UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ (UFPI) Núcleo de Referências em Ciências Ambientais do Trópico Ecotonal do Nordeste (TROPEN) Programa Regional de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA) Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente (MDMA) ETNOBOTÂNICA E CARACTERIZAÇÃO DA PESCA NACOMUNIDADE CANÁRIAS, RESERVA EXTRATIVISTA MARINHA DO DELTA DO PARNAÍBA, NORDESTE DO BRASIL VICTOR DE JESUS SILVA MEIRELES TERESINA PI JANEIRO 2012
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ
(UFPI)
Núcleo de Referências em Ciências Ambientais do Trópico Ecotonal do Nordeste
(TROPEN)
Programa Regional de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente
(PRODEMA)
Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente
(MDMA)
ETNOBOTÂNICA E CARACTERIZAÇÃO DA PESCA NACOMUNIDADE
CANÁRIAS, RESERVA EXTRATIVISTA MARINHA DO DELTA DO
PARNAÍBA, NORDESTE DO BRASIL
VICTOR DE JESUS SILVA MEIRELES
TERESINA PI
JANEIRO 2012
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ
(UFPI)
Núcleo de Referências em Ciências Ambientais do Trópico Ecotonal do Nordeste
(TROPEN)
Programa Regional de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente
(PRODEMA)
Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente
(MDMA)
VICTOR DE JESUS SILVA MEIRELES
ETNOBOTÂNICA E CARACTERIZAÇÃO DA PESCA NACOMUNIDADE
CANÁRIAS, RESERVA EXTRATIVISTA MARINHA DO DELTA DO
PARNAÍBA, NORDESTE DO BRASIL
Trabalho apresentado ao Programa Regional de Pós-
Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente da
Universidade Federal do Piauí
(PRODEMA/UFPI/TROPEN), como requisito parcial
à obtenção do título de Mestre em Desenvolvimento e
Meio Ambiente. Área de Concentração:
Desenvolvimento do Trópico Ecotonal do Nordeste.
Linha de Pesquisa: Biodiversidade e Utilização
Sustentável dos Recursos Naturais.
Orientadora: Profa. Dra. Roseli Farias Melo de Barros
Co-orientador: Prof. Dr. Ulysses Paulino de
Albuquerque.
TERESINA
2012
VICTOR DE JESUS SILVA MEIRELES
ETNOBOTÂNICA E CARACTERIZAÇÃO DA PESCA NACOMUNIDADE
CANÁRIAS, RESERVA EXTRATIVISTA MARINHA DO DELTA DO
PARNAÍBA, NORDESTE DO BRASIL
Dissertação apresentada ao Programa Regional de
Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio
Ambiente da Universidade Federal do Piauí
(PRODEMA/UFPI/TROPEN), como requisito parcial
à obtenção do título de Mestre em Desenvolvimento e
Primeiramente a Deus, à minha esposa Melise, meus pais, Heitor e Amparo, irmãos, Dhwliany e Heitor Filho; À minha guia nessa jornada Dra. Roseli Barros, e aos amigos que me estenderam a mão e
compartilharam conhecimento: Rosimary, Benedito, Simone, Reurison, Alexandre e Cruzinha; E a todos que me ajudaram nessa conquista e que não foram citados.
5
AGRADECIMENTOS
A Deus, por me conceder o dom da vida, abrir meus caminhos e me permitir mais um
passo nesta caminhada.
Ao Programa Regional de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente
(PRODEMA/UFPI), na pessoa do coordenador Prof. Dr. José Luis Lopes Araújo, pela
oportunidade. Aos professores e pessoal de apoio do mesmo pela amizade e colaboração,
em especial aos amigos Sra. Maridete Alcobaça, Sr. Batista Araújo e Sr. Raimundo Lemos,
pelas boas conversas e a disposição à ajudar.
À Ilma Srª diretora da UESPI, MSc. Rosineide Candeia de Araújo, pela amizade e apoio na
liberação para que pudesse cursar o mestrado, bem como ao professor Luiz Gonzaga
Medeiros Figueredo pela ajuda na seleção e apoio após a aprovação.
Ao Sistema de Biodiversidade e Conservação (SISBIO) do Instituto Chico Mendes
(ICMBio) e ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da UFPI, pela aprovação do projeto.
À minha orientadora, Profa. Dra. Roseli Farias Melo de Barros, pela paciência, carinho e
compreensão nas orientações não apenas científicas.
A meu co-orientador, Prof. Dr. Ulysses Paulino de Albuquerque, pela atenção e valiosas
contribuições concedidas.
Aos pescadores da Comunidade Canárias, em especial a família da Sra. Maria Nilza
Aureliano Oliveira, pela hospitalidade. Ao Sr. Juvenal de Carvalho Gaspar pelas boas
conversas e ensinamentos sobre o conhecimento local. Ao Sr. Luiz Zeferino Lima e
família, pelas contribuições e recepção calorosa. A Alexandre Aureliano de Oliveira
(Lilio), pelas horas de ajuda em campo. Ao Sr. Pedro da Costa Silva (Pedro holandês) e
Geilson Faustino da Rocha (Cara-errada), pelas ajudas no transporte, campo, pela amizade
e momentos de descontração. À Sra. Lina Márcia, enfermeira do Programa de Saúde da
Família, pelas contribuições, que não foram poucas e por todas as informações concedidas.
Ao Sr. Francisco de Assis de Sousa, presidente da Colônia de pescadores Z-07 pela
autorização e demais contribuições de grande valia para o desenvolvimento da pesquisa.
Aos especialistas das diversas instituições, pelo auxílio nas identificações da flora e fauna.
À MSc. Maura Rejane Mendes, pela amizade, incentivo, por me conceder a oportunidade
de trabalhar, conhecer melhor e aprender a gostar de botânica.
Aos amigos do TROPEN, turma 2008-2010, Rosimary da Silva Souza (Rose), Maria
Pessoa da Silva (Cruzinha) e Alexandre Nojoza Amorim, bem como, aos amigos da turma
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2010-2011, Ethyênne Moraes Bastos e Maurício Eduardo Chaves e Silva pela amizade,
ajuda, apoio e incentivo e em especial, a Benedito Gledson de Oliveira (Bené) pela
amizade, incentivo, apoio e ajuda científica.
Aos colegas do Mestrado, turma 2009-2011, Reurison, Charlene, Elaine, Roberth,
Joaquim, Leonardo e Daniel Gomes pelos momentos juntos e de muita descontração. Em
especial à amiga Simoni Tupinambá, por sua amizade e ajuda grandiosa no trabalho de
campo.
Ao amigo Fábio José Vieira (Fabão) pela amizade, conversas e contribuições científicas.
Aos estagiários do Herbário Graziela Barroso (TEPB), pela amizade, e pelo auxílio na
herborização do material botânico.
À minha esposa, Melise Pessoa Araújo, pelo amor, compreensão, dedicação,
companheirismo, pela parceria na vida e na pesquisa, pelas horas de campo, pela
indispensável e imensurável ajuda no desenvolvimento deste trabalho.
À minha família, em especial aos meus pais Heitor Viana Meireles e Maria do Amparo
Silva Meireles, pela dedicação, amor, incentivo e orações, indispensáveis para realização
desta conquista. Aos irmãos Heitor Viana Meireles Filho e Dhwliany Silva Meireles, meu
avô José Rosa Pereira da Silva, meus sobrinhos Heitor Viana Meireles Neto e Maria
Cecília de Abreu Ibiapina Meireles. Aos cunhados Júlio Cesar Mendes Bezerra Filho e
Francisca Civana de Abreu Ibiapina Meireles, minhas madrinhas Maria de Fátima Silva
Ribeiro e Maria Gorethe Pereira Silva, minhas tias Rosa, Luíza, Teresa, Iraneide, aos tios
João Raimundo, João Fontinele, Jaime, e aos demais membros da família que não foram
aqui citados, pelo amor e compreensão dispensados a mim a todo e qualquer momento.
À minha nova família, minha sogra Sra. Marluce Pessoa Araújo, minhas cunhadas Marilda,
Antônia, Renata, Marluse (mana) e esposo Sergio Madeira. Em especial, a minha cunhada
Marlinda Pessoa Araújo, pelas contribuições científicas que me ajudaram a entrar no
presente programa de mestrado. Aos compadres Arlindo Candeira Araújo e Lidiane
Ramos, pelo apoio, incentivo e a sempre disposição a ajudar nas viagens, que não foram
poucas. Aos sobrinhos Sergio Madeira Ribeiro Júnior e Antônio Felipe, pelas
contribuições nas coletas de campo.
Aos primos Robson Wagner e Evaneide, por me receberem de braços abertos em sua casa
durante o programa, bem como, pela amizade e momentos de descontração.
A todos que direta ou indiretamente ajudaram no cumprimento deste trabalho.
Obrigado!!!
RESUMO
A RESEX Delta do Parnaíba, localizada no único delta em mar aberto nas Américas, é
uma região rica em diversidade biológica, espécies endêmicas e cultura. As comunidades
de pescadores artesanais da região possuem uma relação histórica com os recursos do
ambiente insular. Diante deste fato, bem como ciente da íntima ligação existente entre
conhecimento local e biodiversidade, investigou-se o conhecimento etnobotânico, os
instrumentos e técnicas de pesca e a construção artesanal de embarcações na comunidade
Canárias, com o intuito de colaborar com a preservação e conservação da biodiversidade
ali existente, bem como, contribuir com o resgate, a valorização e a manutenção da cultura
tradicional local. Foram aplicadas 100 entrevistas para coleta de dados etnobotânicos e a
técnica “turnê-guiada” para as coletas botânicas. Os indivíduos coletados foram
identificados e as informações sobre eles foram, juntamente com os dados das entrevistas,
submetidas às análises qualitativa e quantitativa. Registrou-se 108 espécies, distribuídas
em 49 famílias botânicas. As famílias com maior número de espécies foram:
Euphorbiaceae, Anacardiaceae e Poaceae. As categorias de uso medicinal, construção e
alimentícia, apresentaram um maior percentual de citações. A categoria forrageira se
mostrou pouco expressiva e a categoria “outros” abrigou alguns usos que foram
mencionados em menores proporções (artesanato, artefato de pesca e místico-religiosa). Os
sistemas corporais com o maior número de espécies de uso medicinal e com os maiores
valores de Fator de Consenso dos Informantes (FCI) foram: sintomas gerais, transtornos
gastrointestinais e transtornos respiratórios. De acordo com o índice de importância
relativa (IR) as espécies mais versáteis da comunidade foram: mangue vermelho
amazônico, ribeirinho/caboclo não-amazônico (varjeiro), sertanejo/vaqueiro e pescador
artesanal, lembrando ainda, que os grupos não-indígenas receberam forte influência dos
índios, tais como, no preparo de alimentos, na produção de cerâmica e nas técnicas de
construção de instrumentos para caça e pesca, dentre outros.
Para Almeida, Proença, Sano e Ribeiro (1998) estas comunidades sejam indígenas,
rurais ou urbanas, trazem consigo uma grande diversidade cultural representando o
etnoconhecimento sobre o manejo das espécies nativas de sua região.
No Brasil não há legislação que trate especificamente das populações tradicionais,
no entanto, a Lei Nº 11.428, de 22 de dezembro de 2006, faz referência a estas em seu Art.
3º, inciso II, e as define como “população vivendo em estreita relação com o ambiente
natural, dependendo de seus recursos naturais para a sua reprodução sociocultural, por
meio de atividades de baixo impacto ambiental”. Esta definição, porém é questionável uma
vez que, nem todas as populações que levam o status de tradicional possuem relações
sustentáveis com o meio.
Segundo Santilli (2002, p. 54) observando-se juridicamente, “a primeira lei
nacional a empregar a expressão ‘populações tradicionais’ foi a Lei 9.985/2000, que
instituiu [...] o (SNUC)”. Sobre a referida lei, essa autora comenta:
Embora não conceitue, de forma direta, o que são “populações tradicionais”,
a referida lei cria a chamada “reserva de desenvolvimento sustentável”,
definida como uma área natural que abriga populações tradicionais, cuja
existência baseia-se em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos
naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às condições
20
ecológicas locais e que desempenham um papel fundamental na proteção da
natureza e na manutenção da diversidade biológica (SANTILLI, 2002, p. 54).
Deste modo, percebe-se que a dependência do meio ambiente ao seu entorno fez
com que estas populações criassem uma forte relação com o mesmo, conhecendo-o,
utilizando-o e transmitindo um modo de vida que manteve seus recursos por gerações e
que os fazem ainda disponíveis às presentes gerações, e uma vez mantida esta cultura, estes
também servirão a seus descendentes. O conhecimento que envolve esta relação, embora
não científico, pode, em muitos casos, fornecer sua contribuição na busca do homem por
relações mais sustentáveis.
2.2 O Conhecimento Tradicional
Segundo Diegues e Arruda (2001, p. 31) “conhecimento tradicional é definido
como o conjunto de saberes e saber-fazer a respeito do mundo natural, sobrenatural,
transmitido oralmente de geração em geração”. O conhecimento local, como também é
chamado, é gerado a partir da relação histórica existente entre as comunidades locais e o
meio ambiente em que vivem, e estando intimamente relacionado ao meio onde foi
produzido e que, em prática, permitiu, em muitos casos, a utilização de seus recursos sem
levá-los à exaustão. Sobre o referido conhecimento Albuquerque, Alves e Araújo (2007, p.
107) afirmam que:
[...] ao longo do tempo temos percebido que a discussão sobre
etnoconhecimento fundamenta-se essencialmente naquilo que provavelmente
o ser humano tem de mais valoroso: um saber que é experimentado na prática
cotidiana dos afazeres e na pluralidade cultural das populações humanas que
habitam e se adaptam à ambientes mais diversificados.
Observando a legislação nacional vigente, encontra-se a definição de conhecimento
tradicional no Art. 3º do Decreto 118 de 2002, como sendo:
[...] todos os elementos intangíveis associados à utilização comercial ou
industrial das variedades locais e restante material autóctone desenvolvido pelas populações locais, em coletividade ou individualmente, de maneira não
sistemática e que se insiram nas tradições culturais e espirituais dessas
populações, compreendendo, mas não se limitando a conhecimentos relativos
a métodos, processos, produtos e denominações com aplicação na agricultura,
alimentação e atividades industriais em geral, incluindo o artesanato, o
comércio e os serviços, informalmente associados à utilização e preservação
das variedades locais e restante material autóctone espontâneo abrangidos
pelo disposto no presente diploma (BRASIL, 2011).
21
Uma questão intrigante é o fato que por muito tempo acreditou-se na existência de
uma mentalidade dita “pré-lógica” acerca dos conhecimentos não científicos. Dentro desse
contexto, estavam os grupos humanos tradicionais e o conhecimento originado por eles.
Sobre o tema Arruda (1999, p. 88) descreve que:
Há quase um século de reflexão antropológica sobre um crescente volume de
dados etnográficos e culturais comprovando a falácia da existência de uma
mentalidade “pré-lógica” dos povos culturalmente diferenciados [...] percebe-
se hoje a existência de racionalidades diferenciadas, relativas a formas
socioculturais específicas [...] com semelhante grau de pensamento abstrato,
raciocínio científico e também mítico, equivalentes, com todas as suas
diferenças, ao da racionalidade de nossa sociedade.
Deste modo, percebe-se que o conhecimento não científico apresentado pelos povos
tradicionais, trata-se de um conhecimento com racionalidade diferenciada, mas não menos
importante e até mais funcional se considerado a utilidade do mesmo para as comunidades
onde o mesmo foi gerado, sendo muitas vezes indispensáveis para garantia de alimentos ou
renda.
O senso comum, no qual se fundamenta o conhecimento tradicional, e o científico
não podem em momento algum sequer ser comparados, por se tratarem de formas distintas
de conhecimento. Para Alves e Souto (2010, p. 40) eles “nos apresentam visões de ordens
muito diferentes uma da outra”, porém o autor defende a existência de uma continuidade
entre pensamento científico e senso comum, considerando-os como expressões de uma
mesma necessidade básica de se compreender o mundo na busca pela sobrevivência e
melhoria na qualidade de vida. Desse modo, percebe-se que, ambos possuem seu espaço e
importância devendo o senso comum e a ciência, serem somados na busca por uma
racionalidade ambiental.
Diegues e Arruda (2001, p. 32) por sua vez colocam que “o conhecimento
tradicional somente pode ser interpretado dentro do contexto da cultura em que ele é
gerado”.
Para Albuquerque (2005a, p. 21), em se tratando de conhecimento tradicional, este
é compreendido pelas “experiências e saberes acumulados por um grupo humano sobre
seus recursos naturais”, e como estas comunidades dependem desses recursos no seu dia a
dia, demonstra que este surge das práticas cotidianas.
Sobre a capacidade de organização e reprodução do conhecimento local, as diversas
sociedades de culturas diferenciadas possuem a habilidade de reconhecer o ambiente ao
seu redor, tendo a sensibilidade de perceber as diferenças e semelhanças entre as suas
estruturas, nomeando em categorias e unidades os frutos dessa observação. Segundo
22
Albuquerque (2005b) estas classificações chamadas de pré-científicas ou taxonomias de
folk, compõem os denominados sistemas vernaculares. Para esse autor “em todas as
culturas os homens desenvolvem estratégias que lhes asseguram a organização e
classificação do mundo vegetal, nomeando de forma inclusiva dentro de uma hierarquia”
(ALBUQUERQUE, 2005b, p. 41). Essa organização e classificação biológica não estão
restritas ao conhecimento sobre a flora, mas desenvolve-se também no que tange a fauna,
onde tais populações também são detentoras de um vasto conhecimento.
A oralidade e a observação têm também um papel fundamental nesse processo,
sendo os mecanismos pelo qual essa gama de conhecimento é repassado. É na observação
diária das atividades que o aprendiz familiariza-se com a atividade assimilando-a. A
oralidade por sua vez preenche todas as lacunas deixadas pela observação, onde é
repassado de forma direta o conhecimento dos mais experientes aos mais jovens. Para
Toledo e Barrera-Bassols (2010, p. 19) “o saber tradicional é compartilhado e produzido
mediante o diálogo direto entre o indivíduo, seus pais e avós (em direção ao passado) e/o
entre o indivíduo, seus filhos e netos (em direção ao futuro) com a natureza”. Sobre o tema
Amorozo (1996, p. 11) comenta que:
Em sociedades tradicionais, a transmissão oral é o principal modo pelo qual o
conhecimento é perpetuado. O conhecimento é transmitido em situações, o
que faz que a transmissão entre gerações requeira contato prolongado dos
membros mais velhos com os mais novos.
O produto final desse processo é a materialização, expressa em práticas, de um
conhecimento que, embora sem um registro escrito, está guardado na memória destes
povos por gerações e que compõe a sua própria identidade étnica. Ao referir-se a
identidade étnica de povos tradicionais indígenas, Muños (2003, p. 283) afirma que esta é
“expressa em diversas recreações de mundo e ethos1 comunitário através de símbolos e
rituais reconhecidos em sistemas referenciais da memória oral”. Este autor comenta, ainda,
que nesse espaço de memória e reconstrução de saberes destaca-se a importante
participação dos saberes tradicionais na acumulação de conhecimentos sobre o meio.
1 “O ethos de um povo é o tom, o caráter e a qualidade de sua vida. seu estilo moral e estético; a disposição do seu ânimo;
trata-se da atitude subjacente que um povo tem ante si mesmo e ante o mundo que a vida reflete. A sua cosmovisão é o seu retrato [...] é a sua concepção da natureza, da pessoa, da sociedade” (GEERTZ apud MUÑOS, 2003, p. 286).
23
2.3 Etnobiologia: Investigando o Conhecimento Biológico Tradicional
Durante muito tempo, era praticamente impensável o estabelecimento de relações
possíveis entre as Etnociências e a ciência moderna, bem como, a própria existência dessas
ciências, inexistindo também a possibilidade de juntar o prefixo «éthnos-» a «scientiae»
(DIAS; JANEIRA, 2005). Contrariando tais afirmações as Etnociências firmaram-se como
ciências e contribuem para o acúmulo de conhecimento sobre as relações entre pessoas e as
diversas áreas de conhecimento. De acordo com Diegues et al. (1999, p. 37):
[...] entre os enfoques que mais têm contribuído para se estudar o
conhecimento das populações ‘tradicionais’ está a etnociência que parte da
linguística para estudar o conhecimento das populações humanas sobre os
processos naturais, tentando descobrir a lógica subjacente ao conhecimento
humano do mundo natural, as taxonomias e classificações totalizadoras.
Dentro da Etnociência temos a Etnobiologia que “classicamente tem sido definida
como o estudo das interações das pessoas com o seu ambiente” (ALBUQUERQUE, 2005a,
p. 19). Para Posey (1986, p. 15) ela representa “o estudo do conhecimento e das
conceituações desenvolvidas por qualquer sociedade a respeito do mundo vegetal e
animal”.
De acordo com Santos-Fita e Costa-Neto (2007, p. 100) “valendo-se dos
paradigmas e da epistemologia da ciência moderna, da qual faz parte, a Etnobiologia
fornece um arcabouço teórico para interligar diferentes áreas das ciências sociais e naturais
com outros sistemas de conhecimentos não-acadêmicos”.
É importante destacar que existe uma íntima relação entre o conhecimento
tradicional sobre a diversidade biológica local, seus usos e a própria diversidade em si. As
populações tradicionais são conhecedoras dessa biodiversidade, uma vez que convivem
com a mesma e utilizam benefícios que esta os proporciona. A diversidade de espécies
conhecidas passa então a ser uma fonte para se determinar a diversidade de espécies locais.
Para Hanazaki, Mazzeo e Souza (2006, p. 203) a relação entre a biodiversidade e a
diversidade de conhecimento e uso de espécies pode ser investigada também “mensurando
a diversidade cultural através do conhecimento sobre espécies biológicas”.
As populações tradicionais além de conviver com a biodiversidade, nomeiam e
classificam as espécies vivas segundo suas próprias categorias e nomes. Então, para as
comunidades tradicionais a diversidade de espécies não é completamente selvagem e dessa
24
forma pode ser domesticado e manipulado. Outra diferença seria que essa diversidade da
vida encontrada não é tida como um ‘recurso natural’, mas como um conjunto de seres
vivos que possuem um valor de uso e um valor simbólico (DIEGUES et al., 1999).
Posey (1987) destaca que o conhecimento das comunidades tradicionais, sejam
estas indígenas ou não-indígenas, não se encaixam nas categorias e subdivisões
organizadas artificialmente pela Biologia. Contudo, o desenvolvimento dos estudos na área
demonstra cada vez mais que este conhecimento não deixa de apresentar lógica em sua
classificação hierárquica.
No que se referem à estruturação multidisciplinar da Etnobiologia, Diegues e
Arruda (2001, p. 37) afirmam que:
[...] a partir da década de 1970, tornaram-se mais frequentes os trabalhos de
etnociência em suas diversas subdivisões, como a etnobiologia, a
etnobotânica, a etnofarmacologia e a etnomedicina. Esses últimos apresentam
também etnoclassificações da flora e da fauna pelas populações tradicionais.
Dentro desse contexto, destacam-se as ciências Etnobotânica e Etnozoologia, como
sendo as vertentes mais desenvolvidas e estudadas no Brasil.
2.3.1 Etnobotânica
Um dos campos mais desenvolvidos dentro da Etnobiologia é a Etnobotânica que
“[...] tem como interesse central captar as diferentes dimensões e aspectos da inter-relação
de grupos humanos e o ambiente vegetal, bem como os processos que levam a mudanças
nesta relação ao longo do tempo” (ALBUQUERQUE; LUCENA; ARAÚJO, 2008, p. 81).
Por intermédio das investigações etnobotânicas chega-se ao acúmulo de
conhecimentos que segundo Albuquerque (2005 b, p. 63) permitem:
1) A descoberta de substâncias de origem vegetal com aplicações médicas e industriais; 2) Conhecimento de novas aplicações para substâncias já
conhecidas; 3) O estudo das drogas vegetais e seu efeito no comportamento
individual e coletivo dos usuários frente a determinados estímulos culturais e
ambientais; 4) O reconhecimento e preservação de plantas potencialmente
importantes em seus respectivos ecossistemas; 5) Documentação do
conhecimento tradicional e dos complexos sistemas de manejo e conservação
dos recursos naturais dos povos tradicionais; 6) O descobrimento de
importantes cultivares manipulados tradicionalmente e por nossa ciência
desconhecidos.
25
Diante do exposto, observa-se que o conhecimento botânico tradicional embora
não-científico contribui com a ciência ao abrir um leque de opções no que tange a novos
objetos de estudos que podem ser desenvolvidos em diversas vertentes sejam na medicina,
indústria ou na busca de modelos conservacionista de relacionamento com a natureza.
Muitas espécies com valor medicinal ou industrial foram descobertas após a observação de
seus usos por estas comunidades e seus benefícios passaram então ser indispensável à
sociedade como um todo.
2.3.2 Etnozoologia
Com relação à Etnozoologia, esta emerge do campo das Etnociências e “busca
compreender como os mais variados povos percebem e interagem com os recursos
faunísticos ao longo da história humana” (ALVES; SOUTO 2010, p. 25), investigando
seus significados, conhecimento e uso, bem como visa perceber a influência que estes
exercem sobre aquela cultura.
Santos-Fita e Costa-Neto (2007, p. 100) descrevem que o termo Etnozoologia teve
sua origem nos Estados Unidos ao final do século XIX, mas apenas aparecendo em um
artigo no ano de 1914, cujo título era: Ethnozoology of the Tewa Indians, publicados por
Henderson e Harrington.
A relação entre pessoas e animais é antiga e remonta aos primórdios da existência
humana. De acordo com Alves e Souto (2010, p. 23), as “culturas de todo mundo tem
desenvolvido diferentes formas de interação com a fauna através da história cuja [...]
variedade de interações (passadas e atuais) [...] é abordada pela perspectiva da
Etnozoologia”. Dentro desse contexto, a importância de compreendê-las mostra-se na
necessidade que o homem moderno tem na busca de relações mais sustentáveis com a
natureza como forma de garantir sua existência futura.
2.4 A Pesca e o Pescador Artesanal como Fontes de Conhecimentos
Houve um aumento significativo do interesse pela Etnobiologia das comunidades
de pescadores tradicionais. O fato deve-se a atual percepção por parte dos pesquisadores da
26
grande quantidade de conhecimento que estas populações possuem sobre a biologia e
ecologia dos espécimes com quem se relacionam em suas atividades diárias. Para Pezzuti
et al. (2010, p. 450) “[...] o detalhado conhecimento que pescadores e caçadores
adquiriram, por sua própria experiência e pelo aprendizado oralmente transmitido ao longo
das gerações, tem vasta aplicabilidade”.
No Brasil a pesca artesanal “representa mais da metade da produção pesqueira
nacional” (BEGOSSI et al., 2009, p. 39), o que demonstra sua importância para economia
nacional. Não menos importante é o conhecimento gerado a partir desta atividade,
percebido nos costumes daqueles que sobrevivem dela. Sobre a categoria de pescadores,
Diegues, Arruda, Silva e Figols (1999, p. 59) afirmam que os pescadores artesanais “[...]
praticam a pequena pesca, cuja produção em parte é consumida pela família e em parte é
comercializada. A unidade de produção é, em geral, a familiar, incluindo na tripulação
conhecidos e parentes mais longínquos”.
Deste modo, além de fonte de renda a atividade compõe a base alimentar local,
promovendo um ambiente de convívio familiar onde se desenvolvem práticas e
aprendizagem.
Dentre as comunidades de pescadores reconhecidos, Diegues e Arruda (2001, p. 49)
citam sobre os grupos denominados praieiros (habitantes da faixa litorânea entre Piauí e
Amapá) como possuidores de características socioculturais diferenciadas das demais
comunidades litorâneas e destacam a grande influência que estes sofrem diante da
diversidade de ecossistemas e habitats da região. Segundo estes autores, o Maranhão
encontra-se dentro desse contexto e detém uma grande variedade de embarcações “a vela”,
sendo mais recentemente, introduzidas as embarcações motorizadas, ambas utilizadas na
pesca e no transporte entre as comunidades. Por fim, destacam a pesca como principal
atividade destas comunidades, sendo a renda, muitas vezes, complementada com a
agricultura em pequena escala, extrativismo e o turismo.
O conhecimento destas comunidades não se restringe apenas à atividade pesqueira.
Muitas destas populações têm certo grau de isolamento e aprenderam a sobreviver apenas
dispondo dos recursos que ali se encontram. Deste modo, utilizam, por exemplo, de sua
flora: para extrair madeira para suas moradias, construções de embarcações e produção de
carvão para preparar seus alimentos; palha para coberturas das casas; folhas raízes e súber
para composição de medicamentos naturais e frutos para alimentação diária. Fazem uso
também da fauna local, como: a cata do caranguejo (Ucides cordatus Linnaeus, 1763),
27
pesca do siri (Callinectes bocourti A. Milne-Edwards, 1879), diversas caças para
alimentação, dentre outros.
2.5 Pesquisas Etnobiológicas com Pescadores Artesanais
Segundo Diegues (1999, p. 15) “os estudos de sociedades de pescadores se
iniciaram já nos inícios (sic) da Etnologia2, quando os pesquisadores ingleses começaram a
fazer ciência com base em trabalhos de campo”. Na atualidade são inúmeros os trabalhos
realizados com populações tradicionais no Brasil e no exterior que visam descrever o modo
de vida dessas populações, bem como, a maneira com que percebem e se relacionam com a
natureza.
Dentre estes estudos tem-se destacado o crescimento do número dos trabalhos
realizados com comunidades pesqueiras, tais como Rossato et al. (1999), Hanazaki et al.
(2000), Moreira et al. (2002), Roman e Santos (2006), Oliveira et al. (2006), Souto (2008),
Melo et al. (2008), Sousa (2010), dentre outros. Estas comundades, por sua vez, vêm
chamando atenção dos etnobiólogos por apresentarem grande conhecimento sobre a
atividade pesqueira artesanal, fauna/flora e relações ecológicas.
Dentro da estrutura multidisciplinar da Etnobiologia observa-se o desenvolvimento
de estudos nos seus diversos enfoques dos quais a presente pesquisa abrangerá
especificamente as subáreas Etnobotânica e Etnozoologia, fazendo deste modo uma análise
em torno dos principais estudos desenvolvidos nessas áreas.
2.5.1 Pesquisas Etnobotânicas
Rasolofo (1997) desenvolveu trabalho com pescadores na África, especificamente
em vilas da região noroeste e oeste da costa de Madagascar, visando analisar
quantitativamente o uso dos recursos naturais advindos do manguezal, bem como, realizar
comparação deste com a sua disponibilidade e capacidade de renovação. Dentre os
diversos usos encontrados, esse autor descreve a madeira do mangue como sendo usada na
2 “Parte da antropologia, que procura generalizar e sistematizar os conhecimentos a respeito dos diferentes povos e suas
culturas”. (FERREIRA, 2001, p. 301)
28
construção de casas, combustível para cozimento de alimentos, para fabricação de
embarcações pesqueiras, armadilhas para pesca, e para tratar o pescado. Observou na
degradação do ecossistema a já presente escassez de espécies no mangue local o que
representa um uso superior a capacidade de renovação natural.
Rossato, Leitão-Filho e Begossi (1999) desenvolveram estudo em cinco
comunidades caiçaras da costa sudeste do Brasil, sobre o uso de plantas. Compararam as
citações de plantas medicinais entre informantes de comunidades da costa e de ilhas.
Encontraram uma alta diversidade de plantas (276) usadas na costa da mata atlântica,
usadas para alimento, medicina e construção. A similaridade entre as espécies de plantas
mencionadas foi relativamente baixa e o valor de uso das plantas indicadas tem
importância específica para cada comunidade. Concluíram que os caiçaras são dependentes
da medicina tradicional, e as plantas utilizadas para esta finalidade foram especialmente
citadas nas entrevistas.
Hanazaki et al. (2000) realizaram trabalho com pescadores, habitantes nativos da
costa do Atlântico no estado de São Paulo, nas comunidades Ponta do Almada e Praia de
Camburí sobre o conhecimento tradicional destes, sobre o ambiente e sua relação com
conservação da Mata Atlântica. Levantaram 227 etnoespécies, correspondendo a 214
espécies científicas e 74 famílias botânicas. Observaram que não houve diferença entre a
diversidade de plantas citadas nas duas comunidades para o conhecimento geral das plantas
e seu uso. Concluíram que os pescadores estudados conhecem e utilizam mais da metade
das espécies nativas.
Rondon (2003) desenvolveu trabalho com indígenas no Peru, sobre a construção de
balsas, utilizando para isso, a técnica de observação participante3. Estes autores
observaram o uso do Schoenoplectus californicus (C.A. Mey.) Soják: Cyperaceae na
construção do corpo da embarcação; da Furcraea andina Trel. (Agavaceae) cujas folhas
serviam para confeccionar uma espécie de corda que amarravam os feixes, e o caule de
Guadua angustiolia Kunth (Poaceae), para fabricação do remo. Concluíram que houve
uma diminuição no uso das plantas devido à proporcional diminuição destas no local.
Quanto a confecção das embarcações, observaram que o processo se mantem quase que
3Técnica que busca a interação entre o pesquisador e os membros da comunidade estudada na busca da
compreensão do modo como opera a cultura em questão e a visão de mundo dos atores sociais estudados
(Amorozo, 1996).
29
inalterado ao longo do tempo, demonstrando o importante papel que os pescadores da
região possuem na conservação do conhecimento tradicional acerca da confecção dessas
embarcações.
Melo, Lacerda e Hanazaki (2008) objetivaram efetuar um estudo etnobotânico com
espécies de restinga, na localidade da Praia do Pântano do Sul da Ilha de Santa Catarina.
Foram aplicadas entrevistas através de “check list” e entrevistas com informantes-chave
em turnês-guiadas, com 43 moradores selecionados ao acaso (20,00%), onde pesquisaram
o conhecimento sobre 10 espécies previamente selecionadas e com listagem livre de
espécies. Foram listados 69 nomes populares, 47 gêneros e 39 espécies, distribuídas em 31
famílias. As três categorias de uso mais citadas nas duas metodologias foram: medicinal,
seguida por alimentar e artesanal. Verificaram que a comunidade tem conhecimento sobre
a utilização das plantas de restinga e que este conhecimento está concentrado
principalmente entre as pessoas mais idosas.
Roman e Santos (2006) realizaram trabalho com pescadores na ilha de Algodoal,
Praia da Princesa em Maracanã/PA. Objetivaram determinar a importância das espécies
medicinais da restinga na cultura local, aplicando entrevistas estruturadas e
semiestruturadas com 30 casais residentes nas três principais ruas da vila. As espécies
medicinais foram determinadas por um inventário etnobotânico auxiliado por dois
colaboradores locais de maior experiência no uso da flora nativa. Identificaram na restinga
da Princesa 24 espécies medicinais, distribuídas em 19 famílias. A população de Algodoal
utiliza, contudo, plantas vindas de outros ambientes, totalizando 80 espécies para fins
terapêuticos.
Oliveira, Potiguara e Lobato (2006) conduziram estudo com pescadores na
microrregião do Salgado/PA para identificar as fibras vegetais utilizadas na pesca
artesanal. Aplicaram 150 entrevistas semiestruturadas a artesãos e pescadores artesanais,
registrando 17 espécies, distribuídas em 8 famílias e 17 gêneros. Observaram o uso das
talas da haste caulinar de uma Marantaceae e o estipe de Arecaceae; os cipós são raízes de
Araceae e Cyclanthaceae e os caules de Bignoniaceae e Dilleniaceae, enquanto que as
palhas são folhas e pinas de Arecaceae. A família mais representativa em número de
espécies e no fornecimento de matéria prima foi Arecaceae (8), seguida de Dilleniaceae e
Araceae (2), Bignoniaceae, Bombacaceae, Cyclanthaceae, Marantaceae e Poaceae (1). As
fibras vegetais são usadas em cestaria, trançados, fixadoras em substituição ao prego,
adornos e vestuário.
30
Souto (2008), levantou dados etnobotânicos no Distrito de Acupe, Santo
Amaro/BA, sobre os bosques de mangues e a pesca artesanal realizada por pescadores e
marisqueiras. Para tal fim, foram aplicadas entrevistas semiestruturadas. Os dados obtidos
revelaram um conhecimento possuído pelos entrevistados sobre a vegetação do manguezal,
incluindo classificação, ecologia trófica, fenologia e ecozoneamento e percepção
ecossistêmica, por vezes compatíveis com os conhecimentos acadêmicos. Interações da
comunidade pesqueira com o componente vegetal revelaram formas de percepção e de
utilização de recursos fortemente associadas à cultura local e com implicações
etnoconservacionistas.
Morais, Morais e Silva (2009) abordaram o conhecimento ecológico tradicional
sobre plantas cultivadas na comunidade de Estirão Comprido, Barão de Melgaço/MT. Na
coleta dos dados foram entrevistados 22 pescadores para a elaboração de uma lista livre de
plantas. Foram identificadas rupturas no domínio cultural sobre plantas cultivadas,
concentrando-se em 116 etnoespécies. A análise de consenso cultural demonstrou um
consenso, concentrando-se em 18 etnoespécies. A análise de empilhamento evidenciou que
o conhecimento sobre plantas está relacionado aos diferentes tipos de uso. Para os autores,
as possibilidades de uso e manejo podem contribuir para a elaboração de políticas públicas
destinadas à conservação da biodiversidade ecológica e cultural.
Moreira et al. (2002) conduziram pesquisa na comunidade de Vila Cachoeira,
Ilhéus/BA com o objetivo de resgatar o conhecimento da comunidade sobre o uso de
plantas medicinais. Foram entrevistados cinco informantes-chave, através de entrevista
informal e formulários semiestruturados. A análise final mostrou a ocorrência de 85
espécies de plantas medicinais, sendo usadas na forma de chá (48,00%), xarope (19,00%),
banho (16,00%), outras administrações (9,00%). A parte mais utilizada das plantas foi
folha (64,00%), planta inteira (13,00%), fruto (8,00%), casca (7,00%) e outras partes
(8,00%) como látex.
Sousa (2010) investigou a etnobotânica das comunidades pesqueiras, Barra Grande
e Morro da Mariana na APA do Delta do Parnaíba/PI, como modo de contribuir na
valorização e preservação da biodiversidade e da cultural local. Aplicou 161 entrevistas a
pescadores artesanais através de “bola-de-neve”, e adotou “turnê-guiada” para coleta
botânica. Foram referidas 263 espécies vegetais, distribuídas em 93 famílias. As categorias
de uso medicinal e alimentícia foram as mais referidas. A Copernicia prunifera (Mill.)
H.E. Moore apresentou maior potencial de uso. Não houve diferença significativa no
31
conhecimento por gênero e quanto à faixa etária, idosos têm maior conhecimento acerca
das espécies úteis. Segundo a autora o conhecimento etnobotânico deve ser considerado na
conservação e preservação biológica, e como parte na cultura local, no sentido de
incentivar atividades sustentáveis.
Amorim (2010) realizou estudo etnobotânico em quintais urbanos na comunidade
de pescadores artesanais do bairro Poti Velho em Teresina/PI, buscando conhecer o
potencial da flora dos quintais e suas formas alternativas de uso e manejo. Aplicou
entrevistas semiestruturadas a 30 mulheres e 30 homens, com idades entre 18 e 76 anos. O
autor constatou que as aquisições das plantas existente nos quintais se deram pelo
recebimento de mudas ou trocas com os vizinhos. As espécies exóticas cultivadas
predominam, fato que se deve a maior vivência em meio urbano. A categoria com maior
número de citações de espécies foi a medicinal (69,3%). Segundo esse autor, o
conhecimento etnobotânico é maior entre mulheres adultas. Os quintais apresentaram
grande similaridade entre si, e são espaços de convívio e de cultivo de várias espécies, em
sua maioria, plantas medicinais.
Carneiro, Barbosa e Menezes (2010) estudaram as plantas nativas úteis na vila de
pescadores da RESEX Marinha Caeté-Taperaçú/PA. Foram aplicadas 30 entrevistas semi-
estruturadas. Os pescadores citaram 23 espécies úteis em sua maioria pertencentes aos
ecossistemas manguezal ou restinga. A categoria alimentos foi destaque entre as espécies
da restinga, já as categorias “construção” e “tecnologia” se destacaram sobre as espécies do
manguezal. O índice de diversidade de Shannon encontrado foi alto (H’=2,3), que segundo
os autores, se deu ao fato da grande citação de uso das espécies do mangue. Esses autores
destacam que devido a grande utilidade apresentada pelas espécies nativas, as políticas de
uso e preservação das RESEX marinhas devem voltar mais atenção no que tange a
exploração dos recursos vegetais.
2.5.2 Pesquisas Etnozoológicas
A Etnozoologia, como ciência, vem tentando descrever essa relação expressa
muitas vezes pelo valor de utilidade que os animais possuem para uma dada comunidade,
seja econômico ou de subsistência, e em sua diversidade de usos como alimento, medicina
alternativa, e outros mais. Dentre estes trabalhos destacamos os realizados em
comunidades pesqueiras e que envolvem principalmente o conhecimento sobre a
32
ictiofauna, sendo esse conhecimento desenvolvido ao longo de uma relação de
dependência e tradição.
Mourão e Nordi (1999) desenvolveram trabalho com as comunidades de pescadores
artesanais Barra de Mamanguape e Tramataia, estuário do rio Mamanguape/PB, com o
objetivo de resgatar conhecimentos acerca do comportamento reprodutivo, migratório, de
defesa e alimentar de peixes estuarinos. Aplicaram entrevistas livres e questionários a
pescadores experientes. Os resultados mostraram a existência de categorias tróficas e
categorias baseadas em comportamento dos peixes. Para esses autores, os dados obtidos no
trabalho geram informações sobre o estado atual da cultura pesqueira das comunidades
estudadas e sugerem a importância da preservação das mesmas.
Costa-Neto, Dias e Melo (2002) realizaram trabalho com pescadores artesanais na
cidade de Barra/BA. Aplicaram entrevistas livres e semiestruturadas a 15 informantes (10
homens e 5 mulheres) com o objetivo de registrar os aspectos cognitivos e culturais
relacionados com as espécies de peixes locais. Dezoito espécies foram coletadas e
identificadas. Os resultados revelam que os pescadores ainda possuem conhecimentos
teóricos e práticos importantes que devem ser considerados em estudos de manejo,
conservação e uso sustentável dos recursos pesqueiros.
Souza e Barrela (2001) estudaram o conhecimento popular sobre peixes na
comunidade Vila Barra do Uma, na Estação Ecológica de Juréia-Itatins (EEJI), Peruíde/SP.
Entrevistaram 13 pescadores com idades entre 37 e 77 anos. Caracterizaram a pesca
artesanal desenvolvida como familiar e elaboraram uma listagem com 38 etnoespécies
citadas; 10 foram coletadas, fixadas e identificadas de bibliografia especializada. O
Centropomus undecimalis Bloch, 1792 e a (Mugil sp) foram apontados por 100% dos
pescadores como os peixes mais comuns. Os pescadores demonstraram um extenso
conhecimento acerca da ictiofauna local e das características morfológicas e
comportamentais dos peixes.
Costa-Neto e Marques (2001) tratam das atividades de pesca desenvolvidas por
pescadores artesanais de Siribinha, Conde/BA. Por meio de entrevistas abertas e
observações de campo, registraram informações culturais sobre apetrechos de pesca, ciclo
lua-maré, pesqueiros, sistemas de posse, segredos de pesca, conflitos entre grupos sociais,
mudanças sócio-ambientais oriundas do processo de urbanização e do turismo. A pesca
artesanal é familiar e todos estão envolvidos na atividade e no beneficiamento. O
entendimento das atividades de pesca e o conhecimento dos pescadores sobre o
33
comportamento, ecologia e distribuição espacial e temporal das espécies de peixes
implicam o uso correto dos apetrechos de pesca e a devida apropriação dos recursos
pesqueiros. Sugerem a inclusão da cultura pesqueira local nos planos de desenvolvimento,
a fim de levar a um desenvolvimento ecologicamente sustentável.
Alarcon e Schiavetti (2002) realizaram estudo com pescadores do município de
Itacaré/BA, objetivando resgatar o conhecimento tradicional da comunidade sobre a fauna
de vertebrados (não peixes) associada à pesca. Entrevistaram 35 pescadores, selecionados
ao acaso e seus conteúdos foram analisados de acordo com o modelo de união de
competências individuais. Identificaram uma espécie de ofídeo, cinco espécies de
tartarugas marinhas, 13 gêneros e cinco espécies de aves litorâneas e cinco espécies de
cetáceos. Os autores concluíram que os pescadores artesanais de Itacaré possuem um
amplo e detalhado conhecimento sobre as espécies de vertebrados (não peixes), associados
às atividades pesqueiras, sendo este coerente com o encontrado por pesquisadores e que
deve ser considerado na elaboração do plano de manejo da RESEX.
Alves, Nishida e Hernandez (2005) estudaram sobre a percepção ambiental dos
catadores de caranguejo-uçá (Ucides cordatus Linnaeus, 1763) nas florestas de mangue do
rio Mamanguape/PB. Observaram que os coletores de caranguejo-uçá desenvolveram um
conhecimento íntimo da história natural desta espécie e habilidades que tornaram a colheita
mais eficiente. Os autores comentam que a natureza ímpar deste conhecimento
local demonstra a necessidade de considerar esses fatores na implementação de planos de
manejo de ecossistemas de mangue do litoral e defendem que o conhecimento dos
coletores pode fornecer uma base útil para compreensão dos estoques de caranguejo locais
e sua população. Esses autores ressaltam ainda que este tipo de informação pode ser
utilizada para criação de reservas extrativistas, bem como para delimitar a época de
colheita e para a criação de áreas protegidas.
Nishida, Nordi e Alves (2006) pesquisaram os moluscos capturados e os coletores
de moluscos no estuário do rio Paraíba do Norte/PB, objetivando encontrar uma possível
relação entre as informações científicas e a condição de moluscos a partir das declarações
empírica desses coletores. Observaram que os coletores associam as variações de marés
com o ciclo de vida dos diferentes moluscos e com a distribuição dessas espécies animais
em habitats de manguezais e estuários. Segundo os autores o conhecimento dos coletores
de moluscos pode fornecer uma base útil para entendimento local das populações de
34
moluscos e sua dinâmica populacional e ressaltam a importância dos estudos
Etnoecológicos na promoção do diálogo e cooperação entre pescadores e cientistas.
Moura, Marques e Nogueira (2008) realizaram trabalho sobre o conhecimento
ictiológico tradicional de uma população de pescadores na APA de Marimbus-
Iraquara/BA. Os dados foram obtidos por intermédio de entrevistas livres e
semiestruturadas, observações diretas, turnês-guiadas e coletas de material zoológico. O
conhecimento sobre o comportamento de 21 espécies de peixes foi apresentado. Os
fenômenos etológicos percebidos e descritos pelos pescadores foram agrupados em 17
etnocategorias, as quais se relacionam com: reprodução, comportamento de fuga, predação,
comportamento social, ou ainda a respostas a estímulos artificiais. Os resultados revelaram
a existência de um amplo conhecimento ecológico tradicional sobre as espécies e os
ecossistemas locais, particularmente no que se refere à ictiofauna.
Lopes, Francisco e Begossi (2009), desenvolveram estudo com caiçaras no litoral
de São Paulo, acerca dos métodos de pesca utilizados. Observaram a substituição da pesca
tradicional por arrastões de camarão. Descreveram os dois sistemas de pesca e suas
características sócio-econômicas. Concluíram que a pesca não se mostra tão diferente do
sistema realizado no passado, são capturadas apenas 17 espécies, sendo duas, espécies de
camarão. As famílias são as principais unidades de produção para os arrastões e em geral
trabalham por conta própria. As atividades de processamento de camarão dominam a
economia local. A migração dos arrastões da região Sul para o Norte do Brasil é
consequência de uma mudança do camarão do seu local de origem. Os autores ressaltam
que medidas de gestão são necessárias a fim de evitar consequências negativas sociais e
ambientais provocadas pela atividade.
Caló, Shiavetti e Cetra (2009) analisaram o conhecimento ecológico local e
taxonômico de pescadores especialistas do município de Ilhéus/BA sobre os peixes
conhecidos como vermelhos. Utilizaram entrevistas semiestruturadas e testes projetivos.
Foram citadas 19 espécies, sendo 16 identificadas cientificamente. Analisando o
conhecimento ecológico referente à alimentação, constataram que a maioria é carnívora e
detectaram duas categorizações de distribuição espacial: ambientes de ocorrência (rio/mar,
costeiro e alto mar) e profundidade (raso, meia-água, meia-água/fundo, fundo). Os
principais critérios utilizados para identificar, nomear e classificar as espécies estão
relacionados com a coloração e morfologia. Os autores constataram que muitas
informações citadas neste estudo estão de acordo com a literatura especializada,
35
fortalecendo a importância e inclusão do conhecimento ecológico local nos planos de
manejo e na tomada de decisões.
Sousa (2010) realizou estudo etnozoológico nas comunidades pesqueiras, Barra
Grande e Morro da Mariana, situadas na APA do Delta do Parnaíba/PI, como forma de
preservar e valorizar a biodiversidade e a cultura tradicional. Foram aplicadas 161
entrevistas, seguidas de coleta e identificação das espécies. Registrou-se 141 espécies,
distribuídas em 10 Taxa. Em Barra Grande, Crassostrea rhizophorae Guilding, 1828 e em
Morro da Mariana, Caiman crocodilus Linnaeus, 1758 foram as espécies mais versáteis.
Segundo essa autora o conhecimento etnozoológico deve ser considerado na conservação e
preservação da biodiversidade e da cultura local, valorizando a participação das populações
nos planos de manejo.
Amorim (2010) registrou o conhecimento tradicional relativo às artes de pesca e à
construção de embarcações de pesca (canoas) na comunidade Poti Velho, Teresina/PI. O
autor relata a participação de apenas duas famílias na construção e reparo de canoas.
Foram descritas quatro espécies vegetais como utilizadas para a carpintaria naval local:
pequi (Caryocar coriaceum Wittm.), o pau-d‘arco (Tabebuia spp.), o cedro (Cedrella
odorata L.) e a embiratanha (Pseudobombax marginatum (A. St-Hil.) A. Robin), tendo
cada madeira uma função na construção da canoa. Segundo o autor, o conhecimento deve
ser registrado para que não seja perdido diante da falta de interesse dos mais novos e da
comunidade e da vida urbana e do avanço tecnológico.
Diante do exposto, pode-se perceber o crescimento de estudos etnobiológicos
realizados com comunidades de pescadores artesanais. O aumento no número destes
trabalhos está relacionado com um maior reconhecimento da gama de conhecimento
presente na cultura destes povos. Percebe-se, também, que nesse tipo de pesquisa, o que
prevalecia até pouco tempo era apenas o estudo qualitativo, hoje adota-se com maior
frequência a proposta quantitativa de pesquisa, criando-se um elo entre os dois métodos de
trabalho, qualitativo e quantitativo, o que enriquece consideravelmente a pesquisa. Em
suma, os esforços aumentam a cada dia na tentativa de se compreender da melhor forma
possível as relações entre as populações tradicionais e o meio ambiente, expresso em seus
conhecimentos sobre flora, fauna e relações ecológicas, o que contribui na busca do
resgate, reconhecimento e valorização desse patrimônio inestimável que é o conhecimento
tradicional.
36
3 HISTÓRICO, PERFIL SOCIOECONÔMICO E CULTURAL DA COMUNIDADE
CANÁRIAS
3.1 Localização
A comunidade Canárias (Figura 1) situa-se na Ilha de mesmo nome, nas
coordenadas 02°45’55” S; 041°50’41” W, no Norte do estado do Maranhão e pertence ao
município de Araioses. A região faz parte do Delta do rio Parnaíba, um complexo com
cerca de 80 ilhas, distribuídas em uma área de 2.700 Km² (SILVA, 2004).
3.2 Aspectos Físicos
A Ilha das Canárias é a segunda maior ilha em extensão do Delta do rio Parnaíba e
está situada junto à barra das Canárias, que serve de limite entre os estados do Maranhão e
Piauí. Na ilha encontram-se as comunidades de Canárias, Passarinho, Torto e Morro do
Meio, sendo que Canárias representa a maior entre elas e de mais fácil acesso.
O ambiente geomorfológico da área é flúvio deltaico, os solos são formados e
sofrem a ação de intensos processos erosivos. Então, a superfície deltaica é composta por
sedimentos arenosos e argilosos, recortada por canais distributários, que, em seu interior,
contêm acumulação de sedimentos migrantes e inundáveis que se deve ao fluxo e refluxo
das marés e do maior ou menor poder de transporte do canal fluvial principal do rio
Parnaíba. A posição geográfica bem como a distribuição das chuvas ao longo do ano
determinam as características climáticas mais marcantes da área. Então, a área apresenta
clima tropical chuvoso, de acordo com a classificação de Köppen, sendo este quente e
úmido e com chuvas no verão e outono. A média anual da umidade relativa do ar alcança
uma marca de 75,5%. A vegetação predominantemente é a perenifólia de mangue, sendo
uma cobertura vegetal bastante significativa e apresentando espécies halomórficas
características deste tipo de ambiente e que em geral são frenquentes nas faixas externas
das formações sedimentares, estando em contato ou não com a água (CAVALCANTI,
2011).
Segundo Deus et al (2003, p. 56), as áreas de mangue mais preservadas, apresentam
bosques com “vegetação tipicamente arbórea, com alturas máximas [...] variando de 12 a
37
Figura 1 – Mapa de localização da comunidade Canárias, Reserva Extrativista Marinha do Delta do Parnaíba..
Fonte: Software TrackMaker/Google Maps (2011), modificado por Victor de Jesus Silva Meireles (2011).
CANÁRIAS *
38
28 m e com altura média de 11,2 m, o que segundo esse autor apresenta-se superior
aos mangues nordestinos já medidos em outros trabalhos (APÊNDICE E).
3.3 Histórico de Colonização da Ilha
De acordo com Chagas (1987), a comunidade Canárias surgiu em 14 de novembro
de 1806, com a chegada do marinheiro e pescador cearense Francisco Bezerra, mais
conhecido como Chico Bezerra. O pescador, natural de Acaraú, desembarca com mais três
companheiros na Barra das Canárias, conhecida na época por Barra dos Mergulhões
(denominação dada inicialmente ao local pela presença de grande quantidade de pássaros
mergulhões, um hábil pescador, que habitavam as margens do rio Parnaíba). Chico Bezerra
e seus companheiros armaram barracas onde hoje é o porto de Canárias, e juntos
construíram à beira do rio dois grandes currais-de-pesca, dando início a atividade
tradicional de pesca da comunidade. Alguns anos mais tarde, por volta de 1815, chega à
Barra das Canárias um pescador conterrâneo de Francisco Bezerra de nome João Branco
de Souza. As contribuições de João Branco e Francisco Bezerra foram além da atividade
pesqueira, sendo eles responsáveis pelo desbravamento das terras que compunham a
grande Ilha de mais de 40 quilômetros de extensão. Exerceram as atividades de criação
gado (bovino e ovino) em fazendas que se situavam nas comunidades Canárias e
Passarinho, respectivamente. Este autor relata ainda duas versões à origem do nome da
Comunidade: uma defende que seria uma homenagem de Chico Bezerra aos avós,
espanhóis das Ilhas Canárias. Outra versão é que na época das grandes enchentes do rio
Parnaíba descia pelo mesmo uma grande quantidade de um capim denominado canaranas,
chamada pelos pescadores de “canaras”.
Segundo relato da moradora “Srª 101”4, ocorreram mudanças significativas ao
longo dos anos. Onde outrora prevalecia lavouras e criações de animais como fortes
atividades, casas de taipa em sua grande maioria e ausência de energia elétrica, aos poucos
foram ocorrendo avanços e melhorias como a chegada de energia permanente a motor, que
posteriormente, foi substituída pelo fornecimento por uma companhia elétrica. As casas
também passaram a ser em grande parte de alvenaria, a lavoura perdeu força e hoje se
resume em sua maioria a agricultura de subsistência. A atividade pesqueira, presente desde
4 Entrevista concedida ao autor em 30 de março de 2010.
39
os tempos da colonização local e que representa a atividade econômica principal, também
se modificou, para “Sr. 18”5 onde outrora se utilizava embarcações à vela ou remo, hoje
em sua maioria foram substituídas por embarcações motorizadas; O número de
embarcações na atividade também aumentou bem como modificou-se o modo de
armazenamento do pescado, que anteriormente eram vendidos de imediato ou salgados, a
única forma encontrada para dar maior durabilidade, uma vez que não havia eletricidade no
local. Hoje, são armazenados em conservadoras (freezers) garantindo a durabilidade do
pescado e sua qualidade até chegar aos atravessadores e consumidores. Também, foram
relatados fatos desagradáveis como a redução do número de peixes na região.
3.4 Perfil Socioeconômico
A partir da abordagem sócio-econômica, buscou-se estudar a dinâmica em que a
comunidade Canárias esta inserida, a fim de oferecer subsídios para a compreensão da
relação desta com o meio ambiente.
De acordo com informações fornecidas pelo presidente da Colônia de Pesca Z-07,
estão cadastrados aproximadamente 150 pescadores artesanais que residem na comunidade
Canárias. O presidente descreveu a impossibilidade de precisão ao ceder o número de
pescadores cadastrados, uma vez que a maioria se cadastrou com endereços de Ilha Grande
e o processo de recadastramento ainda não havia sido realizado no ano de 2010. Deste
modo, foram entrevistados 100 pescadores conforme a metodologia proposta por Begossi e
Silva (2004), em que define como amostra representativa o percentual de 25,00% a 75,00%
para o caso de comunidades com mais de 100 residências.
Na atividade pesqueira prevalece a participação de homens (83,00% dos
entrevistados) e apenas 17,00% de mulheres, ficando, portanto a maioria delas restritas aos
serviços domésticos. Cerca de 45,00% dos entrevistados são casados, seguidos pelos
solteiros com 29,00%, a união estável ou juntos com 22,00%, viúvos 4,00% e não há
divorciados no grupo.
As faixas etárias estudadas foram: jovens 14,00% (entre 18 e 24), adultos 72,00%
(entre 25 e 59) e idosos 14,00% (a partir dos 60), de acordo com a divisão adotada pelo
5 Entrevista concedida ao autor em 27 de setembro de 2009.
40
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2009). Havendo deste modo, dentro
da atividade pesqueira local, o predomínio de adultos sobre jovens e idosos (Figura 2).
Figura 2- Gráfico de distribuição por gênero e faixas etárias da população de pescadores artesanais da
comunidade Canárias, Araioses/MA, Brasil.
Fonte: Pesquisa direta (2009-2010).
A grande participação dos adultos deve-se a falta de oportunidade na região que
apenas ofereceu esta atividade como forma de sobrevivência. A pequena participação de
jovens na atividade deve-se segundo os próprios moradores, as novas oportunidades que
tem surgido para esta geração, tanto pelo apoio do próprio Estado em oferecer transporte
para o acesso as escolas em níveis que a comunidade não oferece, facilitando a
continuidade aos estudos, como o crescimento de novas oportunidades em ascensão na
região, como o turismo, que oferece novas formas de emprego. Já em relação aos idosos,
quando já não possuem energia suficiente exigida pela atividade, continuam a dar sua
contribuição nesta por meio muitas vezes da confecção de instrumentos de pesca como a
tarrafa e a caçoeira, sendo comum encontrar idosos tecendo suas redes na porta de suas
casas naquela comunidade. Nota-se que o conhecimento sobre a confecção de
instrumentos de pesca está sendo transmitido, pois observou-se que a maior parte dos
pescadores entrevistados, sejam eles idosos, adultos ou jovens, confeccionam seus próprios
instrumentos ou possuem alguém na família que o faz.
A maioria dos pescadores entrevistados são habitantes nativos (81,00%), sendo os
demais (19,00%) oriundos de outras localidades, como da comunidade vizinha Torto, das
comunidades Cal e Marco (5,26% cada) e dos municípios de Araioses, Tutóia, João Peres,
Barro Duro (5,26% cada) no Maranhão e municípios de Parnaíba (57,92%) e Piripirí
0
20
40
60
80
100
JOVENS ( 18 a 24 anos)
ADULTOS(25 a 59 anos)
IDOSOS (> 60 anos)
Val
ore
s e
m %
Faixas Etárias
HOMENS
MULHERES
41
(5,26%) no Piauí. O tempo de moradia na comunidade variou de 5 a 77 anos, sendo a
média de 37,87 anos.
Em se tratando do ensino, a comunidade possui duas escolas, sendo a Unidade
Escolar Silvio Freitas Diniz, com turmas de Ensino Infantil e a Unidade Escolar Francisco
Cardoso Leite com turmas de Ensino Fundamental e Ensino Médio. Dos pescadores
entrevistados, 61,00% possuem o Ensino Fundamental, muitos cursados nas duas escolas
locais, 12,00% iniciaram o Ensino Médio e 27,00% não frequentaram a escola, não
dominando deste modo a leitura ou escrita, mas em alguns casos aprendem apenas a
escrever o próprio nome. Os dados citados anteriormente podem ser melhor observados na
Figura 3.
Figura 3- Gráfico da distribuição da população de pescadores artesanais da comunidade Canárias, Araioses
/MA, Brasil, com relação ao gênero e escolaridade.
Fonte: Pesquisa direta (2009-2010).
Segundo relatos (“Sr 37” e “Srª 101”)6 uma grande parte dos jovens prefere realizar
a travessia do rio e estudar nas escolas dos municípios de Ilha Grande ou Parnaíba, devido
a falta de estrutura das escolas locais. A prefeitura oferece então transporte diário e gratuito
para que os alunos possam prosseguir os estudos nas escolas do Piauí. A maioria dos
moradores mais velhos não teve acesso ao estudo ou tiveram pouco contato com a escola.
Muitos adultos e jovens abandonaram à escola para exercer a atividade pesqueira.
6 Entrevistas concedidas ao autor respectivamente em 23 de janeiro e 30 de março de 2010.
0
20
40
60
80
100
NÃO ESCOLARIZADOS
ENSINO FUNDAMENTAL
ENSINO MÉDIO
Val
ore
s em
%
Nível de Escolaridade
HOMENS
MULHERES
42
A principal atividade econômica da comunidade Canárias é a pesca artesanal,
existindo outras atividades, mas não sendo tão significativas quanto à pesca, dentre elas a
lavoura do arroz (Oryza sativa L.), comércio e a criação de animais como Coelho
Linnaeus, 1758) (Figura 4). A cata do caranguejo, muito conhecida na região do Delta e
forte em outras comunidades da ilha como o Torto e Passarinho, não se apresenta
expressiva nesta comunidade.
Figura 4- Fotografias de criação de animais na comunidade Canárias/MA.
Autoria: Própria (2009). A e B: criação coelhos (Sylvilagus SP); C: gado bovino (Bos taurus); D: gado ovino (Ovis aries).
A renda da família é variável, conforme a produção pesqueira e em alguns casos do
auxílio das atividades secundárias. Em média, a renda das famílias gira entre 0.19 a 2
salários mínimos, baseado no salário referente ao ano de 2010 (R$ 510,00), sendo que
cerca de 29,00% dos entrevistados exercem uma atividade extra para complementar a
renda familiar, destes 51,72% possuem como segunda atividade a agricultura e 10,34%, a
marcenaria. Sobre o plantio, 82,00% possuem culturas permanentes, sendo todas elas
localizadas em quintais e servindo para consumo próprio; 46,00% realizam o plantio de
A B
C D
43
culturas temporárias, dentre elas arroz (Oryza sativa L.), milho (Zea mays L.) e feijão
(Phaseolus vulgaris L.). Dentre estes moradores, 80,43% a utilizam apenas para consumo
próprio e 19,56% utilizam para consumo e venda, sendo que 97,82% são realizadas em
quintais e apenas 2,17% em outro terreno.
Embora a Ilha das Canárias pertença ao município de Araioses/MA, grande parte da
economia e dos serviços utilizados pela comunidade são ofertados no estado do Piauí,
principalmente no município de Parnaíba, por sua maior proximidade.
O acesso à Ilha se faz por um barco coletivo a motor (Figura 5A), que parte do
porto dos Tatus, em Ilha Grande, no estado do Piauí. A embarcação realiza o percurso nos
dias úteis, ao meio-dia, saindo do Porto dos Tatus para Canárias e às cinco horas da manhã
faz a viagem no sentido oposto, sendo o custo da passagem de R$ 2,50 por pessoa. Uma
forma alternativa de transporte é o barco que conduz os estudantes das Canárias que
frequentam as escolas em Ilha Grande (Figura 5B). A embarcação parte das Canárias as
cinco horas e cinquenta minutos da manhã e retorna a tardinha, por volta das dezoito horas,
em dias letivos, sendo gratuito para os estudantes, pago neste caso com os recursos da
prefeitura de Araioses/MA (APÊNDICE B). A mesma embarcação pode ser utilizada por
outros passageiros ao custo de R$ 2,50 por pessoa, no ano de 2010.
O acesso pode se feito também pela contratação de embarcações particulares com
barqueiro. O preço cobrado varia dependendo da embarcação: por volta de R$ 150,00 (ida
e volta) em lanchas denominadas voadeiras (Figura 5C); cerca de R$ 75,00 em canoas com
motor de popa (Figura 5D), sendo R$ 15,00 pelo aluguel da canoa; R$ 25,00 pelo aluguel
do motor de popa, conhecido localmente como rabeta; R$ 25,00 pela diária do condutor e o
combustível fica por conta do contratante, por volta de R$ 10,00, ida e volta, no período de
2010 e 2011. Para presente pesquisa foi contratado um guia turístico residente no porto
dos Tatus que também trabalha como barqueiro, em um barco de madeira com motor de
popa. O tempo gasto partindo do Porto dos Tatus varia entre 30 a 50 minutos, dependendo
da maré (de cheia ou vazante).
44
Figura 5 – Fotografias de embarcações que fazem o transporte de pessoas entre a comunidade Canárias/MA
e o porto dos Tatus/PI.
Autoria: Própria (2009). A: barco coletivo; B: barco dos estudantes; C: voadeiras; D: canoa e motor de popa.
Do ponto de vista do desenvolvimento local pode-se observar alguns dados
preocupantes. A comunidade não dispõe de água tratada e o consumo é feito com água não
tratada oriunda em maior parte (85,00%) de poços e do rio (15,00%) (Figura 6).
Figuras 6 – Fotografias de locais de coleta de água para consumo na comunidade Canárias/MA.
Autoria: Própria (2009).
A B
C D
45
Com relação ao destino do lixo, 54,00% dos entrevistados informaram que
enterram (Figura 7), 35,00% disseram que queimam, 5,00% enterram e queimam, 2,00%
afirmam que deixam a céu aberto e 4,00% afirmam fazer uso da coleta pública, pois em
2010 a prefeitura de Araioses/MA disponibilizou dois funcionários para trabalharem nesta
atividade na Ilha, embora o fato seja do agrado dos moradores, os mesmos consideram o
número de funcionários insuficiente para atender a demanda de lixo local.
Figura 7– Fotografias de buracos utilizados pelos moradores da comunidade Canárias para depositar e
posteriormente enterrar o lixo.
Autoria: Própria (2009).
Quanto ao destino de dejetos humanos, 58,00% dos moradores entrevistados
informaram dispor de fossa séptica e 42,00% afirmaram fazer uso de fossa negra (banheiro
de palha), onde os dejetos são depositados em um buraco no chão.
Observou-se que 66,00% das casas da comunidade são construídas de alvenaria,
31,00% de taipa e 3,00% de madeira; 73,00% possuem piso em cimento, 26,00% em
cerâmica e 1% em barro. Quanto à cobertura das casas, cerca de 99,00% são cobertas por
telhas e 1,00% coberta por palha de carnaúba (Copernicia prunifera (Mill.) H.E. Moore).
Observou-se também que algumas casas possuem em sua estrutura madeira do mangue-
vermelho (Rhizophora mangle L.), sendo usada como taipa, ripa e/ou linha (estrutura de
sustentação do teto).
Existe apenas um posto de saúde na comunidade pertencente ao Programa de Saúde
da Família (PSF) que conta com uma equipe de cinco agentes de saúde, uma técnica de
enfermagem, um enfermeiro e um médico. Os agentes e a enfermeira residem na
comunidade, e o médico, segundo moradores, reside na cidade de Araioses/MA e presta
46
atendimento uma vez por semana. O posto oferece atendimento local e domiciliar e está
em funcionamento desde 2001, porém a assistência a saúde na comunidade ainda é
deficiente e segundo a “Sr ª 101”7 “a unidade de saúde não atende às exigências mínimas
preconizadas pelo Ministério da Saúde, quanto ao cumprimento dos Programas, espaço
físico e carga horária dos profissionais que deveria ser de no mínimo 30 h/semanais”.
Os moradores da comunidade entrevistados comentam sobre os benefícios oriundos
da chegada da energia elétrica no local. O fato se deve as várias dificuldades enfrentadas
pelos moradores antes da chegada da mesma. Os moradores descrevem a evolução que vai
das lamparinas, passando pelo gerador a diesel que era ligado das 18h às 22h, até a
chegada da rede elétrica do estado do Piauí, que permitiu que se pudessem abrir comércios
com refrigeradores para venda de bebidas geladas, leite e seus derivados, dentre outros
produtos, que necessitem de refrigeração para sua conservação. A contribuição da chegada
da energia elétrica foi acima de tudo fato fundamental na melhoria da própria atividade
pesqueira local, pois a partir desse momento o pescado passou a ser armazenado, não
havendo a necessidade de ter que despachá-lo rapidamente para não estragar, permitindo
deste modo que os pescadores tivessem mais tempo para negociar preços melhores.
A chegada da eletricidade não trouxe consigo apenas benefícios. De acordo com a
Srª 101 “a partir do momento em que a comunidade passou a ter acesso aos meios de
comunicação, aumentou o acesso às informações, as necessidades pelos bens de consumo
[...] muita coisa mudou mas não para melhor: antes a base da alimentação era o pescado,
agora se come salsichas, presuntadas, e danoninho”. Além disso, acrescenta que “as risadas
e piadas despretensiosas foram substituídas pelos fones de ouvido que todos carregam com
seus celulares” (“Srª 101”)8, cujas principais operadores que dão cobertura para região são
Claro, TIM e Amazônia celular.
7 Entrevista concedida ao autor em 30 de março de 2010.
8 Entrevista concedida ao autor em 30 de março de 2010.
47
3.5 Aspectos Religiosos, Culturais e Superstições
No quesito religião, a população local é em grande maioria Católica Apostólica
Romana (88,00% dos entrevistados), seguido de evangélicos (6,00%), indefinidos (4,00%)
e 2,00% sem religião.
O Templo (prédio) católico recebeu o nome de São João Batista devido à forte
presença de religiosos, devotos do santo, no período de colonização da Ilha, que fizeram
esforços para sua construção e o homenagearam com seu nome (CHAGAS, 1987). Sobre
ela, observou-se que os eventos religiosos, grupos de orações e canto são organizados e
realizados pelos próprios moradores na maior parte do tempo. A visita de um religioso,
representante da paróquia, é feita apenas no último domingo de cada mês, não havendo
deste modo um dirigente religioso da referida igreja domiciliado na comunidade.
Uma curiosidade sobre a forte participação da religião católica na colonização do
local é demonstrada em um termo localmente muito utilizado ao se referir a quem é o dono
das terras na Ilha. Os moradores descrevem as terras como “Terra do Santo” e isso se deve
ao fato de que depois de instalada a Igreja Católica no local, esta recebeu inúmeras doações
de terras dos moradores locais, e passou a possuir grande quantidade de terras sobre seus
domínios. Estas terras ficaram então conhecidas como a Terra de São José ou Terra do
Santo. Segundo relatos, ali não se comprava terrenos para se construir uma casa, apenas se
comunicava à igreja, que faria o reconhecimento e registro do local escolhido e autorizava
a construção. Fato que, segundo os moradores, vem mudando ao longo dos anos com a
chegada da especulação imobiliária. Sobre o assunto o “Sr. 16”9 enfatiza que “[...] antes a
terra era do santo e todo mundo respeitava. Era só pedir a igreja e construía sua casa [...]”.
Dentre os grupos religiosos evangélicos encontrados na comunidade, temos a Igreja
Batista MEAP (Missão Evangélica de Assistência aos Pescadores) e as Testemunhas de
Jeová. A Igreja Batista possui um maior número de frequentadores, pois segundo a “Srª
101”10
“uma grande estrutura física, com salas de aula, quadra de esportes, desenvolve
curso de artesanato, música, estudos religiosos, assistência a saúde, festas comemorativas,
e com isso conquistou uma boa parte da população principalmente os jovens”, além de
possuir representante religioso permanente na comunidade.
9 Entrevista concedida ao autor em 27 de julho de 2009.
10 Entrevista concedida ao autor em 30 de março de 2010.
48
De um modo geral, 74,00% dos moradores dizem participar frequentemente dos
cultos religiosos, 24,00% não frequentam e 2,00% responderam frequentar as vezes. Sobre
o uso de plantas nos rituais e festividades, 57,00% dos moradores afirmam existir esse uso
principalmente para ornamentação e 43,00% não lembram ou desconhecem esse uso. Das
plantas utilizadas ou partes delas foram citadas flores para ornamentação do altar, porém os
entrevistados afirmam não haver plantas específicas para este fim, sendo utilizadas aquelas
que estiverem floridas na ocasião. Também foi observado o uso das folhas, dando destaque
para a do coqueiro (Cocos nucifera L.) muito utilizada nos festejos religiosos.
Sobre as festividades na comunidade (APÊNDICE B), destacam-se as religiosas,
sendo que as principais, segundo os moradores, ocorrem duas vezes por ano, em
comemoração ao padroeiro São João Batista, no dia 24 de junho e em comemoração a
Nossa Senhora das Dores, no dia 18 de dezembro. Estes dias são marcados por celebrações
de missas, procissões, orações, cânticos e peças teatrais com temas religiosos que são
apresentados por membros da comunidade e contam com a participação de padres
advindos da cidade de Araioses para a condução das celebrações. Para a “Srª 101”11
:
[...] depois que outras práticas religiosas foram se introduzindo, o catolicismo
foi perdendo adeptos e os festejos religiosos se enfraqueceram; os leilões e
novenas perderam espaço para as novelas. E a grande festa no ‘clube’ que
antes era concorridíssima, hoje está desprezada já que os que se converteram
às religiões evangélicas não podem dançar [...].
Outra festividade importante na comunidade é a comemoração do seu aniversário
(APÊNDICE B), sendo realizado no dia 14 do mês de novembro. A organização é feita
pela Associação de Moradores e Associação de Pescadores locais, e envolve atividades
como celebração religiosa, campeonatos esportivos, festa no clube, gincanas, terminando
com a regata de canoas à vela, muito conhecida na região por sua beleza e que atrai grande
público, oriundo de comunidades vizinhas e turistas de muitos lugares. A escolha da
comemoração baseia-se na data de chegada do Chico Bezerra na Comunidade, relatada na
publicação de Chagas no ano de 1987.
11 Entrevista concedida ao autor em 30 de março de 2010.
49
Detectou-se na comunidade a crença nas lendas do cabeça-de-cuia, lobisomem,
mulher chorona e gritador:
Cabeça-de-cuia: a lenda descreve a história de um garoto que após uma má
pescaria chega a sua casa com fome e se irrita ao encontrar uma comida que não lhe
agradava. Agride sua mãe que logo o amaldiçoa. O menino vira então uma criatura feia,
deformada, cuja cabeça grande parece uma cuia. A partir desse momento ele passa a vagar
sem descanso, virando canoas, assustando lavadeiras tentando encontrar sete Marias
virgens, o único modo de quebrar a maldição.
Lobisomem: segundo os pescadores, não era raro o aparecimento de pessoas que
em noite de lua cheia se transformam em lobo na comunidade. Uma particularidade com
relação à história descrita em outras regiões é o fato de que na comunidade a denominação
“lobisomem” é usada para se referir também a transformações de pessoas em outras
espécies como o porco, por exemplo.
Mulher chorona: os moradores comentam que após a meia-noite, surge nas ruas
da comunidade uma mulher em prantos e que leva consigo uma criança de colo.
Gritador: a comunidade descreve o aparecimento de um homem no meio do rio,
guiando uma canoa e gritando muito. Quando observado por alguém o referido homem
cresce até atingir a altura aproximada de um poste e cai por cima de quem o observa.
3.6 Aspectos Tecnológicos, Produtivos e Organizacionais
Dentre os meios de transporte utilizados pela comunidade Canárias em suas
pescarias pode-se destacar: a canoa movida a motor de popa, também chamada de “rabeta”
(Figura 8A) (APÊNDICE C); embarcações movidas à vela (Figura 8B) (APÊNDICE C) e
barco de um porte um pouco maior, movido a motor (Figura 8C) (APÊNDICE B). Estas
embarcações são produzidas localmente, desprovidas de equipamentos de auxílio à pesca e
à navegação, e voltadas a pescarias próximas a costa e não em alto mar.
50
Figura 8– Fotografias de embarcações utilizadas na atividade pesqueira na comunidade Canárias/MA.
Autoria: Própria (2009). A: rabeta; B: embarcação a vela; C: embarcação a motor.
A confecção das embarcações ocorre de modo artesanal (APÊNDICE G) e é
realizado por pescadores locais que possuem como segunda atividade a carpintaria. Dos
pescadores entrevistados, apenas 4,00% se autodenominam carpinteiros navais. As
embarcações são construídas em barracões de palha, três no total. A média de preço para
construção de uma embarcação de tamanho médio é de R$500,00 pela mão-de-obra e mais
R$700,00 de materiais e projeto (valores em 2010). O tempo gasto em média para
construção é de 10 a 20 dias. Segundo “Sr. 37”12
quando o barco é construído pelo Projeto
“Ajuda Inicial”13
do INCRA, demora em média seis meses para sua conclusão, uma vez
que, segundo seu relato, envolve toda uma burocracia para preparação da documentação
necessária, como registro na prefeitura, elaboração de projeto e por fim a aprovação junto a
12 Entrevista concedida ao autor em 23 de janeiro de 2010.
13 Projeto do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária que está contribuindo com o desenvolvimento da atividade pesqueira na região. Fornece aos pescadores matérias para confecção de instrumentos de pesca bem como financia a construção de embarcações.
A B
C
51
este órgão. Uma vez aprova toda documentação, o dinheiro é liberado pelo INCRA, sendo
padronizada a construção de cinco canoas por vez. Os pescadores entrevistados afirmam
que a madeira utilizada para a construção das embarcações vem do Pará, sendo elas pequi
(Caryocar coriaceum Wittm.), pau-d’arco (Handroanthus impetiginosus (Mart. ex DC.)
Mattos, cedro (Cedrella odorata L.), jatobá (Hymenaea courbaril L.) e massaramduba
(1,73%), manzuá e grosseira (0,69%), jiquí e curralzinho (0,35%); (Figura 10). Embora
denominada de artesanal, a pesca local está sempre assimilando novos conhecimentos e
técnicas, não estando alheia a evolução dos instrumentos industriais como anzóis variados,
linhas de nylon e motor de popa (rabeta), que substituiu ao longo dos anos o remo e as
velas, embora estas ainda sejam utilizadas na região.
Figura 10- Gráfico com a distribuição percentual das citações dos pescadores artesanais sobre os
instrumentos de pesca mais utilizados na comunidade Canárias, Araioses/MA, Brasil.
Fonte: Pesquisa direta (2009-2010).
Sobre a confecção de instrumentos de pesca (APÊNDICE D) cerca de 43,00% dos
pescadores afirmam produzirem seu próprio instrumento de pesca. Os principais
instrumentos citados como produzidos por eles foram: caçoeira (38,46%), tarrafa
(36,26%), alguns citaram “rede” não especificando o tipo que fabricavam (14,28%),
groseira (3,30%), landoá e puçá (2,20% cada), curral, curralzinho e jiquí (1,10% cada)
(Figura 11).
0 5 10 15 20 25 30 35
caçoeira
tarrafa
linha/anzol
landoá
puçá
curral
rabadela
manzuá
groseira
jiquí
curralzinho
Citações em percentual
Inst
rum
ento
s
54
Figura 11- Gráfico com a distribuição em percentuais dos instrumentos de pesca produzidos pelos
pescadores artesanais na comunidade Canárias, Araioses /MA, Brasil.
Fonte: Pesquisa direta (2009-2010).
Foram observadas na comunidade: anzol e rede caçoeira na pescaria em alto mar e
anzol, puçá, jiquí, landuá, grosseira, rabadela, tarrafa e curral, na pesca no rio. A técnica de
pesca denominada de batedeira14
não foi citada pelos pescadores durante as entrevistas,
mas pôde ser presenciada durante o desenvolvimento da pesquisa.
Segue a descrição dos principais instrumentos e técnicas encontradas na
comunidade:
Anzol ou linha: o anzol é amarrado a uma linha nylon, própria para pescaria, e é
utilizada em grande maioria nas margens do rio ou em embarcações no mar ou no rio
(Figura 12).
14 Técnica utilizada geralmente em pequenas lagoas onde uma rede de malha é posta de uma margem a outra da mesma e o(s) pescador(s) batem com madeira na água assustando os peixes que caem atordoados na armadilha.
0 10 20 30 40 50
caçoeira
tarrafa
rede
grosseira
lamdoá
puça
curral
curralzinho
jiquí
% citações de fabricação
Inst
rum
en
tos
55
Figura 12- Fotografia de instrumento de pesca de anzol ou linha utilizado por pescadora da comunidade
Canárias/MA.
Autoria: Própria (2009).
Puçá: um talo de planta ou arame é curvado até unir suas pontas e formar uma
espécie de elipse. A este talo prende-se uma malha, que passa a formar uma espécie de
sacola. Prendem-se as pontas do talo a um cabo de madeira que será o local de apoio para o
pescador segurar o instrumento (Figura 13).
Figura 13- Ilustração do instrumento de pesca puçá utilizado na comunidade Canárias/MA.
Autoria: Própria (2009).
Jiquí: instrumento feito a partir de talos de coqueiro, formando uma espécie de
cesto comprido, mais largo na parte central e estreito em suas extremidades de onde partem
suas duas aberturas (Figura 14). O pescador utiliza para captura do camarão;
56
Figura 14- Fotografia do instrumento de pesca jiquí utilizado na comunidade Canárias/MA.
Autoria: Própria (2009).
Landuá: o instrumento assemelha-se a uma peneira de modo que de três pontos da
circunferência partem cordões de aproximadamente 20 cm que se unem a um cordão
principal, cuja extremidade prense-se um pedaço de isopor (Figura 15). Utilizado para
captura de crustáceos como o camarão (Litopenaeus schmitti Burkenroad, 1936) e o siri
(Callinectes bocourti A. Milne-Edwards, 1879).
Figura 15- Fotografia do instrumento de pesca landuá utilizado na comunidade Canárias/MA.
Autoria: Própria (2009).
57
Rabadela: composto por uma linha central, de onde partem linhas secundárias que
em menor tamanho possuem anzóis na ponta para a captura dos peixes (Figura 16).
Figura 16- Fotografia do instrumento de pesca rabadela utilizado na comunidade Canárias/MA.
Autoria: Própria (2009).
Groseira: O instrumento é igualmente composto por uma linha central, que neste
caso é longa, de onde partem diversas linhas secundárias com anzóis na ponta e que podem
chegar ao número de 200 (Figura 17). Nesta técnica os pescadores também ficam
embarcados e após a colocação das iscas lançam todos os anzóis ao mar.
Figura 17- Ilustração do instrumento de pesca groseira utilizado na comunidade Canárias/MA.
Autoria: Própria (2009).
58
Tarrafa: o instrumento é composto por uma rede tecida de nylon ligada a uma
corda central, sendo que nas bordas da rede encontram-se pedaços de chumbo para facilitar
sua submersão na água (Figura 18). Possui tamanho variável e malha de diversas
espessuras e é utilizado para pescaria em águas rasas, nas margens do rio neste caso.
Utilizado na pesca de diversos tipos de peixes, bem como, na pesca do camarão. A técnica
consiste no lançamento da rede que tem formato circular de modo que esta caia aberta
sobre a água, podendo neste caso jogar ou não iscas anteriormente na água.
Figura 18- Fotografias do instrumento de pesca tarrafa utilizado na comunidade Canárias/MA.
Autoria: Própria (2009).
Caçoeira: rede tecida de nylon, geralmente extensa, possuindo malha de tamanho
variável, sendo utilizada em pescarias no mar e no rio para captura de diversos tipos de
peixes. A técnica é utilizada em geral por pescadores embarcados, algumas vezes com
mais de uma embarcação. Em alguns casos a rede fica estendida de uma margem a outra
do rio, outras vezes em apenas um trecho, sendo que em ambos os casos bloqueiam
integralmente ou parcialmente a passagem dos peixes no local, capturando-os deste modo
(Figura 19).
59
Figura 19- Fotografias do instrumento de pesca caçoeira utilizado na comunidade Canárias/MA.
Autoria: Própria (2009).
Curral: o instrumento é composto por uma espécie de cercado feito com madeira,
muitas vezes do mangue próximo ao local onde é inserido (Rhizophora mangle L.). A
técnica utiliza a maré como auxiliar no ato de pescar. O curral fica totalmente recoberto
por água durante a maré cheia permitindo a entrada de peixes. Com a maré baixa os peixes
não conseguem mais sair, ficando presos (Figura 20).
Figura 20- Fotografia do instrumento de pesca curral utilizado na comunidade Canárias/MA.
Autoria: Própria (2009).
Curralzinho: Instrumento feito com talos de mangue-manso (Laguncularia racemosa (L.)
C.F. Gaertn. Fedde), presos por cordões de plástico, utilizados para captura de peixes de
pequeno e médio porte (Figura 21).
60
Figura 21- Fotografia do instrumento de pesca curralzinho utilizado na comunidade Canárias/MA.
Autoria: Própria (2009).
Manzuá: espécie de caixa de madeira recoberto por malha de nylon, que fica
submersa na água em contato com o substrato e que serve para captura de peixes (Figura
22). Podem ser utilizados vários ao mesmo tempo ligados por uma corda central, no caso
de pescadores embarcados.
Figura 22- Ilustração do instrumento de pesca manzuá utilizado na comunidade Canárias/MA.
Autoria: Própria (2009).
Batedeira: esta técnica é realizada dispondo de uma rede de nylon e pedaços de
madeira; é usada geralmente em lagoas e os pescadores bloqueiam um trecho do lago com
a rede de modo que impeça a fuga dos peixes. Do lado oposto ao da localização da rede os
pescadores começam a bater com a madeira na água, que logo assusta os peixes que fogem
em direção à rede (Figura 23).
61
Figura 23- Fotografia do uso da técnica de pesca batedeira na comunidade Canárias/MA.
Autoria: Própria (2009).
Os principais produtos pescados na comunidade são peixes (91,14%), crustáceos
(8,38%) e moluscos (0,48%). Os percentuais dos peixes considerados por eles mais
Figura 25- Gráfico da frequência dos peixes citados pelos pescadores artesanais na comunidade Canárias,
Araioses/MA, Brasil em 2010.
Fonte: Pesquisa direta (2009-2010).
Quanto à disponibilidade de embarcações para prática da pesca, observou-se que
nem todos os pescadores possuem barco próprio, e passam a trabalhar para algum
15 A identificação das espécies de peixes teve como base o estudo de Sousa (2010) no qual a
classificação das espécies da comunidade Morro da Mariana, município de Ilha Grande/PI foi realizada pela metodologia de Auricchio e Salomão (2002) onde as espécies foram coletadas, acondicionadas e identificadas com a colaboração de especialistas. A escolha dessa pesquisa como baseamento para a identificação das espécies através do nome vernacular se deu pela proximidade (Figura 1) e interação econômica e social das duas comunidades.
63
pescador, ou ex-pescador dono de embarcações e redes de pesca. Geralmente saem para
pescar cedo da manhã retornando à tardinha. O local de desembarque dos peixes é na
própria comunidade, as margens do rio que eles costumam chamar de praia (Figura 26A).
O pescado é então levado a residência do dono dos barcos. As redes são postas para secar
(Figura 26B) e posteriormente são observados possíveis danos sofridos pelas mesmas para
que possam ser reparados (Figura 26C). Os peixes são pesados muitas vezes em balanças
improvisadas de madeira (Figura 26D) e (APÊNDICE C), onde são utilizadas pedras com
pesos já conhecidos substituindo os pesos feitos industrialmente. Após pesados estes são
beneficiados e acondicionados em conservadoras. Alguns peixes são tratados e vendidos na
própria comunidade, sendo a maior parte transportado em caixas de isopor até o Porto dos
Tatus no município de Ilha Grande ou seguem diretamente até a cidade de Parnaíba. Foi
observado caso em que o pescador, dono de barcos, vende diretamente aos feirantes de
Parnaíba, não passando por atravessadores.
Figura 26- Fotografia com os procedimentos de despesca e tratamento dado aos instrumentos após a
pescaria, comunidade Canárias, Araioses/MA, Brasil.
Autoria: Própria (2009). A: despesca as margens do rio; B: secagem da rede; C: reparos de danos; D: balança de madeira.
A B
C D
64
Os instrumentos de pesca são armazenados em barracas nos quintais das
residências, geralmente construídas de madeira e cobertas por palha de carnaúba.
Sobre a organização formal na comunidade, existem duas associações em
funcionamento: a de moradores e a de pescadores locais. Estas estão atuando de forma
efetiva, com a realização de reuniões regulares, onde são mensalmente discutidos os
problemas e as possíveis soluções com relação às questões locais.
Devido à distância com relação ao município do qual a comunidade pertence, os
moradores que exercem a atividade pesqueira realizam cadastro na colônia de pescadores
mais próxima da comunidade, na cidade de Ilha Grande no estado do Piauí.
3.7 O Turismo na Comunidade
O turismo vem se desenvolvendo na região e os moradores se mostram receptivos à
atividade; alguns jovens já se beneficiam trabalhando como guia turístico de grupos de
visitantes. Mas existe a necessidade do auxílio por parte das autoridades para oferecer a
estes jovens cursos na área, como de guia e línguas, tendo em vista essa atividade em
crescimento na região, podendo gerar tanto uma nova oportunidade de renda em um local
de opções reduzidas, bem como a oferta de um serviço de qualidade aos turistas.
Na comunidade já são oferecidos serviços de pousadas, como o da Casa de Cabloco
(Figura 27), onde também funciona um restaurante que oferece produtos típicos do local.
Figura 27- Fotografias da Pousada Casa de Cabloco na comunidade Canárias/MA.
Autoria: Própria (2009).
65
3.8 Problemas que atingem a Comunidade
Sobre os problemas que afligem os moradores, pode-se destacar a questão do lixo
(Figura 28), que embora tenha recebido o serviço de coleta oferecido pela prefeitura de
Araioses/MA, ainda se mostra insuficiente. Outro fato que vem agravar esta situação é o
fato de que muitos dos moradores continuam jogando lixo em lugares inapropriados como
nas margens do rio. Mas para outros moradores, a situação já esteve pior e consideram que
a coleta já é o primeiro passo, um sinal de melhoria. Quanto a coleta de lixo implantada
pela prefeitura de Araioses/MA o “Sr.18”16
afirma que: “[...] tão tratando, tão limpando
[...] a prefeita manda limpar tudo”.
Figura 28- Fotografia do lixo as margens do rio Parnaíba na comunidade Canárias/MA.
Autoria: Própria (2009).
Outra queixa frequente refere-se à falta de água encanada na comunidade. Nesse
caso as instalações dos encanamentos já estão adiantadas, mas a obra encontra-se
16 Entrevista concedida ao autor em 23 de janeiro de 2010.
66
paralisada. Os moradores desconhecem o porquê da situação e continuam sem acesso a
água tratada.
Outra séria reclamação, diz respeito, segundo relatos, a ocupação irregular e venda
de terras no local por parte de pessoas de outras regiões. Segundo o relato de um morador,
com relação ao referido tema: “[...] todo mundo chega e faz o que quer” (“Sr.53”)17
.
Durante o desenvolvimento da presente pesquisa foi detectada a presença de
Caieiras18
próximas ao manguezal (Figura 29 A e B), que demonstra a utilização da
madeira deste para a produção de carvão vegetal (Figura 29 C e D).
Figura 29- Fotografias do modo de produção e armazenamento de carvão na comunidade Canárias/MA.
Autoria: Própria (2009).
A e B: Caieiras próximas ao manguezal utilizadas para produção de carvão vegetal; C e D: armazenagem do
carvãol.
17 Entrevista concedida ao autor em 23 de janeiro de 2010.
18 Caieiras são buracos feitos no chão onde são colocadas madeiras para queimar, cobertas por uma camada de folhas e
outra de areia e que são destinadas a produção de carvão vegetal.
A B
C D
67
Outra utilização constante da madeira do manguezal refere-se às construções locais
(Figura 30). A madeira é utilizada na confecção de ripas, linhas, portões, dentre outras.
Segundo relato o aumento do desmatamento está crescendo junto com o número de
habitantes da comunidade, uma vez que a cada família formada utiliza a madeira para a
construção de mais uma residência.
Figura 30- Fotografias da utilização da madeira do mangue vermelho na construção de residências na
comunidade Canárias/MA.
Autoria: Própria (2009).
Apesar dos problemas apresentados a maior parte dos moradores entrevistados está
satisfeitos em residir na comunidade e exercer a atividade da pesca. Afirmam sentir-se bem
como o contato direto com a natureza, o ar puro e tranquilidade local. Alguns moradores
chegaram a afirmar que “adoecem quando vão à cidade” (“Sr.1”)19
, isto referindo-se a
problemas respiratórios gerados pelo ar das cidades.
3.9 Pesca e Meio Ambiente: visão dos pescadores
Todos os entrevistados mostraram reconhecer a importância de se conservar o
meio ambiente, citando para isto vários motivos, que vão desde a beleza da natureza
conservada (a), à necessidade da manutenção dos recursos dos quais dependem sua
19 Entrevista concedida ao autor em 27 de julho de 2009.
68
sobrevivência e de seus descendentes (b) e até mesmo ao reconhecimento de ser
pertencente ao conjunto formado pela natureza (c). As idéias mencionadas anteriormente
podem ser reconhecidas nas falas que se seguem, respostas dadas ao serem questionados
sobre a importância de se conservar o meio ambiente:
a) “[...] eles são importantes para manter o ambiente
bonito” (“Sr. 30”)20
.
b) “[...] pra que fiquem também para os filhos” (“Sr. 16”)21
.
c) “[...] porque a natureza também fez a gente” (“Sr. 80”)22
.
Os moradores reconhecem as ações danosas que são realizadas na comunidade
por uma parcela dos moradores, como quando se referem ao problema do lixo, não sendo
rara a resposta “[...] botam lixo na beira da praia” (“Sr.7”)23
deixando explícita a
preocupação com determinadas atitudes presentes na comunidade, que colaboram com a
destruição da própria natureza onde vivem.
Quando perguntados sobre que ações realizam para colaborar na conservação do
meio ambiente as respostas são animadoras. Condenam o desmatamento, pesca e caça
predatória e defendem o uso sustentado dos recursos que lhes garantem o sustento. Ao
questionado sobre que ações devem ser tomadas para a conservação da Ilha, o senhor 10
respondeu: “[...] só pegar o que lhe serve” (Sr. 9)24
.
Respostas como esta, tão simplória em número de palavras, porém consegue
expressar de forma grandiosa sentimentos nobres que nenhum estudo muitas vezes pode
trazer, além de demonstrar que uma semente de conscientização já plantada nos
moradores está florescendo e se deve em parte ao trabalho de implantação da RESEX
pelo do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade bem como, de
moradores dedicados e bem informados como o ex-presidente da associação de
pescadores local.
20 Entrevista concedida ao autor em 28 de setembro de 2009.
21Entrevista concedida ao autor em 27 de julho de 2009.
22 Entrevista concedida ao autor em 26 de setembro de 2009.
23 Entrevista concedida ao autor em 27 de julho de 2009.
24 Entrevista concedida ao autor em 27 de julho de 2009.
69
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Itacaré sobre a fauna de vertebrados (não peixes) associados às atividades pesqueiras.
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76
5. ARTIGOS
5.1 Etnobotânica de comunidade pesqueira na reserva extrativista marinha do delta
do Parnaíba, Nordeste do Brasil.
Artigo a ser enviado a Revista Interciência
5.2 Plantas medicinais em comunidade pesqueira na reserva extrativista marinha do
delta do Parnaíba, Nordeste do Brasil.
Artigo a ser enviado a Revista Brasileira de Plantas Medicinais
77
Etnobotânica de Comunidade Pesqueira na Reserva Extrativista Marinha do Delta
do Parnaíba, Nordeste do Brasil.
VICTOR DE JESUS SILVA MEIRELES25*
,
ULYSSES PAULINO DE ALBUQUERQUE26
,
ROSELI FARIAS MELO DE BARROS27
25 Universidade Federal do Piauí, Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente, Av. Universitária,1310, Campus
Ininga, CEP: 64.049-550, Teresina-Brasil *[email protected]; 26 Universidade Federal Rural de Pernambuco, Departamento de Biologia, Laboratório de Etnobotânica Aplicada, CEP
52171-900, Recife, PE, Brasil. 27 Universidade Federal do Piauí, Centro de Ciências da Natureza, Departamento de Biologia, Mestrado e Doutorado em
Desenvolvimento e Meio Ambiente, Campus Ministro Petrônio Portela, Ininga, CEP: 64049-550, Teresina-Brasil;
Terminalia catappa L. amendoa/almenda a,b arv e 1,14
Convolvulaceae
Convolvulus macrocarpus (L.) Urb. jalapa/jalapa-do-Brasil b arb n 1,00
Ipomoea batatas (L.) Lam. batata-doce a sub e 1,00
Cucurbitaceae
Momordica charantia L. melão-são-caetano a,b sbe e 2,00
Cyperaceae
Cyperus esculentus L. junco e,f her n 3,00
Euphorbiaceae
Cnidoscolus urens (L.) Arthur cansansão/cansansão-
branco
b arb n 2,00
Euphorbia tirucalli L. cahorro-pelado/cachorro-
pelado-de-cerca
b arb e 1,25
Jatropha gossypiifolia L. pião-roxo c,f arb e 1,33
Continua
92
Tabela 1. Continuação
FAMILIA/ESPÉCIE NV Cat.U H S VU
Euphorbiaceae
Jatropha ribifolia (Pohl) Baill. pião-branco/pião-manso b arb n 4,00
Manihot esculenta Crantz macaxeira a arb n 1,00
Manihot sp¹ mandioca a arb n 1,00
Phyllanthus niruri L. quebra-pedra b her n 1,00
Ricinus communis L. mamona b arb e 1,00
Lamiaceae
Lippia alba (Mill.) N.E. Br. capim-cidreira/erva-
cidreira/cidreira
a,b her e 1,04
Mentha arvensis L. Vick b,e her e 2,00
Mentha x villosa Huds. hortelã b her e 1,00
Plectranthus amboinicus (Lour.) Spreng. malva/malva-do-reino b her e 1,00
Rosmarinus officinalis L. alecrim b sub e 1,00
Leguminosae-Caesalpinioideae
Caesalpinia ferrea Mart. jucá/pau-ferro b arv n 1,14
Copaifera langsdorffii Desf. podoi b,c arv n 1,50
Hymenaea courbaril L. jatobá a,b arv n 1,67
Pterogyne nitens Tul. amendoin-do-mato e arv n 1,00
Senna alata (L.) Roxb. mata-pastão b arb n 1,25
Leguminosae-Mimosoideae
Mimosa caesalpiniifolia Benth. sabiá b,d arv n 1,00
Mimosa verrucosa Benth. jurema a,c arv n 2,00
Pithecellobium dulce (Roxb.) Benth. mata-fome a arv n 1,00
Vachellia farnesiana (L.) Wight & Arn. coronha b arv n 1,00
Leguminosae-Papilionoideae
Dioclea grandiflora Mart. ex Benth. mucunã e,a,b lia n 2,00
Phaseolus vulgaris L. feijão a sub e 1,00
Continua
93
Tabela 1. Continuação
FAMILIA/ESPÉCIE NV Cat.U H S VU
Liliaceae
Allium cepa L. cebola a her e 1,00
Allium schoenoprasum L. cheiro-verde/cebolinha a her e 1,00
Aloe vera (L.) Burm. f. babosa a,b her e 1,33
Trimezia sp. orquídea-palmeira b her n 2,00
Loranthaceae
Psitacanthus SP carrascão/carrasco e sub n 1,00
Malpighiaceae
Byrsonima crassifolia (L.) Munth murici-da-praia a,b,c,d arb n 1,50
Byrsonima ligustrifolia Saint-Hilaire muricí-pitanga a,d arb n 2,00
Malpighia glabra L acerola a arb e 1,00
Melastomataceae
Mouriri elliptica Mart. puçá a,b,d arv n 1,33
Meliaceae
Cedrella odorata L. c arv n 1,00
Menyanthaceae
Nymphoides indica (L.) Muntze aguapé e her n 1,00
Moraceae
Ficus adhatodifolia Schott ex Spreng. gameleira a,e arv n 2,00
Musaceae
Musa paradisiaca L. bananeira a arb e 1,00
Myrtaceae
Eucalyptus globulus Labill. eucalipto b arv e 1,00
Eugenia uniflora L. pitanga a arb n 1,00
Psidium guajava L. goiaba a,b arv n 1,22
Syzygium jambolanum (Lam.) DC. azeitona a,b arv e 1,00
Continua
94
Tabela 1. Continuação
FAMILIA/ESPÉCIE NV Cat.U H S VU
Ochnaceae
Ouratea hexasperma (A. St.-Hil.) Baill. batiputá a arb n 1,00
Olacaceae
Ximenia americana L. ameixa-do-mato a,b arv n 1,17
Passifloraceae
Passiflora subrotunda Mast. maracujá-do-mato a sbe n 1,00
Passiflora SP maracujá-vermelho a sbe n 1,00
Poaceae
Cymbopogon citratus (DC.) Stapf capim-limão/capim- santo a,b her e 1,17
Digitaria insularis (L.) Fedde capim-açu e sub n 1,00
Oryza sativa L. arroz a her e 1,00
Poaceae
Paspalum SP bredo e her n 1,00
Saccharum officinarum L. cana-de-açúcar a,b arb e 2,00
Zea mays L. milho a arb e 1,00
Punicaceae
Punica granatum L. romã a,b arb e 2,00
Rhizophoraceae
Rhizophora mangle L. mangue vermelho b,e,c,d,e arv n 2,05
Rubiaceae
Spermacoce verticillata L. vassourinha b sub n 1,00
Tocoyena formosa (Cham. & Schltdl.) M.
Schum.
jenipapim/jenipapinho e arv n 1,00
Rutaceae
Citrus aurantium L. laranjeira a,b arb e 1,50
Citrus limonum Risso limão a,b arb e 1,23
Sapotaceae
Manilkara dardanoi Ducme massaranduba d arv n 1,00
Continua
95
Tabela 1. Continuação
FAMILIA/ESPÉCIE NV Cat.U H S VU
Sapotaceae
Manilkara zapota (L.) P. Royen sapoti a arv e 1,00
Solanaceae
Capsicum frutescens L. pimenta-malagueta a sub e 1,00
Solanum lycopersicum L. tomate a sub e 1,00
Solanum paniculatum L. jurubeba a,c arb n 2,00
Solanum tuberosum L. batata- inglesa a her e 1,00
Solanum viarum Dunal melancia-de-praia a sub n 1,00
Verbenaceae
Amasonia campestris (Aubl.) Moldenke flor-de-alma e sub n 1,00
Lantana camara L. chumbinho a,e arb n 2,00
Zingiberaceae
Zingiber officinale Roscoe gengibre b,e sub e 1,00
Não identificadas
Pustameira pustameira b,c,d arv n 1,29
96
Valor de Uso das Espécies Botânicas
Os maiores Valores de Uso foram encontrados para as espécies Commiphora
leptophoeos e Jatropha ribifolia (VU=4,00), seguidas de Cyperus esculentus (VU=3) e
Rhizophora mangle (VU=2,05). O resultado demonstra as espécies com maior potencial de
utilização citadas pelos pescadores. Os valores de uso de todas as espécies citadas foram
distribuídos em quatro classes (Figura 6), destas, duas tiveram maior número de espécies: a
primeira, onde estavam contidos Valores de Uso igual a 1,00 (58,33%) e a segunda com
valores compreendidos no intervalo 1,01 e 2,00 (37,6%). A partir das informações de uso
obtidas pode-se dizer que as espécies mais citadas foram aquelas cujo conhecimento ao seu
respeito é mais equitativamente distribuído dentro do grupo de pescadores artesanais
pesquisado.
Figura 6- Gráfico de distribuição do Valor de Uso das etnoespécies dispostos em classes de VU na
comunidade de pescadores artesanais da comunidade Canárias, Araioses/ MA, Brasil. Fonte: Pesquisa direta
(2009-2010).
Diversidade de citações de Espécies Botânicas
A diversidade de espécies botânicas encontradas na comunidade Canárias,
considerando o número geral de espécies citadas (nativas e exóticas) através do índice de
Shannon-Wienner na base 10, foi de H’(10)=1,58. Resultado inferior ao encontrado em
estudo realizado por Borges e Peixoto (2009) em uma comunidade caiçara/RJ, onde
H’(10)=1,81, bem como o estudo de Hanazaki, et al. (2000) nas comunidades caiçaras de
58.33
37.96
1.85 1.85
0
10
20
30
40
50
60
70
1 1,01 a 2,00 2,01 a 3,00 3,01 a 4,00
Po
rcen
tage
m d
e V
U
97
Almada e Camburí, que obtiveram H’(10)=1,99 e H’(10)=1,98, respectivamente. Inferior
também ao encontrado por Miranda e Hanazaki (2008) para as comunidades insulares de
Pereirinha, H’(10)=2,04, Cambriú-Foles, H’(10)=1,83 e Naufragos, H’(10)=1,90, e bem
abaixo ao encontrado por Carneiro, Barboza e Menezes (2010) em estudo realizado na vila
de pescadores que também pertencente a uma RESEX, neste caso, à Reserva Extrativista
Marinha Caeté-Taperaçu/PA, em que o índice de Shannon foi de H’=2,3. O resultado
mostra-se superior apenas ao resultado encontrado por Figueredo et al (1997) na
comunidade de Calhaus, ilha de Jaguanum (H’=1,53). Embora índices elevados de
diversidade sugiram áreas bem conservadas em comunhão com considerável conhecimento
etnobotânico (Lima et al, 2000) e a diversidade encontrada para Canárias tenha sido
inferior a maioria dos trabalhos realizados no litoral que foram analisados, a comunidade
ainda apresenta uma rica diversidade e um apreciável conhecimento etnobotânico.
Distribuição Conhecimento Botânico tradicional por Gênero
Os homens (n=83; 83%) citaram 102 espécies botânicas, das quais 63 (61,76%)
foram espécies exclusivas do grupo, destas 44 (69,85%) são de espécies nativas e 19
(30,15%) de espécies exóticas. Já as mulheres (n=17; 17%) citaram 45 espécies botânicas,
sendo 6 (13,33%) de espécies exclusivas deste grupo, destas 4 (66,67%) são espécies
exóticas e apenas 2 (33,33%) são espécies nativas.
Sobre as citações de uso, homens referiram 70628
usos sendo 446 (63,17%) para
espécies nativas e 260 (36,83%) para espécies exóticas. O grupo das mulheres atribuiu 126
citações de uso, sendo 69 (54,76%) para plantas nativas e 57 (45,24%) para exóticas.
No que se refere às categorias de Valor de Uso (VU) e sua relação com os gêneros
e origem das plantas (Figuras 7ª e 7B), observou-se que, os maiores valores de uso das
espécies nativas se concentraram na categoria que vai de 3,01 a 4,00, sendo esta formada
exclusivamente por plantas citadas por homens. Nas demais categorias de VU de plantas
nativas, houve o predomínio de espécies citadas pelo gênero masculino.
28 Baseado no somatório dos usos, considerando deste modo, usos repetidos.
98
As plantas exóticas se concentraram integralmente nas categorias VU=1 e VU
encontrado no intervalo de 1,01 e 2,00. Os maiores valores de uso pertencem à segunda
categoria descrita, com 60% das citações feitas por homens e 40% por mulheres.
Figura 7- Categorias de Valor de Uso (VU) das espécies nativas (A) e exóticas (B) e o percentual de citações
separados por gênero na Canárias, Araioses/ MA, Brasil. Fonte: Pesquisa direta (2009-2010).
A participação, em número de citações, do grupo feminino foi menor que do
masculino, tanto com espécies nativas quanto exóticas, percebe-se que as contribuições
destas estão mais representadas no grupo das plantas exóticas. O fato pode ser explicado
uma vez que elas geralmente ficam em casa responsáveis pelas atividades domésticas e
cuidados com a família, o que leva a ter um maior contato com as espécies medicinais,
cultivadas geralmente em quintas (muitas de origem exótica) e pouco contato com as
plantas nativas da mata local.
Deste modo, cabe ressaltar que na comunidade Canárias, a maior parte das citações
feitas pelas mulheres foi de plantas presentes em seus quintais ou próximas as suas
moradias, sendo 55,55% formada por espécies exóticas. Já em relação aos homens, o maior
conhecimento foi sobre as plantas nativas (60,78% das citações), e que não se restringe
apenas as espécies encontradas na ilha em que moram, mas da vegetação que os cercam no
caminho formado por rios e igarapés percorridos até os locais de pesca e em alguns casos,
cata do caranguejo. Deste modo embora não havendo diferenças significativas no
conhecimento de homens e mulheres sobre a biodiversidade, há um domínio acerca de
diferentes tipos de usos destas espécies por cada gênero.
Com relação às citações de espécies exclusivas, os homens demonstraram conhecer
mais sobre espécies nativas que as mulheres. No que tange as citações de uso, homens e
A B
99
mulheres demonstraram ter um maior conhecimento com relação às plantas nativas,
embora se considerado o número de citações as contribuições masculinas foram mais
expressivas. De um modo geral, o uso dos recursos se mostrou heterogêneo entre os
gêneros, assim como no estudo realizado por Borges e Peixoto (2009) numa comunidade
caiçara da APA de Cairuçu/RJ, onde as espécies cujo uso estavam ligadas a
construção/tecnologia foram de domínio masculino e ligadas a alimentação, medicina e
lenha foram de domínio feminino; Miranda et al. (2011) também observaram que os
homens demonstraram conhecer mais espécies manufatureiras, enquanto as mulheres mais
plantas medicinais no estudo desenvolvido sobre o uso dos recursos vegetais junto a
comunidades caiçaras da Ilha do Cardoso/SP.
Diversidade e Riqueza de Espécies Citadas por Gênero
Por possuírem tamanhos amostrais diferenciados, foi necessária a padronização das
amostras, como forma de controlar as diferenças apresentadas nos valores absolutos da
mesma, para poder relacioná-las corretamente. Para tal fim, foi utilizado como ferramenta
o mecanismo da rarefação (Figura 8).
Figura 8- A: Curva de rarefação para diversidade média (Shannon-Wienner Index); B: riqueza de espécies
citadas por gênero na comunidade de pescadores artesanais Canárias, Araioses/MA, Brasil, destacando os
intervalos de segurança da amostra maior rarefeita. Fonte: Pesquisa direta (2009-2010).
A diversidade média esperada (Shannon-Wiener) e a riqueza de espécies com a
amostra das citações de homens de 706 rarefeita para 126 citações, foi de H’(e)=3,38 e
S=49,59, respectivamente. Para saber se a amostra apresentava diferença significativa em
A B
100
relação à feminina, foram observados seus intervalos de confiança superior e inferior que
foram de 3,15 e 3,60 para diversidade (Shannon) e 43 e 57 para riqueza de espécies,
respectivamente. O Shannon calculado para o grupo de mulheres, ou diversidade
observada, com 126 citações, foi de 3,21, em média, e a riqueza observada para o grupo foi
de 45, em média. Nota-se que os mesmos estão contidos nos intervalos de confiança da
amostra maior rarefeita para 126 citações, tanto para a diversidade, quanto para riqueza de
espécies (figuras 8A e 8B). Deste modo, percebe-se que a diversidade citada pelo gênero
masculino é pouco maior, porém não apresenta diferenças significativas, demonstrando
que o conhecimento está distribuído de forma equilibrada entre eles.
Outro trabalho similar, em que esta diferença foi pequena, porém, neste caso, a
diversidade tenha sido pouco maior para mulheres, foi o realizado por Figueredo et al
(1997) ao estudarem a etnobotânica de plantas medicinais na comunidade da praia de
Calhaus (Ilha de Jaguanum), Costa da Mata Atlântica, onde o índice de Shannon
encontrado para mulheres e homens foi de H’=1,34 e H’=1,33, respectivamente, e a
riqueza foi de S=29 para homens e S=35 para mulheres. Resultado semelhante foi
encontrado por Begossi et al (2002), onde a diversidade (Shannon-Wiener) encontrada
para homens H’(e)=4.38 foi pouco maior que para mulheres H’(e)=4.19, ocorrendo
também pouca diferença em relação a riqueza de espécies entre mulheres (S=191) e
homens (S=176).
Observam-se também semelhanças aos resultados encontrados por Sousa (2010), ao
estudar as comunidades pesqueiras de Barra Grande e Morro da Mariana na APA no Delta
do Parnaíba, litoral do Piauí, onde as diferenças entre gêneros também não foram
significativas, sendo encontrado em Barra Grande H’=4,42 para homens e H’=4,22 para
mulheres e em Morro da Mariana, H’=4,48 para homens e H’=4,42 para mulheres.
De um modo geral, os resultados demonstraram uma distribuição equitativa por
gênero do conhecimento sobre as plantas, assim como o encontrado por Merétika et al
(2010), no estudo feito com pescadores artesanais em Itapoá/SC cujos resultados não
demonstraram diferenças entre a riqueza citada por homens e mulheres bem como se
assemelham ao estudo feito por Figueredo et al. (1997) na comunidade Calhaus na ilha de
Jaguanum, em que homens e mulheres não apresentaram diferenças no grau de
familiaridade com o uso de plantas medicinais. Divergindo dessa direção foram os
101
resultados do estudo de Hanazaki et al. (2000) em Ponta Almada e Praia do Camburí em
que de três categorias estudadas (artesanato, medicinal e alimentícia) em ambas as
comunidades, apenas uma (alimentícia) e apenas em Camburí, não apresentou diferença
significativa entre os gêneros. A diferença no conhecimento por gênero também foi
descrita por Begossi et al. (2002) ao estudar caiçaras na costa da Mata Atlântica em que,
considerando a abundância relativa de citações por espécie (Shannon), observaram que os
homens apresentaram uma maior diversidade em relação às mulheres. Coe e Anderson
(1996) também observaram esta diferença em Miskitu, costa leste de Nicarágua, onde
relatam que no geral os homens são mais conhecedores do que as mulheres no que diz
respeito ao uso de espécies silvestres.
Distribuição do Conhecimento Botânico Tradicional por Faixa-Etária
O grupo dos adultos (n=72; 72,00%) teve maior número de citações de uso (547),
seguido de jovens (n=14; 14%), com 150 citações e idosos (n=14; 14%), com 135 citações,
sendo 65,74%, 18,04% e 16,22% respectivamente, em valores percentuais. Os adultos
citaram 78 espécies botânicas sendo 39 (50,00%) nativas e 39 (50,00%) exóticas. O
número de espécies citadas exclusivamente por este grupo foi 28 (35,89%) sendo 9
(32,15%) nativas e 19 (67,85%) exóticas; os jovens citaram 64 espécies, sendo 49
(76,56%) espécies nativas e 15 (23,44%) exóticas. O grupo dos jovens apresentou 26
(40,62%) espécies exclusivas, destas 23 (88,47%) foram nativas e 3 (11,53%) exóticas; os
idosos citaram 46 espécies, sendo 25 (54,35%) nativas e 21 (45,65%) exóticas,
apresentando duas espécies exclusivas, uma nativa e uma exótica.
Sobre as categorias de Valor de Uso (VU) e sua relação com a faixa-etária e origem
das plantas, observou-se que, os maiores valores de uso das plantas nativas se
concentraram na categoria que vai de 3,01 a 4,00, sendo esta categoria formada
exclusivamente por plantas citadas pelos jovens (Figura 9).
102
Diversidade e Riqueza de Espécies Citadas por Faixa-Etária
Comparando-se o conhecimento de jovens e idosos observa-se que a diversidade
(Shannon-Wiener) e a riqueza de espécies observadas para a amostra de idosos com 135
citações, foram de H’(e)=3,38 e S= 46, em média. Já a diversidade e riqueza esperada para
amostra de jovens, considerando 135, como número de citações, foram de H’=3,64 e
S=60,96 em média, com intervalos de confiança, inferior e superior, de: 3,57 e 3,71 para
diversidade e 58 e 64 para riqueza. Observa-se que tanto a diversidade (H’), quanto à
riqueza (S) encontrada para o grupo dos idosos não estão contidas nos intervalos da
amostra de jovens rarefeita para 135 citações, em ambos os índices (Figuras 10B e 11B), o
que demonstra diferença significativa entre a diversidade/riqueza citadas por jovens e por
idosos. Apresentando, neste caso, os jovens, um maior conhecimento sobre a riqueza e
diversidade de espécies local.
Ao comparar o conhecimento de jovens e adultos observou-se que, a diversidade
esperada para adultos, considerando 150 citações, foi de H’(e)=3,26, com intervalos de
confiança inferior e superior de 3,07 e 3,44, respectivamente. O índice de Shannon
encontrado para jovens foi de H’(e)=3,68, por isso, fora do intervalo de confiança da
amostra maior rarefeita (Figura 10C). O mesmo ocorre com a riqueza de espécies (S), onde
a riqueza esperada para os adultos, considerando 150 citações, foi de S=46,58, e seus
intervalos de confiança, inferior e superior, foram respectivamente de 40 e 53. A riqueza
Figura 9- Categorias de Valor de Uso (VU) das espécies nativas (A) e exóticas (B) e o percentual de citações
separados por faixa-etária na comunidade Canárias, Araioses,/MA, Brasil. Fonte: Pesquisa direta (2009-2010).
A B
103
observada para amostra jovens com 150 citações foi de S=64, estando da mesma forma que
a diversidade, fora do intervalo de confiança da amostra maior rarefeita (Figura 11C), o
que vem demonstrar a existência de diferenças significativas entre ambos. Neste caso, o
conhecimento dos jovens mostrou-se maior que o de adultos.
Comparando o conhecimento de adultos e idosos percebe-se que a diversidade
esperada (índice de Shannon-Wiener) e a riqueza esperada para adultos considerando o
tamanho amostral de 135 citações, foram respectivamente de H’(e)=3,23 e S=44,08, em
média, com intervalos de confiança inferior e superior de 3,03 e 3,41, para diversidade e
38 e 50 para riqueza de espécies. Ao relacionar estes números com a diversidade e riqueza
observadas para o grupo formado pelos idosos (H’=3,38 e S=46), nota-se que os mesmos
estão contidos nos intervalos de segurança da maior amostra rarefeita, tanto para
diversidade, como para riqueza de espécies (Figuras 10D e 11D), demonstrando que não há
diferenças significativas entre ambos, embora o conhecimento apresentado pelos idosos se
mostre pouco maior do que o apresentado pelos adultos.
104
Figura 10- Curva de rarefação para diversidade de espécies (Shannon-Wienner Index) citadas por faixa
etária na comunidade de pescadores artesanais Canárias, Araioses,/MA, Brasil. A) Diversidade por Faixa; B) Relação entre jovens e idosos, com os intervalos de segurança da amostra maior rarefeita; C) Relação entre
adultos e jovens, com os intervalos de segurança da amostra maior; D) Relação entre adultos e idosos, com os
intervalos de segurança da amostra maior. Fonte: Pesquisa direta (2009-2010).
A
)
B
)
C
)
D
)
A
)
B
)
C
)
D
) Figura 11– Curva de rarefação para riqueza de espécies citadas por faixa etária na comunidade de pescadores Canárias/MA, Brasil. A) Riqueza de gênero; B) Relação entre jovens e idosos, com
intervalos de segurança da amostra maior rarefeita; C) Relação entre adultos e idosos, com os intervalos
de segurança da amostra maior. Fonte: Pesquisa direta (2009-2010).
105
Uma vez colocados em mesmo nível amostral, foi observado que, com relação ao
conhecimento acerca da flora local, a faixa-etária representada pelos jovens apresenta-se
superior aos grupos formados por adultos e idosos, e os idosos em relação aos adultos
(Figuras 10A e 11A), de modo que, as diferenças são significativas entre jovens e idosos,
bem como entre jovens e adultos, e não significativas entre adultos e idosos.
Os resultados apresentados neste trabalho mostraram-se divergentes aos
encontrados por outros trabalhos, onde a idade mais elevada está geralmente relacionada a
um maior conhecimento oriundo de uma maior experiência de vida, assim como o
apresentado no trabalho de Merétika et al. (2010), ao estudarem pescadores artesanais em
Itapoá/ SC; No estudo etnobotânico de Figueiredo et al. (1997) em Calhaus, ilha de
Jaguanum/RJ, em que os entrevistados mais velhos conhecem mais sobre plantas
medicinais do que os mais jovens, e ao estudo de Rossato et al. (1999) com caiçaras na
costa no sudoeste do Brasil, onde os idosos também apresentaram um maior conhecimento
sobre as espécies. Divergem também dos encontrados por Begossi et al. (2002) com os
caiçaras da costa da Mata Atlântica, em que os mais velhos apresentaram uma maior
diversidade de citações de plantas em comparação aos jovens; ao trabalho de Sousa (2010)
nas comunidades de pescadores de Barra Grande e Morro da Mariana, onde o
conhecimento dos idosos foi superior ao dos jovens e similar (Riqueza e Shannon) ou
maior (números de citações) em relação aos adultos; dos resultados de Fonseca-Kruel e
Peixoto (2004) ao realizar estudo Etnobotânico na RESEX Arraial do Cabo/ RJ, onde
observaram que o saber tradicional encontra-se mantido especialmente entre os pescadores
mais idosos. Coe e Anderson (1996) observaram também os indivíduos mais velhos como
sendo mais conhecedores que os jovens a respeito do uso de plantas medicinais, porém
neste caso, os indivíduos mais jovens estavam mais bem informados sobre plantas usadas
como alimentos.
O fato dos idosos terem apresentado durante as entrevistas menor número de
citações do que os jovens pode ser compreendido uma vez que os representantes deste
grupo geralmente não se dispuseram a participar de turnês-guiadas, técnica que facilita a
lembrança das espécies conhecidas. Esta recusa aparece muitas vezes, por apresentarem
estado de saúde delicado, ou não suportarem o esforço físico exigido nas caminhadas. Uma
106
característica deste grupo também seria certa timidez ao serem entrevistados, bem como
geralmente não se recordam de muitas plantas que conhecem e usam.
Os jovens e adultos se mostraram mais abertos as entrevistas e dispostos a se
deslocaram de suas casas para mostrar alguma planta que citaram durante as mesmas.
Hanazaki et al. (2000) também relataram o fato dos jovens estarem mais abertos e por
conseqüência citarem uma diversidade maior de citações, bem como descrevem a
possibilidade dos mais velhos estarem interagindo menos com a vegetação.
Observa-se, porém, que a eficiência do método “turnê guiada” pode ser o motivo da
superioridade em número de citações de espécies no grupo dos jovens. O método que
expõe o indivíduo ao contato direto com a mata faz com que o mesmo lembre de inúmeras
espécies que não citaria se recorresse apenas à memória.
O maior conhecimento apontado para o grupo composto pelos jovens sugere que
estes estão tendo acesso a um número maior de informações oriundas tanto do ensino
formal, mas também da facilidade informativa que a tecnologia pode proporcionar como,
por exemplo, com a televisão e internet. Todo esse conhecimento é então agregado aos
conhecimentos transmitidos pelos mais velhos, uma vez que todo processo de aprendizado
é dinâmico e está aberto a renovações. Essa transmissão ocorre de modo natural,
utilizando-se dos mecanismos da oralidade e observação dentro do convívio diário com
atividade pesqueira, que se inicia já quando criança, mas cuja inserção efetiva na atividade
só ocorre por volta dos 16 anos, em média, para moradores da ilha.
Conclusão
De modo geral, os pescadores artesanais da comunidade Canárias possuem um bom
conhecimento em relação das plantas nativas e exóticas presentes na ilha, bem como
muitos de seus usos, demonstrando assim a existência do conhecimento botânico
tradicional na comunidade.
As categorias que tiveram maior número de citações foram medicinal, alimentícia e
construção. O valor de uso das espécies citadas pouco variou, não apresentando valores
elevados, o que traduz a utilidade de diversas plantas apenas para um número reduzido de
107
pessoas. A espécie com maior valor de uso foi Rhizophora mangle, com citações para os
usos construção e medicinal.
O conhecimento sobre o uso das plantas na comunidade encontra-se distribuído
regularmente entre os gêneros e irregularmente entre faixa-etária, havendo neste caso
diferença significativa no conhecimento apresentado na relação jovens x idosos e jovens x
adultos, e diferenças não significativas na relação idosos x adultos. Os jovens apresentaram
maior conhecimento que pode estar relacionado com o fato de que estes, além do
conhecimento passado pelos mais velhos, possuem acesso a outros conhecimentos, como
por exemplo, o formal, uma vez que este grupo apresentou o maior percentual de
indivíduos que frequentaram a escola; outras características desse grupo é a de possuírem
maior facilidade de acesso a novas tecnologias, e por serem também mais desinibidos
estando assim, mais abertos aos diálogos. Já os idosos demonstram maior receio ao serem
entrevistados, além de não lembrarem os nomes das plantas e não estarem dispostos a
realizarem turnês-guiadas, fato que aumenta consideravelmente os números de citações de
um entrevistado.
O fato é que, apesar de apresentar problemas ambientais, a comunidade possui uma
considerável porção de área verde conservada, que juntamente com os dados adquiridos na
pesquisa demonstram ainda uma presente e dinâmica transmissão do conhecimento dos
mais velhos aos mais jovens. Essa transmissão ocorre de modo natural no convívio e na
execução das práticas diárias. Já a dinâmica no processo de aprendizagem explica a
incorporação de novos conhecimentos aos já existentes sobre das plantas locais, onde
houve incorporação de espécies exóticas e aprendizado a seus respeitos. O aumento de
informações com a chegada da energia elétrica, que trouxe consigo rádio, TV e internet,
pode ser uma explicação para o maior conhecimento por parte dos jovens.
O conhecimento em relação aos recursos vegetais da ilha demonstra que ainda
ocorre a manutenção e transmissão desse conhecimento dentro desta cultura. A própria
condição insular da comunidade, com acesso apenas por barco, pode ser um fator que
colaborou grandemente com a manutenção de suas características culturais.
Diante da forte influência da cultura sobre a biodiversidade local e estando ciente
da manutenção do ainda presente conhecimento tradicional na comunidade, é que se
destaca a importância de se considerá-los nas ações que envolvam a conservação desta
108
área, principalmente por se tratar de uma reserva extrativista, que se destina não apenas
conservação da área, mas também da cultura e modo de vida dos povos que dependem do
extrativismo local para sobreviver.
Agradecimentos
Aos pescadores da comunidade Canárias, sem os quais não seria possível a realização desta
pesquisa e a todos que contribuíram para conclusão deste trabalho. Ao ICMBio e Colônia
de Pesca Z-7, pelas autorizações necessárias para o desenvolvimento da pesquisa.
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Cymbopogon citratus - 6,44% (27). R. mangle possivelmente foi mais referida devido ao fato
de ser nativa e encontrar-se em abundância na região, fazendo parte da paisagem que os
cercam no caminho até os locais de pesca.
Os valores de uso (VU) foram distribuídos em categorias (Figura 2), sendo que a
maioria das plantas obteve VU compreendido entre 1,01 e 2,00. Os maiores Valores foram
encontrados para as espécies Commiphora leptophoeos e Jatropha ribifolia (VU=4,00),
seguidas de Cyperus esculentus (VU=3,00) e R. mangle (VU=2,05) (Tabela 1). O resultado
demonstrou a importância cultural destas espécies para a comunidade uma vez que representa
o quão difundido está o conhecimento de uso das mesmas uma vez que foram baseados nos
potenciais de utilização citados pelos pescadores.
FIGURA 2- Classes de Valor de Uso das espécies utilizadas como medicinais na comunidade
Canárias, Ilha das Canárias, Araioses/ MA, Brasil. Fonte: Pesquisa direta (2009-2010).
123
TABELA 1: Espécies usadas como medicinais pelos pescadores artesanais da comunidade
Canárias, Ilha das Canárias/ Araioses/ MA, Brasil. NV = Nome Vulgar; Hb=Hábito: her=herbáceo, sub=subarbusto; arb=arbusto, arv=árvore, lia=liana; S=Status: n=nativa, e=exótica; VU = Valor de Uso; IR=Importância Relativa.
FAMILIA/ESPÉCIE NV IR Hb S VU
Acanthaceae
Justicia pectoralis Jacq. anador 1,07 erv n 1,25
Amaranthaceae
Alternantera dentata (Moench) Stuchlik ex R.
E. Fries.
cibalena 0,23 arb n 1,00
Anacardiaceae
Anacardium occidentale L. cajueiro 0,76 arv n 1,05
Mangifera indica L. mangueira 0,23 arv e 1,00
Myracrodruon urundeuva Allemão aroeira 0,23 arb n 1,00
Apiaceae
Pimpinella anisum L. erva-doce 0,23 her e 1,00
Apocynaceae
Hancornia speciosa Gomes mangaba 0,31 arv n 1,00
Himatanthus drasticus (Mart.) Plumel janaguba 0,62 arv n 1,17
Araceae
Montrichardia linifera (Arruda) Schott aninga 0,23 arb n 1,00
Arecaceae
Cocos nucifera L. coqueiro/coco 0,62 arv e 1,00
Copernicia prunifera (Mill.) H.E. Moore carnaúba 0,76 arv n 1,50
Attalea speciosa (Mart. ex Spreng.) Barb.
Rodr.
babaçu 0,23 arv n 1,00
Asclepiadaceae
Calothropis procera (Aiton) W.T. Aiton ciúme 0,23 arb e 1,00
Asteraceae
Artemisia vulgaris L. dipirona 0,23 her e 1,00
Vernonia condensata Baker boldo-miúdo 1,24 arb e 1,29
Aviceniaceae
Avicennia germinans (L.) L. mangue-siriba/mangue-
canoé
0,23 arv n 1,00
124
Tabela 1. Continuação
FAMILIA/ESPÉCIE NV IR H S VU
Bignoniaceae
Crescentia cujete L. cujubeira 0,23 arb e 1,00
Bixaceae
Bixa orellana L. urucum 0,45 arb n 2,00
Bombacaceae
Pachyra aquatica Aubl. munguba/manguba 1,24 arv n 1,75
Burseraceae
Commiphora leptophoeos (Mart.) J.B. Gillett imburana-de-espinho 0,45 arb n 2,00
Cannabaceae
Cannabis sativa L. maconha 0,54 arb e 3,00
Capparaceae
Cleome spinosa Jacq. muçambê/muçambé 0,54 arb n 1,20
Caricaceae
Carica papaia L. mamão 0,23 arv e 1,00
Chenopodiaceae
Chenopodium ambrosioides L. mastruz 1,86 sub e 1,14
Chrysobalanaceae
Chrysobalanus icaco L. guajiru 0,23 arb n 1,00
Combretaceae
Conocarpus erectus L. mangue-de-botão 0,23 arv n 1,00
Transtornos neuróticos, transtornos relacionados com o “stress” e transtornos somatoformes
Lippia alba calmante Cymbopogon citratus dor de cabeça, calmante Mentha x villosa dor de cabeça Ricinus communis dor de cabeça Rhizophora mangle dor de cabeça Rosmarinus officinalis calmante Vernonia condensata dor de cabeça Pimpinella anisum calmante Jatropha ribifolia dor de cabeça
(H00-H95) FCI=0,00 Transtornos dos olhos e ouvidos
Pachyra aquatica dor de ouvido
(I00-I99) FCI=0,11
Doenças do aparelho circulatório
Aloe vera pressão alta Terminalia catappa pressão alta Justicia pectoralis pressão alta Lippia alba pressão alta Cymbopogon citratus pressão alta Mentha x villosa pressão baixa Rhizophora mangle criar sangue Spermacoce verticillata limpa e afina o sangue Saccharum officinarum pressão alta
(J00-J99) FCI=0,28
Doenças do aparelho respiratório, gripe
(J00-J99) FCI=0,28
Doenças do aparelho
Mentha x villosa gripe, dor de garganta Zingiber officinale gripe Vachellia farnesiana gripe, puxada (catarro) Eucalyptus globulus gripe Citrus aurantium gripe Citrus limonum gripe Plectranthus amboinicus gripe Chenopodium ambrosioides
gripe, catarro
Cleome spinosa gripe Punica granatum dor de garganta Spermacoce verticillata gripe Cnidoscolus urens sinusite
Syzygium jambolanum dor de barriga, diarréia Vernonia condensata dor de estômago, diarréia,
Indigestão Anacardium occidentale dor de estômago Lippia alba dor de estômago, dor de barriga
(diarréia) Cymbopogon citratus dor de estômago, dor de barriga
(diarréia), indigestão Cocos nucifera dor de barriga, diarréia Vachellia farnesiana dor de estômago Crescentia cujete dor de estômago Psidium guajava dor de barriga (diarréia) Mentha x villosa dor de barriga (diarréia),
intestino, cólica infantil Cannabis sativa dor de barriga Plectranthus amboinicus dor de estômago Carica papaia indigestão Avicennia germinans gastrite Rhizophora mangle verminose, gastrite, mau hálito,
dor de estômago, dor de barriga (diarréia)
Laguncularia racemosa gastrite Mangifera indica dor de barriga (diarréia) Chenopodium ambrosioides
dor de estômago, problemas intestinais
Senna alata dor de barriga (diarréia) Dioclea grandiflora gastrite Trimezia sp. gastrite, úlcera Jatropha ribifolia laxante Bixa orellana prisão de ventre Mentha arvensis dor de barriga (diarréia Spermacoce verticillata diarréia Convolvulus macrocarpus dor de estômago Hancornia speciosa gastrite, dor de estômago Não identificada gastrite, hérnia Ximenia americana dor de estômago, gastrite
(K00-K14) FCI=0,00
Doenças da cavidade oral, das glândulas salivares e dos maxilares
Anacardium occidentale dor de dente Cnidoscolus urens dor de dente
(K70-K77) FCI=0,00 Doenças do fígado (K70-K77) FCI=0,00 Doenças do fígado
Ximenia americana problemas do fígado Vernonia condensata problemas do fígado Copernicia prunifera problemas do fígado Hymenaea courbaril problemas do fígado Phyllanthus niruri problemas do fígado
(L00-L99) FCI=0,00
Doenças de pele e do tecido subcutâneo: dermatite, unhas, etc.
Doenças do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo
Chenopodium ambrosioides
fraturas
(N00-N99) FCI=0,18
Doenças do aparelho geniturinário
Rhizophora mangle problemas renais Phyllanthus niruri dor nos rins Mimosa caesalpiniifolia dor nos rins Terminalia catappa problemas renais Ximenia americana problemas renais Rosmarinus officinalis dor nos rins Syzygium jambolanum problemas renais Copernicia prunifera problemas renais Hymenaea courbaril problemas renais Caesalpinia ferrea dor nos rins
(N20-N23) FCI=0,00
Calculose renal
Phyllanthus niruri pedra nos rins Mimosa caesalpiniifolia pedra nos rins
(R50-R69) FCI=0,35
Sintomas e sinais gerais
(R50-R69) FCI=0,35
Sintomas e sinais gerais
Terminalia catappa inflamação Ximenia americana inflamação Justicia pectoralis dor Montrichardia linifera cicatrizante Myracrodruon urundeuva inflamação Syzygium jambolanum inflamação Saccharum officinarum fortificante Aloe vera inflamação, tratamento de
cabelo Vernonia condensata inflamação, dor no peito, vômito Anacardium occidentale inflamação, cicatrizante Lippia alba desmaio, dor Cymbopogon citratus vômito, febre Copernicia prunifera febre, inflamação Alternantera dentata dor Vachellia farnesiana febre, inflamação Cocos nucifera hidratação, fraqueza Artemisia vulgaris dor Eucalyptus globulus dor no corpo, febre Mentha x villosa lambedor (fortificante), febre Commiphora leptophoeos cicatrizante Himatanthus drasticus fortificante para grávidas, dores
nas costas, inflamação Convolvulus macrocarpus febre Hymenaea courbaril fortificante, inflamação Caesalpinia ferrea inflamação, febre, dor no corpo Citrus aurantium febre Citrus limonum febre Cannabis sativa dor, inflamação Rhizophora mangle cicatrizante, inflamação, Laguncularia racemosa inflamação Chenopodium ambrosioides