Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Economia Desenvolvimento Socioeconômico da China Alunas: Beatriz Ferrari, Fabianna Bacil e Larissa Losanoff Novos Caminhos da Proteção Social Chinesa 1 Introdução A China é o país mais populoso do mundo, com 1,36 bilhão de habitantes, o que configura quase um quinto da população mundial. É a segunda maior economia do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, tendo registrado uma taxa anual média de crescimento de 9,8% nas últimas três décadas. Em 2009, apesar da grande crise econômica internacional, a China obteve uma taxa de crescimento de 8.7% e superou pela primeira vez o PIB per capita dos Estados Unidos (NBS, 2010). O crescimento econômico chinês se destaca não apenas pela velocidade acelerada em que ocorre, mas também por ser alcançado a partir de um modelo singular, denominado "socialismo de mercado". Esta nação apresenta diversas características culturais, econômicas e políticas únicas, o que a torna um país extremamente interessante para ser objeto de estudo de políticas públicas e seu impacto social. Gráfico1: O Crescimento do PIB Chinês
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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Economia
Desenvolvimento Socioeconômico da China
Alunas: Beatriz Ferrari, Fabianna Bacil e Larissa Losanoff
Novos Caminhos da Proteção Social Chinesa
1 Introdução
A China é o país mais populoso do mundo, com 1,36 bilhão de habitantes, o que
configura quase um quinto da população mundial. É a segunda maior economia do
mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, tendo registrado uma taxa anual média de
crescimento de 9,8% nas últimas três décadas. Em 2009, apesar da grande crise
econômica internacional, a China obteve uma taxa de crescimento de 8.7% e superou
pela primeira vez o PIB per capita dos Estados Unidos (NBS, 2010). O crescimento
econômico chinês se destaca não apenas pela velocidade acelerada em que ocorre, mas
também por ser alcançado a partir de um modelo singular, denominado "socialismo de
mercado". Esta nação apresenta diversas características culturais, econômicas e políticas
únicas, o que a torna um país extremamente interessante para ser objeto de estudo de
políticas públicas e seu impacto social.
Gráfico1: O Crescimento do PIB Chinês
O desenvolvimento da China, apesar de ter retirado milhões da situação de
extrema pobreza, tem sido acompanhado pelo aumento da desigualdade social, ainda
mais acentuada na comparação entre os trabalhadores rurais e urbanos, uma vez que a
política de desenvolvimento chinesa enfocou majoritariamente a economia urbana e
seus benefícios sociais são fortemente separados por região. A desigualdade crescente,
que acarreta diversos problemas e movimentos sociais, explicitou a necessidade da
revisão das políticas sociais, o que perpassa diversas questões, como, por exemplo, os
investimentos em educação, política de proteção ao trabalho, política voltada
diretamente ao trabalhador migrante e salário mínimo (Medeiros, 2008).
Para Wang (1997), a emergência de múltiplas crises sociais foi resultado do
avanço da modernização, pautada apenas na eficiência e no avanço do mercado de
organização, tendo gerado o aumento da desigualdade social e obstáculos à
democratização política. O estudo e a discussão das mudanças nas políticas sociais
chinesas é portanto de suma importância para o melhor debate acerca da questão da
modernização no país. Seguindo tal raciocínio, Juwei (2010) aponta que o
desenvolvimento do Sistema de Proteção Social chinês é o próximo passo no avanço do
plano de modernização do Partido Comunista Chinês (PCC). A escolha desse objetivo
precisa ser entendida em seu contexto plural, analisando as questões política, econômica
e social recentes.
O esforço para montar e expandir um Sistema de Proteção Social adaptado às
peculiaridades do país e que consiga suprir as necessidades de seus habitantes é um
grande desafio ao PCC. Neste sentido, torna-se interessante o estudo da construção de
tal sistema. Assim, o objetivo do presente trabalho é analisar tal construção a partir da
análise do modelo existente anteriormente, do contexto que gerou os impulsos para sua
revisão e modificação, o estudo do sistema estabelecido atualmente, como se dá seu
funcionamento, gargalos e perspectivas futuras.
2 Antecedente histórico
2.1 Primórdios da proteção social na China: Período Maoísta
Com a vitória do movimento comunista e criação da República Popular da China
em 1949, iniciou-se a implantação de uma economia socialista no país. Sob a liderança
de Mao Tsé-Tung, a China realizou uma transformação econômica estrutural, passando
a ser um país industrializado, embora tenha como peculiaridade a simultânea não
urbanização. Assim, a política de Mao foi responsável por elevar os indicadores sociais
(saúde, alfabetização, alimentação) básicos do país, garantindo ainda via forte controle
de migração a baixa desigualdade entre campo e cidade.
O primeiro plano quinquenal (1952-1956) visava o estímulo ao investimento, de
forma a alcançar o desenvolvimento econômico. Tal plano obteve resultados e os
investimentos, com ampla predominância dos investimentos nacionais, passaram de
10% do PIB em 1952 para 36,5% em 1978. Houve ainda a preocupação de impedir a
centralização deste processo, permitindo uma industrialização bem dividida
territorialmente. Conforme abordado, esta industrialização não foi acompanhada pela
urbanização: a população rural em 1950 consistia em 88,8% da população, passando
para 85,6% em 1982, resultado do forte controle migratório. O hukou, registro que
mostra a regionalidade de seu detentor, era um dos instrumentos para tal, além da
condicionalidade do acesso às cotas de alimento às comunas de origem da população
rural. Nas cidades, a distribuição de alimentos se dava a partir de cupons, também
especificados pela naturalidade regional. Assim, já se colocava um grande entrave aos
movimentos internos de migração (Nogueira, 2011). Por conseguinte, a concessão e
abrangência dos benefícios sociais era – e ainda hoje permanece sendo – muito
condicionada à região à qual o trabalhador relacionava-se via hukou, havendo grandes
diferenças entre o campo, onde a proteção se dava via comunas rurais, e as áreas
urbanas, em que havia o danwei.
2.1.1 Comunas Rurais
Conforme afirma Nogueira (2011), o período maoísta pregava a premência do
campo, dando-se prioridade ao desenvolvimento agrário. Estabeleceu-se a eliminação
da propriedade, o que levou à redistribuição da terra e consequente redução da
desigualdade; e a criação do sistema de comunas rurais. As comunas rurais consistiam
em unidades autônomas de produção rural, cujo objetivo era consistir em unidades
autossuficientes. Elas eram o instrumento utilizado para suprir as necessidades da
população da região em que se localizava, devendo ser capaz de fornecer alimentos,
serviços e produtos industriais (a partir da produção de indústrias de pequena escala).
Desta forma, era o sistema de comunas rurais era o que provinha a "proteção
social" aos trabalhadores rurais no período maoísta, provendo segurança alimentar,
serviços médicos e educação pública a mais de 80% da população chinesa, o que
garantiu a melhoria dos indicadores sociais durante essas décadas. Entretanto, é preciso
ressaltar que tais proteções sociais não eram completas ou muito eficientes, uma vez que
a pouca integração entre tais unidades limitava a abrangência das respectivas produções
e dos serviços oferecidos.
O sistema de comunas também era um entrave ao crescimento, uma vez que a
valorização da autossuficiência minava a formação de um sistema integrado que se
completasse e viabilizasse a maior diversificação da produção, que era muito limitada
neste período. A produtividade agrícola estagnou, o que teve resultados desastrosos. Em
1959 eclodiu na China o que ficou conhecido como "A Grande Fome", que perduraria
até 1961 e ocasionaria a morte de parcela relevante da população. Este episódio resultou
da combinação de desastres naturais, como inundações, com decisões políticas errôneas
tomadas na época.
2.1.2 Danwei
O danwei consiste em uma unidade de trabalho estatal que provêm serviços de
proteção social de forma a suprir as necessidades básicas de seus trabalhadores.
Resumidamente, o danwei resultava da política maoísta de pleno emprego e proteção
social nas cidades e garantia à China a peculiaridade de ter baixas taxas de desigualdade
urbanas, em oposição às taxas registradas na região rural (Nogueira, 2011).
Conforme explicado por Qing Lai, Yu Xie e Xiaogang Wu (2009), os
acadêmicos chineses divergem quanto aos primórdios do sistema de danwei: alguns,
como Lu e Perry, creditam sua origem ao movimento comunista da China ou à cultura
corporativista do período republicano. Outros, entretanto, analisam o danwei como
existente desde o período imperial, sendo atualmente a "encarnação moderna" do
sistema burocrático de então, no sentido de que, assim como outrora o papel de
intermediário entre imperador e população era representado pela burocracia estatal, na
China maoísta o danwei intermediava as relações entre governo central e povo. Desta
forma, muitos dos elementos morais, políticos e econômicos formadores do danwei pré
1978 podiam ser encontrados no Império, quando o desempenho dos burocratas era
avaliado pelo critério de eficiência na provisão de bem estar à população. Nylan (1996)
afirma que: "The ideal official was someone considered to be a true 'father and mother'
of the people" (Nylan in Lai, Xie e Wu, 2009).
Antes das reformas de 1978, o danwei abrangia praticamente todas as
necessidades dos trabalhadores urbanos, sendo comparável aos Estados de bem estar
social europeus mais desenvolvidos. Praticamente todos os empregados das cidades
eram organizados como membros de um danwei, que tinham múltiplas funções
econômicas, sociais e políticas, englobando desde o suprimento das necessidades
materiais básicas ao provimento de serviços, fornecimento de status, oportunidades de
crescimento na carreira e mobilidade social. Os trabalhadores e suas famílias eram
fortemente dependentes do danwei para a provisão de recursos materiais, fenômeno este
que passou a ser denominado organized dependency.
Os danweis, entretanto, não eram uniformes. Neste período, os salários dos
trabalhadores eram fixados pelo governo, que os estabelecia de acordo com os critérios
de tempo de serviço, status e posição administrativa. Assim, as unidades de trabalho não
tinham muita liberdade para recompensar em dinheiro seus empregados. Desta forma, a
desigualdade entre danweis se manifestava não na forma de salários monetários, mas
sim em termos dos benefícios oferecidos. Aqueles mais próximos do governo (as
agências estatais, por exemplo), tinham prioridade na obtenção de recursos do governo,
conseguindo mais casas e cupons subsidiados. Por conseguinte, quanto mais alto o
danwei estivesse na hierarquia administrativa estatal, mais poder de barganha ele tinha
com os planejadores centrais, logo mais recursos materiais esta unidade detinha para
prover bens e serviços aos seus trabalhadores.
Assim, a China maoísta apresentava elementos paradoxais. Embora o sistema de
comunas tenha conseguido avanços, a ênfase extrema à independência e
autossuficiência de cada uma levou ao fomento de uma estrutura econômica celular
caracterizada pela baixa especialização de cada unidade e consequente ineficiência.
Houve a estagnação da produtividade agrícola (embora a renda do campo tenha
continuado a crescer), enquanto o aumento da produtividade nas indústrias não se
traduziu em um aumento similar nos salários reais dos trabalhadores urbanos. Desta
forma, foi criado um gargalo no crescimento chinês e houve um aumento da
dependência externa.
Resumidamente, o período maoísta promoveu a redução da desigualdade na
China, via eliminação da renda da terra e industrialização nacional, além de ter
conseguido alcançar a melhoria dos indicadores básicos de bem estar. Os problemas
econômicos, entretanto, significaram a piora das condições de vida e desequilíbrio entre
o desenvolvimento industrial e o desenvolvimento agrícola.
2.2 Transição e desmantelamento
Em 1966 houve a Revolução Cultural (1966-76), que abriu um vácuo de poder
significativo na estrutura do Partido após o expurgo de diversas lideranças. Com a
morte da chamada “velha guarda” do PCC na segunda década de 1970 e do próprio Mao
em 1976, houve a mudança não apenas da liderança do partido, mas também a política
econômica adotada, que se diferenciou muito de sua anterior. No período maoísta, a
ênfase econômica era dada à agricultura e, apesar de todos os problemas deste período,
os trabalhadores rurais, que representavam a maior parte da população, contavam com
um sistema de apoio social, tendo acesso à educação e saúde. Após 1978, quando houve
a transição e uma revisão das políticas do mesmo, o sistema de assistência existente até
então foi se desintegrando gradualmente. Esta alteração do modelo de crescimento,
passando para um no qual a igualdade social foi relegada ao segundo plano, explica-se
pela situação econômica difícil na qual a China se encontrava em 1978, o que tornava
premente a necessidade de reformas. Assim, o crescimento econômico consistiu na
prioridade nacional, sendo a direção na qual todos os esforços do governo se
concentraram, sendo iniciada a transição para uma economia socialista de mercado.
Houve, então, a mudança de enfoque: se antes, para Mao, o essencial era o setor
rural, Deng Xiaoping, e a nova guarda do PCC acreditavam que o crescimento
econômico precisava ser liderado pela ciência, tecnologia e desenvolvimento das
indústrias. O slogan deste período, não por acaso, era das “quatro modernizações”,
abarcando a agricultura, indústria, ciência e tecnologia e defesa nacional.
Neste contexto, a modernização da agricultura teve grande relevância no sentido
de aumentar sua produtividade. Essa política teve um grande sucesso, sendo responsável
por uma impressionante redução da pobreza, de modo que a população que vivia na
pobreza caiu de 53% para 8% entre 1981 e 2001 (Chen et al., 2006). Nos últimos 30
anos, essa redução foi equivalente à saída da pobreza de cerca de 500 milhões de
pessoas.
Entretanto, após essa primeira fase a ênfase foi dada à indústria, por meio de
medidas que buscavam principalmente estimular o investimento na China. Neste
sentido, as reformas significavam uma "redução" do papel do Estado, sendo respeitada a
orientação do mercado. Novamente, tal política foi muito bem sucedida, sendo por sua
vez responsável pelo grande crescimento econômico apresentado pela China. Em
termos sociais, contudo, esta mudança significou que os moradores de áreas rurais
passaram a representar uma parcela da população deixada ainda mais à margem das
benesses que esse crescimento econômico trouxe. As reformas econômicas não
priorizavam a distribuição da renda, mas sim seu crescimento em si. A desigualdade
rural-urbana traduzia-se (e era consequência) ainda no acesso desigual aos benefícios
sociais.
Conforme abordado anteriormente, as comunas rurais eram o instrumento que
concedia certo nível de proteção social aos trabalhadores rurais durante o período
maoísta. Embora seja preciso ressaltar que tal sistema não era perfeito e que a proteção
concedida era mínima (no sentido de que as comunas eram deficientes em diversos
aspectos), a população dessas regiões estava assistida (Medeiros, 2011).
A partir das reformas do final da década de 1970 e começo da década de 1980, o
sistema de comunas foi gradualmente desmantelado e substituído pelo sistema de
produção agrícola familiar. No novo modelo, a terra, cuja propriedade era estatal e
coletiva, era dividida pelo governo local entre as famílias da região, que ganhavam o
direito de produzir e construir nela por um período determinado de tempo, angariando
ainda maior independência na decisão de produção. Com a política de preços adotada
no início da modernização do campo, as famílias que batiam sua cota de produção
podiam vender seu excedente no mercado agrícola ou ao governo em condições
vantajosas. Por conseguinte, inicialmente a perda da proteção social foi menos sentida
graças ao aumento da renda. No entanto, gradualmente parcela maior desta renda passou
precisar ser utilizada para bancar os serviços antes garantidos, comprometendo o bem
estar dessas famílias, o que acarretou a emergência de manifestações.
Nas cidades, entretanto, ainda vigorava o sistema de danwei. Com o início das
reformas, o papel do danwei foi modificado, mas não chegou a ser reduzido
propriamente. Com a maior influência das orientações de mercado e a introdução de
empresas privadas e joit ventures, alguns serviços deixaram de ser oferecidos ou foram
limitados, como a provisão de casas e alimentos subsidiados. O danwei como um todo
deixou de ser tão abrangente, mesmo no referente a empresas e órgãos estatais, o que se
insere na lógica de maior controle orçamentário do governo.
No entanto, o danwei manteve um papel social muito relevante, tendo
permanecido sua influência na determinação da estratificação social urbana. O papel do
Estado, mesmo tendo sido relativamente reduzido, se manteve forte e os interesses
governamentais e empresariais andaram lado a lado. Assim, mesmo com a introdução
de agentes econômicos privados e estrangeiros (através das joint ventures), que se
expandiram rapidamente durante as reformas e representavam novas oportunidades aos
trabalhadores urbanos, o sistema de danwei foi mantido. Ao contrário do que ocorreu
em outros locais, os empregadores urbanos na China optaram por não reduzir ao
mínimo os custos trabalhistas pela redução dos benefícios, o que seguiria a lógica de
maximização de lucro e equilíbrio de mercado, de forma que os trabalhadores urbanos
continuaram a ser fortemente afetados pelas condições financeiras de seus danweis. Por
causa desta configuração, mesmo as unidades de trabalho privadas deste período são
denominadas de danwei, uma vez que elas mantiveram a concessão de benefícios aos
seus trabalhadores.
Com a reforma, foi concedida mais autonomia às unidades de trabalho estatais
individuais, logo, aos próprios danweis. O maior poder de decisão permitiu que uma
parcela maior do excedente produzido nas unidades estatais fosse transferida na forma
de benefícios aos trabalhadores. Uma forma utilizada para ampliar os benefícios era
através da possibilidade de criação de subsidiárias para gerar renda: era permitido que
as fábricas alugassem espaços estivessem inativos e começassem ali algum tipo de
negócio (como restaurantes e lojas, por exemplo), as chamadas "indústrias terciárias"
(negócios cuja posse era do danwei) ou san chan. Os lucros gerados por este meio,
embora se utilizassem se recursos materiais estatais, não eram remetidos ao governo,
sendo retidos pelas unidades.
O danwei, mais do que a unidade produtiva concreta, passou a ser uma
instituição, reproduzida na economia urbana como um todo, abrangendo o setor privado
e público, alcançando ainda algumas indústrias instaladas em vilas rurais. Novamente,
os danweis não eram uniformes: normalmente as firmas privadas priorizavam a
redistribuição de renda via aumentos de salários, enquanto os danweis estatais se
baseavam mais na concessão de serviços, além da divergência quanto à disponibilidade
de benefícios a serem distribuídos (Lai, Xie e Wu, 2009).
O PCC identificava no danwei uma oportunidade positiva de controle social;
como consequência, as fábricas funcionavam como o centro da formação e da
organização da comunidade nos sentidos social e cultural. A fonte de organização e
provisão de serviços básicos era baseada inteiramente no trabalho (Lu & Jerry, 1997).
Assim, mesmo modificado, o danwei permanceu um importante instrumento na
proteção social da China. Todavia, o danwei valia apenas para os moradores urbanos,
conforme abordado anteriormente. Nas regiões rurais, a "proteção social" se dava
através do uso da terra, que garantia subsistência básica, e da organização das
cooperativas coletivas, através das quais os agricultores contavam com um atendimento
de saúde em clínicas rurais. Isto resultou em um aumento da desigualdade entre as áreas
urbanas e as áreas rurais, uma vez que os moradores urbanos usufruíam de benefícios
bem superiores àqueles oferecidos aos residentes de áreas rurais.
Tal sistema de danwei, contudo, mostrou-se insustentável ao levar grandes SOEs
(State-owned Enterprises) à falência. Isso pode ser explicado pela fragmentação
excessiva do sistema, no qual cada empresa provia serviços aos seus empregados,
fazendo com que a provisão fosse ineficiente; além do peso econômico que os
benefícios significavam, principalmente para as empresas estatais, uma vez que o
danwei preconizava a distribuição de benefícios e não a maximização de lucros.
O final da década de 1980 foi marcada por problemas de ordens distintas:
econômicos (com destaque à inflação que o país apresentava), sociais e políticos, que
culminavam em uma crise de representatividade do PCC e na resposta em forma de
forte repressão via força por parte do partido1. Entendia-se que era premente a
necessidade de novas reformas econômicas que guiassem a China ao socialismo de
mercado e ao desenvolvimento desejado de forma a superar este momento de
instabilidade. Neste período houve ainda uma revisão de conceitos adotados no período
maoísta, com destaque à valorização do igualitarismo, característica do governo de
Mao, o qual foi marcado pela baixa desigualdade urbano rural, apesar dos problemas
econômicos que ocorreram.
A década de 1990 foi marcada por importantes reformas que objetivavam
transformar a economia chinesa em uma economia de socialismo de mercado. Dentre
essas reformas, destaca-se o processo de privatização, no qual o Estado chinês buscou
manter sua atuação em áreas estratégicas (por exemplo, energia, siderurgia.
aeroespacial, infraestrutura e militar) e privatizar as indústrias estatais (SOEs) e
coletivas (TVEs) dos demais setores. O resultado foi uma concentração de renda
acelerada, agravada ainda pelo modelo de privatização adotado em diversos casos,
denominado insider privatization, em que a venda era feita para os gerentes de suas
respectivas fábricas, sendo uma base para a geração de grandes fortunas. Outra
consequência foi o início do desmonte do danwei (que era garantido via empresa, sendo
que muitas foram privatizadas ou à falência), o que se inclui na lógica de revisão da
valorização ao igualitarismo.
O que o Estado chinês desejava era a formatação de um mercado de trabalho
cuja alocação de recursos fosse mais eficiente, contudo o danwei e a distribuição de
benefícios atrelada a ele era um obstáculo a mobilidade de trabalho necessária. Desta
forma, uma das mudanças mais importantes da reforma foi a quebra da ligação entre a
unidade de trabalho e a concessão de benefícios. Por exemplo, o setor de habitação foi
privatizado, cessando a concessão de casas subsidiadas que havia anteriormente no
danwei. O seguro de saúde e as pensões, também concedidos via danwei, foram alvo de
transformação, também sendo retirados da tutela da empresa.
1 É emblemático deste período o que ficou conhecido como "O Massacre da Praça da Paz Celestial" ou
"Massacre de 4 de junho", que encerrou uma série de protestos pacíficos que demandavam principalmente maior democracia e liberdade. No dia 4 de junho de 1989 quando um protesto pacífico, composto majoritariamente de intelectuais e estudantes foi reprimido com tanques e o exército, resultando em mortes (as estimativas variam entre 2.000 e 5.000 mortos) e muitos feridos (entre7.000 e 10.000, segundo a Cruz Vermelha). Fonte: <http://www.dw.de/1989-massacre-na-pra%C3%A7a-da-paz-celestial/a-567775 > Acesso em: 15 de junho de 2015.
A discussão do desmonte do danwei gerou muita insegurança entre os
trabalhadores urbanos, mas também uma forte resistência pela população. Em um certo
sentido, o danwei continha um elemento cultural e ideológico, pois presumia a ideia de
que a comunidade era responsável pelo "cuidado" com aquele trabalhador, no sentido de
garantir salário, bem estar e controle social. Assim, a possibilidade de esfacelamento
descontentou a população também por causa disso; a sociedade chinesa apresentou
resistência à adoção de um sistema trabalhista mais individualista.
Medeiros (2008) afirma que o grande crescimento chinês, baseado fortemente
nos investimentos público e privado, apesar de acompanhados por um processo de
queda da pobreza e mobilização social ascendente, resultou também no grande aumento
da concentração de renda. Este modelo de expansão econômica através de investimentos
e comércio favoreceu a acumulação privada por parte de capitalistas e trabalhadores de
maior qualificação do ambiente urbano, em detrimento dos trabalhadores assalariados
de menor qualificação, migrantes e do ambiente rural. Assim, esse crescimento
econômico foi acompanhado pela crescente desigualdade social, sendo caracterizado
por ser um desenvolvimento com “víeis” industrial, conforme enfatizado por Arjan de
Haan (2013). O mesmo autor aponta ainda que diversas áreas foram negligenciadas,
como a saúde, por exemplo. A atuação governamental objetivava fortemente o
crescimento, mantendo-se muito controlado os gastos na área social.
A necessidade de mudanças do sistema de proteção social chinês foi sentida
principalmente nas últimas duas décadas. Um dos sinais foi o alarmante aumento do
índice de Gini2, conforme demonstrado nos gráficos abaixo, que demonstram ainda a
desigualdade urbana-rural, impulsionada pelos distintos tratamentos dados a essas áreas,
conforme abordado anteriormente.
2 Índice de Gini: cálculo usado para medir a desigualdade social. O coeficiente varia de 0 a 1, sendo o 0
correspondente à completa igualdade e o 1 a completa desigualdade (http://desigualdade-social.info/indice-de-gini.html)