
civilização e da barbárie que é comum aos dois livros, mas essa mesma divisão é
desafiada no interior dessas próprias narrativas a partir da problematização dos
condicionantes que levaram às suas respectivas situações de “barbárie” e o
reconhecimento das ações “bárbaras” daqueles alinhados sob o estandarte da
“civilização”.
Távora pode mesmo ser considerado um precursor de Euclides da Cunha, ao
menos no sentido disposto por Jorge Luis Borges em seu texto “Kafka y sus precursores”
(1979), no qual ele defende que a percepção da influência de um autor mais antigo sobre
outro mais novo parte necessariamente de um ponto de vista centrado neste, que
estabelece um parâmetro ao qual seus leitores recorrem para identificar retroativamente
uma rede de influências, de forma que “[...] cada escritor cria seus precursores. Seu
trabalho modifica nossa concepção do passado, como há de modificar o futuro”
99
(BORGES, 1979, p. 49, tradução nossa)34. Assim, o que se dispõe como sendo comum
entre O Cabeleira e Os Sertões só o é a partir de uma perspectiva anacrônica cuja ótica
se centra antes em Euclides da Cunha do que em seu pretenso precursor.
É a partir dessa perspectiva, portanto, que se poderia alinhar Franklin Távora ao
que Nísia Trindade Lima chama de uma “sociologia euclidiana”, que “[...] inverte o sinal
positivo atribuído ao litoral e às tendências modernizantes”, tratando-se “[...] da leitura
do dualismo litoral/interior, à luz da oposição entre civilização de copistas e civilização
autêntica”, transformando-se “[...] em uma perspectiva intelectual sobre a sociedade
brasileira” (LIMA, 2013, p. 271). Esta noção teria sido defendida por Guerreiro Ramos,
que a associou a diversos autores tanto anteriores quanto posteriores a Euclides da Cunha,
e que corresponde confortavelmente às formulações de Távora sobre a “influência
estrangeira” e o “Brasil verdadeiro”.
Em função disso, o já discutido estabelecimento do sertão enquanto cronotopo
ao longo da história do Brasil, consagrado sobretudo por Euclides da Cunha, assume uma
significação ainda mais ampla e diversificada quando situada dentro da obra de Távora.
Não se trata tão somente da distância historicamente construída entre a sociedade que se
desenvolveu no litoral e a que deixou de se desenvolver no interior, mas, assim como a
tríade formada pelos topos litoral, zona da mata e alto sertão no romance trata, de forma
subjacente, do estabelecimento dessa relação em paralelo com outra equivalente em
escala nacional: o sertão como espaço do atraso para o litoral pernambucano como o
Norte como um todo o era para a corte.
Essas relações se estabelecem como fractais, e expressam em escalas diferentes
essa mesma tensão que estrutura a lógica dual reiterada por Távora em suas diferentes
formas ao longo de seus romances, estudos e peças de opinião, sobretudo n’O Cabeleira.
Mesmo n’Os Sertões, essa identificação da região Norte como um grande sertão está
presente na descrição da chegada das tropas que convergiam para a Bahia vindas de
diversos pontos mais ao sul:
É que, generalizando-se de um conceito falso, havia no ânimo dos
novos expedicionários uma suspeita extravagante a respeito das crenças
monárquicas da Bahia. Ali saltavam com altaneria provocante de triunfadores
em praça conquistada. Aquilo, preestabelecera-se, era um Canudos grande. A
velha capital [...] aparecia-lhes como uma ampliação da tapera sertaneja.
(CUNHA, 2019, p. 508).
34 No original: “[...] cada escritor crea sus precursores. Su labor modifica nuestra concepción del pasado,
como ha de modificar el futuro”.
100
A noção reproduzida por essas tropas, a partir da qual elas tomam toda a Bahia
pelo “outro” incivilizado a ser combatido, não é exclusiva do momento histórico retratado
por Euclides da Cunha, sendo tão representativa dos estereótipos pelos quais toda a região
nordestina é tomada hoje quanto o era da depreciação que o Norte sofria aos olhos da
corte nos tempos de Távora. O fato é que as discrepâncias regionais entre o Norte e o Sul
do país perduram, e, enquanto assim o for, Távora reterá sua atualidade.
101
Conclusão
A oposição entre cidade e campo em O Cabeleira é representada, sobretudo,
enquanto expressão da dicotomia civilização x barbárie, esta mesma composta no
romance por uma gradação que vai do litoral, passa pela zona da mata e chega ao alto
sertão. A despeito disso, a cidade, na perspectiva desenvolvida por Távora, não se
apresenta como uma representação infalível do triunfo da civilização sobre a barbárie —
talvez pela distância que o tempo dialógico guarda com o autor, fazendo-se sentir na
brutalidade à qual Távora condiciona sua representação do período colonial —
apresentando-se antes como o espaço privilegiado do exercício da lei estatal, de uma
autoridade oficial, nesse caso tão bárbara, ou até pior, à luz de sua pretensa superioridade,
quanto a violência associada ao sertão.
Ademais, a cidade parece servir no romance antes para situar histórica e
geograficamente a narrativa, o que é feito a partir da permanência gótica de elementos do
período batavo, em relação ao tempo diegético e do período colonial em relação ao tempo
do autor. Isso se faz sentir na meticulosa descrição das ruas, pontes, e edifícios históricos
que compõem as longas descrições da vila do Recife e seus arredores.
Esse espaço aparece, sobretudo, como um contraponto vago ao arcabouço
imagético mobilizado por Távora na composição do sertão, este sim mais robusto. Isto
talvez se dê em parte pelo fato de o autor entender que à época a cidade pouco destoava
do campo, o que o leva a reservar uma parcela maior do desenvolvimento da ação a esse
recorte espacial e às personagens associadas a ele.
O campo, por sua vez, toma forma como o lugar por excelência das tradições
populares, oferecendo, ao longo da narrativa, um contraponto não à cidade do Recife
presente no livro, mas à soma das vivências associadas ao urbano nos tempos de Távora.
É o lugar em que o homem coexiste com uma natureza ostensiva e potencialmente
perigosa, posto que assombrosamente desabrida fora das fronteiras estreitas e bem
demarcadas dessa civilização incipiente, regida por padrões morais pretensamente
superiores àqueles usados nas urbes e que foram perdidos em função da passagem do
tempo.
Já o sertão se apresenta, num primeiro momento, como a vegetação fechada da
zona da mata, a natureza luxuriante e desabrida na qual os bandidos se arvoram para se
furtar das leis dos homens e de deus, a fim de instituir uma sociedade paralela regrada
pela lei do mais forte, a lei da selva. O sustento dos criminosos provém do exercício da
102
violência sobre os demais que produzem riqueza e alimento, por isso não subsistem em
um espaço que aparece como desdobramento deste primeiro: o alto sertão, o sertão da
seca, em que não há quem roubar nem natureza para lhes suster.
Nesse contexto opera-se uma inversão, e a única forma de subsistir é transformar
o espaço por intermédio do trabalho, algo de que homens como Cabeleira são incapazes.
O exercício do trabalho assume aqui um caráter civilizatório, e a incapacidade de exercê-
lo equivale à submissão completa ao meio.
É por isso que no sertão, um espaço não transformado pelo trabalho e
abandonado pela autoridade pública, portanto não “civilizado”, institui-se um conjunto
de normas sociais próprias, que o configuram como um espaço regido pela própria lei da
natureza. Diante disso, a sociabilidade pautada pela violência que se exerce no sertão é
situada no romance como um produto do meio.
A captura de Cabeleira acontece no canavial, espaço que corresponde à natureza
transformada pelo homem. Mesmo ali, ele só é alcançado depois da queima da cana.
Em nível simbólico, é como se o Cabeleira, esse homem tornado um bárbaro
anacrônico pela própria ingerência da sociedade sobre si, fosse justiçado às custas dessa
mesma organização social que o excluiu. Em outra instância, a associação entre a queima
da cana e a captura do Cabeleira aponta para a ruína dos alicerces dessa sociedade
tradicional nortista, que se curva à marcha inexorável do tempo e condena essa figura
folclórica às custas de sua própria história.
Dessa forma, a solução violenta que o Estado propõe para o Cabeleira, a pena de
morte, é exposta no romance como sendo muito mais bárbara, posto que executada por
homens ilustrados contra quem justamente foi tornado daquela forma devido às condições
criadas por uma sociedade pretensamente esclarecida e civilizada. Essa ótica remete ao
posicionamento de Euclides da Cunha sobre a Campanha de Canudos expressa em seu
Os Sertões, cujas problematizações sobre a condição sertaneja já haviam sido levantadas
por Távora.
Para além do diálogo implícito — quando não debate aberto — com a obra de
Alencar, o pensamento de Távora convida o leitor que se permita o anacronismo ao
estabelecimento de outros paralelos com esse autor paradigmático na construção literária
do discurso sobre o sertão. Trata-se de uma relação pautada nos preceitos de Borges em
relação aos possíveis precursores de Kafka, que só poderiam ser reconhecidos como tais
em retrospectiva quando comparados a ele, da mesma forma que Távora, enquanto
representante exemplar do que se convencionaria chamar de sociologia euclidiana, só
103
possa ser identificado com tal corrente de pensamento, que só se afirmaria anos depois de
sua morte, a partir de uma relação dialógica cuja perspectiva esteja centrada em Euclides
da Cunha e cujos padrões só possam ser reconhecidos retroativamente em Távora.
Essa relação permite o reconhecimento de padrões na organização do pensamento
do autor que encontram eco não só n’Os Sertões, mas em todo arcabouço imagético sobre
o espaço sertanejo que se cristalizou a partir dessa obra. Távora, em sua antecipação da
tensão fundamental do livro de Euclides da Cunha, abrange a significação da dicotomia
sertão x litoral para a desigualdade no desenvolvimento regional entre o Norte e o Sul do
país, questão que é o cerne nevrálgico de sua escrita e que permanece posta ainda nos dias
de hoje como uma problemática não superada.
É nesse sentido que o sertão de Távora se afirma como sendo múltiplo, por
apresentar interseções e diálogos entre demandas de diferentes vozes subjugadas.
Interessa, portanto, a formulação perene e pioneira que ela teve em nível literário com
Távora, precedente que ensejou alguns dos voos mais altos da literatura brasileira.
104
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outubro de 1871.