UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO ESCOLA POLITÉCNICA CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM ENGENHARIA URBANA MICHEL HOOG CHAUI DO VALE UM PROJETO URBANO COM PROGRAMA POLÍTICO MUNICIPAL: A Experiência do Arquiteto João Filgueiras Lima em Salvador na 1ª. Gestão Mário Kertész (1979-1981) Rio de Janeiro 2009
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
ESCOLA POLITÉCNICA
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM ENGENHARIA URBANA
MICHEL HOOG CHAUI DO VALE
UM PROJETO URBANO COM PROGRAMA POLÍTICO MUNICIPAL: A Experiência do Arquiteto João Filgueiras Lima em Salvador na
1ª. Gestão Mário Kertész (1979-1981)
Rio de Janeiro 2009
MICHEL HOOG CHAUI DO VALE
UM PROJETO URBANO COM PROGRAMA POLÍTICO MUNICIPAL: A Experiência do Arquiteto João Filgueiras Lima em Salvador na
1ª. Gestão Mário Kertész (1979-1981)
Trabalho de Conclusão apresentado ao CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM ENGENHARIA URBANA, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Especialista em Engenharia Urbana.
Orientador: Peter José Schweizer
Rio de Janeiro 2009
Ficha Catalográfica
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola Politécnica. Curso de Especialização em Engenharia Urbana
Um projeto urbano com programa político municipal: a experiência do
arquiteto João Filgueiras Lima em Salvador na 1ª. gestão Mário Kertész (1979-1981) / Michel Hoog Chaui do Vale – Rio de Janeiro, 2009
79 páginas. Trabalho de Conclusão – 2009
1. Projetos urbanos 2. Programa político municipal 3. João Filgueiras Lima,
Lelé I. Título
MICHEL HOOG CHAUI DO VALE
UM PROJETO URBANO COM PROGRAMA POLÍTICO MUNICIPAL: a experiência do arquiteto João Filgueiras Lima em Salvador na 1ª. gestão Mário Kertész (1979-1981)
Rio de Janeiro, 02 de julho de 2009.
___________________________________ Peter José Schweizer, D. Sc., UFRJ
___________________________________ Rosane Martins Alves, D. Sc., UFRJ
A Pedro e Clarice, Arthur e Ana Julia,
Gabriel, Afonso;
por um futuro mais equânime para todos.
À minha terra natal, Salvador, Cidade da Bahia.
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Prof. Dr. Peter José Schweizer, cujo envolvimento e intimidade com os temas do planejamento me estimularam a propor esse estudo de caso.
À Prof. Dra. Rosane Martins Alves, pelo cuidado e dedicação na condução cotidiana do Curso de Engenharia Urbana. Aos demais professores: Ângela Maria Gabriella Rossi e Fernando Rodrigues Lima, pela empenho na criação e coordenação do curso.
À Biblioteca da FAU USP, pelo acesso ao material bibliográfico de forma flexível e compreensiva.
Aos funcionários da Fundação Gregório de Matos, do Arquivo Municipal de Salvador pela atenção e gentileza no acesso ao material bibliográfico; aos funcionários da RENURB, pela disposição e receptividade.
Ao Prof. Dr. Paulo Fábio Dantas Neto, pelo material bibliográfico disponibilizado.
Aos colegas, profissionais da área, pelo estímulo constante no debate dos temas caros a esse trabalho, em especial à amiga Camila Gui Rosatti, por expressar as questões pertinentes de maneira tão vigorosa e apaixonada; e Fernanda Gibertoni Carneiro, pelo cuidado exemplar na condução do serviço público e dos princípios de seu desenvolvimento.
À Diana Souza, pela carinho e disponibilidade em todos os momentos de apoio à pesquisa em Salvador.
À Lara Melo Souza, pela atenção e esmero na finalização da edição do trabalho.
Aos colegas da turma, especialmente Vanessa Rocha Siqueira, por tudo – pela amizade e companheirismo na perseverança para levar adiante o curso no Rio de Janeiro.
A Roberto Pinho, pela disponibilidade e abertura para clarear questões centrais da pesquisa.
A Lelé, pela atenção e generosidade com que me recebeu em Salvador e por sua dedicação e postura exemplares.
À Cynthia Regina L. Neves, pela continuidade no suporte e no fortalecimento dos propósitos de minha alma.
Aos meus amigos e minha família, especialmente meus pais, Julia e Remark, pelo apoio, presença, estímulo e amor irrestritos.
RESUMO
VALE, Michel Hoog Chaui do. Um projeto urbano com programa político municipal: a experiência do arquiteto João Filgueiras Lima em Salvador na 1ª. gestão Mário Kertész (1979-1981). Rio de Janeiro, 2009. Monografia (Especialização em Engenharia Urbana) - Escola Politécnica, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
Estudo de uma gestão municipal em Salvador (1979-81), no período que precede a democratização e traz em seu bojo a experiência de integrar de forma direta os projetos urbanos a partir de um programa político bem definido. É identificado um conjunto de antecedentes modernizantes na cidade que contribuem para a implantação do programa coordenado pelo antropólogo Roberto Pinho e pelo arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé. Diferenciação do programa implantado em relação a outras políticas pelo reconhecimento das demandas populares e utilização sistêmica da tecnologia desenvolvida por Lelé de pré-fabricação em concreto armado e argamassa armada nas diversas intervenções programadas e realizadas. Análise da conjuntura que possibilitou a experiência, dos princípios de planejamento e da definição do programa político com vistas ao alargamento das práticas de intervenção urbanas socialmente embasadas, com respaldo técnico e político.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 01 Centro Administrativo da Bahia. Fonte: KERTÉSZ, 1974. p. 23
Figura 02 Obras de construção do Centro Administrativo da Bahia. Fonte: KERTÉSZ, 1974.
p. 26
Figura 03 Ordem de conclusão das diversas unidades. Fonte: KERTÉSZ, 1974. p. 28
Figura 04 Edifício do Centro Administrativo da Bahia. Michel VALE, 2001. p. 29
Figura 05 Edifício do Centro Administrativo da Bahia. Michel VALE, 2001. p. 30
Figura 06 Edifício do Centro Administrativo da Bahia. Michel VALE, 2001. p. 33
Figura 07 Canais de drenagem. Fonte: SALVADOR, 1981. p. 50
Figura 08 Escadarias e muros drenantes. Fonte: SALVADOR, 1981 p. 50
Figura 09 Muros de arrimo. Fonte: SALVADOR, 1981 p. 51
Figura 10 Muros de arrimo – esquema de execução. Fonte: SALVADOR, 1981. p. 54
Figura 11 Rampas e escadarias drenantes – vias de pedestre. Fonte: SALVADOR, 1981.
p. 54
Figura 12 Canais retangulares de argamassa armada. Fonte: SALVADOR, 1981. p. 54
Figura 13 Maquete da Estação da Lapa. Fonte: SALVADOR, 1981 p. 56
Figura 14 Corredor Aquidabá - Sete Portas. Fonte: SALVADOR, 1981 p. 58
Figura 15 Estação de transbordo da rodoviária. Fonte: CONDER/PMS (arquivo), 1981.
p. 58
Figura 16 Corredor França – Mares, etapa IIIA: Terminal de Bairro. Fonte: CONDER/PMS (arquivo), 1981.
p. 58
Figura 17 Renurb - linha de materiais pré-moldados. SALVADOR, 1981. p. 58
Figura 18 Estacionamento de Água de Meninos. SALVADOR, 1981. p. 59
Figura 19 Bacias hidráulicas de Salvador. Plano de identificação das bacias prioritárias para receber investimentos de saneamento. Salvador, 1980.
p. 60
Figura 20 Projeto Vale do Camurujipe.PMS (folheto), 1983. p. 60
Figura 21 Peças pré-moldadas – galerias drenantes. SALVADOR, 1981. p. 61
Figura 22 Transporte manual – peso máximo 45kg. SALVADOR, 1981. p. 61
Figura 23 Via de pedestres – trecho em construção. SALVADOR, 1981. p. 61
Figura 24 Via de pedestres – utilização pela comunidade. SALVADOR, 1981. p. 61
Figura 25 Canais retangulares. SALVADOR, 1981. p. 62
Figura 26 Canais retangulares. SALVADOR, 1981. p. 62
Figura 27 Montagem na obra – encaixe das peças. SALVADOR, 1981. p. 62
Figura 28 Tranporte manual – peso máximo 90kg. SALVADOR, 1981. p. 62
Figura 29 Viga de coroamento – concreto moldado no local. SALVADOR, 1981. p. 62
Figura 30 Abrigos. SALVADOR, 1981. p. 63
Figura 31 Abrigos. SALVADOR, 1981. p. 63
Figura 32 Cabine telefônica e posto policial. SALVADOR, 1981 p. 63
Figura 33 Bancos para praça. SALVADOR, 1981. p. 63
Figura 34 Jardineiras. SALVADOR, 1981. p. 63
Figura 35 Ao centro, Kertész (E) e Lelé, apresentando maquete da Central de Delegacias. SALVADOR, 1981
p. 64
LISTA DE ABREVIATURAS
ACM Antônio Carlos Magalhães
BID Banco Interamericano de Desenvolvimento
BNDE Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
BNH Banco Nacional de Habitação
CAB Centro Administrativo da Bahia
CDS Coordenação de Desenvolvimento Social
CIA Centro Industrial de Aratu
CONDER Conselho de Desenvolvimento do Recôncavo/ Companhia de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Salvador
EBTU Empresa Brasileira de Transportes Urbanos
EPUCS Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador
EUST Estudo do Uso do Solo e Transporte
FMDU Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano
GEIPOT Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes
IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
OCEPLAN Orgão Central de Planejamento
PDDI Planos Diretores de Desenvolvimento Integrado
PDTU Plano Diretor de Transportes Urbanos
PLANDURB Plano de Desenvolvimento Urbano de Salvador
PMS Prefeitura Municipal de Salvador
PND Plano Nacional de desenvolvimento
RENURB Companhia de Renovação Urbana de Salvador
RMS Região Metropolitana de Salvador
TRANSCOL Plano de Melhorias do Transporte Coletivo
TRANSUR Companhia de Transportes Urbanos de Salvador
TRENSURB Estudo de Trens Urbanos
UITP União Internacional de Transportes Públicos
UnB Universidade de Brasília
USP Universidade de São Paulo
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 10
INTRODUÇÃO 14
1 ANTECEDENTES 16
1.1 Contexto e quadro precedente à experiência de Kertész/ Pinho/ Lelé 16
1.1.1 Um parêntesis histórico sobre a modernização da cidade 19
1.1.2 A identificação de um padrão de intervenção 21
1.1.3 A figura política concentradora 24
1.2 Ambiente técnico e político convergente 25
1.3 Desenvolvimento técnico-metodológico em Lelé 28
2 A EXPERIÊNCIA DA 1a. GESTÃO – projeto no papel, canteiro na fábrica e obras na cidade
33
2.1 Preexistência de projetos para a cidade 34
2.2 Programa de Governo e a constituição de um ‘núcleo estratégico’ na Administração
37
2.2.1 O ‘núcleo estratégico’ da Administração 40
2.3 O papel da circulação nos projetos 44
2.4 Projeto e produção: a RENURB 47
2.4.1 A Usina, o papel da tecnologia e seu princípio sistêmico 52
3 ANÁLISE GERAL E RESULTADOS: BALANÇO DA GESTÃO 56
3.1 Os projetos e as obras 56
3.2 O espaço da Administração e o ambiente político e social 64
3.3 Análises da negociação e implementação da política urbana 68
CONCLUSÕES 73
Esboço de uma organização metodológico-administrativa e projetual na gestão municipal
74
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 78
10
APRESENTAÇÃO
O presente trabalho se propõe realizar uma análise da integração entre
projeto urbano e programa político, entendidos nesses termos como,
respectivamente, a intenção de intervenção na cidade de maneira ordenada e
sistêmica, em que concorrem técnica e estética no desenvolvimento de espaços e
equipamentos públicos e de infraestrutura que qualifiquem a cidade para os seus
habitantes em um determinado horizonte de tempo; e o conjunto de diretrizes
administrativas que combinem proposição, negociação e implantação de um
conjunto de diretrizes através de programas e projetos específicos respaldados pela
comunidade, devidamente representada pelo governo local, protagonista de suas
decisões e fiscal de sua implementação.
Devido à amplitude que esses conceitos possam chegar a ter e à diversidade
de cenários possíveis para sua articulação, reconheceu-se a necessidade de se
estabelecer um caso específico para esse estudo, a fim de que se localizasse no
tempo e no espaço o conjunto de questões que essa articulação envolve e para que
se tornasse mais clara a identificação dos elementos que afetam essa relação, a
destacar: a tecnologia e a técnica; a política; a cultura; e a conjuntura histórica, que
possibilita a integração desses vários elementos.
Essas indagações surgiram a partir de um programa de estudo de Engenharia
Urbana, onde a combinação de diversas disciplinas de intervenção urbana –
infraestrutura (drenagem, transportes, habitação social, etc.) e gestão - está sempre
subordinada à decisão pela adoção desses parâmetros técnicos para a implantação
de um programa urbano; ou seja, a qualidade técnica dos projetos urbanos não
escapa ao ambiente político que negocia e decide pela sua implementação, o que,
11
por isso, torna o programa urbano diretamente dependente da qualidade do
ambiente político em que se realiza. A efetividade ensejada pelos projetos está
vinculada às circunstâncias políticas que concorrem em variados graus pela sua
execução. A crise gerada ao longo desse estudo, por conta da constatação contínua
dos entraves à implementação de bons programas de política pública urbana se
apoiavam principalmente nesse tópico: a freqüente divergência entre as opções
técnicas vislumbradas e as decisões políticas vigentes – sem, no entanto,
desconsiderar o cenário brasileiro onde na maioria das cidades inexiste estrutura
administrativa que contemple quadros técnicos mínimos para as demandas urbanas,
além da falta crônica de projetos e de uma cultura de planejamento que
retroalimente a administração pública.
Faz-se aqui um parêntesis para contextualizar o sentido da expressão
“opções técnicas”, onde aglutinamos diretrizes técnicas essencialmente combinadas
a paradigmas recentes de sustentabilidade social e ambiental, focadas no
atendimento das expectativas das pessoas1. Diferentemente das imposições
mercadológicas, essas opções buscam ao máximo a universalização do
atendimento das expectativas básicas humanas, distinta da exclusão competitiva,
injusta e insustentável de opções setorizadas em poucas classes ou pequenos
grupos sociais. Note-se ainda que esse conceito não exclui a definição do técnico
enquanto sujeito político e imbuído de viés ideológico, por não se tratá-lo como
agente autômato e descomprometido da sua realidade. Antes, explicita-se sua
condição política para que, tanto quanto os demais elementos das políticas
produzidas e das propostas elaboradas, seja ele também objeto de debate e análise
enquadrada no seu contexto.
1 A partir de Peter SCHWEIZER, “Uma nova arquitetura das organizações para o século XXI”, cópia digital, s/d.
12
Dentro desse quadro de questões e premissas, pode-se estabelecer o tema
específico desse trabalho: o esboço de uma política urbana a partir da experiência
do Arquiteto João Filgueiras Lima, Lelé, em Salvador, na 1ª. gestão do Prefeito
Mário de Melo Kertész (1979-81). A opção por este caso baseia-se, entre outros
aspectos a serem tratados ao longo do estudo, no avanço da pesquisa técnológica
que transpassa os projetos desenvolvidos pelo escritório público coordenado pelo
arquiteto e no entendimento do entrelaçamento de técnica com visão sistêmica no
trato com o espaço urbano, conforme também será demonstrado adiante. De pano
de fundo para esses dois fundamentos que sustentaram essa experiência está o
respaldo ideológico, pelo embasamento intelectual que posiciona o conjunto de
intervenções propostas no entendimento específico do papel da cultura de forma
abrangente e enquanto função integradora do sentido cotidiano e da elaboração
histórica da sociedade. Ou seja, uma leitura das proposições para a cidade a partir
de sua(s) cultura(s) e da combinação dos sentidos que sua consolidação no tempo e
desdobramento nas práticas cotidianas assumem para a construção do ambiente
contemporâneo urbano.
Nesse contexto, o foco do trabalho dar-se-á principalmente na 1ª. gestão,
tanto pelo caráter inovador dessa experiência, quanto pela tentativa de
implementação de um programa fruto de um planejamento prévio e do
desenvolvimento do seu projeto naquele momento, que caracterizaria uma ampla
intervenção na cidade, alinhada com o pensamento que a orientava.
Buscar-se-á analisar a concepção e implementação do programa, o arranjo
político que viabilizou dentro dos limites sua elaboração e o levantamento de
hipóteses para seu sucesso parcial e inconclusão das propostas iniciadas. A partir
daí deverão ser indicados alguns elementos básicos que orientem a coadunação de
13
projetos urbanos com programas políticos, cuja urgência se faz ainda maior com a
crescente urbanização do país, o estabelecimento de novos marcos legais para a
intervenção na cidade, o reconhecimento de novos limites ambientais e a
consagração da função social da cidade.
14
INTRODUÇÃO
O estudo inicia-se com a identificação do contexto que precedeu a gestão em
questão – principalmente do padrão de desenvolvimento da cidade e de sua
modernização – e ainda o começo da carreira de Mário Kertész, quando se viabiliza
a primeira intervenção do arquiteto João Filgueiras Lima – o Lelé – na Bahia. Essa
experiência inicial traz no seu bojo alguns elementos que são desenvolvidos ao
longo de toda a carreira de Lelé, incluindo aí suas experiências posteriores no setor
público em Salvador.
Em seguida é tratada a administração de Kertész à frente da Prefeitura
Municipal de Salvador (PMS), através do contexto favorável para o desenvolvimento
de peças de planejamento e da configuração de um núcleo articulado de gestão e
integração das políticas públicas. São expostas as estratégias do governo, suas
diretrizes, os objetivos, planos e projetos, coordenados sob uma ótica muito
específica de entendimento da cidade enquanto artefato cultural e da priorização dos
investimentos nas demandas reprimidas de infraestrutura e integração espacial.
Destaca-se o papel central da tecnologia construtiva na coordenação de toda a
política urbana e, por fim, faz-se um levantamento sintético dos projetos realizados,
do seu sentido específico e sua articulação com o todo – e se busca analisar
sucintamente o quadro social e político que levou àquela experiência.
A conclusão se faz a partir de um resumo dessa experiência cotejado com
algumas orientações gerais de implementação de processos de planejamento. Esse
rebatimento metodológico é feito com o intuito de explicitar a coerência e as
inovações apontadas por aquela gestão municipal, onde, dentro dos limites daquele
contexto, se equilibram as três plataformas principais da administração municipal: a
15
negociação política, o embasamento teórico e o desenvolvimento projetual.
Evidencia-se a capacidade de síntese desses preceitos pela aplicação prática da
pesquisa em arquitetura e urbanismo, balizada por uma construção teórico-crítica da
cidade e da sociedade, para a qual coube à articulação política viabilizar sua
pactuação e implantação.
16
1 ANTECEDENTES
Convém analisar o quadro precedente da 1a. gestão de Mário Kertész para o
entendimento das políticas desenvolvidas. Tal cenário concentra dois grupos de
experiências: a experiência inicial da parceria de Kertész e do arquiteto João
Filgueiras Lima, o Lelé, na construção do Centro Administrativo da Bahia (CAB),
quando foram utilizadas algumas propostas de implantação e edificação
embrionárias da tecnologia pesquisada por Lelé; e o desenvolvimento do
pensamento tecnológico e intelectual do grupo encabeçado pelo arquiteto e pelo
antropólogo Roberto Pinho. Em essência, esses dois tópicos fazem parte de uma
mesma linha histórica de relações, que abrange os pontos de contato entre aqueles
agentes que conceberiam os princípios teóricos, tecnológicos e políticos do sistema
de intervenções planejadas para a cidade de Salvador no período estudado e o
arranjo político-administrativo, configurado em uma conjuntura sóciopolítica da
capital baiana que permitiu essa situação.
1.1 Contexto e quadro precedente à experiência de Kertész/Pinho/Lelé
Primeiramente, o quadro da 1a. gestão arranja-se a partir da prefiguração do
prefeito indicado, Mário Kertész, no quadro político da época. Mário iniciara sua
carreira política muito jovem, aos 26 anos, como Secretário de Planejamento da 1ª.
17
gestão do Governador Antônio Carlos Magalhães2, quando esteve sob sua
responsabilidade a implantação do CAB3. Tomou posse como prefeito em 1979,
(...) quando era um quadro em ascensão na tecnocracia carlista. Afinando, como o próprio ACM, um discurso populista com a atmosfera política, já de transição democrática, Kertész asumiu uma atitude ofensiva e audaciosa (…). Sob o slogan deixe o coração mandar, procurou uma comunicação direta com o povo, sem fazer defesa do regime militar, embora enaltecendo sempre a figura do seu delegado a nível estadual.4
Em termos administrativos, privilegiou no seu governo o fazer, a execução de
obras, antes de uma continuidade no processo ordenador da gestão anterior (Jorge
Hage), que buscava modernizar a gestão e fazer a prefeitura assumir o papel de
planejar e controlar o desenvolvimento urbano e a acumulação imobiliária5. Nesse
sentido, sua gestão apoiou-se na existência de planos elaborados em nível federal –
que à época concentrava os projetos de planejamento e desenvolvimento urbano, a
exemplo das diretrizes dadas pelo II PND e do financiamento sistemático da
elaboração dos Planos Diretores de Desenvolvimento Integrado (PDDIs) país afora.
O discurso desenvolvimentista baseado no planejamento, concentrado pelo
governo federal, foi uma das marcas do período da ditadura militar, mas dava
prosseguimento ao aspecto modernizador da linha política vigente no país desde
pelo menos meados dos anos 1950. A matriz da modernização se dava pelo
processo de urbanização, alavancada pela estruturação da indústria no país e
especificamente em território baiano:
Aquém ou além do mito, a modernização soteropolitana processa-se desde os anos 50 e foi marcada por circunstâncias derivadas do golpe militar de 1964. Urbanização sem indústria e via migrações, desde os anos 40; industrialização transplantada, desde a chegada da Petrobrás à região, nos anos 50; estruturação técnica e planificação da administração estadual, a partir do governo Balbino (1955-59) e um ensaio de autonomização política da
2 Que conduzia a montagem de sua equipe de governo ressaltando critérios de competência técnica a la Médici..., cf. Paulo Fábio DANTAS NETO, “Autonomia política, governabilidade e governança em Salvador. Gênese da modernidade soteropolitana: realidade e mito de uma hegemonia”, in: Anete IVO, O Poder da Cidade: limites da governança urbana. Salvador, EDUFBA, 1999, p. 15. 3 M. Kertész ainda acompanharia ACM quando este exerceu o cargo federal de presidente da Eletrobrás, no intervalo em que ACM esteve afastado do poder estadual, anterior à sua indicação para prefeito. Idem, p. 20. 4 Ibidem, p.20. 5 Ibidem, p. 21.
18
capital, com a eleição e gestão de Hélio Machado (1954-59) foram eixos fundadores dessa modernização.6
As ideias desenvolvidas a partir das diretrizes centrais de planejamento
urbano compunham-se, portanto, com as ideias de modernização já elaboradas
anteriormente, desdobradas desde os ideais pregressos de higienização e
ordenamento e adiante, pela combinação de crescimento urbano, populacional e
desenvolvimento técnico que caracterizaria o século XX desde seu princípio, no que
tange a infraestrutura urbana. Para tanto, basta verificar que o grande símbolo da
modernidade urbana da capital baiana coincide com a implantação de um sistema
viário baseado em vias expressas construídas em vales saneados, cuja execução foi
iniciada por ACM quando governador (junto com Clériston Andrade, prefeito indicado
pelo próprio ACM), mas remonta a projeto preexistente, da década de 19407 (dentro
de um pacote de obras modernas que inclui ainda uma escola-parque, o Teatro
Castro Alves, o Hotel da Bahia, penitenciária, remoção de favelas e criação de
parques) e faz parte do desdobramento do crescimento da cidade e da costura de
sua articulação intra-urbana, insinuado desde meados do século XIX, principalmente
entre 1870 e 19008.
6 Anete IVO, op. cit., p. 13. 7 O projeto, desenvolvido pelo Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador – EPUCS, apresentava propostas para a solução de problemas em diversas áreas. Tinha a sua coordenação realizada pelo Engenheiro-geógrafo Mario Leal Ferreira, seguido pelo Arquiteto Diógenes Rebouças, e corpo técnico multidisciplinar, no período de 1943-49. Cf. “Mário Leal Ferreira: Um pioneiro do planejamento”, Revista Bahia Invest, versão digital do sitio eletrônico http://seplan.ba.gov.br/bahiainvest/port/perfil.php?find=versao002, visitado em 21-04-2009, 01h35. 8 Cf. periodização e investigação histórica de Consuelo Novais SAMPAIO, 50 anos de urbanização: Salvador da Bahia no século XIX, Rio de Janeiro, Versal, 2005 – donde “chega a ser surpreendente o esforço feito pelo Governo, em aliança com o empresariado, para deslanchar o processo de urbanização que se desenvolveu nessa segunda metade do século [XIX] - exigência da expansão do capitalismo comercial, da nova fase de industrialização que se inaugurava na Inglaterra e do próprio crescimento populacional da Província (…)”, p. 20.
19
1.1.1 Um parêntesis histórico sobre a modernização da cidade
O reconhecimento da gênese do planejamento ou mesmo a reconstituição do
processo histórico que levou a cidade a esboçar suas feições atuais remetem
principalmente ao papel político da capital no contexto mais amplo de sua integração
no cenário da Colônia e do Império e, posteriormente, da República. Esse
entendimento contextualizado não será aprofundado, mas percebido como central,
entre outros, das funções que a cidade assume ao longo de sua história. A
sobreposição e alternância das atividades administrativas e comerciais, refletidas na
ocupação simultânea dos seus dois principais pólos de expansão – a cidade alta e a
cidade baixa – expressam o processo de ascensão e decadência da capital baiana.
A informação desse processo é crucial para o entendimento do programa de
intervenção recente na cidade, principalmente naquele contemplado nos projetos
aqui estudados, dada a relação intrínseca estabelecida entre a cidade
contemporânea e a cidade histórica, através dos projetos propostos.
De fato, as alterações funcionais da cidade, a abertura dos portos com a
vinda da família real em 1808 e o desenvolvimento agrícola e comercial de Salvador
e seu Recôncavo, costuram-se conjuntamente através do crescimento da cidade e
da realização de obras públicas não apenas de traçado urbano, mas também de
infraestrutura, educação, cultura e paisagismo. Sob esse aspecto, destacam-se três
ciclos administrativos no século XIX: o governo do Conde dos Arcos (1811-1818) –
quando se faz o aterro da região do Comércio na Cidade Baixa e se propõe pela
primeira vez a mudança do Centro Administrativo da cidade, da Praça Tomé de
Souza para Itapagipe; o governo de Francisco Soares de Andrea (1844-1846) – com
grandes obras de urbanização em Itapagipe, contenção de encostas no Centro e
20
construção de ladeiras entre a Cidade Alta e a Cidade Baixa; e os governos de
Gonçalves Martins (1848-1852 e 1868-1871) – com abertura de vias na Cidade
Baixa, melhoramentos na Cidade Alta, a primeira avenida de vale, chamada Rua da
Vala (atual Baixa dos Sapateiros) entre outros melhoramentos. Nessa época foram
introduzidas também as primeiras linhas de bonde puxados a burro9.
Os preâmbulos do crescimento da cidade no século XIX e a enunciação de
obras de maior envergadura nesses três momentos atingem um ápice na
intervenção urbana do início do século XX nos governos de J.J. Seabra (1912-1916
e 1920-1924). É aí que se realizam obras pautadas principalmente em saneamento,
abastecimento e circulação viária que configuram um entendimento modernizador da
cidade para o século XX. É também o impacto dessas intervenções no tecido
histórico da cidade que vai recolocar os limites do desenvolvimento urbano para
além da paisagem consolidada do Centro da década de 1940 em diante. Isso porque
é nesse momento em que a afirmação do desenvolvimento urbano baseado na
abertura de espaços de circulação sobre o conjunto construído implica na demolição
de um grande conjunto de imóveis históricos, a destacar Catedral da Sé para a
abertura do Terminal de bondes no Centro, dentre diversos outros exemplos10. A
complexidade desse tipo de intervenção, com resistências variáveis, mas não nulas
na sociedade da época, dirige o crescimento da cidade na direção norte. É ainda
pelo sentido de incapacidade de o espaço urbano existente abrigar o funcionamento
da cidade moderna – mais do que isso, da região metropolitana em gestação –, com
suas demandas e escalas/intensidade de uso, a decadência das construções e a
substituição da população mais abastada por outra mais pobre nos bairros mais
9 Cf. Sylvia Maria Sant'Anna LUZ, Evolução Urbana da Cidade de Salvador, trabalho de graduação interdisciplinar, São Paulo, FAU USP, 1976, pp. 2-9. 10 Cf. Fernando da Rocha PERES, Memória da Sé, Rio de Janeiro, Ed. Macunaíma, 1974.
21
antigos que se busca deslocar a concentração das atividades urbanas, a
administração, os serviços e a avolumada demanda por habitação na direção de
áreas ainda não ocupadas ou de ocupação rarefeita, tanto no litoral quanto no miolo
da cidade, na porção centro-norte.
1.1.2 A identificação de um padrão de intervenção
Pode-se identificar, portanto, uma repetição da temática da modernização do
espaço urbano nos diversos níveis de poder e instâncias de planejamento –
municipal, estadual e federal – coerentemente alinhadas com as demandas do
capital, dos interesses de investimento e abertura para fluxo de mercadorias e
investimentos de economias centrais e de oligarquias locais, engajadas nesse
conjunto de interesses. Vale notar o papel central das atividades econômicas
estabelecidas em Salvador e como as suas transformações baseiam-se nessas
atividades. Isso porque o pequeno lastro industrial parece influir menos na
configuração espacial da cidade, em vista da incipiente industrialização do século
XIX, concentrada principalmente em Itapagipe, mas é tanto maior quando da
implantação, em meados do século XX, das industrias no Centro Industrial de Aratu
(CIA) e Pólo Petroquímico de Camaçari, já fora da cidade – mas dentro da nova
região constelar da cidade de Salvador: sua região metropolitana, definida em
meados dos anos 1970. Ou ainda, como a cidade se organiza no espaço intra-
urbano em função das atividades de comércio e serviços, além da habitação e
articula-se em relações de produção que extrapolam seu limite político-
administrativo em função das atividades industriais externas ao município – mas que
22
definem os limites metropolitanos dos quais é sede e orientam seu crescimento e
modernização a partir desse patamar de escala regional.
Desponta nesse processo o papel da intervenção urbana na adequação dos
espaços da cidade às suas funções administrativas e econômicas, e mais ainda da
primeira em função da segunda, do sentido de qualificação dos espaços públicos –
mesmo quando há participação do capital privado – para o incremento da circulação
e da ocupação desses espaços, pela ampliação dos mercados, e entre eles, o
próprio mercado de terras – a construção da localização dessas propriedades. É a
repetição de um processo vivido de diversas maneiras e com diferentes
condicionantes em outras capitais brasileiras: a orientação do crescimento da cidade
muito em função da ampliação do mercado da propriedade fundiária (e da
habitação)11. Sutilmente, mas não despercebido, ocorre o processo de crescimento
conforme vemos, atrelado às demandas modernas da cidade e à própria construção
do mercado de localização da propriedade urbana no século XX.
No caso, na segunda metade da década de 1960 e nos anos seguintes o
governo da Bahia voltou-se para o desenvolvimento de uma região por urbanizar: o
eixo Iguatemi-CAB, através de grandes investimentos. A ideia de modernização e
expansão urbana estava atrelada à criação de uma nova centralidade, um pólo de
negócios, que, ser por um lado tinha a intenção de abrir novas frentes de
investimento e atuação do mercado imobiliário, por outro se colocava como
alternativa de descongestionamento do centro tradicional, porém com a contribuição
colateral de seu esvaziamento funcional e aceleração de sua deterioração12.
11 Cf. Flávio VILLAÇA, Espaço intra-urbano no Brasil, São Paulo, Nobel e Lincoln Institute, 1998. 12 Cf. Paulo ORMINDO (org.), “Análise de Salvador segundo los três ejes tematicos”, relatório para o IV Seminário SIRCHAL – Sitio Internacional sobre La Revitalizacion de Centros Historicos de Ciudades de America Latina e del Caribe, Salvador, 2000, versão digital do sitio eletrônico: http://www.archi.fr/SIRCHAL/seminair/sirchal4/DIAGeixo3.htm, visitado em 21-04-09, 01h39.
23
As transformações mais recentes da metrópole evidenciam a concentração de funções em espaços urbanos cada vez mais reduzidos, e mais em espaços alternativos ao da formação histórica de Salvador. Disso decorre a concentração de pressões sobre a dotação de infra-estrutura de serviços urbanos, concomitante ao envelhecimento técnico e habitacional da própria cidade, em relação com as funções que lhe são atribuídas e que deve cumprir.13
Figura 01: Centro Administrativo da Bahia. Fonte: KERTÉSZ, 1974.
A percepção do processo histórico permite ainda outra leitura, condizente com
o real abandono do centro histórico e com a concentração de grupos sociais
marginalizados no seu perímetro14. Nessa interpretação, a opção por uma nova
urbanização não traz em seu bojo a integração com a cidade antiga; pretende antes
afastar-se dela e recomeçar o processo de urbanização “do zero”, ao gosto de um
ideário modernista planificador e tecnicista, alinhado – apesar de variados graus de
13 BAHIA (ESTADO), Plano Metropolitano de Desenvolvimento – PMD 1982, Secretaria do Planejamento, Ciência e Tecnologia (SEPLANTEC) e Companhia de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Salvador (CONDER), Salvador, 1982, p. 277. 14 Cf. Mônica WIPFLI, Intervenções urbanas em centros históricos: Estudo de caso cidade do Salvador, São Paulo, FAU USP, dissertação de mestrado, 2002, p.32.
24
divergência e incoerência – com o regime vigente. Em sentido oposto se dará a
atuação da Prefeitura no período imediatamente posterior – fim da década de 1970 e
1980 – com o foco na reestruturação, restauração e articulação do centro histórico
com a cidade contemporânea – a cidade moderna e a cidade real, periférica e
precária – através da recuperação de algumas de suas funções tradicionais e da
acessibilidade.
Se por um lado, o que se pretendia, como afirma o próprio Kertész:
não é a construção de uma nova cidade mas, através da influência polarizadora do Centro Administrativo, orientar e disciplinar a expansão urbana em escala metropolitana (…), resguardando para o presente e o futuro, o riquíssimo acervo histórico e artístico da primeira Capital brasileira;15
por outro lado, o que se efetivou foi a desarticulação entre Salvador e o seu
Recôncavo, baseada em outras relações econômicas, pela configuração urbano-
espacial das novas relações em estabelecimento por uma região metropolitana
nascente. Nessa conjuntura, o centro da cidade perde importância e sobrevive de
maneira instável apenas enquanto capital simbólico daquelas relações econômicas
(e culturais) em apagamento. Oficialmente, contemplavam a importância do seu
simbolismo; na prática, abandonou-se o seu conjunto em nome de uma nova
articulação urbana (e metropolitana) que se forjava.
1.1.3 A figura política concentradora
Esboçado esse quadro, compreende-se a concentração do ideário político de
modernização no sucesso da pessoa do prefeito e posteriormente governador
Antônio Carlos Magalhães; ele vai encarnar na segunda metade do século XX o
papel do administrador público que dá prosseguimento à modernização da cidade e
15 Cf. Mario KERTÉSZ, Centro Administrativo da Bahia, Estado da Bahia, 2a. edição, 1974, p. 03.
25
da tentativa de incluí-la em um circuito econômico amplificado através das
intervenções realizadas. Mais ainda: tentará, à sua maneira, fazer voltar em alguma
medida o prestígio e a importância pretérita da cidade no cenário nacional, na
maneira como caracteriza o conjunto de suas obras e de como negocia a atração de
investimento federal, disputado no páreo acirrado com cidades de destaque do
Sudeste ou mesmo do Nordeste16.
Sua postura é caracterizada como truculenta e carismática17, porém seguida
de pessoas com perfis menos exacerbados, como o do seu assessor – e sucessor –
Mário Kertész, que o acompanhara desde sua assunção como governador pela
primeira vez, em 1971. Compreende-se o caráter tecnocrático – e o sentido de
competência - que assinala as opções de coadjuvação ao perfil concentrador e
personalista de ACM. Daí a importância da seleção de quadros com perfil executivo
nas secretarias, a fim de levarem a cabo os ambiciosos projetos que o governador
encabeçava. Dentre eles, e ao lado do principal projeto – o plano de avenidas de
vale em execução – estava a elaboração e construção do Centro Administrativo da
Bahia (1973).
1.2 Ambiente técnico e político convergente
O projeto do CAB da maneira como foi realizado estava condicionado a
algumas circunstâncias. A definição do partido adotado e a consecução da técnica
empregada remontam ao encontro entre o Secretário de Estado de Planejamento – 16 Vale citar a facilidade de trânsito de ACM no meio militar da época da ditadura, onde não só cativou uma posição de destaque no âmbito estadual, como também pôde a partir daí incursionar em disputas com cidades do Sudeste pela atração de investimentos como o do Pólo Petroquímico de Camaçari, cf. Antônio RISÉRIO, Uma história da Cidade da Bahia, Rio de Janeiro, Versal, 2004, pp. 538-554, passim. 17 Cf. Ângela Ma. de A. FRANCO, “Não só de referência cultural (sobre)vive o centro de Salvador”, Pelo Pelô: história, cultura e cidade, Salvador, Edufba, 1995, in: P. F. DANTAS NETO, op. cit., p. 13.
26
o próprio Mário Kertész –, Roberto Pinho, articulador e idealizador de diversos
programas posteriores das gestões de Kertész e Lelé.
Figura 02: Obras de construção do Centro Administrativo da Bahia. Fonte: KERTÉSZ, 1974.
Essas relações baseiam-se tanto no acaso do encontro dessas
personalidades quanto no quadro mais geral de desenvolvimento intelectual e
político do país. Isso porque a conexão entre Kertész e Pinho vinha da infância de
ambos, quando Pinho fora colega do irmão mais velho de Mário, Eduardo Kertész,
então pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Pinho, por
sua vez, conhecera Lelé depois de sua ida para a UnB, em Brasília, onde
desenvolveu atividades de pesquisa em Antropologia e teve contato com alguns dos
principais realizadores da iniciativa de construir e implantar uma universidade na
nascente capital do Brasil. Desse encontro, surgiram parcerias duradouras entre
Roberto Pinho, que, enquanto antropólogo, conceituaria e orientaria a elaboração de
políticas públicas e culturais; Alex Chacon, desenhista industrial; Darcy Ribeiro, que
concentrou a concepção da própria universidade, entre diversas outras atividades
intelectuais e políticas; e Lelé – que havia ido trabalhar na construção de Brasília e
já se engajara no desenvolvimento de diversos outros projetos para a capital, vários
deles em parceria com Oscar Niemeyer, com uma pesquisa intensa em pré-
27
fabricação, culminando com o próprio projeto da universidade e sua atividade como
professor18.
O reencontro entre Kertész e Pinho se dera ao acaso, no retorno deste à
Bahia para a realização de um trabalho na área de cultura e patrimônio histórico19. A
relação entre Kertész e Lelé no desenvolvimento do projeto do CAB está ligada
ainda ao urbanista Lúcio Costa, autor do plano urbanístico sobre o qual seriam
implantados os edifícios projetados por Lelé e com quem este já havia trabalhado
em Brasília. Dessa maneira, um grupo de importantes pesquisadores e profissionais
articulava-se no cenário de desenvolvimento da capital do país e de alguns
rebatimentos de modernização que ocorriam em outras capitais, como Salvador. A
ocorrência desse núcleo de excelência, próximo ao poder central – que se
desdobrava já naquele período em regime militar – permitia esse ponto de contato
constituído pelo desenvolvimento, pela urbanização centralizada, pela crença
modernista na planificação totalizante20 e na ideia de construção de um país novo.
18 Lelé fora demitido da UnB em 1965; entre esse ano e 1970 trabalhou como autônomo, principalmente em obra, até conseguir superar as dificuldades e a falta de projetos para então montar seu escritório, que duraria até 1979: “Não fui banido, não fui preso, mas fiz parte de um grupo que foi meio marginalizado no período posterior ao de Castello Branco” - João Filgueiras LIMA (depoimento a Cynara Menezes), Memórias profissionais de Lelé, Rio de Janeiro/São Paulo, Record, 2004, p. 63. 19 Roberto Pinho havia saído de Salvador em 1961 para trabalhar junto a Agostinho da Silva na Universidade de Brasília. Já havia desenvolvido estudos de Antropologia e trabalhos nessa área e em Patrimônio Histórico, com o citado professor e Vivaldo da Costa Lima, com quem trabalha no inventário da cidade de Cachoeira para o IPAC-BA (Instituto de Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia). Cf. depoimento dado ao autor, em 12 de dezembro de 2008, em São Paulo. 20 As leituras sobre o caráter do plano de Brasília pendulam entre a não hierarquização e o autoritarismo, possibilidades do lugar da tábula rasa, essencial na proposição da nova capital, que caracterizariam a construção de novas relações espaciais, sentidos típicos do modernismo, cf. Guilherme WISNIK, “Modernidade congênita”, in: Arquitetura Moderna Brasileira, Londres, Phaidon, 2004; essa perspectiva do moderno repete-se na concepção do projeto do CAB (1973), mas a partir de sua leitura poderá se diferenciar a experiência posterior, foco deste trabalho, pela relação novo-antigo estabelecida nos projetos a serem tratados adiante e pela consciência de processo histórico em Salvador, conectando sempre o moderno ao passado. É, alias, simbólico que o reencontro entre Roberto Pinho e Mário Kertész se dê justamente quando o primeiro realiza um trabalho de levantamento de patrimônio histórico colonial e o segundo incumbe-se da gestão de um centro administrativo moderno para a capital baiana – e que por fim Pinho encabece um projeto mais amplo de articulação dessas duas facetas da cidade de Salvador nas gestões de Kertész como prefeito.
28
1.3 Desenvolvimento técnico-metodológico em Lelé
Nesse contexto, Lelé desenvolve o partido arquitetônico para o conjunto de
edifícios do CAB21, pelo exame do programa e interpretação do Plano Urbanístico
desenvolvido com base no estudo inicial de Lúcio Costa. A análise das
condicionantes de localização (limitantes de gabarito, relevo acidentado,
necessidade de grandes estacionamentos) orienta a implantação.
Figura 03: Ordem de conclusão das diversas unidades. Fonte: KERTÉSZ, 1974.
A generalidade dos programas e a diversificação dos setores da
administração pública somam-se para a determinação da extensibilidade dos
edifícios, que podem ser ampliados ou multiplicados a partir de um plano prévio.
Considera ainda o período disponível para execução das obras (18 meses) para 21 Os edifícios do CAB projetados por Lelé são os seguintes: Secretarias de Saúde, do Trabalho e Bem-Estar Social, da Segurança Pública, da Justiça, da Educação e Cultura, Igreja, Tribunal de Contas, Procuradoria Geral, Vice-Governadoria e Departamentos de Administração Geral, das Municipalidades e de Edificações Públicas. Outras edificações foram projetadas pela equipe de arquitetos da própria Secretaria de Planejamento, cf. Mário KERTÉSZ, Centro Administrativo, op. cit., cap. 9.
29
optar pela repetição de elementos construtivos através de um sistema de pré-
fabricação, com vantagens econômicas e de prazo. Por conta desses mesmos
requisitos opta por um sistema estrutural que favorece a flexibilidade das
instalações, com vistas ao incremento crescente de novas tecnologias de
comunicação, automação e ampliação de instalações. Por fim, antevê a variedade
de implantação dos edifícios na topografia acidentada local e propõe um sistema de
fachadas que valoriza a proteção das aberturas e a ventilação natural22.
Figura 04: Edifício do Centro Administrativo da Bahia. Michel VALE, 2001.
Elementos valorizados na determinação do partido:
- Implantação;
- Extensibilidade;
- Curto prazo para execução das obras;
- Flexibilidade das instalações;
- Proteção das fachadas e ventilação natural.
A partir dessas premissas estabelecidas, Lelé elabora um projeto
arquitetônico composto por:
- plataforma de concreto fundida no local;
22 Cf. Mário KERTÉSZ, idem, cap. 5.
30
- sistema pré-fabricado apoiado sobre as plataformas, formando pavimentos livres,
flexíveis e extensíveis;
- sistema de lajes penduradas na plataforma;
- sistema estrutural independente;
- sistema de vedação, ventilação e proteção térmica.
Figura 05: Edifício do Centro Administrativo da Bahia. Michel VALE, 2001.
Os edifícios acompanhariam aproximadamente as curvas de nível do terreno,
elevando-os sobre o sítio, liberando o solo e a paisagem, através de uma estrutura
com cargas concentradas e grandes vãos. Os eixos dos prédios teriam os pilares
alinhados com uma grande viga central que acumularia a função de dispor das
instalações com possibilidade de visitação e flexibilidade para alterações ou
acréscimos futuros. Dessa grande viga sairiam vigas transversais em balanço, onde
se apoiariam os elementos de vedação pré-moldados, que completariam o sistema
estrutural de apoio das lajes.
O sistema prefigurava a separação entre uma central de fabricação e a
montagem do sistema pré-fabricado, a partir de um planejamento prévio de projeto e
obra23. Esse projeto revisita algumas diretrizes testadas no Hospital de Taguatinga
(1968), com participação de Niemeyer, que já visava à flexibilidade e extensibilidade
23 Cf. Giancarlo LATORRACA, (org.), João Filgueiras Lima-Lelé, São Paulo, Lisboa, Blau, 2000, pp. 55-63.
31
da construção, o uso do escalonamento com previsão de acréscimos futuros, a pré-
fabricação e a facilidade das instalações, entre outros. Os desenhos do projeto e as
ilustrações das montagens revelam com mais contundência a experiência sobre a
qual se desenvolveu o projeto do CAB, a base sobre a qual seriam feitos os avanços
específicos que o contexto da obra na Bahia viria a exigir.
A experiência inaugural da parceria entre Lelé e Kertész já trazia em seu bojo
alguns dos principais elementos da atuação posterior, no que se refere ao
atendimento do programa no curto prazo que o agente político determinava, na
maneira de expressar formalmente um partido coerente com o processo
manufaturado de produção dos componentes, e a atenção para a implantação e a
interface do edifício com o entorno, na maneira como ambos se afetam mutuamente,
no binômio composição com a paisagem-conforto ambiental do edifício. Esse
sentido da relação do edifício com o a área envoltória – o ambiente – será ampliado
com a introdução de intervenções no tecido existente da cidade e não mais em uma
área de expansão urbana apartada da cidade consolidada.
A realização do CAB expressa no contexto baiano o sucesso da pesquisa
desenvolvida na atividade projetiva e construtiva de Lelé, levada a cabo nas
construções em Brasília. A obstinação com que problematizava as questões
técnicas envolvidas no desenvolvimento dos projetos a partir da conjuntura dada – e
dos ideais de racionalização, funcionalidade e produtividade – ia de encontro à
exigência da execução em prazos reduzidos e resultaram com grande efetividade
em um método de trabalho – e uma expressão tecnológica e plástica – coerente
com seus propósitos. A disciplina na elaboração de alternativas eficazes e respostas
apropriadas para os problemas dos programas dados, a destacar as grandes
escalas de projeto e construção que as intervenções em Brasília (e posteriormente
32
em Salvador) exigiram, levou à racionalização da produção dos elementos
construídos e ao sentido da industrialização na agilização da construção civil e na
contextualização da arquitetura no ambiente tropical – pela consideração dos
quesitos de conforto térmico, mesmo em situações de programas de uso flexíveis e
variáveis. Esses princípios serão integralmente mantidos quando efetivamente se
mudar o foco das intervenções para contextos de áreas já ocupadas, seja por
construções precárias, seja pelos conjuntos históricos, ambos ambientes mais
delicados para a inserção de obras novas – pelas dificuldades práticas ou
conceituais que ambas as situações colocarão.
Assim, a intensiva experiência e aprofundada pesquisa de Lelé desenvolvida
nos anos em Brasília lastreia sua atuação inaugural em Salvador e pavimenta, por
assim dizer, o desenvolvimento sequencial do pré-fabricado para a argamassa
armada e a expansão de suas técnicas de industrialização da construção. O
racionalismo dos projetos e a modulação das suas propostas serão resultados da
complexidade que sua pesquisa assume no cerne de um pensamento
desenvolvimentista e voltado, por isso mesmo, para o atendimento das demandas
específicas do país. Seu desenvolvimento se dá através de uma resposta calcada
na economia de escala, nas possibilidades de crescimento oportuno e na coerência
do desenho industrial aplicado na construção civil24.
24 É necessário apontar nesse momento a coadunação desse pensamento com os ideais de intervenção do Estado, a inspiração dessas técnicas em países socialistas e o desinteresse do empresariado nacional no investimento na industrialização desse processo, já que a lucratividade estava – como ainda está, em grande escala – atrelada mais a exploração extensiva de mão-de-obra desqualifacada, abundante e barata do que a um processo racionalizado e enxuto, que demandaria interesse, investimento e pesquisa; processo restrito, portanto, ao círculo acadêmico e às brechas de oportunidade no poder público.
33
2 A EXPERIÊNCIA DA 1a. GESTÃO – projeto no papel, canteiro na fábrica e
obras na cidade
Nos anos seguintes à experiência inaugural de Lelé em Salvador, o arquiteto
chegou a desenvolver outros projetos na capital federal que deram continuidade a
sua investigação do uso do concreto, da pré-fabricação, da racionalização do
programa e da obra e no cuidado com o conforto ambiental ao longo do período em
que manteve seu escritório como autônomo. Apesar das dificuldades após a
demissão da UnB em 1965, conseguiu viabilizar projetos para particulares – a
exemplo das concessionárias de automóveis em Brasília; o Hospital de Taguatinga,
em 1968; o próprio projeto do CAB (incluindo aí o projeto do centro de exposições e
da igreja do CAB, de 1974 e 1975, respectivamente); projetos para a Camargo
Corrêa em 1974 (que tentou atraí-lo para a iniciativa privada, sem sucesso), o
projeto do primeiro Hospital do Aparelho Locomotor da futura Rede Sarah25 em
1976, entre outros. Sua fase como autônomo em seu escritório particular teve fim
com o retorno ao poder Executivo, com a posse de Mário Kertész como prefeito
indicado pelo então governador Antônio Carlos Magalhães.
Figura 06: Edifício do Centro Administrativo da Bahia. Michel VALE, 2001.
25 Por intermédio e ação direta de Eduardo Kertész, especialista do IPEA, foi criada em 1976 a rede Sarah com o nome de Subsistema de Saúde na área do Aparelho Locomotor, juntamente com seu o médico Aloysio Campos da Paz. Esse projeto contou com a participação do arquiteto Alex Chacon e do antropólogo Roberto Pinho, contratados pelo escritório de Lelé em 1976 especificamente para este projeto.
34
Nessa gestão, conforme dito anteriormente, sua atuação se daria como um
prolongamento, ou uma retomada, do traço realizador das gestões de ACM na
Prefeitura e no Governo do Estado. A característica mais evidente da administração
de Kertész talvez seja o impulso materializador de programas urbanos, apoiado
sobre o cenário pregresso de produção de peças de planejamento – através do
financiamento de Planos Diretores (PDDIs) e da realização de planos de circulação
e transporte – centralizadas no Governo Federal e com ramificações na estrutura
estadual e municipal – mas com vistas nas demandas da sociedade civil,
engendradas no âmbito de um Estado mais tolerante com a ideia de
redemocratização através das diretrizes de abertura traçadas pelo presidente
Figueiredo.
2.1 Preexistência de projetos para a cidade
Os projetos relacionados à expansão urbana e da infraestrutura de Salvador
baseiam-se em alguns precedentes paradigmáticos. A experiência do EPUCS nos
anos 1940 e o legado dos projetos de avenidas de vale, entre diversos
equipamentos culturais, educacionais, de lazer e turismo, condicionou um conjunto
de intervenções viárias e saneadoras que persistem até a atualidade. Projetos da
Secretaria de Estado de Planejamento e do órgão municipal de planejamento –
OCEPLAN – além da estrutura metropolitana: Conselho de Desenvolvimento do
Recôncavo e posteriormente Cia. de Desenvolvimento da Região Metropolitana de
Salvador, ambos sob a mesma sigla: CONDER26, além da Empresa Brasileira de
26 A alteração do Conselho para Companhia revela a mudança institucional do entendimento da região adjacente ao município de Salvador. Uma compreensão histórico-cultural tradicional revela a unidade da região costeira do Recôncavo e do seu correspondente interior – sua interlândia, nas palavras de Antonio Risério, in: Uma história da Cidade da Bahia, Salvador, Versal, p.512 e idem, “Uma teoria da cultura baiana”, in: Antonio
35
Planejamento de Transportes (GEIPOT) deram sequência a essa linha de
pensamento27, condicionando e dirigindo o crescimento da cidade e orientando
(inclusive nas suas omissões) o uso e ocupação do solo.
Antes dos projetos e obras, havia um entendimento da condição urbana
sendo sedimentado, que tratava a cidade existente – o seu núcleo histórico e demais
centros consolidados – e os eixos de crescimento – vazios urbanos, vias expressas
projetadas e territórios previstos para serem ocupados – de maneira distinta. Nesta
perspectiva, onde a condição de crescimento era a superação do atravancamento
da cidade histórica e em relação a qual uma nascente ocupação planejada se
opunha, o problema da mobilidade e da construção de uma nova localização eram
centrais para o sucesso da empreitada de modernização da cidade.
O papel econômico consolidado da cidade de Salvador, onde se destacava o
setor de comércio e serviços – visto que as produções agrícola e industrial não
vingaram no município, nem nos idos coloniais tardios, nem em tempos recentes –
demandava com crescente urgência a ampliação da capacidade de circulação e de
transportes para a efetividade dessas funções. Os limites condicionados pela cidade
colonial são pouco transfigurados ao longo do século XIX e início do XX na
configuração urbana e na disponibilidade de vias de circulação, no que pesem as
intervenções citadas anteriormente, relativizadas em função do não atendimento das
exigências básicas do quadro moderno de funcionamento da cidade, dentro da
RISÉRIO E Gilberto GIL, O poético e o político e outros escritos. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, pp. 155-163, passim. A cultura secular em torno dessa região, principalmente em função das relações estabelecidas com a capital no contexto colonial e de estagnação que sucedeu o deslocamento da capital para o Rio de Janeiro, é desarticulada com a proposição da Região Metropolitana de Salvador – RMS. O estabelecimento de políticas econômicas específicas estimularam a relação de Salvador com municípios mais ao norte, principalmente no estabelecimento do Pólo Petroquímico de Camaçari, e contribuíram para o apagamento das expressões tradicionais que caracterizavam essa região. Essa política faz-se coerente com a modernização da cidade e a cisão entre esse novo processo de urbanização e a cidade histórica. 27 Wellington Correia de FIGUEIREDO e Richard George WALZ apresentam as instituições com projetos sobre essa temática em seminário no Simpósio Internacional de Transportes Públicos, de 1974, organizado pelo Metrô de São Paulo e UITP – União Internacional de Transportes Públicos, in: “Medidas a favor da circulação de ônibus de Salvador”, documento mimeografado, 1874.
36
demanda crescente dada. As reformas realizadas e o tratamento estético da cidade
consolidada não abarcavam as novas escalas de uso e os crescimentos
populacionais. Portanto, o conflito estabelecido entre esse entendimento da
funcionalidade da cidade moderna capitalista periférica e do cenário urbano histórico
da Bahia se expressará nas alternativas dadas para esses problemas. Não só os
projetos do EPUCS, como também diversas outras propostas da época discutem e
exprimem algumas respostas à circulação urbana no cenário dado.
De maneira resumida, os planos que se seguiram ao Plano Urbanístico do
EPUCS, no que tange ao transporte coletivo foram: a Adequação da rede urbana de
Transporte Público ao novo sistema viário urbano (PMS, 1973); o Estudo do Uso do
Solo e Transporte da Região Metropolitana (EUST - GEIPOT/CONDER/OCEPLAN,
1975-77); o Plano de Melhorias do Transporte Coletivo (TRANSCOL -
GEIPOT/CONDER/PMS, 1977); o Estudo de Trens Urbanos (TRENSURB -
GEIPOT/RFFSA, 1976); o Plano de Desenvolvimento Urbano de Salvador
(PLANDURB - OCEPLAN/PMS, 1976-78); o Plano Setorial de Transportes
(GEIPOT/CONDER, 1978-79); e o Plano Diretor de Transportes Urbanos (PDTU -
PMS, 1978-80).
Esse conjunto de estudos e planos, destacadamente concentrados na década
de 1970, evidencia o papel da circulação no crescimento da cidade. Esse material
abrangente e aprofundado sobre a realidade urbana de Salvador vai servir em larga
medida para o desenvolvimento de projetos na gestão de Mário Kertész, com
destaque para o EUST, o TRANSCOL e o PLANDURB, porém com a marca do
tratamento dos planos setoriais de transporte largamente imbricado com a
infraestrutura de outras ordens e o entralaçamento do foco no Centro com as
ocupações precárias com maior demanda. Assim, as prioridades do Plano de
37
Governo deveriam se coadunar com as demandas sociais e serem viabilizadas e
ratificadas pelos estudos prévios disponíveis – aplicados a partir desse
entendimento crítico, enquanto decisão política e não apenas determinação
técnicista.
2.2 Programa de Governo e a constituição de um ‘núcleo estratégico’ na
Administração
Tão logo o governo é iniciado, a parceria entre seus principais protagonistas –
o prefeito escolhido, o idealizador e coordenador do programa e o arquiteto
responsável pelo conjunto dos projetos e pela pesquisa tecnológica: Kertész, Pinho
e Lelé – já está estabelecida. A combinação do entendimento político, conceitual e
técnico refletiu-se na extrema coerência entre as diversas etapas da metodologia de
intervenção na cidade explicitada no Relatório de Governo. Foi elaborada uma
sequência de análises e proposições que comporiam o Programa de Governo de
Mário Kertész à frente da PMS, refletindo nas ações o entendimento da cidade e de
seus problemas.
Primeiramente foi explicitado um entendimento histórico-cultural da cidade
que seria a linha-guia para toda a metodologia de análise. Foi a partir daí que se
reconheceram as características daquele momento, balizado pelos períodos
históricos anteriores. Assim, foi possível estabelecer um diagnóstico da cidade
baseado nas evidências circunstanciais, também entendidas como resultado de
processos históricos.
A partir do diagnóstico – mormente identificado pela situação de crise e
desordem no crescimento; falta de manutenção da cidade pela baixa qualidade na
38
oferta de serviços; vigência de um modelo perverso de desenvolvimento, que gera
mais exclusão e concentração; falta de recursos; e população majoritária miserável –
que no seu conjunto parecia comprometer o forte caráter cultural da cidade e a sua
própria identidade, foram estabelecidos objetivos e diretrizes, formuladas estratégias
e concebidos programas e projetos.
Essa foi a conclusão mais importante do diagnóstico, determinante na formulação de uma estratégia política e administrativa que poderia sintetizar-se da seguinte forma: o objetivo de refletir Salvador para reposicioná-la perante a si própria, perante o Estado da Bahia e o País, é uma tarefa que implica em retomar a consciência de sua própria identidade, dos seus valores e do seu destino (...)28
Definiu-se então a meta principal: elevação da qualidade nos serviços
públicos – limpeza, transportes e conservação, através da oferta de um alto padrão
dos serviços e sua fiscalização29. A partir dessa meta, e com o foco da
administração voltado para a recuperação da importância histórico-cultural da
cidade, os objetivos vincularam-se à requalificação da cidade, recuperando a
qualidade dos espaços consolidados e dotando de infraestrutura e equipamentos
aquelas áreas – onde se concentrava a maior parte da população – precárias,
insalubres e desarticuladas. A integração dessas regiões se daria através da
reestruturação da circulação urbana.
Identificados os objetivos e as diretrizes e formulada a estratégia, concebemos um conjunto de programas e projetos articulados entre si e a metas prioritárias que, no seu todo, seriam capazes de provocar uma intervenção com a profundidade e o impacto desejados.30
Em síntese, objetivou-se concentrar os investimentos nas demandas da
maioria da população, em situação de miséria e historicamente desatendida – e no
limite do risco da perda de sua identidade cultural; espacialmente, os objetivos do
governo voltavam-se para a qualificação e requalificação dos espaços urbanos que
28 SALVADOR, Mensagem enviada à Câmara Municipal pelo Prefeito Mário Kertész – Março/81, PMS, Salvador, 1981, p. XIV. 29 Ibidem, p. XVIII 30 Ibidem, p. XV.
39
concentravam a habitação e o trabalho de grande parte da população, equipando-a
e fornecendo infraestrutura, ao mesmo tempo em que reestruturava a conexão entre
essas regiões, refazendo a circulação e restabelecendo a acessibilidade de forma
estrutural na cidade.
As diretrizes estabelecidas a partir desse entendimento estão relacionadas
tanto ao entendimento da cidade a partir de sua composição sociogeográfica – que
diferenciava três subáreas principais: Centro Histórico, orla marítima e
assentamentos de baixa renda – como também à estruturação da Administração
baseada em planos setoriais. A identificação dos três padrões espaciais propiciou o
estabelecimento de uma política espacialmente determinada, porém cruzada – e
sobreposta – pelas políticas setoriais: transporte, habitação, saneamento,
conservação e manutenção, cultura e revitalização dos espaços e educação e
cultura. A visão de conjunto e a ideia de cidade fundadora do programa de governo
davam o sentido global e não-fragmentado dos programas e projetos que viriam a
ser propostos, para os quais uma linha de intervenção, metodológica e
esteticamente unificada viria a atender. O entendimento complexo e cruzado de
leituras urbanas, históricas e sociais, sobrepostas e entrelaçadas pelas disciplinas –
ou setores – do programa de intervenções estava para dar uma resposta, viabilizada
na estrutura administrativa, de um partido projetual unificado para o conjunto da
cidade e de seus desafios.
De um modo geral, os fatores de desagregação determinantes nas três áreas-alvo eram os mesmos. Fatores de ordem estrutural, como crescimento demográfico, política de uso do solo, renda e emprego, e fatores de ordem conjuntural, como a decadência dos serviços públicos e a ausência de uma firme política de desenvolvimento urbano a nível municipal. E, ainda, a descaracterização do Poder Municipal no espaço da Cidade, a ausência de planos e projetos realistas, adequados e exeqüíveis. Acrescidos da incapacidade da Administração Municipal para captar e aplicar recursos.31
31 SALVADOR, op.cit., p. XVII.
40
2.2.1 O ‘núcleo estratégico’ da Administração
Dentro desse resumo do diagnóstico e do programa de governo esboçado,
pode-se identificar no nível da administração qual estrutura poderia dar conta dessas
propostas. Para além da organização tradicional das secretarias da administração
municipal, parecia que o entendimento dos problemas urbanos pelo seu
entrelaçamento – e pelas respostas integradas que os programas e projetos
específicos deveriam dar – não poderia ser resolvido de forma isolada por cada um
desses setores. Desse ponto, ficou estabelecido o papel de coordenação e
administração político-operacional da Secretaria da Casa Civil:
À Casa Civil cabe um trabalho de coordenação e formulação político-operacional das atividades da Administração Municipal, para garantir a execução do programa de governo estabelecido pelo Prefeito. Isso determina uma atuação em muitas frentes-de-atividade e exige, por conseqüência, um grau de eficiência que só uma estrutura flexível e dinâmica, que permita rápida adaptação a situações novas e a novas exigências, pode propiciar.
Dessa maneira, junto ao Gabinete do Prefeito funcionava a Secretaria da
Casa Civil e através dessa, vinculavam-se alguns órgãos estratégicos para o
desenvolvimento dos programas e projetos prioritários do governo. Entre eles,
destacavam-se o Órgão Central de Planejamento (OCEPLAN), a Coordenação de
Desenvolvimento Social (CDS), o Núcleo de Transportes e junto a este, a
Companhia de Transportes Urbanos de Salvador (TRANSUR), além da Companhia
de Renovação Urbana de Salvador (RENURB).
Essa organização desde o início pretendeu concentrar a coordenação e
agilizar programas e projetos sem, contudo, criar uma “estrutura paralela ao aparato
administrativo tradicional”32. Nessa lógica, as secretarias tradicionais desenvolviam
seus trabalhos enquanto esses órgãos ligados mais diretamente ao gabinete do
32 SALVADOR, op. cit., p. 11.
41
poder Executivo desenvolviam estratégias e planos que articulavam os diversos
setores da administração de forma mais integrada e coesa. Os trabalhos
desenvolvidos podem ser estruturados da maneira a seguir:
a. o OCEPLAN assessorou o prefeito através da ênfase no Programa de
Habitação da PMS, tanto na diretriz de implantação de lotes urbanizáveis,
como no seu principal foco, a consolidação de áreas subnormais. Os
trabalhos voltavam-se para a regularização fundiária e implantação de
infraestrutura, coordenadas e organizadas prioritariamente a partir da
identificação das áreas mais críticas e/ou mais populosas. Definiram-se seis
áreas prioritárias e foram elaboradas propostas específicas para cada uma
delas, de acordo com as suas características principais. Paralelos ao trabalho
específico de projeto para as áreas mais carentes, foram realizados estudos e
elaborada proposta para revisão da Lei de Uso do Solo. Tal projeto baseou-se
no plano diretor da cidade de 1979, com vistas à estruturação do seu
desenvolvimento espacial e de uma política de terras: diretrizes específicas
para a área da orla marítima e das regiões com população de baixa renda,
entre outras especificidades;
b. A CDS, a partir do princípio de participação das comunidades nas decisões
governamentais, orientou seus trabalhos principalmente em função do
Programa Prefeitura nos Bairros; estruturou-se através de uma Coordenação
Geral e outra específica do programa. Além das coordenações, criou dois
setores: Apoio Administrativo e de Informações; e grupos de trabalho
divididos em: Apoio Técnico, Apoio às Reivindicações e Desapropriações e
42
de Supervisão. Sua estrutura estava definida em função da estratégia de
aproximar a população, principalmente a mais carente, da Administração,
tanto para consolidar as diretrizes e ações de governo quanto para fortalecer
o trabalho de fiscalização da qualidade dos serviços públicos prestados;
c. o Núcleo de Transportes foi criado com o objetivo de desenvolver um eficiente
sistema de operação dos transportes, de maneira que complementasse a
implantação da infraestrutura física iniciada com o TRANSCOL. O Núcleo
estava ligado ao Departamento de Transportes da Secretaria de Serviços
Públicos, dispondo de mais agilidade e instrumentos de ação para
desenvolver atividades e estudos voltados para a operação do sistema. O
Núcleo contou com a Empresa de Transportes Urbanos de Salvador,
TRANSUR, empresa municipal de transporte coletivo (ônibus) que funcionou
como reguladora do sistema, servindo de parâmetro ao funcionamento das
demais empresas do sistema, todas da iniciativa privada. A empresa era
responsável ainda pelos estacionamentos rotativos, elevadores e planos
inclinados. Destacou-se no Núcleo o Programa Emergencial de Prioridade
para o Transporte Público, que abarcava os objetivos de controle,
fiscalização, planejamento e assistência ao usuário, dentre outras diretrizes
gerais de racionalização e melhoria do sistema viário, renovação da frota,
etc.;
d. a RENURB desenvolveu um papel crucial dentre os órgãos diretamente
ligados ao gabinete do Prefeito através da Casa Civil porque combinava o
desenvolvimento conceitual e de projeto (básico e executivo) dos principais
43
programas elaborados pelo núcleo estratégico da Administração. Organizou-
se em duas unidades funcionais: o Escritório de Projetos e a Usina de Pré-
moldados. Teve a função de, à conta do Fundo Municipal de
Desenvolvimento Urbano (FMDU), desenvolver programas de expansão e
renovação urbana, infraestrutura e equipamentos urbanos e aplicar seus
recursos nessas atividades. Sua estruturação interna, através de gerências,
baseava-se nas fontes dos recursos, cabendo a cada uma desenvolver
programas e projetos eventualmente intersetoriais, mas que atendessem às
demandas da fonte financiadora, sendo responsável pela compatibilização
entre os objetivos estabelecidos por cada financiamento e as prioridades
estabelecidas pela Administração. Devido ao seu caráter especial na
articulação e desenvolvimento das políticas prioritárias da gestão, sua
atuação vai ser investigada com mais detalhe, após o entendimento da
função dos transportes no projeto político do governo.
De forma sintética, a organização desses núcleos, entre outros, junto à Casa
Civil e ao gabinete do Prefeito, facilitariam o desenvolvimento integrado dos
principais programas do governo, de maneira que o planejamento, os estudos e
análises, a definição das proposições, a organização em programas específicos e o
desenvolvimento de projetos pudessem ser estruturados conjuntamente antes de
serem aprofundados e encaminhados para implementação e execução por cada
secretaria de governo. A criação desse núcleo estratégico parece ter sido uma peça
fundamental para que o desenvolvimento desses projetos pudessem se dar de
maneira dinâmica e em tempo reduzido para a escala de intervenção abarcada. Tais
projetos estavam, portanto, respaldados pela coerência entre os diversos setores da
44
administração, tanto pelo entendimento pactuado entre as demandas da população
quanto em função da prioridade estabelecida face à restrição orçamentária do
cenário de crise financeira.
2.3 O papel da circulação nos projetos
Ainda que houvesse uma presença constante e crescente da figura do
automóvel na cidade e nos projetos de intervenção urbana, diversas propostas
expressavam a priorização do transporte coletivo. A questão do transporte e da
circulação é central porque ela é, em grande parte, o elemento transfigurador da
cidade e a justificativa no campo da infraestrutura para o direcionamento da
ocupação urbana. Antes, é o elemento facilitador da ampliação dos limites urbanos e
justifica também a opção por determinado modelo de crescimento.
Entre os estudos já citados, o trabalho do GEIPOT destacou-se pela
abrangência e profundidade com que tratou o tema dos transportes, no
prosseguimento da política urbana em andamento de reconfiguração da cidade
baseada no sistema de avenidas de vale, mas não resumido apenas a tal sistema. O
TRANSCOL se utilizaria da infraestrutura viária para priorizar e racionalizar a
circulação de ônibus de forma hierarquizada.
A postura tecnicista do governo federal reproduz no nível estadual e municipal
estruturas responsáveis pelos estudos e pela implementação desses planos. Há, em
um certo sentido, um desdobramento dessas estruturas responsáveis pelo
planejamento através do desenvolvimento de alguns trabalhos de envergadura. A
administração de Kertész reconhece a disponibilidade desses projetos para compor
45
um plano e uma tática de intervenção urbana adequada ao seu programa de
governo.
“No espaço urbano, só em período mais recente o programa TRANSCOL
expressou um propósito consciente de deter e reverter o processo de
envelhecimento do sistema de transportes de Salvador.”33 A 1a. gestão de Kertész à
frente da PMS incorpora o TRANSCOL, não só pela sua função de oxigenar a
circulação urbana como também pelo resultado direto que ele poderia proporcionar
na qualidade do espaço urbano legado ao Centro Histórico, deteriorado pelas
condições extenuantes da circulação viária na época:
Assim, dentro do Programa de Transportes, enfeixado no TRANSCOL, as intervenções se destinam a retirar do Centro a grande massa de veículos que por ele circula e que se constitui num dos fatores mais sérios de sua deterioração (...) No Centro, será desestimulado o uso dos automóveis, que contribuem, de forma tão determinante, para os engarrafamentos monstruosos e a ambiência desagradável, conturbada e neurotizante que tomou conta desse que deveria ser o espaço de encontro da população de Salvador.34
Por outro lado, a administração reconhece a prioridade dos investimentos
para a população de baixa renda, no fornecimento de infraestrutura, urbanização e
acessibilidade. O estabelecimento desses dois focos complementares (o Centro
Histórico e os assentamentos precários)35 permite a concepção de uma política de
intervenção urbana baseada na rearticulação da circulação urbana. Isso porque é a
partir da reforma e redefinição dos eixos de circulação e da priorização do transporte
coletivo que poderá se implantar conjuntamente os demais melhoramentos urbanos.
Em outras palavras, não seria possível a execução de obras de transporte sem a
execução de uma série de melhoramentos de infraestrutura, a destacar a macro e
33 BAHIA (ESTADO), Plano Metropolitano de Desenvolvimento, op. cit., p. 277. 34 SALVADOR, Mensagem enviada à Câmara Municipal pelo Prefeito Mário Kertész – Março/81, PMS, Salvador, 1981, p. 4. 35 Esses dois elementos estruturadores da política daquela gestão são complementados por um terceiro elemento: a orla da cidade. A orla é entendida como grande espaço de lazer da cidade, importante para a caracterização do turismo de Salvador, mas, antes disso, para a configuração do espaço de fruição da população, buscando através dos projetos da RENURB, integrá-la à cidade para que fosse “absorvida” por todos, reconhecida pela “identidade coletiva”. Cf. SALVADOR, op.cit., p. 6.
46
microdrenagem, contenção de encostas, escadas drenantes, iluminação,
abastecimento de água, equipamentos comunitários, entre outros36. É a partir desse
princípio que se articulam as propostas da prefeitura, encabeçadas pela RENURB.
O Programa previa a implantação de quatro corredores de ônibus exclusivos
entre os bairros e o Centro, articulados através de quatro estações de transbordo,
sendo que as estações próximas ao Centro permitiriam a integração com o sistema
circular do Centro – sendo este provavelmente realizado no trecho Campo
Grande/Sé através de bonde.
Ao Núcleo de Transportes Urbanos, criado oportunamente, está reservada uma tarefa especial em toda a estratégia montada, uma vez que o desempenho satisfatório dos transportes coletivos é um fator determinante do sucesso de todo o plano. (...) O Programa de Transportes Urbanos alcançará toda a cidade, porém seu impacto mais contundente será na área central.37
Se no âmbito do Estado é a CONDER que assumiria o desenvolvimento do
projeto do TRANSCOL, na Prefeitura, a coordenação de sua implementação ficaria a
cargo da Secretaria da Casa Civil e dos órgãos RENURB e Núcleo de Transportes
Urbanos.
Nesse momento, a parceria de Lelé e Roberto Pinho – com quem já havia
retomado contato profissional na elaboração do EquipHos em 1976 – mostra-se
aprofundada, desde a ascensão daquele ao cargo de Secretário da Casa Civil e, em
seguida, ao comando da RENURB. Seu crescimento no governo é proporcional a
sua participação na concepção de diversos programas aqui citados, e, além dos
programas, nos conceitos, na tese-fundamento do governo de Kertész, qual seja o
entendimento antropológico da cidade – produto de sua cultura e ela mesma
promotora das transformações urbanas e espaciais necessárias para a amplificação
de sua expressão. No mesmo sentido, “a Prefeitura de Salvador pôde, durante 1980,
36 SALVADOR, Op. cit.,p.. 5. 37 Ibidem, p. XXIII
47
desenvolver todos os projetos dentro de uma mesma busca para integrar a cidade,
fazê-la um todo bem articulado entre as partes”38. Alinhado com o entendimento dos
programas de circulação da cidade, estava o conjunto de atividades costurado pelas
políticas urbanas em execução:
Em outras palavras: através de obras oportunas, indiscutivelmente necessárias, executadas dentro de altos padrões de exigência técnica e de evidentes benefícios para a população, e complementadas por uma prestação de serviços públicos essenciais, (…) haveríamos de provocar um impacto na cidade. (…) Mesmo no caso dos planos setoriais, como o de transportes, ou o de saneamento, a visão evidentemente é a do conjunto, dado que a compreensão do processo de formação e crescimento da Cidade, suas peculiaridades físicas e topográficas e as projeções futuras são fatores imprescindíveis na concepção dos projetos.39
2.4 Projeto e produção: a RENURB
A construção teórico-metodológica de um princípio de intervenção urbana
com foco na circulação e na acessibilidade foi possível somente através de um
entendimento integrado da cidade, tanto dos seus aspectos históricos quanto dos
aspectos geográficos, sociais e econômicos. Concebeu-se uma política de
intervenção que articulava a partir da espinha dorsal da acessibilidade uma série de
outras políticas setoriais. A concepção dessa política integrada foi a tática adotada
pela administração para estruturar uma sequência de intervenções necessárias, das
quais a urgência generalizada dificultava o estabelecimento linear de prioridades
para sua execução. Porém, além da síntese conceitual de entendimento da cidade,
foi necessária a concepção de um sistema objetivo, tecnológico-construtivo para
lastrear as intervenções pretendidas, viabilizando-as materialmente.
A parceria entre Roberto Pinho e Lelé evidencia-se aí da forma mais profícua:
enquanto o primeiro ascende na estrutura administrativa municipal, por encabeçar a
definição das intervenções e, antes dessas, o próprio conceito de cidade e cultura 38 SALVADOR, op.cit., p. 6. 39 Ibidem, p. XV.
48
que norteia o programa de governo, o segundo sintetiza materialmente esses
conceitos, transfigurando em projetos urbanos e arquitetônicos sistêmicos a ideia de
cidade que se pretende viabilizar. Pinho era o responsável pela coordenação
político-operacional das atividades estratégicas da Administração; Lelé era o
responsável pelo desenvolvimento conceitual e material dos sistemas e sua
execução dentro dos diversos programas em andamento.
A RENURB foi, nesse contexto, a materialização na estrutura da
administração da concepção integrada da cidade e do papel da cultura
contemporânea na solução dos problemas urbanos entendidos no encadeamento
histórico dos fatos.
Uma compreensão muito profunda da Cidade do Salvador – vale dizer, compreensão precisa de seu sítio urbano, de sua implantação tão peculiar, da sua arquitetura, do seu funcionamento, da sua estrutura social e da sua identidade cultural – está por trás de todo o trabalho desenvolvido pela RENURB, (…) com uma preocupação forte de qualidade e uma intenção de respeitar as características ambientais da cidade.40
A empresa foi responsável pela concepção e produção de um sistema
construtivo que atendia às diversas demandas de equipamentos públicos de forma
que toda a intervenção fosse lida pela população como o resultado dessa visão
integradora da cidade – dos núcleos históricos e das ocupações recentes, do miolo
da cidade e da orla marítima, de classes mais abastadas e das mais pobres. Para
tanto, a empresa foi concebida enquanto dois setores conjugados: o Escritório de
Projetos e a Usina de Pré-moldados.
Ao se subordinar a RENURB à Casa Civil, evidenciava-se a sua orientação
pela visão de cidade dada por Roberto Pinho, enquadrava-se sua produção no
contexto multidisciplinar e intersetorial das políticas estratégicas e costurava-se a
implantação de seus projetos pelos diversos ambientes da cidade, muito em
40 Ibidem, p. 13.
49
consequência da demanda identificada anteriormente. Os dois corpos da empresa
embasavam a concepção e a confecção do sistema em desenvolvimento. Ela foi
constituída em janeiro de 1980, com a função de:
(...) desenvolver atividades específicas na promoção, incorporação, implantação e operação de programas de expansão e renovação urbana, de infra-estrutura e de equipamentos urbanos e promover estudos e projetos relacionados aos referidos programas, bem como aplicar seus recursos nas mesmas finalidades ou em atividades que contribuam para o desenvolvimento do Município do Salvador.41
Dessa maneira, foi possível viabilizar em uma única estrutura administrativa o
papel de concepção, ao nível de projeto, de praticamente todas as obras físicas
levadas a efeito na cidade de Salvador, além da produção e do trabalho de pesquisa
realizado pela Usina para o desenvolvimento de mobiliário urbano e de um sistema
construtivo em pré-moldados leves, inclusive com a disposição de repasse da
tecnologia para a iniciativa privada, caso houvesse interesse.
O Escritório de Projetos é formado por uma grande equipe multiprofissional, o que favoreceu o mercado de trabalho da Cidade para arquitetos, desenhistas e outros profissionais, propiciando à Prefeitura uma grande agilidade e eficiência na captação dos reduzidos recursos na área federal e na área externa, em cujos organismos de financiamento nossos projetos são altamente considerados.42
A concepção do mobiliário produzido pela Usina levou em conta os dados
físicos e culturais da cidade. Procurou-se desenvolver uma tecnologia resistente ao
ambiente litorâneo de Salvador, além de se objetivar a produção das diversas peças
componíveis para micro e macrodrenagem em concreto leve e possíveis de serem
transportadas manualmente, em função das dificuldades de acesso na maioria dos
assentamentos de baixa renda. Ou seja, para a consolidação das ocupações de
baixa renda, era necessário combinar o desenho – e implantação – do saneamento,
da micro e macrodrenagem, da acessibilidade e do sistema viário de forma
encadeada e conjunta. A delicadeza do sistema de intervenções pautava-se 41 Ibidem, p. 45 42 Ibidem, p. XX
50
simultaneamente pela precariedade da situação e pelas restrições de se intervir nas
ocupações precárias sem desarticulá-las, evitando a remoção indiscriminada dos
moradores e pela impossibilidade de se entrar com grandes máquinas no interior
dessas comunidades.
A opção pela integração das soluções técnicas setoriais – transportes,
drenagem, habitação, saneamento, principalmente – em um programa conjunto
respondia não só à questão da combinação das prioridades sociais de infraestrutura,
mas também a uma metodologia de intervenção racional, a partir de entendimento
da interdependência dos diversos equipamentos e redes no contexto de sua
implantação. Por fim, essas intervenções deveriam se pautar pela economia de
recursos e escassez de tempo, em vistas da grande demanda e dos limites
específicos de uma administração. A competência da RENURB no núcleo
estratégico abarcava desde a concepção, o projeto e a viabilização técnica-
construtiva até o arranjo administrativo e a gestão financeira dos programas.
Figura 07: Canais de drenagem. Fonte: SALVADOR, 1981.
Figura 08: Escadarias e muros drenantes. Fonte: SALVADOR, 1981
51
Figura 09: Muros de arrimo. Fonte: SALVADOR, 1981
Coerente com esse arranjo metodológico, desenhou-se uma resposta
administrativa a uma questão fundamental: a fonte de recursos dos programas e
projetos. A administração, através da visão estratégica impressa pela Casa Civil,
combinou as diversas linhas financiadoras disponíveis ao elenco de prioridades da
Administração. Nesse sentido, a opção da estruturação das intervenções a partir dos
projetos de transportes foi decorrência da lógica intrínseca ao encadeamento das
intervenções, mas também do montante de financiamentos disponíveis,
principalmente a partir do empréstimo do BID para o projeto do TRANSCOL. Sob o
conjunto das obras para o sistema de transportes, abarcou-se também aquelas
obras fundamentais para sua implantação – as mesmas identificadas enquanto
soluções para saneamento, drenagem e urbanização das regiões atendidas pelo
projeto. Depois de impresso um ritmo e modelo de busca de fontes de
financiamentos pela Casa Civil, em estreita articulação com a RENURB, essa tarefa
foi repassada para a Secretaria de Finanças, como soma ao esforço bem sucedido
daquela secretaria na ampliação do caixa da Prefeitura, seja através da captação de
recursos externos, seja através da modernização e ampliaçãodo sistema de
arrecadação de tributos.
52
Essa lógica de combinação das fontes financiadoras e de seus projetos
específicos com os demais projetos da Administração evidenciou-se como uma das
estratégias principais da RENURB para a viabilização do conjunto de intervenções
na cidade de acordo com o programa de governo, em função das prioridades
identificadas e atualizadas a partir das demandas apresentadas pela população
através das Prefeituras nos Bairros – principalmente através dos escritórios técnicos
implantados nas comunidades participantes do programa. A estruturação interna da
Companhia baseava-se em gerências específicas para cada fonte financiadora, tais
como a EBTU, o BNH, o BNDE, Banco Mundial, porém em íntimo contato entre si e
dentro de uma estrutura pensada especificamente para a unificação dos programas
e projetos.
2.4.1 A Usina, o papel da tecnologia e seu princípio sistêmico
Um dos princípios do desenvolvimento das peças pré-moldadas pela Usina foi
o de reconstituir uma unidade plástica no conjunto urbanístico de Salvador43. A
possibilidade de produção em argamassa armada ou concreto leve em larga escala,
atendendo à grande demanda por equipamentos urbanos em curto prazo e com
custos reduzidos seria orientada pela concepção integrada dos diversos elementos.
A Usina constituiu-se, portanto, como uma iniciativa inovadora de produção
industrializada encampada pelo poder público para intervenções urbanas no Brasil.
Sua originalidade está ligada tanto à escala de produção, quanto ao caráter público
e ao conceito unificador das intervenções na paisagem cultural da cidade –
buscando através das intervenções contemporâneas integrar a cidade histórica e a
43 Ibidem, pp. XXI e XXII
53
cidade moderna. O conjunto do mobiliário e a concepção das obras do sistema de
circulação pautavam-se pela interação harmônica com o ambiente construído, com o
conjunto histórico e com uma leitura contemporânea do desenvolvimento dos
métodos construtivos tradicionais, fazendo uso do concreto enquanto tecnologia
análoga à cantaria da arquitetura colonial.
A partir do objetivo prioritário de implantação do TRANSCOL, desdobrou-se o
foco no atendimento de outras demandas paralelas, que requisitaram o
desenvolvimento da tecnologia da argamassa armada, mais complexa em quesitos
de formas metálicas, armadura, traço da composição e cura, por exemplo. A
ampliação das pesquisas da Usina foi possível graças ao desenvolvimento do
trabalho iniciado pelo engenheiro Frederico Schieel, da USP-São Carlos, chamado
para colaborar na RENURB. O objetivo era produzir uma família de equipamentos,
peças e mobiliários componíveis e complementares a serem aplicados nas mais
diversas situações, assegurando, porém, uma forte unidade conceitual a partir do
emprego em todos os casos da mesma tecnologia e da mesma matéria-prima.
O desenvolvimento e a produção de um conjunto de elementos – mais
‘pesados’ – ligados ao sistema de transportes – abrigos de ônibus, terminais e
estações – e outro mais ‘leve’, ligado ao sistema de drenagem – peças para
canalização de córregos, escadas drenantes e contenção de encostas – tiveram
desdobramento em diversos outros projetos setoriais: urbanização da orla, postos
policiais, sinalização, mobiliário urbano, etc.
54
Figura 10: Muros de arrimo – esquema de execução. Fonte: SALVADOR, 1981.
Figura 11: Rampas e escadarias drenantes – vias de pedestre. Fonte: SALVADOR, 1981.
Figura 12: Canais retangulares de argamassa armada. Fonte: SALVADOR, 1981.
55
Nesse sentido, a produção articula historicamente a técnica do concreto às
técnicas tradicionais, filiando-a por analogia às técnicas de pedra lavrada e pedra de
cantaria das construções tradicionais da cidade em períodos anteriores. O conceito
que embasa a adoção do sistema e da tecnologia do pré-moldado em concreto e
argamassa armada alinha-se ao princípio da atualização da técnica construtiva
vigente, pelo caráter de contemporaneidade que essa mesma técnica assume,
dentro do entendimento histórico da configuração material da cidade.
Em síntese, a recuperação da importância da cidade e a qualificação dos
seus espaços a partir da referência histórica de períodos passados são possíveis
através da coerência da técnica construtiva com a expressão mais avançada do
atual período, atribuída, no caso, ao pré-moldado. As intervenções contemporâneas
que expressem o emprego de uma técnica de ponta estariam assim compatíveis
com a excelência dos espaços construídos com o melhor da técnica que em épocas
anteriores atendia aos programas estabelecidos. Sob essa ótica, as obras
contemporâneas em Salvador poderiam se equiparar (e harmonizar),
proporcionalmente, ao esplendor e importância que a cidade teve no período
colonial e do Império.
56
3 RESULTADOS: ANÁLISE GERAL E BALANÇO DA GESTÃO
O impacto resultante da adoção de um programa de intervenção urbana como
aquele da Administração de Mário Kertész, no que tange a prioridade das
intervenções e articulação integrada dos programas setoriais, é tanto maior quanto a
coerência entre o diagnóstico realizado, a assertividade na definição das prioridades
e o respaldo técnico para as decisões políticas. Nesse sentido, o contexto do
Governo de Mário Kertész significou a confluência desses princípios de maneira
muito peculiar na realização de seu programa.
3.1 Os projetos e as obras
A partir do programa de transportes, foram estabelecidas as prioridades em
função do Centro Histórico, materializadas principalmente a partir da implantação da
Estação de Transbordo da Lapa.
(...) é importante destacar o projeto da Estação da Lapa, não só pelo seu porte e pela sua concepção arquitetônica (que sendo muito atual, integra-se harmoniosamente com a imagem mais antiga do sítio onde se implantará), mas também pela influência determinante que terá na conservação do Centro Histórico.44
Figura 13: Maquete da Estação da Lapa. Fonte: SALVADOR, 1981
44 SALVADOR, op. cit., pp. 15-16.
57
O rebatimento dessa intervenção nas áreas periféricas se dava primeiramente
pela necessidade de criação de corredores entre a região mais central e as regiões
mais afastadas, inicialmente pelo saneamento dos vales e implantação de avenidas
(com o cuidado de priorizar os corredores de ônibus), a exemplo do Corredor
Aquidabã-Sete Portas, articulado com a Estação de Transbordo do Aquidabã,
que viria a conectar as linhas originárias dos bairros com as linhas circulares do
Centro; a Estação de Transbordo da Rodoviária45 também se integraria ao
sistema, em posição menos central, mas de importância no sistema de integração
de linhas; o Plano Inclinado Liberdade-Calçada também funcionaria na conexão
com o sistema de transporte ao articular a zona populosa de baixa renda da
Liberdade à região da Calçada, que permitia uma integração com três importantes
linhas de ônibus para regiões de concentração de empregos. A implantação do
sistema multimodal completava-se ainda com a implantação de estacionamentos
periféricos, a exemplo do Estacionamento Periférico Água de Meninos, que
facilitaria a integração com transporte coletivo em pontos menos congestionados da
cidade. A implantação do sistema nos bairros mais distantes se deu através de 40
terminais de bairro (de um total de 85 terminais previstos), além da abertura e
pavimentação de vias de penetração, que conectavam o sistema viário principal ao
coração dos bairros, reconfigurando a acessibilidade nessas regiões, a exemplo da
Avenida Vale das Pedrinhas.
45 Este exemplo serve pra demonstrar o cuidado do projeto com os quesitos funcionais tanto para o sistema quanto para o usuário, uma vez que o projeto de implantação dos terminais baseavam-se no estudo do GEIPOT, mas atualizavam-no no sentido de compatibilizá-lo com as especificidades do local e as possibilidades de otimização do espaço urbano resultante para os usuários; cf. estudos de implantação in: Giancarlo LATORRACA (org.), João Filgueiras Lima, Lelé. São Paulo-Lisboa, Instituto Lina Bo e P.M. Bardi-Blau, 2000, PP. 100-101.
58
Figura 14: Corredor Aquidabá - Sete Portas. Fonte: SALVADOR, 1981.
Figura 15: Estação de transbordo da rodoviária. Fonte: CONDER/PMS (arquivo), 1981.
Figura 16: Corredor França – Mares, etapa IIIA: Terminal de Bairro. Fonte: CONDER/PMS (arquivo), 1981.
Figura 17: Renurb - linha de materiais pré-moldados. SALVADOR, 1981.
59
Figura 18: Estacionamento de Água de Meninos. SALVADOR, 1981.
Dentro do sistema desenvolvido pela RENURB, destacam-se principalmente
os abrigos de ônibus implantados nesses terminais, que, junto com a urbanização
das áreas através da criação de praças e espaços de lazer, definiam e identificavam
os espaços públicos dos bairros, articulando-os física e esteticamente aos demais
bairros da cidade. Nesses espaços, a pavimentação, os abrigos e mobiliário
(constituído por bancos em argamassa armada, também pré-fabricados), o
paisagismo e o próprio agenciamento das funções configuravam o conjunto das
intervenções.
Às intervenções ligadas diretamente ao melhoramento do sistema de
transportes somavam-se às obras necessárias de drenagem, saneamento e
microacessibilidade, implantadas em conjunto com equipamentos de bairro, tais
como escolas e creches, além da ordenação da ocupação dos terrenos.
Estruturadas dentro do Programa de Habitação, a partir dos núcleos prioritários
identificados pelo OCEPLAN, foram realizadas obras de saneamento de vales
ocupados através da canalização de córregos, da contenção de taludes e encostas,
instalação de escadarias drenantes, vias de acesso, entre outros elementos.
Destaca-se a intervenção no Vale do Camurujipe, o principal rio de Salvador, com a
maior concentração de população de baixa renda em situação precária, com cerca
60
de 500 mil pessoas nessas condições, por onde se iniciou o que constituía o maior
programa habitacional da prefeitura.
Figura 19: Bacias hidráulicas de Salvador. Plano de identificação das bacias prioritárias para receber investimentos de saneamento. Salvador, 1980.
Figura 20: Projeto Vale do Camurujipe.PMS (folheto), 1983.
Esse programa baseava-se na identificação dos problemas típicos da
situação topográfica de Salvador, marcada pela sucessão de cumeadas separadas
por vales com cerca de 40m de profundidade. A ocupação inicial das cumeeiras por
construções e sistema viário foi sucedida pela ocupação das encostas e fundos de
vale por população mais pobre. Esse cenário de densidade populacional, falta de
61
infraestrutura e dificuldades de acesso orientou a solução adotada. Assim, o
conjunto de ações dos diversos bairros pobres localizados na Bacia do Camurujipe
baseava-se em oito pontos essenciais: legalização da posse da terra, saneamento
básico, estabilização das encostas, sistema viário para serviços básicos (transportes
e coleta de lixo), rede de água complementar, rede de energia elétrica
complementar, iluminação pública e equipamentos (saúde, educação, creche,
abastecimento alimentar, etc). Dessas ações, praticamente todas as intervenções
físicas contam com a contribuição da RENURB.
Figura 21: Peças pré-moldadas – galerias drenantes. SALVADOR, 1981.
Figura 22: Transporte manual – peso máximo 45kg. SALVADOR, 1981.
Figura 23: Via de pedestres – trecho em construção. SALVADOR, 1981.
Figura 24: Via de pedestres – utilização pela comunidade. SALVADOR, 1981.
Nesse conjunto, da mesma maneira com que se interveio no Nordeste de
Amaralina, foram utilizadas peças pré-moldadas em argamassa armada na
contenção de taludes e encostas, além de compor as seções dos canais dos
córregos afluentes do Rio Camurujipe. Compunha ainda a mesma família de peças
62
aquelas que constituíam as escadas drenantes, escadas que permitem, através de
canaletas no seu centro articuladas com fossas da parte residencial, o escoamento
das águas pluviais e de esgotamento sanitário, impedindo também que essas águas
penetrem no solo e concorram para o deslizamento de terras.
Figura 25 e 26: Canais retangulares. SALVADOR, 1981.
Figura 27: Montagem na obra – encaixe das peças. SALVADOR, 1981.
Figura 28: Tranporte manual – peso máximo 90kg. SALVADOR, 1981.
Figura 29: Viga de coroamento – concreto moldado no local. SALVADOR, 1981.
63
Compunha-se assim, a primeira linha de peças leves pré-moldadas em
concreto e argamassa armada, através de abrigos de ônibus (que, componíveis,
formavam os terminais de bairro); arrimos e contenção de taludes e encostas, dutos
para afastamento de lixo domestico até pontos de coleta nas vias de acesso dos
bairros, seções de canais, escadas drenantes, bancas de jornal, postos policiais,
guaritas, cabines telefônicas, bancos de praça com ou sem encosto, suporte para
sinalização urbana, jardineiras e lajotões para piso, entre os principais.
Figura 30: Abrigos. SALVADOR, 1981.
Figura 31: Abrigos. SALVADOR, 1981. Figura 32: Cabine telefônica e posto policial. SALVADOR, 1981.
Figura 33: Bancos para praça. SALVADOR, 1981.
Figura 34: Jardineiras. SALVADOR, 1981.
64
Vale dizer que mesmo os projetos específicos – tais como a Estação da Lapa,
a Central de Delegacias, o Plano Inclinado Liberdade-Calçada, entre outros –
também tiravam partido da mesma linguagem da pré-fabricação, utilizando-se de
peças produzidas na Usina, mesmo quando não eram apenas as peças da linha de
produção.
Figura 35: Ao centro, Kertész (E) e Lelé, apresentando maquete da Central de Delegacias. SALVADOR, 1981 .
3.2 O espaço da Administração e o ambiente político e social
A começar pelo cenário político mais geral, o contexto de redemocratização,
apesar de já estar iniciado, não estava totalmente configurado. A própria condição
de prefeito indicado, eleito indiretamente pela Assembléia Legislativa, restringe o
caráter de representatividade que a escolha direta poderia imprimir à sua gestão.
Ainda assim, dentro da linha carismática e bem articulada às demais instâncias de
poder vigente na figura de Antonio Carlos Magalhães, seu “padrinho” político na
época, Kertész viabiliza, no seu espaço político próprio, uma postura híbrida entre o
alinhamento direto com as orientações de seu predecessor, marcadamente
centralizadoras e autoritárias, com o ambiente de transição democrática que se
forjava.
65
Com esse pano de fundo, compreende-se o argumento reincidente no
discurso oficial de respaldar suas políticas na ratificação das prioridades pela
população e na diretriz de aproximação da prefeitura com as comunidades através
do Programa Prefeitura nos Bairros, da Coordenação de Desenvolvimento Social.
Ainda que essa iniciativa possa ser lida como um simulacro de descentralização
administrativa46, ela significa, concretamente, uma aproximação da estrutura
institucional pública daquelas comunidades onde de fato foram instalados escritórios
representantes da Administração.
Um aspecto relevante se trata do discurso social e cultural que transpassa o
programa de governo, integrando os diversos programas setoriais e a própria
intenção dos projetos implantados; nesse mesmo sentido, havia se dado o governo
anterior do Prefeito Jorge Hage, marcado ainda por seu viés tecnocrático (dentro de
um programa modernizador e, em um certo sentido, progressista, ao tentar fazer a
prefeitura assumir o papel de planejar e controlar o desenvolvimento urbano e a
acumulação imobiliária) mas intencionado em discuti-lo com a cidade, iniciativa
inviabilizada pela crise de credibilidade derivada do contexto autoritário47.
Tanto o governo de Hage quanto o de Kertész se configuram como
experiências “desviantes” por se caracterizarem como tentativas de restabelecer
uma conexão do governo pelo ‘poder local’ – ambas abortadas pela conjuntura
autoritária sobre a qual se deram. A divergência do primeiro, pelo intuito reformista
de seu governo, com os interesses imobiliários e comerciais, somados à ordem
autoritária e à influência das elites junto ao governo estadual levaram à sua
demissão; já o segundo, cuja atitude audaciosa na implementação de uma agenda
46 Cf. análise de Paulo Fábio DANTAS NETO, “Caminhos e atalhos: autonomia política, governabilidade e governança em Salvador”, op. cit., p. 20. Foram instaladas doze unidades do programa, de um total de 60 previstas, o que cobriria praticamente todas as áreas de baixa renda da cidade; cf. SALVADOR, Mensagem enviada..., op. cit., p. 20. 47 Cf. Paulo Fábio DANTAS NETO, op. cit., p. 19.
66
realizadora focada nas demandas reprimidas das classes de baixa renda, rendeu-lhe
popularidade e a expectativa de progressão política, teve desfecho com o primeiro
pretexto para sua demissão, pela sua insubmissão ao perfil concentrador de Antônio
Carlos, que o percebia como ameaça a sua precedência política48.
Kértesz se evidenciou (desde os tempos de Secretário de Estado do
Planejamento, aos 26 anos, e nessa experiência como prefeito oito anos depois)
como uma opção política no quadro tecnocrático que servia de base aos governos
de ACM, ao passo que seu descolamento da figura do governador (pela influência
direta das concepções e do ideário expresso por Pinho), a sua abertura a um
programa ideológico mais progressista e o vislumbre da oportunidade de uma
progressão na carreira política contribuíram de forma certeira para a sua demissão
do cargo. Mesmo realizando uma gestão marcada pelas intervenções urbanas, ao
gosto do então governador, o caráter “desviante” de sua Administração se dá pela
mudança de foco para o atendimento das demandas populares, que de fato,
constituiriam seu cacife político, alavancando a possibilidade de seu retorno à
administração da cidade49.
De qualquer maneira, sem entrar em uma análise do quadro político mais
amplo, qual seja o da modernização conservadora (carlista), é sintomático que a
agenda programática de Kertész, amplamente vinculada à estruturação do espaço
urbano focada nas demandas sociais e respaldada conceitual e tecnicamente,
corresponda a um fortalecimento da oposição, caracterizada pela mobilização da
48 Paulo Fabio DANTAS NETO, op. cit., p.19. 49 Mário Kertész viabiliza seu retorno ao poder municipal através do voto direto nas primeiras eleições municipais após o Regime Militar. Seu rompimento com ACM e sua aproximação ao Movimento Democrático na medida em que consolida sua popularidade fazem dele candidato vitorioso em 1985, a partir de quando, por quatro anos, leva mais adiante os projetos de Pinho e Lelé, através da Fábrica de Cidades, ou Fábrica de Equipamentos Comunitários (FAEC). O desenvolvimento dessa experiência para além das propostas iniciais merece um estudo mais aprofundado, pelo abarcamento de mais diretrizes e aumento da complexidade do sistema construtivo em virtude dos novos programas: creches, escolas, balneários, equipamentos do Transporte de Massa de Salvador, mercados, passarelas, etc., mas, em linhas gerais, pode ser entendido como o prolongamento dessa experiência inaugural em um ambiente político democrático.
67
sociedade civil. Estruturada na década de 1970 em três fases, desde os protestos
eleitorais e organizações populares e profissionais, com o destaque, não por acaso,
para a articulação de profissionais liberais organizada a partir da Semana do
Urbanismo, em 1973; a retomada das mobilizações de massa no movimento
estudantil; e a resposta propriamente dita da sociedade civil, com destaque para a
Federação das Associações de Bairro de Salvador e do Movimento Contra a
Carestia50; essas organizações vocalizavam a crescente pressão pela
democratização com a qual Kertész se alinha de forma clara, a partir do seu
programa de governo.
Tanto pelo quadro abrangente de democratização e abertura política, onde se
prefigurava a possibilidade de instauração do poder local autônomo em relação a
instâncias superiores, quanto pelo cenário instituído de crise e restrição
orçamentária da Administração Municipal, onde começava a sobressair a
característica mais geral de insuficiência e centralização fiscal, que em seguida
começaria a ser diluída – o governo de Kertész se destaca pelo foco específico na
adoção de políticas urbanas estreitamente articuladas que respondem no nível
social e administrativo com o sentido da modernização (na concepção da
infraestrutura e na sua espacialização, tanto quanto na agilidade e dinâmica da
gestão).
As definições estruturantes da sua administração tiram partido justamente do
caráter de transição e democratização (em função das crescentes manifestações
sociais e políticas), além do respaldo técnico incorporado pelo lastro planejador do
contexto imediatamente anterior (vista a disponibilidade de estudos e propostas que
orientaram suas intervenções). Nesse sentido, o caráter integrador e articulador que
50 Cf. Paulo Fabio DANTAS NETO, op. cit., p. 20.
68
seus projetos espacializam e dão forma é análogo ao clima de fortalecimento das
expressões políticas populares. Seu discurso humanista, imbuído da priorização das
demandas populares, do caráter cultural e de identidade em suas prioridades, ecoa
também da reorganização popular em torno da democratização.
Com essa marca da oportunidade, pela conjunção de um arranjo político que
possibilitou uma abertura progressista na definição do seu programa político, em
função do cenário de democratização e a despeito do contexto mais restrito do
centralismo autoritário que o engendrou, o governo em questão cercou-se tanto de
um discurso procedente sobre a urgência da valorização da identidade cultural da
cidade quanto da coerência entre essa fala e a proposição programática articuladora
dos seus elementos espaciais significativos. O encadeamento teórico-propositivo
entre os elementos culturais urbanos de forte apelo coletivo e as lacunas históricas
no atendimento da população em equipamentos, infraestrutura e, sobretudo, na sua
integração física e nominal à cidade formal viabilizou a proposição de um conjunto
de intervenções coerentes nas suas múltiplas combinações e marcadamente
contemporâneo, ainda que referenciados historicamente ao contexto urbano que
busca ressaltar.
3.3 Análises da negociação e implementação da política urbana
A circunstância possível naquele momento permitiu essa articulação
equilibrada entre oportunidade política, densidade e coerência conceitual no
entendimento dos processos urbanos e desenvoltura técnica na elaboração de um
conjunto de proposições que atendesse em nível de excelência tanto as demandas
políticas quantos as orientações conceituais. O tripé político-conceitual-propositivo é
69
a equação específica que pode viabilizar uma experiência abrangente e significativa
para o atendimento das expectativas populares ratificadas no programa de governo.
Nessas circunstâncias, a estruturação de um espaço dinâmico dentro da
estrutura da Administração, daquilo que foi chamado de núcleo estratégico, pode ser
fundamental para o sucesso da política urbana estabelecida. Deve se destacar
justamente nesse arranjo o papel articulador entre o político e o técnico,
personificado neste caso na figura de Roberto Pinho. Ele foi responsável tanto pela
conceituação e caracterização da cidade como, primordialmente, pela proposição de
uma concepção integrada de intervenção. A organização de um grupo próximo ao
gabinete do prefeito, através da Casa Civil, foi fundamental para a elaboração do
programa e seu desenvolvimento através de projetos específicos. A condição de
ligação direta entre os conceitos de cidade e a diretriz cultural norteadora das
intervenções e o desenvolvimento tecnológico-construtivo também responde pelo
caráter abrangente e efetividade da iniciativa.
É identificável o viés humanista na estruturação do rol de políticas públicas
encampadas pela gestão. Transparece na leitura urbana e social o profundo
conhecimento da composição histórica da sociedade baiana e soteropolitana, e, por
consequência o sentido da aplicação objetiva das disciplinas de ciências sociais.
Essa parece ser, tanto quanto o arranjo administrativo estratégico, outra grande
contribuição de Pinho. A atuação de Lelé nesse sentido é confluente com a leitura
marcadamente antropológica e social que o primeiro imprime na Administração. A
história do arquiteto confirma a sua contribuição afinada com os princípios dados
pelo governo. Sua pesquisa tecnológica e a investigação das possibilidades de os
elementos pré-fabricados atenderem às grandes demandas de forma racional e
econômica eram coerentes com as referências que buscou para essa tecnologia (em
70
países socialistas, por exemplo) e com o sentido político-ideológico que sua postura
profissional expressa.
Vale ressaltar a importância da coordenação desse núcleo propositivo da
gestão com a estrutura mais tradicional preexistente na administração municipal.
Posto que as atuações dessas duas partes – a estratégica e a setorial tradicional –
são praticamente coincidentes, é necessário diferenciar e estabelecer na prática
administrativa a colaboração entre o papel de conceituação e desenvolvimento
específico dos programas integrados, intersetoriais, por assim dizer: o
desenvolvimento intensivo do programa urbano, com o desenvolvimento das
análises urbanas, levantamento e identificação dos objetos das intervenções; e a
organização de sua implantação e efetiva aplicação dos projetos, aqui chamado
desenvolvimento extensivo do programa. Essa integração depende, entre diversos
fatores, da capacidade de orquestração entre níveis mais globais de gestão e
concepção estratégica do planejamento – vale ressaltar, de uma estrutura mais
dinâmica e circunstancial, específica de cada governo – e a estrutura mais
permanente e marcadamente setorial da administração municipal.
Deve ser ainda observado um aspecto aparentemente sutil, mas que pode
evidenciar com mais clareza a conjuntura da integração técnico-conceitual e política
específica dessa gestão: o entendimento de revisão da experiência inicial de Kertész
com a implantação do CAB (1971-72). Se naquele momento, a diretriz política ditava
um modelo específico de expansão urbana explicitamente tecnocrático – pela forma
com que a cidade é entendida e proposta a reorientação de seu crescimento – e
desprovido de uma contextualização histórico- cultural, a espinha dorsal do governo
municipal (1979-81) reorienta o modelo de intervenção, a partir do seu caráter
71
humanista (pela priorização dos aspectos sócio-culturais) na definição das políticas
urbanas.
Vale notar o curto espaço de tempo entre as duas intervenções e a
reincidência da figura política de Mário Kertész. Enquanto na experiência do CAB a
atuação de Lelé responde às demandas de racionalização e economia através de
um projeto em que se destaca a qualidade dos espaços, o cuidado na implantação e
na relação das edificações com a paisagem, além da pesquisa da tecnologia do
concreto pré-moldado, a experiência na PMS radicaliza a aplicação dos mesmos
princípios projetuais e da mesma linguagem técnica e arquitetônica através da
reorientação programática – voltando a atuação da Administração para o Centro da
cidade e suas áreas de ocupação precária.
Tal reorientação faz ressaltar não só a mudança paradigmática em si (um
‘retorno’ dialético do foco da intervenção modernizante para as regiões ocupadas da
cidade – seu Centro Histórico e seus bairros populares informais), como também
evidencia a falha estrutural do modelo de intervenção tecnocrático no atendimento
das demandas centrais da cidade naquele período. Enquanto a administração se
voltou para o ordenamento da cidade para atender ao desenvolvimento preconizado
pela industrialização e reorganização metropolitana, as pressões sociais de fato não
foram equacionadas, expressando-se na configuração desordenada e precária de
grandes áreas recém-ocupadas que não foram devidamente previstas e tratadas
pelos governos anteriores51; o desenvolvimento desse quadro de falta de
representatividade das classes sociais de baixa renda e a sua exclusão
51 É insinuada aqui uma leitura ideológica com significativas evidências das opções feitas nos períodos citados. As ideias modernizantes que priorizam a circulação de mercadorias e a ampliação do mercado de terras, a exemplo do programa urbano dos anos 1950-70 na Bahia, trazem intrinsecamente a exclusão das demandas sociais, mais especificamente de habitação e infraestrutura para camadas populares. Tal quadro chegou ao nível de extremo descontrole, principalmente pela dificuldade do acesso ao mercado formal de terra com a ausência de uma política efetiva de uso do solo, reflexo do histórico esforço concentrador das políticas públicas para as elites. É sobre esse cenário de crise e profunda cisão socioespacial que parece querer agir o programa de governo de Kertész-Pinho-Lelé.
72
programática confirma que “a carência material é a face externa da exclusão
política”52.
Esse aspecto de reorientação programática circunscrita à integração
socioespacial talvez seja a maior diferença entre as intervenções abordadas e
evidencie um caráter inovador na aplicação de uma agenda moderna menos
incoerente com o cenário arcaico persistente de carências sociais historicamente
ignoradas. Talvez demonstre ainda a abertura da figura política para uma agenda
programática extremamente comprometida em seus conceitos com as respostas
sócioespaciais demandadas pela cidade, sintetizada na elaboração de planos
coerentemente integrados e específicos para aquela dada realidade.
52 Pedro DEMO, “Pobreza e Política”, in: Papers, São Paulo, Fundação Konrad Adenauer-Stifung, 1993, apud Ermínia MARICATO, Metrópole na Periferia do Capitalismo, São Paulo, Hucitec, 1996.
73
CONCLUSÕES
Esboço de uma organização metodológico-administrativa e projetual na gestão
municipal
O resumo apresentado da 1ª. gestão de Kertész na PMS revela as
possibilidades reais de experimentação no cenário social dado da construção do
programa de governo em uma municipalidade. Pode-se cotejar os tópicos
apresentados da elaboração do programa de governo com as orientações práticas
para implementação53, nos dias atuais, da peça fundamental de planejamento
urbano que se dispõe: o Plano Diretor. Ainda que o cenário apresentado não fosse
já de democracia reinstituída, a conjuntura dada já mostrava fortes sinais de reação
popular, prefigurando o que ainda pode vir a ser um patamar mais pleno de
participação direta da população na definição das políticas urbanas viabilizadas
através dos instrumentos de planejamento.
Assim, primeiramente pelo interesse de legitimação do planejamento urbano
pela participação popular, principalmente frente às pressões políticas circunstanciais
que se opõem ao entendimento das demandas dadas pela visão de futuro, o quadro
da gestão de Mário Kertész primou pela capacidade de identificar os problemas de
forma objetiva. A evidenciação do cenário de crise, a constatação da situação de
miséria e informalidade da maior parte da população e a desestruturação da
administração municipal foram a base sobre a qual se desenvolveu todo o plano de
governo, ratificado pelas demandas populares através do Programa Prefeitura nos
Bairros – e confirmados pela popularidade do prefeito e suas bandeiras.
53 Os tópicos apresentados nessa sequência apresentam uma metodologia mais geral que foi sistematizada por Peter José SCHWEIZER, “Tirando o Plano Diretor da Gaveta”, in: Revista de Administração Municipal, Rio de Janeiro, IBAM, jan-mar 2008, no. 265.
74
A identificação desses problemas permitiu a análise das necessidades e
identificação dos problemas locais; tal análise se deu sobre um padrão de
espacialização dos principais problemas, caracterizado pela recorrência da
ocupação de um conjunto de morros e fundos de vale pela população carente; falta
de equipamentos e infraestrutura; abandono da região central e desarticulação
generalizada dos transportes.
A partir da identificação dos problemas e da análise das necessidades, foi
possível conceber uma coordenação política dos programas setoriais de maneira a
integrar recursos. Essa articulação se deu inicialmente pela Casa Civil e pela
RENURB e posteriormente pela Secretaria de Finanças, na captação de recursos e
sua distribuição entre os diversos programas e projetos, de maneira integrada entre
si. O trabalho de coordenação consistia na orquestração dos diversos recursos
captados segundo as prioridades reconhecidas no plano de governo, porém de
forma a manter a coerência com as diretrizes da fonte financiadora.
A capacidade de integração de recursos e do planejamento frente às
situações possíveis na implementação dos programas só foi possível graças à
capacidade de experimentar inovações que transformaram a realidade local: o
desenvolvimento tecnológico do pré-moldado em uma escala inédita na construção
civil e na promoção de infraestrutura pública no Brasil até então. Foi justamente a
tecnologia desenvolvida que possibilitou atender adequadamente ao conjunto de
problemas referentes à falta de infraestrutura e precariedade das ocupações nos
vales da cidade.
Por fim, ficou evidente a capacidade de buscar qualidade de vida e ambiental
adequada à população; o saneamento e implantação de infraestrutura básica nos
diversos núcleos carentes da cidade, integrados à ampliação de acessibilidade e do
75
número de equipamentos públicos contribuíram tanto para a qualidade de vida da
população quanto para o saneamento ambiental, principalmente pela diretriz de
consolidar as ocupações de baixa renda, qualificando-as, quanto pela possibilidade
de adensá-las enquanto se realizava uma maior fiscalização contra a ocupação de
áreas novas.
Ainda com vistas para a experiência de Salvador, vale ressaltar a importância
de se fomentar uma cultura do planejamento, constituída por uma prática constante
de estudos e proposições objetivas sobre a realidade espacial do município de
maneira que a Administração possua sempre um corpo atualizado de peças dessa
natureza que possa embasar programas e projetos urbanos – e que configurem para
a sociedade organizada um conjunto de reflexões sobre o qual se pode
sistematicamente negociar o desenvolvimento do município.
Constatado o cenário anterior à gestão de Kertész enquanto um momento
especificamente favorável ao desenvolvimento do planejamento, ao menos pelo viés
tecnicista dominante em nível federal, foi possível absorver orientações bem
embasadas sobre a implementação de programas setoriais específicos para a
cidade, com destaque para o Programa de Transporte Coletivo (TRANSCOL).
As diretrizes básicas para o planejamento indicam a necessidade de se atuar
prevendo cenários possíveis, com base em hipóteses de desenvolvimento e com o
compromisso de sugerir a continuidade do processo de planejamento e de
implementação de seus programas. Novamente, apenas a pactuação social e o
embasamento técnico e teórico podem contribuir para que tais objetivos aconteçam,
dentro de um cenário de participação, reivindicação popular e balizamento técnico
da gestão pública. Relativamente, essa conjuntura estava esboçada no processo de
democratização que se anunciava à época do 1º. Governo de Kertész.
76
Resumidamente, paralelo ao contexto de produção continuada de estudos e
propostas de planejamento e de constante estímulo à participação civil através de
canais de consulta e decisão, é importante ressaltar um esboço de metodologia para
proposição de políticas públicas locais baseadas nos seguintes princípios:
racionalidade das proposições, economia de recursos e pensamento voltado para o
futuro; coordenação sistemática dos recursos através do foco nos agentes das
intervenções e no modo de realização54. Por esse conjunto de aspectos, a
administração de Kertész abrange largamente em seus programas e projetos uma
visão sistêmica e integrada das intervenções, no que pesem a coordenação dos
recursos, os agentes e o modo de implementação, através dos projetos da
RENURB.
Atualizando os tópicos de metodologia de planejamento incorporadas ao
contexto contemporâneo, principalmente após a descentralização na distribuição de
recursos tributários e de poder político, com a promulgação da Constituição de 1988
e, posteriormente, com a criação do Estatuto das Cidades, em 2001, pode-se
reconhecer a ampliação dos instrumentos disponíveis. A implementação das
diretrizes identificadas de forma mais ou menos embrionária na gestão de Kertész
foi facilitada pela disponibilidade de um novo marco legal para o planejamento das
cidades. O legado da experiência do seu governo se constitui principalmente pela
simbiose em que se expressaram a elaboração técnica, através da atuação de
excelência na pesquisa de Lelé com pré-moldados e da concepção integrada de
sociedade e cultura explicitadas por Roberto Pinho. Ainda que a abertura de
possibilidades com os novos instrumentos possam ter tornado esse tipo de
experimentação mais complexo, a referência que essa gestão constitui inspira uma
54 Peter SCHWEIZER, op. cit., p. 2.
77
revisão contemporânea da superação de modelos estanques de planejamento e
intervenção e que se reconheça de forma mais contundente a necessidade de
integração e articulação administrativa, inclusive como símbolo da necessária
integração social que a sociedade brasileira ainda não viabilizou e da qual sua
criatividade e desenvolvimento cultural irrestrito são credoras.
78
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