UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA DOUTORADO EM MÚSICA MARIA CLARA DE ALMEIDA GONZAGA MÚSICA CÊNICA PARA PIANO NO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO 2013
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
DOUTORADO EM MÚSICA
MARIA CLARA DE ALMEIDA GONZAGA
MÚSICA CÊNICA PARA PIANO NO RIO DE JANEIRO
RIO DE JANEIRO
2013
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
DOUTORADO EM MÚSICA
MARIA CLARA DE ALMEIDA GONZAGA
MÚSICA CÊNICA PARA PIANO NO RIO DE JANEIRO
.
Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Música como requisito parcial para a obtenção do
título de Doutora em Música do Centro de Letras e
Artes da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UNIRIO).
Orientadora: Profª. Drª. Vânia Dantas Leite.
RIO DE JANEIRO
2013
AGRADECIMENTOS
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela
concessão de bolsas no período de estágio doutoral na Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro (UNIRIO), nos dois semestres de 2010.
À UNIRIO, promotora do Dinter, especialmente aos professores do Programa de Pós-
Graduação em Música (PPGM) que abraçaram a causa e a Aristides, Cristina e Leandro pelo
suporte necessário na Secretaria, bem como aos funcionários da recepção, da segurança e da
limpeza que me acompanharam durante todo o período de estudos na Instituição.
À Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e à sua Pró-Reitoria de Pós-
Graduação nas pessoas dos Profs. Drs. Edna Maria e Rubens Marimbondo, pela atenção a nós
dispensada.
Aos Profs. Drs. da Escola de Música da UFRN (EMUFRN), Prof. Dr. Zilmar
Rodrigues pelo empenho na implantação do Projeto Dinter e à toda sua Secretaria, sempre
pronta a nos ajudar.
Aos funcionários da Biblioteca Pe. Jaime Diniz (BPJD), pelo atendimento, sempre
ágil, às nossas solicitações.
Ao grande amigo Prof. Dr. André Luiz pelo enorme incentivo e incansável
colaboração.
À orientadora, Profa. Dra.Vânia Dantas Leite, pela paciência de se repetir inúmeras
vezes em favor deste trabalho.
À aluna Brígida Bessa Paiva, pela carinhosa assistência.
Aos colegas de turma e de trabalho, pelo companheirismo, apoio e generosidade.
Aos pais, Dilma de Almeida Gonzaga e Genilson Alves Gonzaga (in memorian), que
me conduziram ao mundo maravilhoso da palavra escrita.
Aos filhos muito amados – Amanda, Caio, Fidja, Kadja e Rafael – pela enorme
resignação em aguardar longamente pela atenção da mãe.
Ao esposo querido, Franklyn Nogvaes, que abriu mão de seus próprios afazeres para
me auxiliar em todos os sentidos e em todos os momentos, doando-se inteiramente a essa
causa.
Ao compositor Luciano Garcez, que me inspirou a fazer do cotidiano e da música
cênica uma poesia itinerante.
Aos compositores e intérpretes que colaboraram nesta pesquisa com materiais e
depoimentos: Luiz Carlos Csekö, Tim Rescala, Jocy de Oliveira, Marisa Rezende, Tato
Taborda e Maria Teresa Madeira.
"[...] tudo o que é bom no mundo vem de dentro e
portanto lhe vem de fora - mas só relampeja através.
[...]".
Novalis (2009, p. 31).
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo desvelar – através de pesquisa bibliográfica, análise
de obras e entrevistas a autores e intérpretes – aspectos técnico-interpretativos de seis peças
de música cênica de compositores atuantes no Rio de Janeiro a fim de fornecer subsídios a
estudantes, professores de música, compositores, críticos – e outros interessados no tema –
para a interpretação, análise e apreciação. A produção de música cênica, intensificada no
Brasil e no mundo a partir da década de 1960, possui repertório ainda pouco divulgado. O
presente estudo, que inclui a contextualização dos termos utilizados nas práticas do gênero
tais como teatro musical, música-teatro, teatro instrumental e ópera contemporânea, conclui
que experiências de interação entre intérpretes e compositores no exercício de um novo
virtuosismo apontam caminhos para novos olhares não apenas no sentido da realização de
repertórios que demandam ações e atuações diversificadas de execução musical, mas também
no que se refere às práticas interpretativas tradicionais.
Palavras-chave: Música cênica. Piano. Música-teatro. Teatro instrumental.
ABSTRACT
The objective of this work is to reveal – through bibliographic research, analysis of
works and interviews with authors and performers – technical and interpretative aspects of six
music theater pieces by composers who work in Rio de Janeiro. The goal is to provide
assistance to students, music teachers, composers, critics – and others interested in the theme
– for interpretation, analysis and appreciation. The production of music theater has
intensified in Brazil and around the world since the decade of the 1960s and its repertoire has
still been little exposed. The present study includes the contextualization of terms used in the
practices of the genre such as musical theater, new music theater, instrumental theater and
contemporary opera. It concludes that experiences of interaction between interpreters and
composers in the exercise of a new virtuosity suggest paths to new perspectives, not only in
performing repertoires that demand varied actions and performances in musical execution, but
also in regard to traditional interpretative practices.
Keywords: Music theater. Piano. New music theater. New virtuosity.
RESUMÉ
Ce travail a pour objectif de révéler – à travers de recherches bibliographiques,
d‟analyses d‟oeuvres et d‟entrevues d‟auteurs et d‟interprètes – les aspects techniques et
d‟interprétations de six pièces de théâtre musical de compositeurs actuants à Rio de Janeiro
afin de fournir des subvention à des étudiants, à des professeurs de musique, à des
compositeurs, à des critiques – et autres personnes intéressées par le thème – pour
interprétation, analyse et appréciation. La production de théâtre musical, intensifiée au Brésil
et dans le monde à partir des années 1960, a un répertoire encore peu divulgué. Cette étude,
qui inclut la contexture des termes utilisés dans les pratiques du genre tout comme le théâtre
musical, la musique d‟action, le théâtre instrumental et l‟opéra contemporaine, conclut que
des expériences d‟interaction entre interprètes et compositeurs dans l‟exercice d‟une nouvelle
virtuosité montrent des chemins pour de nouveaux regards non seulement dans le sens de la
réalisation de répertoires qui demandent des actions et des actuations diversifiées dans
l‟exécution musicale, mais aussi en ce qui concerne les pratiques interprétatives
traditionnelles.
Mots-clés: Théâtre musical. Piano. Musique d‟action. Théâtre instrumental.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Relações entre práticas de música cênica..................................................... 47
Figura 2 – Partitura/texto original de Es(x)tro(a)versão, de Luiz Carlos Csekö........... 63
Figura 3 – Fragmento da partitura original de Estudo para piano, de Tim Rescala..... 77
Figura 4 – Fragmento inicial da partitura de Estudo para piano, de Tim Rescala........ 82
Figura 5 – Análise, da própria autora, da parte de piano da versão de Dueto I+1
realizada por Vânia Dantas Leite e Rodolfo Caesar em colaboração com
a obra de Milton Machado...........................................................................
89
Figura 6 – Fragmento da parte de piano, criada por Vânia Dantas Leite para o Dueto
I+1................................................................................................................
90
Figura 7 – Outro fragmento da parte de piano, criada por Vânia Dantas Leite, para o
Dueto I+1.....................................................................................................
92
Figura 8 – Desenho/partitura de Milton Machado (imagem digitalizada).................... 94
Figura 9 – Disposição dos quatro teclados ao redor do intérprete na peça Dimensões
para quatro teclados, de Jocy de Oliveira..................................................
100
Figura 10 – Texto introdutório da partitura de One player and four keyboards, de
Jocy de Oliveira..........................................................................................
102
Figura 11 – “Nota repetida – última altura nos dois manuais........................................ 104
Figura 12 – “Começa bem devagar com o cotovelo e todod o braço até os dedos”....... 104
Figura 13 – “Com a palma da mão primeiro e depois os dedos, como uma massagem
no teclado”...................................................................................................
105
Figura 14 – Uma nota qualquer....................................................................................... 105
Figura 15 – Indicação de direção..................................................................................... 105
Figura 16 – “Várias notas, rápido”.................................................................................. 106
Figura 17 – “O mais agudo possível no instrumento” ou “O mais grave possível no
instrumento”.................................................................................................
106
Figura 18 – “Pressionar a tecla e retirar dela quase todo o peso bem levemente e
devagar (o mais agudo possível)”................................................................
107
Figura 19 – “O cluster mais agudo possível em teclas pretas”....................................... 107
Figura 20 – “O som mais agudo com cluster em notas pretas e brancas”...................... 108
Figura 21 – “De uma nota a outra, lentamente, pressionando a tela e retirando
levemente o peso do dedo sobre a mesma”................................................
108
Figura 22 – “Bater nas cordas com a palma da mão”......................................................... 109
Figura 23 – “Pressione a tecla, tocando o dedo [de outra mão] na corda correspondente
para produzir harmônico”................................................................................
109
Figura 24 – “Use um objeto de metal e friccione-o ao longo da corda”............................. 110
Figura 25 – “Com a mão em forma de concha, pressione teclas pretas e deslize para
brancas”...........................................................................................................
110
Figura 26 – “Com o braço do cotovelo ao dedo, pressione e retire certas partes do
braço”..............................................................................................................
111
Figura 27 – “Segure todo o teclado com uma régua – ligue e desligue o
instrumento”....................................................................................................
111
Figura 28 – “Segure uma régua entre o teclado e a tampa sem som. Pressione e retire a
régua”..............................................................................................................
112
Figura 29 – “Muitas notas, rápido, ad libitum”.................................................................. 112
Figura 30 – “Segure esta nota”........................................................................................... 113
Figura 31 – “Pressionar o teclado com o braço do cotovelo aos dedos”............................ 113
Figura 32 – “Cluster com pressão do braço sem som”....................................................... 113
Figura 33 – “Cluster com braço”........................................................................................ 114
Figura 34 – Fragmento que exemplifica alturas definidas na partitura principal de One
player and four keyboards, de Jocy de Oliveira..............................................
114
Figura 35 – Fragmento que exemplifica alturas inexatas na partitura principal de One
player and four keyboards, de Jocy de Oliveira..............................................
115
Figura 36 – Quadro que faz parte das cartelas de eventos sonoros das partes anexas à partitura
principal para que o(a) intérprete escolha o que vai executar ................................
116
Figura 37 – Quadro de parte anexa (cartela de eventos sonoros a serem escolhidos pelo(a)
pianista) que indica livre improvisação musical/cênica para o(a) intérprete ...........
120
Figura 38 – Texto O espítito da qoisa de Luciano Garcez................................................. 139
LISTA DE SIGLAS
BPJD - - Biblioteca Pe. Jaime Diniz
CAPES - - Coordenação de Aperfeiçoamento de pessoal de Nível Superior
CCBB - - Centro Cultural Banco do Brasil
EMUFRN - - Escola de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
FAPERJ - - Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio
de Janeiro
FUNARTE - - Fundação Nacional de Artes
NuMEXI/RJ - - Núcleo de Música Experimental e Intermídia do Rio de Janeiro
OMLs - - Oficinas de Linguagem Musical
OSESP - - Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo
PPGM - - Programa de Pós-Graduação em Música
SEM - - Eletronic Music Studios
SESC - - Serviço Social do Comércio
UFBA - - Universidade Federal da Bahia
UFRJ - - Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRN - - Universidade Federal do Rio Grande do Norte
PPGM - - Programa de Pós-Graduação em Música
SEM - - Eletronic Music Studios
SESC - - Serviço Social do Comércio
UFBA - - Universidade Federal da Bahia
UFRJ - - Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRN - - Universidade Federal do Rio Grande do Norte
UNESP - - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
UNICAMP - - Universidade Estadual de Campinas
UNIRIO - - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO…………………………………………….......………………… 21
2 MÚSICA CÊNICA: DENOMINAÇÕES E CONTEXTOS.....…...........……… 27
2.1 MÚSICA CÊNICA, MÚSICA-TEATRO, TEATRO MUSICAL, MÚSICA DE
AÇÃO, TEATRO INSTRUMENTAL........................................................................
27
2.2 O PIANO NA MÚSICA CÊNICA: UMA NOVA NOÇÃO DE
VIRTUOSISMO........................................................................................................
49
3 RIO DE JANEIRO: COMPOSITORES E OBRAS............................................ 56
3.1 ES(X)TRO(A)VERSÃO, DE LUIZ CARLOS CSEKÖ....................................... 61
3.1.1 Instrumental...................................................................................................... 62
3.1.2 Notação.............................................................................................................. 63
3.1.2.1 Partitura............................................................................................................ 63
3.1.2.2 Texto de instruções ou bula............................................................................. 63
3.1.2.3 Gráficos ou desenhos....................................................................................... 64
3.1.3 Manipulação dos parâmetros sonoros............................................................ 64
3.1.3.1 Alturas.............................................................................................................. 64
3.1.3.2 Durações.......................................................................................................... 64
3.1.3.3 Texturas, timbres e dinâmica........................................................................... 65
3.1.3.4 Articulação do som no espaço......................................................................... 66
3.1.4 Interdisciplinaridade........................................................................................ 66
3.1.4.1 Diálogo com outras linguagens artísticas........................................................ 66
3.1.4.2 Envolvimento do compositor em funções paralelas tais como as de
intérprete, diretor de cena, coreógrafo, designer de cena, som e luz...........................
66
3.1.5 Cena................................................................................................................... 66
3.1.5.1 Movimentação, ação e atuação cênica............................................................. 67
3.1.5.2 Cena prevista em partitura ou texto de instruções técnicas............................. 67
3.1.5.3 Figurino, cenário e objetos de cena................................................................. 68
3.1.5.4 Iluminação artística.......................................................................................... 68
3.1.5.5 Exposição de relações e costumes típicos do meio musical............................ 68
3.1.5.6 Sugestão de classificação entre os termos de música cênica comentados
neste trabalho...............................................................................................................
3.1.6 Narrativa...........................................................................................................
68
69
3.1.6.1 Linearidade...................................................................................................... 69
3.1.6.2 Texto................................................................................................................ 69
3.1.6.3 Relação entre palavras e sons.......................................................................... 70
3.1.7 Indeterminação (o acaso, o imponderável, o efêmero na apresentação
musical).......................................................................................................................
70
3.1.8 Tecnologias (uso de equipamentos)................................................................. 71
3.1.9 Intérprete........................................................................................................... 71
3.1.9.1 Relação compositor-intérprete: interação no processo de realização da obra. 71
3.1.9.2 Novo virtuosismo............................................................................................ 71
3.1.9.3 Consciência do contexto de criação da obra, autoconsciência e consciência
da comunicabilidade do que está sendo apresentado..................................................
72
3.1.10 Realização........................................................................................................ 72
3.1.10.1 Formação de equipe: associação entre profissionais da mesma área ou de
áreas diversas...............................................................................................................
72
3.1.10.2 Formação de grupos artísticos e movimentos culturais................................ 72
3.1.10.3 Espaços convencionais, modificados ou alternativos.................................... 73
3.1.10.4 Relação com as plateias................................................................................. 73
3.2 ESTUDO PARA PIANO, DE TIM RESCALA.................................................... 73
3.2.1 Instrumental...................................................................................................... 74
3.2.2 Notação.............................................................................................................. 74
3.2.2.1 Partitura............................................................................................................ 74
3.2.2.2 Texto de instruções ou bula............................................................................. 74
3.2.2.3 Gráficos ou desenhos....................................................................................... 74
3.2.3 Manipulação dos parâmetros sonoros............................................................ 74
3.2.3.1 Alturas.............................................................................................................. 75
3.2.3.2 Durações.......................................................................................................... 75
3.2.3.3 Texturas, timbres e dinâmica........................................................................... 76
3.2.3.4 Articulação do som no espaço......................................................................... 76
3.2.4 Interdisciplinaridade........................................................................................ 77
3.2.4.1 Diálogo com outras linguagens artísticas........................................................ 77
3.2.4.2 Envolvimento do compositor em funções paralelas tais como as de
intérprete, diretor de cena, coreógrafo, designer de cena, som e luz...........................
78
3.2.5 Cena................................................................................................................... 78
3.2.5.1 Movimentação, ação e atuação cênica............................................................. 78
3.2.5.2 Cena prevista em partitura ou texto de instruções técnicas............................. 79
3.2.5.3 Figurino, cenário e objetos de cena................................................................. 79
3.2.5.4 Iluminação artística.......................................................................................... 80
3.2.5.5 Exposição de relações e costumes típicos do meio musical............................ 80
3.2.5.6 Sugestão de classificação entre os termos de música cênica comentados
neste trabalho...............................................................................................................
80
3.2.6 Narrativa........................................................................................................... 80
3.2.6.1 Linearidade...................................................................................................... 80
3.2.6.2 Texto................................................................................................................ 81
3.2.6.3 Relação entre palavras e sons.......................................................................... 83
3.2.7 Indeterminação (o acaso, o imponderável, o efêmero na apresentação
musical).......................................................................................................................
83
3.2.8 Tecnologias (uso de equipamentos)................................................................. 83
3.2.9 Intérprete........................................................................................................... 83
3.2.9.1 Relação compositor-intérprete: interação no processo de realização da obra. 84
3.2.9.2 Novo virtuosismo............................................................................................. 84
3.2.9.3 Consciência do contexto de criação da obra, autoconsciência e consciência
da comunicabilidade do que está sendo apresentado...................................................
85
3.2.10 Realização........................................................................................................ 85
3.2.10.1 Formação de equipe: associação entre profissionais da mesma área ou de
áreas diversas...............................................................................................................
85
3.2.10.2 Formação de grupos artísticos e movimentos culturais................................. 85
3.2.10.3 Espaços convencionais, modificados ou alternativos.................................... 85
3.2.10.4 Relação com as plateias................................................................................. 86
3.3 DUETO I+1: PARA EXECUTANTES EXTREMAMENTE ATENTOS E
ISOLADOS UM DO OUTRO.....................................................................................
86
3.3.1 Instrumental...................................................................................................... 86
3.3.2 Notação.............................................................................................................. 87
3.3.2.1 Partitura............................................................................................................ 87
3.3.2.2 Texto de instruções ou bula............................................................................. 87
3.3.2.3 Gráficos ou desenhos....................................................................................... 87
3.3.3 Manipulação dos parâmetros sonoros............................................................ 87
3.3.3.1 Alturas.............................................................................................................. 88
3.3.3.2 Durações.......................................................................................................... 91
3.3.3.3 Texturas, timbres e dinâmica........................................................................... 93
3.3.3.4 Articulação do som no espaço......................................................................... 93
3.3.4 Interdisciplinaridade........................................................................................ 93
3.3.4.1 Diálogo com outras linguagens artísticas........................................................ 93
3.3.4.2 Envolvimento do compositor em funções paralelas tais como as de
intérprete, diretor de cena, coreógrafo, designer de cena, som e luz...........................
94
3.3.5 Cena................................................................................................................... 95
3.3.5.1 Movimentação, ação e atuação cênica............................................................. 95
3.3.5.2 Cena prevista em partitura ou texto de instruções técnicas............................. 95
3.3.5.3 Figurino, cenário e objetos de cena................................................................. 95
3.3.5.4 Iluminação artística.......................................................................................... 95
3.3.5.5 Exposição de relações e costumes típicos do meio musical............................ 95
3.3.5.6 Sugestão de classificação entre os termos de música cênica comentados
neste trabalho...............................................................................................................
96
3.3.6 Narrativa........................................................................................................... 96
3.3.6.1 Linearidade...................................................................................................... 96
3.3.6.2 Texto................................................................................................................ 96
3.3.6.3 Relação entre palavras e sons.......................................................................... 96
3.3.7 Indeterminação (o acaso, o imponderável, o efêmero na apresentação
musical)......................................................................................................................
96
3.3.8 Tecnologias (uso de equipamentos)................................................................. 97
3.3.9 Intérprete........................................................................................................... 97
3.3.9.1 Relação compositor-intérprete: interação no processo de realização da obra. 97
3.3.9.2 Novo virtuosismo............................................................................................. 97
3.3.9.3 Consciência do contexto de criação da obra, autoconsciência e consciência
da comunicabilidade do que está sendo apresentado...................................................
98
3.3.10 Realização........................................................................................................ 98
3.3.10.1 Formação de equipe: associação entre profissionais da mesma área ou de
áreas diversas...............................................................................................................
98
3.3.10.2 Formação de grupos artísticos e movimentos culturais................................. 98
3.3.10.3 Espaços convencionais, modificados ou alternativos.................................... 99
3.3.10.4 Relação com as plateias................................................................................. 99
3.4 DIMENSÕES PARA QUATRO TECLADOS, DE JOCY DE OLIVEIRA......... 99
3.4.1 Instrumental...................................................................................................... 100
3.4.2 Notação.............................................................................................................. 101
3.4.2.1 Partitura............................................................................................................ 101
3.4.2.2 Texto de instruções ou bula............................................................................. 101
3.4.2.3 Gráficos ou desenhos....................................................................................... 103
3.4.3 Manipulação dos parâmetros sonoros............................................................ 114
3.4.3.1 Alturas.............................................................................................................. 114
3.4.3.2 Durações.......................................................................................................... 115
3.4.3.3 Texturas, timbres e dinâmica........................................................................... 116
3.4.3.4 Articulação do som no espaço......................................................................... 116
3.4.4 Interdisciplinaridade........................................................................................ 117
3.4.4.1 Diálogo com outras linguagens artísticas........................................................ 117
3.4.4.2 Envolvimento do compositor em funções paralelas tais como as de
intérprete, diretor de cena, coreógrafo, designer de cena, som e luz...........................
117
3.4.5 Cena................................................................................................................... 117
3.4.5.1 Movimentação, ação e atuação cênica............................................................. 117
3.4.5.2 Cena prevista em partitura ou texto de instruções técnicas............................. 118
3.4.5.3 Figurino, cenário e objetos de cena................................................................. 118
3.4.5.4 Iluminação artística.......................................................................................... 118
3.4.5.5 Exposição de relações e costumes típicos do meio musical............................ 118
3.4.5.6 Sugestão de classificação entre os termos de música cênica comentados
neste trabalho...............................................................................................................
118
3.4.6 Narrativa........................................................................................................... 119
3.4.6.1 Linearidade...................................................................................................... 119
3.4.6.2 Texto................................................................................................................ 119
3.4.6.3 Relação entre palavras e sons.......................................................................... 119
3.4.7 Indeterminação (o acaso, o imponderável, o efêmero na apresentação
musical).......................................................................................................................
119
3.4.8 Tecnologias (uso de equipamentos)................................................................. 120
3.4.9 Intérprete........................................................................................................... 120
3.4.9.1 Relação compositor-intérprete: interação no processo de realização da obra. 121
3.4.9.2 Novo virtuosismo............................................................................................. 121
3.4.9.3 Consciência do contexto de criação da obra, autoconsciência e consciência
da comunicabilidade do que está sendo apresentado...................................................
121
3.4.10 Realização........................................................................................................ 121
3.4.10.1 Formação de equipe: associação entre profissionais da mesma área ou de
áreas diversas...............................................................................................................
122
3.4.10.2 Formação de grupos artísticos e movimentos culturais................................. 122
3.4.10.3 Espaços convencionais, modificados ou alternativos.................................... 122
3.4.10.4 Relação com as plateias................................................................................. 122
3.5 CAPRICHOSA VOZ QUE VEM DO PENSAMENTO, DE TATO TABORDA 123
3.5.1 Instrumental...................................................................................................... 123
3.5.2 Notação.............................................................................................................. 124
3.5.2.1 Partitura............................................................................................................ 124
3.5.2.2 Texto de instruções ou bula............................................................................. 124
3.5.2.3 Gráficos ou desenhos....................................................................................... 124
3.5.3 Manipulação dos parâmetros sonoros............................................................ 124
3.5.3.1 Alturas.............................................................................................................. 125
3.5.3.2 Durações.......................................................................................................... 125
3.5.3.3 Texturas, timbres e dinâmica........................................................................... 125
3.5.3.4 Articulação do som no espaço......................................................................... 125
3.5.4 Interdisciplinaridade........................................................................................ 126
3.5.4.1 Diálogo com outras linguagens artísticas........................................................ 126
3.5.4.2 Envolvimento do compositor em funções paralelas tais como as de
intérprete, diretor de cena, coreógrafo, designer de cena, som e luz...........................
126
3.5.5 Cena................................................................................................................... 127
3.5.5.1 Movimentação, ação e atuação cênica............................................................. 127
3.5.5.2 Cena prevista em partitura ou texto de instruções técnicas............................. 128
3.5.5.3 Figurino, cenário e objetos de cena................................................................. 128
3.5.5.4 Iluminação artística......................................................................................... 128
3.5.5.5 Exposição de relações e costumes típicos do meio musical............................ 128
3.5.5.6 Sugestão de classificação entre os termos de música cênica comentados
neste trabalho...............................................................................................................
128
3.5.6 Narrativa........................................................................................................... 129
3.5.6.1 Linearidade...................................................................................................... 129
3.5.6.2 Texto................................................................................................................ 129
3.5.6.3 Relação entre palavras e sons.......................................................................... 130
3.5.7 Indeterminação (o acaso, o imponderável, o efêmero na apresentação
musical).......................................................................................................................
131
3.5.8 Tecnologias (uso de equipamentos)................................................................. 132
3.5.9 Intérprete........................................................................................................... 132
3.5.9.1 Relação compositor-intérprete: interação no processo de realização da obra. 132
3.3.9.2 Novo virtuosismo............................................................................................ 132
3.5.9.3 Consciência do contexto de criação da obra, autoconsciência e consciência
da comunicabilidade do que está sendo apresentado..................................................
132
3.5.10 Realização........................................................................................................ 133
3.5.10.1 Formação de equipe: associação entre profissionais da mesma área ou de
áreas diversas...............................................................................................................
133
3.3.10.2 Formação de grupos artísticos e movimentos culturais................................. 133
3.3.10.3 Espaços convencionais, modificados ou alternativos.................................... 134
3.3.10.4 Relação com as plateias................................................................................. 134
4 COMPOSITOR E INTÉRPRETE: EXPERIÊNCIA DE COLABORAÇÃO
NA MÚSICA CÊNICA.............................................................................................
135
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................ 146
REFERÊNCIAS........................................................................................................ 151
APÊNDICE A - Luiz Carlos Csekö: cena experimental de sons e luzes (Interfaces). 157
APÊNDICE B - Tim Rescala: humor e ecletismo....................................................... 178
APÊNDICE C - Vânia Dantas Leite: a escultora de sons........................................... 194
APÊNDICE D - Jocy de Oliveira: dramaturgia musical multimídia........................... 215
APÊNDICE E - Tato Taborda: um inventor de instrumentos..................................... 236
APÊNDICE F - Luciano Garcez e “O espírito da qoisa”........................................... 254
APÊNDICE G – Maria Teresa Madeira: intérprete de música e cena........................ 265
21
1 INTRODUÇÃO
A produção de música cênica, no Brasil e no mundo, se intensificou a partir da década
de 1960. Mesmo após aproximadamente cinco décadas, no século XXI, o repertório de
música cênica é ainda pouco conhecido e estudado.
O principal objetivo dessa pesquisa foi contribuir para a divulgação desse repertório
brasileiro, subsidiando intérpretes, compositores, críticos, produtores, pesquisadores e outros
interessados na apreciação, realização e estudo do gênero.
Há muito tempo venho pesquisando esse assunto.
Desde o início de minha formação como pianista, a partir de 1976, quando ainda
contava dez anos de idade, na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), demonstrava especial inclinação para a interpretação de peças de autores brasileiros.
Havia ali certo encantamento pela sensação de que estava realizando o trabalho de artistas
que, de alguma forma, eram próximos, se não pela relativa contemporaneidade, pela
conterraneidade e pela herança cultural. Essa inclinação e encantamento permaneceram ao
longo de toda a minha carreira como pianista.
Ainda pouco antes das primeiras aulas de piano, tive a oportunidade de praticar dança
e, em seguida, essas experiências ocorreram paralelamente aos estudos da música, porém em
períodos curtos e isolados e em diversas modalidades – clássica, moderna e contemporânea.
Ao fim do Curso Técnico em Música (nível médio), vivenciei também fora da Escola de
Música exercícios teatrais que me fascinaram pela forte vocação interdisciplinar destes no
envolvimento com a música, a dança, as artes plásticas e a literatura.
Em 1994, logo após a conclusão do Curso de Bacharelado em Música, fui contratada,
através de concurso, como professora de piano pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN). Em 1998, comecei a reunir materiais e publicações a respeito da Música
Brasileira para dar início à elaboração de um pré-projeto, com a finalidade de concorrer a uma
vaga em algum programa de pós-graduação em nível de Mestrado.
Já estava investigando o repertório de compositores brasileiros contemporâneos
quando me deparei com uma publicação recente na época, intitulada 36 compositores
brasileiros – obras para piano (1950/1988), de autoria da pesquisadora Salomea Gandelman.
Catalogadas em categorias específicas, algumas das obras foram classificadas como peças
“com atuação cênica” (GANDELMAN, 1997, p. 334). Os compositores e peças com atuação
cênica da citada catalogação elaborada por Gandelman são os seguintes: Gilberto Mendes /
22
Música para piano n. 2 – Recado a Schumann, de um velho caderno de notas (1983); Willy
Corrêa de Oliveira / Cinco Kitschs (1968); Jorge Antunes / Redundantiae – variações para
um arabesco e um suspiro (1979); Henrique Morozowicz / Comentários sobre uma obra de
Mozart (1976); Dawid Korenchendler / XI Variações (1983) e Ernst Widmer /
Entroncamentos sonoros op.75 (1972).
Ao examinar esse trabalho, percebi, perplexa, que após longo período de formação
regular em importante centro de ensino da música no Brasil ainda não havia estudado e nem
sequer presenciado a execução desse gênero musical. Isso me levou a procurar pelos
compositores e obras catalogados.
Infelizmente, Ernst Widmer já havia falecido em 1990. Tive contato, então, com os
demais compositores. Realizei entrevistas que me proporcionaram material riquíssimo para
pesquisa, sobre o qual construí o que viria a ser uma dissertação de Mestrado.
Música cênica para piano: cinco peças brasileiras foi um trabalho orientado pelo
pianista Professor Dr. Mauricy Martin e co-orientado pelo sociólogo Professor Dr. José
Roberto Zan na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), concluído em 2002. O
tema foi considerado inédito pela banca da defesa. Através do Programa de Doutorado
Interinstitucional promovido através de convênio entre a Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro (UNIRIO), a UFRN e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES), dei continuidade às investigações a respeito da música cênica,
concentrando foco no repertório brasileiro.
Sob a orientação da Professora Dra. Vânia Dantas Leite, já iniciando a presente
pesquisa – e dando continuidade ao tema – procurei por compositores de música cênica
atuantes no Rio de Janeiro. Comecei por autores que já havia citado na dissertação de
Mestrado: Jocy de Oliveira, Tim Rescala e depois, Tato Taborda (GONZAGA, 2002).
Durante esse processo, tive a oportunidade de conhecer a obra de Luiz Carlos Csekö e de
Vânia Dantas Leite. Procurei por muitos outros compositores, mas esses foram os
compositores que apresentaram relação mais forte com o gênero estudado.
O fato de os compositores estudados serem atuantes no Rio de Janeiro faz parte da
delimitação do tema na conveniência, inclusive, da minha permanência na cidade durante do
ano de 2010, afastada de minhas atividades profissionais como professora para dedicação
exclusiva à pesquisa. Compositores atuantes em São Paulo tais como Arrigo Barnabé e Flô
Menezes foram investigados, mas descartados da pesquisa em razão da necessidade dessa
delimitação.
23
No Brasil, o aumento significativo da produção de música cênica ocorreu
principalmente a partir da obra de Gilberto Mendes e do Movimento Música Nova. Na
Europa, a obra de Maurício Kagel exemplifica o aumento significativo dessa produção. Nos
Estados Unidos, John Cage e o Movimento Fluxus – ocorrido também na Europa e Japão –
foram importantes fomentadores desse repertório. A música cênica não é tão escassa quanto
o reconhecimento das instituições que ensinam e promovem a música. A sua exclusão dos
programas de ensino não se deve à quantidade e qualidade de obras produzidas no gênero.
Poucas escolas de música, emissoras de rádio e televisão e outras instituições
promotoras de arte promovem e/ou divulgam a música cênica, embora haja profissionais
ativamente envolvidos nessa área de produção musical:
Poucos conservatórios, organizações artísticas, instituições de fomento,
universidades, editores, publicações ou organizações [de comunicação] de
mídia possuem departamentos ou especialistas em música cênica, embora
haja criadores ativos de música cênica e obras de música cênica sendo
criadas todos os dias, em várias partes do mundo. (SALZMAN; DÉSI, 2008,
p. vii, tradução nossa).1
Neste trabalho, utilizamos a pesquisa bibliográfica complementada por pesquisa de
campo.
Entre a escassa bibliografia que comenta e detalha aspectos importantes para a
compreensão do tema, foram escolhidos os acima citados Salzman e Dési (2008), além de
Bosseur; Bosseur; Autral (1979) e Nyman (1974) por responderem, em suas obras, às nossas
principais indagações: Quais são as características fundamentais da música cênica? De onde
surgiu e como se configurou esse gênero musical? Como compreender as diversas
denominações e classificações que são frequentemente utilizadas no meio musical? Quais os
diferenciais que marcam a atuação dos artistas e músicos em geral e, mais especificamente,
dos pianistas de formação tradicional nesse universo musical de perfil interdisciplinar? Quais
as dificuldades na interpretação e na realização das peças características? Como entender a
enorme diversidade de práticas e peculiaridades no âmbito desse repertório? Quem são os
compositores cujo conjunto de obras transparece um pensamento cênico/interdisciplinar?
1“Few conservatories, art organizations, funders, universities, publishers, publications, or media
organizations have music-theater departments or music theater specialists although there are active
music-theater works being created every day and in many parts of the world.” (SALZMAN; DÉSI,
2008, p. vii).
24
Ao constatarmos que termos e denominações eram utilizados de maneira confusa
mesmo pelos profissionais diretamente envolvidos nas atividades do gênero, resolvemos
propor certa organização das categorias da música cênica, a saber: música-teatro, teatro
musical, música de ação, ópera contemporânea, ópera multimídia, entre outros. Para
organizar essas ideias, foi necessário discriminar práticas diferenciadas entre si tais como
movimentação cênica, ação cênica e atuação cênica.
O primeiro capítulo pretende minimizar as confusões causadas por tantas
denominações da música cênica através de consultas a diversos tipos de publicação e através
de entrevistas com compositores e intérpretes. Este capítulo estuda, ainda, as peculiaridades
na realização das peças do gênero e comenta formas de atuação que conduzem a uma nova
noção de virtuosismo.
As demandas para os intérpretes, nesse tipo de repertório, são diferenciadas das
atividades desenvolvidas na música tradicional de concerto. Instrumentistas da música de
concerto são induzidos, na música cênica, a desenvolver suas capacidades de invenção e a
experimentarem outros instrumentos musicais além de suas especialidades. Geralmente, os
pianistas de concerto não são preparados, durante o período de formação, para as
especificidades da música cênica.
Como em outros repertórios de música contemporânea, as peças não são, em alguns
casos, editadas ou mesmo escritas. Para que as obras sejam difundidas, compositores e
intérpretes precisam se comunicar. Nem todas as instruções são disponíveis através de
documentos. O compositor torna-se, então, a própria – ou, pelo menos, parte da – partitura. A
transmissão do teor musical/artístico das obras é, nesse caso, oral.
A pouca promoção de interação com outras linguagens artísticas frequentemente
dificulta aos intérpretes, desde a formação até as atividades profissionais, a incursão na
música cênica, que exige práticas teatrais, uso da voz e desenvolvimento de práticas de
improvisação.
No segundo capítulo, ao contrário do primeiro, a pesquisa de campo é complementada
pela pesquisa bibliográfica. Na intenção de divulgar e auxiliar intérpretes, professores e
alunos de música, compositores, produtores e outros artistas – além de outros possíveis
interessados na realização de música cênica – um repertório composto entre os anos de 1979
e 2012, que consta de cinco peças de compositores atuantes no Rio de Janeiro, é detalhado e
analisado em seus aspectos musicais/cênicos.
Houve o contato direto com os compositores através de entrevistas em suas
residências, por telefone e por correio eletrônico. Os autores cederam materiais e prestaram
25
esclarecimentos a respeito das peças, bem como a respeito de suas trajetórias e conjuntos de
obras. As peças em questão são as seguintes: Es(x)tro(a)versão, de Luiz Carlos Csekö, Estudo
para piano, de Tim Rescala, Dueto I +1, que é co-criação do artista plástico Milton Machado,
Vânia Dantas Leite e Rodolfo Caesar, Dimensões para quatro teclados, de Jocy de Oliveira e
Caprichosa voz que vem do pensamento, de Tato Taborda. Entrevistas que foram realizadas
para este trabalho e aspectos da vida e obra destes compositores constam nos apêndices.
A peça intitulada Es(x)tro(a)versão, de Luiz Carlos Csekö, não possuía qualquer tipo
de relato ou registro gravado, pois não havia ainda sido estreada. Além de produzirmos
registro audiovisual, a experiência na execução foi utilizada como exemplo de realização que
pudesse ser subsídio para análise. Cada peça analisada possuía algum tipo de gravação. O
Estudo para piano, de Tim Rescala, teve a interpretação de Maria Teresa Madeira. Nesse
caso, além da gravação audiovisual, a análise foi feita sobre dados revelados na entrevista que
a pianista nos concedeu, que consta em apêndice. O Dueto I+1 contou com o relato de Vânia
Dantas Leite, que atuou como intérprete, assim como Dimensões para quatro teclados, que
teve depoimento também da própria compositora/intérperete, Jocy de Oliveira. Esta possui
gravação em áudio de execução da própria autora. A análise de Caprichosa voz que vem do
pensamento foi baseada em gravação audiovisual e depoimento do intérprete e autor, Tato
Taborda.
Os critérios de análise das peças foram construídos a partir das características da
música cênica apresentadas no primeiro capítulo. Não encontramos modelos prévios de
análise no gênero que pudessem servir de modelo.
O terceiro capítulo descreve minha atuação na estreia da peça O espírito da qoisa, de
Luciano Garcez, compositor também atuante no Rio de Janeiro, e revela uma experiência de
interação entre compositor e intérprete na realização de música cênica. A entrevista
concedida pelo autor se encontra nos apêndices desta tese.
A aproximação com a obra de Garcez ocorreu na disciplina Tópicos Especiais em
Música, que abordou o tema Redimensionando o papel do compositor e do intérprete na
música contemporânea, no semestre 2010.1. Na proposta da disciplina ministrada pela
Professora Dra. Vânia Dantas Leite, os compositores participantes escreveram para os
instrumentistas e cantores da mesma turma. As obras foram apresentadas ao final do semestre.
A partir daí, intenso diálogo com o compositor Garcez resultou na formação de equipe
de músicos e técnicos que pudessem realizar um projeto de música cênica. O espírito da
qoisa foi adaptado para aquele contexto.
26
A troca de experiências e interesses, entre a minha pesquisa na música cênica e as
tendências interdisciplinares do compositor Garcez, que além de músico e regente é poeta, foi
extremamente enriquecedora e empreendedora. Estimulou todos os envolvidos a desbravarem
novos repertórios e proporcionou a prática de requisitos do novo virtuosismo e de algumas
outras importantes características na realização de música cênica, que são o trabalho dos
intérpretes como co-criadores e co-produtores e o enfrentamento dos desafios na utilização de
multimeios.
No quarto capítulo, apontamos para as questões levantadas neste trabalho na intenção
de que futuros estudiosos do assunto possam explorá-las em seus inúmeros desdobramentos.
Acreditamos que o tema abordado se constitui em um dos principais focos da música na
atualidade.
27
2 MÚSICA CÊNICA: DENOMINAÇÕES E CONTEXTOS
A música cênica permanece em desenvolvimento e auto-renovação. Dessa forma, está
também em constante processo de redefinição. A história do gênero ainda está por ser escrita
mesmo porque ainda há poucos conservatórios, organizações, fundações, universidades,
editores, publicações e mídia especializada, embora já seja expressiva a quantidade de
compositores e obras de música cênica em todo o mundo. (SALZMAN; DÉSI, 2008).
2.1 MÚSICA CÊNICA, MÚSICA-TEATRO, TEATRO MUSICAL, MÚSICA DE AÇÃO,
TEATRO INSTRUMENTAL
A música cênica é um gênero de música que inclui aspectos cênicos em suas
composições. Tal gênero teve suas práticas intensificadas a partir dos anos de 1960 tendo
como referência obras de compositores como John Cage e Mauricio Kagel. No Brasil tivemos
Gilberto Mendes e Willy Corrêa de Oliveira como precursores.
Embora tenha ocorrido tal processo durante o século XX, Salzman (1997, tradução
nossa)2 adverte, a respeito da música cênica: “A música cênica é a mais antiga e a mais
moderna das artes; a mais esotérica e experimental; e, ainda, ao mesmo tempo, a mais
popular. É repleta de contradições - o que a torna interessante e relevante. [...].”3
Segundo Salzman e Dési (2008), óperas, operetas e musicais não deixam de ser, de
alguma forma, música cênica, uma vez que promovem interação entre artes diversas, mas
diferenciam-se do the new music theater que se define como a música que se relaciona com
formas de ópera, teatro e dança contemporâneos, característicos dos movimentos artísticos do
século XX. Evidencia-se, nesse repertório, o desejo de aproximação com as plateias em
espaços menores, alternativos e a exploração dos conjuntos instrumentais reduzidos e de
sonoridades expandidas, tanto das vozes quanto dos instrumentos.
Há, na música cênica, permanente questionamento e pesquisa a respeito do formato e
função das casas de ópera, das salas de concerto, do formato das apresentações musicais e das
tradicionais hierarquias do meio musical/social. A música cênica – à qual Salzman e Dési
(2008) se referem e da qual também trata o presente trabalho – absorveu as revoluções
musicais e artísticas do início do século XX tanto quanto as inovações relativas a maquinário
2Documento online não paginado.
3“Music theater is the most ancient and the most modern of the arts, the most esoteric and
experimental, and yet, at the same time, the most popular. It is full of these contradictions which is
what makes it exciting and relevant. […]”. (SALZMAN, 1997).
28
de palco e iluminação. A partir dos anos de 1980, incorporou novas tecnologias de áudio e
vídeo, além do diálogo com gêneros populares e formas de expressão não ocidentais. Para
Salzman e Dési (2008), o cinema e a televisão instigaram as apresentações de música e teatro
a se tornarem mais dinâmicas e impactantes.
A utilização de meios tecnológicos desde a elaboração até a apresentação do
repertório de música cênica pode fazer parte da realização tanto dos aspectos sonoros quanto
dos aspectos cênicos. A propósito do uso de microfone, por exemplo, Kagel afirmou:
Chamo macrofone ao microfone na minha linguagem [...]. Assim, revelo
pensar no microfone como lupa. Hoje, é muito importante empregá-lo como
forma de descobrir todo um mundo sonoro que, sem ele, desaparece (UNE
PANIQUE...,1973, p. 43 tradução nossa).4
A microfonação dos instrumentos e vozes – externa ou interna, sem fio – proporcionou
maior liberdade de posicionamento dos intérpretes no palco, independente das condições
acústicas do ambiente. Isso possibilitou a exploração de outros espaços, não tradicionais, de
apresentação musical. Facilitou também experiências de interações com as plateias e dos
artistas entre si.
Projeções holográficas e de filmes 3D, programas de processamento de som e luzes
através de computadores, de acordo com o movimento dos músicos, atores e até da própria
plateia, em sistemas interativos, caracterizam a música cênica que surge a partir dos anos de
1980, quando formas recentes de design com luzes e cores foram introduzidas com grande
importância no repertório do gênero. (SALZMAN; DÉSI, 2008).
Os efeitos das novas tecnologias no palco contribuem muitas vezes para romper as
fronteiras entre artistas e público, uma vez que dissipam as mesmas fazendo o espectador se
sentir em cena e colocando elementos da cena na plateia. Isso faz com que velhos hábitos dos
ouvintes/espectadores comecem a se modificar. Essas práticas são também encontradas no
teatro contemporâneo e são bastante recorrentes nas obras de teatro instrumental de Kagel.
(SALZMAN; DÉSI, 2008).
Na música cênica, as características extra-musicais que interagem com os sons podem
ser indicadas em partitura. Podem ser relatadas e discutidas com os intérpretes pelos próprios
compositores durante os ensaios no processo de produção artística ou podem ser mera
4“J‟appelle le microphone, dans mon langage […] le macrophone. C‟est-à-dire que je pense que le
microphone, c‟est une loupe. Et aojourd‟hui, c‟est três important de l‟employer de façon à decouvrir
tout un monde sonore qui sinon disparaît.” (UNE PANIQUE…, 1973, p. 43).
29
decorrência – resultado – das ações e movimentações dos intérpretes na realização das peças.
Nessa interação, as outras artes não estão a serviço da música – como na ópera tradicional,
por exemplo – e sim em nível de igualdade de importância e destaque. Alguns aspectos
podem ser considerados como movimentação cênica, ação cênica e atuação cênica.
Diferenciam-se aqui esses termos a fim de que as diversas formas de apresentação de música
cênica possam ser denominadas. Por movimentação cênica entenda-se o deslocamento
funcional de pessoas e/ou objetos no palco. Por ação cênica, o gesto cênico que pode ser
predeterminado ou sugerido na partitura, e todo tipo de movimentação produzida por
intenções expressivas durante a execução do instrumento musical. Dessa forma, a ação cênica
pode produzir uma cena natural resultante da atuação dos instrumentistas ou forjá-la,
sublinhando e acentuando os gestos cênicos que são habituais dos músicos. A atuação
cênica, por sua vez, é a representação teatral. Exige dos instrumentistas um trabalho que
desenvolva ao mesmo tempo suas habilidades como músicos e atores.
As peças de música cênica têm movimentação, ação e atuação cênica apenas como
alguns entre outros tantos aspectos cênicos possíveis como cenário, figurino, iluminação e
texto. Nelas ocorrem relações interativas entre música – podendo incluir diálogos entre
gêneros musicais diversos – e demais linguagens artísticas: artes plásticas, literatura, teatro,
dança, vídeo. Essas relações não requerem a produção de significado, num processo de
dessemiotização da arte. (SALZMAN; DÉSI, 2008). Dessemiotização é a superação da
necessidade compulsiva da sociedade civilizada em exigir que as obras de arte tenham sentido
e significado explícitos. Através desse processo de dessemiotização, a música cênica
declarou não ter intenção de sempre produzir sentido e significado através de suas obras. A
música cênica, muitas vezes, não pretende contar estórias. (SALZMAN; DÉSI, 2008).
Muitas peças são difíceis de entender somente com base na estória escrita
porque o texto é frequentemente inaudível, fragmentado ou então distorcido.
O conceito de meta-texto abrange toda a concepção/composição de uma
peça de música cênica. (SALZMAN; DÉSI, 2008, p. 322, grifo nosso,
tradução nossa).5
Ainda com relação à convivência entre música e texto na música cênica, Mauricio
Kagel (Argentina, 1931 – Alemanha, 2008), por exemplo, escrevia seus próprios textos:
5“Many pieces are difficult to understand solely on the bases of a written story because the text is
often inaudible fragmented, or otherwise distorted. The concept of meta-text embraces the whole
concept/composition of a music-theater piece”. (SALZMAN; DÉSI, 2008, p. 322).
30
Eu tive muita dificuldade de encontrar um escritor com quem trabalhar e
comecei, depois de muito tempo, a escrever meus próprios textos. Muitos
contatos mal sucedidos ocorreram entre compositores e escritores ao longo
de três séculos, de Monteverdi a Verdi, de Mozart a Debussy! [...] Eu sempre
fui fascinado pelas palavras (elas são para mim tão valiosas quanto os sons)
[...]. O alfabeto, os fonemas podem são tratados como séries de alturas dos
sons (BOSSEUR, 1971, p. 103, tradução nossa).6
Os compositores de música cênica frequentemente atuam como intérpretes, autores,
diretores, coreógrafos, figurinistas, cenógrafos, designers de cena, luz e som. (SALZMAN;
DÉSI, 2008).
A propósito dos diálogos entre gêneros musicais e linguagens artísticas – e propondo
experiências dos instrumentistas com a voz e com outros instrumentos que não são sua
especialidade, Kagel comenta:
[...] nesse gênero [música cênica], onde todas as possibilidades individuais
são solicitadas, um trabalho coletivo da ordem quase „terapêutica‟ é
indispensável. Justamente porque a estrutura tradicional, hierárquica, da
ópera se quebra, os participantes deveriam aproveitar as formas não
convencionais de realização e de trabalho, enquanto artistas e seres
humanos. Parece necessário prever para isso um trabalho didático que, por
fim, abolirá totalmente os especialistas (MAURICIO..., 1975, p. 71, grifo
nosso, tradução nossa).7
Kagel é certamente um dos compositores que melhor mostraram os aspectos teatrais
embutidos nos fenômenos musicais. Suas obras cênicas se pautam nos aspectos sonoros e
contextuais das apresentações musicais: aspectos da preparação e da realização das mesmas,
do que acontece no palco ao que acontece nos bastidores.8 Salas de concerto, compositores,
intérpretes, público, produtores, diretores, técnicos e colaboradores fazem parte desse mundo
6“Il m‟a été trop difficile de trouver un écrivain avec qui collaborer et j‟ai commencé depuis
longtemps à écrire des textes moi-même. Trop de mauvais contacts ont existé entre compositeurs et
ecrivains depois trois siècles, de Monteverdi à Verdi, de Mozart à Debussy. [...] j‟ai toujours été
fascine par les mots; (ils ont pour moi autant de valeur que lês sons) [...]. L‟alphabet, lês phonèmes
peuvent être traités comme des séries de hauters de sons”. (BOSSEUR, 1971, p. 103). 7“[...] dans um tel genre [le théâtre musical], où toutes les possibilites individuelles sont sollicitées,
um travail collectif d‟ordre presque „thérapeutique‟ est indispensable. Justement parce qui la
structure tradicionelle, hiérarchique, de l‟Opéra est eclaté, des participants devraient profitée, des
formes non conventionelles de réalisation et de travail, à la fois en tant qu‟artistes et êtres humanis.
Il semble nécessaire de prevoir pour cela um vrai travail didactique, qui aboutira finalement à um
effacement total des spécialistes [...]”. (MAURICIO..., 1975, p. 71). 8A produção de filmes de Kagel foi intensa entre os anos de 1960 e os anos de 1970. Ele realizou, em
média, um filme por ano, muitos deles para tela pequena. A tecnologia de produção de vídeo ainda
não era acessível na época. Ainda enquanto morava na Argentina, o compositor relacionava-se
intensamente com cineastas amigos, com os quais fundou a Cinemateca Argentina.
31
musical. Nenhum outro compositor explorou de forma tão sistemática os detalhes
característicos das práticas da música de concerto aliados aos da indústria cultural e a situação
da música do passado na época em que viveu. No filme Ludwig Van (1969), Kagel “[...]
celebrou o bicentenário de Beethoven em 1970 com uma representação burlesca de um kitch
turístico cultural da indústria na qual, efetivamente, Beethoven se tornou um mero produto de
consumo”.9 (JACK, 2008).10 Sobre o filme, explicou:
Eu já havia dito que ele [o filme Ludwig van] era uma declaração de amor
por Beethoven. [...] é muito difícil dizer exatamente o que Beethoven é para
mim... porque eu o amo de tal maneira... Eu nasci numa tradição...
tradicional, digamos assim! Mas justamente, esse contato tão forte com a
música do passado é, para mim, sempre, o motivo de repensar o que a
música do passado é [significa] para mim. [...] A música do passado é tão
mais próxima de nós à medida em que nós a interpretemos de maneira
diferenciada [de acordo com as nossas próprias experiências, levando em
consideração novos contextos]. (UNE PANIQUE...,1973, p. 43-44, tradução
nossa).11
As preocupações políticas de Kagel perpassam sua obra:
[...] não tenho como influenciar a política, mas tenho muitas possibilidades
de influenciar a política cultural. Agora, minha função é de influenciar as
formas culturais para atender a um grande anseio por maior liberdade. Meu
objetivo agora é muito pequeno, mas eu quero persegui-lo com o maior rigor
possível. É a minha contribuição a uma <<política do espírito>>, por assim
dizer (UNE PANIQUE..., 1973, p. 54, tradução nossa).12
9“[…] celebrated the bicentenary of Beethoven's birth in 1970 with a burlesque representation of the
kitsch cultural tourist industry in which, effectively, Beethoven became a mere consumer product.”
(JACK, 2008). 10
Documento online não paginado. 11
“J‟ai dit qu'il [o filme Ludwig van] était une déclaration d‟amour pour Beethoven. […] Et c‟est très
difficile de dire exactment ce que Beethoven est pour moi... Parce que je l‟aime tellemen… Je suis né
dans une tradition... traditionelle, disons comme ça! Mais justement, ces rapports très forts avec la
musique du passé, c‟est pour moi la raison toujours de repenser ce qu‟est la musique du passé pour
moi. […] La musique du passé est plus proche de nous dans la mesure ou nous l‟interpretons d‟une
façon differénte!” (UNE PANIQUE..., 1973, p. 43-44). 12
“[...] je n‟ai pas de possibilité d‟influencer la politique, mais j‟ai beaucoup de possibilités
d‟influencer la politique culturelle. Alors, ma fonction, c‟est d‟influencer les formes culturelles, pour
aboutir à une plus grand souplesse, à une plus grande libéralité. Alors, mon bout, c‟est très petit.
Mais je veux le faire avec la plus grande rigueur que je peux faire. Et c‟est ma contribuition à une
<<politique de l‟esprit>>, si jê peux dire ça”. (UNE PANIQUE..., 1973, p. 54).
32
As relações humanas – dentre estas, a relação dos compositores com instrumentistas,
cantores e público, músicos e plateia – fazem parte do trabalho de Kagel: “Um compositor
dificilmente pode permanecer sozinho em sua torre de marfim. Mesmo nos casos em que
escreve uma obra que não tem nada a ver com um fato político ou sociológico [...] possui
qualquer posição político-cultural” (BOSSEUR, 1971, p. 102, tradução nossa).13
As relações entre músicos dentro do próprio meio musical são retratadas
frequentemente por esse compositor: “É necessário abordar esse trabalho direto, diário, com a
sociedade musical que me rodeia.” (UNE PANIQUE..., 1973, p. 64, tradução nossa).14
De acordo com Salzman e Dési (2008), no limite entre a seriedade e o ridículo, a
teatralidade da execução musical chama atenção para a corporalidade e visualidade dessa
atividade artística que seria prioritariamente sonora. Na peça Match, de Kagel, composta em
1964 para dois violoncelos e percussão, uma situação teatral decorre de uma situação
originalmente extra-musical – embora tal situação não pareça óbvia ao espectador/ouvinte:
dois violoncelistas estão em combate enquanto o percussionista se coloca como árbitro.
No conjunto da obra de Kagel, outras situações teatrais são encontradas em Sur scène
(1959) para locutor, cantor (baixo), mímico e três instrumentistas-atores; Le Bruit (1960) para
fontes sonoras diversas; Journal de Thèâtre (1960) para instrumentos, atores e equipamentos;
Prima Vista (1962-64) para slides e número indeterminado de fontes sonoras; Phonophonie
(1963-64) para 2 vozes e outras fontes sonoras; Camera Oscura (1965) para fontes luminosas
e atores; Tremens (1965) na qual o compositor se baseou nas próprias experiências com
alucinações acústicas que anotou como em um diário; Kommentar und Extempore15 (1966-
1967), que é um monólogo com indicação de figurino e gestos – inclusive expressões
ofensivas; Variationen für Sänder und Schauspieler (1967) para músicos e atores;
Synchronstudie, (1969) com a tentativa de sincronização de um cantor e um sonoplasta com
determinado filme; Mare Nostrum, (1975) sobre fictícia descoberta, pacificação e conversão
de região mediterrânea por uma tribo da Amazônia; Umzug (1977) com a arrumação do palco
por encarregados – contra-regras, assistentes; Eine Breise (1996) para 111 ciclistas;
Duodramen (1997-1998) para soprano, barítono e orquestra; entre outras.
13
“Un compositeur peut difficilement rester seul dans sa tour d‟ivoire. Même dans le cas où Il écrit
une oeuvre qui n‟a rien à position politico-culturelle”.(BOSSEUR, 1971, p. 102). 14
“Il faut aborder ce travail direct, journalier, avec la societé musicale que m‟entoure”. (UNE
PANIQUE..., 1973, p. 64). 15
Kagel criou cerca de 1800 cartas com indicações de gestos e palavras que funcionam como uma
espécie de gerenciador de ações. A sequência de utilização das cartas não é predeterminada, deve
ocorrer aleatoriamente, pela sorte de qual for tirada a cada momento.
33
John Cage (EUA, 1912-1992) é outro importante representante da música cênica.
Esse compositor fomentou, em sua época, “um movimento artístico que visa considerar as
experiências visuais e auditivas como mais e mais necessariamente ligadas [...].” (BOSSEUR;
BOSSEUR; AUTRAL, 1979, p. 129, tradução nossa).16 Ele trafegou constantemente entre
diversas linguagens artísticas: música, poesia, teatro, dança, artes plásticas. Cage foi o
precursor do piano preparado. Sobre sua obra de música cênica, Bosseur; Bosseur; Autral
(1979, p. 129) escreveram: “Muito dinâmica nos Estados Unidos, essa tendência considera
como teatral tudo o que nos cerca e desafia a cisão entre disciplinas artísticas e suas
especializações [...].”17
Toda apresentação artística que se baseia no acaso – performances, por exemplo –
refere-se, de alguma maneira, à obra de Cage. O acaso foi uma tônica da obra de Cage e do
Movimento Fluxus. Jogos de probabilidades – como os de cartas e I Ching, comandando as
ações dos artistas – se apresentaram como construção de música cênica com seus aspectos
tanto visuais quanto sonoros. Cage, “a fim de assimilar o aleatório à criatividade, passou a
jogar „cara ou coroa‟ para estabelecer os caminhos da composição ([Ex:] Music of Changes,
1951)”, (CAGE..., 1994, p. 155). Segundo Bosseur; Bosseur; Autral (1979), na obra de Cage
a linguagem teatral está sempre envolvendo a música, assim como a música está sempre ao
redor do teatro.
Como exemplos de sua obra cênica pode-se citar, ainda, as seguintes peças: 4‟33‟‟
(1952), em que o(s) músico(s) não tocam seu(s) instrumento(s) – os ruídos que emergem do
que acontece no ambiente do concerto e a cena natural que ocorre em suposto silêncio são a
própria música; Watermusic, (1952) em que o pianista despeja água num pote e sopra, dentro
da água, um apito; Indeterminancy: new aspects of form in instrument and electronic music
(1958) em que noventa anedotas podem ser declamadas pelo(a) cantor(a) ou ator (atriz), cada
uma devendo durar um minuto, acompanhada por piano e sons eletrônicos; 0˙0¨ (1962), ou
4˙33¨II composta dez anos após 4‟33‟‟, em que o intérprete descasca vegetais, coloca-os no
liquidificador e toma-lhes o suco; Pas de cinq (1965) em que cinco intérpretes de óculos
escuros, com bengalas ou bastões caminham por um pentágono, num labirinto com rampas,
executando ritmos diversos e Variações, de I a IV (1958-1966), com inserções cênicas.
16
“La Theatre Piece de John Cage (1960) apparaît particulièrement representative d‟unmovement
artistique qui vise à considerer les experiences visuelles et auditives comme de plus em plus
nécessairement intriquées [...].” (BOSSEUR; BOSSEUR; AUBRAL, 1979, p. 129). 17
“Très dynamique aux États-Unis, cette tendance à prendre le théâtre comme tout ce qui nous
entoure, à défier lês scissions entre disciplines artistiques et leur spécialisation [...]”. (BOSSEUR;
BOSSEUR; AUTRAL, 1979, p. 129).
34
No processo histórico que encaminhou a chamada música cênica, Erik Satie (França
1866-1925) e Charles Ives (EUA 1874-1954) foram considerados por Cage como
compositores que definiram a tendência da música que interage com outras artes, pois já
revelavam em suas obras concepções artísticas extra-musicais. (NYMAN, 1974).18 Entretanto,
a interação entre linguagens artísticas é inerente à natureza humana. Ainda são muitas as
culturas que não fazem clara distinção entre música e outras artes além de não pensarem nas
atividades artísticas como algo à parte, na vida social do ser humano (SALZMAN; DÉSI,
2008).
Entre as décadas de 1960 e 1970, no Japão, Estados Unidos e Europa, o Movimento
Fluxus, que teve Cage como um de seus principais integrantes junto a György Ligeti
(Hungria, 1923 - Áustria, 2006)19 e Henry Flynt20 (EUA, 1940), entre muitos outros artistas,
desenvolveu intensamente suas atividades. O movimento se caracterizou pela proposta de
integração entre diversas linguagens artísticas – especialmente música, artes visuais e
literatura.
Segundo as propostas do grupo que liderou o Movimento Fluxus, a arte se expande de
maneira a não compartimentar os diferentes tipos interligados de percepção, especialmente no
que diz respeito às percepções visual e auditiva. Nessas propostas artísticas, tais percepções se
associam em obras que colocam em evidência e questionam relações não apenas musicais,
mas também psico-sociais entre intérpretes segundo comportamentos e funções típicas dos
instrumentos e dos instrumentistas no meio musical.
O Fluxus propunha experiências relativas à apreciação dos ouvintes/espectadores21 –
com a finalidade de estimular-lhes a participação através dos sentidos além da audição. As
propostas sugeriam, inclusive, uma mútua apreciação entre público e artistas.
Enquanto Cage apresentava em Musicircus (1967) múltiplos eventos em um, com
vários grupos musicais independentes tocando rock, jazz, música eletrônica, piano, canto além
de dança através de projeção de videos e slides simultaneamente no mesmo espaço, o
compositor La Monte Young (EUA, 1935), também atuante no Movimento Fluxus, procurava
reduzir ao mínimo um único e conciso conteúdo artístico – material musical – a ser apreciado,
18
É importante ressaltar, entretanto, que algumas das primeiras obras de referência no processo que
levou à nova música cênica foram A história do Soldado (1918) e Renard (1916), de Igor Stravinsky
(Rússia,1882 - EUA, 1971) (além de Pierrot Lunaire (1912), de Arnold Schoenberg). 19
Ligeti criou ações dramáticas dedicadas à plateia: Aventures (1962) e Nouvelles Aventures (1962-
1965) para três cantores e sete instrumentistas. 20
Compositor, músico e filósofo ligado ao Movimento Fluxus principalmente através de seus trabalhos
em colaboração com La Monte Young e George Maciunas. 21
Kagel também realizava tais experiências (Con Voce para três instrumentos sem som, 1973).
35
por exemplo, em Compositions (1960), em que, na primeira de uma série de seis peças, o
pianista empurra o instrumento no palco até se cansar e, na quinta peça, uma borboleta é solta
no palco e a música acaba quando ela se vai.
Segundo George Brecht (EUA, 1926-2008), os integrantes do Movimento Fluxus não
tentaram criar regras ou métodos comuns. Apenas se reuniam para executar e publicar
trabalhos situados na “fronteira da arte” 22 , onde as ações do cotidiano encontram-se
intrincadas às atitudes artísticas. (BOSSEUR; BOSSEUR; AUTRAL, 1979, p. 131).
Nesse contexto que questiona a função dos instrumentos musicais, a peça Un vase sur
le piano (1962), de Brecht, apresenta um piano usado apenas como aparador para um vaso de
flores. Ocorre também na performance criada pelo artista George Maciunas (Lituânia 1931-
1978) – um dos principais fundadores do Movimento Fluxus – o destaque de um gesto como o
polir de um violino em Solo pour violon. O instrumento, após polido, é progressivamente
maltratado e, depois, destruído.
Quanto às questões que dizem respeito à relação dos artistas com o público: em Pièces
de public (1964), de Ben Vautier (Itália, 1935), o autor tem intenção de provocar – e até
mesmo agredir – a plateia para que haja algum tipo de reação não usual da mesma.
Conteúdos políticos se manifestam através da obra de Luigi Nono (Itália, 1924-1990)23 que
compôs, por exemplo, Intolleranza (1960), que consiste em uma ação teatral em dois tempos
num protesto contra a intolerância e a violência contra a dignidade humana. Temas violentos
revelavam certa tendência, na época, a um cinismo que questionava os valores culturais do
momento. (BOSSEUR; BOSSEUR; AUTRAL, 1979).
Nam June Paik (Coréia, 1932-2006) pôs em pauta a sexualidade no fazer musical.
Uma abordagem por vezes agressiva da sexualidade é evidente, por exemplo, na Ópera
Sextronique (1967), do referido autor, que foi um dos pioneiros na videoarte. Sua estreia em
Nova York apresentou a violoncelista Charlotte Moorman com os seios à mostra. Os temas
tentavam denunciar “a hipocrisia pré-freudiana da vanguarda musical que criticava, através de
seus pretensos movimentos de emancipação, serialismo, indeterminação e música cênica, um
22
“Frontière de l‟art” (BOSSEUR; BOSSEUR; AUTRAL, 1979, p. 131). 23
Exemplos: Non consumiamo Marx (1969), Siamo La giuventù Del Vietnam (1973) e A floresta é
jovem e cheia de vida (1966) para soprano, três declamadores, clarinete, thunder sheets (instrumento
de percussão que simula sons de trovão) e gravação em oito canais.
36
puritanismo ultrapassado e doentio.” (BOSSEUR; BOSSEUR; AUTRAL, 1979, p. 131,
tradução nossa).24
A obra de Sylvano Bussotti (Itália, 1931) é carregada de erotismo (La passion selon
Sade, 1969) e repleta de ritualismos. Segundo ele, todo concerto, mesmo em se tratando dos
mais tradicionais, comporta um tipo de ritual na execução que exibe. (BOSSEUR;
BOSSEUR; AUTRAL, 1979).
O compositor Peter Schat (Holanda,1935-2003), em sua obra Labyrinth (1966), dá um
exemplo de interação entre filme, música e dança, numa construção cênica extremamente
complexa onde atividades autônomas coexistem no mesmo espaço com os artistas e o público,
que é convidado a participar da obra, tomando uma posição em sua apreciação
pluridimensional.
Outros autores, não diretamente ligados ao Movimento Fluxus, compuseram peças
cênicas. Segundo Griffiths (1971, p. 169):
[…] por volta de 1970, raros eram os compositores de vanguarda que não
introduziram elementos teatrais em sua música. Alguns podem ter visto na
música de teatro a oportunidade de estabelecer com o público uma relação
mais estreita que a existente nos anos 50, quando as declarações e ensaios
teóricos de muitos compositores, senão mesmo suas obras, pareciam
concebidos para desencorajar as platéias.
Karlheinz Stockhausen (Alemanha, 1928-2007) criou Musikalishses theater –
Originale (1961) em resposta a Theater piece, de Cage, organizando aspectos teatrais numa
composição serial. Criou também Momente (1962-1969) para soprano, coro misto, quatro
trompetes, quatro trombones, três percussionistas, dois teclados eletrônicos; Trans (1971)
para orquestra, com iluminação artística e cenário; Herbstmusik (Autumn Music) para quatro
instrumentistas (1974); Inori (1974) para orquestra e um ou dois solistas mímicos; Musik im
bauch (Music In The Belly) (1975) para seis percussionistas e alto-falantes, Sirius (1977) para
quatro músicos e tape, com indicação de figurino e Licht (1977-2003) que consiste em um
ciclo de sete óperas, uma para cada dia da semana, combinando elementos da cultura
germânica e oriental.
Hans Werner Henze (Alemanha, 1926-2012) criou Actions for music – we come to the
river (1976) com libreto do dramaturgo inglês Edward Bond em três palcos com teatro, canto
e orquestra atuando simultaneamente. 24
“Nam June Paik denónça alors l‟hypocrisie pré-freudienne de l‟avant-garde musicale que demeure,
à traversses prétendus mouvements d‟emancipation, sérialisme, indetermination et musique d‟action,
enfermée dans un puritanisme suranné.” (BOSSEUR; BOSSEUR, AUTRAL, 1979, p. 131).
37
Luciano Berio (Itália, 1925-2003)25 compôs Circles (1960) para voz feminina, harpa e
dois percussionistas, com movimentação cênica, Laborintus II (1965) para vozes,
instrumentos, narrador e tape, Recital I (For Cathy) (1972) para mezzo-soprano e dezessete
instrumentos.26
Salvatore Sciarrino (Itália, 1947) compôs óperas de apenas um ato, a exemplo de
Amore e psiche (1972).
Na Inglaterra, Alexander Goehr (Alemanha, 1932), Peter Maxwell Davis (Inglaterra,
1934) e Harrison Birtwistle, fomando o Manchester Group, estabeleceram relações entre
música e cena chegando a criar peças que estariam no limite entre o que poderia ser uma peça
de concerto ou uma peça de teatro como, por exemplo, Eight songs for a mad king (1968-
1969).
Nos Estados Unidos, Eric Salzman (EUA, 1933) compôs peças de rádio-teatro além de
The true last words of Dutch (1997) para barítono, mezzo-soprano, violino, tuba e percussão
com libreto de Valeria Vasilevski; La prière du loup (1997) para voz, teclados e dois
percussionistas, com texto do autor em parceira com Michel Rostain; Cassandra (2001) para
soprano, piano e sons digitais, com texto do autor; A William Meredith bestiary (2004) para
mezzo soprano e piano, que é um ciclo de canções com poesia de William Meredith Vox
(2006) para atriz e violinista, com atuação cênica; e Suite from strike up the band (2006) para
orquestra de câmara, baseada no musical Strike up the band, de George e Ira Gershwin.
Dieter Schnebel (Alemanha, 1937)27 compôs Visible music I (1961-1962) na qual o regente se
movimenta cenicamente (propositadamente) e Nostalgie (1962) para regência solo, em que se
ouve apenas a respiração do maestro. Hans Joachim Hespos (Alemanha, 1938) criou Fulaar
(1989) para coisas de algum lugar com diversas interações entre músicos e performers e
Black beauty (1993) para caixa clara, ator, trabalhador, homem com diversas tarefas, piano,
técnico em iluminação e assistente de iluminação.28 Steve Reich (EUA, 1936) produziu peças
multimídia em parceria com sua esposa, a videoartista Beryl Korot, usando texto, imagens e
música vocal/instrumental: The cave (1990-1993) e Three tales (2002). Philip Glass (EUA,
1937) compôs Einsten on the beach (1976) em colaboração com Robert Wilson – ópera em 25
Berio, assim como Kagel, traz em sua obra questões relativas à música e apresentações musicais em
seus contextos sociais dentro do próprio meio musical e fora dele. 26
Luigi Nono e Luciano Berio foram fortemente influenciados por grupos experimentais de teatro que
se estabeleceram também na década de 60. Incorporaram elementos daquelas produções em suas
obras de música-teatro. 27
Dieter Schnebel criou o que seria uma subcategoria de música cênica que prescinde de atores e de
sons: música para ser lida. A peça No-No (1969) é um livro com ilustrações – símbolos musicais. 28
De acordo com Salzman e Dési (2008), o meio acadêmico não sabe como classificar esse compositor
e sua obra.
38
quatro atos para pequeno grupo de cantores não operísticos, violino, teclados eletrônicos,
flauta amplificada, saxofones, clarinetes e voz amplificada (que constituem o Philip Glass
Ensemble), 1000 airplanes on the roof (1988) em parceria com o dramaturgo David Henry
Wong, The photographer (1984, 1996), que é peça multimídia composta em parceria com
JoAnne Akalaitis e Monsters of Grace (1999) em mais uma colaboração com Robert Wilson.
Meredith Monk (EUA, 1942) possui obra fortemente cênica que inclui Education of the
girlchild (1973), Quarry (1976), Specimen days (1981), The games (1983) em colaboração
com Ping Chong, Atlas (1991).
Além desses, outros compositores como, Vinko Glokobar (França, 1934) e Heinz
Holliger (Suíça, 1939) produziram música cênica.
No Brasil, ao mesmo em tempo que a produção internacional de música cênica se
intensificava, surgia o Movimento Música Nova, fundado em 1963 por Gilberto Mendes
(Santos/SP, 1922) e Willy Corrêa de Oliveira (Recife/PE, 1938), entre outros artistas. O
Movimento Música Nova buscava aliar ao serialismo e às experiências com microtons os
processos eletroacústicos e a música concreta, também rompendo as fronteiras entre as artes
visuais, música, poesia, dança e teatro.29
Mendes ([2006]) relatou que, nos anos de 1960,
A gente queria fazer uma música que não tivesse nada a ver com a música
européia. Nós viemos de Darmstadt decididamente dispostos a não fazer
aquela música. Não que nós tivéssemos algo contra aquilo: de jeito nenhum!
Aquela música nos impressionou muito, foi até um choque: um choque no
bom sentido da palavra, porque abriu as nossas mentes mais ainda, porque já
estavam abertas nesse sentido, para o novo. A missão deles era fazer o novo .
Gilberto Mendes, Rogério Duprat (Rio de Janeiro/RJ, 1932 - São Paulo, 2006), Willy
Corrêa de Oliveira, Régis Duprat (Rio de Janeiro/RJ, 1930), Júlio Medaglia (São Paulo/SP,
1938), Damiano Cozzella (São Paulo/SP, 1929), Sandino Hohagen [19--] e Alexandre Pascoal
[19--] haviam lançado o manifesto Música Nova em 1963. Queriam romper com o
nacionalismo dominante, firmando, assim, “um compromisso total com o mundo
contemporâneo.” (MENDES, [2006]). Segundo Régis Duprat ([2006] apud MENDES,
[2006]) , “a música estava nas mãos do nacionalismo”, de um grupo que ergueu para si uma
torre de comando da qual manipulavam orquestra e escolas de música antiquadas:
29
Essa comunicação entre diversas linguagens artísticas já estava em pauta, no Brasil, na Semana de
22.
39
[...] a vanguarda ainda era uma postura modernista. [...] a pós- modernidade
traz, na realidade, um reflexo do mundo contemporâneo que é a
característica da pluralidade. [...] É justamente, eu diria, nas vertentes que se
sucederam à Música Nova: são vertentes pós-modernas e muitas coisas que a
gente, ao ler com a inteligência o Manifesto Música Nova, nós aprendemos...
muita coisa que o Manifesto já indicava para o futuro que era, justamente,
essa necessidade de haver um respeito pela pluralidade. (MENDES, [2006]).
O grupo pretendia fazer uma reavaliação dos meios de informação, da “[...]
importância do cinema, do desenho industrial, das telecomunicações, da máquina como
instrumento e como objeto: cibernética”.30 (COZELLA, et al., 1963).31
Na obra cênica de Gilberto Mendes constam: Cidade (1964) para tape e músicos ou
atores; Beba Coca-cola (1968) para coro, com ação cênica; Son et Lumière (1968), música
cênica para piano, que utiliza luz e ruído proveniente de máquinas fotográficas (a pianista é
um personagem inspirado na figura de um manequim ou modelo fotográfico32 e a execução da
peça não exige uma pianista profissional: uma bonita mulher que se senta ao piano, mas não
toca – é uma celebridade assediada e fotografada e sob as luzes e os ruídos dos flashes parece
perdida no palco, sem saber o que fazer); Santos Football Music (1969) para orquestra, tape e
público, com participação do público; Atualidades: Kreutzer 70 (1970) para coro, piano e
violino; Asthmatour (1971) para coro, Objeto musical - uma homenagem a Marcel Duchamp
(1972) para ventilador e barbeador elétrico e dois músicos ou atores; Ópera Aberta (1973)
para uma cantora lírica e um halterofilista e pequeno coro; Página musical para ser olhada
(1973) para coro, com projeção de slides; Pausa e menopausa (1973) para xícaras e
colherinhas de chá ou café e três musicistas ou atrizes, com projeção de slides; Der Kuss
(1976), para dois músicos ou atores e percussionistas, com sonorização; Música para piano
n.2 - Recado a Schumann, de um velho caderno de notas (1983); Grafito (1985) para qualquer
instrumento e tape, com um vaso sanitário com um pensador sentado com as calças
arregaçadas; O último tango em Paris (1987) para regente, um violinista, uma violinista e
30
No âmbito das artes cênicas, por exemplo, Samuel Beckett, precursor do chamado teatro do
absurdo, aliava às artes cênicas o cinema, as artes plásticas e até a arte do circo. A comunicação
entre música cênica e teatro experimental é evidente. 31
Documento online não paginado. 32
Inspirado na figura da jornalista, modelo, atriz e apresentadora de televisão Márcia Mendes, que
faleceu aos 34 anos no ano de 1979, Gilberto Mendes dá importância ao aspecto visual da própria
pianista em detrimento da sonoridade que ela emite. Não é a pianista a responsável pela sonoridade
de Son et lumière. Sua execução é uma simulação, constituída apenas de movimentos que
acompanham sons pré-gravados.
40
orquestra; Vers les joyeux tropiques, avecune musique vivante, théatrale (1988) para piano e
dois atores ou atrizes; Anatomia da musa (1993) para piano e voz, com projeção de slide.
Willy Corrêa de Oliveira compôs – além de música de cena como, por exemplo,
Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto – Fantasia em Fá (1957/1958) para
piano e orquestra, na qual há indicação de figurino e cenário (o autor garantiu em documento
registrado em cartório a proibição de qualquer gravação apenas em áudio para que a peça seja
apreciada somente se acompanhada de seus recursos cênicos). Compôs, ainda, Divertimento
(1960) para grande orquestra, apresentadora de TV, locutor, conjunto de rock e quarteto de
cordas, cuja execução é entrecortada por anúncios comerciais; Cantares encantados das
sereias (1965) para sons de dois sopranos, contralto, violino, percussão e contrabaixo, em que
doze instrumentistas nuas desfilam carregando seus instrumentos (a baterista, apenas com as
baquetas) e entram em uma piscina para tocarem submersas com sistema de sonorização que
capta os sons por debaixo da água (a peça teve uma única audição porque o compositor
garantiu através de documento registrado em cartório que não houvesse uma segunda
exibição, criando o conceito que denominou once music - música que só deve ser realizada
uma – única – vez). Cinco kitschs (1968) é música para piano com atuação cênica e co-autoria
do intérprete (no segundo kitsch, o(a) pianista deve escrever sua própria partitura de acordo
com instruções do autor e no quinto kitsch, seleciona e edita trechos da peça para que um
suporte reproduza enquanto ele(a) deixa o palco, senta-se em meio à plateia e aplaude de pé e
veementemente com gritos de bravo! ao final da execução). Em Fried Rich (1974) para três
trios (trio de violino-viola-violoncelo, além de outro trio de piano-gaita de fole-clarinete e
mais um trio de trompa), Corrêa coloca os três trios em ambientes separados por divisórias. O
público visita os stands, onde os sons se misturam e onde podem ser inseridas obras de artes
plásticas como numa exposição – o público deve poder apreciar também de cima, do alto, a
execução. Once upon a time in Berlim (1989), para um intérprete, inclui projeção audiovisual
de concerto pré-gravado.
Entre compositores brasileiros – não ligados ao Movimento Música Nova – que
escreveram peças cênicas, encontram-se Dawid Korechendler (Rio de Janeiro/RJ, 1948),
Henrique Morozowicz (Curitiba/PR, 1934-2008) e Jorge Antunes (Rio de Janeiro/RJ, 1942).
Henrique Morozowicz de Curitiba compôs Estudo Aberto (1975) para flauta e clarinete e
fagote com indicação de figurino e movimentação cênica e Comentários para uma peça de
Mozart – Collage - 76 (1976) para piano e projeção de vídeo (uma das variações da peça, que
é um tema com variações, consiste na exibição de um vídeo pré-gravado pelo pianista em
trajes e ambientação do século XVIII). Jorge Antunes escreveu muitas peças de música
41
cênica: Canção da Paz (1965) para voz de barítono, piano e tape; Poema Camerístico (1966)
para locutor, fagote, piano e tape; Concertatio (1969) para trio vocal, guitarra elétrica, baixo
elétrico, bateria, orquestra sinfônica e tape; Music for eight persons playing things
(1970/1971) para oito músicos; Microfórbiles II (1972) para flauta em sol, clarineta, viola,
violoncelo, percussão, voz de barítono e público, com projeção de slides e participação do
público; Flautatualf (1972) para flauta e tape, em que ocorre uma gravação em tempo real
para ser executada em seguida, em sentido reverso; Symposium (1974) para seis vozes,
Mascaracol (1975) para três fagotes; Coreto (1975) para flauta (também flautim), clarineta,
trompa, viola, violoncelo, piano tipo armário – desafinado – e três tambores amadores, com
cenário; Source vers SP (1975) para dançarina, sintetizador, flauta, oboé, voz de contralto,
piano, trompa, viola, violoncelo, tape, pequenas fontes sonoras amplificadas e teclado de
luzes – para ser apresentada em saguões de teatro antes, durante o intervalo e após concertos;
Vivaldia MCMLXXV (1975)33 para mímico ou dançarina, voz de contralto, flauta, trompa,
corne inglês, piano, violoncelo, viola e tape; Três impressões cancioneirígenas (1976) para
flauta, viola e violoncelo; Violácea Metalina (1976) para trompete, trompa, tuba, violino,
viola, violoncelo, contrabaixo e vozes dos instrumentistas de sopro; Redundantiae - variações
para um arabesco e um suspiro (1979), que inclui suspiros sonoros a serem emitidos pelo(a)
pianista; Redundantiae II - variações para um arabesco e um sussurro(1979); Dramatic
Polimaniquexixe ou Quinto movimento para uma suite implacavelmente longa e erótica
(1984) para clarineta, violoncelo e piano; Sinfonia das diretas (1984) para 300 buzinas de
automóvel, saxofone alto, guitarra elétrica, baixo elétrico, bateria, percussão, declamador,
coro misto, coro popular e tape, para apresentação na rua, com participação do público;
Redundantiae III, variações para um arabesco e um sopro (1989) para trompa e piano; Lecture
(1990) para clarinete baixo; Amerika 500 (1992) para flauta (também flautim e flauta em sol;
clarinete baixo, percussão, piano, viola e violoncelo; Le cru e le cuit (1993/1994) para
percussão e tape; Rimbaudiannisia MCMXCIV (1994) para três crianças (uma das crianças
também é dançarina), coro infanto-juvenil, máscaras, flauta, oboé, corne inglês, clarineta,
clarinete-baixo, fagote, trombone, percussão, violino, violoncelo e contrabaixo, com indicação
de figurino (maquiagem e adereços); Com texto sem rei n. 1 (1998) para flauta; Miró,
escuchó, miró (1998) para piano e tape, com projeção de slide; Rituel Violet (1999) para sax
tenor e tape e Blues (2000) para piano, com iluminação artística. Dawid Korenchendler
33
A movimentação artístico-cultural ocorrida nos anos de 1970, que resultou na primeira das bienais de
música contemporânea no Rio de Janeiro em 1975, contou com muitos nomes e obras que não se
encontram aqui listados, mas que contribuíram largamente para que a música cênica prosseguisse
sua trajetória no Brasil.
42
compôs XI Variações (1983), com declamação de trecho de um poema de Fernando Pessoa;
Outros momentos brasileiros, com títulos um tanto incomuns (1991) para piano; Peixe (1995)
para coro; Sonata n. 6 - apoteose em Sib ou Sonata do Jubileu (1998) e Sonata n. 7 (2000),
ambas para piano.
Schaeffer escreveu, na década de 1960, que a música caminhava na direção de novas
relações e novas questões formais – o que resultava em uma música totalmente diversa da
tradicional: “Admitir isso depende de uma considerável mudança de atitude, é abandonar todo
preconceito, exclusivamente natural ou cultural a respeito dos fundamentos da música. Isso é
admitir uma hibridização, uma junção de elementos díspares e, portanto, uma atitude
interdisciplinar.” (SCHAEFFER, 1966, p. 638-639, tradução nossa).34
Em decorrência da interdisciplinaridade da música cênica, da junção, nela, de
elementos díspares, as denominações atribuídas a esse gênero não são bem delimitadas. No
meio musical, as categorizações desse tipo de música experimental não são correntemente
referenciadas. Não há, ainda, consenso em relação à terminologia.
O estudo das denominações da música cênica neste trabalho se deu a partir de dados
coletados em publicações e entrevistas com profissionais experientes na prática da música que
inclui aspectos cênicos.
É importante, nesse estudo, partir da diferenciação entre música de cena e música
cênica. A música de cena, também chamada de música incidental, é uma música composta
para a cena enquanto a música cênica é uma música concebida concomitantemente à sua
visualidade ou teatralidade.35
Faz-se necessário também estabelecer a diferença entre music theater e musical
theater. O termo musical theater denomina o típico espetáculo musical americano que
envolve música (canções), teatro (diálogo falado), e dança no contexto de um roteiro teatral
de estilo específico do gênero popular. No Brasil, o musical popular foi também chamado de
teatro de revista e, na França, de comédie musica.36 A diferença entre esse gênero musical
popular e o teatro musical originário da música de concerto é que este pretende atuar além da
esfera do puro entretenimento. (SALZMAN; DÉSI, 2008).
34
“Admettre cela, c‟est cependant changer considérablement d‟attitude. C‟est d‟abord abandonner
tout préjudgé, exclusivement naturel ou culturel, touchant les fondements de la musique. [...] C‟est
admettre une hibridation, une junction d‟éléments disparates et, partant, une attitude
interdisciplinaire”. (SCHAEFFER, 1966, p. 638-639). 35
Griffiths (1995, p. 146) denomina o gênero com outro termo: “música de ação”. 36
Produções de opera-comique, operetta e singspiel com seus temas mais leves e produção executiva
mais acessível se desdobraram nas formas do musical popular.
43
O termo music theatre – como é corrente na língua inglesa – tem sido traduzido, no
Brasil, como música-teatro ou, ainda, teatro musical. Music theatre denomina, inclusive,
determinado tipo de ópera. (CLEMENTS, 2001, v. 17). O tipo de ópera que teve origem na
Europa, em meados do século XX, quando grande número de compositores optou por
produzir peças de montagem mais modesta ao invés de grandes óperas, pretendia encenação
em outros espaços além das casas de ópera. Isso ocorreu por razões estéticas, econômicas e
políticas. (BOSSEUR; BOSSEUR; AUTRAL, 1979). As óperas de câmara eram acessíveis ao
grande público por seus baixos custos em relação à ópera tradicional que apresentava, em suas
montagens, custo cada vez mais alto.
A ópera contemporânea, com todas as suas variações, difere da ópera tradicional,
cuja elaboração da música orquestral, tradição vocal de solistas e coro operístico de execução
lírica têm formato específico de composição e apresentação. Privilegia, como na ópera
tradicional, a voz cantada, porém, esta é quase sempre transformada em possibilidades
incontáveis de emissão e formas de uso. Possui, muitas vezes, libreto escrito pelo próprio
compositor. Nos casos em que o libreto é escrito por outro autor, em geral, há participação
efetiva do compositor nessa elaboração do texto/roteiro. Possui forma composicional que
privilegia a concomitância da criação de cena e música e que atribui igual importância ao som
e à cena, além de frequentemente levantar questões a respeito das relações hierárquicas e
funcionais dos instrumentos e instrumentistas, bem como tudo o que diz respeito aos hábitos
adquiridos no meio musical por parte dos compositores, intérpretes e ouvintes. Surgiu como
forma de protesto contra o conservadorismo musical da grande ópera.
São numerosas as subcategorias do que se chama ópera contemporânea: ópera
multimídia, pocket opera, micro-ópera e nano-ópera são algumas delas.
Num dos exemplos do que se pode chamar de ópera contemporânea, Votre Faust
(1960-1967), de Henri Pousseur e Michel Butor, não são solistas que apresentam o conteúdo
dramático, mas atores. Aos quatro cantores cabe estabelecer as conexões complexas entre as
ações dos atores e dos doze instrumentistas que compõem a orquestra. Além do próprio
instrumento, os músicos se utilizam de percussão, além de intervirem verbalmente nos
diálogos do texto falado. Os sons das vozes e dos instrumentos são, eventualmente,
modificados e dissimulados através de processos e sons eletroacústicos. (BOSSEUR;
BOSSEUR; AUTRAL, 1979).
O uso intenso de novas tecnologias eletrônicas e digitais caracteriza, como uma das
formas de ópera contemporânea, a chamada ópera multimídia. Algumas dessas óperas
44
contemporâneas, por terem estrutura de montagem simples em relação ao número de
participantes, são denominadas pocket opera.
Além de contar com número reduzido de participantes, a micro-ópera é constituída
por uma única cena em uma única ação de duração média de quinze minutos. A nano-ópera
possui número ainda mais reduzido de participantes e duração média de trinta minutos.
Ambas foram criadas por Korenchendler na intenção de viabilizarem – facilitarem – a
produção executiva através da utilização de poucos recursos cenográficos.
Não se pode dizer com certeza se ópera radiofônica seria music theater. As imagens
provenientes desse tipo de ópera concebida para ser difundida por emissoras de rádio só
ocorrem na imaginação dos ouvintes.
Em Visage (1961), de Luciano Berio, por exemplo, para voz pré-gravada e sons
eletrônicos, a atuação teatral da cantora na gravação tornou-se de tal maneira célebre que
termina por fazer com que a peça seja classificada como música cênica.37
Kagel comenta a respeito da visão através da audição, referindo-se até mesmo à
música eletro-acústica, acusmática:
A produção de um som excepcional às vezes provoca um fenômeno visual,
uma espécie de osmose: o ouvinte vê através da audição. Há alguns anos,
durante os concertos de música eletrônica, os ouvintes ficavam literalmente
fascinados pelos alto-falantes, pois a cena permanecia viva; os alto-falantes
se tranformaram em objetos de culto. (BOSSEUR, 1971, p. 104, tradução
nossa).38
A música-video, como mais recente gênero de música, dependendo da modalidade em
que se inclui, também pode ser considerada música cênica no momento de sua exibição
pública.
Outro gênero de arte interativa – muito em voga atualmente – que frequentemente
utiliza recursos cênicos é a instalação sonora/visual. Nesse tipo de trabalho, a música tanto
pode ser protagonista, quanto pode ter papel secundário. Assim também ocorre em
performances e intervenções, realizadas em espaços públicos, não tradicionalmente musicais
nem teatrais.
37
A partir da proposta deste trabalho, music theater se traduz como música cênica. 38
“La production d‟un son exceptionel provoque parfois un phenomène visuel, une sorte d‟osmose:
l‟auditeur voit par les oreilles. Il y a quelques annés, au cours des concerts de musique eletronique,
les auditeurs étaient littéralement fascinés par les haut-parleurs car la scène restait vide; lês haut-
parleurs devaneient des objets de culte”. (BOSSEUR, 1971, p. 104).
45
A „Música cênica nas ruas‟ foi uma das ideias do tempo [fim dos anos de 1960 e
década de 1970] que por várias razões – culturais, educacionais e ideológicas – sobretudo, fé
na democratização da arte contemporânea, tentava conquistar novas platéias.” (SALZMAN;
DÉSI, 2008, p. 207, tradução nossa).39
De acordo com Bosseur; Bosseur; Autral (1979, p. 125-126, tradução nossa):
A denominação propriamente dita de „teatro musical‟ parece, portanto, em
muitos aspectos, paradoxal à multiplicidade dos domínios e tendências que o
gênero engloba. Não é, pois, contraditório querer manter sob um termo único
as obras cujo campo de ação é por si só flutuante?40
Qualquer que seja a denominação atribuída ao chamado teatro musical e suas
variedades, esta denuncia a compartimentação da criação artística em disciplinas isoladas que
correm o risco de se fecharem para não mais manterem comunicação entre si. (BOSSEUR;
BOSSEUR; AUTRAL, 1979). Há também o risco de que as denominações e classificações
não dêem conta de todas as possibilidades, na ilimitada capacidade de reorganização e
reinvenção da criação artística.
TEATRO... (1994, p. 936) define teatro musical como:
[...] Expressão corrente desde os anos 60 para obras musicais que envolvem
um elemento dramático em sua apresentação. Podem ser mini-óperas, ciclos
de canções com acompanhamento instrumental que são „encenados‟ num
palco de concerto [...], ou peças que resistem a qualquer classificação [...].”
Mendes, que é autoridade no assunto, contextualiza e aponta um dos problemas na
terminologia que classifica o que seriam categorias da música cênica:
O teatro musical é uma coisa bem do nosso tempo e nunca conseguiu um nome
apropriado porque o teatro musical também é o teatro da Brodway, mas no caso da
música erudita contemporânea de vanguarda, o teatro musical é algo que decorre da
exploração do que há de performance visual teatral na própria execução da música: o
regente que entra, a banca dele, o charme ou o engraçado que ele é; o pianista que
chega e, de repente, não acerta o banquinho do piano no lugar correto – a partitura que
39
“„Music theater in the streets‟ was one of the ideas of the time that for various cultural, educational,
and ideological reasons (above all faith in the democratization of contemporary art) attempted to
reach new audiences.” (SALZMAN; DÉSI, 2008, p. 207). 40
“La dénomination proprement dite de „theater musical‟ semble donc, à maint égards, paradoxale,
du fait de la multiplicité dês domains et des tendances que le genre englobe. Mais n‟est-til pás
contraditoire de vouloir faire tenir sous un terme unique dês oeuvre dont le champ d‟action est
fluctuant de par son propos meme?”. (BOSSEUR; BOSSEUR; AUTRAL, 1979, p. 125-126).
46
pode cair no chão e ele tem que pegar. Daí surge uma ideia de se explorar um visual
da música que pode chegar a extremos e cortar a própria música (MENDES, [2006],
grifo nosso).
Mendes ([2006]) afirma, ainda, que o teatro instrumental pode conter e pode até ser
a música. Numa “música sem música”, conforme ele explica, “o compositor tem que induzir a
pessoa a um clima musical”, ou seja, “a cena musical pode ser a própria música”. Após o
desaparecimento dos músicos no fosso da orquestra, na ópera tradicional, o teatro
instrumental fez ressurgirem os intérpretes no palco, ocupando a cena com a mesma
importância dos cantores, atores e bailarinos, desempenhando funções de atuação, cantado,
falando. O teatro instrumental pode incluir a voz cantada e/ou falada, dirigindo-se às ações
dos músicos como instrumentos e personagens da música. Todas essas características estão
inseridas, muitas vezes, ainda, no que se chama teatro musical ou música-teatro. O
diferencial decisivo, porém, do teatro instrumental é a forma com que os instrumentistas
assumem papéis de atores enquanto tocam. (JACK, 2008). De acordo com a Figura 1 a seguir,
há uma maior abrangência no termo música cênica devido a ser este um gênero em que toda
interação entre música e outras linguagens artísticas é contemplada. Dança, aspectos teatrais
tais como iluminação, figurino e cenário e artes visuais, projeção de imagens e vídeos 41
previstos nas composições caracterizam-se como música cênica. Mas nem toda música
cênica é teatro musical. O chamado teatro musical ou música-teatro (music theater) – ou
música de ação (musique d‟action) – refere-se à música cênica que inclui ação teatral dos
músicos e cantores dentre outras tantas possibilidades de interações artísticas. No teatro
musical, ações e gestos são característicos da execução musical delineados pelo compositor
da peça e têm intenção estética. Por sua vez, nem todo teatro musical é teatro instrumental.
No teatro instrumental, ações e gestos têm intenção dramatúrgica: os intérpretes –
instrumentistas – além de atuarem como músicos, apresentam-se como atores, encarnando
personagens.
Ópera contemporânea, instalação sonora/visual, música-vídeo, teatro musical,
teatro instrumental e música-teatro podem ser tomados, então, como categorias de música
cênica. A Figura 1 mostra como as práticas da música cênica se sobrepõem, se entrelaçam e
se refletem umas nas outras:
41
Pode, nesse caso, fundir-se ao gênero música-vídeo.
47
Figura 1 – Relações entre práticas de música cênica42
Fonte: A autora (2012).
42
A música-vídeo só se configura como música cênica nos casos em que a música é concebida concomitantemente à sua visualidade.
48
O diretor de teatro Pierre Barrat (França, 1931) propôs três outras classificações para
a música cênica: 1) que não tem ação cênica prevista em partitura, mas que provém da
execução musical; 2) que tem ação cênica prevista em partitura/libreto; 3) que transmite uma
mensagem ou conta uma estória a partir da atuação de um(a) cantor(a), ator ou atriz, ou
mesmo de instrumentista. (SALZMAN; DÉSI, 2008).
Sobre categorizações e classificações, Caznok (2008, p. 15) afirma:
O debate da união da audição com a visão hoje é um fato corriqueiro que
está presente na produção artística de diferentes maneiras. Há obras que
exigem do espectador uma totalidade perceptiva nunca antes ousada, tais
como as performances, as instalações e os eventos multimídia que requerem,
além da visão e da audição, a participação do tato, do olfato e, por vezes, do
paladar. / A esse tipo de arte não está reservado nenhum lugar no rol das
classificações tradicionais e, assim como suas obras, seus criadores são
genericamente nomeados como artistas multimídia, performáticos ou
holísticos, entre outros. / Embora bastante distanciadas em termos de
manufatura e de proposição estética, muitas dessas obras têm em comum o
fato, já assentado, de que a interpenetração de domínios perceptivos [...]
seria um dos fatores fundantes de sua expressão.
Com base na obra de Merleau-Ponty, João Frayze-Pereira comentou também a esse
respeito que “[...] o olhar, o tato e todos os outros sentidos são conjuntamente os poderes de
um mesmo corpo integrados em uma única ação” e que “[...] a concepção da obra de arte total
ou plurissensorial [...] teve lugar em vários momentos da história das artes, [...] antecipando
certas problemáticas que se farão presentes no século XX” (FRAYZE-PEREIRA, 2008 apud
CAZNOK, 2008, p. 10). As denominações, classificações e terminologias certamente fazem
parte das “problemáticas” a que Frayzer-Pereira se refere. (FRAYZE-PEREIRA, 2008 apud
CAZNOK, 2008, p. 10). A dificuldade em definir categorias decorre da liberdade e da
abrangência da expressão artística na interação entre linguagens diversas e da possibilidade de
utilização, em todos esses casos, de teatro, dança – que é uma arte basicamente teatral – e
artes visuais, em todas as formas de espetáculo musical.
Santaella (2007, p. 24), escrevendo sobre linguagens líquida43, descreve características
que poderiam ser comparadas às da música cênica:
43
Bauman (2001) criou o conceito do que é líquido. Os líquidos, como fluidos, “[...] se movem
facilmente. Eles „fluem‟, „escorrem‟, „esvaem-se‟, „respingam‟, „transbordam‟, „vagam‟, „inundam‟,
„borrifam‟, „pingam‟, são „filtrados‟, „destilados‟; diferentemente dos sólidos, não são facilmente
contidos – contornam certos obstáculos, dissolvem os outros e invadem e inundam seu caminho”.
49
Já não há lugar, nenhum ponto de gravidade de antemão garantido para
qualquer linguagem, pois todas entram na dança das instabilidades. Texto,
imagem e som já não são o que costumam ser. Deslizam-se uns nos outros,
sobrepõem-se, complementam-se, confraternizam-se, unem-se, separam-se e
entrecruzam-se.
Paludo (2009, p. 14) complementa a ideia da comunicação natural entre linguagens
artísticas: “Música nunca foi só música”.
Por esse motivo, as denominações podem não ser eficientes no sentido de encaixar as
práticas artísticas em classificações que muito dificilmente serão definitivas. Salzman e Dési
(2008, p. 340, tradução nossa) reforçam essa suspeita: “O nosso mundo conturbado clama por
modelos que não forcem a teorização dos fatos mas, antes, façam as teorias e análises
aceitarem o fato de que uma categorização é apenas uma maneira de racionalizar o oceano de
fatos e detalhes da vida.”44
2.2 O PIANO NA MÚSICA CÊNICA: UMA NOVA NOÇÃO DE VIRTUOSISMO
Na música cênica, o uso dos instrumentos passa por experiências diversas, bem como
na música do século XX, de maneira geral. Além da escprita tradicional, os pianistas
enfrentam desafios para os quais não foram suficientemente preparados em sua formação
como instrumentistas. Técnicas de piano expandido e piano preparado, situações em que o
piano é processado ou cenográfico e experimentação de outros instrumentos de teclado tais
como cravo, celesta e sintetizador chamam os intérpretes pianistas a pesquisarem e a criarem
novas formas de atuação.
Nas técnicas expandidas para piano, ocorre manipulação direta das cordas do piano
com as mãos ou com objetos, baquetas. No piano preparado, modifica-se a sonoridade do
instrumento através da utilização de objetos tais como pregadores, pedaços de borracha, ferro,
madeira e outros materiais colocados entre as cordas do piano. A preparação pode ser fixa,
chamada também de cagiana, pois esse tipo de procedimento foi utilizado inicialmente por
Cage. Na preparação fixa, os objetos são colocados antes do início da apresentação. Na
preparação móvel, os objetos podem ser colocados e/ou retirados durante a apresentação.
Nas situações onde o piano é processado, os pianistas lidam com uma nova maneira de
se ouvirem porque a captação do som do instrumento por microfone e o processamento
44
“The fuzziness of our world calls for models that do not squeeze the facts into theory but rather make
theory and analysis accept the fact that categorization is just one, perhaps outdated way to
rationalize the sea of facts and details of life”. (SALZMAN; DÉSI, 2008, p. 340).
50
através de computador transformam a sonoridade que está sendo emitida. Na necessidade de
interação com a tecnologia, com sons pré-gravados que podem ser manipulados em tempo
real por um músico especializado, este pode não ser oriundo do meio erudito.
Com o piano cenográfico, há apenas a utilização da imagem do instrumento, podendo
haver, na música, outra fonte sonora que emita o som que sairia do piano. O pianista pode
emitir outros tipos de som ou fazer apenas o movimento da execução sem que esteja
produzindo som – e nesse caso não há sequer a necessidade de que o pianista, como ator ou
personagem seja um profissional especializado.
O piano cenográfico nas composições significa o uso simbólico dos instrumentos e
instrumentistas. Em muitos casos, o instrumento é utilizado como objeto de cena ou pensado
de maneira que permita a qualquer pessoa protagonizar a execução. A função do instrumento,
nesses casos, já não é puramente musical. É estendida à função visual em seus valores tanto
estéticos quanto sociais.
Esse contexto da não obrigatoriedade de especialização foi claramente abordado na
obra de Kagel, em que nem todo instrumentista ou cantor tem que ser especialista, mas todo
músico tem que ser ator. A tendência (valorização) tecnicista (mecanicista) ocorrida no século
XIX se estendeu à música de concerto e veio a ser questionada através da música que, sem
abrir, obrigatoriamente, mão do virtuosismo praticado, propôs formas alternativas de
expressão.
Na música que privilegia os aspectos visuais/cênicos em sua apresentação, a
consciência corporal dos intérpretes precisa ser trabalhada. Na música cênica, tanto os
instrumentos musicais podem ser tratados como objetos de cena quanto os movimentos dos
instrumentistas podem ser tomados como instrumentos da música. A função dos intérpretes,
nesse contexto, não se restringe à execução ao instrumento.
Os instrumentistas podem ser convidados a utilizar a voz através do canto e da fala, a
tocar outros instrumentos além de sua especialidade, a produzir ruídos e/ou podem ser
chamados a construir personagens. Nota-se mais acentuadamente em relação à música cênica
do que em outros gêneros a necessidade de que os intérpretes não apenas reproduzam as
ideias dos autores, mas que possam, através das obras, alargar sua própria capacidade e a do
instrumento – não somente no aspecto técnico, mas no que diz respeito à sua função no
mundo da música. Mesmo quando se trata de cantores, estes são reconstruídos, repensados
enquanto instrumentos musicais.
Quando a música cênica exige o grau de excelência técnica demandada pelo
repertório tradicional, essa exigência se soma a outras propostas interpretativas desafiadoras:
51
atuação cênica, interação com tecnologias digitais em tempo real e jogos de improvisação,
além de envolvimento com a produção artística e executiva das apresentações musicais como
espetáculo que envolve cenário, figurino, iluminação, formação de equipe, entre outros
aspectos. Entretanto, os parâmetros técnico-interpretativos se transformam ao ponto que, em
muitos casos, não há exigência da habilidade específica do músico/ator ao instrumento.
A escolha de peças desafiadoras, que exijam o enfrentamento de técnicas e linguagens
para as quais não foram treinados no período de formação, necessita dos intérpretes
curiosidade e coragem. Às decisões que dizem respeito à interpretação, onde entra em questão
o ambiente emocional a ser criado diante do andamento a ser adotado dentro da margem de
variação do tempo a partir das indicações da partitura, da expressão a ser percebida pelo
ouvinte através das variações de agógica, da intensidade dos contrastes dinâmicos e da
realização dos sinais gráficos, somam-se outros componentes que dizem respeito aos aspectos
de interação entre música e outras linguagens artísticas.
No teatro musical, as implicações visuais e espaciais na execução dos instrumentos
vieram transformar as noções de virtuosismo, exigindo dos intérpretes grande sensibilidade
tátil e pessoal, segundo a personalidade de cada um. A sensualidade em relação ao som e ao
corpo do instrumento são amplamente consideradas nesses novos parâmetros de interpretação.
Kivy (1995 apud COOK, 2006, p. 10) afirmou que: “[...] a arte da performance habita
a zona da livre escolha que se estabelece dentro e ao redor da obra grafada”. Com esta
afirmação, Cook (2006 apud SERALE, 2009, p. 215) ressalta “a liberdade do intérprete e sua
responsabilidade como criador”.
Barber (1987 apud SERALE, 2009, p. 215) observou que: “o Teatro Instrumental não
se compõe para um instrumento, mas para um instrumentista [...] com olhar crítico e com
reserva imaginativa para encontrar soluções técnicas próprias”. Mediante esta observação,
Serale discorreu a respeito da atuação dos instrumentistas na música que interage com outras
artes.
Ainda complementa que:
[...] quando a partitura se prenha de inúmeras indicações sonoras e teatrais e
se roçam os limites do possível, a interpretação não pode ser fria, nem
mecânica,nem apenas brilhante, mas se amplia ao campo psicológico. Pede-
se [ao intérprete] uma execução tal que, faça o que fizer, ficará terrivelmente
marcada pela sua individualidade. (BARBER, 1987 apud SERALE, 2009, p.
215).
52
Na música cênica, os intérpretes têm que encontrar a sua própria maneira de realizar a
obra para recriá-la, reinventá-la numa postura arrojada. Trata-se, geralmente, de uma
linguagem que indica caminhos não muito bem conhecidos para os instrumentistas. A
criatividade e a capacidade de invenção chegam, em alguns casos, ao ponto de representar co-
autoria, quando os elementos de indeterminação são tão amplos que propõem, além das
práticas de improvisação, práticas específicas de composição, pelos próprios instrumentistas,
de suas próprias partituras, arranjos, versões.
Nem sempre os compositores documentam suas criações em partitura. De acordo com
Salzman e Dési (2008), nas práticas da transmissão oral, que frequentente incluem as práticas
de improvisação, faz-se cada vez mais necessário que os intérpretes compreendam o contexto
das obras que realizam porque a
[...] improvisação demanda uma participação muito mais ativa e criativa do
intérprete do que na música notada. Outro problema é que a improvisação
envolve mais criação do que interpretação e isso não se ajusta tão facilmente
no meio clássico que se baseia em [estudos de] repertório e interpretação.
[...] Numa improvisação, numa obra aberta ou aleatória os intérpretes são
particularmente obrigados a entender o meta-texto [...]. (SALZMAN; DÉSI,
2008, p. 348-349, tradução nossa).45
A notação musical cada vez mais precisa a partir do século XVII significava uma
forma de controle da obra. Era de se esperar dos compositores considerados sérios que estes
previssem de maneira absoluta a forma como suas criações seriam realizadas – embora nunca
tenha sido possível grafar os sons de maneira absoluta. Essa mentalidade fez quase
desaparecer da música tradicional as práticas de improvisação que vieram a ressurgir com
força na música do século XX. (SALZMAN; DÉSI, 2008).
O novo virtuosismo inclui a capacidade de fazer música além das técnicas adquiridas,
em um fazer musical que seja espontâneo. Isso exige o desenvolvimento da capacidade do
músico em se apropriar da sonoridade que emite, da aceitação desse músico com relação ao
grupo em que se insere no que diz respeito às possíveis falhas e limites não só do outro como
também de si próprio, da transcendência artística que leva esse músico a ter visão e alcance
além da própria consciência, da preparação – prontidão – para todo e qualquer tipo de
45
“[...] improvisation demands a much higher active and creative participation from the performer
than notated music. Other problem is that improvisation involves creation rather than interpretation
and this does not fit so easily into a classical music business that is based on repertoire and
interpretation. […]. In an improvisation, open-form, or aleatoric piece, performers are particularly
obligated to understand the meta-text”. (SALZMAN; DÉSI, 2008, p. 348-349).
53
situação no momento da execução musical, da identificação com os sons no sentido de ter a
sensibilidade aguçada para a percepção de sons de toda natureza e da aceitação da fragilidade
humana – aceitação que se reverte em vitalidade – e do imponderável do momento da
apresentação musical. É aconselhável que haja convivência pacífica com as possibilidades de
ocorrência de falhas na apresentação musical, o que remete à ideia de o quanto esse momento
é frágil e milagroso. (BEECHING, 2005). Tais atributos são fundamentais para que o
intérprete improvise de forma satisfatória. Se toda performance, mesmo fundada em dados
determinados, for encarada como improvisação, uma vez que esses dados não podem ser
totalmente previstos e que o imponderável sempre estará presente nas apresentações musicais,
esses atributos poderão ser tomados como base para a execução não apenas de música cênica,
mas de todo tipo de música.
No processo criativo de construção da interpretação, Beeching (2005) identifica três
parâmetros: o parâmetro existencial, que diz respeito ao que a peça representa (ou significa)
para o próprio artista; o parâmetro psicológico, que diz respeito ao que a peça representa (ou
significa) no contexto em que foi criada por seu autor e o parâmetro semiológico, que diz
respeito à maneira como a peça será apresentada de maneira que seja estabelecido algum tipo
de comunicação com o ouvinte. Na música que interage com outras linguagens artísticas, é
importante que esses parâmetros sejam observados. As demandas da música cênica para os
intérpretes provocaram modificações em suas relações com os compositores.
A convivência, no palco, da atuação em tempo real com sons e imagens pré-gravadas
representa mais um desafio para os intérpretes. Sincronizar e interagir com as máquinas são
ações que representam algumas das novas demandas para os instrumentistas, entre as diversas
possibilidades de atuação na música cênica.
Doriana Mendes, que é bailarina, atriz e soprano com vasta experiência na música
cênica, escreveu, a respeito da música que interage com outras artes e com novas tecnologias
que se a obra “traz em sua natureza uma sincronia de diversas linguagens, o nível de
excelência da performance está comprometido com a capacidade de interação técnico-
expressiva que o solista desenvolva e aprimore durante a preparação da obra” (MENDES;
LEITE, 2009, p. 196). E conclui:
Constatamos que são necessárias, durante a performance, atribuições como
treinar a habilidade de manter-se alerta a um novo tipo de escuta que
incorpora o processamento em tempo real e, ainda, garantir a integridade do
discurso da obra nos momentos improvisatórios de tempo não determinado.
É preciso estar „aberto‟ a eventuais imprevisibilidades, independentemente
das partes fixas ou improvisadas. Fica evidente num ambiente interativo, que
54
o que se repete nos ensaios não abarca as possibilidades do que possa ocorrer
durante a performance. Algo que não é previsto no período de montagem da
obra, nem pelo compositor, nem pelo intérprete, será incorporado – ao vivo –
a cada nova performance. (MENDES; LEITE, 2009, p. 196).
Foi também com base na prática de música cênica que Abbie Conant e William
Osborne levantaram questões a respeito das práticas interpretativas nessa modalidade de
apresentação musical que, inclusive, alimenta e consolida as tais práticas mesmo quando se
trata de música tradicional. (BEECHING, 2005). A busca do auto-conhecimento e senso de
autenticidade para a construção de uma identidade artística própria é condição fundamental
das atividades artísticas. A associação a outros artistas e profissionais nessa procura também
se faz importante. Exige-se, na música cênica, que os intérpretes participem das obras em
nível composicional além de elaborarem o formato de apresentação musical/cênica e sua
viabilidade/viabilização.
A consciência da comunicabilidade da música e de sua apresentação, considerando
que tudo nesse processo de comunicação tem significado, inclusive a presença no palco,
colabora para um bom resultado artístico nas atividades dos instrumentistas em todo e
qualquer gênero musical. Na excelência técnica, as demonstrações de habilidades
malabarísticas representam apenas um dos fatores dessa comunicabilidade. O corpo do artista
é importante agente na comunicação entre o músico e o ouvinte/espectador e isso implica na
necessidade de preparação física compatível com a vitalidade exigida pela performance. A
formação de uma concepção própria de teatralidade da apresentação musical prestará
importante colaboração nesse processo criativo dos intérpretes. Isso demanda permanente
disposição para a investigação e inventividade. (BEECHING, 2005).
As características dos instrumentistas na música cênica denunciam sua estreita relação
com o teatro pós-dramático. O teatro pós-dramático dos anos de 1980 teve sua origem no
teatro de estética pós-moderna que surgiu a partir dos movimentos da arte de vanguarda dos
anos de 1960.46 Nesse teatro, o ator ganha outras funções além de sua atuação cênica: canta,
monta cenário, cria iluminação. Esse teatro se preocupa com a comunicabilidade entre arte e
público driblando poderes exacerbados das mídias, estabelecendo espaços alternativos de
apresentação, procurando aguçar as percepções e emoções dos espectadores e propondo
processos criativos de caráter coletivo. (LEHMANN, 2007).
46
Samuel Beckett, precursor do chamado teatro do absurdo, aliava às artes cênicas o cinema, as artes
plásticas e até a arte do circo.
55
A nova noção de virtuosismo, de acordo com as práticas propostas pela música cênica
não apenas modifica as necessidades de treinamento na preparação dos intérpretes desde o seu
período de formação até a maneira de produzir cada apresentação, mas também modifica e
enriquece a atuação dos mesmos, independente do período/estilo do repertório que
apresentem.
56
3 RIO DE JANEIRO: COMPOSITORES E OBRAS
A música cênica de compositores atuantes no Rio de Janeiro aqui representada tem
compromisso com o novo: a pluralidade do mundo pós-moderno leva adiante ideias que já
vinham se desenvolvendo desde o início do século XX. Luiz Carlos Csekö, Tim Rescala,
Vânia Dantas Leite, Jocy de Oliveira e Tato Taborda apresentam características comuns em
vários aspectos de suas vidas e obras: atenção ao que ocorre tanto no mundo da música quanto
o que ocorre ao seu redor, inclusive a questões relativas às plateias como participação e
percepção plurissensorial; diálogo com outras linguagens artísticas e entre gêneros musicais;
experimentação com suportes tecnológicos e audiovisuais.
Esses compositores pensam a apresentação musical como espetáculo. A música
cênica não é característica de peças isoladas: é uma tônica no conjunto de suas obras, que
oferecem aos ouvintes uma relação elaborada entre o que vão ouvir e ver.
No tipo de apresentação musical que exige atenção especial a aspectos cênicos, os
compositores conduzem pessoalmente o processo de elaboração de seus espetáculos,
envolvendo-se diretamente com os processos de realização – direção e produção – de suas
obras. Apropriam-se de técnicas teatrais tais como direção cênica, planejamento e execução
de iluminação. O impulso criativo desencadeia uma postura empreendedora.
Vânia Dantas Leite, Jocy de Oliveira, Luiz Carlos Csekö, Tim Rescala e Tato Taborda
foram fundadores do Núcleo de Música Experimental e Intermídia do Rio de Janeiro
(NuMEXI/RJ), junto a Rodolfo Caesar, Chico Mello, Marisa Rezende, Vera Terra e
Guilherme Bauer, no ano 2000. Segundo texto da compositora Vera Terra que resume as
atividades do Núcleo, o NuMEXI/RJ foi um “pólo aglutinador de novas linguagens musicais,
associadas a novas tecnologias de produção e difusão do som e da imagem” e, pelo
“pioneirismo de suas atividades de criação musical e intermídia”, constituiu-se “em um dos
mais importantes grupos de compositores da América Latina, voltados para a música
experimental”. (TERRA, 2012).47 Os compositores envolvidos atuavam como organizadores e
curadores de eventos que apresentavam trabalhos artísticos brasileiros e internacionais. Entre
os eventos promovidos, os de maior destaque foram as séries Música e Tecnologia &
Multimeios, realizadas por três anos consecutivos. Essas apresentações obtiveram sucesso de
público e crítica.
47
Documento não paginado.
57
Ainda segundo Terra (2012) 48 , as atividades do grupo eram intensas e tinham o
objetivo de:
[...] estimular, divulgar, registrar e difundir a produção musical de ponta
realizada no país, em particular, na cidade do Rio de Janeiro. A série Música,
Tecnologia & Multimeios, alcançou em 2003 sua terceira edição, perfazendo
um total de trinta concertos. Os eventos foram apresentados no Espaço
Cultural Sergio Porto, conhecido no meio cultural carioca por promover
espetáculos voltados para a experimentação de novas linguagens artísticas.
Para sua realização, contou com o patrocínio do RioArte, órgão da prefeitura
municipal do Rio de Janeiro. Essa intensa intervenção cultural tem servido
de estímulo para a criação de grupos de jovens compositores. O NuMExI
cumpre, assim, uma de suas maiores metas: a formação de público,
propiciando um contato sistemático da audiência com a linguagem musical
experimental e intermídia. O NuMExI tem ainda como objetivos: promover
oficinas, encontros e simpósios sobre as linguagens musicais
contemporâneas; realizar projetos de pesquisa pedagógica embasados na
música experimental e intermídia; criar um acervo de partituras, textos e
gravações, visando a pesquisa.
Dentro desses objetivos, estava a criação de acervo de partitura, textos e gravações das
significativas vertentes da composição musical dos séculos XX e XXI e a realização de
pesquisa pedagógica. No âmbito acústico, estava a exploração tímbrica em instrumentos
convencionais e pesquisa de fontes sonoras e, no âmbito eletroacústico, o som através de
meios eletrônicos e computação, bem como pesquisa de espacialização do som. No âmbito
multimeios, estava a integração da linguagem musical à linguagem visual, música-vídeo, artes
plásticas, cinema. Os aspectos multimeios poderiam ser ou não integrados à cena no estudo da
integração da linguagem musical à dramaturgia e às artes do movimento, à ópera
contemporânea, o teatro musical e a dança.
O piano como instrumento musical ocupa importante função na vida profissional
desses compositores, embora não tenha posição de tanto destaque no conjunto de suas obras.
Jocy de Oliveira é pianista solista com longa carreira de sucesso na música erudita.
Entretanto, o piano em sua obra não tem posição de destaque.
O piano é parceiro constante de Taborda que, embora tenha escrito poucas peças para
o instrumento, ainda faz uso deste para compor e para produzir sonoridades – e visualidades –
peculiares em sua forma preparada e processada.
48
Documento não paginado.
58
Pianista de formação e de extensa atuação profissional nos palcos, Vânia Dantas Leite
foi componente do grupo Ars Contemporanea,49 no Rio de Janeiro. A compositora trabalha
primordialmente com sons, deixando às notas musicais uma participação coadjuvante.
Contudo, muitas vezes explora a sonoridade de seu próprio instrumento de maneira
tradicional.
Tim Rescala é pianista e se utiliza largamente do piano no conjunto de sua obra. Luiz
Carlos Csekö utiliza o instrumento, desde o início de suas atividades composicionais, em suas
possibilidades expandidas, com técnicas de preparação e em seus recursos percussivos.
Para a execução das obras escolhidas, demandas diferenciadas e nada tradicionais,
típicas de obras de música cênica, começam por fazer com que os intérpretes busquem em
suas atuações habilidades além das que foram desenvolvidas no período de formação, uma
vez que a orientação formal dos pianistas concertistas, em geral, ainda não prevê treinamento
dirigido para tais especificidades. Determinados procedimentos composicionais abrem as
obras à improvisação de maneiras variadas e representam um desafio à criatividade artística
tradicionalmente exercida por músicos de concerto. Teatro, dança, literatura, artes plásticas,
iluminação, figurino, cenário e vídeo, bem como a arte da improvisação, constantes na
concepção musical dos autores, desafiam os intérpretes a mergulharem nas obras não apenas
como músicos/atores, mas também como parceiros na realização dos espetáculos.
Tudo isso move os instrumentistas em direção a um entendimento direto com o autor.
Trata-se de um tipo de trabalho que tende a se modificar a cada vez que se realiza.
Compositores e intérpretes podem se associar para construir caminhos criativos para a
viabilização das apresentações. Em diversas situações, o autor não anota o que pensa na
partitura, mas divide pessoalmente, de maneira direta com o intérprete, a sua concepção da
peça. Entre as diversas propostas possíveis das peças de música cênica, os músicos são
instigados a participarem como co-criadores das obras, como co-produtores.
Com relação à comunicabilidade de suas obras, os compositores estudados, que
conquistaram reconhecimento nacional e internacional, usam de liberdade e ousadia na arte
que produzem. Dessa forma, provocam certo espanto no público e polêmica no meio
especializado: o estranhamento diante do que é – ainda – novo.
49
O grupo Ars Contemporânea, fundado em 1977 por Ricardo Tacuchian e Guilherme Bauer, realizou
durante sete anos concertos que tinham o objetivo de divulgar o repertório de música contemporânea,
especialmente com obras de compositores brasileiros.
59
Leite menciona certa solidão em certo período – nos anos de 1980 – de seu percurso
no Rio de Janeiro, mas não em relação ao público. (informação verbal).50 No próprio meio
profissional, durante muito tempo esteve isolada em seu pioneirismo no ensino da música
eletroacústica no Rio de Janeiro. Em 1982, quando iniciou seus trabalhos como docente na
UNIRIO, lecionava Análise Musical e Música Experimental. Nessa época, já introduzia novos
conceitos da composição musical que surgiam em decorrência do uso de novas tecnologias. A
partir de 1986, então, criou a disciplina de Música Eletroacústica, que passou a fazer parte do
Curso de Composição. A compositora vislumbrou novos tempos à medida que percebeu
significativo aumento de músicos e outros profissionais aptos, capazes de compartilhar de sua
obra. Seu compromisso com o novo faz com que não se preocupe, em absoluto, com a crítica
ao seu trabalho, preferindo ser honesta com os próprios princípios e ideias: “Agradar a gregos
e troianos, ninguém consegue [...]. Há mais chance de agradar quando se faz um trabalho
honesto [...]”. (informação verbal).51 Gosta de ouvir as impressões causadas por sua obra nos
mais diversos tipos de plateia e se agrada do fato de cada pessoa perceber cada peça à sua
maneira.
Da mesma forma, Csekö é seguro em relação ao que faz. O reconhecimento que
almeja não é o da aprovação. Quer apenas instigar o público, assim como Jocy de Oliveira.
Como compositores de música contemporânea, pretendem fazer ouvintes/espectadores
pensarem, elaborarem o produto artístico e finalizarem o sentido das obras.
Taborda não pensa na receptividade do que cria. Cria, simplesmente.
Rescala está sempre surpreendendo as plateias. Os ouvintes/espectadores nunca sabem
em que momento poderão se deparar com o humor característico da obra desse autor ou se
vão apreciar peças que sugerem momentos de contemplação, que aguçam a capacidade
auditiva e cognitiva em experiências sonoras inusitadas.
O estudo de peças cênicas para piano desses autores, a partir da partitura e instruções
cênicas ou gravação, pretende examinar-lhes os seguintes aspectos: 1) Instrumental; 2)
Notação (2.1 partitura, 2.2 texto de instruções ou bula, 2.3 gráficos ou desenhos); 3)
Manipulação dos parâmetros sonoros (3.1 alturas, 3.2 durações, 3.3 texturas, timbres e
dinâmica; 3.4 articulação do espaço); 4) Interdisciplinaridade (4.1 diálogo com outras
linguagens artísticas, 4.2 envolvimento do compositor em funções paralelas tais como as
de intérprete, diretor de cena, coreógrafo, designer de cena, som e luz); 5) Cena (5.1
50
Entrevista com Vânia Dantas Leite (compositora), em sua residência, em Botafogo (RJ), em de 22 de
outubro de 2010. (Apêndice C). 51
Ibid., p. 211.
60
movimentação, ação e atuação cênica, 5.2 cena prevista em partitura ou texto de
instruções cênicas, 5.3 cenário e objetos de cena, 5.4 iluminação artística, 5.5 exposição
de relações e costumes típicos do meio musical, 5.6 sugestão de classificação entre os
termos de música cênica comentados neste trabalho); 6) Narrativa (6.1 linearidade, 6.2
texto, 6.3 relação entre palavras e sons); 7) Indeterminação (o acaso, o imponderável, o
efêmero na apresentação musical); 8) Tecnologias (uso de equipamentos); 9) Intérprete
(9.1 relação compositor-intérprete: interação no processo de realização da obra, 9.2
novo virtuosismo, 9.3 consciência do contexto de criação da obra, autoconsciência e
consciência da comunicabilidade do que está sendo apresentado); 10) Realização (10.1
Formação de equipe: associação entre profissionais da mesma área ou de áreas diversas,
10.2 Formação de grupos artísticos e movimentos culturais; 10.3 Espaços convencionais,
modificados ou alternativos de apresentação, 10.4 Relação com as plateias).
Em Dueto I+1 (1979), ocorre a colaboração entre três artistas: o artista plástico Milton
Machado – autor da ideia (concepção) da peça, e os compositores Vânia Dantas Leite e
Rodolfo Caesar, parceiros na composição/execução da obra. Há no momento da apresentação
a projeção da partitura, que se constitui de um desenho. A projeção do desenho, por sua vez,
constitui uma espécie de cenário, que se apresenta como elemento importante na realização da
peça.
As demais peças são caracterizadas, no gênero música cênica, como teatro
instrumental. Dimensões para quatro teclados, de Jocy de Oliveira (1967), prevê, em
partitura, ação expressamente teatral (atuação cênica). Em Caprichosa voz que vem do
pensamento, de Taborda (2012) também há atuação cênica do pianista. Não há partitura da
peça. Há gravação em vídeo. Es(x)tro(a)versão (1982) de Csekö não possui partitura com
notas musicais. O texto de instruções indica tanto os aspectos cênicos quanto os aspectos
musicais da peça. Em Estudo para piano (1989) de Rescala, a pianista fala e se movimenta de
acordo com a situação cênica que consta em partitura.
As peças estudadas remetem, cada uma à sua maneira, à música do período entre as
décadas de 1950 e 1970, quando a música contemporânea já havia reunido as suas três
características principais, segundo Mendes ([20--?] apud CATANZARO, 2003, p. 267): “a
não discursividade”, que é a não ocorrência de “um começo característico, um
desenvolvimento e um fim” nas peças; “a não periodicidade”, que é a ausência de uma
regularidade regida por uma fórmula de compasso fixa e a não dependência das alturas –
melodia – para a expressão musical criativa. Apenas na peça de Rescala, a não
discursividade relativa se reduz aos sons. Em Estudo para piano, há linearidade na cena.
61
Quanto ao tempo e as alturas, estes são meticulosamente planejados com a finalidade de
parecerem aleatórios, como se a pianista os estivesse inventando espontaneamente, mas são
detalhadamente escritos.
Outro aspecto comum entre as peças estudadas é a referência às atividades dos
músicos de concerto em situação de ensaio, na experimentação da sonoridade do piano, no
estudo solitário e dedicado, na suposta necessidade em demonstrarem sobriedade e elegância
em suas apresentações. A única peça que não faz referência a esse aspecto seria o Dueto I+1
de Milton Machado na versão de Leite e Caesar.
Nas cinco peças, a atuação cênica, a interferência criativa dos intérpretes na obra e até
mesmo as características físicas de cada um tornará cada interpretação altamente diferenciada
e personalizada – de maneira mais acentuada do que ocorre quando se trata de interpretação
de música tradicional para piano.
3.1 ES(X)TRO(A)VERSÃO, DE LUIZ CARLOS CSEKÖ
Es(x)tro(a)versão, de Luiz Carlos Csekö, foi composta no Rio de Janeiro entre os anos
de 1981 e 1982. A duração é ad libitum, uma vez que o tempo de execução depende das ações
e falas criadas pelo(a) intéprete. Classifica-se como Teatro instrumental porque possui
indicação de atuação cênica e iluminação artística. Nela, o piano solista é expandido. A
gravação audiovisual que serviu de referência para a análise foi realizada pela pianista Maria
Clara Gonzaga no auditório Onofre Lopes, na Escola de Música da UFRN, em Natal/RN, em
2013.
Essa peça exibe um(a) pianista em determinada situação de sua rotina profissional que
costuma ocorrer sem a presença do público. Como música resultante da cena,
Es(x)tro(a)versão apresenta piano expandido a partir dos sons produzidos exclusivamente
através de materiais/objetos da situação cênica: a chave do piano, o banco do piano, o banco
sendo ajustado, as tampas sendo abertas – do teclado e da caixa acústica – e o lenço que
supostamente o(a) pianista traria consigo para enxugar o suor das mãos, do rosto e do
instrumento. Utiliza a voz do próprio intérprete e sua movimentação cênica como
instrumentos da música. Prevê a movimentação de entrada com o som dos sapatos no piso –
supostamente de madeira – do palco, nos passos do(a) instrumentista e sua voz pedindo a
chave do piano que estaria trancado. Focaliza e supervaloriza com um canhão de luz
direcionado – que acompanha o intérprete em todos os seus movimentos, com todo o restante
do palco e plateia às escuras – as atitudes do(a) pianista na situação da cena, que simulam os
62
momentos de preparação dos intérpretes momentos antes do concerto, experimentando a
sonoridade das regiões do instrumento, aquecendo as articulações com escalas e arpejos.
Expõem uma sequência de ações típicas do comportamento desses profissionais da música de
concerto enquanto constrói, com a colaboração – co-criação – do intérprete, uma peça com
muitos fatores de indeterminação, que explora o instrumento e o instrumentista de maneira
não tradicional e, assim, produz impacto na apreciação da plateia.
A realização da peça exige articulação com equipe de colaboradores que conta com
uma pessoa responsável pela operação do canhão de luz e pela pessoa que ficará à disposição
para a entrega da chave do piano. Exige do intérprete que tenha práticas teatrais e capacidade
de invenção para improvisar ou criar previamente tanto a música – atuando, encenando,
interagindo sobre os materiais propostos pelo compositor – quanto o texto da sua fala no
início da execução.
3.1.1 Instrumental
Do piano expandido, a sonoridade não se restringe aos sons emitidos a partir de ação
direta no teclado. Ação indireta, com manipulação do teclado através de um objeto, também
ocorre. O(a) pianista passa um lenço pelo teclado do instrumento, produzindo sons que fazem
parte da música. Além desses, há os sons produzidos pela tampa do teclado, da tampa da caixa
acústica e da estante de partituras ao serem abertas. Da mesma forma acontece com o banco
do piano sendo ajustado e com a movimentação do pedal.
Há a manipulação indireta das cordas do piano: objetos de cena são utilizados como
instrumento da música. Os objetos são acessórios, do instrumento ou do instrumentista. Além
do lenço que já havia usado para manipular o teclado, há o ruído de um molho de chaves, que
contém a chave do piano, em movimento. O(a) pianista fará, propositalmente, as chaves
tilintarem. Deixará o molho cair no chão para apanhá-lo em seguida e, depois, deixá-lo cair
novamente, nas cordas do piano, enquanto abre a tampa da caixa acústica. Apanha-o mais
uma vez. Os sons a serem emitidos pelo(a) instrumentista têm início, na peça, através de seus
passos da caminhada no palco em direção ao instrumento na entrada e, ao final da
apresentação, do instrumento em direção à saída. São sons, portanto, emitidos através de seus
sapatos. O(a) pianista usa também a voz, logo no início da peça, para pedir as chaves do piano
a alguém – não determinado, que é, supostamente, a pessoa encarregada de zelar pelo palco e
pelo instrumento.
63
3.1.2 Notação
Nesta peça, a música é escrita através de palavras.
3.1.2.1 Partitura
Na partitura textual, Csekö (1982)52 descreve a peça:
Figura 2 - Partitura/texto original de Es(x)tro(a)versão, de Luiz Carlos Csekö
.
Fonte: Csekö (1982).53
3.1.2.2 Texto de instruções ou bula
Em anexo ao texto/partitura, observações gerais reforçam informações já contidas na
partitura textual tais como a necessidade de o piano estar trancado, no início da apresentação
(tampa da caixa acústica e tampa do teclado fechadas) e a utilização de um lenço – que deve
já estar com o pianista em sua entrada no palco – e de um molho de chaves “que produza
bastante som, nítidamente audível pela platéia”. (CSEKÖ, 1982).54
52
Documento não paginado. 53
Documento não paginado. 54
Documento não paginado.
64
O reforço das informações já contidas no texto/partitura demonstra a especial
importância que tais aspectos possuem e a preocupação do compositor em deixar isso muito
claro. É muito comum, segundo depoimento do próprio Csekö 55 , que os músicos que
apresentam música cênica deixem de realizar algum ou alguns dos aspectos cênicos das peças
ou por dificuldade em formar equipe e conseguir equipamentos adequados, ou pela
dificuldade em desenvolver suas habilidades cênicas ainda não treinadas.
3.1.2.3 Gráficos ou desenhos
Não há gráficos ou desenhos na partitura de Es(x)tro(a)versão.
3.1.3 Manipulação dos parâmetros sonoros
Alturas, durações, timbres e texturas são sugeridos através de palavras na partitura
textual e conduzidos com larga margem de criação pelo(a) intérprete.
3.1.3.1 Alturas
As alturas são previstas, mas não determinadas. As alturas indicadas inicialmente são
as cinco últimas notas do registro agudo e as cinco últimas notas do registro grave, além de
notas isoladas nos registro médio, grave, e agudo. Há, ainda, escalas não definidas: algumas
apenas com a mão direita e outras a serem executadas simultaneamente a duas mãos em toda
extensão do piano.
3.1.3.2 Durações
O ritmo dos passos sonoros sugere regularidade e forte intensidade, em decorrência da
notação resolutamente. Entretanto, as durações nessa peça, de maneira geral, se constituem de
ritmo irregular – nas notas do registro agudo e grave e de notas longas nos variados registros
do instrumento.
55
Entrevista com Luiz Carlos Csekö (compositor) em sua residência, no Flamengo (RJ), em 22 de
setembro de 2010. Trecho não gravado.
65
A indicação de notas longas se dá através das recomendações de que após tocar em
fortíssimo e com pedal uma nota em determinado registro, o(a) pianista assuma “[...] postura
de ouvir com atenção” e execute “[...] três notas, cada uma em registro diferente [...]”,
enquanto procura manter o pedal ouvindo atentamente por algum tempo. Em outro momento,
há indicação execução de escalas, “[...] ultra rapidamente [...]”. (CSEKÖ, 1982).56
Pausas são definidas em dois momentos em que a atuação cênica recomendada não
produz som. As indicações dessas pausas são redigidas, no texto/partitura da seguinte forma:
“[...] silêncio curto [...], [...] súbito interromper escalas e pedal [...] e [...] assumir uma postura
de quem vai tocar a qualquer momento, olhar para o teto [...]”. (CSEKÖ, 1982).57
3.1.3.3 Texturas, timbres e dinâmica
Pela ação dos dedos no teclado, no que diz respeito à textura, soam notas isoladas
quando o(a) pianista está experimentando os sons do instrumento. As indicações de tocar –
casualmente – com a mão direita as últimas cinco notas do registro agudo, algumas vezes,
tocar algumas escalas, ultra rapidamente, mão direita, tocar uma nota no registro médio e
tocar três notas, cada nota em um registro diferente sugerem que tais sons sejam emitidos um
de cada vez . Até os ruídos do piano expandido soam isoladamente. (CSEKÖ, 1982).
Quanto às teclas que serão acionadas através do lenço que limpa o teclado, ficará a
cargo do(a) pianista decidir se soarão individualmente ou como clusters. As notas que soam
simultaneamente surgem através da recomendação de “[...] tocar algumas escalas a duas mãos
[...]”. (CSEKÖ, 1982).58
A expressão “brutal” utilizada para determinado trecho da peça tanto pode ser
compreendida como ataque (toque) violento ou como andamento veloz. As variações de
timbres ocorrerão por conta desse toque, dos ataques em staccato e da execução com pedal,
além dos eventos sonoros ruidosos da movimentação cênica. A qualidade do som desses
eventos é variável. Sapatos com ou sem salto, por exemplo, farão significativa diferença na
sonoridade produzida. (CSEKÖ, 1982).59
56
Documento não paginado. 57
Documento não paginado. 58
Documento não paginado. 59
Documento não paginado.
66
As curvas dinâmicas ocorrem a partir das seguintes expressões utilizadas no
texto/partitura: “[...] Passos sonoros – resolutamente [...]” – que sugere sonoridade forte,
piano, staccato, dinâmica ad libitum, fortíssimo brutal e tocar tensamente. (CSEKÖ, 1982).60
3.1.3.4 Articulação do som no espaço
As curvas dinâmicas se relacionam com a articulação dos sons no espaço através dos
passos sonoros, por exemplo. No momento em que, na peça, o(a) pianista percebe que o piano
está trancado, pede a alguém as chaves do instrumento. Pode, nesse momento, percorrer
novamente o trajeto entre o piano e a entrada do palco. Pode falar se movimentando em cena
ou falar sem sair do lugar. Pode descer do palco, sair e entrar novamente. As variáveis da
articulação do espaço na exploração do movimento do som com os passos sonoros, com a voz
e com as ações cênicas que se utilizam de objetos/instrumentos musicais se dão a partir de um
encontro/combinação entre as indicações do texto/partitura e as decisões do intérprete.
3.1.4 Interdisciplinaridade
Há, nesta peça, intenso diálogo com a linguagem teatral, que inclui ação,
movimentação e atuação cênica, objetos de cena e iluminação artística.
3.1.4.1 Diálogo com outras linguagens artísticas
Esta peça possui aspectos específicos da linguagem teatral tais como iluminação
artística, exploração de objetos de cena e atuação cênica.
3.1.4.2 Envolvimento do compositor em funções paralelas tais como as de intérprete, diretor
de cena, coreógrafo, designer de cena, som e luz
O próprio compositor fez o projeto da iluminação (light design), que descreveu na
partitura, em anexo ao texto de instruções cênicas/musicais.
3.1.5 Cena
60
Documento não paginado.
67
A situação cênica é sugerida pela movimentação/ação cênica descrita na partitura
textual.
3.1.5.1 Movimentação, ação e atuação cênica
Há indicações de atuação cênica, que envolve movimentação cênica e ação cênica.
A movimentação cênica prevista é a de entrada e saída do palco, além da sequência de ações
relativas aos momentos que antecedem a execução, tais como abrir a tampa do teclado,
apanhar do chão a chave do piano que havia caído, abrir a tampa da caixa acústica, apanhar
das cordas do piano a chave que houvera caído mais uma vez, ajustar o banco do piano,
preparar o corpo na postura peculiar dos pianistas de concerto. A ação cênica se relaciona
com atitude de preparação mental, habitual dos pianistas, de olhar para o alto como sinal de
concentração para a atividade musical. A atuação cênica se dá, em sua plenitude, com a fala,
em que o(a) pianista tem que criar seu próprio texto para pedir a alguém a chave do piano e
realizar passos sonoros resolutamente. A recomendação de passos resolutos não remete
apenas à sonoridade dos passos, mas também à postura, à maneira com que o(a)
instrumentista adentra o palco e se retira dele.
3.1.5.2 Cena prevista em partitura ou texto de instruções cênicas
A situação da cena na partitura/texto sugere o momento anterior ao concerto. Parece
simular a busca de concentração do(a) pianista, enquanto experimenta a sonoridade do
instrumento, a partir da seguinte instrução: “[...] postura de ouvir com atenção”. (CSEKÖ,
1982).61
Tanto a sonoridade da peça quanto a atuação cênica indicadas retratam a maneira
tradicional como os pianistas se preparam para iniciar uma execução: abrem o instrumento,
limpam-no, experimentam-lhe a sonoridade, ajustam o banco, concentram-se. O texto de
instruções indica: “[...] assumir postura de quem vai tocar a qualquer momento, olhar para o
teto, levantar-se e sair do palco resolutamente – com passos sonoros”. (CSEKÖ, 1982).62 Ao
fim do que parecia ser a preparação para a execução, que inclui a preparação do instrumento e
61
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Documento não paginado.
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experimentação de sua sonoridade, o processo é bruscamente interrompido. O(a) pianista se
retira de cena e a peça termina.
3.1.5.3 Figurino, cenário e objetos de cena
A partitura/texto sugere figurino e cenário tradicionais das apresentações pianísticas.
O figurino tradicional é clássico e discreto, muitas vezes preto e longo. O cenário típico dos
recitais de piano é o próprio piano num palco vazio. Nesse cenário típico, quando há
utilização de outros componentes, estes são arranjos de flores, tapete sob o instrumento,
cartaz, faixa, painel ou banner dos promotores do evento em questão.
3.1.5.4 Iluminação artística
A iluminação artística tem indicação detalhada. Um canhão de luz com facho circular
acende subitamente e, em seguida, o(a) pianista entra no palco. O foco segue o(a)
instrumentista em todos os seus movimentos durante toda a peça. A plateia e todo o restante
do espaço no palco fora do raio de ação do(a) pianista devem estar às escuras.
3.1.5.5 Exposição de relações e costumes típicos do meio musical
Os pianistas de concerto, nos momentos que precedem a execução de cada peça,
pensam, respiram, concentram-se, fecham os olhos, fitam o teclado, fitam o infinito. Esfregam
as mãos, enxugam as mãos em um lenço ou na própria roupa. Enxugam, em alguns casos, o
próprio teclado que pode estar molhado pelo suor ou pela umidade ambiente. Às vezes
somente fingem que enxugam, num movimento repetido apenas pela força do hábito, mesmo
quando não há suor a ser enxugado, como num ritual. Da mesma forma ocorre com o ajuste
do banco do instrumento e a postura de concentração para o início da execução.
A preparação dos pianistas momentos antes da apresentação constitui, de fato, a cena
proposta em Es(x)tro(a)versão.
3.1.5.6 Sugestão de classificação entre os termos de música cênica comentados neste trabalho
Es(x)tro(a)versão se configura como teatro instrumental, uma vez que propõe
atuação cênica para o(a) pianista.
69
3.1.6 Narrativa
Há uma sequência linear de ações, embora o tempo da cena esteja deslocado do que
normalmente ocorre em uma apresentação musical. O tempo de preparação para a
apresentação em Es(x)tro(a)versão acontece no momento da apresentação e o que seria o
momento, em si, do concerto, não é apresentado.
3.1.6.1 Linearidade
Há uma sequência direta na narrativa musical/cênica dentro da situação simulada.
Entretanto, esta foge à característica específica das apresentações tradicionais, em que a
situação da preparação e experimentação do instrumento ocorre antes da entrada do público
na sala de concerto.
3.1.6.2 Texto
O título não deixa de fazer parte do texto da peça, já que traz significado verbal na
música. No título, existem pelo menos quatro leituras possíveis. Sem as letras situadas entre
parênteses, a palavra extroversão remete a exteriorização de sentimentos. No acréscimo da
letra “a”, entende-se aversão ao que é de fora ou extroaversão. Ao trocar-se a letra “x” pela
letra “s”, antes da palavra aversão, seria formada a palavra estroaversão, o que significaria
aversão ao estro que, por sua vez, assim se define: “Conjunto de fenômenos e
comportamentos que precedem e acompanham a ovulação nos mamíferos de sexo feminino.
Inspiração, veia, engenho poético, imaginação artística: estro poético. Desejo sexual”.
(ESTRO, [20--?a]). Pode também ter o sentido de “entusiasmo artístico, riqueza de
imaginação”. (ESTRO, [20--?b]. Sem a letra “a” de aversão, a palavra passaria a ser versão.
Dessa forma, o termo estroversão significaria versão para estro.
O texto do(a) pianista pedindo as chaves é indeterminado. Apenas indica que a voz
deve ser “[...] audível pela platéia”. (CSEKÖ, 1982).63 Portanto, as palavras a serem usadas
serão decididas por cada intérprete. O texto a ser criado pelo(a) pianista para solicitar a chave
do piano poderá ter como referência tais informações embutidas no título. O(a) intérprete terá
oportunidade de construir a situação emocional de seu próprio personagem no âmbito de seu
63
Documento não paginado.
70
ambiente profissional – o instrumento no palco – no momento anterior ao de uma
apresentação.
A iluminação artística, que consiste em um facho circular de luz sobre o(a) pianista e
toda sua movimentação, enquanto todo o restante do palco e a plateia estão às escuras, dá
destaque total ao intérprete e sua atuação. Exige deste que providencie não apenas o
equipamento necessário como também uma pessoa responsável pela operação da luz. Além
desse, outro colaborador precisará participar da apresentação. Alguém que entregue o molho
de chaves que contem a chave do piano – que será a pessoa responsável por zelar o palco e/ou
o instrumento ou alguém que se passe por essa pessoa – no momento da apresentação.
3.1.6.3 Relação entre palavras e sons
A sonoridade da voz do(a) pianista, em sua intensidade e entonações, terá relação
direta como o texto que ele(a) mesmo(a) terá que criar.
3.1.7 Indeterminação (o acaso, o imponderável, o efêmero na apresentação musical)
Além do texto do (a) pianista pedindo as chaves, a duração da peça é indeterminada,
bem como as alturas e o timbre.
Com relação aos ruídos provenientes dos passos sonoros, o tipo de calçado, o tipo de
piso do palco e até o peso e a força física do instrumentista fazem diferença na música. O
timbre do ruído das chaves dependerá do tamanho e quantidade das mesmas no molho.
Os sons emitidos de forma tradicional pelo teclado são notas não definidas em
partitura. O texto instrui apenas a região em que devem ser tocadas, por exemplo: registro
médio, as cinco últimas notas do registro grave e as cinco últimas notas do registro agudo.
(CSEKÖ, 1982).
Sons são emitidos tanto involuntária quanto aleatoriamente – ou quase que
acidentalmente – pelo movimento do lenço que deve ser utilizado para limpar as teclas do
instrumento. Outros aspectos de indeterminação na peça estão nas escalas indicadas na
partitura de maneira a serem escolhidas pelo(a) intérprete, contanto que sejam executadas
abrangendo toda a extensão do teclado, fortíssimo – brutal com relação intervalar entre a mão
direita e a mão esquerda não definida pelo compositor. (CSEKÖ, 1982).
71
A indeterminação nessa peça, portanto, abrange todos os seus aspectos
musicais/cênicos, deixando ao acaso – às características pessoais e decisões de cada intérprete
– a definição de tudo que não foi detalhado em partitura.
3.1.8 Tecnologias(uso de equipamentos)
Faz-se necessário utilizar canhão de luz de facho circular.
3.1.9 Intérprete
A atuação do(a) intérprete é tanto musical quanto teatral.
3.1.9.1 Relação compositor-intérprete: interação no processo de realização da obra
Não houve interação do compositor com a intérprete para a realização da obra. O
compositor manifestou preferência em deixar que os intérpretes tirem suas próprias
conclusões a partir do que está notado. Prefere não explicar o que anotou no texto/partitura,
deixando os instrumentistas totalmente entregues às suas próprias conclusões em relação ao
que está escrito.
3.1.9.2 Novo virtuosismo
Se o tempo musical não é regular, não tem fórmula de compasso, pulso ou qualquer
outra forma de medição da maneira com que as ações/sons da peça se desenvolvem, esse
tempo é o tempo do intérprete e varia conforme a sua vontade, sutilmente regido pelo
texto/partitura. As alturas dos sons que o(a) pianista emite são parcialmente previstos num
breve esboço do que deve acontecer, de acordo com a disposição e criatividade do músico. A
respeito dessa característica de Es(x)tro(a)versão, que se estende ao conjunto da obra de
Csekö, ele mesmo diz:
Eu convido o intérprete a participar – e a participar em nível composicional.
Obviamente não com 50% porque aí, na verdade, eu estaria sendo
preguiçoso, mas há uma proporção muito grande de participação do
72
intérprete, de contribuição do intérprete para o meu trabalho... sempre,
sempre, sempre, sempre. (informação verbal).64
3.1.9.3 Consciência do contexto de criação da obra, autoconsciência e consciência da
comunicabilidade do que está sendo apresentado
A consciência musical/cênica da peça é fundamental para que o intérprete possa
transmitir ao público a proposta do compositor: no caso, a autoconsciência do(a) pianista
como artista exposto(a) no palco como protagonista da cena. Consciência corporal – inclusive
da própria voz – é, nesse caso, condição para execução dessa obra, além de envolvimento
pessoal na organização dos elementos necessários à sua realização.
3.1.10 Realização
A formação de equipe, a atuação teatral e a iluminação cênica provocam demandas
não tradicionais no processo de produção artística e executiva da apresentação musical.
3.1.10.1 Formação de equipe: associação entre profissionais da mesma área ou de áreas
diversas
Além de agente que opere o canhão de luz, há a necessidade de que alguém
(provavelmente algum zelador da sala de concerto e/ou do instrumento) entregue o molho de
chaves no momento previsto. Não são definidos nem o local e nem a maneira como as chaves
serão entregues ao pianista. Tudo isso deverá ser combinado entre o(a) pianista e ess(a)
colaborador(a). A peça ressalta, de maneira subliminar, a importância dos funcionários de
apoio que zelam pelo instrumento, pelo palco, pela sala de concerto.
3.1.10.2 Formação de grupos artísticos e movimentos culturais
A formação de equipe sempre instiga, de alguma forma, a formação de grupos
artísticos que permaneçam em colaboração para outras obras e apresentações.
64
Entrevista com Luiz Carlos Csekö (compositor) em sua residência, no Flamengo (RJ), em 22 de
setembro de 2010. (Apêndice A, p. 170).
73
3.1.10.3 Espaços convencionais, modificados ou alternativos
A peça sugere realização em sala de concerto tradicional.
3.1.10.4 Relação com as plateias
O foco de luz que acompanha o(a) intérprete com a plateia às escuras chama atenção
para a relação tradicional do público com os solistas, que costuma ter destaque absoluto nesse
tipo de apresentação. Entretanto, os ouvintes/espectadores são surpreendidos ao verem em
destaque o(a) pianista, não em sua a atividade principal no momento da apresentação do
repertório preparado, mas, sim, no momento de preparação para essa apresentação. O
destaque desse momento, de alguma forma, instiga a reflexão acerca das relações entre
público e artista. O fato de exibir o(a) pianista cumprindo etapa de atividade profissional em
nada glamourosa – como qualquer outro profissional de outras áreas – pode retirar
parcialmente a aura divinizada do(a) solista. Por outro lado, a cena pode ser compreendida
como um making-of da apresentação musical – o que poderia, aí sim, reforçar sua tradicional
aura divinizada e glamourizada.
3.2 ESTUDO PARA PIANO, DE TIM RESCALA
Tim Rescala compôs Estudo para piano em 1989, no Rio de Janeiro. A peça tem
duração de três minutos e vinte segundos e classifica-se como teatro instrumental – com
atuação cênica. Piano solo gravado pela pianista Maria Teresa Madeira na Sala Baden
Powell, no Rio de janeiro/RJ no ano de 2002 serviu como referência para a presente análise.
O conflito dos pianistas entre a vontade de criar livremente a própria interpretação e os
estudos mecânicos e repetitivos do instrumento são o foco da narrativa. A atividade artística
do(a) pianista que se depara com o cotidiano na busca da perfeição técnica provoca conflito
entre a estudante – personagem – e o piano. No entanto, torna-se claro que, ao libertar-se dos
exercícios puramente técnicos e expressar-se descontraidamente através da música, a jovem
pianista encontra a satisfação e o prazer relativos às atividades de criação e invenção.
A peça transparece humor na medida em que exibe, no palco, os bastidores dos
estudos do instrumento. A aura divinizada dessa atividade artística é, de certa forma,
quebrada, nessa situação. A elegância tradicional dos recitais de piano é destituída pela
informalidade do comportamento – inclusive da fala – da pianista, que é protagonista na cena.
74
Essa peça exige excelência técnica para a execução do texto musical de alto nível de
elaboração em relação à utilização do instrumento musical simultânea à interpretação teatral
do texto falado em ritmo totalmente determinado na partitura.
3.2.1 Instrumental
O piano, executado de maneira tradicional, ao estilo dos períodos clássico e romântico,
se intercala à execução de música de linguagem contemporânea, com clusters e com inserção
da voz falada, exigindo excelência técnica da pianista ao instrumento.
3.2.2 Notação
A notação musical de Estudo para piano é tradicional.
3.2.2.1 Partitura
A notação musical é detalhada. O compositor faz uso de sistema de três pentagramas,
como ocorre quando se escreve para piano e canto. O texto escrito para ser falado pela
instrumentista é anotado sobre figuras rítmicas.
3.2.2.2 Texto de instruções ou bula
Não há texto de instruções ou bula na peça. A notação musical tradicional e detalhada
prescinde de instruções complementares. As indicações cênicas não são tão minuciosas e
mesmo assim não possuem recomendações anexas à partitura.
3.2.2.3 Gráficos ou desenhos
Não há qualquer tipo de gráfico ou desenho fora da notação tradicional. Mesmo a
notação de linguagem contemporânea utilizada é amplamente difundida no meio musical: não
exigiu do compositor a criação de novos meios para fins específicos nessa peça.
3.2.3 Manipulação de parâmetros sonoros
75
A manipulação de alturas, durações, texturas e timbres baseia-se, alternadamente, nas
características da literatura pianística clássica e romântica e da contemporânea.
3.2.3.1 Alturas
Entre os quarenta e sete compassos da peça, a mesma citação, mais ou menos longa,
do trecho inicial do estudo op. 60 n.1 de Johann Cramer ocorre entre os compassos 1 e 4, 8 e
10, 16 e 17, 45 e 47. (CRAMER, [18--?]).
Os três fragmentos musicais que intercalam as citações apresentam dois tipos de
configuração: uma com base nos modos de composição clássica e romântica e outra com base
nas composições de linguagem contemporânea.
O primeiro desses fragmentos, compreendido entre os compassos 5 e 7, apresenta
melodia na mão direita com acompanhamento que se refere ao Baixo d‟Alberti na mão
esquerda, finalizando em cadência suspensiva.
O segundo, entre os compassos 11 e 15, é similar ao anterior, possuindo textura mais
densa.
O terceiro, entre os compassos 18 e 43 acordes construídos sobre intervalos de sétimas
e quartas, em progressão cromática ascendente, conduz ao ápice num cluster fortíssimo com
as duas mãos – uma na região grave, outra na região aguda do instrumento. Segue trecho
atonal, constituído por arpejos, escalas e acordes em saltos, que termina em uma sequência de
clusters violentos.
Após fermata sobre pausa, surge melodia delicada na região aguda do instrumento.
Novamente, o acompanhamento faz referência ao baixo d‟Alberti. O ambiente tonal torna a
ficar claro. Acordes cheios bordam melodia romanticamente desenhada. O acompanhamento,
na mão esquerda também se torna mais denso. A melodia cita mais uma vez o Estudo de
Cramer para encerrar a obra, que termina em um arpejo descendente desvinculado de
tonalidade, imediatamente seguido, dentro do mesmo compasso final, de dois acordes que
delineiam cadência perfeita em Dó Maior.
3.2.3.2 Durações
A peça ocorre em compasso quaternário. Compassos de dois tempos (2/4) ocorrem em
alguns – três – momentos e um compasso ternário (3/4) ocorre uma única vez. Essas variações
na fórmula de compasso coincidem com os momentos do texto em que a fala é reticente –
76
“Mas eu gosto de piano, mas às vezes me dá uma vontade de... Ah, bobagem!” – ou surgem
quando a melodia acompanhada ao estilo romântico sublinha a fala – “só mesmo o um piano,
meu velho e bom piano faz com que eu me esqueça dessa imensa solidão/ Eu paro de chorar e
volto a estudar”. (RESCALA, 1989).65 O compositor recomenda andamento inicial em que a
semínima seja equivalente a 132 e redução para semínima equivalente a 90 quando a fala se
inicia. O andamento 132 vale para os momentos de citação ao Estudo de Cramer e para a
seção em que o personagem se enfurece, entre os compassos 16 e 25. Esse trecho é
construído com polirritmias em tercinas, quintinas e septinas, que inclui fusas velozes. As
variações dos valores funcionam para expressar o estado de espírito do personagem na cena.
3.2.3.3 Texturas, timbres e dinâmica
A textura torna-se mais densa conforme a peça se desenvolve, a partir do segundo
entre os três trechos em que as citações do Estudo de Cramer op. 60 n.1 ocorrem. Os timbres
e a dinâmica decorrentes da execução se modificam de acordo com a textura. À medida que
esta se torna mais pesada, exige execução mais forte e produz timbre decorrente de toque
mais agressivo. Mais uma vez, a música, com suas variações de textura, timbres e dinâmica,
está a serviço da narrativa, na peça.
3.2.3.4 Articulação do som no espaço
A articulação do espaço não ocorre na música e sim na cena. O compositor recomenda
movimentação do(a) pianista, que pode ter implicações sonoras através da entrada saltitante
do personagem no palco, pela ação do(a) intérprete em dar as costas ao teclado no momento
do ápice da peça – em que, inclusive, bate a tampa do teclado produzindo som – e pela
possível fala direcionada para a frente do piano ou para a plateia, conforme a atuação cênica.
65
Documento não paginado.
77
Figura 3 - Fragmento da partitura original de Estudo para piano, de Tim Rescala
Fonte: Rescala (1989).66
3.2.4 Interdisciplinaridade
A interdispilinaridade nessa obra ocorre entre música e teatro.
3.2.4.1 Diálogo com outras linguagens artísticas
66
Documento não paginado.
78
A interdisciplinaridade se relaciona à teatralidade da peça, que possivelmente inclui
figurino, cenário e objetos de cena.
3.2.4.2 Envolvimento do compositor em funções paralelas tais como as de intérprete, diretor
de cena, coreógrafo, designer de cena, som e luz.
O compositor é o autor do texto e é o diretor de cena. Entretanto, nem sempre estará
presente no processo de futuras realizações da obra. Segundo o que está anotado em partitura,
haverá margem para significativas modificações da interpretação musical/cênica no que se vê
e ouve na gravação que ocorreu na Sala Baden Powell com a pianista Maria Teresa Madeira.
3.2.5 Cena
A cena é descrita na partitura.
3.2.5.1 Movimentação, ação e atuação cênica
Nas instruções anotadas pelo compositor na partitura, há indicação de movimentação
cênica: “A pianista, visivelmente feliz, corre brejeira e saltitante em direção ao piano. Senta-
se, dá um suspiro apaixonado e começa o seu „estudo diário‟”. (RESCALA, 1989).67 Quanto à
atenção à entrada e saída do palco, mesmo quando não há indicações cênicas na partitura ou
em anexo, Rescala observa: “[...] Isso, em si, já é uma postura cênica. Entrar no palco e se
posicionar diante de uma plateia, em si, já é”. (informação verbal).68
Na música presencial, em que os intérpretes se apresentam para os ouvintes, os
aspectos visuais/cênicos ocorrem obrigatoriamente. Dessa maneira, pode-se concluir que os
músicos, mesmo não sendo atores e mesmo sem qualquer intenção de exercerem teatralmente
suas práticas interpretativas, quando adentram o palco, estão em cena.
Em Estudo para piano, a pianista deve começar a tocar com muito entusiasmo, depois
com menos entusiasmo. E, a cada compasso, vai perdendo o entusiasmo até que desanima-se
e inicia a fala. Entusiasma-se novamente. Logo em seguida, o entusiasmo vai diminuindo.
(RESCALA, 1989).
67
Documento não paginado. 68
Entrevista com o compositor Tim Rescala, no Estúdio da Glória, na Glória (RJ), em 15 de outubro de
2010. (Apêndice B, p. 189).
79
A atuação cênica se configura quando as instruções se tornam teatralmente mais
complexas: “Empolga-se de novo mas nem tanto, até que se enfurece”. (RESCALA, 1989).69
Queixa-se dos estudos repetitivos do instrumento. Irrita-se, demonstra grande indignação. A
pianista se vira de costas para o teclado. Retorna para recomeçar a tocar e comenta como, por
outro lado, o piano lhe faz bem. Assim, comovida, explica a causa de permanecer dedicada
aos estudos que, em alguns momentos, tanto a aborrecem.
3.2.5.2 Cena prevista em partitura ou texto de instruções cênicas
Instruções em partitura configuram uma estudante de música que inicia seus estudos
diários ao piano e logo expressa sua insatisfação com a monotonia do cotidiano dessa
atividade, na forma como lhe é exigida. Após demonstrar grande irritação, arrepende-se de
maldizer o instrumento que tanto lhe faz bem nos momentos em que se permite tocá-lo para o
próprio deleite.
Apesar de não haver escrito determinados detalhes, o compositor, em depoimento a
este trabalho, revela intenções não anotadas que Maria Teresa Madeira incorporou em sua
interpretação. Rescala diz que o personagem da estudante de piano “[...] é uma menina que,
na verdade, é obrigada a estudar piano. Começa a se revoltar com aquilo até que esmurra o
piano. Bate nele e bate a tampa. Depois, pede desculpas. Faz carinho no piano, conversa com
ele”. (informação verbal).70 E revela, ainda, outras intenções não levadas ao palco: “[...] A
minha intenção era que o piano reagisse. O ideal, para mim, seria que o piano falasse”.
(informação verbal).71
3.2.5.3 Figurino, cenário e objetos de cena
As instruções de cena contidas na partitura apresentam intérprete do sexo feminino. O
personagem não é, necessariamente, criança – apenas adentra o palco saltitante. O
compositor, que dirigiu a cena da gravação audiovisual com a pianista maria Teresa Madeira,
apresentou o personagem caracterizado como uma pequena instrumentista, mas não deixou
69
Documento não paginado. 70
Entrevista com o compositor Tim Rescala, no estúdio da Glória, na Glória (RJ), em 15 de outubro de
2010. (Apêndice B, p. 189). 71
ENTREVISTA..., loc. cit.
80
isso claro na partitura. O texto descreve a pianista como uma aprendiz do instrumento e por
isso inspira figurino infantil ou adolescente.
Não há indicação de cenário ou de objetos de cena.
3.2.5.4 Iluminação artística
Não há indicação de iluminação artística. Esta se torna, então, opcional. Deverá se
relacionar com a concepção geral da encenação, o que inclui cenário e figurino.
3.2.5.5 Exposição de relações e costumes típicos do meio musical
A cena retrata o cotidiano dos estudos de piano tradicional/erudito: estudos repetitivos
de música tradicional com ênfase nos séculos XVIII e XIX, que exigem dos alunos muitas
horas diárias de estudo repetitivo e solitário. Esse cotidiano, o próprio compositor da peça
vivenciou. Declarou, a respeito disso que, em determinada época desse período como
estudante de piano, ficou aborrecido com a rotina acadêmica, que considerava cansativa,
entediante e enfadonha. (informação verbal).72
3.2.5.6 Sugestão de classificação entre os termos de música cênica comentados neste trabalho
Esta peça se configura como teatro instrumental, uma vez que demanda atuação
cênica da pianista.
3.2.6 Narrativa
A narrativa é direta.
3.2.6.1 Linearidade
A narrativa é direta. A cena tem começo, meio e fim bem definidos. A estudante
alegra-se no momento em que vai iniciar seus estudos diários, mas logo se aborrece com um
72
Entrevista com o compositor Tim Rescala, no estúdio da Glória, na Glória (RJ), em 15 de outubro de
2010. (Apêndice B).
81
Estudo do século XIX composto especialmente para o condicionamento técnico dos
estudantes ao instrumento. Depois que maldiz o piano, desculpa-se e recomeça a tocar, dessa
vez expressando-se artisticamente, da maneira que lhe apraz. Para encerrar a peça, volta a
realizar os estudos técnicos inicialmente apresentados.
3.2.6.2 Texto
É o texto que dá linearidade à peça. O texto é de autoria do próprio Rescala (1989)73
da peça:
Eu gosto de estudar piano, mas às vezes não sei... mas às vezes... Ah,
bobagem... deixa para lá...
Mas eu gosto de estudar piano, mas às vezes, não sei, às vezes me dá uma
vontade de... Ah, bobagem!
Mas até que eu gosto de estudar piano, mas às vezes me dá uma agonia, um
nervoso de ficar sempre tocando a mesma coisa todo dia sem parar: esses
arpejos, escalas, acordes que eu não suporto, que eu não aguento, mas que eu
tenho que tocar se eu quiser me formar nesta escola desse piano que eu
odeio! Odeio! Merda de piano! Ah!
(Pede desculpas e acaricia o instrumento)
Mas quando estou sozinha – e eu vivo tão sozinha – só existe uma coisa,
apenas uma coisa capaz de me acalmar e apaziguar o meu coração: só
mesmo o meu piano, meu velho e bom piano faz com que eu esqueça desta
imensa solidão.
Eu paro de chorar e volto a estudar.
Na partitura, o texto é todo metricamente guiado por figuras rítmicas definidas nos
compassos sobre as notas que devem ser executadas ao piano, como canto falado:
73
Documento não paginado.
82
Figura 4 - Fragmento inicial da partitura de Estudo para piano, de Tim Rescala
Fonte: Rescala (1989).74
74
Documento não paginado.
83
3.2.6.3 Relação entre palavras e sons
Os ambientes emocionais sugeridos pelo texto com momentos de irritação, fúria ou
tranqüilidade e bem-estar da pianista são acompanhados pela música em relação a texturas,
tensões, durações e intensidade. Durante os diversos momentos do texto, o piano pontua a fala
na primeira parte, até que, conforme os ânimos da pianista/personagem vão-se inflamando,
ocorram, além de acordes, escalas, arpejos e clusters violentos, em trecho de alto nível de
dificuldade técnica. Quando os ânimos se acalmam, a pontuação da fala se torna delicada,
dedilhada no registro agudo do instrumento e, depois, passa a ser acompanhada ao estilo
Romântico.
3.2.7 Indeterminação (o acaso, o imponderável, o efêmero na apresentação musical)
Não há previsão de abertura a improvisação na peça. Entretanto, mesmo com notação
tradicional detalhada e texto integralmente escrito, houve margem para a interpretação
criativa da pianista. Dirigida pelo compositor, ela pôde sugerir e acrescentar à concepção da
peça a sua própria visão artística na execução/atuação.
3.2.8 Tecnologias (uso de equipamentos)
Apesar de não exigir qualquer tipo de equipamento para ser executada, a peça pode é
realizada sob iluminação artística, que confere à cena certa aura de ficção – embora o
compositor esteja se referindo a um tema que corresponde à realidade de grande parte dos
estudantes de piano tradicional/erudito. O uso de microfone será necessário, caso o texto seja
pronunciado de maneira mais intimista – não há recomendação, na partitura, que indique que
o texto representa uma conversa com o público. Falando consigo mesma, por exemplo, a
pianista não projetaria a voz, nem se viraria para a plateia. Nesse caso, os sons do piano talvez
encobririam o som da voz. Essa necessidade deve ser avaliada também de acordo com as
características acústicas da sala de concerto.
3.2.9 Intérprete
Na execução de Maria Teresa Madeira, houve interação entre compositor e intérprete
num trabalho de colaboração na realização da obra.
84
3.2.9.1 Relação compositor-intérprete: interação no processo de realização da obra
Diálogos entre Madeira e Rescala desencadearam a iniciativa do compositor em
escrever algo que fosse condizente com o desejo da pianista com relação às práticas
interpretativas. Além de ter atuado também como bailarina profissional, Madeira teve
oportunidade de vivenciar práticas teatrais ainda quando estudante. Ainda nesse período, ao
ter contato com o compositor Rescala, vinculou-se a ele a partir do momento em que
externou-lhe sua vontade de “[...] tocar alguma coisa erudita, mas que tivesse humor, que
fosse uma coisa diferente” (informação verbal)75, alguma coisa com a qual se identificasse.
Ela já havia “[...] ouvido algumas coisas: aquela peça do Cage, do silêncio76, e outras coisas
cênicas”. (informação verbal).77
3.2.9.2 Novo virtuosismo
Nessa peça, a pianista toca e fala ao mesmo tempo, interpretando o papel de uma
estudante do instrumento. A métrica da fala é determinada na partitura, mas a entonação fica
totalmente a cargo do intérprete. Rescala comenta a inserção de texto falado: “[...] é uma
dificuldade maior porque tem um sistema a mais para ele ler na partitura, uma complexidade
maior de signos”. (informação verbal).78
Na execução realizada na Sala Baden Powell, no Rio de Janeiro, no ano de 2002, com
voz infantilizada – sem exagero – ela começa a falar com o público.79 Vestida como criança,
com um figurino que ela mesma criou, com uma boneca agarrada nas costas, Madeira
acrescenta ao texto, após a primeira frase: “Eu gosto de estudar piano, mas às vezes não sei...
mas às vezes... Ah, bobagem...”, a expressão deixa para lá... (RESCALA, 1989). Acrescentou,
também por conta própria, a movimentação em que se vira de costas para o teclado, após o
último cluster, para depois retornar, já mais calma, à posição inicial. Além disso, foi da
pianista a ideia de acariciar o teclado e pedir-lhe desculpas. (informação verbal).80
75
Entrevista com a pianista Maria Teresa Madeira, na sala Chiquinha Gonzaga (UNIRIO), em 11 de
julho de 2012. (Apêndice G, p. 264). 76
A pianista está se refere à peça 4‟33‟, de Cage. 77
ENTREVISTA..., op.cit., p. 264. 78
Entrevista com o compositor Tim Rescala, no Estúdio da Glória, na Glória (RJ), em 15 de outubro de
2010. (Apêndice B, p. 189). 79
Conclui-se que a conversa é com o público porque a pianista vira, por vezes, o rosto, enquanto fala,
para o lado da plateia e se refere ao instrumento na terceira pessoa. 80
Entrevista com a pianista Maria Teresa Madeira, na sala Chiquinha Gonzaga (UNIRIO), em 11 de
julho de 2012. (Apêndice G).
85
A decisão de uma pianista profissional experiente em trajar figurino infantil e
infantilizar a própria fala, acentua e potencializa o teor humorístico da peça.
3.2.9.3 Consciência do contexto de criação da obra, autoconsciência e consciência da
comunicabilidade do que está sendo apresentado
Envolvida na obra desde o momento de sua concepção e teatralmente experiente,
Madeira desempenha com facilidade a função de comunicação com o público através da fala
do personagem. Durante a apresentação, diz o texto com o rosto virado para a plateia como se
estivesse falando – desabafando – com os espectadores/ouvintes.
3.2.10 Realização
Para a apresentação realizada por Maria Teresa Madeira, a própria pianista idealizou o
figurino.
3.2.10.1 Formação de equipe: associação entre profissionais da mesma área ou de áreas
diversas
Figurino, cabelo e maquiagem compatíveis com o personagem, bem como
ambientação cênica – cenário, objetos de cena e iluminação artística – podem envolver
profissionais de áreas específicas da produção teatral.
3.2.10.2 Formação de grupos artísticos e movimentos culturais
O incentivo mútuo entre compositor e intérprete exemplificado em Estudo para piano
desenvolve e potencializa iniciativas artísticas diversas, de outros compositores e intérpretes,
inclusive. A peça deu origem ao espetáculo musical Pianíssimo, de 1992: “[...] Isso foi um
estímulo para que eu passasse a escrever para teatro”. (informação verbal).81
3.2.10.3 Espaços convencionais, modificados ou alternativos
81
Entrevista com o compositor Tim Rescala, no Estúdio da Glória, na Glória (RJ), em 15 de outubro de
2010. (Apêndice B, p. 185).
86
A locação da cena pode ser uma sala ou quarto onde o personagem realiza seus
estudos diários. Esse ambiente pode ser levado a uma sala de concerto tradicional ou pode se
adaptar a diversos ambientes.
3.2.10.4 Relação com as plateias
Embora não haja determinação em partitura de que o texto falado representa uma
conversa com o público, o compositor, como diretor de cena, recomendou à pianista Maria
Teresa Madeira que se virasse para a plateia enquanto em alguns momentos de sua atuação.
Isso faz transparecer a comunicabilidade desenvolvida, cultivada por Rescala, junto ao
intérprete, principalmente em suas peças cênicas.
3.3 DUETO I+1: PARA EXECUTANTES EXTREMAMENTE ATENTOS E
ISOLADOS UM DO OUTRO
Criada por Milton Machado em 1979, a peça Dueto I+1 para executantes
extremamente atentos e isolados um do outro teve versão de Vânia Dantas Leite e Rodolfo
Caesar em 2002. A duração é ad libitum porque a co-criação dos intérpretes a torna
largamente variável. A projeção do desenho/partitura em tela no momento da apresentação
caracteriza-a como música cênica, na categoria de música-vídeo. Configura-se, na versão que
serviu como referência para análise, como música mista – com piano e sons eletrônicos sobre
suporte. A gravação em áudio foi realizada no Espaço Cultural Sérgio Porto, no Rio de
Janeiro/RJ, em 2002.
A peça propõe colaboração entre o artista plástico, autor do desenho/partitura, e os
intérpretes, que são necessariamente co-autores, segundo instrução do próprio
desenho/partitura.
Os dois intérpretes/compositores poderão criar previamente ou improvisar sem, no
entanto, combinarem entre si o que vão fazer no momento da apresentação. A relação entre a
música produzida por eles só se revelará na execução pública.
Oferece ao público uma apreciação visual/cênica/musical, uma vez que o
desenho/partitura é exposto no palco, constituindo-se como cenário.
3.3.1 Instrumental
87
A escolha de Leite em usar o piano para fazer duo com os sons naturais e eletrônicos
processados de Rodolfo Caesar se deu na tentativa de tornar “mais transparente a realização
da idéia original.” (LEITE, 2004, p. 57). Ela criou uma série com as doze notas da escala
cromática e escreveu uma partitura tradicional para piano com base nas instruções da
partitura/desenho criada por Milton Machado.
3.3.2 Notação
Há, nesta peça, dois tipos de notação: uma através de desenho; outra, tradicional.
3.3.2.1 Partitura
A partitura de Dueto I+1 é um desenho do artista plástico Milton Machado. O desenho
contem a concepção da composição, que conta com a colaboração de compositores/intérpretes
para que se torne, de fato, uma obra musical.
3.3.2.2 Texto de instruções ou bula
Não contem texto ou bula para a orientação dos compositores/intérpretes que irão
realizar a peça. Entretanto, o subtítulo da obra, em si, é explicativo: para executantes
extremamente atentos e isolados um do outro.
3.3.2.3 Gráficos ou desenhos
A partitura já é, em si, um gráfico/desenho. A peça está classificada, pela tese de Leite,
na primeira modalidade de música-vídeo, em que a partitura se constitui numa imagem.
Nessa modalidade, a partitura/imagem dá origem “ao processo de construção do sonoro”
(LEITE, 2004, p. 50). A partir dessa imagem, cada intérprete compõe a sua própria música.
3.3.3 Manipulação dos parâmetros sonoros
A notação tradicional de Vânia Dantas Leite elaborada a partir das instruções do
desenho/partitura resulta em música de linguagem contemporânea.
88
3.3.3.1 Alturas
No desenho/partitura de Milton Machado, as cores/formas que são gradativamente
acrescidas em sequência a cada compasso82 indicam a inserção também gradativa de eventos
sonoros que deverão soar simultaneamente aos já estabelecidos, também gradativamente.
Esses eventos sonoros poderão ser improvisados ou notados por cada intérprete em partitura
(composição) própria. Cada compasso indica um evento sonoro a mais do que o compasso
anterior. Segundo Leite (2004, p. 55), “o desenho determina não apenas os materiais mas
também a macro-estrutura da obra, sua forma como um todo.” As alturas são, então, decididas
por cada músico envolvido, sem qualquer tipo de determinação.
Na elaboração de Leite (2004), foi criada uma série dodecafônica. Cada som
corresponde a uma das doze cores do desenho. A sequência de sons introduzidos segundo a
sequência das cores introduzidas no desenho em seus quarenta e cinco compassos se
configura conforme a Figura 5:
82
Os compassos nessa peça são conceituais, simbólicos, sem fórmula ou pulsação estabelecida.
89
Figura 5 - Análise, da própria autora, da parte de piano da versão de Dueto I+1 realizada por Vânia
Dantas Leite e Rodolfo Caesar em colaboração com a obra de Milton Machado
Fonte: Leite (2004, p. 134).
Na partitura, as alterações dentro de cada compasso só valem para a nota que
antecedem:
90
Figura 6 - Fragmento da parte de piano, criada por Vânia Dantas Leite para o Dueto I+1
Fonte: Leite (2004, p. 135).
91
3.3.3.2 Durações
O conceito de compasso é livre, sem fórmula preestabelecida. São 45 compassos
dispostos em 5 linhas de nove colunas. O tempo tem uma periodicidade relativa, pois esta se
dá de acordo com os eventos – sons realizados a cada compasso por cada
compositor/intérprete no duo. O segundo sempre entra após o término do evento do primeiro
executante.
O tempo dos intérpretes no duo, nos eventos criados a partir do desenho, se
interrelaciona. Sendo assim, cada evento sonoro criado por Leite e Caesar (2002) para cada
compasso na parte de piano sucede um evento eletrônico criado por Rodolfo Caesar.
92
Figura 7 - Outro fragmento da parte de piano, criada por Vânia Dantas Leite, para o Dueto I+1
Fonte: Leite (2004, p. 136).
93
3.3.3.3 Texturas, timbres e dinâmica
Timbres e dinâmica não são previstos, ficando os compositores/intérpretes autônomos
em relação a esses aspectos. Na versão de Leite e Caesar (2002), a partitura apresenta
indicações detalhadas de dinâmica e articulação, que resultam em timbres específicos,
aplicados à textura que, por sua vez, torna-se sempre e gradualmente mais densa a cada
compasso, na peça.
3.3.3.4 Articulação do som no espaço
A articulação do espaço também depende da criação de cada compositor/intérprete.
3.3.4 Interdisciplinaridade
A interdisciplinaridade nesta peça ocorre na relação entre as artes plásticas (desenho) e
a música.
3.3.4.1 Diálogo com outras linguagens artísticas
O Dueto I+1 é uma peça que pode ser classificada como música-vídeo83 que pode,
nesse caso, ser também considerada como música cênica pelo fato de apresentar, junto aos
eventos sonoros, uma imagem projetada.
Com relação à projeção da imagem digitalizada do desenho no momento da
apresentação, Leite (2004) 84 comenta que, nessa peça, imagem e som “[...] reforçam-se
mutuamente [...]”.
83
Pode-se, de acordo com as classificações organizadas por Leite (2007), descrever 5 modalidades de
música-vídeo. Na primeira, a imagem é a própria partitura. Na segunda modalidade, o som é
concebido para uma imagem já concluída ou a imagem é concebida em função de uma composição
musical já pronta. Na terceira, o som real da imagem é tomado como fonte sonora, ou seja, como
instrumento para a construção da música. A quarta modalidade constitui-se de imagem e música que,
juntas, interagem na concepção e estruturação do processo criativo. Nessa modalidade, faz-se
necessária a interação entre os artistas das modalidades visual e sonora. Um não interpreta o outro,
mas os dois trabalham numa ação conjunta. Pode, entretanto, um único artista manipular as duas
linguagens. Na quinta e última modalidade apurada, a imagem é utilizada como ilustração da música.
O Dueto I+1 está classificado na primeira modalidade citada de música-vídeo, em que a partitura se
constitui numa imagem. 84
Documento não paginado.
94
O desenho foi criado em 1978 por Milton Machado, em aquarela sobre papel. Na
ocasião da estreia de Dueto I+1, em 1982, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, foi
redesenhado a lápis hidrográfico e finalmente, em 2002, digitalizado para ser projetado em
telão.
3.3.4.2 Envolvimento do compositor em funções paralelas tais como as de intérprete, diretor
de cena, coreógrafo, designer de cena, som e luz.
O processo composicional nessa peça é de colaboração entre um artista plástico e dois
compositores/intérpretes.
Figura 8 - Desenho/partitura de Milton Machado (imagem digitalizada).
Fonte: Leite (2007, p. 8).
95
3.3.5 Cena
A cena que pode ocorrer em Dueto I+1 é a cena natural da execução musical que, neste
caso, tem como cenário o desenho/partitura projetado em telão no momento da apresentação.
3.3.5.1 Movimentação ação cênica e atuação cênica
Esta peça não prevê movimentação, ação ou atuação cênica.
3.3.5.2 Cena prevista em partitura ou texto de instruções cênicas
Esta peça prevê cenário, que é a projeção do desenho/partitura durante a apresentação
musical.
3.3.5.3 Figurino, cenário e objetos de cena
O desenho que serve como partitura funciona também como cenário. Segundo Leite
(2004, p. 59):
a parte musical se sustenta sozinha, até porque o desenho exerce um
papel de partitura – ninguém precisa ver a partitura para apreciar a música
que está sendo tocada. Por outro lado, o original é que esta partitura pode ser
também apenas vista como aquilo no qual ela se constitui – um desenho.
Mas, sem dúvida vendo/ouvindo é mais completo e interessante pois não é
necessário nenhum conhecimento musical para decodificar esta partitura.
Qualquer pessoa pode ter acesso à sua leitura, principalmente se ilustrada
pela música.
3.3.5.4 Iluminação artística
Não há qualquer previsão de iluminação artística. A luz de projeção da imagem
digitalizada do desenho é específica, devendo ser coerente com a iluminação do palco no
momento da apresentação.
3.3.5.5 Exposição de relações e costumes típicos do meio musical
96
Dueto I+1 não expõe claramente, em seus aspectos cênicos, questões, relações e
costumes típicos do meio musical. Entretanto, o fato de os intérpretes criarem, cada um por si,
uma versão da mesma obra que executarão juntos, poderia estar se referindo ao isolamento
típico dos músicos, em suas cabines de estudo.
3.3.5.6 Sugestão de classificação entre os termos de música cênica comentados neste trabalho
Essa peça se classifica como música cênica sem constituir teatro musical ou teatro
instrumental, pois não possui indicações de movimentação, ação cênica ou atuação cênica.
3.3.6 Narrativa
A narrativa é direta, pois se dá de acordo com a sequência regular de sons propostos
pelas cores do desenho.
3.3.6.1 Linearidade
A narrativa está no desenho. A forma pré-organizada de como os diferentes sons vão
surgindo tem sequência lógica criada a partir do desenho.
3.3.6.2 Texto
A peça não inclui qualquer tipo de texto.
3.3.6.3 Relação entre palavras e sons
Não há texto. Consequentemente, não há palavras que se relacionem com os sons.
3.3.7 Indeterminação (o acaso, o imponderável, o efêmero na apresentação musical)
A concepção musical da obra de Milton Machado é parcial, pois não determina
alturas, timbres ou durações. Os dois intérpretes/co-autores escolhem doze sons ou eventos
sonoros que correspondem às doze cores do desenho. Os componentes do duo não combinam
entre si o que vão fazer. Podem preparar suas partes na versão que realizarão ou improvisar
97
parcial ou integralmente os aspectos musicais em aberto na partitura/desenho no momento da
apresentação. Caso os compositores/intérpretes optem por improvisar, torna-se improvável a
atenção detalhada a todas as indicações do desenho/partitura. A concepção de Machado deixa,
nesse caso, ao acaso a realização exata ou não do que desenhou/compôs. Na versão de Leite e
Caesar (2002), os aspectos sonoros da peça foram cuidadosamente planejados antes da
apresentação e a interação entre as partes se deu sem ensaio prévio.
3.3.8 Tecnologias (uso de equipamentos)
Para a execução da versão criada por Leite e Caesar (2002) é necessário usar suporte
para a difusão do som da parte gravada e suporte de vídeo para a exibição da imagem.
3.3.9 Intérprete
Em Dueto I+1, os intérpretes são co-autores, criando sua própria versão da obra.
3.3.9.1 Relação compositor-intérprete: interação no processo de realização da obra
No processo de composição/interpretação dessa obra, a interação entre os
colaboradores é intensa por complementarem-se, uns aos outros, em relação ao resultado final
da obra. Entretanto, o fato de os compositores/intérpretes prepararem suas partes de maneira
independente, entrando em contato um com o outro apenas no momento da apresentação,
configura um tipo de interação atípica do fazer musical tradicional em conjunto. Na opinião
de Caesar (2003 apud LEITE, 2004, p. 56):
a obediência à imagem é a mais estrita possível. Trata-se de um desafio
lançado pelo artista plástico criador da imagem visual: como dois músicos,
isolados entre si, poderão extrair de uma imagem alguma música. Na parte
que me coube tentei „transpor‟ a coleção de itens da imagem visual para um
catálogo de sons de natureza instrumental e eletrônica. [...] O som tenta ser
fiel à imagem, embora o conceito de „fidelidade‟ seja particular a cada um
dos dois intérpretes. Por exemplo: na leitura que Vania e eu fizemos, cada
qual interpreta fielmente o que vê, mas os resultados de cada um são
diferentes.
3.3.9.2 Novo virtuosismo
98
A peça exige que o intérprete atue em nível composicional na música. A elaboração de
partitura ou de gravação para a execução posterior pareceu, aos intérpretes/co-autores Leite e
Caesar, ser caminho mais seguro do que a improvisação em duo no momento da
apresentação, no sentido de seguir as instruções da partitura/desenho de Milton Machado.
Construir instantaneamente, de cabeça, as sequências de sons, colocaria em risco a integridade
da concepção da peça por Machado na observação detalhada das inserções de sons indicadas
pela partitura/desenho.
3.3.9.3 Consciência do contexto de criação da obra, autoconsciência e consciência da
comunicabilidade do que está sendo apresentado
Conforme já havia comentado Leite (2004), a projeção da imagem digitalizada do
desenho/partitura no momento da apresentação, além dos sons gerados a partir do trabalho
dos intérpretes/co-autores, dará acesso a outras possibilidades de apreciação do
ouvinte/espectador. Esse fator torna-se, então, facilitador em relação a essa apreciação.
3.3.10 Realização
Conforme a versão em questão, a realização desta peça necessita de suporte para
difusão dos sons eletrônicos e para a projeção da imagem do desenho. Para que isso aconteça,
é necessário que alguém além dos intérpretes atue no momento da apresentação operando o
equipamento utilizado.
3.3.10.1 Formação de equipe: associação entre profissionais da mesma área ou de áreas
diversas
A formação de equipe nessa obra ocorre a partir do próprio processo composicional,
que envolve artistas da música e das artes plásticas.
3.3.10.2 Formação de grupos artísticos e movimentos culturais
A peça deu nome ao evento Dueto I+1: Música e artes plásticas, que apresentou
versão de Leite e Caesar, em 2002, na série Música e Tecnologia & Multimeios. A estreia
havia sido em 1982, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage – no evento Concerto
99
Plástico, organizado por Leite e Caesar – em versão criada por Anna Maria Kieffer e Leo
Küpper.
A associação entre artistas para a realização de todo evento artístico constitui ação
cultural importante.
3.3.10.3 Espaços convencionais, modificados ou alternativos
É possível realizar o Dueto I+1 em qualquer espaço que possa se adequar à utilização
do equipamento previsto para a realização dessa peça.
3.3.10.4 Relação com as plateias
Caesar (2003 apud LEITE, 2004, p. 56) considera que “Se a música é apresentada sem
a imagem, ganha um outro significado.[...] No caso desta obra, a presença da imagem pode
servir para facilitar a comunicação da obra musical com o ouvinte”.
Leite (2004) observa que, todavia, a exposição do desenho para a plateia não significa
que os ouvintes irão acompanhá-lo como partitura.
3.4 DIMENSÕES PARA QUATRO TECLADOS, DE JOCY DE OLIVEIRA
Jocy de Oliveira compôs Dimensões para quatro teclados – piano elétrico, órgão
elétrico, cravo amplificado e piano amplificado – em 1981. A gravação realizada pela própria
pianista e compositora em áudio no LP Estórias Para Voz Instrumentos Acústicos e
Eletrônicos, 1976 (Selo Fermata), com cinco minutos e cinquenta e dois segundos serviu
como referência para análise.
Dimensões para quatro teclados é uma versão de One player and four keyboards,
composta em 1967 pela própria Jocy de Oliveira (Curitiba/PR, 1936). Escrita para piano
elétrico, órgão elétrico, cravo amplificado e piano amplificado ao invés de harmônio, cravo,
celesta e piano, essa versão de 1981 mantém-se integralmente em todos os seus outros
aspectos.
Caracteriza-se como música-teatro pelo fato de indicar ação cênica. Apresenta um
intérprete preso entre os seus instrumentos, em sua atividade artística. Os instrumentos
envolvem, cercam o(a) pianista, que passa de um instrumento a outro. Combina os sons dos
quatro instrumentos, sem interrupção, dois a dois, três a três, quatro a quatro, conforme
100
planejar, segundo a margem de criação que lhe compete diante da partitura repleta de
indeterminações para que o intérprete escolha, entre os materiais apresentados o que e como
vai tocar.
A intensa movimentação provocada pela execução representa também a atuação
cênica – nesse caso a peça poderá ser classificada como teatro instrumental – na situação de
encarceramento do(a) pianista entre os quatro teclados claramente expressa em partitura. O(a)
intérprete torna essa situação mais ou menos explícita segundo sua personalidade, vontade e
visão da obra de acordo com a intensidade de sua expressão corporal, facial e possíveis
cenário, figurino, iluminação.
3.4.1 Instrumental
O piano nessa peça é amplificado e executado junto a outros três instrumentos de
teclado: o seu correspondente elétrico, órgão elétrico e cravo amplificado.
O(a) intérprete se posiciona no centro, entre os instrumentos, que formam um
quadrado ao seu redor.
Figura 9 – Disposição dos quatro teclados ao redor do intérprete na
peça Dimensões para quatro teclados, de Jocy de Oliveira
Fonte: A autora (2011).
órgão elétrico
cra
vo
pian
o
piano elétrico
Intérprete
101
O(a) instrumentista cria, então, uma maneira de dar conta de tocar os quatro teclados.
A peça desafia o instrumentista a alcançar os quatro instrumentos sem interrupção de som
numa movimentação corporal intensa.
O piano amplificado é expandido, com manipulação direta e indireta das cordas.
3.4.2 Notação
Esta peça apresenta notação tradicional, mas também se utiliza de gráficos, bula e
texto explicativo (introdutório).
3.4.2.1 Partitura
A partitura de Dimensões para quatro teclados disponível é a da versão original, que
foi escrita para celesta, harmônio, cravo e piano, intitulada One player and four keyboards, de
1967. Consta de um texto introdutório, partitura principal com uma espécie de bula – lista de
figuras musicais que a compositora utiliza denomina de configurações – e seis partes anexas.
No momento da execução, a partitura principal pode migrar de um instrumento a outro
ou podem ser colocadas cópias em cada um. As partes anexas são colocadas numa estante
entre os instrumentos.
3.4.2.2 Texto de instruções ou bula
102
Figura 10 - Texto introdutório da partitura de One player and four keyboards, de Jocy de Oliveira
Fonte: Oliveira (1967).85
O texto introdutório na partitura manuscrita, que é um painel em tamanho de papel A3
explica o seguinte:
A peça consiste de uma partitura principal e seis partes anexas. A partitura
principal deve ser seguida de acordo com a sequência indicada pelas setas.
Os elementos móveis são „círculos‟ e „quadros‟. Os círculos devem ser
interpretados como eventos a serem criados para instrumento determinado
com base em configurações preconcebidas ou não, constituindo ação de
tempo livre. Os quadros com letras devem ser observados como indicação
para a leitura das partes anexas (vide gráfico de combinações de
instrumentos). 86
(OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).87
85
Documento não paginado. 86
“The piece consists of one main score and six sub-scores. The main score is to be followed in its
explicit sequence according to arrows. The mobile elements are the „circles‟ and the „frames‟. The
„circles‟ are to be interpreted as events on a proposed instrument based or not on configurations
organized on a free action time. The „frames‟ with letters are to be observed as a direction to the
sub-scores (see graphic of instruments combinations)”. (OLIVEIRA, 1967). 87
Documento não paginado.
103
As partes anexas apresentam possibilidades de eventos baseados na simples
estrutura 4c2= I,J,K,L,M, combinando 2 instrumentos. O intérprete escolhe
um ou mais eventos. Na estrutura composta o intérprete deve combinar 3 ou
4 instrumentos c4(3)-c4(4), de acordo com as indicações, uma ou mais cada
vez. O evento do quadro nas partes anexas é o motivo para uma ação cênica
improvisada. Alguns são de notação mais determinada e o quadro vazio deve
ser interpretado como [evento] indeterminado. 88
(OLIVEIRA, 1967,
tradução nossa)89
.
A partitura principal pode ser colocada e transportada a outro instrumento.
Poder-se-ia fazer com outras cópias. As partes anexas são colocadas em uma
estante entre os instrumentos, de acordo como o ângulo da escolha das várias
estruturas-eventos que podem ser preparadas pelos intérpretes antes ou
durante cada ação. 90
(OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).91
A combinação dos instrumentos dois a dois é representada pela expressão
alfanumérica 2c4 e a combinação de três dos quatro instrumentos ou dos quatro na totalidade
da utilização dos mesmos está representada por c4(3) e c4(4, respectivamente). As letras
I,J,K,L,M representam as partes anexas. Na execução dos eventos escolhidos nas partes
anexas, os instrumentos são combinados dois a dois e na execução da partitura principal, o(a)
intérprete deve tocar três entre os quatro instrumentos ou se utilizar de todos
simultaneamente.
3.4.2.3 Gráficos ou desenhos
As notas dispostas em sistemas de dois pentagramas – em clave de sol para a mão
direita e em clave de fá para a mão esquerda – se intercalam a notações relacionadas em um
lista de configurações. Uma espécie de bula explica desenhos e gráficos constantes na
partitura:
88
“This sub-score present the possibilities of events based on simple structure 4c2= I,J,K,L,M
combining 2 instruments. The performer chooses one or many events. On a composed structure the
performer should combine 3 or 4 instruments c4(3)-c4(4) according to directions, one or more each
time. The frame event on the sub-scores is a motivation to an improvisatory visual-action. Some are
more explicit on its notation and an empty frame should be interpreted as implicit.” (OLIVEIRA,
1967). 89
Documento não paginado. 90
“The main score can be placed on the piano and switched to other instrument. It could also be done
with more copies. The subscores are placed on stand between instruments according to angle the
choice of various structure-events can be prepared by the performer in advance or used action.”
(OLIVEIRA, 1967). 91
Documento não paginado.
104
Nota a ser tocada alternadamente em dois manuais do cravo. A última execução
dessa nota deve soar nos dois manuais: “Nota repetida – última altura nos dois manuais”.92
(OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).93
Figura 11 – “Nota repetida – última altura nos dois manuais”
Fonte: Oliveira (1967).
94
Em um grupo de notas graves, o cotovelo esquerdo se apóia. O braço se coloca,
então, sobre o teclado, até a ponta dos dedos, em direção à região aguda do instrumento:
“começa bem devagar com o cotovelo e todo o braço até os dedos”.95 (OLIVEIRA, 1967,
tradução nossa).96
Figura 12 – “Começa bem devagar com o cotovelo
e todo o braço até os dedos”
Fonte: Oliveira (1967).97
Grupos de notas sucessivos da região grave em direção à região aguda a serem
espalmadas no teclado: “Com a palma da mão primeiro e depois os dedos, como uma
massagem no teclado”.98 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).99
92
“Repeated note – last pitch on both keyboard”. (OLIVEIRA, 1967). 93
Documento não paginado. 94
Documento não paginado. 95
“Start very slow with elbow and all arm until fingers”. (OLIVEIRA, 1967). 96
Documento não paginado. 97
Documento não paginado. 98
“With palm first and their fingers like a massage over keyboard”. (OLIVEIRA, 1967). 99
Documento não paginado.
105
Figura 13 – “Com a palma da mão primeiro e
depois os dedos, como uma massagem no teclado”.
Fonte: Oliveira (1967).100
Uma nota à escolha do(a) intérprete – “qualquer altura”. 101 (OLIVEIRA, 1967,
tradução nossa).
Figura 14 – Uma nota qualquer
Fonte: Oliveira (1967).
102
A indicação de glissando apenas sugere as regiões grave, média ou aguda
Figura 15 – Indicação de direção
Fonte: Oliveira (1967).103
100
Documento não paginado. 101
“Any pitch” (OLIVEIRA, 1967). 102
Documento não paginado. 103
Documento não paginado.
106
Alturas diversas, tocadas sucessivamente. O desenho sugere que são alturas
próximas e entre si. Devem ser velozmente tocadas em pequenos grupos estanques: “várias
notas, rápido”.104 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).105
Figura 16 – “Várias notas, rápido”
Fonte: Oliveira (1967).106
A pequena seta posicionada para cima ou para baixo indica a nota: “o mais agudo
possível no instrumento”107 ou “o mais grave possível no instrumento”.108 (OLIVEIRA, 1967,
tradução nossa).109
Figura 17 – “O mais agudo possível no instrumento” ou
“O mais grave possível no instrumento”
Fonte: Oliveira (1967).110
Pressionar e quase retirar o peso do dedo sobre a nota, levemente e devagar:
“pressionar a tecla e quase retirar-lhe o som, levemente e devagar, no som (mais agudo
possível)” do instrumento”.111 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).112
104
“many notes, fast.”(OLIVEIRA, 1967). 105
Documento não paginado. 106
Documento não paginado. 107
“highest pitch on instrument” (OLIVEIRA, 1967). 108
“lowest pitch on instrument” (OLIVEIRA, 1967). 109
Documento não paginado. 110
Documento não paginado. 111
“pressing key on and almost off lightely and slow (highest pitch)” (OLIVEIRA, 1967). 112
Documento não paginado.
107
Figura 18 – “Pressionar a tecla e retirar dela quase todo
o peso bem levemente e devagar (o mais agudo possível)”.
Fonte: Oliveira (1967).113
A seta posicionada para cima precedida de um sinal de sustenido indica “o cluster
mais agudo possível em teclas pretas”. 114 (OLIVEIRA, 1967, traduação nossa). 115 Essa
indicação surge também, no decorrer da peça, ao contrário, com a seta posicionada para baixo
(para o cluster mais grave possível) precedida do sinal de bequadro (para ser executado em
teclas brancas).
Figura 19 – “O cluster mais agudo possível em teclas pretas”
Fonte: Oliveira (1967).116
A seta posicionada para cima (não precedida de qualquer sinal) indica o cluster
“mais agudo possível em notas pretas e brancas”. 117 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).118
113
Documento não paginado. 114
“highest pitch on cluster on #”. (OLIVEIRA, 1967). 115
Documento não paginado. 116
Documento não paginado. 117
“highest pitch with cluster chromatic”. (OLIVEIRA, 1967). 118
Documento não paginado.
108
Figura 20 – “O som mais agudo com cluster
em notas pretas e brancas”.
Fonte: Oliveira (1967).119
Entre as notas dó#3 a si3, conforme aparece na partitura principal, as teclas
intermediárias devem ser levemente pressionadas: “de uma nota a outra, lentamente,
pressionando a tela e retirando levemente o peso do dedo sobre a mesma”.120 (OLIVEIRA,
1967, tradução nossa).121
Figura 21 – “De uma nota a outra, lentamente,
pressionando a tela e retirando levemente o peso
do dedo sobre a mesma”.
Fonte: Oliveira (1967).122
Essa configuração orienta que o intérprete espalme as cordas do piano: “Bater nas
cordas com a palma da mão”.123 (OLIVEIRA, 1967, traduação nossa).124
119
Documento não paginado. 120
“from one note to another, solwly, pressing key on and almost off”. (OLIVEIRA, 1967). 121
Documento não paginado. 122
Documento não paginado. 123
“Knock strings with palm”(OLIVEIRA, 1967). 124
Documento não paginado.
109
Figura 22 – “Bater nas cordas com a palma da mão”.
Fonte: Oliveira (1967).125
Produção de harmônicos através de ação da tecla simultaneamente à ação na corda
correspondente: “pressione a tecla, tocando o dedo [de outra mão] na corda correspondente
para produzir harmônico”.126 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).127
Figura 23 – “Pressione a tecla, tocando o dedo
[de outra mão] na corda correspondente para
produzir harmônico”.
Fonte: Oliveira (1967).128
Fricção de um objeto de metal ao longo da corda do piano: “use um objeto de metal
e friccione-o ao longo da corda”.129 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).130
125
Documento não paginado. 126
“press key holding finger on same string to procude harmonics” (OLIVEIRA, 1967). 127
Documento não paginado. 128
Documento não paginado. 129
“use a metal piece and rub the string along it” (OLIVEIRA, 1967). 130
Documento não paginado.
110
Figura 24 – “Use um objeto de metal e
friccione-o ao longo da corda”.
Fonte: Oliveira (1967).131
Em alturas indeterminadas das diversas regiões do teclado, da mais grave para a
mais aguda, as mãos em forma de concha escorregam de um grupo de teclas pretas para um
grupo de teclas brancas: “com a mão em forma de concha, pressione teclas pretas e deslize
para brancas”.132 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).133
Figura 25 – “Com a mão em forma de concha,
pressione teclas pretas e deslize para brancas”
Fonte: Oliveira (1967).134
Essa configuração indica que o intérprete oscile entre o movimento de pressão das
teclas de determinada região do teclado e do movimento de retirada de algumas partes do
braço entre o cotovelo e os dedos: “com o braço, do cotovelo ao dedo, pressione e retire certas
partes do braço”.135 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).136
131
Documento não paginado. 132
“with hand like a shell press black keys and slide to white ones” (OLIVEIRA, 1967). 133
Documento não paginado. 134
Documento não paginado. 135
“with arm from elbow to finger press on and off certain parts of arm” (OLIVEIRA, 1967). 136
Documento não paginado.
111
Figura 26 – “Com o braço, do cotovelo
ao dedo, pressione e retire certas partes do braço”
Fonte: Oliveira (1967).137
Som da pressão de todas as teclas com uma régua é interrompido e retorna,
voltando a ser interrompido e, assim, sucessivamente: “segure todo o teclado com uma régua
– ligue e desligue o instrumento.”138 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).139
Figura 27 – “Segure todo o teclado com uma régua –
ligue e desligue o instrumento”
Fonte: Oliveira (1967).140
Som da pressão das teclas se reveza com o som da régua na tampa aberta do piano:
“segure uma régua entre o teclado e a tampa sem som. Pressione e retire a régua”. 141
(OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).142
137
Documento não paginado. 138
“hold with a ruler all keyboard – use plug on and off” (OLIVEIRA, 1967). 139
Documento não paginado. 140
Documento não paginado. 141
“hold a ruler between keyboard and lid without sound. Press ruler on and off” (OLIVEIRA, 1967). 142
Documento não paginado.
112
Figura 28 – “Segure uma régua entre o teclado
e a tampa sem som. Pressione e retire a régua”.
Fonte: Oliveira (1967).143
Essa configuração é indicada para ser tocada também com baquetas. Nesse caso, o
desenho de baquetas aparece junto à configuração. Execução rápida de várias notas em região
não exatamente determinada das cordas do piano: “muitas notas, rápido, ad libitum”. 144
(OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).145
Figura 29 – “Muitas notas, rápido, ad libitum”
Fonte: Oliveira (1967).146
Som prolongado de determinada nota147: “segure esta nota”.148 (OLIVEIRA, 1967,
tradução nossa).149
143
Documento não paginado. 144
“many notes, fast, ad libitum”(OLIVEIRA, 1967). 145
Documento não paginado. 146
Documento não paginado. 147
Para a não interrupção do som nos momentos onde não seria possível o uso de pedal de sustentação,
a compositora/instrumentista colocou, na execução que foi gravada ao vivo para o Long Play – sem
qualquer som pré-gravado – um calço de papelão para que determinada tecla baixada propiciasse a
permanência daquele som. 148
“hold this note” (OLIVEIRA, 1967). 149
Documento não paginado.
113
Figura 30 – “Segure esta nota”
Fonte: Oliveira (1967).150
Cluster realizado com o braço: “pressionar o teclado com o braço do cotovelo aos
dedos”.151 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).152
Figura 31 – “Pressionar o teclado com o
braço do cotovelo aos dedos”
Fonte: Oliveira (1967).153
Cluster a ser realizado sem som: “cluster com pressão do braço sem som”. 154
(OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).155
Figura 32 – “Cluster com pressão do braço sem som”
Fonte: Oliveira (1967).156
150
Documento não paginado. 151
“pressing keyboard with arm from elbow to fingers” (OLIVEIRA, 1967). 152
Documento não paginado. 153
Documento não paginado. 154
“cluster with arm pressing without sound” (OLIVEIRA, 1967). 155
Documento não paginado. 156
Documento não paginado.
114
Cluster com som a ser realizado com o braço: “cluster com braço”.157 (OLIVEIRA,
1967, tradução nossa).
Figura 33 – “Cluster com braço”
Fonte: Oliveira (1967).158
3.4.3 Manipulação dos parâmetros sonoros
Os parâmetros sonoros são indicados pela partitura, mas a manipulação dos mesmos
ocorre segundo a atuação do(a) intérprete.
3.4.3.1 Alturas
Alturas definidas alternam-se a configurações não usuais de alturas inexatas.
Figura 34 – Fragmento que exemplifica alturas definidas na partitura principal de One player and
four keyboards, de Jocy de Oliveira
Fonte: Oliveira (1967).159
157
“Cluster with arm”(OLIVEIRA, 1967). 158
Documento não paginado. 159
Documento não paginado.
115
Figura 35 - Fragmento que exemplifica alturas inexatas na partitura principal de One player
and four keyboards, de Jocy de Oliveira
Fonte: Oliveira (1967).160
3.4.3.2 Durações
As durações são orientadas através das figuras tradicionais de semínima (devagar/
slow), colcheia (rápido/ fast) e semicolcheia (mais rápido/ faster). Termos tradicionais e não
tradicionais relativos a tempo na música também são utilizados: rápido (fast), mais rápido
possível (fast as possible), devagar (slow) e lento (lento). Em alguns momentos, as alturas
tornam-se totalmente indeterminadas:
160
Documento não paginado.
116
Figura 36 - Quadro que faz parte das cartelas de eventos sonoros das partes anexas à partitura
principal para que o(a) intérprete escolha o que vai executar
Fonte: Oliveira (1967).161
3.4.3.3 Texturas, timbres e dinâmica
Há indicações de dinâmica, de pianíssimo a fortíssimo e algumas indicações de toque
que resultam em variações de timbres. Exemplos disso são a utilização do termo seco (relativo
ao toque no trecho em questão) e indicações pontuais relativas ao uso do pedal.
3.4.3.4 Articulação do som no espaço
161
Documento não paginado.
117
O(a) pianista se posiciona entre quatro teclados, que formam um quadrado ao seu
redor. Os sons circulam, então, ao redor do intérprete, mas podem ser emitidos no palco e na
plateia, conforme o posicionamento dos alto-falantes.
3.4.4 Interdisciplinaridade
A interdisciplinaridade nesta peça ocorre entre música e teatro, uma vez que Oliveira
idealizou a movimentação decorrente da execução da peça e a teatralidade da situação teatral
que menciona na partitura.
3.4.4.1 Diálogo com outras linguagens artísticas
Dimensões para quatro teclados possui aspecto cênico decorrente da movimentação
natural da execução dos instrumentos. Oliveira (2012) diz que, naturalmente, a movimentação
se torna dança – não exatamente planejada: “A movimentação que requer o uso dos quatro
teclados já é suficiente para fazer com que o/a pianista utilize uma coreografia gestual de seus
braços e dedos com os diferentes toques de cada teclado”.
3.4.4.2 Envolvimento do compositor em funções paralelas tais como as de intérprete, diretor
de cena, coreógrafo, designer de cena, som e luz.
A compositora foi a própria intérprete na gravação da peça.162
3.4.5 Cena
A movimentação e a posição do(a) pianista cercado(a) entre quatro instrumentos
sugere, segundo o texto introdutório que consta na partitura, uma cena teatral.
3.4.5.1 Movimentação, ação e atuação cênica
A peça indica atuação cênica, apresentando teatralmente o(a) pianista como
prisioneiro entre os quatro teclados. Jocy de Oliveira, que estreou a peça, não usou de
162
A peça foi também interpretada por Alcides Lanza – compositor argentino residente no Canadá.
118
expressões faciais ou outros recursos além da movimentação estritamente necessária à
execução dentro do espaço delimitado pelos instrumentos.
3.4.5.2 Cena prevista em partitura ou texto de instruções cênicas
No texto introdutório, após as orientações para a leitura da partitura, Oliveira (1967,
tradução nossa)163 orienta o intérprete para a cena da seguinte maneira: “O intérprete tem que
atuar com precisão e controle do tempo e espaço. Ele é prisioneiro entre os quatro teclados,
numa situação que deveria ser usada teatralmente”.164
3.4.5.3 Figurino, cenário e objetos de cena
A situação teatral pode incluir figurino, cenário e objetos de cena compatíveis.
3.4.5.4 Iluminação artística
A iluminação pode ser funcional, como ocorre freqüentemente nas apresentações de
música de concerto ou pode ser artística, como aspecto da linguagem teatral.
3.4.5.5 Exposição de relações e costumes típicos do meio musical
Não é evidente a relação da cena prevista na peça com relações e costumes típicos do
meio musical. Porém, subliminarmente, o encarceramento do(a) intérprete entre os
instrumentos pode ser remetido ao cotidiano dos músicos, submetido a estudos extensos e
constantes, durante toda a vida, em dedicação exclusiva e voluntária.
3.4.5.6 Sugestão de classificação entre os termos de música cênica comentados neste trabalho
A exploração teatral da cena sugerida na peça indica atuação cênica. Dimensões para
quatro teclados constitui-se, portanto, como teatro instrumental.
163
Documento não paginado. 164
“The player is (sic) to act with precision and control of time and action on space. He is the prisoner
of the four keyboards which he should also use theatrically”. (OLIVEIRA, 1967).
119
3.4.6 Narrativa
A narrativa não é direta.
3.4.6.1 Linearidade
A narrativa não é linear. Apesar de as indicações da partitura principal serem fixas, a
peça se apresenta sempre repleta de surpresas que as escolhas de cada intérprete revelarão,
uma vez que a ordem dos eventos sonoros fica à escolha do(a) pianista.
3.4.6.2 Texto
Não há texto a ser falado ou projetado a partir da partitura, mas pode haver texto
criado pelo(a) próprio(a) intérprete, se assim esse(a) o desejar. Há, na cartela de eventos
sonoros a serem escolhidos, nas partes anexas à partitura principal, alguns em que a
improvisação musical/cênica é livre. Nesse caso, o(a) intérprete fica à vontade para criar ou
não texto na encenação.
3.4.6.3 Relação entre palavras e sons
A criação do(a) intérprete determinará relação entre palavras e sons, se a referida
elaboração cênica incluir texto
3.4.7 Indeterminação (o acaso, o imponderável, o efêmero na apresentação musical)
A peça convida à improvisação desde a tabela de configurações, que esclarece a
notação não convencional – que funciona como bula – até a escolha entre um ou mais quadros
nas cartelas de eventos sonoros e/ou cênicos. Alturas e durações são notados de maneira
inexata. A peça tem uma sequência de eventos sonoros fixos entremeados por outros,
escolhidos pelo intérprete nas cartelas de eventos constantes nas partes anexas à partitura
principal. Um desses eventos a serem escolhidos entre os dispostos nessas cartelas – das
partes anexas – é totalmente indeterminado. Deve ser criado pelo(a) intérprete, tanto sonora
quanto cenicamente:
120
Figura 37 - Quadro de parte anexa (cartela de eventos sonoros a serem escolhidos pelo(a) pianista) que
indica livre improvisação musical/cênica para o(a) intérprete
Fonte: Oliveira (1967).165
3.4.8 Tecnologias (uso de equipamentos)
O som dos instrumentos acústicos provavelmente não dariam conta, no conjunto de
instrumentos a serem tocados por um único intérprete, da sonoridade eletrônica desejada,
tendo em vista o instrumental indicado. Microfonados, o cravo e o piano, junto ao piano
elétrico e ao órgão elétrico definem sonoridade da peça.
3.4.9 Intérprete
165
Documento não paginado.
121
O intérprete é co-criador, nesta obra. Decide timbres, as alturas, as durações e até
mesmo o nível de teatralidade a ser apresentado.
3.4.9.1 Relação compositor-intérprete: interação no processo de realização da obra
O intérprete se torna responsável pelo resultado final da peça, uma vez que interfere
fortemente nas sequências de sons e na intensidade da cena. Até as suas características físicas
representarão diferencial nos aspectos visuais/cênicos.
3.4.9.2 Novo virtuosismo
A movimentação decorrente da execução que se pretende sonora e cênica depende, de
alguma forma, das características físicas de cada instrumentista:
[...] Todas as possiblidades e impossibilidades dependem do que o braço
pode alcançar e de manter um som contínuo com dois braços para quatro
teclados. É claro que se torna uma coreografia. É um ballet. Não era
intenção fazer gestos, mas tem que fazer para poder segurar uma nota e fazer
outra numa combinação de timbres. Isso era um tremendo desafio.
(informação verbal).166
Além de larga margem de criação com materiais a serem escolhidos e elaborados, fará
diferença em cada interpretação a estatura do intérprete, segundo braços menos ou mais
longos, por exemplo.
3.4.9.3 Consciência do contexto de criação da obra, autoconsciência e consciência da
comunicabilidade do que está sendo apresentado
O(a) intérprete é responsável pelo teor de comunicabilidade do que está sendo
apresentado através da maneira como executa suas escolhas sonoras e se movimenta
cenicamente.
3.4.10 Realização
166
Entrevista com a compositora Jocy de Oliveira, em sua residência, no Leblon (RJ), em 10 de
novembro de 2010. (Apêndice D, p. 225).
122
A realização de música com quatro instrumentos, sendo dois elétricos e dois
microfonados, exige formação de equipe técnica que garanta o resultado final da emissão dos
sons produzidos pela execução do intérprete.
3.4.10.1 Formação de equipe: associação entre profissionais da mesma área ou de áreas
diversas
A execução de instrumentos acústicos e instrumentos elétricos exigirá microfonação
daqueles. A microfonação de instrumentos acústicos exige conhecimento e habilidade
específicos. Trata-se de um trabalho delicado que, se não realizado com eficácia, inviabiliza a
sonoridade da peça. Os sons dos quatro teclados devem ser equilibrados na intensidade,
tratados em seus timbres. Além do preparo dos microfones, que devem ser devidamente
posicionados, um profissional competente deve ficar a postos no equipamento de difusão do
som para eventuais problemas, que, aliás, ocorrem com freqüência quando se trabalha com
microfones.
3.4.10.2 Formação de grupos artísticos e movimentos culturais
Não há relatos ou vestígios de formações de grupos artísticos e/ou movimentos
culturais no entorno da realização desta peça, especificamente.
3.4.10.3 Espaços convencionais, modificados ou alternativos
A peça não sugere qualquer tipo de espaço específico de apresentação. A princípio,
qualquer espaço em que possam ser ligados e amplificados os instrumentos previstos pode ser
adequado à realização da peça.
3.4.10.4 Relação com as plateias
No que diz respeito à sonoridade, esta se apresenta em nada tradicional para as
plateias, mas se revela enigmática e curiosa, na soma inusitada dos timbres dos instrumentos
utilizados, em decorrência da maneira como a execução é proposta por Oliveira. No que diz
respeito à cena, dependerá diretamente da execução de cada intérprete, uma vez que na
exibição de uma situação de encarceramento do(a) intérprete entre instrumentos a margem de
123
criação de cada instrumentista se mostra muito ampla, podendo este deixar tal situação mais
ou menos evidente.
3.5 CAPRICHOSA VOZ QUE VEM DO PENSAMENTO, DE TATO TABORDA
Caprichosa voz que vem do pensamento foi criada por Tato Taborda, com piano
preparado, como teatro intrumental (com atuação cênica) e dança, com a co-criação da
bailarina Maria Alice Poppe, em 2012. Tem a duração de cinquenta e dois minutos e dez
segundos na gravação de referência, realizada no Teatro Cacilda Becker, no Rio de
Janeiro/RJ, também em 2012.
A dramaturgia apresenta uma relação de casal, homem e mulher, em que os
protagonistas – personagens – se confundem com os próprios intérpretes, que são o pianista
autor e a bailarina co-criadora. Nesse caso, tanto na ficção quanto na realidade, ele é um
artista/compositor/instrumentista intensamente dedicado e entregue a suas atividades artísticas
musicais inventivas e suas lembranças. A bailarina é uma mulher que, em sua dança sincera,
transparente, visceral e sensual, tenta desviar a atenção do parceiro para si e passa quase a
totalidade do tempo da peça para conseguir, finalmente, que ele interaja, de fato, com ela.
Esta peça apresenta uma configuração, tanto do instrumento quanto dos intérpretes,
totalmente diferente do que se pratica na música tradicional. A peça não possui partitura. O
piano, no palco, não é fixo e seu som não é emitido exclusivamente a partir dele mesmo. Sons
pré-gravados se unem aos sons emitidos no momento da apresentação ou são difundidos sem
que o pianista esteja tocando. Os intérpretes atuam de maneira diferenciada. Tocam-se,
apoiam-se, entreolham-se, expressam-se através de seus próprios instrumentos e através do
instrumento do outro: o pianista dança e a bailarina toca piano com o corpo – pés, mãos,
dorso, cabeça, nádegas. Na criação/interpretação de Taborda e Maria Alice Poppe, os
intérpretes revelam intimidade na interação absoluta entre suas linguagens artísticas. Os dois
atuam teatral e intensamente. Improvisam, se entrelaçam e se confundem em sua
movimentação flexível, com precisão construída sobre bases fixas no roteiro não partiturado.
3.5.1 Instrumental
O piano é preparado: o modelo de armário foi equipado com garfos, parafusos de
diversas bitolas e peças metálicas cilíndricas. A tampa da caixa acústica foi retirada e o
124
mecanismo do instrumento fica à mostra. Há manipulação indireta das cordas e uso da voz do
pianista. O piano é também cenográfico: funciona como cenário.
3.5.2 Notação
Não há qualquer tipo de notação desta peça.
3.5.2.1 Partitura
Caprichosa voz que vem do pensamento não possui – nem pretende possuir – partitura.
A esse respeito, o compositor comenta: “Eu posso perfeitamente partiturar essa diagramação
dos objetos, como o Cage fez. [...] Eu não pretendo colocar isso em partitura, não tem
necessidade, até agora: há registros, gravações”. (informação verbal).167
Nesse tipo de processo de produção artística, alguns compositores não têm a pretensão
de que mais um – outro – intérprete ou grupo de intérpretes realize a peça novamente – pelo
menos, não da mesma maneira – mesmo quando as apresentações são registradas em
audiovisual. (SALZMAN; DÉSI, 2008). A gravação, nesse caso, não é necessariamente um
documento elaborado – como são as partituras na música tradicional – na intenção de servir
de base para futuras montagens.
3.5.2.2 Texto de instruções ou bula
Não há texto nem instruções cênicas anotadas.
3.5.2.3 Gráficos ou desenhos
Não há qualquer tipo de gráfico ou desenho nesta peça relacionado à música. Há
apenas um desenho espiral que a bailarina faz com o líquido que derrama, no piso do palco,
de um copo enquanto dança.
3.5.3 Manipulação dos parâmetros sonoros
167
Entrevista com o compositor Tato Taborda, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 18 de julho de
2012. (Apêndice E. p. 249).
125
Alturas nebulosas, distorcidas e imprecisas em tempo oscilante apresentam sonoridade
muito particular do piano na peça.
3.5.3.1 Alturas
As relações de altura são perceptivelmente flexíveis sobre uma estrutura fixa. As
alturas no piano preparado são nebulosas, imprecisas, pelo fato de a preparação produzir
quartos de tom, ruídos e sons inarmônicos. Há, ainda, os sons percussivos produzidos através
do instrumento e fora dele.
3.5.3.2 Durações
O tempo é oscilante, relativizado. Esse tempo se reveza com trechos de pulso rítmico
claro.
3.5.3.3 Texturas, timbres e dinâmica
As texturas variam entre notas isoladas e grandes clusters. Melodia acompanhada e
trechos rítmicos não melódicos e sincopados se apresentam com alto nível de reverberação,
intensificando a distorção das alturas pelos objetos que aparelham o piano preparado. Além
dos sons do piano, há o som dos ruídos de cena e da simulação de uma transmissão de rádio.
Nesta, ouve-se uma orquestra de cordas junto aos sons de um piano tradicional. A dinâmica
de intensidade mais forte coincide com os trechos rítmicos não melódicos, enquanto os
trechos melódicos – de alturas distorcidas – possuem sonoridade mais suave.
3.5.3.4 Articulação do som no espaço
O piano se desloca no palco. O pianista toca no piano posicionado à direita da plateia
e, depois, à esquerda da mesma. Sons do instrumento soam pré-gravados através de alto-
falantes enquanto o pianista toca, afastado do piano, um teclado imaginário. A movimentação
do pianista é intensa durante a peça. O intérprete se posiciona sentado no banco, sentado no
chão, de cócoras, de pé, sentado por trás da bailarina, dividindo com ela o espaço do banco.
Tais posições são funcionais – para que o pianista possa tocar nas cordas do piano – ou
cênicas e a intensa movimentação dos intérpretes produz ruídos que se incorporam à música.
126
Essa movimentação dos intérpretes e dos instrumentistas rompe veementemente a
tradição da posição do piano e dos pianistas de concerto nas apresentações tradicionais, que
congelaram-nos por séculos na posição lateral, com a face direita voltada para o público e
com a sonoridade do instrumento sendo emitida por um único ponto do início ao fim.
3.5.4 Interdisciplinaridade
Música, dança e teatro apresentam intensa fusão de linguagens.
3.5.4.1 Diálogo com outras linguagens artísticas
Nesta peça, a dança e a música conversam entre si. Provocam-se, reagem uma à outra,
interagem o tempo todo. É uma criação conjunta de Taborda e da bailarina Maria Alice
Poppe. A movimentação da bailarina se mescla o pensamento musical do piano preparado. A
peça surgiu de diálogos entre compositor e bailarina. Taborda relatou que Poppe:
[...] pensava muito sobre a dança dos ossos, sobre uma dança que partisse da
articulação, que partisse do interno como protagonista e não numa dança que
fosse validada pela imagem do espelho: que partisse de dentro para fora, que
fosse pensada pelo corpo de dentro para fora. Nesse momento, eu pensei:
„Por que não usar o piano no esqueleto, tirar todas as partes e transformá-
lo?‟ A partir daí surgiu o piano de volta como um instrumento. (informação
verbal).168
O resultado final do processo de composição de uma peça de música cênica como
essa está sempre em aberto. De encenação para encenação, dia após dia, os compositores e
colaboradores como diretores, intérpretes, figurinistas, cenógrafos e toda equipe que possa
estar envolvida na montagem contribuem com novas inserções e diálogos com a obra para o
trabalho que envolve práticas de improvisação em ensaios coletivos.
3.5.4.2 Envolvimento do compositor em funções paralelas tais como as de intérprete, diretor
de cena, coreógrafo, designer de cena, som e luz
Na Caprichosa voz que vem do pensamento, a interação entre diversas linguagens
artísticas acontece de forma intensa. Dessa maneira, a função da interpretação se divide entre 168
Entrevista com o compositor Tato Taborda, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 18 de julho de
2012. (Apêndice E, p. 249).
127
os intérpretes e a equipe junto multidisciplinar que trabalha junto a eles. Taborda, como
compositor e intérprete, ao lado da bailarina Maria Alice Poppe e da direção cênica de
Aderbal Freire Filho, conta como se deu o processo de produção artística da peça:
Nessa peça, decidimos não apenas cruzar o gesto musical com o gesto
coreográfico como chamar uma pessoa da cena – que é o Aderbal Filho, que
é um diretor de teatro muito importante. Ele entrou no processo para
começarmos do zero para cruzar essas três vias de maneira que não se
soubesse mais quem estava brincando com o brinquedo de quem: se foi o
Aderbal que virou coreógrafo, se eu virei bailarino ou se a Maria Alice
estava tocando piano. O processo ocorreu totalmente sem fronteiras ou
escrúpulos na direção desse território híbrido. Isso está expresso e tem uma
dimensão cênica muito forte. A minha performance tem um aspecto que é
pura cena. O som é decorrente dessa cena. Existe uma cena coreográfica e
teatral que motiva a execução. (informação verbal).169
3.5.5 Cena
Esta peça se configura a partir de uma sucessão de cenas de alta complexidade – por
envolverem em alto grau de exigência técnicas teatrais, musicais e da dança.
3.5.5.1 Movimentação, ação e atuação cênica
A movimentação e atuação cênica são intensas e atreladas aos eventos sonoros. As
cenas possuem uma sequência básica estruturada, mas não são fixas.
As relações entre música, dança e direção teatral são estreitas. A montagem da peça
contou com a direção cênica de Aderbal Freire Filho – diretor de teatro experiente e
renomado.
O trabalho com direção teatral é uma invenção do século XX. Antes disso, a direção
de palco fazia o praticamente o papel de um guarda de trânsito na cena. Atualmente, muitos
diretores de teatro são co-autores ou mesmo autores de música cênica, são intérpretes da
obra. A dança tem sido um elemento muito importante e recorrente. Não raramente,
coreógrafos e compositores exercem direção cênica. Assim também o era, aliás, no gênero
ópera incipiente. (SALZMAN; DÉSI, 2008).
169
Entrevista com o compositor Tato Taborda, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 18 de julho de
2012. (Apêndice E, p. 249).
128
3.5.5.2 Cena prevista em partitura ou texto de instruções cênicas
Não há partitura ou texto de instruções cênicas.
3.5.5.3 Figurino, cenário e objetos de cena
A montagem realizada e filmada em 2012 contou com cenário criado por Fernando
Mello da Costa e figurino de Ticiana Passos. O cenário conta com o próprio piano, que se
movimenta no palco, no decorrer da peça. Conta também com um suporte para as roupas que
serão, inclusive, modificadas ou trocadas em cena. Basicamente, o pianista inicia sua atuação
de fraque e pés descalços e, depois, tira a casaca. A bailarina inicia a peça com um figurino
cor da pele, colado ao corpo e, depois, coloca um vestido vermelho – sempre com os pés
descalços. Como objeto de cena, há uma revista, um espanador, um lençol, um copo, uma
garrafa – com líquido dentro, uma caveira – apenas a cabeça, um cigarro e um aparelho de
rádio, de modelo antigo, que tem importante função na peça – a cena simula que este esteja
funcionando, embora os sons que supostamente produziria sejam forjados, pré-gravados e
difundidos cuidadosamente para fazer parecer por ele emitidos.
3.5.5.4 Iluminação artística
A iluminação artística foi assinada por Luiz Paulo Neném e é de fundamental
importância na construção cênica da peça.
3.5.5.5 Exposição de relações e costumes típicos do meio musical
De certa forma, a peça expõe o cotidiano do pianista que se caracteriza pela
dedicação exclusiva ao instrumento e à música. A atenção que a bailarina roga ao artista que
divida o palco com ela denuncia certa falta de hábito e de habilidade do pianista ao lidar com
outras linguagens artísticas e outras situações fora o seu dia-a-dia ao instrumento. Após muita
insistência da bailarina, o pianista passa a interagir.
3.5.5.6 Sugestão de classificação entre os termos de música cênica comentados neste trabalho
129
O termo teatro instrumental, comentado no primeiro capítulo deste trabalho, se
encaixa perfeitamente nas características desta peça.170
3.5.6 Narrativa
A narrativa é direta.
3.5.6.1 Linearidade
A narrativa é linear, embora, no momento da locução advinda do aparelho de rádio, o
pianista seja induzido a reviver um tempo passado para, em seguida, retornar ao presente, no
tempo transcorrido a partir do início da cena. Mesmo podendo ser interpretada de diversas
maneiras por cada ouvinte/espectador, há uma estória encenada, nesse espetáculo.
3.5.6.2 Texto
O roteiro do espetáculo é criação dos intérpretes/autores. O texto falado, pré-gravado
pelo próprio compositor, entre os 26 e os 33 minutos de apresentação, são de autoria de
Taborda. O texto narra memórias do músico em suas aulas de piano, na residência da
professora: momentos que lhe marcaram a infância e o acompanharam por toda a vida:
[26:00 O pianista liga o rádio, que está tocando um tango junto à voz de um
locutor (a voz pré-gravada, é do próprio Tato Taborda):] Foi numa dessas
noites em que fazia as contas dos anos passados, como de moedas que eu
tinha deixado escapar dos meus dedos sem muito cuidado quando me visitou
a lembrança de ... [ruídos de interferência na transmissão] Celina nem
sempre entrava na lembrança como entrava pela porta da sala. Às vezes já se
encontrava ali, sentada ao lado do piano. Quase sempre, Celina, minha
professora de piano quando eu tinha 10 anos... [ruídos de interferência na
transmissão] Celina quase sempre... [ruídos de interferência na transmissão]
Quando chegava à casa de Celina, embora as árvores tivessem ficado no
caminho, eu sentia que o caprichoso ar que vinha do pensamento... [ruídos
de interferência na transmissão] me fazia colocar as mãos sobre as teclas e
com os dedos dela levantava os meus, como se ensinasse uma aranha a
mover as patas. [As mãos da bailarina passeiam por sobre o piano enquanto
todo o seu corpo está por trás do instrumento] ... encontravam os sons que
170
O termo dança-teatro tem sido usado em paralelo ao que se entende por música-teatro, mesmo
sabendo-se que a dança já apresenta naturalmente, mais do que a música, interdisciplinaridade em
relação a outras linguagens artísticas, em especial, a música e os elementos teatrais tais como
figurino e cenário.
130
encantavam todos os objetos. Os objetos tinham mais vida do que nós.
Atravessados sobre as teclas, como um trilho sobre dormentes, havia um
grande lápis vermelho. Quando Celina o segurava para fazer anotações no
livro de música, o lápis desejava que o deixassem escrever. Ele se movia
ansioso entre os dedos que o prendiam e com seu olho único e pontiagudo,
olhava indeciso e oscilante de um lado para outro... [ruídos de interferência
na transmissão] Na sala [a bailarina continua fazendo interferências ansiosas
na cena, por trás do piano, mostrando cabeça, pé, braços e objetos
relacionados com a narração, aparecendo e desaparecendo rapidamente]
havia muitas coisas que me provocavam o desejo de procurar segredos.
Primeiro, se via o branco: as capas grandes do piano e do sofá e outras
menores nas poltronas e nas cadeiras. Eu ia em direção a uma mulher de
mármore e passava os dedos por sua garganta. O busto estava colocado em
uma mesa de pernas compridas e finas. Eu segurava a mulher pelo cabelo
com uma mão para acariciá-la com a outra. O cabelo não era de pelos e, sim,
de mármore [a bailarina agita um espanador]. Quando ia começar o seio, o
busto terminava e começava um cubo sobre o qual se apoiava toda a figura
[ruídos de interferência na transmissão]. Comecei a sentir as pessoas como
móveis que mudassem de posição. Móveis que além de poderem estar
quietos também se moviam. De repente, abriram as portas, jogavam tudo
sobre nós. O piano era uma boa pessoa. Eu me sentava perto dele e com os
meus poucos dedos, apertava muito dos seus, tanto brancos como pretos e,
em seguida, saíam dele gotas de sons. [ruídos de interferência na
transmissão] O braço nu de Celina: toda ela estava naquele braço. As partes
perderam a misteriosa relação que as une, perderam seu equilíbrio, se
separaram e o espantoso jogo de suas proporções se detem: parecem feitas
por um mau desenhista. [ruídos de interferência na transmissão] Primeiro, eu
estava tão tranqüilo como um copo d‟água em cima da mesa. Depois, ela
passava muito perto e sem se dar conta, tropeçava na mesa e agitava a água
do copo. À noite, eu ia até a margem de um rio para ver correr a água da
recordação. [A bailarina prossegue em suas traquinagens, como uma criança
que quer chamar atenção]. Quando eu tirava um pouco d‟água do copo e
ficava triste porque essa água era pouca e não corria, eu inventava
movimentos para conter a água e me consolava contemplando a água nas
suas variadas formas de saltar. Na última função do meu teatro de variedades
da lembrança, há um instante que Celina entra e eu não sei que ela é só uma
lembrança. Em algum instante fugaz, tenho tempo de me dar conta de que
passou por mim um ar de prazer porque ela veio. A aluna se acomoda para
recordar como se acomoda o corpo na cadeira de cinema. Não posso pensar
se a projeção não é nítida, se estou sentado muito atrás, não sei mesmo se
sou o operador. Não sei se vim ou se alguém me trouxe. Não estranharia que
tivesse sido a própria Celina. Desde aquele tempo podia ter saído de perto
dela como fios que crescessem em direção ao futuro e que é ela ainda quem
maneja. Aquele lápis vermelho, tão lindo... [A bailarina permanece tentando
atrapalhar-lhe até as lembranças saltitando, impaciente] Eu ouvia o som de
sua madeira contra os ossos dos meus dedos. O som dos ossos, o som da
madeira... E começava a crescer uma dor por todo o corpo: o silêncio de um
pesadelo. Celina! Celina! Celina! Celina! Celina! Celina! Celina! Celina!
Celina... [Desliga o rádio]. (TABORDA, 2012).171
3.5.6.3 Relação entre palavras e sons
171
Documento não paginado.
131
A interjeição Hei!, emitida pela voz do pianista se relaciona com sua primeira
experiência, na peça, de manipulação das cordas do piano.
O texto virtualmente transmitido através do aparelho de rádio antigo é tratado em sua
pré-gravação com ruídos que simulam interferência na transmissão, como se a estação
estivesse mal sintonizada. Um tango tocado por um piano e uma orquestra de cordas serve de
fundo musical para a locução do próprio autor.
3.5.7 Indeterminação (o acaso, o imponderável, o efêmero na apresentação musical)
Embora não seja tudo improvisação, o nível de indeterminação em Caprichosa voz
que vem do pensamento é bastante alto, “[...] a música que eu toco tem uma mobilidade muito
grande sobre estruturas com certa estabilidade. Não é tudo improvisado. Tem uma estrutura
pronta, onde há liberdades. Há flutuações possíveis, mas numa configuração estável”.
(informação verbal).172
Taborda explica de que maneira isso ocorre:
[...] Desenvolvemos uma forma de relacionamento entre movimento e som
em que eu me transformo a partir da movimentação dela e ela se transforma
a partir da modulação do que eu faço: modulação de intensidade, de
velocidade, de tempo, pausas. Chamamos isso de Exercícios de Escuta173
porque é uma escuta além, talvez, da escuta fisiológica. Ela [a bailarina
Maria Alice Poppe] escuta o corpo por dentro, na dança interna. Nessa ideia
de olhar para dentro, mais do que olhar, há a escuta do corpo. (informação
verbal, grifo nosso).174
Embora se possa pensar que performances baseadas na improvisação sejam
relativamente simples, tal pensamento não condiz com a realidade. É necessário, nesse tipo de
processo, que os intérpretes conheçam-se bem uns aos outros, tenham facilidade em
integrarem-se e em adaptarem-se ao ambiente interdisciplinar transpondo prontamente aos
possíveis obstáculos que encontrarem. (SALZMAN; DÉSI, 2008).
O fato de não possuir partitura confere a Caprichosa voz que vem do pensamento certa
peculiaridade em seus aspectos de indeterminação. De acordo com Salzman e Dési (2008),
172
Entrevista com o compositor Tato Taborda, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 18 de julho de
2012. (Apêndice E, p. 249). 173
Título da peça em sua versão original. 174
ENTREVISTA..., op. cit., p. 249.
132
uma obra sem partitura remete a um tipo de trabalho que não somente lida artisticamente com
o efêmero, mas que pode também ser como um evento concebido para determinada hora e
lugar num momento único.
3.5.8 Tecnologias (uso de equipamentos)
O uso de equipamentos nesta peça se relaciona com os alto-falantes, na sonorização
necessária à difusão de sons pré-gravados e à iluminação artística, que é grande aliada na
interpretação da peça e torna-se, na sua realização, elemento importante da performance.
3.5.9 Intérprete
O intérprete e o compositor são a mesma pessoa.
3.5.9.1 Relação compositor-intérprete: interação no processo de realização da obra
Nas mais recentes obras de música cênica ligadas ao teatro e à dança, a música é
sujeita aos movimentos dos bailarinos e atores no palco. Muitas vezes, além de não terem a
partitura musical, os intérpretes não possuem sequer um texto de instruções. São, desse modo,
intimados a tomarem para si, junto ao compositor, parte da “responsabilidade estrutural” da
peça (SALZMAN; DÉSI, 2008). No caso de Caprichosa voz que vem do pensamento, os
intérpretes criaram tanto os movimentos da dança, quanto a música e a cena. Portanto, a
interação é total e absoluta entre compositor e intérprete, nesse caso. A intimidade do casal de
intérpretes, que são também autores da peça, se revela no decorrer do espetáculo: na
naturalidade com que se relacionam nos movimentos e se comunicam em cena.
3.5.9.2 Novo virtuosismo
O uso da voz, a manipulação das cordas do piano, a intensa movimentação e atuação
cênica, além de também intenso e extenso exercício de improvisação, desafiam a formação
tradicional: o intérprete, nesta peça, elabora novas maneiras de interagir com a música.
3.5.9.3 Consciência do contexto de criação da obra, autoconsciência e consciência da
comunicabilidade do que está sendo apresentado
133
A consciência do contexto de criação da obra é total, uma vez que o intérprete é o
próprio autor. A autoconsciência, no exercício de um novo virtuosismo, faz parte do processo
em que criação e interpretação se confundem. A obra se desenvolve e se complementa durante
os ensaios. A consciência da comunicabilidade do que está sendo apresentado também se
desenvolve durante a montagem teatral que tem como princípio tornar a cena acessível a
quem a vê e ouve.
3.5.10 Realização
Esta peça exige formação de equipe. A manipulação das tecnologias que demanda é
parte integrante da atuação artística na sua realização.
3.5.10.1 Formação de equipe: associação entre profissionais da mesma área ou de áreas
diversas
A difusão de sons pré-gravados junto aos sons realizados em tempo real exige que
profissional competente opere o equipamento compatível com as exigências do local de
apresentação. Assim também ocorre com a iluminação artística detalhada. A realização da
apresentação gravada em áudio e vídeo em 2012 contou com a direção de produção da firma
Lúdico Produções.
3.5.10.2 Formação de grupos artísticos e movimentos culturais
Taborda realiza suas obras através de convites ou, por iniciativa própria, concorre a
financiamentos através de editais públicos: “A Caprichosa voz que vem do pensamento é um
projeto meu e da [Maria] Alice [Poppe]. Ganhamos edital, chamamos a equipe”. (informação
verbal).175 Quando ganha um edital, o trabalho de produção executiva é quase ou tão intenso
quanto o trabalho de produção artística: “Nesses casos, somos responsáveis por fazer o
projeto, contratar a equipe e assegurar que essa equipe tenha as condições necessárias para a
175
Entrevista com o compositor Tato Taborda, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 18 de julho
de 2012. (Apêndice E, p. 252).
134
realização das suas visões, dentro dos limites orçamentários do projeto, e fazer ponte com a
comunicação social: ser totalmente atuante”. (informação verbal).176
3.5.10.3 Espaços convencionais, modificados ou alternativos
A princípio, qualquer espaço que possua um piano de armário poderá ser adequado à
realização dessa peça, desde que sejam adaptadas ao local as necessidades do uso de
equipamentos de luz e som.
3.5.10.4 Relação com as plateias
As características do local de apresentação, o comportamento da plateia, suas reações
e as opiniões da crítica interferem no processo criativo: “Análise e crítica não possuem apenas
efeito retrospectivo, mas também criativo [...]” (SALZMAN; DÉSI, 2008, p. 328, tradução
nossa).177
A relação da obra de Tato Taborda com o público é intensa e indireta. Intensa porque
apresenta humor, romance, revelações de devaneios de infância e sensualidade –
características que podem ser consideradas como amplamente acessíveis ao público. Indireta
porque, ainda assim, não há qualquer tipo de preocupação, por parte do compositor, em
conquistar previamente a aprovação das plateias.
176
Entrevista com o compositor Tato Taborda, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 18 de julho
de 2012. (Apêndice E, p. 239). 177
“Analysis and criticism are therefore not only retrospective but creative as well […]”. (SALZMAN;
DÉSI, 2008, p. 328).
135
4 COMPOSITOR E INTÉRPRETE: EXPERIÊNCIA DE COLABORAÇÃO NA
MÚSICA CÊNICA
A viabilização de um processo que conduza a um fazer musical consistente no
amadurecimento das associações artísticas depende da compreensão dos músicos com relação
à importância em aliarem-se aos interesses dos seus pares: interesses que conversam entre si
porque encontram assuntos em comum, porque possuem vivência compatível, porque falam a
mesma língua ou porque estão abertos ao diálogo com diferentes linguagens. Dessa forma,
têm mais chance de se entenderem na finalidade de divulgar e registrar a música do seu
tempo.
Partituras de música são documentos precários enquanto guias de instruções para os
intérpretes e nem sempre as interpretações registradas – nem mesmo as dos próprios
compositores/instrumentistas – são as melhores referências. (KIVY, 1995). Além disso, em
peças contemporâneas, há larga presença de elementos de indeterminação e de elementos
gráficos pouco – ou nada – usuais. Assim sendo, o contato entre intérpretes e compositores é
positivo no sentido de esclarecer e contribuir para a elaboração da interpretação. No sentido
inverso, ocorrem também esclarecimentos e contribuições dos intérpretes com relações às
obras no que se refere às possibilidades idiomáticas de cada instrumento e da
compreensibilidade da notação musical, entre outros aspectos de cada peça.
Glokobar (1970, tradução nossa)178 afirmou:
A interdependência entre compositor e intérprete se tornou atualmente um
dos problemas fundamentais da nossa música. De acordo com experiências
recentes e avanços da música aleatória e da música notada através de
gráficos, que entre outras coisas demandou maior responsabilidade para o
intérprete, é um desejo, hoje, deixar que este participe mais profundamente
na criação musical. Nós gostaríamos que ele se engajasse totalmente, não
apenas com o uso de sua proficiência técnica na obra, mas também com sua
capacidade de invenção, com sua habilidade em decidir em maior ou menor
grau e reagir espontaneamente – ou seja: com seu „conteúdo psíquico‟.179
178
Documento online não paginado. 179
“The interdependence between composer and performer has nowadays become one of the
fundamental problems in our music. Owing to recent experiences and acquisitions in aleatoric and
graphic music which among other things developed a responsibility from the side of the performer, it
is a desire today to let the performer participate more deeply in the musical creation. We would like
him to engage totally, not just use his technical proficiency about the work but also his capability of
inventions, his ability for decisions and mor or less spontaneous reactions, in one word – his „psychic
contents‟”(GLOKOBAR, 1970).
136
E Domenici (2010, p. 1) escreveu também a respeito:
Colaboração entre compositores e intérpretes tem sido uma prática comum
nos últimos 50 anos. Contudo, a falta de documentação e estudos dedicados
a esse fenômeno parece ser um claro indicador da aceitação do modelo
hierárquico das relações compositor-intérprete. Fundado sobre a noção
romântica da obra de arte autônoma esse modelo adquiriu força. [...] A falta
de documentação de colaborações não só aponta para um descaso para com
o papel do intérprete na criação, difusão e recepção de novas obras musicais
mas, além disso, despreza o processo de troca e seu impacto tanto para a
composição quanto para a performance.
Segundo Domenici, na relação entre compositor e intérprete um revela ao outro os
aspectos da obra que só são perceptíveis, a cada um, do seu ponto de vista através de
percepções “privilegiadas” só disponíveis nas referidas posições de autor e de executante:
“Unidos no propósito comum da criação artística, essas duas vozes estabelecem um diálogo,
compartilhando o seu „excesso de visão‟ e superando a mútua deficiência de percepção”.
(DOMENICI, 2010, p. 2). Entretanto, essa troca só pode ocorrer se houver suficiente
autonomia do instrumentista executor para a criação da própria interpretação, de maneira que
sua identidade artística possa conversar com as ideias do compositor: “Uma relação dialógica
só pode se estabelecer a partir de um intérprete como sujeito ativo com direito à voz”.
(DOMENICI, 2010, p. 2).
Domenici (2010, p. 1146) classifica duas distintas funções do intérprete na interação
dialógica com o compositor. A primeira é a função mediadora, que “consiste da sugestão de
maneiras mais apropriadas de utilizar os recursos do instrumento, bem como de maneiras
mais claras e precisas de comunicar determinada idéia ou gesto através da notação musical”.
Sobre isso, o compositor Csekö revela:
[...] Eu sempre estabeleço muito contato com o instrumentista, é
fundamental. Também era uma das propostas do pessoal de composição de
Brasília ter um contato estreito com as pessoas que estão produzindo o som,
com o instrumentista, ao invés de ficar naquela redoma dos manuais.
(informação verbal).180
A segunda é a função inspiradora, relativa à influência da atitude e interpretação do
executante na obra cujas ideias são expandidas e retrabalhadas pelo compositor a partir dessa
180
Entrevista com o compositor Luiz Carlos Csekö, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 22 de
setembro de 2010. (Apêndice A, p. 168).
137
interferência: “O estudo das interações compositor-intérprete permite vislumbrar obras
musicais e suas performances como produtos de interações humanas e não mais como
abstrações criadas por deuses e sacerdotisas de Apolo.” (DOMENICI, 2010, p. 5).
Na aproximação entre compositores e intérpretes existe sempre a possibilidade de,
estabelecido um vínculo entre disposições artísticas, ampliar e renovar, arejar e fomentar os
espaços já existentes de criação musical.
A oportunidade da autora desta tese, que é pianista, de estrear uma peça de música
contemporânea com a presença e a direção do próprio compositor surgiu como experiência
importante para determinado grupo de músicos envolvidos na disciplina de Tópicos
Especiais: Redimensionando o papel do compositor e do intérprete na música
contemporânea, do Programa de Pós-Graduação em Música da UNIRIO, no primeiro
semestre letivo do ano de 2010, sob orientação da Professora Dra Vânia Dantas Leite. O
compositor Luciano Garcez adaptou a peça de sua autoria intitulada O espírito da qoisa numa
versão criada em função do grupo instrumental/vocal disponível.
No conjunto que seria formado por piano, violoncelos, clarone, voz, sons e imagens
pré-gravados, a substituição de instrumentos levou o compositor a mudar as instruções da
peça, deixando em aberto as possibilidades de formação instrumental. O instrumental de
estreia ocorreu através da associação entre instrumentistas na convivência do ambiente
acadêmico. Essa adaptação às possibilidades do momento transformou os violoncelos em
trombones e o clarone em clarinete. As instruções em partitura indicam técnicas
composicionais e linguagem tradicionais em paralelo à prescrição eletroacústica: música
eletrônica mista. Em manuscrito, despojada, recheada de poesia e interrogações, mudanças
bruscas – súbitas – de ideias, uma franqueza corajosa irrompe fronteiras entre gêneros e
estilos, se arrisca entre o escrito e o não dito, expõe ao intérprete vasta margem para suas
escolhas e atalhos para sua interpretação enquanto enredado em um “labirinto complexo”,
“onde os ecos se reverberam uns nos outros” e onde “gritos das ruas, devoções subliminares e
parentes próximos visam uma síntese”. (GARCEZ, 2010c).
A relação entre intérprete e compositor pode significar a busca por instruções exatas,
que transponham os sinais gráficos e outras orientações da partitura. Entretanto, instruções
exatas não significam instruções totalmente restritivas: conservam, ainda, margem aberta à
interpretação pessoal clara e franca. Na experiência em questão, os itens negociados foram,
138
principalmente, andamentos, agógica e textura.181 A estreia de uma obra sob a supervisão do
autor, com direito a troca de ideias, observações, restrições e entusiasmo representa a vivência
de um tipo de processo criativo que constitui uma maneira coletiva de dar vida à música. A
peça, dividida em pequenas seções de caráter diferenciado entre si, teve a condução do
próprio compositor-regente. Nela, o piano apresenta-se como guia básico para os outros
instrumentos e para a voz. A mezzo-soprano fala, declama, discursa, pensa alto, faz pregão,
faz oração, lamenta, cantarola, canta, se movimenta no palco e passeia flexível sobre a música
de citações a Monteverdi, Schubert, Chiquinha Gonzaga, Herivelto Martins, Tom Jobim,
Milton Nascimento. Do período Barroco ao século XX, uma composição do século XXI
transita entre temas de obras do gênero clássico ao popular e comenta desde os abusos e a
agressividade da propaganda e do marketing até a poesia romântica de tendência suicida. Com
tudo isso, forma-se um retrato do homem ocidental, uma quase constatação da condição
humana através dos tempos e da música na confusão da era que já se pode chamar de pós-pós-
moderna, uma vez que já se pode observar e criticar o ecletismo, a multiplicidade e a
amoralidade da chamada pós-modernidade num contexto típico do conjunto de obras de
Garcez, em que “[...] não há um continuum perceptivo, mas pequenos sustos de
descontinuidade e irrupções de medo, retórica e certo nonsense calculado”. (FERNANDES,
2012 apud GARCEZ, 2012).182
Breton (1924 apud GARCEZ, 2010b) destaca no texto falado, o seguinte trecho do
Manifesto Surreralista: “[...] inútil acrescentar que à própria experiência foram impostos
limites/ ela circula em um gradeado de onde é cada vez mais difícil fazê-la sair/ ela se apóia
na utilidade imediata e é guardada pelo bom senso”. De questões sociais e religiosas em Ave
Maria no morro até as propagandas que disputam a preferência dos consumidores através de
carros de som em alto volume, anunciando siglas de produtos comerciais e representações
políticas, pedindo votos e querendo impor comportamentos, as questões estilísticas são
expostas em painel de períodos diversos que embaralha contrastes da sucessão de
processos/acontecimentos históricos a serem tratados em dez minutos, exibindo o espírito da
qoisa: tudo isso, segundo Garcez (2010c), numa “tentativa própria e auto-referente de
construir um micromundo a partir de temas, ideias, paráfrases, teatralidades e etc. de todo o
„fora‟ que seria o Brasil de hoje”.
181
Em determinado trecho, a intérprete pode escolher linha(s) entre as vozes disponíveis na textura
contrapontística. 182
Texto de Marcelo Tápia Fernandes, poeta, tradutor, doutor em Teoria Literária e Literatura pela
USP, localizado na orelha da publicação.
139
A qoisa é algo que não se pode pegar. Não é objeto, não é substantivo, é algo ao
mesmo tempo indefinido e transcendente, surreal. A trajetória de um ser viajante oriundo do
século XVIII, diretamente do pensamento iluminista e revolucionário – libertário, igualitário e
idealmente fraterno – para a pós-modernidade carioca, que representa o Brasil em suas
crenças, misérias, culturas, exuberâncias, paisagens, litorais, apelos sensuais, corrupções,
politicagens e comportamentos globalizados através de campanhas multinacionais de
marketing agressivo. Descreve um passeio pelo tempo. Em ambientes que variam entre o que
se pode identificar como despretensão e angústia, tumulto e contemplação, O espírito da
qoisa cita Müller, Breton, Bachelard, Appolinaire e Rimbaud em texto falado, cantado e
canto-falado:
Figura 38 – Texto O espírito da qoisa de Luciano Garcez
Sol tu, nobile Dio, puoi darmi aita...
(Monteverdi)
“trago a vós minha cabeça e minha palavra –
darei a primeira depois que ouvirem a segunda”.
Frend bin ich eingezogen
como um estranho (melodia de Gute Nacht – Schubert)
me voy
aquela Alma do Tempo
uma clarinada mezzo-farisaica em mim.
“inútil acrescenter que à própria experiência foram impostos limites
ela circula em um gradeado de onde é cada vez mais difícil fazê-la sair
ela se apóia na utilidade imediata e é guardada pelo bom senso”
(Breton, “Manifesto Surrealista” – 1924)
vejo corvos cinéticos
e uma distímica tília vejo
ao final do longo turno
um link que traz à sua porta um nordestino tocador de realejo.
140
e eu, que já contratei
os serviços de acompanhante
da solidão (melodia do “Abre-Alas”)
com ela atravessei a sala vazia mas ensolarada
florescendo pela boca descabida de minha avó:
E seppellire lassù in montagna,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
E seppellire
sotto l'ombra di un bel fior.
“quando, na nova casa, voltam as lembranças das antigas moradias,
viajamos até o país da Infância Imóvel,
Imóvel como o Imemorial
vivemos fixações, fixações de felicidade”
(Bachelard – A Poética do Espaço)
TV, CD, LCD, MTV, PMD, ECT, TCC, PMDB, MPB, DVD, VCD, CVV, AVC, PVC, TBC, PCC,
BBC, dendê, ABC, tudo você vê em promoção e em indeléveis vezes sem juros – venha provar,
minha senhora, é uma delícia !
Parteira Nossa Senhora Nigra
Dolorosa Padroeira do Brasil
Polorum Regina será mesmo o hino do futuro paradisíaco?
Omnum nostra Stella matutina por que o povo tem que ir onde o artista está ?
Dele Scelera
Ante portum Virgo
Deo gravida por delicadeza, je perdi meu País.
Fonte: Garcez (2010b).183
183
Documento não paginado.
141
A respeito da estreia, quando indagado a respeito das imagens que faziam parte da
ideia na composição de O espírito da qoisa, Garcez respondeu:
O espírito da qoisa previa imagens e movimentação cênica [na estreia]. Se
forçássemos, ia sair uma coisa muito grotesca. Nós precisaríamos de uma
equipe maior e de mais tempo para mais ensaios. As imagens seriam
documentos da Revolução Francesa fundidos a pores-de-sol. Precisariamos
também de mais equipamentos. As ideas estão anotadas na partitura original.
O que fizemos foi uma versão. Precisaríamos de mais ensaios para fazer soar
de maneira orgânica, inteiriça, para que as pessoas não olhassem e
pensassem: „Olha, está aparecendo um vídeo!‟. O ideal é que não haja tempo
para que elas pensem. Elas devem ser invadidas pela coisa. (informação
verbal, grifo nosso).184
Após a primeira apresentação, as imagens foram elaboradas em conjunto pela pianista,
pelo compositor e pelo editor de vídeo: imagens disponíveis da internet se somaram a
fotografias e vídeos produzidos especialmente para a música. O Rio de Janeiro foi registrado
em fragmentos da Barra da Tijuca ao Centro, pela orla, em grandes avenidas e praças.
Fachadas comerciais, propagandas políticas, comida nordestina, uma boca e um beijo de
mulher, um abutre sobre a cruz de uma igreja, o mar, a praia, os banhistas, os transeuntes:
uma sequência se repete, entrelaçando-se e alternando-se ao viajante oriundo do século XVIII
que estaria, em sua peregrinação, passando pela cidade com toda sua a sua história, em
menções à Revolução Francesa e ao Romantismo.
A título de experimentação, a partir das imagens gravadas de maneira rudimentar na
apresentação da estreia, as imagens criadas em equipe foram superpostas. O objetivo,
entretanto, é que, em nova apresentação, essas sejam projetadas, além da tela, sobre os
instrumentistas e sobre a plateia, fazendo parecer, segundo o autor, tatuagens sobre a pele.
O espírito da qoisa é música cênica, no uso mais abrangente do termo. Não se trata de
música-teatro, pois não há ação cênica explícita. Tampouco se trata de teatro instrumental,
uma vez que os músicos não se estabelecem como atores. Também não se pode dizer que seja
exatamente música-vídeo, pois embora concebidas concomitantemente à música, as imagens
são – e assim ocorreu na versão apresentada – elaboradas junto aos intérpretes para projeção
no momento da apresentação. Não constituem um trabalho encerrado. As imagens
permanecem abertas a novas versões.
184
Entrevista com Luciano Garcez, em sua residência, em Santa Tereza (RJ), em 22 de agosto de 2010.
(Apêndice F, p. 260).
142
Nos sons pré-gravados, o som da voz da própria cantora, processado, soma-se ao som
emitido ao vivo e a outros sons, manipulados, montados por profissional especializado em
tecnologia musical e deflagrados mediante comando do compositor/regente. O operador que
lida com a tecnologia se tornou mais um músico, essencial à identidade do grupo na
apresentação da peça tanto quanto cada um dos outros instrumentistas. O autor e regente, na
condução do processo, precisou transpor as dificuldades peculiares do trabalho em grupo,
envolvendo subgrupos em ensaios comentados.
Houve dúvida quanto à sonorização necessária e adequada para a sala de concerto. As
dificuldades de sonorização para a espacialização dos sons pré-gravados, conforme o
planejado para uma ótima compreensão musical das articulações, palavras e texturas,
decorreram do manuseio do equipamento disponível. A sonorização aplicada para a voz
diante da parte do computador e dos outros instrumentos necessita de cuidados especiais. O
som acústico do piano, trombones e clarineta contra os sons amplificados da voz e dos sons
pré-gravados na única apresentação – que teria sido a primeira audição da peça - ameaçaram o
equilíbrio necessário a uma boa apreciação da obra. Esse é um problema específico da música
que utiliza meios eletrônicos, que é da alçada de profissionais experientes e que tem de ser
solucionado através de conhecimento, de técnica e de experimentação. Ensaios já com a
sonorização prevista e detalhadamente planejada, levando em consideração inclusive o
tamanho e as características da sala, podem fazer com que se possa chegar ao que se considera
como ideal: no caso, uma sonoridade fiel à obra, que não apresente distorções não desejadas.
A tecnologia viabiliza as obras, as performances, as ideias de compositores
contemporâneos. A atenção dos instrumentistas, dos pianistas a esse aspecto da música dos
novos tempos faz-se imprescindível. Ao mesmo tempo, alinhado ao uso da tecnologia,
tendência identificada através dos costumes da sociedade que se transforma e que influencia a
criação artística, o prestígio do piano, que persiste, como instrumento cuja importância
atravessa os séculos, na música de compositores atuais, pode entusiasmar e mover intérpretes
especializados, solistas treinados como executantes – não apenas executores – participativos
junto aos compositores de seu tempo na criação de uma arte que transpareça o pensamento
humano no século que se inicia.
O isolamento é uma das características dos pianistas clássicos cujo trabalho é
individual, na maior parte do tempo. Compositores, técnicos, divulgadores e produtores não
fazem parte de sua rotina de estudos. Entretanto, nos casos de música que envolve
indeterminação, iluminação, cena, sons e imagens pré-gravados, os compositores e os
intérpretes – o que inclui os especialistas em tecnologia – trabalham em equipe mesmo que
143
não se dêem conta disso. A atenção dispensada às demandas dessa parceria pode vir a
colaborar para o bom desempenho artístico de todos os envolvidos no interesse artístico que
compartilham.
Luciano Locozelli Garcez nasceu em 08 de dezembro de 1972, na cidade de São
Bernardo do Campo/SP. O compositor, regente e poeta se formou no Curso de Composição e
Regência da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) e tornou-se
Mestre, também em Composição, pelo PPGM da UNIRIO, tendo sido aluno de Flô Menezes,
Edson Zampronha e Carole Gubernikoff. Filho de professora de piano e teoria musical,
estudou violão na infância. Promoveu, em sua obra, comunicação permanente entre música
erudita e popular.
Sua formação na infância através do violão popular e do piano erudito não ocorreu de
forma convencional: “[...] Eu abri o piano e comecei a brincar, a tocar. Comecei a pegar os
livros, comecei a ler ao piano. Fui meio autodidata. Quem me ensinou um pouco a teoria foi a
professora de violão. Minha mãe não se meteu em nada”. (informação verbal).185
Fascinado pela integração música/poesia, Luciano Garcez é autor de cerca de 400
canções. O compositor escreve as letras de suas canções de maneira autônoma – em sua verve
fluente e obsessiva – ou estabelece parceria com autores diversos.
Publicou, em 2010, Salutz a uma dama moura (Editora Multifoco) e As cidades
cediças, em 2012 (Editora Verve). Sua poesia apresenta, assim como a sua música, disposição
para a fusão, interação e superposição de imagens, não apenas como manifestação natural da
cultura pós-moderna, mas também como forma de observar e criticar essa mesma pós-
modernidade da qual é representante. Em 2011, lançou o CD You‟re the trickster186 cuja
música vai “[...] até o morro buscando a Ode grega”, sai “[...] do quintal da Tia Ciata
assobiando Schoenberg”, dissolve “[...] a Bossa-Nova em ruptas moléculas de punk rock” e
toma “[...] água de coco nas nuvens com o tranqüilo Dorival [Caymmi]”. (GARCEZ, [20--?]).
No conjunto de sua obra, segundo Garcez, “estilos, épocas e gêneros se misturam com
a mesma elegância abstrata dos temas tão difusos que se organizam em uma prateleira [...]”.
(OH SIRENA..., [20--?]).187 contextualizando, assim, de certa forma, a geração pós-abertura
no Brasil. Refere-se à era pós-moderna como a era do consumismo doentio, à Indústria da
185
Entrevista com Luciano Garcez, em sua residência, em Santa Tereza (RJ), em 22 de agosto de 2010.
(Apêndice F, p. 253). 186
Trickster é um personagem mítico que existe em todas as culturas, que “[...] atua com diversas
máscaras e posturas, sendo mutante por excelência e instaurador do caos para que uma ordem
posterior, e nova, prevaleça.” (GARCEZ, [20--?]). 187
Documento online não paginado.
144
Cultura como uma “menina dos olhos cegados que vê”, à Internet como “a silenciosa maioria
do „mais real que o real‟ e a um “vazio crônico no lugar do desejo de transcender”. Observa
que, nos tempos atuais, “a alma foi reduzida a um complexo muro neuronal” e transforma
essa em uma das grandes questões que norteiam o seu trabalho. (OH SIRENA..., [20--?]).188
O misticismo que ronda sua obra tem origem no berço. Apesar de ser descendente de
um encontro de famílias portuguesa e italiana, cultiva certas tradições místicas africanas, além
do catolicismo e espiritismo kardecista:
[...] A minha família é de origem portuguesa e italiana. A parte de mãe é
toda italiana, Locozelli, e por parte de pai é toda portuguesa. Então, são
quatro famílias italianas e, que eu me lembre, duas famílias portuguesas que
se encontraram. Por isso, eu tive formação católica, fiz o catecismo muito
pelo contato com as minhas avós italianas porque na Itália o catolicismo é
absolutamente forte. Tem também uma história, da minha mãe e do meu pai,
de os dois serem espíritas, meio de mesa branca e meio de umbanda e a
minha mãe ser uma pessoa que tem uma mediunidade muito forte, muito
forte. Desde que eu ainda era criança, a minha mãe incorporava uma preta
velha e o meu pai incorporava caboclo. Eu lembro muito criança a minha
mãe recebendo os guias. Não era exatamente candomblé, era mais umbanda,
mesa branca, espiritismo. No candomblé, que seria o lado mais africano,
quem entrou mesmo fui eu e bem mais tarde. Mas eu me lembro da minha
mãe recebendo, inclusive, uma preta velha que se chamava Vó Maria, eu
acho, e as pessoas iam atrás dela. Eu me lembro de ter, assim, quinze
pessoas em casa para se consultar com a minha mãe. [...] O meu pai também
era médium e via coisas com uma clareza assustadora. (informação
verbal).189
Define-se como um romântico idólatra que tem extremo zelo pela forma e que
conversa com novas tecnologias através da linguagem da música contemporânea. Assim
como os compositores atuantes no Rio de Janeiro já citados, Garcez pensa a apresentação
musical como espetáculo e mantém estreita relação com as artes cênicas, que se reflete nas
performances que ele mesmo promove e dirige quando expõe suas obras.
Suas relações com intérpretes nunca foram conflituosas. Ao contrário, Garcez teve
sempre facilidade em associar-se tanto a instrumentistas e cantores aptos e interessados em
experimentar sua música, quanto a outros compositores, formando grupos e equipes de
trabalho:
188
Documento online não paginado. 189
Entrevista com Luciano Garcez, em sua residência, em Santa Tereza (RJ), em 22 de agosto de 2010.
(Apêndice F, p. 254).
145
O compositor vive totalmente através do intérprete. Essa proximidade, até intelectiva,
de você perguntar e entender mesmo a figura do compositor é fundamental porque o
compositor não é só uma partitura, é uma pessoa também. Ainda. Eu acho importante
essa questão de ver o lado humano, apesar de alguns acharem que o autor já morreu
faz tempo. Eu tive oportunidade de me associar a intérpretes acessíveis para fazer
música, experimentar, trocar ideias. Esse contato sempre foi satisfatório. A resposta do
outro, o que outro fazia, imediatamente depois que eu escrevia, alterava [o processo
composicional]. (informação verbal).190
Garcez promove sua relação com o público aproximando-se dos ouvintes através de
cursos e palestras onde oferece aos participantes a oportunidade de interagir com o universo
estético, “[...] escolhendo a música como instrumental de educação” e trazendo a música para
a “[...] realidade cotidiana, de quem ensina e de quem aprende”. (CURSOS... [20--?]).
190
Entrevista com Luciano Garcez, em sua residência, em Santa Tereza (RJ), em 22 de agosto de 2010.
(Apêndice F, p. 260).
146
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante o período de composição das peças de compositores atuantes no Rio de
Janeiro estudadas neste trabalho, entre 1967 e 2012, a música cênica sofreu transformações.
Uma delas foi o acesso, por parte de compositores e intérpretes, a novas tecnologias,
que passaram a chegar mais facilmente aos palcos e proporcionaram o desenvolvimento de
ideias que anteriormente seriam de muito mais difícil realização. Equipamentos de tecnologia
que recentemente passaram a ser de mais fácil aquisição, manuseio e portabilidade
viabilizaram difusão e projeção de som e imagem no mesmo suporte: recursos para
microfonação dos instrumentos, espacialização e processamento ao vivo. Tudo isso amplia a
noção do espaço de apresentação, possibilitando que os eventos musicais ocorram fora das
salas específicas de concerto, por exemplo. Permite também que os sons dos instrumentos
sejam virtuais – pré-gravados e difundidos em tempo real, enquanto o pianista apenas simula
a execução.
O acesso facilitado a novas tecnologias, entretanto, não quer dizer que a realização de
música cênica tenha passado a ser uma produção simples. As apresentações, em alguns casos,
exigem técnicos/artistas que manipulem os equipamentos. Técnicos, além de conhecerem o
funcionamento dos equipamentos, sabendo manuseá-los adequadamente, de alguma forma,
participam e contribuem na criação artística das peças, nessa manipulação.
A ousadia dos compositores criou situações que demandam não apenas equipamentos
específicos como intérpretes especializados. Além disso, na música cênica, as funções de
compositor e intérprete muitas vezes se confundem e/ou se expandem. O compositor é
intérprete, o intérprete é co-autor. O compositor é diretor de cena, o intérprete é co-produtor
na realização dos concertos. O compositor é artista plástico, o intérprete é bailarino. O
intérprete é ator, o compositor é coreógrafo. O compositor é light designer, o intérprete é
figurinista.
Em alguns casos, a ausência de partitura transforma o compositor ou gravações
audiovisuais nas fontes de acesso ao conteúdo musical/artístico da peça. Também há casos em
que a partitura é textual ou gráfica.
No repertório estudado, o piano é tradicional, expandido ou preparado. Apresenta-se
solo ou divide o palco, em duo com outro intérprete que pode ser de outra linguagem artística
– como ocorre no caso de Caprichosa voz que vem do pensamento, de Taborda, que interage
com uma bailarina, co-autora, na obra.
147
A interação entre linguagens artísticas é intensa. As posições, as hierarquias, os papéis
dos músicos se tornaram nebulosos, mesclados, os limites se tornaram embaçados entre as
funções de compositor, intérprete, produtor cultural, designer de cena (figurino, cenário,
direção cênica, coreografia), de luz e de som.
A exposição de relações e costumes do meio musical revela aspectos da preparação
do(a)s pianistas nos momentos anteriores à apresentação e, principalmente, situações do(a)s
instrumentistas na rotina de dedicação exclusiva ao instrumento em estudos intensos e
extensos, mostrando uma rotina solitária e limitada à preparação e à realização de concertos.
O(a) pianista utiliza a voz obrigatória ou voluntariamente com texto próprio ou do
autor. Domina outros instrumentos, além do piano, como no caso da peça de Jocy de
Oliveira, que exige intensa movimentação corporal do(a) intérprete enquanto executa ao
mesmo tempo um cravo amplificado, um piano amplificado, além de piano e órgão elétricos.
As habilidades exigidas, nesse caso, incluem a capacidade de lidar com sons amplificados dos
instrumentos.
As demandas diferenciadas da música cênica em relação às práticas interpretativas
incluem práticas teatrais e de improvisação, tendo em vista o alto grau de atuação cênica e de
indeterminação do repertório. Tais práticas exigem capacidade de invenção para a
participação em nível de criação nas obras – o que exige, por sua vez, consciência corporal,
autoconhecimento e sensibilidade pessoal de cada músico.
A postura do músico de concerto diante de uma peça cênica é, não raramente, de
parcimônica diante dos recursos extra-musicais embutidos na música pelo fato de estes não
serem treinados no gênero diante do período de formação e também pelas exigências
peculiares de formação de equipe e do uso de equipamentos – tecnologia. A busca do fazer
musical espontâneo, de sonoridade própria e autêntica, de aceitação do efêmero na
apresentação musical solo ou em grupo são atributos a serem desenvolvidos pelos intérpretes,
no novo virtuosismo, que se revertem como benefício não apenas na música cênica, mas em
todo tipo de música.
Participamos ativamente na realização de duas das peças estudadas com atuação solo e
como camerista e analisamos a interpretação de outros intérpretes nas demais obras
apresentadas.
Em fevereiro de 2013, fizemos o registro audiovisual da peça inédita de Csekö:
Es(x)tro(a)versão. A vivência na interpretação musical/teatral nos desafiou a criar, improvisar
e a desenvolver um personagem específico para a situação/cena.
148
A criação do personagem passou por diversas etapas. Inicialmente, exercemos uma
postura totalmente natural como pianista, seguindo à risca as indicações da partitura/texto. Em
seguida, ao submeter a interpretação à apreciação da soprano Professora Doutora Elke Beatriz
Riedel 191 , que é experiente na música cênica, mudamos a essência da nossa atuação.
Seguindo sua orientação, pensamos num personagem profissionalmente experiente,
experimentando o instrumento momentos antes de alguma apresentação musical. Como o
piano estivesse fechado à chave e a entrada do público fosse iminente, a pianista chamaria
aflita pelo zelador que hipoteticamente estaria com a chave do instrumento. Em seguida,
transformamos esse personagem em uma mocinha que, muito nervosa por estar prestes a
realizar uma prova com banca, demonstraria seu desespero ao perceber o piano fechado.
Terminamos por optar mesmo pelo personagem da pianista experiente que demonstrasse certa
afobação em decorrência do pouco tempo que possuía para sentir os sons graves, médios e
agudos produzidos através do piano naquela sala de concerto. A pianista chama pelo zelador
algo aflita. Identifica outra pessoa na sala de concerto e supõe que esta possa ter a chave de
que precisa. Fica aliviada em saber que o zelador saiu do recinto, mas deixou a chave com
essa encarregada – possivelmente uma auxiliar. Um pouco agitada pela situação, agradece a
essa terceira pessoa – que é uma moça – e sorri. Procura agir rapidamente enquanto
experimenta a sonoridade do piano, deixando a chave cair – inclusive a chave caiu
casualmente no chão uma vez mais do que indicado na partitura. A pianista, então, procura,
após os momentos iniciais de abertura da tampa do teclado e da tampa da caixa acústica do
instrumento – e de limpeza do teclado e ajuste do banco – acalmar-se para iniciar, enfim, sua
atuação artística com a devida concentração.
Ananda Krishna, estudante do Curso de Artes Cênicas da UFRN, que entregou as
chaves à pianista/personagem na cena, foi uma atriz convidada para participar da gravação e
colaborou, ainda, com sugestões. Opinou sobre o gestual cênico, sobre a respiração
diferenciada no início e no final da peça, sobre o figurino e sobre sua visão geral da cena.
Para conseguir o canhão de luz de facho circular indicado em partitura, entramos em
contato com Castelo Casado (Natal/RN), firma de iluminação para eventos sociais e artísticos
– que cedeu o equipamento. Contamos com o Franklyn Nogvaes, músico e videoartista que,
além de operar a câmera e captar o áudio na gravação, movimentou o canhão de luz conforme
os movimentos da pianista.
191
Professora de canto da UFRN.
149
Na peça O espírito da qoisa, de Luciano Garcez, tivemos também oportunidade
colaborar, na estreia, não apenas com a interpretação da parte de piano no conjunto
instrumental/vocal, mas com ideias, produção de fotografias e filmes para o vídeo a ser
projetado ao vivo simultâneo à realização da peça. A captação do áudio na
apresentação/gravação, elaboração e edição de vídeo foram também realizadas pelo mesmo
Franklyn Nogvaes192, em julho de 2010.
Para um bom resultado na apresentação/gravação das obras, a manipulação das
tecnologias necessita de técnicos que se envolvam artisticamente no trabalho proposto. As
parcerias, na realização das peças, marcaram significativamente essa experiência, que nos
motivou e nos inspirou a prosseguir – permanecer na trajetória de pesquisa e prática da
interpretação em direção à música cênica após a conclusão do presente trabalho.
Essa movimentação em torno da realização de música cênica nos mostrou a atuação
artística ampla – abrangente – e a necessidade de intenso envolvimento dos músicos na
realização das obras além da interpretação musical ao instrumento. Essa necessidade inclui a
reavalização/revalidação, transformação e extensão das relações tradicionais do meio musical
a novas relações com técnicos e tecnologias, com outros artistas e outras artes e, afinal, com
velhos e novos ouvintes.
As novas demandas para os músicos de concerto poderão servir como sugestão de
inclusão, na formação regular, especialmente dos pianistas clássicos, de treinamento
condizente relacionado a improvisação, consciência corporal e cênica para as apresentações,
enfrentamento de transformações na linguagem musical, disposição para a renovação de
repertório, contato com novas tecnologias, relacionamento mais próximo a outras linguagens
artísticas, contato e colaboração com compositores contemporâneos, atenção às questões que
envolvem o público ouvinte e até mesmo às relações hierárquicas do meio musical.
Esperamos poder contribuir para que intérpretes provenientes de outros locais e outras escolas
encontrem uma possibilidade de diálogo, a partir desta pesquisa, com outros músicos que já
tiveram experiência na realização de música cênica. As questões apontadas, que dizem
respeito às características do gênero e suas denominações, por exemplo, poderão minimizar
confusões inerentes à comunicação entre compositores, intérpretes, críticos, produtores e até
plateias.
Após longo percurso de estudos e investigações, concluímos este trabalho percebendo
o enorme alargamento das nossas relações com compositores e intérpretes em seus repertórios
192
Músico arranjador, vídeoartista, especialista em técnicas de áudio.
150
e práticas e acreditando na importância de futuros desdobramentos desta pesquisa em música
cênica brasileira.
151
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157
APÊNDICE A - Luiz Carlos Csekö: cena experimental de sons e luzes (interfaces)
Nascido em Salvador, Bahia, em 10 de fevereiro de 1945, Luiz Carlos Csekö é
descendente de húngaros. Formado em composição pela Universidade de Brasília em 1971,
com mestrado em Composição e Educação Musical pelas universidades americanas de
Columbia e Colorado, assina uma obra de caráter experimental, na qual estão incluídos
aspectos cênicos que foram concebidos junto com a música.
A percussão é uma das tônicas do seu trabalho, que Csekö (2007) define como uma
“interface entre música, luz e imagem”: uma fusão de “procedimentos de vanguarda,
desconstrução/construção, de ritmos e estilos, tais como Batucada, Afoxé, Maracatu,
Chorinho, Samba ou Jazz e Rock‟n Roll”. Explica como teve origem essa sua maneira de
compor:
Durante as longas tardes da minha infância e a adolescência [...] bastava-me
descer andando a Barroquinha para - curioso, instigado e maravilhado –
penetrar nos barracões onde estavam as oficinas de instrumentos ou se
realizavam os ensaios dos tradicionais afoxés, Montenegro e Cavaleiro de
Bagdá. [...] Noite adentro, ouvia ao longe-perto dos Ventos Alísios, o
mistério dos majestosos candomblés, a alegria apaixonada dos ensaios de
blocos, batucadas [...] da redondeza. [...] Escutava também os enormes,
potentes, misteriosos rádios de válvula dos anos 40 e 50 e os aparelhos de
som montados por meu pai – do erudito à música nordestina, choro ao jazz,
passando pelo tango, estações estrangeiras. Brincava absorto, por horas,
contrapondo o som eletrônico produzido entre as estações e as emissões das
rádios brasileiras e estrangeiras, para desespero dos meus familiares.
(CSEKÖ, 2007).
Com relação a suas referências, Cseko (2007) prossegue narrando: “Perambulo pelas
rodas de Capoeira Angola e regional [...] e travo amizade com [...] Gato Preto – grande luthier
de berimbaus [...]”.
Csekö percorreu uma trajetória em corda bamba193, na qual os conhecimentos acerca
de composição musical adquiridos em sua formação acadêmica foram acrescidos de intensa
pesquisa pessoal e informal.
Seu ingresso no meio musical se deu, já de início, através da linguagem
contemporânea aliada ao aprendizado do trompete. Atuava, na década de 60, como
193
Título de Palestra proferida na Academia Brasileira de Música, Rio de janeiro, em 11 de setembro
de 2007.
158
colaborador, na condição de trompetista aprendiz, no Grupo de Compositores da Bahia. Esse
Grupo liderado por Ernst Widmer que incluía Lindembergue Cardoso, Fernando Cerqueira,
Milton Gomes, Nicolau Kokron, Rinaldo Rossi, Jamary de Oliveira, Carlos Rodrigues
Carvalho, Antônio José Santana Martins (Tom Zé) e Carmen Mettig Rocha foi um
movimento criado na Universidade Federal da Bahia (UFBA) em 1966 e tinha compromisso
tanto com a inovação quanto com a tradição. Envolvido com os diversos aspectos da cultura
baiana, propunha reflexões acerca das funções sociais da música, fazendo oposição a “todo e
qualquer princípio declarado”. (NEVES, 1981, p. 170).194 Nas palavras de Widmer (1985, p.
69), foi um movimento “aparentemente sem rumo” que tinha “um firme propósito de não
defender escolas e tendências, a fim de evitar tolhimentos oriundos de técnicas e estilos já
sistematizados”. Desde então, Csekö já discutia, junto ao grupo, o ensino da música.
Durante a década de 60, além da música, envolve-se, inevitavelmente com questões
políticas que afetaram, além das artes, todos os setores do país: “Como um trágico ponto final
à adolescência, consuma-se o golpe de 1964, começam os chamados „Anos de Chumbo‟ e me
engajo na longa, renhida resistência contra a ditadura civil-militar”. (CSEKÖ, 2007).
Envolveu-se, então, com intelectuais e artistas de teatro, artes visuais, dança, música popular.
Começou a compor quando ingressou no Curso de Bacharelado em Composição da
UFBA, em 1968. Em seus primeiros trabalhos para piano, Csekö se aventurou pelo
instrumento preparado, sempre numa abordagem bastante intuitiva. Posteriormente, conheceu
as técnicas de piano preparado e expandido usadas originalmente nos Estados Unidos e
percebeu que já havia adotado alguns desses procedimentos em sua obra. No contato com o
que poderia parecer obsoleto, Csekö vislumbra a transformação, a reciclagem da linguagem
musical, do repertório, da utilização do piano como instrumento. Nessa reciclagem, o autor
compila e processa referências da cultura popular, das batucadas na Bahia, da música erudita,
da música popular e do jazz. Tudo isso permeia uma brasilidade assumida, cultivada,
declarada.
Além de ter colaborado junto à Fundação Nacional de Artes (FUNARTE) na
produção e coordenação de eventos culturais, Csekö é produtor cultural e diretor de seus
espetáculos. A série de espetáculos que apresentam sua obra, Interfaces, teve início em 1989 e
está em sua trigésima edição. Promove incessantemente eventos para a divulgação da música
experimental brasileira e oferece, desde 1970, as Oficinas de Linguagem Musical (OMLs) que
194
Segundo Neves (1981, p. 170), Ernst Widmer, a partir de 1956, foi o compositor “[...] responsável
pela formação da nova escola baiana à qual passou sua permanente curiosidade e espírito de
pesquisa [...]”.
159
criou como forma de oferecer ao público leigo e infantil um tipo de musicalização que tem
como referência principal a música do século XX. Esse processo de ensino-aprendizagem
permite ao aluno caminhar livremente pelo mundo da música através da linguagem
contemporânea. As Oficinas circulam incessantemente por universidades, instituições
culturais e rede pública de ensino para formação profissional. Professor no Conservatório
Brasileiro de Música, leciona também nos Seminários de Música ProArte.
Suas ideias, na música, promovem o alargamento do foco e do alcance de tradicionais
formas de ensino que privilegiam a formação de solistas repetidores de procedimentos
engessados, não questionados. Critica e combate, nesse processo, o pouco estímulo à
improvisação na formação de intérpretes. Em seu trabalho, Csekö convida os instrumentistas a
participarem de suas peças em nível composicional.
A rotina do instrumentista é despojada da sua aparência de mera repetição,
ordinariedade, resgatando-se sua categoria de gesto maior, a representação.
[...] Os intérpretes são trabalhados como matéria visual, de grande poder de
plasticidade e intervenção, seu gestual super-exposto ou em sombra densa,
ou em nuance, pontuando formetemente a obra. O intérprete é convidado a
re-ver sua atitude ao interagir com as peças, com seu instrumento de
trabalho, sua postura cênica. (CSEKÖ, 2007).
Após a conclusão do cursos de Mestrado nos Estados Unidos, quando vê sua obra
executada naquele país e na Europa com ótima repercussão, retorna às suas atividades no
Brasil:
Retomo logo após meu regresso, o árduo trabalho de formação de público:
implanto a Oficina de Linguagem Musical (OLM)195
com o projeto de minha
autoria Música Contemporânea Para Todos no Museu Histórico Nacional,
voltado para formação de público adulto em geral. Ressalto que a OLM
aborda no estágio Escuta Diferenciada a familiarização com a produção
musical brasileira atual – cada série modular da OLM apresenta pelo menos
cinco obras de vários compositores brasileiros. Após uma OLM para
intérpretes, que contava com Homero Magalhães, Margarita Schaak, Eládio
Perez-Gonzales entre outros, sou convidado a sediá-la na ProArte por seu
então diretor Homero Magalhães. Amplio a abrangência da OLM para
público infantil e adolescente. Cecília Conde propõe sediar a OLM no
Conservatório Brasileiro de Música – formação de professores e
musicoterapeutas. (CSEKÖ, 2007).
A postura empreendedora do autor já se fazia notar ainda antes da sua identificação
como compositor. Enquanto ainda era exclusivamente instrumentista, o interesse pelas outras
195
As OMLs haviam sido concebidas por ele em 1970.
160
artes e pela política cultural dos lugares por onde passou, constituiu a sua preparação para
futuras funções como autor e como ativista cultural. Deixando-se guiar pela intuição e por
impressões e informações que recebeu empiricamente, Csekö traçou caminhos nada ortodoxos
em sua jornada musical. Decidiu exatamente por onde e como seguir, removendo os
obstáculos que pudessem abafar suas aspirações, questionando comportamentos padronizados
e datados. Prosseguiu, sempre valorizando o acaso196: “[...] eu acredito muito no acaso. Eu
trabalho musicalmente com o acaso”. (informação verbal).197
Na obra de Csekö, as “intervenções visuais” trazem “decupagem do gesto musical,
movimento, cena” e “a intervenção sônica abrange amplificação, espacialização, propagação e
processamento acústico”. (LUIZ... [20--]).198 A execução das peças que incluem elementos
cênicos, como as compostas por Csekö, não é tarefa fácil. A utilização de equipamentos de
som e de luz exige esforços específicos na produção executiva dos espetáculos, característica
que pode ameaçar a viabilidade da obra. No entanto, o compositor nunca se intimidou diante
disso. Aos colegas, sempre aconselha: “[...] Você não pode dizer: „ah, isso é impossível de
fazer, é muito difícil, é muito caro...‟ Vamos fazer! Eu sempre falo para o meu pessoal:
sempre o impossível. O possível é muito fácil. Vamos ao impossível”. (informação verbal).199
Enfrentando dificuldades, formou equipes de produção artística e executiva e começou
a desenhar seus próprios projetos de sonorização, iluminação e cena. 200 A produção e a
direção dos eventos que apresentam sua obra deram ao autor, que costuma tomar a frente
dessas ações culturais, o diferencial que torna seu trabalho único e inconfundível. A
montagem dos seus espetáculos conta com um roteiro elaborado que se baseia na sonoridade
das peças, sempre com iluminação planejada especialmente para cada uma delas. Sonorização
e ação cênica dos intérpretes também são freqüentes nesse tipo de apresentação musical que
envolve os ouvintes através de estímulos plurissensoriais, sem interrupção e o “espaço visual
do local de realização é tratado como parte estrutural da execução – sendo alterado e alterando
o evento”. (CSEKÖ, 2007). As peças são encaixadas umas às outras, no concerto, na maioria
das vezes sem as tradicionais pausas para aplausos, de maneira que a atenção e a concentração
196
A maneira de trabalhar com os instrumentos e com o teatro, além da vasta indeterminação que inclui
a valorização do acaso, aproxima, de alguma forma, a obra de Csekö à obra de Cage, embora o
compositor não faça menção a essa referência.
197
Entrevista com o compositor Luiz Carlos Csekö, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 22 de
setembro de 2010. (Apêndice A, p. 176). 198
Documento online não paginado. 199
ENTREVISTA..., op. cit., p. 171. 200
Ao participar da coordenação da área multimeiros da bienal de música contemporânea, em 1995 e
1997, propôs a criação de infraestrutura com maquinário de teatro e iluminação para o evento, o que
realmente ocorre, desde então.
161
do espectador não sejam quebradas ou desviadas. São espetáculos dinâmicos, que não passam
de uma hora de duração.
A habilidade do autor para a formação de equipes coesas de profissionais é trunfo para
o sucesso de seus empreendimentos. A arregimentação de pessoas aptas e dispostas a
trabalhar pelo resultado final em comunhão de objetivos é estratégia de importância
fundamental neste caso. Isso inclui músicos, bailarinos, técnicos de som e de luz, além de
outros especialistas que se fizerem necessários.
Embora esteja sempre trabalhando pela formação de plateia tanto leiga quanto
especializada, o compositor diz não se preocupar com a avaliação do público que lota seus
concertos. Faz o melhor que pode e oferece-lhe. Relata situações em que a plateia reage de
forma inesperada. O tipo de apresentação nada convencional provoca nos ouvintes sensações
que, muitas vezes, não sabem explicar. As convenções que o público conhece de participação
em espetáculos são manifestações após o fim de cada peça, em aprovação ou não do que foi
feito, com aplausos, gritos de bravo! ou até vaias nas apresentações de Ceskö. O público,
estupefato, muitas vezes não sabe como reagir ou como se portar: os tipos de música que
conhece, com melodia, harmonia tonal e instrumentos tradicionais não estão ali. Os músicos
de concerto, personagens conhecidos de todos e esperados nesse contexto, estão modificados,
transfigurados pelas cenas e pelas luzes.
Csekö se diz taxado de esquisito, de maluco ou de gênio e acha graça de tais
comentários enquanto prossegue avalizado por grupos que lhe dão crédito e solicitam suas
palestras, oficinas, composições, apresentações (informação verbal)201:
Minha visão de evento percebe o concerto como uma intervenção cultural de
grande poder formativo, educacional. A formação do nosso público se faz, se
fará também com a intervenção sistemática, vigorosa com esse fenômeno
artístico, cujo grau de entretenimento terá que se re-visto. [...] realizemos
assim uma contribuição alternativa consistente à complexa formação de uma
cultura que nos defina e respalde. (CSEKÖ, 2007).
A dedicação exclusiva ao trabalho se apresenta até mesmo durante o tempo livre que o
compositor destina a olhar pela janela de seu apartamento no Rio de Janeiro, conversar com
pessoas: curiosidade que leva à experimentação, ao conhecimento, à produção artística. Tudo
é matéria prima para a sua obra: “A convicção que vida e obra se permeiam, o viver o acaso, a
201
Entrevista com o compositor Luiz Carlos Csekö, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 22 de
setembro de 2010. (Apêndice A).
162
aleatoriedade, a imersão no caos e incerteza – minha marginalidade voluntária – este
alheamento, são essenciais para o desdobrar da minha existência, meu processo de criação em
Composição e Educação.” (CSEKÖ, 2007).
ENTREVISTA COM O COMPOSITOR LUIZ CARLOS CSEKÖ, EM SUA
RESIDÊNCIA, NO FLAMENGO (RJ), EM 22 DE SETEMBRO DE 2010.
FORMAÇÃO
AS PRIMEIRAS LIÇÕES
“Entrei para a banda da escola e fui expulso por mau comportamento. Toquei um
pouco de trompete. Fui procurar um lugar para estudar. Encontrei os então Seminários Livres
de Música da UFBA, que hoje é a Escola de Música da UFBA. Passei por lá por acaso,
andando de bicicleta. Ouvi uma cantoria, um negócio assim, esquisito. Fui lá para ver o que
era e descobri que ali se estudava música. Não tinha internet. Era assim. Fui parar lá”.
RELAÇÕES MUSICAIS, EXTRA-MUSICAIS
“Frequentava a escola [de música da UFBA] sem estudar. Ia lá ver o que acontecia.
Tínhamos um tempo enorme naquela época. Os professores da escola, quase todos eram
estrangeiros. Eu tinha muito pouco contato inicial com eles devido à língua e também devido
à própria posição que eles pensavam ter. Eles eram também colonizadores. Então, os nativos,
os gentios, eram tratados meio à distância. Também para manter aquela aura de artista e tudo,
essa bobagem. Eu comecei a fazer amizade com pessoas interessantíssimas, pessoas essas que
mais tarde se revelaram ser Lindembergue Cardoso, [Rinaldo] Rossi, Nicolau Krokon,
Fernando Cerqueira, Hamilton Gomes, que na época estavam se aglutinando para fazer o
Grupo de Compositores da Bahia, grupo esse famoso que é pouquíssimo citado, mas é um dos
grandes movimentos da música contemporânea brasileira – esse grupo que, infelizmente, por
volta dos anos 70, começou a se esfacelar. Hoje em dia está retomando o movimento lá em
Salvador, mas ficou muito tempo estagnado. Pelo menos estagnado no sentido do
experimentalismo, de procurar outras opções, de investigar a linguagem, de produzir e ir à
comunidade ao invés de ficar encerrado na Universidade. Então, durante muito tempo isso
parou. Mas na época, estava começando esse movimento, que foi um movimento fantástico.
163
De 63 a 68, foi um movimento muito bacana. O Ernst Widmer, que era professor de
composição, eu conheci meramente de passagem. Era por quem todos os compositores que
estudavam lá passavam. Eu, jamais estudei com o Widmer. Na época, eu não era compositor,
eu estava começando. Eu comecei a ter uma amizade enorme com o Rossi, o Cerqueira, o
Lindembergue, o Hamilton Gomes. Estávamos no mesmo nível cultural, mas não musical. No
musical, eles já estavam se estabelecendo como compositores e eu estava começando a
estudar música. Culturalmente, líamos as mesmas coisas, líamos os mesmos poetas, líamos os
mesmos romances. Tínhamos a mesma visão de mundo: de esquerda. Fazíamos aulas com o
Agostinho dos Santos – o intelectual e filósofo português que propunha a civilização atlântica,
que era outra visão, que não tinha nada a ver com a eurofilia nem o colonialismo. Começo a
ouvir e falar de composição. Eu não tinha a menor ideia do que fosse compor. Comecei a
estudar trompete. Logo, comecei a me associar a grupos: o conjunto de metais. Eu tinha uma
bolsa na orquestra sinfônica e também tocava nos concertos do Grupo de Compositores da
Bahia. Tocava trompete e aquela parafernália de percussão que não precisava de uma técnica
maior: bloco de madeira, clave, uns „pac-pac‟, „pac-pac‟ e pronto. Eles precisavam de gente
para tocar. Começamos a formar um grupo muito coeso com uma visão de mundo muito
próxima. Discutia-se bastante Educação Musical na época, como fazer outra Educação
Musical que não fosse aquela que a gente considerava falida. Discutíamos continuamente que
música queríamos fazer, quer dizer, eles. Isso é o que eu acho mais interessante. Eu
participava das bebedeiras e das discussões. Eu também apitava o que eu pensava, embora eu
não fizesse nada de composição. Eu tocava nos concertos, ouvia sobre Composição o tempo
inteiro. Essa foi a minha formação básica. Essa formação, de certa forma, foi informal, mas
foi uma formação extremamente densa e complexa que, provavelmente, se tivesse sido
formal, não teria acontecido”.
NAS ROTAS DO INSTRUMENTISTA
“Eu não pensava nada de Composição. Eu era instrumentista. Estava estudando para
ser um bom instrumentista, um instrumentista competente. Na verdade, o que eu queria era ser
um solista. Mas a minha técnica no trompete não ia dar para tanto, para tocar como eu
pensava que deveria tocar. Eu era competente, tocava o que estava escrito e acabou. Mas eu
queria muito mais do que aquilo. Eu ouvia muito mais do que aquilo. Esse é um dos detalhes
da minha formação já como compositor. Eu ouvia, eu não tocava, eu ouvia. Eu tocava o que
estava escrito, mas o que eu ouvia era completamente diferente. Se eu fosse instrumentista, eu
164
não seria compositor, eu creio. Mas eu teria uma intervenção completamente diferente do
solista tradicional que chega, sobe no palco e toca. Eu, provavelmente, iria incluir elementos
cênicos. Eu acho que o que se faz com o intérprete é uma brutalidade no sentido de tolher o
intérprete completamente. Tem um fato que delineia isso: eu estava fazendo um exame de
trompete e fui muito bem no exame em termos de afinação, interpretação...e me deram nota 8.
Eu fui perguntar porque a banca tinha me dado nota 8. Ninguém sabia explicar. Mas eram os
anos 60 e, então, eu queria saber. Então, nós fomos discutir. Não uma discussão violenta, nem
agressiva. Mas discutir por quê? Quais foram os parâmetros utilizados. Afinação? „A afinação
estava ótima‟. Interpretação? „A interpretação estava ótima‟. Atitude no palco? „Também‟.
Postura? „Também‟. Então, o que é que vem a ser? A roupa? A barba? Cabelo comprido?
„Mais ou menos. Também tem outra situação que chocou um pouco‟. Qual é essa situação?
„Você se mexe muito quanto você toca‟. Como assim? Eu coço a orelha? Eu passo a mão no
cabelo para ajudar? „Não, quando você está tocando, você se mexe com a música‟. Eu me
mexo com a música porque eu sou uma pessoa que gosta de música! „Mas isso quebra a
concentração‟. Mas a concentração de quem? Da plateia, minha, da banca, de quem? „A
música erudita requer uma postura mais sóbria. Você não pode se mexer como um músico
popular‟. Mas quem disse isso? Tiveram que subir a minha nota. Eu já estava fazendo
resistência à ditadura.”
NAS ROTAS DO COMPOSITOR
“Eu me mudei para Brasília juntamente com uma parte do Grupo de Compositores da
Bahia que tocava o Grupo, que montava os concertos e produzia. Até então, eu só colaborava
como intérprete. O Grupo se mudou para Brasília porque Salvador estava estagnada, devido à
ditadura. A diretoria que nós elegemos para os Seminários Livres de Música na época, que
dizia que ia fazer mil mudanças, não fez nenhuma. Ao contrário, optou pela ditadura. Houve
um levante de estudantes enorme em todo o mundo e aqui também. Era 1968. Nós
paralisamos os campi de boa parte das cidades brasileiras. Como em Salvador o levante não
estava tendo um enfoque cultural também, ao contrário, estava muito difícil. Em Brasília
havia isso. A Universidade de Brasília foi tomada pelos estudantes, assim como a da Bahia.
Só que, em Brasília, os estudantes conseguiram paridade de voz e voto para contratação,
demissão e modificações curriculares. Nunca havia havido isso na história da universidade
brasileira. Resultado: começou-se a contratar uma série de pessoas importantes e profissionais
importantes. Jovens extremamente jovens que tinham já uma trajetória e que jamais seriam
165
contratados, por serem jovens e por terem ideias novas. Uma parte do Grupo de Compositores
da Bahia foi para Brasília: Rinaldo Rossi, Fernando Cerqueira e Nicolau Kokron. Quando eu
percebi que a Bahia ia estagnar, [percebi que] eu não tinha o que fazer ali. Eu não era
compositor, mas também eu não tinha o que fazer ali. Não tinha movimento cultural, estava
tudo acabando. Fui embora para Brasília, segui o fluxo. Quando cheguei a Brasília, queriam
montar um Curso de Composição, mas não tinham número suficiente de alunos. O Rossi, o
Cerqueira e o Kokron disseram: „Puxa, isso é uma decisão política. Por que você não se
matricula para os primeiros três meses ou primeiro semestre e formamos a turma de
Composição? Tem a disciplina no currículo e depois você cancela, e pronto‟. „Ah, está bom, é
uma decisão política. O departamento quer se estruturar e eu quero que o departamento se
estruture. Vamos lá, mas eu não sei de nada de Composição, não sei nem o que é isso!‟ „Não
se preocupe, não é tão complicado‟. Entrei. Na época, me pediram para fazer uma sonata nos
modelos de Scarlatti. A turma teria que fazer isso. Fui para casa. Passado um mês e pouco, eu
não conseguia sair do lugar. Por outro lado, desde pequeno eu ouço sons, não são vozes. Eu
sempre ouvi sons, eu sempre tive facilidade para ouvir coisas. Quando eu tocava na orquestra,
no intervalo do meu naipe, eu ficava ouvindo os outros naipes que eu associava na minha
cabeça a outros naipes que estavam tocando. Eu achava que todo mundo fazia isso e era a
coisa mais natural do mundo, que eu estava ali fazendo o que todo músico fazia. Às vezes,
ouvia umas peças curtas na minha cabeça e não sabia que eram peças, achava que eram
devaneios meus. Não tinha a menor ideia do que fosse. Eu só fui descobrir isso quando
comecei a compor. Fui para o departamento, lá de Brasília, para o Curso de Composição... e
nada. Falei: „Olha, reprovado. Eu não consigo escrever uma nota. Por outro lado, fica uma
confusão na minha cabeça. Eu fico ouvindo umas coisas, o que é falta de disciplina, eu creio‟.
Como eles eram excelentes professores e compositores, disseram: „Você ouve o quê?‟ „Eu
estou ouvindo uma peça para trompa, saxofone e contrabaixo‟. „Você ouve isso?‟ „É, ao invés
de ouvir Scarlatti, eu ouço isso. Eu não consigo compor, começa aquela confusão e eu tenho
preguiça...é melhor cancelar‟. „Por que você não escreve o que está ouvindo?‟ „Pode?‟ Poder,
não podia, mas... „Pode. Você apresenta esse projeto daqui a três dias e se for alguma coisa
realmente como você está dizendo, a gente vê o que é que faz‟. Passei os três dias
enlouquecido e apresentei o projeto. Foi uma comoção porque, realmente, era uma peça, já.
Onde é que eu tinha aprendido? Não aprendi nada. Eu convivi com isso muitos anos, ouvi
muita coisa, eu sou uma pessoa curiosíssima... A primeira vez que eu ouvi multifônicos em
minha vida, foi o Botelho, em 1967, ensinando ao Fernando Siqueira, que era clarinetista, em
Salvador. Eu estava tocando trompete, ouvi uns sons estranhíssimos na sala ao lado. Parei de
166
tocar, bati na porta, pedi licença, perguntei se eu podia assistir àquilo. Era o Botelho, grande
clarinetista brasileiro, ensinando o Fernando Siqueira a fazer multifônicos! Eu fiquei
fascinado com aquele instrumento. Eu não compunha, eu não tinha a menor ideia, mas eu
fiquei lá, ouvindo. Aos meus colegas, eu perguntava o que se podia fazer com o oboé: „Toca
só com a palheta!‟ Ah, mas que som interessante! E se você tocar no corpo do instrumento,
sem produzir notas? Ou seja, eu fazia o trabalho de composição sem a menor ideia do que
fazia. No trompete, eu fazia a mesma coisa: „Eu fiz essa pecinha, esse estudo‟. O pessoal
achou ótimo. „Bem, então, vamos fazer o seguinte: vamos juntar a turma e a gente vai propor
que a turma, se quiser, tenha uma trajetória como a sua. Se não, tenha uma trajetória mais
formal, institucional. E você, a gente dá a nota pela elaboração do trabalho que você faça‟.
„Então, está bom‟. Juntamos a turma, a turma concordou. E a próxima peça, disseram que já
não era mais uma peça de aluno. Eu já estava compondo. Eu fiz uma peça para sexteto de
percussão, coro, narrador, cena. „De onde é que vem isso?‟ „Bom, de onde vem, eu,
realmente, não tenho a menor ideia‟. Comecei com o Curso de Composição no final de 1968.
Em 1971, já estava formado, me formei em bacharel, estava compondo profissionalmente. A
minha peça de Bacharelado foi uma obra para grande orquestra sinfônica, com cena, projeto
de iluminação. Logo em 71, eu fui 3º lugar num concurso internacional do Goethe Institut,
aqui no Brasil”.
BERÇO
RESISTÊNCIA
“Eu comecei música muito tarde e a grande formação que eu tive foi por acaso,
informal, porque como meu pai era estrangeiro e anarco-comunista e minha mãe também
anarco-comunista, lá em casa circulava uma quantidade, uma diversidade de pessoas incrível.
Inclusive, o pessoal que fazia os afoxés, as batucadas nos anos 50, 60, em Salvador, eles
passavam lá por casa. A música erudita... eu não me lembro muito bem. Meu pai foi
violinista. Meu pai construía aparelhos, era engenheiro eletrônico. Então, além de tudo, ele
construía o próprio sistema de som. Lá em casa sempre teve um sistema de som que não era
comum nas outras casas, construído por meu pai. Eu me lembro que uma vez eu tive que
quebrar uns discos 78 [rotações] e alguns nomes ficaram na minha cabeça. Eu olhava o rótulo
do disco, não entendia nada, eu era muito pequeno e os discos eram para ser quebrados
porque... sei lá, porque estavam obsoletos, não entendi por quê... enfim... Os nomes vieram
167
para a cabeça à medida que eu fui entrando em contato com a música... de instrumentistas, de
compositores... jazzistas... A música entrou na minha vida via cultura popular baiana. Lá em
casa, no carnaval, entravam batucadas para beber um pouco e depois prosseguir. Meu pai era
abstêmio, não sei porquê. Eu, tomo todas. Lá em casa era um ponto de reunião, além de ser
um ponto de clandestinidade da resistência contra a ditadura Vargas e depois contra a ditadura
civil-militar que se instaurou em 64. Meu nome é Luiz Carlos em homenagem a Luis Carlos
Prestes. Um dos meus primos era um membro ativo do Partido Comunista, o Giocondo Alves
Dias. A minha mãe militou no Partido Comunista. O meu pai, não, mas minha mãe militou. O
meu pai fazia o sistema de som para os comícios do Partido Comunista. Quer dizer, é uma
trajetória conflituosa. Ao mesmo tempo, a resistência também é um dos pontos fortes: eu via
o tempo inteiro, na minha vida, as pessoas resistindo. Meu pai resistia frontalmente ao
colonialismo que era presente aqui. Então, devido a essa minha família anarco-comunista, eu
não tenho uma visão colonialista do país. Eu não acho que a Europa seja melhor do que aqui”.
BATUCADAS, RAY CONNIFF E STRAVINSKY
“Eu não posso dizer a você que eu sou um francófilo, que eu sou um eurófilo. Eu sou
um brasófilo, eu gosto de Brasil. E acho que aqui se faz coisas ótimas, excelentes, tão boas
quanto e eu não tenho a menor tradição, visão tradicional da Europa como polo gerador. Eu
acho que o polo gerador é aqui. A Europa é e sempre foi [um polo gerador], mas estamos
sendo e sempre fomos também. Entrei [na música] pelas batucadas, mas eu não sei percussão.
Eu entendo de percussão, tem muita percussão no meu trabalho, eu entendo profundamente de
percussão. Eu devo ter mais de 30 obras para percussão com formações diferentes. A minha
entrada na música foi das mais aleatórias porque a certa altura, eu não sei bem por quê, resolvi
renegar – devia ter uns 11 ou 10 anos – tudo que fosse erudito, tudo que fosse interessante e
passei a ouvir Ray Conniff e Billy Vaugham, aquelas porcarias enlatadas que vinham dos
Estados Unidos. Ah! Eu adorava aquilo! Passaram-se uns 2 ou 3 anos. Na faixa dos 13, 14
anos, eu estava na casa de um dos meus colegas. A minha família já tinha entrado em franca
decadência de classe média para classe média baixa porque meu pai ficou doente, ficou
paralítico, completamente, de derrame. O provedor era ele. Então, a situação ficou muito
complexa lá em casa. Eu estava no Colégio Militar. Esse colega, o pai dele era cacauicultor:
haja dinheiro! Ele tinha um belo apartamento lá no Campo Grande, que era um bairro chique.
Ele tinha uma „radiola‟, como a gente chamava aqueles móveis baixos da Telefunken, de pau
marfim. Um dia, os pais dele viajaram e nós resolvemos tomar uma bebedeira lá. Arrumamos
168
umas garrafas e ficamos bebendo. A certa altura, já estávamos todos bastante bêbados. Como
eu não gostava e dizia a todo mundo que eu não gostava de música erudita, de sambas
clássicos – eu falava que detestava – então eles, para me irritarem ainda mais, colocaram
Stravinsky, A Sagração da Primavera, a todo volume. Os vizinhos já estavam desesperados.
E pasme: dali por diante a coisa virou com-ple-ta-mente. No outro dia, quando acordei, morto
de ressaca, fui procurar A Sagração da Primavera, botei de novo na radiola, acordei todo
mundo aos berros. O pessoal [ficou] irritadíssimo. Daí por diante, resolvi que ia ser músico
via Stravinsky – A Sagração da Primavera”.
EXPERIMENTALISMO
A INFLUÊNCIA DOS GÊNEROS MUSICAIS NA EXPERIMENTAÇÃO
“O meu trabalho sempre foi experimental, desde o início. Eu tocava muito música
tradicional. Gosto, ouço. Ouço choro. Ouço baião. Ouço rock”.
A PONTA DO EXPERIMENTAL
“Juntou-se o popular ao experimental, a ponta do experimental brasileiro, que na
época era tão experimental quanto o experimental que estava acontecendo na Europa também.
Só que não se tinha qualquer contato, por várias razões. Uma delas era a repressão violenta
que estávamos sofrendo. Nada chegava aqui. Disco, livro: um livro de capa vermelha e já
estaríamos preso. Portanto, vivíamos aqui, trabalhavamos muito bem, fazendo excelente
música e ninguém sabia que tínhamos o mesmo nível. Juntamo-nos com a Escola de Dança
que, na época, era o Rolf Gelewsky, que era um tremendo dançarino que fazia dança moderna
no Brasil – e na Bahia. Então, fazíamos espetáculos. O Grupo de Compositores fazia
espetáculos de interação com dança – cênicos, também”.
O PIANO
PIANO PREPARADO
“Eu comecei em composição por acaso e a minha entrada no piano foi também por
acaso. Eu vou ao auditório da escola do departamento de música da Universidade de Brasília
169
e o que é que eu vejo lá? Um Bösendorfer tamanho concerto, gigantesco, com a perna
quebrada! Ninguém tocava no piano porque o piano estava com a perna quebrada. Chamei
uns operários de uma construção próxima. Em 1968-69, em Brasília, o que não faltava era
construção. Perguntei a eles se em troca de umas cachaças que tomaríamos juntos, claro, no
boteco que tinha em frente, eles podiam fazer um aglomerado de tijolos para servir de perna
para o piano. „Não tem problema, a gente levanta, bota aqui, e pronto!‟ Eles botaram lá e o
piano ficou em pé. Mas ninguém queria tocar o piano porque o piano não tinha uma perna. Eu
comecei a experimentar no piano. Abri o piano, um Bösendorfer! O mecanismo estava
perfeito. Afinado, não. Era só restaurar. Comecei a trabalhar no piano e a preparar o piano, a
pesquisar no piano. Quando eu cheguei nos Estados Unidos, em 72, estava aquela onda do
piano preparado. Tudo aquilo eu já tinha feito. Eu sempre gostei muito de piano. Aliás, tem
poucos instrumentos que eu não gosto. Um, infelizmente, é o órgão, não sei por quê. O outro
é a harpa, o que eu acho uma falha brutal na minha formação, mas eu não consigo gostar. Já
tentei. Acho que tem peças lindíssimas, muito bem compostas, mas e não gosto, eu não gosto
e jamais escreverei para órgão ou para harpa. Isso eu não consigo. Para os outros, eu adoro.
Piano, nunca toquei, eu não sei tocar piano. Sei botar uns acordes juntos, mal e porcamente.
Eu escrevo para piano, mas não sei tocar piano. Eu escrevo para piano como escrevo para
todos os instrumentos, pela técnica que eu estudo, pelo que eu pesquiso com o instrumentista.
Eu sempre estabeleço muito contato com o instrumentista, é fundamental. Também era uma
das propostas do pessoal de composição de Brasília ter um contato estreito com as pessoas
que estão produzindo o som, com o instrumentista, ao invés de ficar naquela redoma dos
manuais. Pega o manual, estuda o manual, mas vai lá e pergunta a ele [ao instrumentista]
como é que aquilo funciona realmente, se aquilo é fácil ou se aquilo é uma viagem de quem
escreveu aquele manual. Isso foi importante. Eles faziam assim e eu ia na mesma linha do
Rossi, do Cerqueira, do Kokron. A minha abordagem com o piano, o meu encontro com o
piano para trabalhar foi assim”.
APRESENTAÇÕES PIANÍSTICAS
“Eu assistia, gostava de muitas. Outras, eu achava completamente, meramente
virtuosísticas, coisas de demonstrar técnica, que geralmente são chatíssimas. Mas assisti
bastante, bastante, e assisto. Eu gosto muito. Outro dia vi o [Arnaldo] Cohen tocando piano,
parecia que as notas pulavam de dentro do piano. Eu fiquei extasiado ouvindo aquilo. Eu
passei pela sala em que ele estava dando uma master class, tocando o [repertório]
170
tradicionalíssimo. Abri a porta com muito cuidado e me senti ali, silenciosamente. Fiquei
ouvindo aquele cidadão tocar num piano hor-ro-roso e ele fazendo um som belíssimo. O piano
não fazia juz. Eu gosto muito do piano tradicional, eu gosto muito do trabalho,
particularmente, de Beethoven. Os últimos trabalhos para piano de Beethoven são belíssimos.
Chopin...”
PIANO FRANCÓFILO
“O que falta é formação básica, Educação Musical. O fenômeno anterior do tal celeiro
de pianistas, ele vinha em função da francofilia em que a gente vivia. A mulher, para ser
prendada e estar apta a ser desposada, teria que tocar piano. Bem ou mal, mas teria. Teria que
ter um piano de armário em casa para tocar. Então, isso ficou parte da cultura porque a gente
achava que todos os franceses eram assim. Erro fundamental. Eles não tomavam banho nem
tocavam tanto piano. (risos) Viva a França, mas cada qual no seu lugar, cada macaco no seu
galho: „xô xuá‟. Não é tanto a Deus nem tanto ao diabo. Vamos ver essa coisa direito”.
O FIM DO PIANISMO NO BRASIL
“Eu creio que a diminuição que aconteceu agora [da quantidade de alunos de piano] é
devido à Educação Musical estar periclitantemente desinformando ou inexistindo na vida da
maior parte das pessoas no Brasil. Quando existe, ela é desinformadora e, na maioria das
vezes, não existe. Essa batalha agora para a reimplantação [da Educação Musical no Brasil],
como é que vai ser?”
MÚSICA CÊNICA
“Todas as minhas peças são cênicas, todas têm luz, eu sempre trabalhei assim”.
OS INTÉRPRETES
“Acabou-se, há séculos, com a disciplina Improvisação. Uma coisa que se fazia
normalmente na época de Bach desapareceu dos currículos, não se faz mais. O instrumentista
erudito não improvisa. Ele lê o que está escrito e está acabado. Isso já é uma mutilação
enorme da criatividade do instrumentista. Ele não consegue propor mais porque ele é
171
obrigado a simplesmente reproduzir, da melhor maneira possível, o que está escrito. Eu
convido o intérprete a participar – e a participar em nível composicional. Obviamente não
com 50% porque aí, na verdade, eu estaria sendo preguiçoso, mas há uma proporção muito
grande de participação do intérprete, de contribuição do intérprete para o meu trabalho...
sempre, sempre, sempre, sempre. Geralmente os intérpretes vêm a mim, eles querem
participar do meu trabalho. Eles gostariam de ter aquela liberdade. Desde que eu comecei a
produzir os meus eventos, todo o meu grupo, que é a Batucada Anárquica, todos eles
entraram em contato comigo e disseram que queriam participar do trabalho. Ótimo. E os que
eu contratei, geralmente, eu tive que demitir porque não tinham a atitude necessária, não
tinham generosidade para participar e compartilhar e as coisas começavam a ficar
complicadas. Tampouco chegavam ao nível instrumental que era exigido deles porque nessa
parte eu sou extremamente exigente. Eles têm que trabalhar muito porque eu trabalho muito.
Os intérpretes adoram porque eles estão sempre tocando uma coisa que é muito importante
para eles, do ponto de vista deles – eles é que me dizem. Eles dizem que a música flui quando
eles tocam. A peça começa a jorrar deles. Eu acho fantástico. Tomei um porre por causa
disso, meu ego foi para a lua. É disso que eu vivo, dessas situações de alegria, de feedback.”
O TRABALHO EM EQUIPE
“O Grupo de Compositores da Bahia começou a fazer uma série de trabalhos no
Teatro Vila Velha. Nós ajudamos o pessoal de teatro a reformar o Teatro. Íamos para lá
depois de meia-noite para carregar saco de cimento, bater prego. Não era chegar lá e ficar
conversando. Era botar cimento, cimentar as coisas, aparafusar, pregar. Depois, começamos a
participar do Teatro. Era uma atitude diferente. Não era aquela história de „alguém
convidou.‟”
REALIZAÇÃO
PORTUGUÊS/INGLÊS
“As pessoas agora me obrigam a falar em Light Design porque falar em Projeto de
Iluminação não tem impacto. Se você chega no teatro e diz: Olha, eu sou o Light Designer‟, é
aquela: „Meu Deus, o Light Designer está aí! Chama o iluminador do teatro!‟ Quando eu
dizia: „Olha, eu fiz o Projeto de Iluminação‟. Eles diziam: „a mesa está ali, tem umas escadas
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aqui no fundo, então, você fica aí, à vontade‟. „Não, eu não trabalho com isso, eu não sei
mexer! Eu fiz o Projeto!‟ „É, mas você acerta, você vai acertar, não se preocupe. Pega a mesa
ali, a mesa é fácil‟. Até o dia em que eu disse: „Eu fiz o Light Design, eu sou o Light
Designer‟. „Então, espera aí, tem que chamar o iluminador para lhe ajudar aqui‟. Agora,
ninguém pode dizer mais nada porque agora eu falo em inglês. Assim como quando eu me
refiro à minha postura e à minha trajetória como marginal, vários produtores e produtoras já
me disseram: „marginal, não, pega mal: é Outsider‟. Gente, eu não vou falar que um sou um
Outsider, pelo amor de Deus! Isso é bossal demais para mim. Eu posso até ser um pouquinho
bossal, mas a tanto, eu não chego. Que diabo é isso? „Não, não. Marginal parece bandido‟.
Ué, e tem alguma diferença? Eu estou na contravenção. Fizemos o que as pessoas não querem
que se faça. Produzimos espetáculo a despeito da indústria cultural, você acha isso pouco?”
ROTEIRO
“Meu trabalho sempre foi experimental, sempre foi uma interface. Se houver um
roteiro, é um roteiro sônico. É um roteiro sempre sobre o som. O concerto é um pacote. Se eu
tirar uma peça dali, aquele concerto não vai ser mais um Interface 29. Ele poderá ser um
Interface 30, mas Interface 29 não é”.
VIABILIDADE
“Quando eu comecei realmente a bancar tudo isso...a primeira coisa é a seguinte: tem
que resistir. Não se pode recuar. Você não pode dizer: „ah, isso é impossível de fazer, é muito
difícil, é muito caro...‟ Vamos fazer! Eu sempre falo para o meu pessoal: sempre o
impossível. O possível é muito fácil. Vamos ao impossível. É por aí que a gente vai. Até 89
eu não participei diretamente da produção do meu trabalho. Alguém ia tocar e eu era avisado
que ia ser tocado. Eu chegava e perguntava: e a parte cênica, e a iluminação? „Ah, não deu
para fazer, não‟. Ou não teve tempo de ensaiar ou não tem dinheiro para fazer a iluminação.
Eu ficava desesperado. Cada vez eu me sentia mais frustrado. Até que chegou em 89, eu já
estava com 44 anos. Eu comecei a compor com 20 e poucos, 23. Desde 71 que eu estou na
estrada como profissional. Então, em 89, já com 18 anos que eu estava na estrada, a única vez
que eu consegui fazer um trabalho cênico – Light, Scenic e Sonic Design, foi nos Estados
Unidos. Eles bancaram. Os festivais que participei eram festivais de música experimental.
Quando eu cheguei, já estava montado. Maravilha. Aqui era um problema. Em 89, a Proarte
173
tinha uma série no [Espaço Cultural] Sérgio Porto que era um completo fracasso, não ia
ninguém. Eu fui ver 2 ou 3 espetáculos dessa série e eu era praticamente o único espectador.
Nem as avós dos instrumentistas iam ouvir. Chamava-se Humaitá Clássicos. O que se dizia
era o seguinte: „Vamos terminar com essa série porque clássico... ninguém quer saber de
nada‟. Eu fui pegar o último espetáculo da série. Cheguei lá e me disseram: „Tem esse
espetáculo aqui, vai ser dia tal e não tem ninguém para fazer‟. Das duas uma: ou eu escrevia
direto para a gaveta e nunca mais me metia nessa confusão ou eu me metia nessa confusão e
fazia o que eu queria, o que eu acho que devia ser feito. Eu desconfio que eu prefiro morrer
lutando do que ir para a cama e esperar. Aí, eu disse: Sabe o que é que eu vou fazer? Eu vou
montar um concerto! Fui lá no [Espaço Cultural] Sérgio Porto, vi o que tinha de refletor. Eu
nunca tinha trabalhado com refletor na vida. Peguei o iluminador, comecei a falar, a
conversar. O Duo Barbieri-Schneider de violão – maravilhosos – eles já tocava uma peça
minha. Quando podiam, faziam cena e luz. E me apareceu o Marcelo Coutinho, barítono, um
excelente barítono. Queria trabalhar comigo. O Eládio Perez Gonzalez também queria
trabalhar comigo. Tinha o Duo Diálogos, que estava começando e gostava muito do meu
trabalho. Já tinham tocado umas peças minhas. Tocavam uma peça minha, Curva, com luz. O
resultado, eles estavam achando fantástico. Então, eu já tinha um grupo que poderia trabalhar.
Reuni esse grupo. Disse a eles que não havia cachê. A gente ia fazer por bilheteria, mas a
bilheteria, obviamente, ia ser mínima porque vai se cobrar o quê do público, 100 reais de
entrada? Só assim você consegue um cachê para os músicos. Era melhor fazer a 1 real e fazer
uma coisa cultural. A 1 real era só para a manutenção do equipamento. Pronto. Ninguém
ganha nada. O que se ganha é a experiência e a alegria de fazer arte. Todo mundo topou,
felizmente, nessas condições claras. Todo mundo já sabia que trabalhar comigo era duro. Eu
sou extremamente exigente de mim e dos outros. Fomos montar esse espetáculo que se
chamou Interfaces 1. A Rioarte deu o nome de Csekö Especial, não me pergunte por quê.
Houve essa dicotomia, essa incongruência. A Rioarte conseguiu certa divulgação. Eu fiz uma
montagem de uma foto que tinha num jornal da Bienal, eu e outros compositores. Cortei os
outros compositores e fiquei sozinho na foto. Fiz uma xerox. Fiz um cartazinho com aquilo.
Isso era 1989. Saí com um bolinho de xerox, distribuindo a todo mundo, botando em todos os
bares. Vamos ver o que vai acontecer. Quando cheguei no [Espaço Cultural] Sérgio Porto, o
[Espaço Cultural] Sérgio Porto estava entupido, as pessoas queriam invadir porque não
queriam ficar do lado de fora. Entraram pela janela do banheiro, foi uma confusão. Isso, eu só
soube depois porque eu estava lá dentro fazendo o concerto. Quando eu saí é que eu vi aquela
multidão. O que é que aconteceu? Não sei, não deve ser por minha causa única e exclusiva.
174
Daí por diante, imediatamente, disseram que eu tinha uma experiência enorme em produzir
concertos, que eu tinha um conhecimento de iluminação fantástico, que trabalhava com isso
há muito tempo e que montar concertos era comigo porque eu tinha uma experiência enorme.
De onde e como? „Talvez, nos Estados Unidos...‟ De repente, as pessoas criaram essa lenda
urbana a meu respeito, o que eu fui saber passando numa roda. Ouvi uma pessoa dizendo: „O
Csekö tem uma experiência enorme de montagem‟. „Já que eles estão dizendo, então, eu tenho
e acabou‟. Daí por diante, eu comecei a montar os meus concertos. Comecei a enviar projetos
para a Prefeitura... Com a repercussão que esse concerto teve nos meios musicais... Não foi
uma repercussão enorme, gigantesca, mas quem viu ou ouviu falar ficou extremamente
curioso. Não estou dizendo que gostaram, mas ficaram curiosos de saber o que era aquilo que
tinha acontecido. Como montagem, as pessoas ficaram literalmente mesmerizadas porque
„Como é que conseguem montar um concerto com luz, cena, som, do nada?‟ – aparentemente
do nada. Eu não tinha patrocínio algum. Como é e que um evento estapafúrdio como esse,
todo experimental, consegue atrair um público desse porte? Começou a haver uma
possibilidade de chegar à Prefeitura e dizer que tivemos um público enorme e um projeto de
uma série de concertos. Apresentar à Shell, à Esso... é uma atitude continuada. Resistência
passo a passo. Isso dá resultado.”
O PÚBLICO
OS ESPETÁCULOS
“Os concertos são curtos, relativamente, não duram mais de uma hora. Não há
intervalos entre as peças no sentido do intérprete chegar lá, se curvar e aí a plateia aplaude e
eles se curvam de novo e a plateia aplaude...não há essa defasagem. Tudo compacto. Quando
um grupo de intérpretes está saindo, outro já está se posicionando em luz de serviço. Quando
ele [o intérprete] se posicionou, que são segundos, dá o Blackout, acende a luz da peça e já
começa outra peça. Uma peça atrás da outra, muito bem encaixadas. Peças com um enorme
volume de som dão lugar a uma outra peça com um volume de som mínimo. Peças com uma
ampla gama instrumental são precedidas ou procedidas por peças com uma delicadeza...
mínimas. No último concerto que eu fiz, nos dois últimos, o concerto terminou, claramente.
Entra a luz de final, todos os intérpretes vêm à cena, são aplaudidos. Agora se via os
intérpretes porque durante o concerto não se via direito. Eles são parte de uma cena, de uma
iluminação, eles não são focados, a não ser que haja uma parte cênica onde o intérprete
175
apareça enquanto intérprete. O concerto estava terminado, eles foram aplaudidos. Saíram,
voltaram, aplaudiram, ficou aquela luz...não ia acontecer mais nada e a plateia ficou sentada.
Ao invés de começar a conversar alto, eles estavam conversando baixo. Eu [fiquei] sentado na
mesa de luz, sem querer me levantar também, esperando que começassem a sair. Daqui a
pouco, alguém se levanta e começa a sair lentamente. As pessoas vão saindo, escoando, vão
até o palco e ficam por ali. Eu não sei o que é que eles... Não estão cansados? Estão
chocados?”
RECEPÇÃO
“Eu sempre tive público, eu nunca tive problema de público. Meus concertos nunca
tiveram pouca gente. Eu sou um caso à parte, talvez, não sei bem por quê. Uma coisa é o
seguinte: o trabalho é muito bem feito. Não no sentido de composição, mas os concertos são
muito, muito bem montados. O público está sempre sendo tomado, ele está sempre atento. Se
gosta ou não gosta, eu realmente não sei porque eu nem me preocupo com isso. Eu procuro
fazer o melhor possível. Várias pessoas em vários concertos vêm me perguntar o que é isso, [
dizem] que foi muito esquisito, que vão voltar. Que eu me lembre, foi lá no [Serviço Social do
Comércio] (SESC) Belenzinho, uma peça sinfônica: a Ambiência 2 – a Ambiência 1 é para
piano, voz feminina e violoncelo, que foi uma das primeiras peças minhas, de 71. A
Ambiência 2 é de 2001, é dedicada às minhas irmãs: tem luz, Projeto e Luz, (Light Design).
Lá no SESC Belenzinho, foi sábado e domingo com Sinfonia Cultura, com o Lutero
Rodrigues que, encomendou essa peça: tremendo regente, tremendo empreendedor cultural,
uma pessoa fantástica. Ensaiou a peça. Os regentes, geralmente, não ensaiam. A orquestra não
quis tocar, ele obrigou a orquestra a tocar e no segundo dia eu fiz uma fala rapidíssima.
Quando terminou, veio um casal de senhores, mais ou menos da minha idade: „A gente queria
conversar com você. A gente veio ontem e achou muito esquisito, isso‟. Ah, é? Que bom! Se
você me disser que a minha peça é uma porcaria, eu vou dizer – Que bom! Se você me disser
que a peça é ótima, eu vou dizer – Que bom! Eu não tenho problemas. O meu ego é muito
grande para eu me preocupar com isso. Não é humildade. Já me disseram que eu era bom
quando eu comecei, eu ouvi falar. Eu ouvi os meus professores numa reunião discutindo o
meu trabalho. Aquilo que eu ouvi...eu fiquei maravilhado. De outra vez eu ouvi também, nos
Estados Unidos, o pessoal discutindo o meu trabalho. Eu estava limpando a outra sala porque
eu era servente à noite e o departamento estava discutindo o meu trabalho de Mestrado. Eles
não sabiam que eu estava lá. Eu não era servente do departamento de música, eu era servente
176
do hospital. Fui para lá porque o servente faltou. Eu estava lá, fiquei escutando a reunião.
Então, é impossível... um casal de senhores disse: „Eu sou operário, trabalho na Indústria, ela
é dona de casa e a gente não conhece nada disso. Foi muito esquisito e aí, a gente veio de
novo. É muito esquisito, viu?‟ Tá certo, muito obrigado. Apertamos as mãos. O retorno do
público é esse.”
PÚBLICO ESPECIALIZADO
“Do público especializado, uns acham uma maluquice, acham que é uma grande
bobagem. Outros acham que eu tenho um trabalho fantástico, muito bom. Tanto, que eu sou
convidado para fazer palestras, para fazer apresentações. Alguns acham que eu sou
completamente maluco, o que eu acho fantástico. Tomara que eu continue assim”.
PERSONALIDADE
BASTIDORES
“Eu não gosto de aparecer, eu sempre estou no escuro, nas mesas de som e de luz,
ninguém sabe quem sou eu, eu nunca apareço. Sabem meu nome, mas eu nem gosto de ser
fotografado, eu sou muito tímido. A minha fotógrafa oficial é a minha filha, ela tem umas
fotografias minhas completamente diferentes. Ela é uma artista visual. Eu tenho duas filhas
que são artistas visuais”.
VIDA E OBRA
“Essa é a minha vida. Se eu não fizer isso, eu não sei o que fazer, eu pulo pela janela.
Eu não tenho mais o que fazer na vida. Ou eu faço música ou então eu não sei o que fazer,
estou morto. Você não me pergunte o que é que eu vou fazer quando eu secar como
compositor – porque vai chegar o dia. Espero que demore bastante. Eu tenho a Educação
Musical. Eu trabalho nessa área com Oficina de Linguagem Musical, que é uma atividade
muito rica. Fe-liz-mente. Se não, eu não saberia o que fazer. Provavelmente, eu terminaria me
suicidando por falta de opção na vida.”
POR ACASO OU NÃO?
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“Claro que eu sou uma pessoa extremamente antenada, o tempo inteiro perscrutando o
que está acontecendo, como as coisas se desenrolam, ou seja, as coisas não caem no meu colo.
Eu trabalho para que elas caiam. Mas que caem por acaso, caem.”
LIBERDADE E OUSADIA
“Eu me recuso a vender o meu tempo. Eu utilizo o meu tempo de uma maneira
extremamente definida, clara. Eu trabalho em certos horários, em certas situações e eu faço
um rendimento „x‟ que me permita sobreviver e não mais do que isso. O resto eu trabalho,
realmente. Eu não vendo o meu tempo porque eu preciso de tempo para ficar ouvindo o que
está acontecendo, ficar olhando pela janela... Eu já estou com 65 anos. Então, é muito tempo
de estrada. Eu tenho uma conferência sobre o meu trabalho que se chama Trajetória em corda
bamba, só para você ter uma ideia de como eu vejo a coisa‟. A minha trajetória é uma
trajetória em corda bamba, eu nunca sei se eu vou cair no próximo passo ou não, eu nunca
tenho ideia. Eu vivo dia após dia, eu não tenho um planejamento assim: „amanhã eu vou subir
na carreira acadêmica ou eu vou...‟. Eu não tenho isso. A vida vai rolando e eu vou vivendo a
minha vida literalmente ao acaso. Eu optei por isso há muito tempo, quando ainda tinha uns
16 anos e essa opção que eu fiz começou a ser elaborada no decorrer desse tempo, com o que
eu ia enfrentando, e provou ser a melhor opção para mim em termos do artista, da maneira
que eu vivo, que eu faço arte, como eu me relaciono com a vida e...comigo mesmo. Tudo
ocorre, não como um fatalismo, mas eu acredito muito no acaso. Eu trabalho musicalmente
com o acaso. Eu fiz colégio militar. Eu deveria ser o quê? Um militar, um engenheiro, um
geólogo. No segundo ano da universidade, nessa época, nos anos 60, se você fosse um
engenheiro, um geólogo, um médico, você já estava com a vida definida, você estava nos
trilhos: carro, apartamento... sua vida já estava nos trilhos, já estava re-sol-vi-da, só que eu
não queria nada disso.”
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APÊNDICE B - Tim Rescala: humor e ecletismo
Tim Rescala nasceu na capital do Rio de Janeiro, em 21 de novembro de 1961. Luiz
Augusto Rescala adotou como nome artístico o apelido de infância. Nascido em família de
músicos, iniciou seus estudos com a pianista e professora Maria Yeda Caddah, na Escola de
Música da UFRJ e na Escola de Música Villa-Lobos.
Uma vez havendo identificado certa falta de disposição dos ouvintes em aceitarem a
então música contemporânea, resolveu enveredar por atividades, dentro da música, que lhe
permitissem prosseguir optando e militando pela liberdade de escolha dos próprios caminhos
musicais, pelo experimentalismo. A exigência da dedicação exclusiva dos pianistas ao estudo
do instrumento também colaborou para a opção do autor em buscar os estudos de
Composição, percorrendo outras trajetórias e integrando-as, inclusive, a outras linguagens
artísticas.
Mesmo havendo recebido, ainda muito jovem, convites para uma formação em nível
superior nos Estados Unidos, optou por permanecer no Brasil. Estudou com Vânia Dantas
Leite, Carole Gubernikoff, Marlene Fernandes e José Maria Neves na Escola Villa-Lobos e
particularmente com Hans-Joachim Koellreutter. Conquistou importantes prêmios como
compositor, afirmando, em sua obra, personalidade muito própria e marcante e atuando na
música eletroacústica, música de cena, música cênica e música-vídeo.
Cursou Licenciatura em Música na UNIRIO. Os reflexos da Educação Musical vivida
no curso de Licenciatura em Música transparecem em seus trabalhos dedicados ao público
infantil, que constituem parte importante, sólida e representativa em sua carreira e no conjunto
da sua obra.
Além de pianista e compositor, Rescala é ator e autor teatral. Atua nas áreas da música
erudita, música popular e música de cena, além de trabalhar como produtor musical, criando
roteiros para televisão, vídeo, ballet. É arranjador e produtor musical da Rede Globo de
Televisão.
O humor permeia sua obra, assim como os aspectos cênicos, inclusive na produção de
música de concerto: um trabalho que atrai o grande público, tendo alcance nacional e
internacional.
Rescala é um dos fundadores do Estúdio da Glória, importante referência da música
eletroacústica no Rio de Janeiro. Suas peças são presença regular nas Bienais de Música
Brasileira Contemporânea, nesta cidade.
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Ópera, opereta, musical, música cênica: Rescala passeia por tais gêneros sem
cerimônia, sem se prender a formas, fórmulas ou regras. Caminhando livre pelos estilos
musicais, vê como necessária a manutenção das apresentações tradicionais da música de todos
os períodos da História em seus formatos e locais de praxe em paralelo ao exercício e
divulgação da música experimental. Preocupa-se com o distanciamento entre plateia e música
de concerto.
O ecletismo que demonstra grande flexibilidade no trabalho de Rescala demonstra
também sua capacidade de atender a demandas diversas: música para comerciais de televisão,
música eletroacústica para participação em festivais de música contemporânea, música para
shows de humor ou música para espetáculos infantis. O compositor indica os intérpretes como
componentes importantes na produção artística e como grandes aliados na produção executiva
– realização – da apresentação de sua obra. Ele entende que a formação de equipe disposta,
disponível e competente para atuar diante das demandas particulares do seu trabalho constitui
condição fundamental para que as peças sejam bem apresentadas. Essa equipe envolve, além
de intérpretes aptos para o atendimento às peculiaridades do repertório a ser realizado,
técnicos de luz e som, diretores de cena, atores, bailarinos, artistas plásticos, e todo tipo de
profissional que se fizer necessário para fazer a música acontecer em cada caso específico.
O compositor considera a possibilidade de os intérpretes assumirem a direção desse
processo de criação e produção, construindo o formato de suas próprias apresentações.
Entretanto, adverte ser necessário o exame criterioso, caso a caso, da necessidade e da
conveniência na adaptação das obras. Performances são versões de obras, assim como
arranjos são versões de obras. (KIVY, 1995). A interferência dos intérpretes na obra tem
apenas o limite do bom senso, embora esse critério seja extremamente vago. Reconhecido o
valor positivo da intervenção dos intérpretes na obra – mesmo as de linguagem tradicional – a
fim de que tal trabalho artístico seja convincente, reafirmada será a causa, segundo Rescala,
de tornar as obras de arte eternas mediante a capacidade de renovação das mesmas e não
através de manutenção intocada e intocável nas suas formas de apresentação.
ENTREVISTA COM O COMPOSITOR TIM RESCALA, NO ESTÚDIO DA GLÓRIA,
NAGLÓRIA (RJ), EM 15 DE OUTUBRO DE 2010.
FORMAÇÃO
INICIAÇÃO
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“Eu fiz Iniciação Musical. Fiz um pouco no Conservatório Brasileiro de Música, mas
fiz também na Escola de Música da [Universidade federal do Rio de Janeiro] (UFRJ). Com a
professora Aída, eu fiz o preparatório. Antes de estudar com a Professora Maria Yeda
Caddah, eu tive umas aulas com uma professora de bairro. Eu me lembro de ter tido aula
também de acordeon, antes de ter aula de piano. Quando eu passei a trabalhar já com música
popular, como arranjador – que teve aquela leva dos nordestinos [entre as décadas de 1970 e
1980 na indústria fonográfica brasileira] e o instrumento passou a ser requisitado. De vez em
quando eu até toco, em algumas situações. Continuei a estudar piano e fiz outros cursos livres.
Comecei a fazer um curso de Música Contemporânea. Fiz curso com a Vânia Dantas Leite,
com a Carole Gubernikoff, com o José Maria Neves, de música eletroacústica, com a Marlene
Fernandes. Na época, o diretor da Escola [de Música Villa-Lobos] era o Aylton Escobar, que
não dava aula, mas que exercia uma influência: ele fez uma encomenda aos alunos de
composição, coisa que nunca mais tive oportunidade de fazer. Eu era contemporâneo do Tato
Taborda, que sempre foi meu colega de composição e, depois, com o Koellreutter. „Vocês vão
fazer música para um quinteto de sopros: o quinteto vai tocar. Vão apresentar aqui no
auditório e eles vão falar sobre a sua música, os próprios instrumentistas‟: „Olha, está errado,
não é assim que se escreve‟. Assim é que deveria sempre ser num curso de composição: você
poder ouvir sua música. Essa experiência minha se conduziu numa certa direção até mais ou
menos 79, 80. De 79 para 80 a coisa mudou muito. Foi uma fase muito peculiar porque eu ia
fazer 18 anos e ia entrar na Faculdade, a UNIRIO, em 80. Eu tinha feito um curso de música
contemporânea que foi realizado no Brasil alguns anos. Cada ano era em um país. Nesse
curso, eu tive contato com vários compositores interessantes de outros países: da Europa,
Estados Unidos. Foi quando eu conheci o Koellreutter, que deu palestra, deu aula nesse curso.
Inicialmente, eu não gostei do Koellreutter porque eu achei ele muito radical. Na semana
seguinte, eu já estava estudando com ele. Foi muito enriquecedor. De 1980 a 1983, em que
cursei a UNIRIO, eu estudei composição com o Koellreutter. Ele estava no Rio.”
PROFISSIONALIZAÇÃO
“Eu tenho um amigo que diz que o pai dele o obrigou a ser músico, que ele queria ser
médico... brincadeira [risos]. Eu acho que com 15 anos eu já tinha resolvido ser músico. Foi
quando eu fui fazer prova para a Ordem dos Músicos: eu já estava começando a dar aulas de
piano, de violão, de harmonia... tentando viver disso. Eu já tinha visto que era isso que eu ia
fazer, estava inventando o que fazer e arrumando dinheiro. Tocava em igreja, inicialmente,
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como „sub‟ da minha mãe, que tocava em igreja. Comecei a tocar órgão. Por incrível que
possa parecer, eu considero essa uma experiência muito boa porque não só tocava o repertório
tradicional para órgão – porque eu cheguei a tocar órgão com pedaleira e tudo – mas também
tinha o lado mais popular dessa música, no caso, no âmbito da música católica e de correr
atrás dos cantores. Tinha uns cantores lá... tinha uma cantora , de uma igreja, que a cada
estrofe ela descia meio tom, um tom, então eu corria atrás... Eu pensava em ser compositor,
abracei a composição: „O que eu quero é ser compositor de música de concerto‟. Ao mesmo
tempo, trabalhava como arranjador, como pianista de música popular. Tive o primeiro contato
com John Boudler, que é um percussionista americano. Não sei se ele se naturalizou, ele já
está no Brasil há muito tempo. Ele teve uma importância muito grande e ainda tem como
compositor de uma geração, várias gerações de percussionistas. Ele mora em São Paulo. Ele
tinha um grupo chamado Percussão agora, um quarteto de percussão. Um dia, apresentando
um concerto, ele passou o cartãozinho: „Estamos à cata de peças de compositores‟. „Ah! Vou
me aventurar!‟ E houve a estreia dessa peça que eu acabei compondo para o grupo do John
Boudler, na Universidade de Bufallo. A peça foi muito bem recebida. Tinha um compositor
chamado Lejaren Hiller: „Se você ficar interessado, eu consigo uma bolsa. Você vem estudar
aqui‟. Em Bufallo, existia um centro de multimídia. „Ao invés de fazer faculdade no Rio, você
faz aqui‟. Resolvi não ir: o que seria, para a maioria das pessoas, considerado uma insanidade.
„Vou ter essa experiência com o teatro, vou fazer a UNIRIO e vou estudar com o
Koellreutter‟. Foi bom. Eu não tinha a menor intenção de ser professor de música. Depois, eu
passei a ter interesse pela Educação Musical, mas não havia nada premeditado nesse sentido.
Eu escolhi Licenciatura porque era o mais fácil. Como eu já tinha vivência musical, em várias
aulas, eu era liberado. Eu tinha que ir à luta por trabalho. Tocava de noite, tocava no que quer
que fosse. Ao mesmo tempo, estudava composição com o Koellreutter, particular. Foi quando
eu comecei a ter, efetivamente, experiência com o teatro. Depois da primeira peça como
diretor e trabalhando como pianista, eu fui emendando uma atrás da outra. Essa história de
tocar piano e fazer uma ceninha...”
BERÇO
“Eu sou filho de músicos, de cantores. A minha mãe é viva ainda. Ela cantava em
igreja, era soprano. Meu pai era barítono no [Teatro] Municipal, do coro do [Teatro]
Municipal. Tenho um irmão que é cantor também do Municipal, do coro, mas é tenor.
Convivemos com música desde cedo. Na verdade, eu nunca pensei em fazer outra coisa na
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vida, a não ser jogar bola. Mas eu sempre estive dentro da música de alguma forma: assistindo
ópera no [Teatro] Municipal – éramos habituados a frequentar por causa do meu pai – ou indo
para a igreja com a minha mãe porque ela não tinha com quem nos deixar. Absorvíamos essa
vivência musical. Nós começamos a estudar música cedo.”
EXPERIMENTALISMO
SUPORTE ELETRÔNICO
“Compunha alguma coisa de música popular, mas aquilo que eu achava que era o meu
objetivo era ser compositor de música erudita, música de concerto, experimental, porque me
interessava, por exemplo, a música eletroacústica. Esse interesse veio também dessa vivência
de rock progressivo, de sintetizador. Eu sempre gostei desse tipo de coisa e me interessava o
trabalho com o gravador. Música eletroacústica, na época, era com corte de fita magnética.
Comecei com gravador de dois canais, Akai. Era o que tinha na época, usava-se em teatro.
Isso eu fui aprendendo, fui me interessando. Hoje em dia, nem se imagina o que a gente tinha
que fazer em corte de fita. Na época da Copa do Mundo de 1982 eu pegava uma narração de
futebol e cortava as pausas. Procurava dentro dessa narração onde é que estava a música. Eu
pegava a narração de um jogo do Brasil: „Zico, Zico, Zico; Sócrates, Sócrates, Sócrates,
Sócrates‟ e fazia uma música com isso... o tempo mais apertado, apertava ainda mais aquilo
que era a aflição do espectador do jogo de futebol, do Brasil na Copa do Mundo”.
MÚSICA CONTEMPORÂNEA: O CLICHÊ
“O Clichê Music que também é uma peça, dentro do meu trabalho, bastante
representativa, é de 1985: receita de como fazer música de vanguarda. Foi apresentada na
Bienal de 85, pela qual eu conquistei alguns inimigos involuntários porque a peça foi
programada para o meio do concerto e depois da apresentação dela tinha outras que eram
iguais e eram sérias. Eu comuniquei à organização: „Não é bom, é melhor botar no final‟. Deu
no que deu. Mas a peça, obviamente, surtiu efeito porque ela era uma crítica bombástica, era
até uma autocrítica, a utilização desses clichês dentro do contexto da música contemporânea.
Foi uma peça muito apresentada e continua sendo muito apresentada, no exterior... Nela, eu
brincava não só com o estilo como com a situação do concerto em si: a postura do músico
dentro desse contexto.”
183
O PIANO
“Sempre fui interessado no instrumento, em piano. O meu instrumento sempre foi
piano. O meu percurso inicial e natural era o de pianista. Eu queria ser concertista, isso até 17,
18 anos, quando eu passei a ter vontade de ser compositor. Esse percurso seria naturalmente o
de tocar piano, o de ser concertista. Mas, logo na apresentação de final de ano, desse curso da
Escola de Música [da UFRJ], que eu estudava com a Professora Maria Yeda Caddah – eu
lembro que tinha desde o pequenininho até os mais graduado. Eu estava mais próximo do
final, resolvi tocar música contemporânea: tocar o Klavierstück de Stockhausen. Quando eu
acabei de tocar, a plateia, que eram os pais das crianças e os alunos, ficou ali, olhando para
mim, estatelada, nem bateu palmas. Não entendeu o que é que eu estava fazendo ali. „Quem é
aquele maluco cabeludo lá?‟ Na época, eu era cabeludo, cabelo grande. Eles não identificaram
aquilo como música. E eu comecei a me interessar pela composição. Eu já compunha algumas
coisas de rock progressivo e algumas coisas parecidas com peças para piano solo, muito
influenciadas por Bach, pelo que eu tocava. Escrevi prelúdios para piano. Comecei a entender
o que era uma fuga sem estudar composição. Eu entrei nisso depois. Mas eu olhava nas
partituras: „tem uma voz aqui!‟ No caminho das vozes, entender como a coisa funcionava... e
ia escrevendo. Era um prazer. Eu queria fazer aquilo. Se eu ia ganhar dinheiro e como, eu não
sabia. Eu sempre fui relapso como estudante. Quando eu estudava com uma professora
particular, que não era essa que eu falei antes, que era uma cantora do [Teatro] Municipal,
amiga do meu pai, que era professora de piano... quando eu ia para a aula, vestido de futebol,
do time, imundo... jogava futebol e ia para a aula... não estudava nada, mas tinha facilidade.
No entanto, o ato da criação sempre me estimulava mais e essa carreira de piano eu vi que ia
abandonar logo. Eu cheguei a fazer um primeiro concerto, um concerto só, como pianista. Eu
escolhi um repertório de música contemporânea e essencialmente de compositores brasileiros.
Eu acho que eu devia ter uns 17 anos. A Professora Maria Yeda Caddah preparou algumas
peças comigo. Isso foi na Escola Villa-Lobos, onde eu estudei também, com a própria Maria
Yeda Caddah. O piano em si, pelo repertório que existe na música não só do século XX, mas
da História da Música, é um instrumento que tem um papel não digo preponderante, mas de
grande importância. Um repertório vasto, importante. Não só por isso: ele é um instrumento
muito poderoso, com um som poderoso, grande, que ocupa muito espaço. Ele, em si, pode
gerar um monte de coisas. A gente pode tocar no teclado e fora dele, dentro do piano. No
Pianíssimo, o cenário era o piano, só o piano e mais nada. Era um piano que abria a tampa.
Saía uma porção de coisas de dentro. Eu mesmo já fiz cenas curtas em televisão. No ano
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passado, no Criança Esperança, fiz uma cena brincando com ele, com as teclas. Era um piano
falso. Um sampler preparado. Eu brincava, era engolido pelo piano. O piano gera muita coisa
cênica: a situação, o pianista. Eu não preciso nem tocar. Dá para usar o piano numa situação
cênica do ato de tocar piano sem tocar. Só a entrada ou a saída [do palco] já gera um monte de
coisas. Vários atores e humoristas fizeram coisas assim.”
MÚSICA CÊNICA
PERFIL
“As minhas obras passaram a mudar de perfil: não eram mais música pura, música
para instrumentos, já adquiriram característica cênica, o que eu comecei a fazer em 79, já no
contexto da música eletroacústica. Incorporar texto, fazer montagem de música mista,
colagens com material de rádio: isso eu fiz até antes desse trabalho com cena.”
CENA
“Percebi uma mudança considerável, quando eu comecei a trabalhar com teatro. Até
então, eu ganhava dinheiro, através da música, dando aulas, tocando órgão em igreja ou
tocando música popular. Na época, até dava algum dinheiro fazer show de Música Popular.
Fui chamado para fazer a direção musical de uma peça. A peça virou um sucesso. Essa peça
era a Happy End, de Brecht e Weill. Essa experiência mudou muito a minha forma de encarar
não só o fato musical, mas o fato de estar em cena porque eu tocava ao vivo como pianista e,
no meio da peça, como a adaptação do grupo tinha menos atores do que o texto pedia,
precisava morrer alguém e não tinha mais quem morresse: „O pianista vai morrer!‟ Depois,
tinha que ressuscitar. Eu fiz uma palhaçada qualquer, que fazia sucesso. Na peça seguinte, já
me chamaram: „Tem um pianista lá, que é bom e faz umas palhaçadas‟. Passei a fazer isso.
Fui fazer um curso latinoamericano na República Dominicana, durante duas semanas em
janeiro de 80. Nesse curso de música contemporânea, na mesma época, logo em seguida, na
apresentação final dos trabalhos, eu escrevi uma peça para piano: durava um minuto. Eu não
queria tocar. Eu queria que um [outro] pianista tocasse naquele momento. Fiquei procurando
um pianista que quisesse tocar. Estava lá, dando aula, a Beatriz Roman, que era uma pianista
que tocava música contemporânea e que topou tocar a minha peça na apresentação dos
trabalhos de composição. Na plateia, estavam compositores do mundo todo, conceituados, e
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eu queria apresentar a peça que durava um minuto! A peça anterior à minha era para piano
preparado. Ela [a pianista Beatriz Roman] me explicou: „Olha, tudo bem, eu vou tocar a sua
peça. Antes, eu vou tocar uma peça para piano preparado e preciso despreparar o piano: tirar
de dentro parafuso, borracha... Explica a sua peça, fala sobre a sua peça enquanto eu tiro as
coisas do piano‟. „Falar o quê? A peça só tem um minuto. Não tenho nada para falar!‟ Eu não
tinha o que dizer! Comecei, obviamente, a falar bobagem e no meio daquilo que eu falava, ela
puxava alguma coisa e o piano fazia „TÓIM!‟, „TÉIM!‟ e as pessoas começavam a rir. Eu
virava para trás: acabou? „Não‟. „Aí, não sei o quê, essa peça...‟ Inventava coisas na hora. As
pessoas começavam a rir na plateia achando que era aquilo, a peça. No final: „Agora, vamos
ouvir Cambiante, para piano‟. Quando ela começou e terminou – durava um minuto – caíram
na gargalhada. Aplausos! As pessoas adoraram e a pianista riu também achando que era
aquilo o que eu queria. Não era nada disso. Era uma peça séria. Eu vi que aquilo poderia gerar
alguma coisa interessante: „Tem alguma coisa aqui que talvez eu saiba fazer bem‟. Depois,
essa experiência com o teatro: o fato de ter feito essa cena foi mais um elemento. Comecei a
incorporar isso inicialmente juntando essa experiência com música eletroacústica, com cena.
Eu fiz uma peça chamada Salvem o Brasil, para fita magnética e três atores: os atores que
trabalhavam comigo, na época – Pedro Cardoso, Felipe Pinheiro, Stella Miranda. Fizemos um
espetáculo que durava 20 minutos, que apresentamos na praia. Botávamos um sistema de som
e fazíamos em vários lugares: em praça pública... espetáculo de rua. Apresentei na Sala
Cecília Meireles, também. Isso passou a ser uma coisa natural, para mim. Eu passei, então, a
fazer peças nitidamente de teatro musical e me interessei, particularmente pelo texto, pela
capacidade do músico em falar um texto e trabalhar com isso que eu passei a chamar de
música da fala. Teve outra que eu fiz em 1979, com fita: chamava-se Discurso da Difamação
do Poeta. Foi uma exposição de um desenhista chamado Evandro Salles. Essa peça teve uma
versão cênica: para um ator e cena. O ator foi o Antônio Grassi. Eu usava um texto do
Affonso Ávila, que é um poeta mineiro, que se chamava Discurso da Difamação do Poeta.
Intercalava a interpretação desse texto com essa fita com colagens. Salvem o Brasil, que era
de 1982, mais tarde virou uma peça maior. Em 1987, eu fiz o Concerto em Do Maior para
piano e orquestra no qual a orquestra não aparece e há um embate entre a pianista e o maestro
contra outros quatro músicos, cada um tocando um estilo diverso: um tecladista de vanguarda,
um contrabaixista de jazz, um baterista de heavy metal e um saxofonista de gafieira. Os quatro
contra a pianista e o regente. Após um texto inicial que na estreia foi lido pelo Luiz Paulo
Horta, é só música. É um embate cênico porque o embate acontece todo ele cênica e
sonoramente”.
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CENA NATURAL
“Eu passei a trabalhar com o instrumento, com a situação cênica do concerto,
especificamente, e a usar tudo o que acontece na sala de concerto, não só no palco como na
plateia. Eu também brinco com a partitura, o que também é uma situação engraçada: a
situação da paginista. Eu já fiz muito isso, com a paginista virando onde não tem que virar,
rasga as partituras...”
TEATRO
“Quando você coloca o instrumento dentro da cena e fala com o instrumento, ele passa
a ser um personagem. Escrevi uma peça chamada Pianíssimo. Foi no desenvolvimento de
Estudo para piano, peça para piano solo que durava 3 minutos e pouco, que eu escrevi o
primeiro texto teatral, em 92, a partir dessa situação. Eu achei que o teatro infantil seria o
ideal. A história da peça é uma menina que estuda piano obrigada pela mãe. Tem um
momento em que ela se revolta. Fica de castigo. A professora dela, que se chama Da. Euterpe
usa régua para dar aula, coisa que aconteceu comigo. Ela se revolta e chuta o piano. O piano
fala com ela: „Ai! O que é isso?‟ Dentro do universo do teatro infantil, isso é possível. O
piano começa a conversar com ela e de dentro dele sai um monte de coisas. Sai o personagem
que era o piano em si, que era uma figura meio mozartiana, que conversava com ela. Sai uma
bailarina... Isso foi um estímulo para que eu passasse a escrever para teatro. Inicialmente
dentro desse universo do teatro infantil. Depois, outras coisas. Ópera... Tem uma outra peça, o
Romance Policial, que é uma peça de 15 minutos em que cada músico assume um
personagem de uma história policial, para 7 instrumentos. O regente é o narrador. Então, eu
regia e narrava a história. O solista é o detetive: o Aranha, que o Rodolfo Cardoso fazia.
Todos eles tocando e falando ao mesmo tempo. A mocinha, a Maria Teresa [Madeira] fazia.
Tinha a loura fatal e diabólica, que era a Monique Aragão. Cada um assumia um personagem.
Tem uma peça chamada A dois para um casal – inicialmente, um casal de percussionistas.
Tocam sempre em dois por quatro, embora você sinta que é uma coisa totalmente irregular,
bastante complexa de ritmo. É sempre a dois, mas você não sente essa pulsação. É um embate
entre o casal: o casal brigando e depois se reconciliando. Tem uma outra peça em que eu
trabalho com voz mas de uma forma completamente diferente, que é o Cantos para voz solo
em que eu trabalho com tipos de cantos diferentes, emissões diferentes e posturas diferentes
dos intérpretes. Tem uma versão com a Carol McDavit, outra com a Martha Herr. A Márcia
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Taborda também já fez. A maioria das óperas que eu escrevi, eu mesmo fiz o libreto. Assim
foi com A Orquestra dos Sonhos, foi com O Cavalinho Azul, foi com a Redenção pelo Sonho,
que é uma peça sobre Monteiro Lobato. E fiz a partir de outros autores: musicais como A
Turma do Pererê e O Cavalinho Azul, sobre o texto da Maria Clara Machado. Hoje é dia de
Maria é uma ópera audiovisual. Hoje é dia de Maria 2 é um musical”.
MÚSICA POPULAR
“À medida que eu tinha esses ensinamentos mais tradicionais, praticava música
popular. Nunca ninguém falou que fizesse ou não fizesse. Em casa nunca houve
direcionamento nesse sentido, a não ser uma indecisão por parte da minha mãe: „Ah, meu
Deus! Meu filho vai virar músico! E agora? Não vai ganhar dinheiro!‟... aquelas coisas,
absolutamente normal. Fora isso, eu sempre tive estímulo. Ninguém disse „Não vai poder‟. Eu
nunca tive isso em casa. No meu caso particular – que não é caso raro no Brasil ou na
América Latina, mas eu acho que na Europa, sim – eu sempre pratiquei a música popular e a
música erudita juntas. São coisas completamente diferentes: uma alimenta a outra. No caso da
música popular, inicialmente era uma questão de mercado. Mas eu também fazia porque
gostava. Gostava de tocar choro, gostava de tocar rock, na fase adolescente. Teve uma época
em que eu me cansei do ensino acadêmico de Música Erudita. Estava na fase que todo
adolescente tem, meio de revolta contra o quê a gente nunca sabe. Eu saí um pouco da Escola
e fui tocar rock. Tocava guitarra também. Eu cheguei a tocar violão, um tempo. Mas não
abandonei o piano. Foi a fase do rock progressivo. Conjuntos como o Yes, o Gênesis... A
questão dos sintetizadores também sempre me encantou. Por causa do rock progressivo eu
acabei voltando ao ensino tradicional de música porque uma coisa leva a outra. O que me
levou a sair também me levou de volta – rock pauleira, no início”.
MÚSICA POPULAR, MÚSICA ERUDITA, MÚSICA DE FRONTEIRA: CADA UM
NO SEU QUADRADO?
“Existe um meio termo, uma fronteira [entre a música popular e a erudita] que passou
a se chamar, inclusive, de música de fronteira, que não é nem uma coisa, nem outra. Eu até
criei um quinteto instrumental que lida com esse tipo de interface, dessa fronteira entre o
erudito e o popular. Vários compositores estão nessa fronteira. Só que é preciso entender bem
qual é a finalidade de cada coisa. Música popular é música popular, música erudita é música
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erudita. Mas isso não quer dizer que uma não possa influenciar outra e as duas não possam
dialogar e gerar uma terceira coisa. Eu admito a existência das três coisas. Eu não tenho
preconceito com nenhuma delas. Eu só tenho preconceito quando se tenta fazer uma coisa
com cara de outra, meio mascarada: cada coisa no seu lugar. Não tenho preconceito contra
qualquer tipo de música que seja a não ser música ruim, que tem em qualquer gênero ou
estilo.”
RISCOS E DESAFIOS, OUSADIA E FLEXIBILIDADE
“Nessa experiência com o teatro é que eu fui me deparando com desafios. Por
exemplo, eu fui trabalhar com o Pedro Cardoso e o Felipe Pinheiro, que eram dois atores que
estavam começando no teatro. Eles me chamaram para fazer uma peça. Eu estava fazendo
uma outra peça chamada Serafim Ponte Grande, que é um texto de Oswald de Andrade, com
um grupo que era do Buza Ferraz. Depois do ensaio desse grupo, dois dos atores, que eram o
Pedro Cardoso e o Felipe Pinheiro, resolveram fazer um show deles: „Por que você não vai
fazer a música do nosso show?‟ „Tá, tá bom‟. A gente ensaiava depois desse [primeiro]
ensaio. O [segundo] ensaio começava à meia-noite. A peça também começava à meia-noite.
Só conseguimos o Teatro Cândido Mendes segunda e terça às 9 horas e sábado à meia-noite,
uma coisa assim. O que aconteceu? A peça principal foi um fracasso e a peça deles, que era
um showzinho, virou um sucesso, virou a febre do verão. Isso foi em 1982. Humor: uma coisa
que depois veio a se chamar besteirol, mas ninguém sabia nada disso. Era tudo feito com total
naturalidade e risco. „Nessa hora você tem que tocar uma música‟. Como assim? Eu não sou
cantor. „Tem que cantar uma música engraçada, com letra‟. Eu nunca tinha feito nada disso.
Fui levado a fazer. Coisa semelhante aconteceu com um [outro] show. Nessa época, eu já
fazia essa peça com o Pedro e o Felipe. Eu fui acompanhar o Miguel Falabella e a Maria
Padilha: um show numa casa noturna, como pianista. Chamava-se Bar Doce Bar. Num dado
momento, eles precisavam trocar de roupa. „Você toca aí uma música, faz um número‟. „Eu
posso tocar uma música que eu fiz para outra peça‟. „Claro!‟ Eu cantei essa música e foi o que
mais fez sucesso no show. Ficaram morrendo de ódio: o Miguel [Falabella] queria me matar.
Acabou o show deles e o dono do bar falou: „Aquela música que você cantou... você não tem
mais?‟ „Não, só tenho aquela‟. „Você não quer fazer um show semana que vem? Eu não tenho
mais o que colocar na casa‟. „Mas eu só tenho uma música!‟ „Faz outra, rapidinho! Semana
que vem você estreia.‟ „Tá bom‟. Comecei o show com três músicas. Foi o que eu fiz na
apresentação daquela peça para piano. Eu inventava: falava uma porção de besteiras para me
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dar tempo de ir fazendo as outras e ir aumentando o número de músicas. O show virou um
sucesso: uma temporada de 3, 4 meses. Foi totalmente por acaso. Então, me chamaram para
fazer um filme – o personagem principal de um filme – e me chamaram para fazer comercial
de televisão: „Quer fazer comercial tocando violão?‟ „Quero!‟ Chegou a um ponto, já em
1983, que ao mesmo tempo eu apresentava uma peça numa bienal, música séria, e de noite
estava nesse lugar chamado Viro do Ipiranga vestido de mulher, fazendo um personagem que
se chamava Maria Alice Dodói202, que era uma cantora. As pessoas às vezes não entendiam se
era eu mesmo, se era a mesma pessoa. Quando eu fazia uma apresentação, o público não sabia
o que ia ver: se era música séria, se era uma coisa engraçada... Eu mesmo não sabia o que eu
ia fazer. Quando ia fazer uma apresentação, não dizia o que ia fazer. Entrava em cena, todo
mundo começava a rir como se eu estivesse fazendo uma coisa engraçada. Começava a tocar
uma coisa séria, eletroacústica, ao vivo. As pessoas iam vendo que não era para rir.
Começavam a ficar constrangidas. No minuto final, eu fazia uma graça e as pessoas
relaxavam. Eu comecei a usar isso como um trunfo, como um elemento composicional a
mais: a postura do intérprete. Esse trabalho passou a ser multifacetado: ora eu trabalho como
compositor tradicional, escrevendo para conjunto de câmara ou para orquestra, ora eu utilizo o
elemento cênico.”
OUTROS RECURSOS
“Você pode também trabalhar esses recursos cênicos sem eles estarem na partitura.
Depende do caso. Se a peça não é escrita para cena, não tem que fazer cena. A luz, até que
pode ser. Se você considerar a cena como fator composicional, é uma interferência na obra.
Disso eu não tenho a menor dúvida. A rigor, a princípio, em tese, eu sou a favor de se
desrespeitar as coisas. Não temos que ter aquela postura meio que de museólogo e conservar a
música na época tal com os instrumentos originais. Não! A época tal já acabou. É mais
interessante, mais desafiador você tentar fazer com que aquela obra se perpetue pela
capacidade dela se renovar e não dela se manter do jeito que ela sempre foi.”
OS INTÉRPRETES
MÚSICA PARA INSTRUMENTO E INSTRUMENTISTA
202
Satirizando o nome da cantora Maria Alice Godoy.
190
Em 1989, eu fiz uma experiência: eu queria compor uma peça que fosse para o
instrumento e o intérprete e que eles contracenassem. Daí o Estudo para piano, que eu escrevi
para a pianista Maria Teresa Madeira. Ela começa a tocar dizendo que adora estudar piano.
Mas é uma menina que, na verdade, é obrigada a estudar piano. Começa a se revoltar com
aquilo até que esmurra o piano. Bate nele e bate a tampa. Depois, pede desculpas. Faz carinho
no piano, conversa com ele. A minha intenção era que o piano reagisse. O ideal, para mim,
seria que o piano falasse.”
O PAPEL DO MÚSICO
“O [papel do] músico para mim não era mais simplesmente entrar em cena e tocar o
instrumento. Isso, em si, já é uma postura cênica. Entrar no palco e se posicionar diante de
uma plateia, em si, já é. É aquela história de que não existe uma pessoa que não tenha uma
posição política. A negação da política já é uma posição. Considero a presença do músico
como um elemento composicional. Essa experiência eu adquiri no teatro e influenciou o meu
trabalho de composição em concerto. Fiz um espetáculo que eu chamei de A Música da Fala e
usar a fala como música em situações diversas: algo próximo do spreechsang, do canto
falado. No caso do músico, é uma dificuldade maior porque tem um sistema a mais para ele
ler na partitura, uma complexidade maior de signos. Inicialmente, comecei a trabalhar com a
Maria Teresa Madeira, que é uma pianista disposta a fazer isso. As primeiras peças eu fiz com
músicos que eram capazes de fazer. Escrevi uma ópera em 1996 que se chamava A orquestra
dos sonhos que foi encenada em 1997, na qual eu utilizava esse mesmo protocolo do
instrumentista tocar e falar ao mesmo tempo. Não só o pianista como o instrumentista de
sopro, de corda, percussão. Escrevi muita coisa para percussão, sempre gostei de percussão.
Encontrei intérpretes capazes de fazer isso, como o Rodolfo Cardoso, como o Oscar Bolão,
disponíveis e aptos – porque também não é qualquer um que faz. Não existe na formação do
intérprete, que eu saiba, nada nesse sentido. Existe a postura para tocar, essas coisas formais.
Se você começa por aí, vai ser difícil. A não ser que você use essa formalidade como
elemento cênico para fazer uma crítica e trabalhar sobre isso. Tem uma outra peça em que eu
procurei elaborar mais o discurso musical, que é o Noturno depois do Vinho, que eu também
fiz para a [Maria] Teresa [Madeira]. É uma pianista que bebe uma taça de vinho. Ela está com
uma taça de vinho e teria bebido mais antes de entrar em cena. Ela entra e senta com a taça.
Ela esquece, bebe no camarim e entra cambaleante. Vai tocar o Noturno de Chopin. Ela está
com um monte de partituras na frente. Ela toca vários noturnos, mas pedaços de noturnos.
191
Não é só a música que é discutida, mas é a própria situação da pianista que entra bêbada e o
que aquilo gera em termos de discurso musical. O que é uma música bêbada? Que
organização ela pode vir a ter? Quem conhece o repertório vai reconhecer os Noturnos de
Chopin ali dentro. Ela vai, ela desiste, completamente fora de si. Às vezes ela perde o controle
da própria mão. Eu procurei trabalhar isso com ela. Ela olha para a mão, a mão tem vida
própria. É uma peça de 9 minutos com um discurso musical bem mais elaborado, difícil
tecnicamente e que apresenta outra problemática: é muito mais difícil para qualquer pianista
tocar uma peça como essa do que tocar um estudo de Chopin porque ela não só tem que tocar
o Noturno de Chopin como tem também que tocar uma coisa mais difícil tecnicamente numa
linguagem de música contemporânea e a postura cênica dela importa: ela tem que tocar
estando bêbada. É um outro desafio para o intérprete. A Teresa me contou que teve um fã dela
que falou: „A Teresa não devia fazer esse tipo de coisa! Ela é uma pianista tão séria!‟ Porque
no final ela se joga no chão. Eu procuro trabalhar com intérpretes que tenham essa
[disposição]... Obviamente que acontece de os intérpretes não estarem nem aí. O Clichê
Music, já apresentamos em Nova York. Eu regi. Eu fiz tudo o que eu tinha que fazer, mas o
intérprete não fazia. Só que, no caso do Clichê Music, eu conduzia, como regente. Os [outros]
músicos estavam a fim de fazer e o cantor estava disposto. Sem isso, era melhor não fazer. No
caso desse músico, muito pelo contrário, ficou mais engraçado ele ser sério. Ele achou que
estava fazendo uma reação e na verdade ele acabou contribuindo. Agora, é evidente que se o
intérprete está do seu lado é muito melhor; se não, realmente, pode inviabilizar.”
O TRABALHO EM EQUIPE
“Você tem que ver se a sua obra se adéqua àquele espaço e se aquele espaço se adéqua
à sua obra. Uma peça como o Estudo para piano ou como o Noturno depois do Vinho pode
ser na Sala Cecília Meireles. A estreia do Noturno depois do Vinho foi lá. Se eu vou
apresentar uma peça cênica [que exija equipamentos tais como de iluminação, por exemplo]
na Bienal e se isso for num teatro tradicional, fica mais fácil. Na Sala Cecília Meireles, vai ser
mais difícil e vou ter que conversar com o iluminador. Tenho que negociar e tornar possível.
Eu vou pedir para o iluminador: „Olha, eu quero tal coisa‟. Se você tem experiência, como o
Csekö... o Csekö sabe fazer isso. Ele estudou, ele se preparou para isso e isso é um elemento
que participa da criação dele como um elemento a mais. O compositor que tem esse
conhecimento obviamente vai ter que se valer dele e quem não tem vai ter que se valer de um
diretor cênico ou alguém que o ajude. No meu caso, como eu tenho experiência também com
192
teatro, na maioria das vezes eu assumo essa tarefa. Tem uma peça minha que é Na Cadência
do Silêncio, que é uma peça em homenagem a John Cage, é um samba enredo, só que é um
samba enredo diferente. Essa peça foi uma encomenda de uma série para o [Centro Cultural
Banco do Brasil] (CCBB). A estreia foi lá. Eu escrevi para que fosse feita pelo Jardes Macalé
tocando violão e, cantando, um barítono, que foi o Inácio de Nono; a Maria Teresa [Madeira],
no piano preparado e o Rodolfo Cardoso na percussão. Já fiz uma versão juntando os papéis
do barítono e do cantor e violonista em trio, mas a peça originalmente é para quatro. Fala da
trajetória de John Cage, que fez piano preparado, que gerou a criação do minimalismo. Fala
das peças que utilizaram toca-discos e rádio de pilha. Na hora do concerto: „Teresa, não
esquece o teu secador de cabelo!‟ ou „Quem é que tem um liquidificador?‟ Já teve várias
situações em que eu ligo para a [Maria] Teresa [Madeira]: „Teresa, não esquece os
parafusos!‟”
REALIZAÇÃO
“Na maioria das vezes, a produção executiva para a realização da obra acaba sendo
uma tarefa do compositor. Depende da complexidade de cada obra. Mas é óbvio que em
determinado lugar vai funcionar melhor ou pior, de acordo com a cena. Se você oferece um
dado a mais você vai ter mais problema. Quando você envia uma obra para a Bienal, a própria
organização da Bienal te fala: „Olha, o compositor é responsável pela realização‟. Nem toda
sala de concerto... na verdade, a maioria delas não está preparada para esse tipo de demanda,
de iluminação cênica... porque a sala não é preparada para isso. Você tem que se valer daquilo
que você tem, eu penso assim. Uma coisa é você apresentar uma obra num teatro tradicional
que tem vara de iluminação, que tem o iluminador, que tem uma mesa de luz, saídas de cena.
Outra coisa é a Sala Cecília Meireles, que não tem nada disso.”
O PÚBLICO
“Bravo é uma peça que trabalha com a plateia, com o que acontece na plateia de um
concerto. Eu tanto critico [a postura do instrumentista] quanto acho que tem o seu lugar. Eu
critico porque distancia o público – inicialmente por isso. Você dá à coisa tamanho ar de
elevação, de coisa especial, que o público acaba ficando com medo da música. Parece que é
uma seita. Parece que você vai participar de uma cerimônia. É uma cerimônia. Não deixa de
ser uma cerimônia. Não é que tenha que deixar de ser. Tem o seu lado bacana. Só que isso
193
distancia as pessoas, principalmente o público leigo. Se a gente tem a intenção de aumentar a
plateia freqüentadora de concerto, não dá para ser dessa forma. Eu não tenho nada contra [o
formato das apresentações tradicionais]. Tem que ter noite de gala no Municipal, com trajes
corretos. O intérprete pode fazer uma coisa e outra.”
194
APÊNDICE C - Vânia Dantas Leite: a escultora de sons
Nascida em 13 de agosto de 1945, no Rio de Janeiro, Vânia Dantas Leite é uma das
pioneiras na música brasileira eletroacústica e na música-video. A música experimental faz
parte tanto da sua produção artística quanto da sua produção acadêmica. Formou-se no
Bacharelado e no Mestrado em piano da UFRJ e também no curso superior de Composição e
Regência, na mesma instituição, sendo, ainda, doutora em composição pela UNIRIO.
Um piano em casa, uma sala para o piano, um quadro com pentagrama para brincar,
palcos improvisados e espetáculos subsidiados pelos pais constituem estrutura que não
determina sua trajetória artística, todavia apresenta-se como fundamental para a formação da
pianista compositora que mostrou, desde os primeiros contatos com a música, tendência ao
experimentalismo, conversando com outras linguagens artísticas. Leite foi estimulada desde
cedo, pela família, a vivenciar a dança, o teatro e a literatura. Ainda estudante, circulava por
meios diversos, desde os mais tradicionais até aqueles onde já se praticava a música
experimental.
Sempre comprometida com o novo, teve iniciativa ao investigar, ainda em seu período
de formação, um repertório diferente daquele que costuma constar nos programas tradicionais
de concerto. Como pianista, confessa, entretanto, que até hoje prefere interpretar, da literatura
produzida para o instrumento, o repertório de Bach, Mozart e Beethoven.
Começou a perscrutar o caminho para a composição experimental no encontro com
Esther Scliar. Ao observar a atividade de compositores como Jorge Antunes e aproximando-
se da música de Edino Krieger e Marlos Nobre nos anos de 1960, a compositora chegou ao
Eletronic Music Studio, em Londres. A partir da década seguinte, de volta ao Brasil,
descobriu sua própria expressão artística, espontânea, genuína. 203
Enquanto escultora de sons, Leite inaugura uma época em que o trabalho com os sons
se separa do trabalho com a linguagem musical tradicional. Ao romper com a tradição, viu-se,
durante longo período, isolada numa atividade pouco compartilhada, pouco compreendida.204
Schaeffer se refere, de maneira indireta, a essa questão:
Assistimos, dessa forma, ao surgimento de obras incontestavelmente novas,
embora sem dúvida interessantes sob esse aspecto, muito decepcionantes em
outros planos e não necessariamente seguras de sua sobrevivência.
203
Leite indica como sua primeira obra, a partir dessa auto-descoberta, Vita Vitae, de 1974, e considera
todas os seus trabalhos anteriores como exercícios de composição. 204
Ainda assim, as plateias, em seus concertos, por muitas vezes, estiveram superlotadas.
195
O nosso ouvido efetivamente se acostumará – e é conhecido o espantoso
poder de adaptação do ouvido musical – , ou ele não se acostumará e todas
essas obras, a despeito de suas qualidades intrínsecas não constituirão jamais
uma linguagem inteligível. (SCHAEFFER, 1966, p. 21, tradução nossa).205
A visualidade na música, que é tema de pesquisas e composições da autora, é uma das
características das manifestações mais recentes da música contemporânea. Entretanto, Leite
(2007, p. 2) comenta: “A música sempre se constituiu num espetáculo audiovisual”. Lembra
também que “as imagens sempre fizeram parte da prática, difusão e percepção da música em
suas 3 principais manifestações histórico-culturais distintas: nas músicas de tradição oral, nas
músicas escritas e nas músicas eletroacústicas.” (LEITE, 2007, p. 2). Acrescenta ainda que: “a
qualquer manifestação de uma criação artística, somam-se, em evidência ou
subentendidamente, outras formas de expressão, mesmo que esta não seja a intenção do artista
criador. Um espetáculo sempre será um ponto de encontro entre múltiplas percepções.”
(LEITE, 2007, p. 2).
Essa é ideia reforçada por Chion, que afirma serem a audição e a visão dois sentidos
“que têm uma relação de complementaridade”. (CHION, 1998, p. 219). O professor e
pesquisador da área de Música e Tecnologia da Escola de Comunicações e Artes da USP,
Iazzetta (2009, p. 211-212), também se refere a tais tendências, no contexto da música
recente:
A forte mediação tecnológica presente nas artes em geral facilitou a conexão
entre elementos sonoros e visuais, levando a uma constante associação entre
música e outras formas de arte (artes visuais/performance/instalação
artística, artes experimentais, ambientes multimídia). Essa conexão trouxe
para dentro do repertório musical muitos dos procedimentos e propostas
específicos dessas outras artes. A ênfase no uso do espaço como elemento
constitutivo da obra, a recorrência de referências conceituais e contextuais, a
interação entre som e imagem, são apenas alguns desses aspectos.
A valorização da visualidade na música corrobora a ideia de Cook quando diz que: “A
verdade é que a arte musical vem se expandindo: mas ela está se expandindo fora da teoria da
música”. (COOK, 1998 apud LEITE, 2004, p. 5).
205
“[...] Ainsi avons-nous assité à la naissance d‟oeuvres incontestablement nouvelles , en effect, sans
doute intéressantes à cet égard, fort décevantes aussi sur d‟autres plans et pás nécessairement
assurées de survivre,notre oreille s‟y fera – et l‟on sait l‟étonnant pouvoir d‟adaptation de l‟oreille
musicale – , ou bien elle ne s‟y fera pás, et toutes ces oeuvres, em depit de leur qualités intrinsèques,
ne constitueront jamais um langage intellegible.[...] Le premier n‟est pás le pire: une musique
rigoureusement construire doit être inteligible. Seules s‟y opposent nos habitudes et notre
obstination à La ramener à um langage traditionnel.” (SCHAEFFER, 1966, p. 21).
196
O acesso facilitado ao suporte tecnológico digital que permite processar som e imagem
simultaneamente estimulou compositores a conceberem aspectos sonoros junto com aspectos
visuais em suas obras. (LEITE, 2007). Leite é uma das precursoras da chamada música-video,
que define como o “novo gênero de linguagem musical” ao qual se refere como “uma
tendência que vem proliferando na produção dos compositores que se utilizam de tecnologias
recentes como meio de expressão: o uso crescente da linguagem visual somada à prática da
composição musical”. (LEITE, 2007, p. 2). A música-vídeo é derivada da música
eletroacústica onde uma gravação pode estar aliada a eventos audiovisuais ao vivo, como na
chamada música mista. Imagem e som podem ser também processados em tempo real.
Na inclusão da linguagem visual, a criação artístico-musical eletrônica apresenta um
novo gênero – na música-vídeo, nota-se “a soma das duas percepções oriundas das músicas
acústica e eletroacústica” (LEITE, 2007, p. 6):
a música-vídeo representa uma terceira fase na visualidade da linguagem
sonora, fase que se constitui na soma das duas anteriores, respectivamente
ver/ouvir e ouvir/ver: imagem e som como duas linguagens independentes,
justapõem-se (ou contrapõem-se) gerando uma nova forma de expressão
porque demanda não apenas novos domínios técnicos como também novas
difusões e percepções. (LEITE, 2007, p. 6).
Conforme explica Leite, há na música dois parâmetros de integração entre visão e
escuta: o parâmetro ver/ouvir e o parâmetro ouvir/ver. O parâmetro ver/ouvir, onde a visão
fomenta a audição, encontra-se na música acústica: a fonte sonora é visualizada pelo ouvinte
onde intérprete e partitura aparecem em tempo real. No parâmetro ouvir/ver, ao contrário, é a
audição que estimula a visão virtual, imaginária, uma vez que a fonte sonora não é expressiva,
já que conta apenas com suporte, aparelhagem, alto-falantes. (LEITE, 2007).206
A relação presencial entre intérpretes e ouvintes ocorreu até o século XIX, quando o
recurso da gravação derrubou tal obrigatoriedade. Nessa relação presencial, fundiam-se as
percepções visuais do local, do ambiente das apresentações – o que incluía seus odores,
sensações táteis, etc. Tais observações podem remeter aos aspectos cênicos naturais da
apresentação musical, onde cenário, figurino, movimentação e atuação – gestualidade do
intérprete – são indissociáveis da música. A esses aspectos da cena somam-se, ainda, o
comportamento da plateia: um comportamento culturalmente adquirido, no qual as ações e
206
Vale ressaltar que os gêneros audiovisuais de música têm raras referências e se utilizam de critérios
isolados para suas diversas manifestações – filmes, videoclipes, programas e comerciais de
televisão, ballet, ópera – e que grande parte dos trabalhos artísticos audiovisuais não privilegia a
música, utilizando-a como mero complemento de imagens.
197
reações do público formam, junto ao comportamento dos instrumentistas e/ou cantores, um
conjunto de procedimentos padrão. Na música tradicional de concerto, a cena natural estimula
e complementa a percepção sonora do ouvinte, embora haja, por parte de todos os envolvidos,
parcimônia com relação a qualquer atitude que possa diluir atenção estritamente musical no
evento. Conforme observação de Iazzetta (2009, p. 53): “a música no concerto exerce um
papel simbólico de distanciamento no ritual. É como a estátua de um santo no altar para onde
se dirigem os fiéis com admiração, mas com a devida distância”. Leite considera a
concentração dos interesses da apresentação musical ao vivo na audição igualmente
importante e interessante se comparada à simultaneidade dos interesses na audição e na visão.
Esse grau de importância só oscilará de acordo com a situação, com a intenção conceitual dos
artistas – compositores e intérpretes envolvidos.
No surgimento da música concreta, em 1948, profundas mudanças ocorreram nas
relações entre compositores, intérpretes e ouvintes. Uma delas foi o fim do vínculo
obrigatório entre som e imagem, o que possibilitou ao receptor criar suas próprias imagens, de
maneira mais independente: “A „acusmática‟, antiga palavra de origem grega, é um dos
primeiros termos que surgem para caracterizar esta nova escuta. Tal termo foi retomado por J.
Peignot e teorizado por Schaeffer em 1952: significa o ato de ouvir sem ver a fonte originária
dos sons”. (LEITE, 2007, p. 3).
Na música acusmática207, “onde a imagem não está presente nem na realidade nem em
suporte, mas apenas na mente do ouvinte”, a imagem é estimulada, promovida através do som
de maneira subjetiva, segundo os processos cognitivos e psicológicos de cada receptor.
(LEITE, 2007, p. 3).
Na música-vídeo, o aspecto visual pode até constituir-se em aspecto cênico, podendo,
ainda, manter a característica acusmática da música eletroacústica, uma vez que a origem do
som não se revela; apenas a ela se soma uma linguagem visual, não obrigatoriamente
associada à sua emissão. Pode, entretanto, apresentar as características da música
eletroacústica mista, onde sons gravados se misturam aos sons produzidos ao vivo com a
presença dos instrumentistas e/ou cantores envolvidos. No caso da música cênica, outros
artistas da dança, teatro ou artes visuais podem fazer parte da apresentação como espetáculo.
Independentemente da especialidade artística dos intérpretes envolvidos, a interação entre
estes e os compositores é de vital importância para obra, segundo Leite:
207
A música acusmática, conforme a batiza François Bayle em 1978, no contexto da música de
concerto, é a música apresentada através de suporte eletrônico: música de suporte ou música
concreta.
198
Eu componho especificamente para aquele intérprete. [...] Para mim, o
intérprete é um instrumento, ele é co-autor comigo, ele trabalha junto e
aquela obra, com outro não vai dar certo. Algumas, nem todas. Talvez isso
me distancie um pouco do resto da comunidade musical e do público. Talvez
distancie porque as pessoas ainda têm essa prática da música muito presente:
a partitura. (informação verbal).208
A personalidade inovadora da obra de Vânia Dantas Leite traz para a compositora
algumas dificuldades na realização, circulação e divulgação de suas criações. Os recursos
tecnológicos exigidos para as apresentações encarecem a produção executiva dos concertos,
assim como a montagem de equipe competente: encenação, manipulação dos aparelhos
adequados e outras tarefas que envolvem o espetáculo tornam o trabalho mais árduo do que
quando se trata de produção executiva de apresentações musicais tradicionais: “[...] eu sempre
fico frustrada. Não há uma ocasião em que eu consiga sair feliz de uma apresentação. Sempre
falta alguma coisa. Nunca consigo exibir a minha música do jeito que tem que ser”.
(informação verbal). 209 Leite alega que para realizar seus concertos da maneira como
deveriam ocorrer, teria que se dedicar exclusivamente à sua obra, porém a sua atuação como
docente divide-lhe as atenções e não lhe permite dedicar tempo e esforços suficientes para
captar os recursos necessários à realização e disseminação do seu trabalho. Segundo o seu
depoimento, os produtores em geral não se interessam por esse tipo de música porque é um
produto que não costuma prometer retorno financeiro satisfatório para o investimento a ser
feito.
ENTREVISTA COM A COMPOSITORA VÂNIA DANTAS LEITE, EM SUA
RESIDÊNCIA, EM BOTAFOGO (RJ), EM 22 DE OUTUBRO DE 2010.
FORMAÇÃO
A INFÂNCIA MUSICAL
“Eu já tocava música de ouvido com três anos. Eu não queria comer, por exemplo. A
minha mãe descobriu que eu gostava de fazer nota em pentagrama. Ela mandou fazer um
208
Entrevista com a compositora Vânia Dantas Leite, em sua residência, em Botafogo (RJ), em 22 de
outubro de 2010. (Apêndice C, p. 207). 209
Ibid., p. 210.
199
quadro negro preto, botou na sala do piano, com pentagrama, e eu ficava desenhando nota
enquanto comia. Já com três anos e meio, quatro anos, eu já escrevia notinhas e já sabia o que
estava fazendo, mas não sabia escrever palavras. Só fui me alfabetizar com seis anos, mas já
escrevia música. Com quatro, cinco já escrevia. Tudo era brincadeira. Ninguém nunca
pensou: „Vai ser compositora!‟ Eles apenas tentavam me distrair com alguma coisa que me
desse prazer. Eu não tinha um prazer comum como uma criança tem de sair, brincar. O meu
prazer era tocar piano, escrever nota na pauta. A minha mãe me colocou na Escola de Música
[da UFRJ] quando eu tinha quatro ou cinco anos. Eu tenho ainda a minha carteira de estudante
da Escola de Música com cinco anos. Dona Nayde Sá Pereira foi a minha primeira professora
de Iniciação Musical. Quando eu me formei, ela se aposentou: uma grande professora,
maravilhosa. Eu estudei quatro anos de Iniciação Musical com a Dona Nayde. Inicialmente,
não queriam deixar eu entrar porque eu não era alfabetizada, eu não sabia nada de matemática
e para teoria tem que ter uma iniciaçãozinha, saber somar, pelo menos, para saber calcular
intervalo, mas deixaram. Deixaram eu entrar.”
AS PRIMEIRAS LIÇÕES DE PIANO
“Eu estudei piano porque amava a música, tinha muito jeito para tocar. Eu comecei a
estudar piano com a minha mãe. A professora da minha irmã vinha em casa dar aula de piano
para ela. A minha tia, irmã da minha mãe, era pianista e também me dava umas dicas, sentava
muito ao piano comigo, tocava a quatro mãos. Não me ensinava, mas me estimulava muito.”
OUTRAS ARTES
“Eu queria ser bailarina de qualquer jeito. Eu não tinha talento para o ballet, eu era
uma negação. Eu ia dançar, me botavam para tocar toda vestida de bailarina para eu não
entrar no palco porque, realmente, eu era um fiasco quando entrava. Eu tinha um corpo ótimo,
magérrimo, de bailarina, mas não conseguia fazer nada que prestasse. A minha prima mais
velha tinha muito talento, depois foi para a Rússia, fez carreira e tudo, mas eu não conseguia
dançar. Aqui, nessa vila mesmo, em que eu morava quando era criança, na casa dos meus
pais, aqui, em frente a essa casa – depois eu voltei para cá, muito mais tarde, mas dos seis aos
onze anos eu morei aqui e foi justamente a fase em que eu tinha uns amiguinhos na casa ao
lado – eu escrevia peças de teatro e botava todo mundo para representar. Já compunha peças
para piano porque eu estudava piano. O meu negócio sempre foi a criação. Tinha uma coisa
200
de produção [executiva], mas tinha uma coisa de criação, principalmente. Eu não era muito
boa de produção [executiva], mas todo mundo me ajudava. Meus pais me ajudavam. Faziam
palco em casa, botavam umas cordas com cortinas improvisadas. Era um palco na varanda da
casa.”
BERÇO
A MÃE E A IRMÃ
“A minha mãe era uma pessoa muito forte e muito tradicional, queria que eu estudasse
Bach, Beethoven, Mozart. Ela era muito rígida. Mas eu tinha muito prazer de tocar, ela não
me obrigava, não chegava a me obrigar. Obrigava à minha irmã, que era mais velha. Essa
sofreu! Essa era obrigada a estudar piano. Ela tinha dificuldade de fazer as coisas e eu tirava
tudo de ouvido. A minha irmã ficava revoltada e a minha mãe não pegava no meu pé, pegava
no pé dela.”
O PAI
“Enquanto a minha mãe me segurava nos clássicos, o meu pai me dava Mallarmé para
ler quando eu ainda tinha quinze anos. Valéry, Neruda... Ele me dava Marx para ler. Era
marxista. A geração dele era essa: Prestes e companhia. Meu pai me estimulava a compor.
Mas quando ouviu os meus ruídos, não gostou”.
OPOSTOS
“Eu tinha pais muito fortes e opostos um ao outro. A minha mãe era católica
apostólica romana, ia à igreja todo domingo. O meu pai era comunista e ateu. Eu tinha um
lado do meu pai, que era totalmente revolucionário e eu ficava entre um e outro”.
EXPERIMENTALISMO
O CAMINHO EXPERIMENTAL
201
“Apesar de ser aluna da Escola de Música [da UFRJ], que era um lugar muito
tradicional, eu freqüentava outros meios. Por exemplo, o Instituto Villa-Lobos: tinha o
Reginaldo Carvalho, o Jorge Antunes... eu era fascinada por aquilo. Eu ia lá só para ver,
conversar com eles, tocar peças deles para piano e tape... Eu ia buscar um repertório para
mim. Eu nem pensava em compor ainda, nessa época, eu ainda não compunha. Eu comecei a
compor muito tarde. Eu entrei para o Curso de Composição com desenove anos. Embora eu
tenha ganho esse prêmio de composição logo depois, em 1972, eu não considero que aquilo
fosse composição. Eram exercícios. Depois eu fui estudar com a Esther Scliar e comecei a
encontrar o meu caminho. Ela me apresentou um repertório consistente de música
contemporânea e eu me entusiasmei mesmo na composição. Ela me apresentou Pendereck. À
eletroacústica ela não era ligada, mas era ligada ao [Luigi] Nono: um tipo de linguagem com a
qual eu me identifiquei muito.”
O ACESSO À TECNOLOGIA
“Eu tinha, no Brasil, acesso a ver o Jorge Antunes trabalhando. Via e tocava as coisas
dele, ajudava a mexer no gravador. Gostava de gravar sons. Eu tinha um bom gravador em
casa, um microfone bom, mas não compunha. A primeira vez que eu fui para a Europa – eu
ganhei um prêmio, fui a melhor aluna do ano da Escola de Música da UFRJ, estava no
segundo ano de composição – eles [a Escola de Música da UFRJ] me pagaram uma viagem.
Eu podia escolher para onde ia e o que queria fazer, mas tinha que apresentar trabalho. Fiz
uma conferência na Áustria e em Portugal sobre a música contemporânea brasileira. Tive que
pesquisar. Fui entrevistar os compositores: Edino Krieger, Marlos Nobre, Aylton Escobar e o
próprio [Jorge] Antunes. Eles circulavam lá, na época. Levei algumas coisas como pianista,
tocando, mas falando da música brasileira, falando do pessoal da Bahia. Isso foi no final da
década de 60: 1968. Eu comecei a compor em 70. Cheguei a Londres já programada, indicada
para trabalhar no Eletronic Music Studio. Foi o primeiro contato com um estúdio de
composição. De volta ao Brasil, eu trouxe meus equipamentos, o pouquinho que deu para
trazer. Já naquela época estava mais fácil. Esse sinth que eu tenho hoje, que era do Eletronic
Music Studios (EMS), construído lá, era uma maleta que resumia o estúdio em que eu
trabalhava, com todos os módulos. Só que o estúdio era poderoso e o sinth era uma coisa
pequenininha que tinha tudo o que tinha lá e era um sintetizador mesmo. Eu comprei aqui no
Brasil uns gravadores: uma Revox k700 em que eu montava as minhas fitas. Cortava e colava.
O sinth ainda está aí”.
202
DOS EXERCÍCIOS DE COMPOSIÇÃO À CRIAÇÃO ARTÍSTICA
“Eu tocava e compunha música tradicional. Eu não escrevia nada, só fazia exercícios
de contraponto e o que eles me encomendavam. Eu comecei a compor de uma maneira
tradicional. As minhas primeiras peças foram para instrumentos tradicionais. O primeiro
concurso nacional que eu ganhei, de composição, foi com uma peça para orquestra. Eu tinha
feito uma sonata. O que é uma sonata para o século XX? Não é nada! Eu fiz aquela sonata
porque me mandaram fazer, mas não considerava uma coisa minha. Era uma sonata para
piano, xilofone e fagote. A primeira música que eu considero minha é de 1974 e se chama
Vita Vitae para quatro instrumentos, voz, narrador, atriz e quatro canais de sons eletrônicos
com processamento, já em tempo real, da flauta.”
RESISTÊNCIA
“Com as primeiras peças que eu fiz com a barulheira toda, o meu pai ficou
horrorizado: „Ih, minha filha, vai tocar o seu piano!‟. Eu disse: „Ah, não, agora é tarde. Já
fui!‟. Meus filhos não gostam também. Meu filho fica me pedindo: „Poxa, mãe, não dá para
você compor umas notinhas de vez em quando?‟ Eu digo: „Não, não dá‟. Continuo firme. A
resistência é muito grande, mesmo no meu ambiente de trabalho.”
SOLIDÃO
“Eu sou muito respeitada, lá na UNIRIO, mas eu acho que ninguém gosta do que eu
componho. Esse ano é que entraram dois professores por concurso. Pela primeira vez tem dois
professores que trabalham na minha área. Eu sempre ficava sozinha. Quem é que fazia música
eletroacústica? Ninguém, só eu. Tinha um compositor, que era o José Maria Neves, que foi
quem fundou o Programa de Pós-Graduação em Música, que estudou com o [Pierre]
Schaeffer, fez composição. Ele chegou a compor. Tanto, que eu estreei uma peça dele, aqui no
Brasil, para piano e tape, mas José Maria abandonou logo, logo isso tudo, muito novo ainda,
para ser musicólogo. Ele disse: „Eu vou me dedicar à musicologia.”
NOVOS TEMPOS
203
“Os alunos de hoje estão muito mais abertos, pela proximidade com a tecnologia. A
criança já nasce tendo em casa um computador. O mundo levou a gente a isso, não tem volta.
Culturalmente, ninguém anda para trás. Ninguém mais vive sem o seu laptop, seja em
qualquer área e na música, principalmente.”
MÚSICA BRASILEIRA POPULAR E ERUDITA
“A música tem muitas manifestações. Nós [brasileiros], com a nossa cultura ocidental,
ainda européia, não se sente dono de uma escola, de uma estética, a não ser que seja no
samba. A música brasileira é riquíssima, mas a música popular é muito mais. A música
erudita brasileira é européia, ela sempre foi cópia. Até o nosso [Ernesto] Nazareth, que é um
gênio, fazia valsa no estilo Chopin.”
O PIANO
O USO DO PIANO
“O piano, na minha obra, eu não utilizo, praticamente não utilizei. O piano teve a
época dele. O piano é um instrumento temperado e foi criado com a intenção de suprir as
necessidades do temperamento, da escala temperada. Foi uma evolução do cravo. Johann
Sebastian] Bach já fez O Cravo bem temperado pensando nesse tipo de instrumento: o
teclado, o piano. A linguagem com a qual eu acabei me envolvendo mais na composição foi a
música eletroacústica, ou seja, a antítese disso. A música eletroacústica justamente quer fugir
da escala temperada. A música concreta, quando surge, se propõe a usar todos os sons,
inclusive muito mais os ruídos, explorar esse universo sonoro que não é esse, limitado, do
instrumento. Então, eu me agarrei na voz. Como eu tinha formação clássica, eu raramente abri
mão de utilizar instrumento musical acústico. O piano não é obsoleto, de jeito nenhum, assim
como o cravo. A pessoa pode tocar todo um arsenal de obras maravilhosas para cravo. Mas o
cravo na música contemporânea é pouco utilizado, pelos mesmo motivos [que o piano é
pouco utilizado na música contemporânea]. Existem peças lindas para cravo.”
REFERÊNCIA A SCHAEFFER
204
“[Pierre] Schaeffer fez uma Sinfonia para um homem só, que era uma sinfonia que
explorava todos os ruídos de um homem. Do sussurro aos ruídos externos e internos que
pudessem acontecer: percussivos... o homem batendo no corpo... essas coisas surgiram lá em
1952. Schaeffer também gostava muito de piano. Os Estudos de ruídos 210 do [Pierre]
Schaeffer usava piano nas cordas, nos bordões. Não usa o teclado, mas explora bastante o
piano enquanto caixa acústica junto das notas do temperamento.”
O REPERTÓRIO DA PIANISTA
“Na Escola de Música eu era obrigada a estudar aquele repertório tradicional: Bach,
Beethoven, Mozart. Eu gostava muito, até hoje eu adoro. Se eu for tocar piano, eu gosto de
tocar essas coisas: os clássicos, principalmente. Os românticos, eu toco mal. Gosto, mas não
faz o meu estilo. Eu gosto de tocar só a partir de Brahms porque já é mais neoclássico e eu
começo a fazer um pouquinho melhor. É música contemporânea, o meu estilo – ou então
Bach, Beethoven e Mozart. Beethoven, eu toquei muito. Sou absoltamente apaixonada por
Mozart. Se me deixar escolher o que é que eu quero tocar, eu quero tocar Mozart, até hoje,
toda a obra: as sonatas, os concertos...”
MÚSICA CÊNICA
A VISUALIDADE NA LINGUAGEM SONORA
“A visualidade na música foi uma coisa que defendi como tese de doutorado: um
trabalho que faço praticamente há trinta anos. Esse meu envolvimento com a visualidade na
linguagem sonora, que é o título do primeiro capítulo da minha tese, isso foi uma coisa com a
qual eu sempre me envolvi, mas através da imagem enquanto instrumento da música e não a
serviço da música porque em determinadas circunstâncias a imagem atrapalha, dependendo
do repertório. Não é à toa que essa maneira de o músico clássico se apresentar é tão singela,
pobre mesmo. Tem que ser porque a plateia precisa de concentração. Então, quanto mais você
distrai a plateia com a sua figura ou com alguma coisa no palco, pior para passar o trabalho
que foi estudar um Beethoven, um Mozart. Quando tocamos uma coisa dessas, queremos que
a pessoa ouça, não quer que a pessoa veja. Queremos que ela ouça aquele trabalhão que
210
Série de cinco estudos composta em 1948.
205
tivemos para preparar aquilo... [Para ouvir] Beethoven, o ideal é fechar os olhos. Não precisa
chegar ao extremo de deixar tudo escuro. Olhar para o pianista não vai fazer o ouvinte perder
a concentração, mas se o pianista chegar com um vestido de cauda enfeitado, vai distrair o
espectador. A sobriedade, para certo tipo de repertório, é muito bem vinda.
LINGUAGEM AUDIOVISUAL E PANFLETAGEM
A Laurie Anderson, desde o início da carreira usa telão. Ela toca magnificamente bem:
canta, faz tudo, uns textos maravilhosos: é popular. Até que nem é tanto: ela fica ali, na
fronteira, mas é um trabalho muito bem feito, de muito estudo. Ela usa telão, mas é outro tipo
de linguagem. A imagem dela é projetada, faz parte da linguagem dela. Sem aquilo, a
linguagem perde e o sentido. A gente tem que tomar cuidado para ver o que é panfletagem e o
que é que realmente funciona.”
INTERDISCIPLINARIDADE
“Desde criança eu gostava muito de teatro, dança. Eu fiz ballet e gostava muito de
outras linguagens também. Eu escrevia, gostava muito de escrever. Tanto, que eu fazia
Literatura depois que eu terminei o Humanidades. Essa interação com as outras artes se deu
desde o início da minha vida musical.”
DI-STANCES: MÚSICA-VIDEO
“O [meu] primeiro trabalho em cima da relação de som e imagem foi Di-stances, em
1982. Esse trabalho é o que eu chamo de música-video. A música-video não necessariamente
tem que ter um suporte áudio-visual. A música-video normalmente tem, mas ela pode também
se dar em tempo real porque hoje em dia a gente voltou muito a explorar, em função do
avanço tecnológico, o artista no palco. Antes, a música eletroacústica havia se distanciado
muito do palco, durante muitos anos, pelo impedimento de se fazer as coisas em tempo real.
[Hoje] temos toda uma plataforma pronta para isso, digitalizada e cada vez mais ágil e, então,
voltamos para o palco. A música-video pode acontecer também em tempo real, sem suporte
pré-gravado. Eu mesma tenho: os meus orixás são em tempo real. Obá, A deusa do arco-íris,
206
a Oxumaré, a Ibedi, os gêmeos 211 : esses orixás não têm suporte. Têm até um suporte
sampleado que eu lanço com imagens cênicas, mas não aquele suporte fixo. O trabalho não é
um audiovisual, DVD, embora possa ser também. Eu tenho vários que são DVD. A música
eletroacústica, o CD, é acusmática. Nesses trabalhos de música-video, o som e a imagem
nasce juntos. Essa partitura [de Di-stances] é uma das minhas primeiras músicas-video. É um
pentagrama com um desenho em cima. Esse desenho é de um artista plástico que trabalhou
comigo muitos anos: Paulo Garcez. „Di‟ quer dizer dois e „ instâncias‟, movimentos. Eu
comecei a fazer isso em 1982. Essa proposta foi do Paulo [Garcez]. Eu sempre tive vontade
de trabalhar com desenho, com artistas plásticos, mas a proposta foi dele. Ele fez essas
partituras para o Nelson Freire – que era muito amigo dele – tocar, improvisar. O Nelson
Freire não quis nem tentar. Olhei para aquilo e disse: „Eu posso improvisar com instrumentos
eletrônicos‟. Não pensei em piano.”
DUETO I+1: MÚSICA E ARTE VISUAL
“Dueto I+1: eu nunca tinha feito isso antes: tocar uma coisa minha. O desenho é
projetado porque a partitura é gerada daquele desenho. O desenho gera a partitura assim como
gerou toda a parte eletrônica que foi produzida pelo Rodolfo Caesar. Ele [Milton Machado]
fez esse desenho na década de 70 ainda e a primeira vez que o Dueto I+1 foi apresentado, era
para eu tocar com mais alguém. Eu não pude porque eu peguei uma hepatite, uma coisa assim
e fiquei de cama. O Leo Küpper, que é belga e estava aqui no Brasil, tocou. Fez uma versão
com a Ana Maria Kieffer, que é uma cantora de São Paulo. Esse dueto pode ser apresentado
por qualquer instrumentista ou intérprete cantor, performer, desde que siga as instruções do
desenho. Então, depois, teve uma versão minha e do Rodolfo [Caesar]. Qualquer intérprete
pode fazer. Nesse momento, ele vai ser um co-autor porque o desenho sugere a estruturação
da obra mas não sugere musicalmente, melodia, ritmo, harmonia, nada disso. O intérprete é
quem vai fazer, improvisando em cima da estrutura, o que ele [o desenho de Milton Machado]
pede: a sua melodia ou o seu ritmo, lá o que for, ou o seu ruído, como fez o Rodolfo [Caesar].
Eu fiz com notas porque fiz para piano. Eu fiz doze notas como se fosse um trabalho serial e o
piano tem uma partitura super tradicional, mas seguindo a proposta do desenho. Por isso é que
eu acho que faz o maior sentido projetar o desenho. É meio difícil de acompanhar, mas o
público pode perceber que o que a gente está tocando tem a ver com aquela estruturação. Eu
211
Peças da obra Fantasia de Brasil, que se constitui de 16 micro-cenas inspiradas na cultura yorubá,
desenvolvida no Brasil através do candomblé.
207
não gosto de explicar muito as coisas. Normalmente, eu ponho no programa esses dados
porque eu acho que quem tem interesse em saber o que é que vai acontecer, vai dar uma lida
no programa.”
MÚSICA E INTÉRPRETES MULTIDISCIPLINARES E SUA INTERAÇÃO COM
NOVAS TECNOLOGIAS
“A Obá tem dança também. A Doriana [Mendes] é bailarina. Ela fez a coreografia a
partir de uma conversa que tivemos a respeito da intenção. A intenção para mim é a coisa
mais importante, é o que define e caracteriza qualquer obra de arte. A Obá tem tudo escrito. A
Obá é uma partitura escrita, tradicional – com notas – e tem processamentos muito básicos de
voz. Ela canta e dança ao mesmo tempo e tem um microfone. Ela canta com um microfone de
contato que entra no meu computador. A voz, eu processo em tempo real e a imagem dela
dançando junto com o canto. Nesse caso, a imagem não é captada pela filmadora. Só o outro
orixá, o Oxumaré, a Deusa do arco-íris. A filmadora capta a imagem dela, transforma e joga
no telão. Eu tenho ela em tempo real, dançando. No caso da deusa do arco-íris, ela dança toda
de branco. Eu capto essa imagem. Construí um patch do diter que fizesse com que tudo que
não se movesse ficasse preto e tudo que se movesse entrasse no computador. Quando entra,
divide em cores do arco-íris. Jogo essa imagem, que é exatamente a dela, no telão todo
colorido. Ela canta, também, com microfone e a voz é processada. Essa já é mais complexa. A
Obá, como eu fiz há muito mais tempo, é só com um chorus, tem uns reverbs, mas é muito
mais simples.”
A-JUR-AMÔ
“A-jur-amô é uma obra cantada na Europa, na Alemanha, na França, nos Estados
Unidos, aqui no Brasil. Só aqui, pelo menos quatro intérpretes fizeram a A-jur-amô: até no
Circo Voador, com a Stella Miranda. Eu não estava aqui e o Tim Rescala a ajudou a fazer. A
peça tem toda uma parte teatral.”
OS INTÉRPRETES
DECISÃO
208
“O que „tem a ver‟ ou o que não „tem a ver‟ é decisão, por critérios subjetivos, que
todos os instrumentistas e/ou cantores precisam para executar as peças de música que
escolhem para o repertório.”
NÃO É PARA QUALQUER UM?
“Eu componho especificamente para aquele intérprete. Eu não tenho o menor interesse
que outros intérpretes façam certas músicas minhas como no sistema em que o compositor
disponibiliza a partitura e vários intérpretes vão tocar. Para mim, o intérprete é um
instrumento, ele é co-autor comigo, ele trabalha junto e aquela obra, com outro não vai dar
certo. Algumas, nem todas. Talvez isso me distancie um pouco do resto da comunidade
musical e do público. Talvez distancie porque as pessoas ainda têm essa prática da música
muito presente: a partitura. Mas, por exemplo, o meu audiovisual, o que é sobre suporte, tem
várias pessoas que levam para os concertos, para a Europa, para todo lugar e passam na tela.
Essas coisas que são em tempo real, como no caso desses orixás, eu não quero trabalhar com
mais ninguém, eu quero trabalhar com eles: com a Doriana [Mendes], com o Feijão – o
Mestre Feijão, o capoeirista. Eu levei muito tempo fazendo a cabeça de um capoeirista para
entrar na minha linguagem. Quando ele recebeu os sons, ficou totalmente integrado com
aquilo. Eu tenho uns orfeus que foram feitos por várias cantores. Os orfeus para tape e voz,
cada um deu uma entonação diferente. O Orfeu na floresta tem um texto como partitura, não
tem nota. Já O canto do Orfeu, que é o segundo, que é a segunda cena, é todo escrito,
milimetricamente, com quartos de tom para cantar, com tudo. Então, o segundo Orfeu,
qualquer um pode fazer porque ele está escrito, está na partitura, qualquer um pode ler,
acompanhar o tape, estudar e pronto. O Orfeu na floresta também qualquer um pode fazer
porque eu proponho a parte do canto através de um roteiro. O Orfeu está dividido em quatro
partes. A primeira parte vai fazer isso, a segunda aquilo, a terceira aquilo, a quarta aquilo e
pronto. É tudo improvisado, mas improvisado dentro daquelas regras que estão ali escritas. A
estruturação de Orfeu tem o tape e mistura partes improvisadas e outras partes que são bem
rígidas, mas isso é uma obra que pode sair para o mundo. Tem peças que dá para fazer.
Outras, eu acho muito difícil.”
CO-AUTORIA
209
“Certas obras que têm co-autores. Por exemplo: quando a Doriana [Mendes] fez essa
coreografia [na obra Obá], nós trabalhávamos juntas. Tanto eu influenciei a coreografia dela
quanto ela influenciou a minha música. Na Obá, tem certas coisas que ela não conseguia fazer
dançando e cantando, até porque a respiração, as técnicas são totalmente opostas. Quando
você está dançando, você usa a sua respiração de um jeito. Cantando, você usa de outra.
Então, tinha que conjuminar essas técnicas respiratórias num corpo só. Havia momentos em
que para ela fazer determinados gestos não podia fazer determinados intervalos em
movimentos ascendentes porque era incompatível conseguir respirar e cantar daquela
maneira. Isso tudo foi sempre experimentalmente evoluindo através das conversas da troca de
informações entre compositor e intérprete. Como é que outra pessoa vai fazer isso? Eu não sei
se a outra pessoa tem a mesma técnica de respirar que ela tem, se a outra pessoa é capaz de
dançar e cantar ao mesmo tempo. O que pode, sim, é o outro intérprete criar uma versão
própria dele, mas se ele não tem essa interação comigo, como é que fica? Ele vai fazer
baseado no que ela faz, no que nós fizemos juntas, o que eu não acho justo porque é uma co-
autoria dela, uma interpretação dela. Então, se ele vai copiar ela... [Essa] foi uma questão que
ela [a Doriana Mendes] levantou muitas vezes em sua tese [intitulada A versatilidade do
intérprete contemporâneo: uma abordagem interpretativa de três obras brasileiras para voz e
cena]. Quando o compositor vê que „Bom, agora chegamos a um lugar que deu certo!‟, ele
escreve a parte do intérprete que trabalhou com ele. Só que não adianta ele escrever aquilo.
Não adianta, isso vai para outro intérprete e o outro intérprete não vai conseguir fazer. Cada
intérprete, nesse caso, vai ter que fazer a partir de sua própria concepção.”
PARTITURAS: COMUNICAÇÃO ENTRE COMPOSITOR E INTÉRPRETE
“Ninguém mais faz manuscrito. Mesmo que seja um músico acústico, ele já vai para o
Finale de uma vez porque a partitura já sai impressa. Não há intérprete mais que queira tocar
uma partitura escrita à mão. Os últimos manuscritos que eu toquei eu passei, eu mesma, para
o Finale porque eu não suportava ler aquilo. Já viu a escrita do Radamés [Gnattali] para
piano? Eu tive que tocar uma redução dele, de orquestra, um concerto para violão e piano.
Eram borrões de notas que pareciam clusters, eu tinha que adivinhar os acordes. Se não fosse
analista, não conseguiria tocar. Eu analisava a partitura, começava a ver o que ele usava
tipicamente: os intervalos, superposições de notas e deduzia porque não dava para ler
empacando todo o tempo. Ninguém quer perda de tempo desse tipo hoje em dia, é
inadmissível. Você tem que colocar na sua frente uma partitura que você se sente e toque, que
210
você possa passar de um compasso a outro sem problemas. Eu adoro escrever à mão, mas eu
escrevo como se fosse uma máquina, eu tenho prazer de desenhar as minhas coisas e o Finale
não me dá todos os recursos. Às vezes eu crio os meus símbolos, tem que fazer bula... A
última peça para piano que escrevi não tem nada que fuja do tradicional. O Finale deu conta,
mas não fui eu que editei. Eu fiz à mão e pedi a uma pessoa para colocar no Finale. Eu não
gosto.”
REALIZAÇÃO
APARATOS TECNOLÓGICOS
“Os orixás são difíceis de sair pelo mundo porque a dificuldade tecnológica ainda é
muito grande. Eu trabalho com som e imagem processados em tempo real. Não só tem que ter
uma filmadora captando e outra filmadora projetando, como também microfones de contato
específicos, além de computadores: um ou dois laptops, dependendo do número de orixás que
eu vou fazer – porque um não agüenta. Um computador não agüenta os dezesseis orixás. Dá
para fazer, no máximo, três ou quatro. Eu nunca fiz os dezesseis juntos porque exigiria uns
quatro técnicos trabalhando juntos. Normalmente, o concerto acontece em um dia e no dia
seguinte, acabou. Então, eu vou levar dois dias montando um palco para trabalhar uma vez e
desmontar tudo. Então, não compensa. Com a Fantasia de Brasil tem essa dificuldade.
Estreou na Alemanha. Depois, eu fiz aqui algumas vezes. Todas as vezes que eu fiz, eu fiz
com orixás diferentes, dependendo dos recursos que eu tinha. Sempre acontece um problema.
Por exemplo, um projetor que não casa com a distância da tela: eu passo meia hora para
convencer a pessoa responsável pelo equipamento que aquilo não vai funcionar e a pessoa
troca o projetor faltando quinze minutos para começar o concerto. Uma vez o meu programa
de computador expirou cinco minutos antes de o público entrar na sala de concerto porque eu
não paguei e tive que usar em Quick Time porque o Max estava fechado. Tudo preparado para
lançar num programa... são coisas que acontecem.”
CIRCULAÇÃO
“Eu não sei cuidar da minha obra, botar ela para funcionar. Eu tenho dificuldade de
fazer ela circular. Na verdade, eu não quero. As pessoas chamam, mas eu não tenho a menor
vontade. Nem me importo que os outros escutem ou deixem de escutar, eu gosto é de fazer.
211
Estando pronto, eu abandono e deixo para lá, vou fazer outra coisa. Eu sou muito conhecida,
mas ninguém sabe o que eu faço. Todo mundo me conhece de nome, mas ninguém nunca
ouviu as minhas coisas, poucas pessoas ouviram ou, se ouviram, ouviram muito poucas
coisas, um ou dois trabalhos e eu tenho um catálogo de obras gigantesco. Não é que eu não
goste de apresentar a minha obra. Eu gosto, mas eu prefiro compor, eu prefiro criar. O que eu
gosto é de produzir a obra em si e não de trabalhar na divulgação dela. Eu gosto é de compor.
Se eu quiser botar um trabalho para circular, eu vou ter que fazer isso pessoalmente, como a
Jocy [de Oliveira]. A Jocy é uma artista completa, nesse sentido, porque ela faz as coisas dela
e produz. Eu não tenho a menor paciência.”
DIFICULDADES
“Não é que eu não me importe com a divulgação e a circulação da minha obra, mas
certas obras dão tantos problemas para realizá-las. Encenar como deve ser... é tão caro, é tão
doloroso, é tão trabalhoso... Dá muito mais trabalho encenar do que compor. Eu não sou uma
produtora nata, eu não gosto de produzir, eu gosto de compor: são duas atividades opostas. A
Jocy [de Oliveira] bota a obra dela para circular, mas ela só faz isso. Eu dou aula vinte e
quatro horas por dia, estou na UNIRIO, alugada com tudo, o dia inteiro. Não é que eu não
faça questão de divulgar a minha obra, mas é difícil e é uma tarefa da qual eu não gosto, que
não me agrada. Aliás, eu sempre fico frustrada. Não há uma ocasião em que eu consiga sair
feliz de uma apresentação. Sempre falta alguma coisa. Nunca consigo exibir a minha música
do jeito que tem que ser.”
RETORNO FINANCEIRO
“Eu não tenho quem me produza porque ninguém está interessado no meu trabalho,
que é um trabalho que não tem retorno financeiro. Eu tenho que ganhar a minha vida e não
vou ganhar a minha vida produzindo o meu trabalho. Nem o [Pierre] Boulez conseguiu,
imagina se eu vou conseguir. O Boulez vive de regente que ele é, muito bom.”
O PÚBLICO
APRESENTAÇÃO AO VIVO
212
“Como documentação, a gravação das performances de algumas das minhas músicas
pode ser levada para ser exibida em qualquer lugar, mas eu acho mais interessante que esse
espetáculo seja visto ao vivo. Não impede de você levar para casa e ouvir o suporte, mas se a
obra foi feita para ser tocada... Ouvir [por exemplo] o piano tocando ao vivo é uma maravilha!
É uma coisa que cada vez é mais rara.”
FOLCLORE, RITMO E MELODIA: TODO MUNDO GOSTA
“Todo mundo adora a Fantasia [de Brasil]. Todo mundo gosta, acho porque tem
ritmo, tem melodia, tem essa coisa do folclore. Até os eletroacústicos mais radicais gostam.
Ela mexe com a identidade cultural porque está falando de orixá. Mas a minha abordagem de
orixás não é melódica e ritmicamente o que eles fazem no terreiro, nem poderia ser porque
trazer o terreiro para dentro do palco, não tem condição. É uma linguagem metafórica do
orixá. Trabalha o sentido daquele orixá, o que ele representa, não a música dele. Eu pego
fragmentos daquele orixá, do canto dele e trago para a música eletroacústica mas trabalhado,
processado. Mal se percebe.”
HONESTIDADE
“Eu não me preocupo com a recepção do grande público. Agradar a gregos e troianos,
ninguém consegue, não há ser humano que consiga. Há mais chance de agradar quando se faz
um trabalho honesto e é difícil se ter certeza de que se chegou lá naquilo que se produziu.”
AUDIOVISUAL
“O audiovisual é da nossa época. Pode ser até que o grande público assista à minha
obra audiovisual e se identifique e talvez não. O nosso mundo é cheio de um audiovisual
muito óbvio: televisão, celular que você pode falar vendo a pessoa, esse tipo de apelação
comercial. Uma coisa é o que você vê na televisão, outra coisa é a arte. Quando eu falo da
música-video, eu sei que a minha música é muito difícil de digerir.”
CADA UM NA SUA
213
“Quando eu mostrei na UNIRIO aqueles orixás... é interessante o feedback. Cada
pessoa pensa diferente da outra. Eram pessoas cultas e sensíveis que estavam lá: um público
seleto. Da reitora da Universidade que veio falar comigo o que achou ao presidente da
[Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro]
(FAPERJ), que é uma pessoa mais burocrática até, o representante da [Financiadora de
Estudos e Projetos] (FINEP)... estavam todos os tops, lá, da cultura brasileira, que vieram
opinar. Eu acho isso bárbaro. Eu adoro ter esse tipo de feedback porque você vê que cada um
entende o que quer. Eu faço o que eu quero e as pessoas entendem o que elas querem. Desde
que desperte alguma coisa no público... é isso que eu quero. Se gostou, se despertou alguma
coisa... Pode não ser necessariamente o que despertou em mim.”
PERSONALIDADE
A PAIXÃO PELOS SONS
“Eu adorava ir ao galinheiro. Queria me ver feliz, me levasse ao galinheiro. Eu era
louca por galos e galinhas por causa do som deles, provavelmente. O galo, quando ele canta,
faz um acorde. É um canto harmônico, não é melódico. Eu só queria saber de som. No jardim
da casa da minha avó tinha um balanço para dois lugares, desses balanços antigos. Fazia um
barulho: Whainhém, oin. Eu tinha tanta saudade do barulho do balanço que eu pedia à minha
mãe para me levar lá depois que nos mudamos, só para ouvir aquilo.”
ESCULTURAS
“Eu tenho uma obra que é serial e é para um quarteto de cordas clássico. Tenho muitas
obras que não têm experimentação, mas digamos que eu tinha sempre mais afinidade com os
métodos experimentais, principalmente com as tecnologias, com os sons pelos sons. Com o
som, tudo me interessa muito. Eu tenho um prazer enorme de gravar um som e fazer uma
análise sonológica, abrir o espectograma e ver o que tem dentro do som. É como se eu fosse
dissecar uma pessoa como um médico abre a barriga de alguém. Eu gosto disso no som. Acho
que o meu negócio com o som é mais esculpir o som do que outra coisa qualquer. É como se
eu fosse uma escultura de sons: é o que sente todo mundo que trabalha com isso na música
eletroacústica, no sound design, que são as linguagens que se desdobraram das linguagens
tecnológicas que hoje em dia estão aí.”
214
CRIAR, PROCESSAR, PROGRAMAR
“Eu gosto mesmo é de criar som, processar... aquela coisa „braba‟... programar”.
AVÓ
“Tenho sessenta e cinco anos, agora. Eu fiz muitos concertos fora do Brasil. Agora,
estou muito por aqui porque eu estou mais de avó. Eu curto ficar perto dos meus netinhos, já
tenho quatro. Então, eu não quero mais sair tanto.”
RENOVAÇÃO
“Está havendo uma mudança na minha obra. Estou há dois anos sem conseguir
compor, me repetindo um pouco. Eu prefiro parar geral e esperar o que vem do que ficar
fazendo a mesma coisa. Eu tenho necessidade de romper com as coisas, não quero nem me
repetir, eu quero sempre novidade.”
215
APÊNDICE D - Jocy de Oliveira: dramatrugia musical multimídia
Jocy de Oliveira nasceu em Curitiba, no Paraná, em 11 de abril de 1936. A pianista e
compositora estudou com José Kliass e Marguerite Long. Atuou como intérprete de música
do século XX, com repertório de peças de Igor Stravinsky, Iannis Xenakis, Luciano Berio,
Claudio Santoro, Olivier Messiaen. Trabalhou com John Cage e abraçou a arte de vanguarda
no Brasil. Mudou-se para o Rio de Janeiro após o seu casamento com o maestro Eleazar de
Carvalho.
Jocy de Oliveira permaneceu, durante toda a sua carreira, à procura do novo através de
suas produções. Sua música é fortemente cênica. Teatro musical, ópera contemporânea e
música-vídeo são gêneros constantes em sua obra.
A compositora dirige, há 20 anos, o grupo que montou para a realização de seus
espetáculos. Mais de sessenta artistas já participaram do Ensemble Jocy de Oliveira, entre
brasileiros e estrangeiros. Músicos, atores, e técnicos artistas que manipulam o maquinário
mecânico e eletrônico das apresentações musicais tratadas como espetáculos compõem a
equipe que produz uma música onde cenário, figurino, objetos de cena e videoarte coexistem.
Além desses profissionais, vídeo-makers e especialistas de diversas áreas do teatro colaboram
em todo o processo que ocorre entre a concepção e a montagem das obras. A difusão de som
espacializado envolve o espectador na obra. A autora compõe a música, escreve texto e
roteiro. Dirige e produz sua própria obra. A direção artística e executiva inclui as ações de
viabilização, arregimentação e divulgação das obras. As produções de Oliveira mantêm
sempre o compromisso com a inventividade numa diversidade cultural que se expressa em
diferentes idiomas, com textos da própria compositora ou de outros autores.
Jocy de Oliveira afirma que suas óperas contemporâneas constituem o gênero que,
segundo ela, se chama music theater (música cênica) fora do Brasil. Nesse gênero, sempre
escreve seus próprios libretos. A compositora explica seu processo composicional
interdisciplinar:
Seria totalmente contrário à minha maneira de ver as coisas se eu pegasse
um libreto [de terceiros] e musicasse. Seria totalmente contra aquilo que eu
penso. Então tem que ser algo concomitante. Eu componho a música, faço o
roteiro – é minha a ideia da obra, o roteiro – e dirijo. É tudo absolutamente
integrado. Se não, seria uma ópera tradicional. Dizemos ópera porque não se
216
diz, em português, música-teatro, 212
mas em inglês, em francês, em alemão
é mais música-teatro do que ópera. Música-teatro é quando ambas as áreas
têm igual valor, igual importância, são concebidas e trabalhadas
concomitantemente, embora tenham independência porque não tem aquela
coisa que se o tímpano tocou, o bailarino pulou. Existe uma independência
que é a propósito. Isso é música-teatro, que é diferente da ópera porque a
ópera é um libreto onde se põe música. (informação verbal, grifo nosso).213
Oliveira comenta a respeito do compositor Wagner, que fazia os libretos de suas obras
chegando “[...] muito mais próximo da música total da qual ele já falava”. (informação
verbal).214 Ressalta que, entretanto, aquele era outro conceito de ópera.
A ópera que Oliveira apresenta não tem o aspecto da linearidade que havia nas óperas
tradicionais: “[...] É no conceito tanto do texto quanto do roteiro que há a grande diferença: a
não linearidade. Aí, você não está lidando com uma história, é tudo fragmentado. É o ouvido
do espectador que vai montar esse quebra-cabeça”. (informação verbal).215 A não linearidade
de seu discurso musical/cênico pretende reservar a cada um, entre intérpretes e público, a sua
parte na produção de sentido na obra.
Oliveira apresentou, desde a infância, o interesse pela música aliada à dramaturgia,
recebendo da família todo o apoio para o desenvolvimento de suas aspirações artísticas.
Entretanto, a formação sólida ao piano levou-a a exercer, longamente, intensa atividade como
pianista de concerto. Além do repertório tradicional, já firmava posição como representante
da música contemporânea enquanto intérprete, antes mesmo de se tornar conhecida como
compositora de uma das obras mais ousadas do repertório recente da música brasileira.
O piano de Jocy de Oliveira é eclético: expandido, eletrônico. Os pianistas, em sua
obra, tocam cravo, celesta, harmônio, sintetizadores, piano cenográfico. Oliveira aponta seu
instrumento como um símbolo aristocrático em queda:
Para nós que convivemos com o piano, ele é um objeto íntimo na nossa vida,
mas para inúmeras culturas, para as pessoas em geral, não. O piano é um
símbolo aristocrático que está submergindo. A pianomania acabou, já
acabou. Ouvir num concurso a mesma peça de piano vinte vezes com vinte
212
A compositora está traduzindo ao pé da letra o termo music theater que, na proposta deste trabalho,
não é música-teatro e, sim, música cênica – gênero que engloba tanto a música-teatro quanto a
ópera contemporânea. 213
Entrevista com a compositora Jocy de Oliveira, em sua residência, no Leblon (RJ), em 10 de
novembro de 2010. (Apêndice D, p. 227). 214
ENTREVISTA..., loc. cit. 215
ENTREVISTA..., loc. cit.
217
candidatos... haja paciência! O ouvido nem vai mais notar se vier alguém e
fizer algo genial. (informação verbal, grifo nosso).216
Oliveira considera que a formação de músicos prioriza o repertório e os hábitos
musicais do século XIX sem atribuir a devida importância à maioria das inovações do
repertório da música dos séculos XX e XXI. Após o longo período de formação, os
intérpretes, especificamente os pianistas, que estariam livres dos programas obrigatórios das
escolas, passam a trabalhar sob a exigência dos contratantes e permanecem executando o
repertório tradicional, sem tempo para estudar peças de compositores contemporâneos.
Apesar de reconhecer a relevância da prática de música tradicional de todos os tempos,
Oliveira lamenta a pouca prática, no Brasil, de música experimental/cênica.
Quando atuava prioritariamente como intérprete, mantinha um repertório muito
abrangente: “[...] O meu repertório era mais amplo do que o dos pianistas que tocam os
grandes mestres somente”. (informação verbal). 217 Além do repertório tradicional, fazia
primeiras audições de peças dos compositores que a ela dedicavam as suas obras. O custo da
manutenção desse repertório tão amplo eram oito horas diárias ao instrumento. Para o
repertório de Olivier Messiaen, dedicou sete anos de sua vida. Gravou toda a obra de
Messiaen, que considera o último grande mestre do piano: “[...] Em sete anos, setenta por
cento do que eu tocava era Messiaen porque é monumental”. (informação verbal).218
Oliveira reclama um espaço reservado à música do presente, mas reconhece que a
música do passado tem o seu lugar: “[...] Se estivermos em uma sala de concerto em que a
acústica seja boa, o piano seja excelente – nós não temos bons pianos porque a maresia acaba
com eles – e, obviamente, um pianista excepcional, não precisamos de nada mais”.
(informação verbal).219 Ainda assim, acrescenta: “[...] O formato tradicional de apresentação
pianística poderia ser reformulado, sem dúvida, mas em pequenos detalhes: uma questão de
acabamento”. (informação verbal).220
Oliveira compôs a música-video Noturno para um piano na qual a pianista toca em
alto mar até que o instrumento, que boiava, submerge e, então, a pianista se movimenta por
debaixo da água, nadando em direção à superfície. O áudio é uma música eletroacústica
216
Entrevista com a compositora Jocy de Oliveira, em sua residência, no Leblon (RJ), em 10 de
novembro de 2010. (Apêndice D, p. 224). 217
Ibid., p. 221. 218
ENTREVISTA..., loc. cit. 219
Ibid., p. 223. 220
ENTREVISTA..., loc. cit.
218
baseada em trecho da obra de Mozart. As imagens são impactantes tanto pela ousadia da
produção quanto pelo que representa. A importância do instrumento para a música de todos os
tempos permanece. Todavia, o piano já não faz parte da vida de um grande público que em
outras épocas já o idolatrou.
Além de contar com um público especializado que lhe é fiel, a pianista e compositora
vem conquistando um público de teatro no qual desperta certa curiosidade. Sabe que a
visualidade de sua música se comunica de forma eficaz com uma sociedade multimídia: “[...]
Nós vivemos uma era visual”. (informação verbal).221
Nos anos de 1960 e 1970, os compositores de vanguarda tinham a intenção de chocar
o público, ao qual consideravam apático e passivo. As vaias eram bem vindas. Significava que
os artistas haviam conseguido provocar alguma reação nos ouvintes. Mesmo que essa reação
fosse de indignação, o objetivo estaria cumprido: a participação do público.
A partir daí, Jocy de Oliveira, começou a dar instruções para a participação ativa do
público na apresentação de suas peças. Percebeu, então, que estaria, daquela forma,
impingindo à plateia um comportamento determinado e que não era isso o que ela desejava.
Desejava, antes e ainda agora, uma participação reflexiva do público através dos estímulos
auditivos e visuais de sua música: “Com essas peças que componho, tenho a intenção de fazer
com que as pessoas abram seus sentidos [...]”. (informação verbal).222
Oliveira não tem qualquer ligação com música popular, brasileira ou internacional, e
explica: “A música popular, para dizer a verdade, não me interessa muito. Talvez isso venha
da infância. Na minha casa não se ouvia música popular”. (informação verbal).223 Para seu
prazer pessoal, costuma ouvir música renascentista. Acima de tudo, vive e respira música o
tempo todo: “Eu nasci para a música e vou continuar assim. A música faz parte da minha
vida. Continuo sempre, nunca estou parada. Tenho inúmeros projetos, inúmeros planos ao
mesmo tempo”. (informação verbal).224
Quatro DVDs lançados em 2010 reúnem 20 anos de trabalho em 6 óperas. Entre 1986
e 2007, Oliveira escreveu Fata Morgana, Liturgia do espaço, Inori à prostituta sagrada, Ilud
tempus, As malibrans, Ksemia estrangeira. Sua obra focaliza, em diversos momentos, os
valores do universo feminino, a crítica à supervalorização do produto cultural para consumo
de massa e os dramas pessoais dos músicos no cotidiano de suas atividades artísticas.
221
Entrevista com a compositora Jocy de Oliveira, em sua residência, no Leblon (RJ), em 10 de
novembro de 2010. (Apêndice D, p. 232). 222
Ibid., p. 231. 223
Ibid., p. 233. 224
Ibid., p. 234.
219
ENTREVISTA COM A COMPOSITORA JOCY DE OLIVEIRA, EM SUA
RESIDÊNCIA, NO LEBLON (RJ), EM 10 DE NOVEMBRO DE 2010.
FORMAÇÃO
“Eu estudei com a Alice Pinto, que era da escola Chiaffarelli – grande escola
pianística – e depois com José Kliass – grande escola pianística também, em São Paulo. Fui
para Paris com Marguerite Long. Quando eu comecei a estudar com Marguerite Long, eu já
tinha uma abertura diferente porque o concerto de Ravel, que eu toquei muito pelo mundo
afora, foi escrito para ela. Ela conviveu com os compositores da escola dela. Ela fez as
primeiras audições de Ravel, de Debussy, de Joel Smith, de Poulenc, de Milhaud, todos eles.
Quando eu comecei a tocar Boulez, ela me incentivou, mas disse: „Aí eu já não posso te dar
nada, já não é mais a minha geração. Mesmo assim eu quis fazer. Isso me atraía.”
BERÇO
ANTES DE NASCER
“Eu ouvia música antes de nascer. Não tem um momento, não tem aquele dia marcado
em que eu tenha pensado em fazer música.”
INICIAÇÃO AO PIANO
“Minha mãe tocava bastante bem, estudou na Escola Nacional de Música. Não fez
carreira, mas tinha um repertório de Schumann, Beethoven, Chopin e eu copiava tudo com três
anos de idade. Tocava seguindo o que ela estava tocando. Era uma coisa natural para mim.
Com sete anos, toquei no Teatro Municipal de São Paulo.”
SÓ PIANO
“Não sei se eu diria que ninguém me reprimiu. Eu acho que sim, me reprimiu, sim. Eu
queria, por exemplo, estudar composição muito mais cedo. A minha mãe me levou para o
Camargo Guarnieri para ele me ouvir, isso com uns seis anos de idade: „Ela não tem nada o
que fazer no piano, ela tem que reger. Me dê essa menina, deixe comigo, que daqui a um ano
220
ela estará regendo uma orquestra‟. Aquele jeito dele era intenso, meio agressivo. A minha
mãe disse: „Não, eu quero que a minha filha, além do piano, tenha uma vida normal‟”.
EXPERIMENTALISMO
PRESENTE, PASSADO E FUTURO
“Eu não estou rompendo com o passado. O presente é justamente uma reflexão sobre o
passado e projeção no futuro. As obras tradicionais são muito importantes e existem para
serem tocadas.”
PARADOS NO TEMPO
“O grande problema do ensino é que tudo visa o século XIX ocidental. O estudante de
música é preparado e bitolado pelo século XIX.”
EXPERIMENTANDO DESDE SEMPRE
“Aos seis anos de idade eu compus a minha primeira peça. São bobagens que eu
ignoro, mas que foram editadas pela Vitale – algo intuitivo, absolutamente intuitivo.
Realmente, aos sete, oito anos eu compunha. Então, se eu compunha, eu tinha que ter
interesse em mais do que aquilo que eu estivesse estudando na escola. Eu me lembro que eu
ouvi a Orquestra Sinfônica Brasileira no Teatro de Cultura Artística, na época do Eleazar de
Carvalho, com quem eu fui casada, tocando Sacre du printemp, a primeira audição no Brasil.
Até hoje eu tenho uma impressão clara, nítida, daquilo que eu ouvi. Foi importante! Não era
muito comum para uma menina de quatorze anos que estudava piano seriamente e que tocava
Liszt, tocava Saint-Saëns, Beethoven, Mozart, mas que já tinha uma outra curiosidade, uma
outra visão.”
INVENÇÕES
“Da música acadêmica, eu acho que nunca tive influência, nenhuma. Eu preferi a
influência de qualquer pop do que da música acadêmica. Esses compositores que eu citei, eu
não diria que a música deles é acadêmica. Não é. Eles foram, muitos deles, inventores. O
221
próprio Stravinsky dizia: „Eu não sou um compositor, eu sou um inventor‟. Ele inventou. A
música não foi mais a mesma depois dele. Mudou. Isso é uma coisa que não se pode ignorar.”
NÃO EXISTE MAIS VANGUARDA
“Não existe mais vanguarda. A última vanguarda que pelo menos eu conheci e tive a
felicidade de participar foi nos anos de 1960. O início dos anos de 1960 foi uma volta ao
dadaísmo, uma volta em todos os sentidos: política, sexual, da mulher... Foi uma época
efervescente e, depois disso, não.”
ACESSO AOS MEIOS TECNOLÓGICOS
“Existe uma liberdade, hoje, muito grande. Existe acesso aos meios tecnológicos.
Antes era muito caro e complicado, a gente ficava dependendo de trabalhar em universidades,
em estúdios de música eletrônica, era difícil. Trabalhávamos, então, com meios analógicos.
Hoje em dia, com o laptop, a gente faz tudo. Isso é maravilhoso, mas é perigoso porque tudo
o que é fácil – o que se consegue com facilidade e satisfaz facilmente – é perigoso.”
ADAPTAÇÕES
“Essa coisa de dar roupagem nova a La Traviata é ridículo. Você pode fazer uma coisa
que seja menos ridículo do que a ópera italiana, mas a adaptação para fazer uma coisa
contemporânea... ora, então escreva uma ópera moderna. Componha, faça alguma coisa nova.
Não pegue uma ópera tradicional italiana. É claro, os materiais mudaram. Antes, pintavam o
cenário, faziam aquela coisa estática. Mesmo assim, acho desnecessário pensar em uma nova
estrutura operística para uma ópera romântica.”
O PIANO
CARREIRA E REPERTÓRIO
“Tive uma carreira como pianista tanto no Brasil quanto no exterior, por décadas,
tocando com as maiores orquestras do mundo. Eu toquei com a Boston City, com a Los
Angeles Filarmônica, com a Orquestra Nacional da França, com a Orquestra Nacional da
222
Bélgica, enfim, com todas essas orquestras. Eu tocava Ravel. Meu repertório já fugia um
pouquinho [do tradicional]. Tocava Liszt. Até hoje considero o último período de Liszt um
divisor de águas. Eu tocava Bartok – o número três, eu tocava muito. Tocava Prokofiev, o
número um. Tocava Stravinsky e tocava os concertos do Messiaen. Era um repertório grande.
Claro que eu toquei Beethoven, o número três. Toquei Mozart, toquei Bach – menos porque
me chamavam mais para tocar essas peças [de linguagem moderna], com as quais eu me
identificava mais, eram peças que me interessavam mais. Não toquei Brahms, nunca, os
concertos de Brahms. Não toquei Schumann, mas toquei Chopin, o número dois. O meu
repertório era mais amplo do que o dos pianistas que tocam os grandes mestres somente. Por
que é que o pianista não tem esse repertório? A culpa também é do intérprete. Primeiro, ele
não foi preparado. Depois, ele não tem tempo porque como ele não foi preparado, durante o
começo da carreira, quando ele poderia estar abrindo os seus horizontes para um repertório
muito maior, ele não abre por falta de preparo. Então, ele nem conhece, ele começa a tocar
aqui e ali e o mercado pede o normal, que é o repertório tradicional. Ele entra num círculo
vicioso com uma série de compromissos e não tem mais tempo de estudar peças novas. O que
acontece comigo nesse sentido, é que eu, como outros poucos que faziam isso, também me
tornava um laboratório. Os compositores, muitos deles, estavam escrevendo para mim. Para
isso, eu precisava de oito horas por dia de estudo para manter um repertório e estudar obras
novas.”
MESSIAEN
“Gravei praticamente toda a obra de Messiaen, que é um monumento para o piano.
Depois de Messiaen ninguém mais fez nada para o instrumento. Talvez eu esteja sendo radical
demais. Luciano Berio escreveu uma Sequenza que é dedicada a mim e é uma peça
extraordinária, mas é uma peça. O que Messiaen escreveu é um monumento, uma obra. Para
estudar a obra de Messiaen eu dediquei sete anos da minha vida. Em sete anos, setenta por
cento do que eu tocava era Messiaen porque é monumental. Messiaen é, digamos, o que Liszt
poderia ter sido se ele tivesse nascido no século seguinte. Messiaen é um Liszt, é um Debussy,
é um mestre de uma nova linguagem: uma nova questão do tempo – a questão rítmica. É um
passo adiante daquilo que se fazia.”
PAUSA PARA COMPOR, DIRIGIR E PRODUZIR
223
“Nesses últimos dezoito anos eu parei de dar concertos como pianista. Não era mais
possível, com todos os compromissos que eu tenho como compositora – que não são os dos
compositores que escrevem uma peça camerística e entregam a partitura para os intérpretes
executarem e é convidado para assistir, às vezes. Não é isso. No meu trabalho, é concomitante
toda a questão do texto, da música, da concepção cênica, da concepção visual, do vídeo, da
direção e da produção. Então, é claro que eu não tinha tempo para continuar com o piano,
estudando horas por dia. Não tinha mais tempo de estudar.”
DE VOLTA POR STRAVINSKY
“Foi uma exceção: depois de dezoito anos eu resolvi tocar nesse último espetáculo225
que eu fiz no Teatro Municipal [do Rio de janeiro], há um mês e meio. Eu não podia fugir a
isso porque eu precisava dar a minha visão do Stravinsky, a minha vivência do Stravinsky. Fui
solista com Stravinsky. O meu diário de todos os anos que eu convivi com ele, estava tudo
anotado, eu tinha isso tudo e as cartas. Eu dramatizei tudo isso, eu fiz um roteiro.
Naturalmente, eu incluí o Robert Craft porque essa simbiose entre o Stravinsky e o Robert
Craft é uma coisa única na história da música. O Robert Craft realmente foi um incentivador
de toda a contemporaneidade. Ele tinha uns quarenta anos a menos do que o Stravinsky e era
detentor de uma cultura vastíssima e de uma capacidade musical vastíssima. Ele gravou toda a
obra de Stravinsky, toda a obra de Webern, toda a obra de Schoenberg: um conhecimento
musicológico imenso. Como intérprete, regia muito a obra de Stravinsky. Então, esse
espetáculo todo é em memória de Stravinsky e em homenagem ao Robert Craft. Ele me
mandou um depoimento dele, ele próprio participou desse espetáculo de uma forma virtual.
Isso me fez tocar. A minha convivência com Stravinsky foi como pianista, não como
compositora. Então, é claro que eu tinha que tocar. Eu escrevi algumas obras que atuaram
como links entre as peças de Stravinsky. As minhas peças não têm piano: há uma parte
eletroacústica e outros instrumentos. Esse espetáculo vai continuar e eu vou continuar tocando
nele.”
RELAÇÃO COMPOSITOR-INTÉRPRETE
225
Oliveira se refere ao espetáculo: Revisitando Stravinsky.
224
“Fiz várias primeiras audições de peças de compositores que escreveram para mim:
Luciano Berio, [Iannis] Xenaxis, John Cage, Claudio Santoro, Lejaren Hiller, inúmeros. Isso
me deu uma vivência muito especial dessa convivência com os compositores, com grandes
mestres. A relação entre compositores e intépretes é uma coisa vital, é uma bagagem musical
muito rica a convivência com a obra viva, que está sendo composta, ou que está sendo
transformada porque a opinião do compositor às vezes muda de acordo com o que ele ouve ao
longo de alguns anos e as versões vão acontecendo – isso, para a música dos nossos dias, a
música contemporânea, porque tem gente que está viva, mas escreve música do passado e tem
gente morta que ainda é vanguardista. Eu tive essa felicidade de ter convivido com esses
compositores que, inclusive no livro que eu estou preparando que deve sair ano que vem, eu
compilo cento e doze cartas desses compositores e comento, que são: [Igor] Stravinsky,
Robert Craft, [Luciano] Berio, [Karlheinz] Stockhausen, [Iannis] Xenakis, Lucas Fox,
Cláudio Santoro, John Cage, Eleazar [de Carvalho] e [Olivier] Messian.”
O FORMATO DAS APRESENTAÇÕES PIANÍSTICAS
“Eu gosto, ouço e assisto apresentações de piano, dependendo do pianista, dependendo
do repertório. O formato tradicional de apresentação pianística poderia ser reformulado, sem
dúvida, mas em pequenos detalhes: uma questão de acabamento.”
SÓ A MÚSICA
“Tomemos como exemplo um [Alfred] Brendel. Existe, na postura dele... aliás, ele
nem toca mais, ele resolveu não tocar mais... ouvimos um recital dele inteiro, vários, todo o
Liszt que ele fez, Schubert, com uma concentração, com uma reflexão, com uma emoção
indescritível. Então, tudo é relativo. Se estivermos em uma sala de concerto em que a acústica
seja boa, o piano seja excelente – nós não temos bons pianos porque a maresia acaba com eles
– e, obviamente, um pianista excepcional, você não precisa de nada mais.”
CANOA FURADA
“Para nós que convivemos com o piano, ele é um objeto íntimo na nossa vida, mas
para inúmeras culturas, para as pessoas em geral, não. O piano é um símbolo aristocrático que
está submergindo A pianomania acabou, já acabou. Ouvir num concurso a mesma peça de
225
piano vinte vezes com vinte candidatos... haja paciência! O ouvido nem vai mais notar se vier
alguém e fizer algo genial.”
MÚSICA CÊNICA
ACONTECEU
“Por quê o aspecto teatral, cênico, na minha obra? Isso é coisa que eu não digo em
entrevista porque fica ridículo ficar falando como eu era quando criança. As crianças,
meninas, na época, tinham casa de bonecas no jardim, era normal para quem podia dar aos
filhos. Aos sete, oito anos, eu queria, ao invés de uma casa de bonecas, um teatro. Eu pedi ao
meu pai. Então, ele mandou construir um pequeno teatro de madeira, no jardim, com cenário,
com luz, pequeno. Eu escrevia as peças, desenhava os figurinos e chamava as crianças do
colégio e da vizinhança, dava os espetáculos e cobrava. Meus pais me obrigavam a dar o
dinheiro para as missões [religiosas]. Eu queria reinvestir no próprio teatro. Então, foi uma
coisa intuitiva, espontânea. Eu não decidi fazer isso ou aquilo: aconteceu.”
INTERESSANTE PARA QUEM?
“Nos anos de 1960, 1970 e até mesmo no começo dos anos de 1980, eu, como
pianista, fiz muita coisa e me divertia muito como intérprete dos outros. Eu participei, por
exemplo, do Musicircus do John Cage, que era num estábulo. Nós ficamos vinte e quatro
horas, cada um com um palco: ele tinha um palco, eu tinha um palco, o David Tudor tinha
outro, Mers Kaning tinha outro e o outro era o Lejaren Hiller. Eram seis palcos. Aconteciam,
nesses palcos, coisas diferentes cênicas, visuais. É claro que cenicamente era um caos e a
intenção era justamente essa. Estávamos num estábulo com vacas de verdade e o público lá...
Eu participei e achei maravilhoso. Foi uma honra ter sido convidada por John Cage para fazer
isso, claro. Obras dele, fiz inúmeras. No caso de Jonh Cage, se na obra dele tem algo assim
cênico e cômico, você pode pensar: „Ah, é uma brincadeira!‟. Não é. O pensamento de John
Cage, como filósofo, influenciou toda a arte contemporânea, não só com a sua música. A
música dele tem que ser vista no contexto da obra total. Uma coisa se complementa na outra e
faz um sentido que não tem sentido porque ele não quer que tenha. Isso é toda uma filosofia.
É perfeito, é fantástico, realmente. Quando ele esteve no Brasil – eu o convidei, ele veio ao
Rio quando eu fiz a primeira audição de uma obra dele para piano, que era As low as possible.
226
Ele chegou e eu perguntei: „John, como é que você quer que eu toque isso? É mais ou menos
qual duração?‟ Ele respondeu: „As low as possible‟. „E se eu passar o dia inteiro tocando?‟ –
„It would be lovely‟. Nessa peça, as notas são determinadas, mas o processo de composição
dessas notas usa elemento de chance através do I Ching. No final de vários dias – ele ficou
hospedado aqui em casa e tudo – ele disse assim: „A minha obra morre comigo. Ela teve vida
enquanto eu vivi‟. Ele era a própria obra dele. Algumas ficam. As low as possible é uma obra
que fica. Ele começou a pensar no perene, mas só viveu pelo efêmero. De Lejaren Hiller,
Machine music, na primeira audição: eu tinha que sair correndo pelo palco com um
brinquedinho de criança que eu tocava no chão, fazia uns sonzinhos. Quando chegava no
piano, eu soprava uma bola e furava a bola. Eu achava divertidíssimo. Eram peças que mesmo
naquela época eu dizia: „Eu gosto de fazer, mas eu não gostaria de ouvir‟. Como espectadora,
iria achar que era bobagem. Eu não iria gostar. Era difícil a parte de piano, era muito difícil,
essa peça para piano percussão e fita – na época era fita. Era muito difícil e era muito
interessante porque era um desafio para o pianista. Eu tinha que tocar aquilo muito difícil
tecnicamente, muito virtuosístico, mas fazendo parecer que era uma brincadeira. Era um
desafio para o intérprete e era interessante de fazer, é uma outra visão. Se estivesse ouvindo,
não sei... eu acho que isso não conquista o público.”
COREÓGRAFA POR ACASO
“Uma peça que poderíamos chamar de música cênica para piano, da minha obra
Dimensões para quatro teclados. 226 Ela está num Long Play que é „Histórias para
instrumentos acústicos e eletrônicos”. Está na internet também. Essa peça é para quatro
teclados: piano, harmônio, celesta e cravo. O pianista está no centro de um quadrado com
esses teclados. Todas as possiblidades e impossibilidades dependem do que o braço pode
alcançar e de manter um som contínuo com dois braços para quatro teclados. É claro que se
torna uma coreografia. É um ballet. Não era intenção fazer gestos, mas tem que fazer para
poder segurar uma nota e fazer outra numa combinação de timbres. Isso era um tremendo
desafio.”
PEÇA CÊNICA PARA PIANO NA ÓPERA
226
Dimensões para quatro teclados é uma versão de 1981 para piano acústico, piano elétrico, cravo e
órgão elétrico, para a peça One player and four keyboards, composta em 1967 para celesta, cravo,
piano e harmônio.
227
“Dentro das Malibrans tem uma parte que se chama „O mestre e a diva‟. Nessa parte
eu, inclusive, toco. O piano é parte da cena da ópera. É uma peça cênica para piano que está
inserida num contexto de ópera. Tem as divas e tem um mestre, que é um vampiro que tortura
essas divas até elas perderem a voz.”
MÚSICA-VÍDEO
“Tem uma que é totalmente cênica. Chama-se Noturno de um piano. Eu lancei um
piano ao mar. Era um piano cenográfico, um piano antigo, que eu comprei num brechó: um
teclado de um piano dentro de uma caixa que tinha que flutuar. A intenção não era de uma
peça cênica. Eu fiz um vídeo. A intenção, em primeiro lugar, é mostrar que o piano é uma das
formas emblemáticas da nossa cultura aristocrática que está, absolutamente, acabando. Esse
piano flutua por horas e horas e horas com uma pianista tocando, mas a parte de áudio eu fiz
toda eletrônica, baseada na obra de Mozart – em uma citação de Mozart. Em segundo lugar, é
a questão do caos, da teoria do caos, porque é algo absolutamente imprevisível. Desde os anos
de 1960, muitas coisas das minhas obras têm este conceito do imprevisível, do imponderável.
Não se sabia o que ia acontecer. Fizemos todo tipo de pesquisa para sabermos da maré, do
tempo metereológico e das correntes porque isso era em alto mar. O que ia acontecer com
esse piano? Nós não sabíamos. Toda a produção desse vídeo, que teve uma equipe com um
cinegrafista em baixo d‟água, um barco seguindo, um cinegrafista no ar: vários cinegrafistas.
No final, o piano submerge. Foi impactante até mesmo para mim: um momento que não se
repete, principalmente porque não se sabia o que ia acontecer. Quem tocou [o piano
cenográfico] foi a Gabriela Geluda, que é uma cantora soprano, que trabalha comigo há
dezessete anos. Ela tocou horas e horas e horas. Ela toca piano mais ou menos. Ela toca piano,
mas não dá concertos. Isso não importava. O que ela tinha que fazer ali era apenas uma
representação. O Noturno de um piano está como „extra‟ nos DVDs das Malibrans.”
AUTORA TEATRAL
“O que faço é dramaturgia, não há dúvida, é um script, um roteiro com todas as falas
dos textos de minha autoria. Os textos e toda a parte cênica – a concepção cênica nas minhas
obras sempre – são meus.”
228
ÓPERA, MÚSICA-TEATRO OU TEATRO MUSICAL?
“Seria totalmente contrário à minha maneira de ver as coisas se eu pegasse um libreto
e musicasse. Seria totalmente contra aquilo que eu penso. Então, tem que ser algo
concomitante. Eu componho a música, faço o roteiro – é minha a ideia da obra – e dirijo. É
tudo absolutamente integrado. Se não, seria uma ópera tradicional. Dizemos ópera porque não
se diz, em português, música-teatro 227 , mas em inglês, em francês, em alemão é mais
música-teatro do que ópera. Música-teatro é quando ambas as áreas têm igual valor, igual
importância, são concebidas e trabalhadas concomitantemente, embora tenham independência
porque não tem aquela coisa que se o tímpano tocou, o bailarino pulou. Existe uma
independência que é a propósito. Isso é música-teatro, que é diferente da ópera porque a
ópera é um libreto onde se põe música. Em Wagner, não. Ele também fazia libreto. Ele
chegou muito mais próximo da música total da qual ele já falava. Mesmo assim, o conceito
musical ainda é outro. É no conceito tanto do texto quanto do roteiro que há a grande
diferença: a não linearidade. Aí você não está lidando com uma história, é tudo fragmentado.
É o ouvido do espectador que vai montar esse quebra-cabeça. Ele vai criar, na sua fantasia, no
seu entender, diferentes percepções. Cada um [cria] a sua. Em Dias e caminhos, mapas e
partituras, um Long Play de 1961 – foi a primeira vez que se fez música eletrônica no Brasil
– eu falo exatamente isso. Eu fiz com o Luciano Berio a Apague meu spot light. Essa peça não
tem uma história, ela não é linear. Eu tinha vinte anos e dizia: „Não tem uma história?‟ No
fundo, tinha uma história. Era fragmentada, mas tinha. Na época, eu pequei pelo texto porque
era texto em demasia. Com o passar do tempo, a coisa se torna mais aberta, como o mundo
em que vivemos. Teatro musical já é outra coisa. Aqui, esses termos ainda estão muito
confusos. Talvez as denominações não tenham se definido – isso é irrelevante – por tais
práticas serem muito recentes. Você vê muito mais lá fora [do país]: aqui, menos. Aqui,
existem poucos estudos, pesquisas e livros a respeito, muito poucos. Nos Estados Unidos tem
muita coisa, na Europa também. Tudo isso é englobado no que se pensa de multimídia.”
MÚSICA MULTIMÍDIA
“Aqueles que fazem música eletroacústica é que se dão mais conta do problema da
escuta, da espacialização sonora, são aqueles que procuram mais se aliar ao vídeo, à luz. Por
227
Quando Oliveira se refere a música-teatro, está traduzindo ao pé da letra o termo music theater
que, na proposta deste trabalho, se traduz como música cênica.
229
exemplo, o [Luiz Carlos] Csekö tem uma luz que, por sinal, é muito bem feita. A música dele
é tocada com uma iluminação muito bem cuidada e tem esse sentido do ritual do palco bem
acabado.”
OS INTÉRPRETES
ATUAÇÃO CÊNICA
“O músico é, no meu trabalho, muitas vezes, um ator, ele tem que realmente atuar, ele
tem que participar da cena”.
O INSTRUMENTISTA COMO INSTRUMENTO
“A questão musical que pede técnicas estendidas, a interação com o eletrônico, a
integração com os outros, o equilíbrio entre aquilo que é determinado e aquilo que é
indeterminado: isso tudo pede um instrumento que é uma pessoa. Eu não componho para uma
voz ou para um oboé, eu componho para fulano de tal.”
ESPECIALISTAS
“No ano passado, eu tive uma encomenda de uma instituição em Munich e os
instrumentistas eram todos de lá. Falaram que eu não precisava chegar mais do que quatro
dias antes. Eu fiquei com certo receio porque era uma peça de primeira audição difícil,
complicada, incomum, cênica. Tinha um resultado sônico da cena, que era o que mais me
preocupava. Cheguei lá, fui assistir a um ensaio: era perfeito, eu não tinha o que dizer.
Fantástico! Eu comentei com um amigo que era professor lá há doze anos: „Foi uma coisa
incrível porque aconteceu assim [estala os dedos] e eu não tive trabalho algum! Até parece
que eu estava fazendo um trabalho tradicional!‟ Ele disse: „Nós trabalhamos com os melhores
músicos da Alemanha e eles só fazem música contemporânea. São músicos que estão
capacitados a entender essa linguagem. Eles estudaram, eles pesquisaram. Para o músico,
hoje, contemporâneo, isso já desde a década de 1960 – não é mais nem hoje, é nos últimos
quarenta ou cinqüenta anos – aquele que se dispõe a tocar a música do seu tempo não pode só
estudar [o instrumento]. O David Tudor foi um grande intérprete pianista. Trabalhou com o
Jonh Cage e era fantástico, foi uma das minhas influências. Eu o conheci em 1961 e ele me
230
disse: „Quando eu pego uma peça nova, eu posso passar semanas só analisando, entendendo.
Olhando, só olhando. Quando eu vou para o piano, é rápido‟. Isso já não é atitude de um
pianista convencional.”
O TRABALHO EM EQUIPE
EQUIPE INTERNACIONAL DE INTÉRPRETES
“Eu tenho intérpretes que têm se dedicado a tocar a minha música: alguns, há mais de
vinte anos. Então, é um Ensemble. Um deles é o Ricardo Rodrigues, que mora em Berlim, é
catedrático em Berlim e toca comigo há mais de vinte anos. Ele toca aqui, na Europa... Está
justamente, essa semana, na China. Foi uma encomenda que me fizeram na China e está
havendo a primeira audição de uma peça minha lá. Eu mandei a peça para o Ricardo
Rodrigues e mandei as explicações. A peça é muito complexa. Ela pede pela atuação de atores
chineses junto com ele. Como eu trabalho com pessoas que têm desenvolvido junto comigo
uma linguagem, há muito tempo, a coisa flui muito facilmente. Tenho vários intérpretes aqui,
na Alemanha, outros na Suécia. Para fazer o Stravinsky, veio um da Suécia, que trabalha
sempre comigo, que é o grande violoncelista e compositor Peter Schuback. Isso é vital,
principalmente no meu trabalho. Talvez não seja vital para todos.”
TÉCNICOS ARTISTAS
“A montagem da equipe técnica que trabalha junto aos intérpretes é de fundamental
importância. Não pode ser de outro jeito. Se eu tenho na cena oito pessoas, eu tenho oito
pessoas lá atrás, na parte técnica. Não são simplesmente técnicos, são técnicos artistas porque
tem toda a parte de projeção, a parte de mecânica, a parte de iluminação, sem falar na parte de
difusão, que é vital, é o mais importante. O equipamento tem que ser de primeira, tem que ser
realmente aquilo que eu peço. O equipamento é planejado para o espaço: número de caixas, a
distribuição delas e a espacialização porque se não fica amadorístico.”
REALIZAÇÃO
A APRESENTAÇÃO MUSICAL COMO ESPETÁCULO
231
“O palco é como um templo e a apresentação, um ritual. Qualquer coisa que você faça
no palco tem que ter um acabamento, tem que ter uma apresentação, uma força, um respeito
ao espectador, ao ouvinte: tudo isso vai transformar a obra. Se você tem algo visual numa
obra, isso complementa, mas não precisa ser só isso. Eu vou compondo por módulos. Nesses
módulos, eu já tenho a noção do geral, mas eles vão se acoplando. São módulos instrumentais
ou eletroacústicos ou vocais ou misturados, sei lá. Eles podem ser e são executados primeiro
num formato de concerto. É claro que eu não vou colocar num formato de concerto sem ter a
certeza de que o palco esteja pelo menos limpo, que eu tenha um mínimo de caixa preta no
palco, que eu tenha uma iluminação básica porque se não eu não vou tocar, de jeito nenhum.
Ter esse cuidado, cumprir esse ritual é fundamental para a música: o espetáculo visual e
cênico. Esse acabamento é importantíssimo. Se tiver uma comida maravilhosa num prato de
lata e tudo descuidado, você vai ter vontade de comer? Você não vai saborear a comida.”
AS SALAS DE CONCERTO
“Aqui no Brasil, por exemplo, os teatros não são aparelhados. Não tem um teatro
aparelhado no Brasil, nenhum. Então, tudo tem que ser alugado”.
CAPTAÇÃO DE RECURSOS E EXECUÇÃO DE PROJETOS
“Para mim, essa história que nós temos no Brasil de isenção de impostos de leis de
incentivo à cultura tem funcionado muito bem. Eu tenho uma empresa há vinte anos,
produtora, que é minha, própria, que faz a captação e faz a produção. Então, eu tenho aquilo
que eu quero, exatamente. Se não for de primeira ordem, eu não faço. Isso é o que desmonta
toda essa coisa da música cênica que muitas vezes é um negócio que parece infantil: um
músico fingindo de ator corre para lá, corre para cá, dá uma risadinha aqui... tem um cômico
que não é cômico... eu acho patético. Não tem cabimento.”
DIVULGAÇÃO
“Todas as épocas têm seus „prós‟ e seus „contras‟. Nós temos um „contra‟ muito sério,
que é a mídia. Os outros períodos da história não tiveram esse problema com a mídia. A mídia
massifica, é só música popular de péssima qualidade, dia e noite. O que é que você quer que a
232
escuta se torne? Uma pessoa pode chegar num concerto de música contemporânea e se sentir
tão chocada como eu vi gente no sul da Índia em relação a Beethoven porque não ouve, nada
ouve, só aquela coisa massificante de péssima qualidade. Esse é o nosso grande problema.”
O PÚBLICO
O QUE NÓS QUEREMOS DO PÚBLICO?
“O que nós queríamos nos anos de 1970 era sacudir, chocar. Eu tive muita vaia. Era
um delírio, eu ficava feliz da vida. Isso era com a minha obra e com a obra dos outros
também. Aquilo era maravilhoso, obter uma vaia... era sinal de que havíamos conseguido
atingir aquele público que estava adormecido. Aquilo era uma maneira de obter a participação
do público. Nas minhas peças, eu comecei a dar instruções para que o público participasse:
que fizesse isso, fizesse aquilo, fizesse aquilo outro. Depois, eu comecei a pensar: „Será que
isso não está virando um jardim da infância? Eu não estou dando liberdade ao público, eu
estou impingindo a participação do público. Quer coisa pior do que isso? Então, vou parar por
aqui, eu acho que não é por aí”. O que nós queremos da participação do público é uma
participação que seja reflexiva, que seja do pensamento, da fantasia, do seu próprio sonho.
Queremos estimular a sua percepção e a sua maneira de ouvir, resgatar uma escuta que está se
perdendo e conseguir aliar a audição à visão. Vivemos numa sociedade visual. Quando há
estimulação dos sentidos, sempre uns vão sobrepujar os outros. Com essas peças que
componho, tenho a intenção de fazer com que as pessoas abram seus sentidos, que seja uma
viagem.”
COMPOSITOR, INTÉRPRETE E OUVINTE: UMA EQUIPE DE PRODUÇÃO DO
SENTIDO
“A música é uma arte efêmera, só tem vida no momento em que é tocada. O escultor
faz o seu trabalho e diz: „Tá bom‟. O escultor, no sentido tradicional, tem com o público uma
interação menos forte do que o músico porque a música só existe com o ouvinte, só existe se
estiver sendo ouvida. A escultura existe, a pintura existe. É por isso que os artistas visuais
hoje em dia fazem instalações. Eles querem essa participação, eles querem essa coisa que é
muito mais ampla.”
233
A QUESTÃO VISUAL NA INTERAÇÃO COM O PÚBLICO
“Se a questão visual ajuda? Ajuda porque nós vivemos uma era visual. Todo tipo de
preconceito na nossa era é contra a música, é auditivo, não é visual, há décadas. Um exemplo
são as aberturas da Rede Globo, do Hans Donner. Eu o conheço. Na década de 1980: „Você
quer fazer a vinheta comigo da abertura do Fantástico?‟ – „Impossível. Você pode ousar‟. É
ousado, o que ele faz. Hoje em dia mais não, mas era. O incrível é que fosse feito para as
massas. Entretanto, é óbvio que a Rede Globo nunca aceitaria que eu fizesse a minha música.
O preconceito é auditivo.”
QUE PÚBLICO?
“Eu tenho um público que me segue e isso é ótimo, muito bom, mas se nós
conseguirmos tocar a sensibilidade de um público maior, sem pensar que um público seja
mais capaz do que outro... A sensibilidade não depende do conhecimento, a sensibilidade
depende da cultura, depende do próprio ser humano. Quem, exatamente, vai me ouvir, eu não
sei, mas é um público de teatro, que vai ao teatro. Aí já existe uma seleção. Mesmo que não
seja uma pessoa iniciada, é uma pessoa curiosa.”
TEATRO LOTADO
“Nós fizemos o espetáculo sobre Stravinsky228 duas vezes no Theatro Municipal [do
Rio de Janeiro] lotado. Na sexta-feira era para um público mais, digamos, seleto, porque era
caro. Eram assinantes. Tinha a ver com a temporada da Orquestra Sinfônica Brasileira:
aqueles que seguem os concertos sinfônicos. Era um público „Classe A‟. No domingo, era a
dois reais, era povão. A reação foi ótima.”
O MELHOR POSSÍVEL PARA TODOS
“A gente não pode deixar baixar o nível. Não se deve fazer concertos populares, nós
temos é que democratizar os concertos, quer dizer, dar acesso ao grande público com
ingressos mais baratos, mas fazer o melhor possível para qualquer um. Uma pessoa uma vez
228
A compositora está se referindo ao espetáculo Revisitando Stravinsky.
234
me deu uma resposta que eu achei genial. Foi a Martha Herr. Ela trabalhava muito comigo.
Eu ia fazer uma série de apresentações, de uma peça minha. Eu a convidei para fazer comigo
um trabalho em Nova York e ela me disse: „Que pena, não posso porque já tenho um
compromisso‟. Era um dia em Tatuí! Um dia no meio das datas propostas! Na hora eu pensei:
„Que absurdo! Deixar de cantar em Nova York num lugar importantíssimo, uma serie
contemporânea, grande! Mas não era um absurdo. Isso demonstra profissionalismo e respeito
ao público. Ela estava comprometida em Tatuí. O público é o mesmo, merece o mesmo
respeito, seja de Berlim ou seja de Tatuí.”
PERSONALIDADE
QUASE NADA POPULAR
“A música popular, para dizer a verdade, não me interessa muito. Talvez isso venha da
infância. Na minha casa não se ouvia música popular. O meu pai gostava de ópera, ouvia
ópera e a minha mãe era vidrada por piano. Eu ia aos concertos desde pequenininha e ouvia
tudo que era de piano. Se fosse música popular, o que é que ela ouvia? Talvez, canções
francesas, algumas coisas americanas, não chegava a ser jazz. A gente não ouvia muito a
música popular.”
MUITO PRAZER
“Para o meu prazer, eu ouço muito música renascentista.”
MUITO TRABALHO
“Acabei essa ópera [As Malibrans], que foi um trabalho enorme. Foi um trabalho de
um ano, exaustivo. Depois, já escrevi duas peças instrumentais. Uma foi uma encomenda da
Funarte, a outra foi para a China. O roteiro do Revisitando Stravinsky está sendo editado. Eu
tenho uma série de coisas em que eu estou envolvida agora.”
MUITOS PLANOS
235
“Eu nasci para a música e vou continuar assim. A música faz parte da minha vida.
Continuo sempre, nunca estou parada. Tenho inúmeros projetos, inúmeros planos ao mesmo
tempo.
236
APÊNDICE E - Tato Taborda: um inventor de instrumentos
Tato Taborda nasceu em Curitiba/PR, em 11 de janeiro de 1960. Mudou-se para o Rio
de Janeiro ainda criança, em 1971. Teve como principais orientadores os professores Esther
Scliar e Hans Joachim Koeullreutter. Cursou Mestrado em Música Brasileira e Doutorado em
Bioacústica e Estratégias Polifônicas pela UNIRIO.
A obra de Pretextato Taborda229 é repleta de experimentações sonoras cujas dimensões
cênicas frequentemente são inevitáveis, segundo ele mesmo.
Desde criança, batucando, criava ritmos com o corpo, experimentava os sons possíveis
de serem extraídos dos objetos, observava os sons cotidianos. Descobria sonoridades não
usuais dos instrumentos musicais tradicionais e dos instrumentos de brinquedo.
Ao conviver com grandes nomes da cultura nacional como Hélio Oiticica, Torquato
Neto, Hugo Carvana e outros intelectuais e artistas que frenquentavam a casa de seu pai
jornalista e cineasta, viu serem disparados os seus já aguçados instintos criativos em direção à
música.
À época de suas primeiras aulas de piano e, depois, de violão, o menino apresentava
uma relação ainda totalmente lúdica com a música, relação essa que foi, aos poucos,
tornando-se cada vez mais intensa. Integrou, tocando guitarra, uma banda de música popular
que tocava em festas e eventos. Mesmo nesse período, não deixou de experimentar, como
fazia na infância, as sonoridades alternativas dos instrumentos. Tocava guitarra com arco de
violino. Inventava sua própria maneira de fazer música e exercitava permanentemente sua
curiosidade na busca por novas sonoridades.
Em 1976, ingressou na Escola de Música Villa-Lobos, na classe de Estruturação
Musical da Professora Esther Scliar, com quem estudou durante três anos. Em seguida,
orientado pela Professora Carole Gubernikoff e por seu professor, Willy Corrêa de Oliveira,
encaminhou-se para estudar com Hans Joachim Koeullreutter, com quem permaneceu por
seis anos. Nesse período, teve oportunidade de escrever e estrear peças em diversos festivais
de música contemporânea e a criar obras para teatro e televisão. A respeito de suas
composições de trilhas sonoras para programas especiais e seriados da Rede Globo de
Televisão, comentou: “[...] Fui aprendendo naquele ambiente, em todos os seus aspectos,
229
Nome de batismo que se transformou, em sua forma reduzida, no nome artístico do compositor.
237
desde a escrita à relação da música com a imagem, com o contexto dramatúrgico [...]”.
(informação verbal).230
Afirmou ter aprendido, nesse período, a lidar com o acaso como parceiro, não apenas
nos procedimentos composicionais como também no momento de execução das obras: “[...]
Mais importante do que o meu plano, que eu posso gerar autonomamente e implementar a
ferro e fogo, é estar aberto para receber a contribuição do outro: às vezes do acaso, às vezes
de um erro”. (informação verbal).231 Essa maneira de encarar o momento imponderável da
apresentação musical repercute na forma com que o compositor anota – ou não anota – e
repassa – ou não repassa – as suas ideias para os intérpretes.
Em muitos casos, como no da peça A prostituta americana, de 1983, as ideias cênicas
não estão na partitura. Na iniciativa de criar um cenário e chamar um ator – Ivanir Calado –
para interagir na performance por ocasião da estreia na Sala Cecília Meireles/RJ, Tato
Taborda não cogitou em recomendar por escrito a próximos possíveis intérpretes que
repetissem tais procedimentos ou mesmo que inventassem outros recursos cênicos. Deixou a
dimensão cênica completamente por conta do acaso sem ter qualquer tipo de expectativa em
relação a próximas apresentações.
Em Organismos para quarteto de violões, os gestos decorrentes do manejo não usual
dos instrumentos devem, segundo o compositor, ser precisos, bem definidos, intensos,
enérgicos, eficientes. Na estreia, Taborda dirigiu a cena transmitindo aos músicos sua
concepção visual dos movimentos. Entretanto, mais uma vez, não fez questão de deixar tais
indicações anotadas para próximos concertos a serem realizados por outros músicos: será que
algum outro intérprete vai perceber, nas entrelinhas da partitura, a necessidade de executar a
peça com movimentos precisos, intensos e enérgicos? O compositor demonstra certo
desapego, certo despojamento com relação ao resultado que será alcançado em ocasiões em
que não estiver presente para instruir os intérpretes: “Quando eu passo instruções diretamente
para um intérprete, eu sei que quando outro intérprete que não teve esse contato pode tocar
resultado”. (informação verbal).232
A obra de Taborda é de realização complexa, não apenas pelas dimensões cênicas
implícitas – não vinculadas, não mencionadas ou não comentadas na partitura. Duas de suas
peças para piano, por exemplo, prevêem uma guitarra elétrica dentro do instrumento. A
guitarra vibra por simpatia de acordo com as notas tocadas no teclado. Deve ser afinada de
230
Entrevista com o compositor Tato Taborda, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 18 de julho de
2012. (Apêndice E, p. 244). 231
Ibid., p. 245. 232
Ibid., p. 250.
238
determinada maneira e deve passar por um processador eletrônico programado “[...] de
maneira bem específica”. (informação verbal).233 O compositor explica por que não colocou
tais instruções em partitura: “[...] Eu podia dizer: „Olha, consiga um processador de tal
natureza, afine a guitarra nessa ou naquelas notas...‟. Não é impossível de se fazer, mas é uma
encrenca”. (informação verbal).234
Outra obra de realização complexa é o Samba do Crioulo Doido, para dois
percussionistas. O aspecto visual/cênico é, outra vez, inevitavelmente decorrente da execução
não usual dos instrumentos de percussão. Os percussionistas tocam com as mãos, com os pés,
com as pernas, com a cabeça, com as nádegas, com o joelho, com o cotovelo. Dentre os
instrumentos utilizados encontra-se uma caixinha de música fabricada na Suíça – por uma
fábrica que já não existe – com um arranjo, de autoria do próprio Taborda, de Aquarela do
Brasil, de Ary Barroso: “Para todo mundo que queria tocar essa peça, eu tinha que mandar a
caixinha junto. Complicado, né?” (informação verbal).235
Na ópera multimídia Amazônia, a queda do céu 236
, de 2010:
o som da floresta é uma polifonia espacialmente distribuída [...] em ambiente
sonorizado com uma rede de vinte e quatro pontos de alto-falantes
distribuídos por todos os quadrantes do espaço, criando uma sensação de
multilateralidade que é análoga à que encontramos no espaço da floresta.
(TEATRO..., 2010).237
O próprio Taborda afirma: “[...] Essa ópera é complicadíssima para alguém
reproduzir”. (informação verbal).238
Taborda fez parte de um grupo de amigos que formavam o Juntos-Música Nova e
reiterava, junto a eles, suas concepções musicais:
Para mim, sempre, compor teve duas instâncias muito importantes, desde as
primeiras peças: construir um instrumento e inventar um jogo. Construir um
instrumento não só fisicamente, mas escolher um determinado número de
instrumentos ou fontes sonoras e formas de tocar específicas de cada uma
233
Entrevista com o compositor Tato Taborda, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 18 de julho de
2012. (Apêndice E, p. 246). 234
ENTREVISTA..., loc. cit. 235
ENTREVISTA..., loc. cit. 236
Ópera multimídia (libreto de Roland Quitt) encomendada Bienal de Munich em parceria com o
Instituto de Arte e Tecnologia ZKM e com o SESC São Paulo. O primeiro ato é do compositor
alemão Klaus Schedl. Para compor o segundo ato, Tato Taborda se aproximou da liderança
Yanomami, o Xamã Davi Kopenawa, com o objetivo de compreender a visão da Amazônia “de
dentro para fora” (TABORDA, 2011). 237
Documento online não paginado. 238
ENTREVISTA..., op. cit, p. 247.
239
dessas fontes. O conjunto dessas escolhas forma um organismo. Configurar
um instrumento é fazer um instrumento ter tais e quais sonoridades, tais e
tais comportamentos de respiração, tais possibilidades dinâmicas. Uma obra
é o resultado desses instrumentos e de maneiras de tocá-los. Eu sempre me
interessei muito pelo jogo. Um jogo é onde se cria regras. Eu sempre adorei
compositores que criavam regras e que seguiam disciplinadamente as regras.
Eu não sigo tão disciplinadamente as regras. Eu crio regras que são móveis,
que dependem muito da interação dos parceiros. Eu brinco, eu crio regras
que não são estritas, mas princípios relacionais, ou seja, se eu fizer tal coisa,
você pode fazer tal ou qual – outra – coisa. Quando o nível dinâmico atingir
tal plano, você pode disparar aquele material. As relações vão se dando por
respeito a essas regras. O grupo seleto de intérpretes com o qual eu comecei
a trabalhar lida bastante bem com isso na medida em que eu seja claro em
relação às regras e ao que eu espero deles. (informação verbal).239
O diálogo com outras linguagens artísticas como teatro (também na produção de
música de cena), dança e videoarte. Na obra Amazônia, a queda do céu (2010), a relação com
o libretista Roland Quitt se deu como um trabalho de intensa colaboração.
O uso de objetos tais como brinquedos, grampos e pentes é frequente em sua obra.
Tato Taborda criou, inclusive, um multi-instrumento ao qual denominou Geralda, constituído
por 70 instrumentos convencionais e não convencionais – o que inclui instrumentos
danificados, inadequados para a música tradicional – e objetos tais como brinquedos
quebrados.
A Geralda pesa cento e vinte quilos. São necessárias quatro horas de desmontagem
caso haja necessidade de deslocamento: “[...] Quando eu tenho uma viagem internacional,
tenho que desmontá-la em mil pedacinhos para caber em quatro cases. Isso é bem
complicado. [...] Percebe como eu crio encrencas? Eu não consigo evitar! Eu me divirto com
isso”. (informação verbal).240
Em parceria com Alexandre Fenerich, criou a Geraldona, que é uma junção dos sons
reais, processados e espacializados em oito canais da Geralda com os mesmos sons gravados
e executados em interação com aqueles. Alexandre Fenerich deflagra os sons pré-gravados e
interage com os sons da Geralda em tempo real, enquanto Taborda, que a manipula, tem, por
sua vez, interferência nos meios digitais disparando comandos através de uma bateria midi:
“[...] A Geralda virou um sistema de interações mútuas onde a combinatória é praticamente
infinita”. (informação verbal).241
O piano foi outro aspecto que marcou presença permanente na vida de Taborda:
239
Entrevista com o compositor Tato Taborda, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 18 de julho de
2012. (Apêndice E, p. 245). 240
Ibid., p. 251-252. 241
Ibid., p. 253.
240
O piano na minha vida é um parceiro permanente, é um meio de troca.
Comecei brincando no piano. Veio um período muito forte na guitarra e
voltei ao piano aos quatorze anos. Comecei a ter aulas com a Esther Scliar, a
Vânia Dantas Leite e fui para o Caio Pagano. Eu era o pior aluno da Vânia
[Dantas Leite] e era o pior aluno do Caio [Pagano], mas eu não me
importava. A minha relação com o instrumento era diferente. Independente
disso, o piano foi entrando muito fundo e passou a ser o meu elo de troca
com o teatro, com a vida mesmo, com a canção, com a música popular. Eu
texto as coisas no piano. Eu uso o piano para compor. (informação verbal).242
Quanto à produção executiva para a realização de suas obras, Taborda não apenas
aguarda convites para as apresentações. Elabora projetos, participa de editais públicos, dirige
e supervisiona seus concertos, contrata equipe. Nesses casos, diz ele, é necessário “[...]
assegurar que essa equipe tenha as condições necessárias para a realização das suas visões,
dentro dos limites orçamentários do projeto, e fazer ponte com a comunicação social: ser
totalmente atuante. Não basta ficar aqui criando”. (informação verbal).243 Para reunir equipes
de trabalho, ao longo de muitos anos, Taborda coleciona parceiros criativos:
Eu fui filtrando poucas parcerias com as quais eu gosto de trabalhar muito:
Aderbal Freire, Moacir Chaves, Amir Haddad. Com eles, eu me entrego
totalmente aos seus desejos, eu procuro interpretar totalmente as suas visões,
além de contribuir com a minha. Aprendo tanto deles como aprendo de uma
conversa com a figurinista que mostra um croqui, um tecido, uma trama de
tecido ou com um cenógrafo que traz uma maquete, com um iluminador que
traz uma ideia de um desenho. Tudo isso é alimento para a música.
(informação verbal).244
ENTREVISTA COM O COMPOSITOR TATO TABORDA, EM SUA RESIDÊNCIA,
NO FLAMENGO (RJ), EM 18 DE JULHO DE 2012.
FORMAÇÃO
“Eu senti necessidade de fazer música, de tocar música e de não apenas vivenciar a
música. Meu pai conseguiu uma primeira professora de piano para mim com quem eu tive,
aos onze anos de idade, aulas durante um ano ou ano e meio. Eu parei de ter aulas com ela,
mas o piano continuou em casa como um brinquedo, como um objeto com o qual eu continuei
242
Entrevista com o compositor Tato Taborda, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 18 de julho de
2012. (Apêndice E, p. 247). 243
Ibid., p. 252. 244
Ibid., p. 250.
241
me relacionando. Um ano depois, eu comecei a ter aulas de violão e, logo depois, de guitarra.
Então, aos quatorze anos, eu tinha uma relação muito intensa com a música. Eu tinha um
grupo, uma banda. Tocávamos em festinhas, em clubes. Viajávamos para lugares próximos ao
Rio de Janeiro. Ensaiávamos bastante, experimentávamos muitas coisas: eu tocava guitarra
com arco de violino, fazia experiências com o instrumento. A partir daí, foi um caminho
ininterrupto na relação com a música. Em 1976, ou seja, dois anos depois desse momento do
qual estou falando, eu comecei a sentir uma inquietude, uma necessidade de entender um
pouquinho mais daquilo que eu fazia de uma maneira tão prazerosa e intuitiva. Disseram-me
que havia um espaço, uma Escola de Música chamada Villa-Lobos, no centro da cidade com
professores muito interessantes, com a direção do compositor Aylton Escobar. Ele levou para
a Escola músicos muito importantes como Joachim Koeullreutter, Esther Scliar e
instrumentistas como Noel Devos, do fagote; José Botelho, do clarinete; Paulo Moura; Bituca,
da percussão. Foi um momento muito especial desse ambiente. No primeiro dia que eu
cheguei na Escola, abri uma porta e estava a Esther Scliar dando uma aula do curso de
Análise Estrutural a uma turma com dez ou doze alunos. Ela, tocando ao piano a sonata
Waldstein, de Beethoven, dando exemplos, mostrando como um tema se transformava em
outro, como um pedaço do tema se convertia em outro, em como uma parte se dividia em
duas ou três e a segunda gerava uma prole própria e a primeira parte gerava outra prole e que
isso depois se encontrava mais adiante. Isso foi uma revelação: música não era apenas um
desfrute pessoal, um prazer, uma experiência dionisíaca, mas também algo que podia ser
pensado como uma linguagem, que podia ser montado, articulado, combinado, dividido em
partes. Eu fiquei fascinado, fiquei louco com aquilo. Fiquei sentado, lá atrás, vendo a aula, ela
indo ao piano. Da quarta sinfonia de Brahms para Gillaume de Machaut, ia para Webern e
voltava para Josquin de Prés, ia para Beethoven: música era uma coisa só, com fios que
conectavam tudo! Era natural, isso. Tudo era conectável, era linguagem! Eu não entendia
quase nada do que ela [Esther Scliar] falava, mas fiquei fascinado com a possibilidade de
pensar música dessa maneira. Os alunos faziam perguntas interessantíssimas e eu achava
interessantíssimo o que ela respondia, até que eu me atrevi a fazer uma pergunta. Eu não sabia
quase nada, o que eu podia perguntar? Eu tinha uma intuição... Ela foi tão generosa com o que
ela capturou na minha pergunta... uma partícula que fazia sentido. Respondeu generosamente
com relação àquela partícula para me engajar, para me trazer para dentro. Claro que ela me
conquistou! Eu nunca faltei uma aula dela. Foi uma relação muito intensa por três anos.
Primeiro na Escola de Música Villa-Lobos e depois na casa dela. Foi então que conheci Hans
Joachim Koeullreutter, que foi o meu professor mais importante. Eu o conheci num evento no
242
Parque Lage, no Rio de Janeiro. Ele, nessa época, era diretor do Instituto Goethe. Ele foi
diretor de vários Institutos Goethe ao longo do mundo e depois de 1960, após perder a
cidadania alemã por causa da guerra, por causa das suas convicções comunistas, e recobrou a
cidadania alemã e o contato com a Alemanha em 62. Foi contratado pelo Instituto Goethe
para ser diretor em Nova Déli, em Tóquio, em Seul. Ele passou dezessete anos itinerando.
Desses, passou de doze a treze anos por diversos Institutos Goethe. Ele chegou ao Brasil,
primeiro em 1937 e, depois, de 1962. Voltou ao Brasil como diretor do Instituto Goethe no
Rio de Janeiro. Ele organizava um Festival no Parque Lage. Ele havia formado uma geração
de compositores antes, na década de 40 e 50: Claudio Santoro, Guerra-Peixe, Edino Krieger, a
própria Esther Scliar. Quanto saiu do Brasil e voltou, encontrou uma nova geração de
compositores ávida por alguém como ele. Nesse Festival, eu era moleque, mas eu era amigo,
entre aspas, muito ligado, ao Willy Corrêa de Oliveira, que era professor da Carole
Gubernikoff, que era a minha professora aqui no Rio de Janeiro. Ele me dava a maior trela,
me levava para os bares, ficávamos naquelas conversas: ele queria saber tudo sobre mim,
sobre as coisas que eu escrevia e o que eu fazia, me dava corda. Nesse Festival, ele me falou:
„Tá vendo aquele senhor de cabelo branco? Se você não for estudar com ele, não fala mais
comigo‟. Eu levei o maior susto e no dia seguinte fui procurar onde o Koeullreutter estava.
Ele estava no Villa-Lobos e eu me inscrevi no curso dele. Ele dava aula de contraponto. Tinha
uma turma de contraponto e tinha uma turma de arranjo baseado naquele livro que ele tinha
de arranjo jazzístico. Eu comecei a freqüentar as aulas dele e me envolvi totalmente: com a
personalidade dele, com as coisas que ele falava. A partir dali, foi um mergulho muito intenso
de seis anos mais ou menos que começou ali e foi para a casa dele com aulas particulares
numa relação muito próxima. O mais importante dessa relação foram as coisas para as quais
ele apontou, mais do que as coisas que ele me ensinava ou falava: eu olhava para os lugares
para onde ele apontava. Eu me conectei com coisas que permaneceram na minha equação de
formação: músicas de diferentes culturas, um conceito de tempo relativizado em relação ao
tempo ocidental. Tudo isso foi da experiência dele no Oriente. Eu tive a sorte de ter o
Koeullreutter filtrado por esses treze anos de experiência dele no Oriente e uma série de
outras coisas: o fato [por exemplo] de eu encarar a música popular como algo importante –
como um objeto sonoro musical importante e digno de observação, de análise e de estudo.
Não é uma arte menor. Eu e um grupo de compositores se juntou a ele, entre os quais, o Tim
Rescala. Nós nos conheceu antes: o Tim tocava na minha banda de rock. Ele tocava teclado e
eu tocava guitarra. Como eu fui antes procurar o Koeullreutter... „Olha, cara, você tem que ir
lá. O negócio lá é sério!‟. E ele foi. Começou a ter aulas com o Koeullreutter também. A
243
gente formou um grupo em torno dele. O Koeullreutter deu muita corda pra gente, deu muita
força. Encomendava obras. Quando ele fazia Festivais ele encomendava peças e levava para
estrear com músicos excelentes: o Quinteto do Rio, Heitor Alimonda, José Botelho, Noel
Devos, Caio Pagano... músicos de ponta: „Escrevam para essas pessoas, dialoguem com eles,
cheguem a um entendimento na medida do tempo que eles dispuserem‟. Foi um período
muito rico de mergulho na composição. A minha relação com a Esther Scliar, com o
Koeullreutter, era de tal forma intensa que eu olhei para a possibilidade de entrar numa
Universidade e aquilo me pareceu não fazer sentido naquele momento. Eu não fiz
Universidade. Eu fazia, já nessa época, música para teatro. Não fiz bacharelado nem
licenciatura. Mergulhei profundamente no fazer musical. Eu tinha um grupo, que criei junto
com alguns colegas, chamado Juntos Música Nova onde tocáva peças que escrevíamos para
esse grupo. Participamos de todos os Festivais que havia na época: Bienais de Música
Contemporânea, aqui e em São Paulo, o Festival de Música Nova... Um bacharelado naquele
momento não tinha o menor sentido. Eu nem cogitava essa possibilidade. Eu achei que era
uma coisa que eu ia simples e permanentemente passar ao longe. Em 1994, a Carole
Gubernikoff falou: „Tato, vai abrir um Mestrado, na Unirio, em Música, Composição. Você
não tem graduação, mas vai lá e faz a prova. Não vai ter garantia, mas são decisões que
dependem em alguma medida, de um colegiado‟. Isso foi uma semana antes [da prova]. Eu
peguei a bibliografia, estudei e passei em primeiro lugar: qual foi a minha surpresa ao ver que
eles me aceitaram! O tema do meu Mestrado foi Música de Invenção em que eu estudei as
fronteiras entre a música chamada popular e a música experimental no Brasil – autores que
transitam por esse território fronteiriço, quase todos eles oriundos de ambientes criados pelo
Koeullreutter, seja em Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro. Terminei o Mestrado e engatei,
em seguida, o Doutorado num projeto mais vertical ainda, em Composição, baseado no meu
interesse pessoal de muito tempo, que era uma interface entre estratégias de comunicação de
criaturas noturnas – hábitos de comunicação de criaturas como sapos, rãs, grilos, vagalumes –
e estratégias humanas de polifonia, das quais o contraponto é a estratégia mais exemplar,
embora haja muitas outras. Comparando de que maneira essas estratégias de comunicação que
se fazem onde o som é o meio fundamental de expressão e de e é preciso ser, então,
responsável com a administração do som. Então, quais as estratégias que os indivíduos
adotavam para poder passar seu gene adiante – já que seriam ouvidos num ambiente de
diversidade – sem a superposição dos competidores, que é dramática? A minha primeira
surpresa foi que eles aceitaram esse projeto no doutorado. E aí veio o pânico: „Caramba, isso
é uma intuição! Agora eu tenho que ter alguma base para poder fazer disso não apenas um eu
244
acho‟. Pedi socorro para uma lista de bioacústicos da Universidade de Cornell. Expliquei a
natureza do projeto e pedi a eles manifestações desse princípio de coordenação da
comunicação sonora entre espécies diferentes. Três ou quatro dias depois, a minha caixa de
correio estava lotada de mensagens dos próprios autores dos textos, dando conta de
procedimentos de alternância, de chamados em tal espécie de rã na Sumatra, entre tal espécie
de anfíbio em Moçambique, entre tais pássaros, entre grilos, entre vagalumes, dando conta da
ideia de alternância como princípio básico do contraponto: perceber o pulso dos competidores
e colocar o seu chamado nos intervalos desse pulso, para ser ouvido – ou não será ouvido
porque a fêmea não consegue localizá-lo. Esse é um princípio de origem natural: bioacústica,
exercitada em diversas espécies. Essas estratégias que a gente supõe que sejam muito
abstratas, descoladas do modus operandi natural, da polifonia e todas as técnicas polifônicas,
na verdade, são reverberações desses mesmos procedimentos de segregação temporal ou
espacial. Se você colocar indivíduos emitindo sons de lugares diferentes, você cria clareza
sobre a sua comunicação: tímbrica, de intensidade – porque intensidade também é um fator de
diferenciação. O meu doutorado foi, então, um estudo sobre estratégias de comunicação de
criaturas de hábitos noturnos e a correlação dessas estratégias com as técnicas humanas de
polifonia em diversas culturas.”
BERÇO
“Eu nasci em Curitiba. Ainda em Curitiba, senti despertar em mim uma curiosidade
muito grande em relação à própria música, embora não materializada em instrumentos:
materializada num desejo de tocar objetos, de batucar nas coisas, de criar ritmos com o meu
corpo, de experimentar objetos sonoramente, além de querer desmontar esses objetos para ver
como eles funcionavam por dentro. Isso me gerava problemas porque eu desmontava
aparelhos eletrodomésticos ou coisas que eu não conseguia montar de novo e depois tinha que
levar para o conserto. Esse desejo do avesso, do que está por trás, de como o brinquedo
funciona, sempre me interessou. Eu ganhei aos seis ou sete anos de idade um violão e, a partir
dali, parte dessa experiência foi canalizada para o instrumento, mas não exclusivamente.
Continuei curioso em relação ao som, independente do instrumento. Eu não tive, até os dez
anos, uma formação focada no instrumento. O instrumento era um brinquedo, era um prazer,
era um elo de contato com um mundo que me interessava. Em 1970, eu vim morar com o meu
pai no Rio de Janeiro. Nesse momento ele era jornalista, muito conectado com a segunda
geração do movimento tropicalista, com poetas como Torquato Neto, artistas plásticos como
245
Hélio Oiticica – da primeira geração do tropicalismo – e Hugo Carvana. Era um ambiente de
muita efervescência cultural. Esses agentes eram protagonistas dessa continuidade do
Movimento Tropicalista e do Cinema Novo na cidade do Rio de Janeiro. Eu saí de Curitiba,
de um ambiente provinciano: uma cidade extremamente fechada, mas onde eu tinha a
expansão de um universo interno imaginativo enorme – a possibilidade do jardim virar uma
floresta e de qualquer recanto da casa virar um quarto secreto e qualquer objeto ser convertido
numa porta para o imaginário: uma máquina do tempo. Foi uma infância muito imaginativa,
de muita, muita contemplação, de muitas aventuras, onde o universo interno se expandia. Ao
vir para o Rio de Janeiro, o ambiente da casa do meu pai me disparou a curiosidade de
experimentar aquilo que eu já tinha como intuição”.
EXPERIMENTALISMO
O ACASO
“Eu comecei a trabalhar em 83 na divisão musical da TV Globo fazendo trilhas para
especiais e seriados trabalhando com o Waltel Branco – um arranjador que era um dos
produtores da [Rede] Globo. Eu trabalhava como assistente dele em alguns projetos. Um
trabalho sub-remunerado, mas altamente nutritivo em termos de formação. Eu ia para os
arquivos da TV Globo para examinar os arranjos do Maestro Guio de Moraes, os arranjos do
Maestro Cipó. Eu via o processo de produção dos outros produtores, a gravação das peças, a
relação dos músicos com o regente, dos autores dos arranjos com os músicos. Fui aprendendo
naquele ambiente, em todos os seus aspectos, desde a escrita à relação da música com a
imagem, com o contexto dramatúrgico e a transmissão rápida para o músico. Era tudo muito
ágil. Tinha que ter a concepção da ideia muito ágil. A escrita tinha que ser clara. A ligação
com as tecnologias, com a captação sonora: tudo isso veio nesse pacote. Eu aprendi horrores
com o Waltel Branco. Ele fazia arranjos e a letra dele era péssima. Parecia a letra de
Beethoven. Tinha um núcleo de copistas na divisão musical. Ele entregava as partituras de
tarde. De manhã, já estava na estante dos músicos. Ele ouvia a base gravar de manhã, os
metais de tarde e as cordas de noite. Muitas vezes ou o via com o arranjo na frente e o Alceu
Bocchino regendo a orquestra. Num acorde, de repente, ele parava e falava: „Oh, Formiga,
trompete número dois: você tem mi bequadro na partitura!‟. „É verdade, Maestro, desculpa‟.
E o Waltel: „Não, deixa assim, ficou melhor!‟ Isso acontecia muitas vezes. Ele encarava o
acaso como um parceiro. Ele lidava com essas interferências do acaso como parcerias. Mais
246
importante do que o meu plano, que eu posso gerar autonomamente e implementar a ferro e
fogo é estar aberto para receber a contribuição do outro: ás vezes do acaso, às vezes de um
erro. Isso me ensinou muito.”
CAMINHOS CRIATIVOS
“Para mim, sempre, compor teve duas instâncias muito importantes, desde as
primeiras peças: construir um instrumento e inventar um jogo. Construir um instrumento não
só fisicamente, mas escolher um determinado número de instrumentos ou fontes sonoras e
formas de tocar específicas de cada uma dessas fontes. O conjunto dessas escolhas forma um
organismo. Configurar um instrumento é fazer um instrumento ter tais e quais sonoridades,
tais e tais comportamentos de respiração, tais possibilidades dinâmicas. Uma obra é o
resultado desses instrumentos e de maneiras de tocá-los. Eu sempre me interessei muito pelo
jogo. Um jogo é onde se cria regras. Eu sempre adorei compositores que criavam regras e que
seguiam disciplinadamente as regras. Eu não sigo tão disciplinadamente as regras. Eu crio
regras que são móveis, que dependem muito da interação dos parceiros. Eu brinco, eu crio
regras que não são estritas, mas princípios relacionais, ou seja, se eu fizer tal coisa, você pode
fazer tal ou qual – outra – coisa. Quando o nível dinâmico atingir tal plano, você pode
disparar aquele material. As relações vão se dando por respeito a essas regras. O grupo seleto
de intérpretes com o qual eu comecei a trabalhar lida bastante bem com isso na medida em
que eu seja claro em relação às regras e ao que eu espero deles. Há ambientes onde eu não
posso e não tenho tempo para trabalhar dessa forma. A [Orquestra Sinfônica do Estado de São
Paulo] (OSESP) me encomendou e eu escrevi uma obra. Eu não podia fazer isso com a
OSESP. Eu escrevi uma partitura com tudo prontinho. Era só música escrita, só notas, não
tinha instruções. Essas ideias foram já [por mim] realizadas e configuradas numa [única]
possibilidade em que não havia mobilidade do discurso para que ele fosse diferente de uma
execução para outra. Eu quis fazer dessa maneira porque eu estava muito curioso por ouvir
certas coisas com aquele instrumento. Por exemplo, as duas peças que eu escrevi para piano
tinham uma guitarra elétrica dentro do piano. A guitarra vibra por simpatia de acordo com as
notas que eu toco no teclado. Afinada de determinada maneira, ela passa por um processador
eletrônico e o som da guitarra é resultado das vibrações por simpatia das cordas da guitarra.
Existe uma relação da eletrônica com a acústica do piano em tempo real. Eu disparo o som
eletrônico proporcionalmente. Se eu toco mais fraco, dispara fraco. Se toco muito forte,
dispara muito forte. É uma peça dificílima de ser feita abrangentemente porque é um
247
processador de efeitos programado de maneira bem específica. Eu podia dizer: „Olha, consiga
um processador de tal natureza, afine a guitarra nessa ou naquelas notas...‟. Não é impossível
de fazer, mas é uma encrenca. Outra obra que tem uma dimensão cênica bem importante se
chama Samba do Crioulo Doido. É uma peça para dois percussionistas. Eu compus para o duo
Diálogos do Joaquim Abreu e do Carlos Tarcha. Esses dois percussionistas tocam dezenas de
instrumentos, alguns presos na cabeça, outros no braço. Tocam com a perna, tocam com a
bunda, com as costas, com a frente, com o joelho. A partitura tem essa dimensão cênica que é
inevitável. Para eles poderem tocar o que eles têm que tocar, eles têm que se torcer, se
deslocar para o outro lado, tocar com a cabeça, com o pé. O cotovelo toca outra coisa. Existe
um aspecto cênico que é, mais uma vez, resultante da execução. Tem, nessa obra, um
instrumento que é uma caixinha de música. Uma vez um fabricante suíço me encomendou o
arranjo de Aquarela do Brasil. Ele tinha uma fábrica de caixinhas de música. Eu fiz o arranjo
e entreguei para ele. Ele fez a caixinha de música, mas a fábrica dele faliu. Ele não tinha como
me pagar e pagou com caixinhas de música. Eu estava cheio de caixinhas de música e tinha
que inventar o que fazer com elas. Nessa peça, um dos instrumentos é essa caixinha de
música. Em certo momento, o percussionista dá corda na caixinha e ela vai tocando,
desacelerando, como acontece com as caixinhas de música. Eles estão, nesse momento, numa
ação automática de tocar e continuam enquanto a caixinha está desacelerando. Quando ela
para, eles param. Essa caixinha virou parte do instrumental. Para todo mundo que queria tocar
essa peça, eu tinha que mandar a caixinha junto. Complicado, né? Eu construí a Geralda a
partir de 1994. A Geralda é um instrumento que é uma orquestra que eu toco com várias
partes do corpo e que eu uso muito até hoje. Ela tem um aspecto cênico muito forte,
totalmente decorrente da execução do instrumento e once music245 total. Tenho uma ópera que
estreou em 2010 chamada Amazônia, queda do céu, que faz parte de um projeto grande, uma
colaboração entre Institutos na Alemanha e o Brasil – [Serviço Social do Comércio] (SESC) e
Ministério da Cultura. Amazônia, queda do céu foi composta a partir do contato com os índios
Yanomami. É o olhar Yanomami do que aconteceu na Amazônia. Tudo o que eu construí foi a
partir do olhar deles. Todos os personagens foram construídos a partir do relato deles, de
como eles viram os missionários entrando, chegando pela primeira vez, de como eles viram os
cientistas. Para eles, era gente de outro mundo, de outro planeta. Não tem índio em cena, não
tem música indígena, não tem uma pena. Tem o olhar, tem a perspectiva, tem o ponto de
245
Conceito criado por Willy Corrêa de Oliveira, relativo a peças que somente devem ser apresentadas.
uma única vez.
248
vista. O olhar daquele ambiente – a floresta – pelos olhos deles. Essa ópera é complicadíssima
para alguém reproduzir. Ela tem uma questão tecnológica: são 24 canais...”
O PIANO
“O piano na minha vida é um parceiro permanente, é um meio de troca. Comecei
brincando no piano. Veio um período muito forte na guitarra e voltei ao piano aos quatorze
anos. Comecei a ter aulas com a Esther Scliar, a Vânia Dantas Leite e fui para o Caio Pagano.
Eu era o pior aluno da Vânia e era o pior aluno do Caio, mas eu não me importava. A minha
relação com o instrumento era diferente. Independente disso, o piano foi entrando muito
fundo e passou a ser o meu elo de troca com o teatro, com a vida mesmo, com a canção, com
a música popular. Eu texto as coisas no piano. Eu uso o piano para compor. Além desse
aspecto de o piano ser um parceiro de mediação minha com a música e desse aspecto utilitário
da música como patrimônio da humanidade – as sonatas de Beethoven, a obra de Bach, de
Brahms – a que se tem acesso através do instrumento, eu sempre gostei muito de usar o piano.
Nas obras em que eu usei o piano, o piano sempre passava por uma espécie de transformação,
de alteração. Era preparado de alguma forma, tocado de uma forma diferente.”
MÚSICA CÊNICA
ASPECTOS CÊNICOS
“Os aspectos cênicos entraram na minha obra desde muito cedo. A prostituta
americana, que é uma peça de 1983, que é muito importante para mim, foi estreada na
Terceira Bienal de Música Contemporânea, na Sala Cecília Meireles. O fundo do palco, na
Sala Cecília Meireles, são uns triângulos. Eu chamei um ator chamado Ivanir Calado.
Olhando para aquele fundo, pensamos: „Parece uma máscara! A gente pode pensar em dois
olhos e uma boca, se secciona dois triângulos e um triângulo debaixo‟. Montamos uma
máscara que se encaixava exatamente – um papel branco naquele fundo. Na parte final da
obra ele retirava essa máscara e dançava com essa máscara. Essa foi a primeira aproximação
mais explícita da linguagem musical com outras linguagens artísticas. Mas isso não estava na
partitura. Foi pensado, combinado e executado. Eu vou citar duas obras onde a dimensão
cênica tem um aspecto importante e eu não sei de que maneira se encaixa nas categorias [da
música cênica]. Uma delas é um quarteto de violões, chamada Organismos onde os músicos
249
são solicitados a tocar os seus instrumentos de forma a criar percursos de gestuais entre
regiões muito distantes [do instrumento]. Para poder tocar o que está na partitura, gestualizar
os seus instrumentos de maneira muito intensa e precisa para que os sons sejam emitidos na
hora certa, da forma certa, cria-se uma cena que decorre da exigência musical. O resultado de
quatro músicos fazendo isso é uma ação corpórea não usual, muito viva, muito diferente. Eu
comecei a ter consciência de que isso ia acontecer quando eu fui fazendo as coisas e fui me
dando conta do que acontecia com o meu corpo. Eu imaginei que a soma dessas quatro ações
corporais teriam também uma resultante inevitável. Eu pensei como consciência cênica para
os intérpretes no seguinte sentido: „Procure a maneira energeticamente eficiente de realizar
esse movimento‟. Mas essas instruções foram feitas de maneira verbal. No momento que eles
começaram a tocar, eu pedia a eles: „Executem esse som de maneira a não ter sobra nem gasto
de energia desnecessário. Descubra a maneira mais energeticamente eficiente de virar o
violão. Eu dirigi a cena a partir da partitura, que exigia trânsito por sonoridades que
implicavam em modificações da posição do instrumento. Talvez outros intérpretes, sem essa
direção, não façam gestos tão limpos, se não cuidarem desses gestos de uma maneira mais
atenta, mais específica. Eu era muito curioso em relação à gestualidade do tocar, muito
curioso. No ano seguinte, eu compus uma obra chamada Música Gestual. Essa peça tinha uma
primeira seção de mais ou menos um minuto e meio que ficava se repetindo cinco ou seis
vezes. A cada repetição, alguns dos sons – a ação do som continuava, mas deixava de
produzir som. Iam surgindo silêncios, nessa partitura, até que, ao final, a última repetição era
simplesmente a mímica, a movimentação de tocar. Nenhum som era produzido. Sobrava o
resíduo [do som]. É como se fosse sendo apagado o que havia de acústico nela. Sobrou a ação
gestual. Eu fiz uma partitura e seis cópias. Em cada uma dessas cópias eu ia assinalando com
círculos de cores para diferenciar as regiões que seriam tocadas ou silenciadas. Em uma nova
versão, com marcador de texto, eu marcava outras regiões menores deixando mais regiões em
preto e branco. Cada um dos músicos tinha uma partitura com configurações diferentes: em
laranja, verde, azul. Uma partitura tocada se transformava em outra partitura toda
gestualizada. Eu buscava o resultado cênico. Nessa época, eu trabalhava com esse grupo
chamado Juntos Música Nova de amigos, parceiros de aventura, de descobrir juntos as coisas,
de fazer as obras. Fazia-se a partitura, mas as decisões eram tomadas ali, em tempo real.”
CAPRICHOSA VOZ QUE VEM DO PENSAMENTO
250
“Em 2009, eu e a Maria Alice resolvemos começar a fazer esse trabalho juntos, de
Exercícios de Escuta, a gente começou a conversar muito. Ela pensava muito sobre a dança
dos ossos, sobre uma dança que partisse da articulação, que partisse do interno como
protagonista e não numa dança que fosse validada pela imagem do espelho: que partisse de
dentro para fora, que fosse pensada pelo corpo, de dentro para fora. Nesse momento, eu
pensei: „Por que não usar o piano no esqueleto, tirar todas as partes e transformá-lo?‟ A partir
daí, surgiu o piano de volta como um instrumento. Um piano de armário é um instrumento
fácil: onde a gente fosse, iria ter. Faríamos essa performance no Teatro Cacilda Becker por
três semanas. Piano preparado: usamos garfos, parafusos de diversas bitolas e peças metálicas
cilíndricas. As mesmas coisas que viemos a usar na Caprichosa voz que vem do pensamento.
Eu afino esse instrumento meticulosamente antes de tocar porque às vezes no transporte
alguma peça sai do lugar. Existe um som que é resultante daquela [exata] posição. O som
muda nos vários aspectos da sonoridade, mas a identidade, a essência permanece a mesma,
não muda. Eu já preparei quatro pianos diferentes. Desenvolvemos uma forma de
relacionamento entre movimento e som em que eu me transformo a partir da movimentação
dela e ela se transforma a partir da modulação do que eu faço: modulação de intensidade, de
velocidade, de tempo, pausas. Chamamos isso de Exercícios de Escuta porque é uma escuta
além, talvez, da escuta fisiológica. Ela [a bailarina Maria Alice Poppe] escuta o corpo por
dentro, na dança interna. Nessa ideia de olhar para dentro, mais do que olhar, há a escuta do
corpo. Nessa peça, decidimos não apenas cruzar o gesto musical com o gesto coreográfico
como chamar uma pessoa da cena – que é o Aderbal Filho, que é um diretor de teatro muito
importante. Ele entrou no processo para começarmos do zero para cruzar essas três vias de
maneira que a gente não soubesse mais quem estava brincando com o brinquedo de quem: se
foi o Aderbal que virou coreógrafo, se eu virei bailarino ou se a Maria Alice estava tocando
piano. O processo ocorreu totalmente sem fronteiras ou escrúpulos na direção desse território
híbrido. Isso está expresso e tem uma dimensão cênica muito forte. A minha performance tem
um aspecto que é pura cena. O som é decorrente dessa cena. Existe uma cena coreográfica e
teatral que motiva a execução. Não tem partitura. Eu posso perfeitamente partiturar essa
diagramação dos objetos, como o Cage fez, mas a música que eu toco tem uma mobilidade
muito grande sobre estruturas com certa estabilidade. Não é tudo improvisado. Tem uma
estrutura pronta, onde há liberdades. Há flutuações possíveis, mas numa configuração estável.
Eu não pretendo colocar isso em partitura, não tem necessidade, até agora: há registros,
gravações.”
251
OS INTÉRPRETES
“Quando eu passo instruções diretamente para um intérprete, eu sei que quando outro
intérprete que não teve esse contato pode tocar aquela peça e obter outro resultado.”
O TRABALHO EM EQUIPE
“Eu fui filtrando poucas parcerias com as quais eu gosto de trabalhar muito: Aderbal
Freire, Moacir Chaves, Amir Haddad. Com eles eu me entrego totalmente aos seus desejos, eu
procuro interpretar totalmente as suas visões, além de contribuir com a minha. Aprendo tanto
deles como aprendo de uma conversa com a figurinista que mostra um croqui, um tecido, uma
trama de tecido ou com um cenógrafo que traz uma maquete, com um iluminador que traz
uma ideia de um desenho. Tudo isso é alimento para a música. O meu trabalho com teatro é
muito feliz no sentido em que há uma equipe que trabalha junta há muito tempo. Essa
comunicação é muito estimulante para a criação dos trabalhos.”
REALIZAÇÃO
EMPREENDEDORISMO DESDE O PROCESSO DE COMPOSIÇÃO
“Eu escrevi uma obra chamada Stratus para a Orquestra Experimental de instrumentos
nativos de La Paz: uma orquestra que existe na Bolívia com instrumentos autóctones da
tradição Aymara. São instrumentos de sopro, principalmente, mas de muitos tipos diferentes.
Os componentes são jovens da tradição Aymara. Essa orquestra existe há vinte e cinco anos.
Eles tocam obras compostas para eles. Composições novas, de compositores contemporâneos,
feitas para aquele instrumental. Eu fui para La Paz. Trabalhei uma semana com os músicos
primeiro, aprendendo que instrumentos eram aqueles. Eles me mostraram mil possibilidades.
Eu trouxe os instrumentos para casa. Fiquei um mês e meio brincando com os instrumentos,
tocando-os de maneiras que eles [os componentes da orquestra] nunca tocaram: como uma
criança pega um instrumento e toca de uma maneira que a gente nunca ensinou. Criei a
partitura a partir desse jogo, através dessa escuta dos instrumentos. O que eles queriam que eu
escrevesse para eles? Eu fui aprendendo dos instrumentos a música que eu escreveria. Voltei
para La Paz com essa partitura: é claro que eles tiveram muita dificuldade com alguns
materiais porque são materiais que surgiram de quem não tem a técnica certa do instrumento.
252
A gente teve um período de dez dias para que eu pudesse passar essas técnicas para eles, eles
me sugerindo diversas coisas. Depois desses dez dias, a peça estava pronta. Quinze dias
depois, foi a estreia na Alemanha. A produção dessa peça envolveu esse trânsito duas vezes:
Brasil-Bolívia, a vinda dos instrumentos para cá, o meu envolvimento pessoal com esses
instrumentos. Tudo isso foi pré-condição para a peça ficar pronta. Nada podia ser gerado no
abstrato, na minha cabeça. Foi preciso essa fisicalidade dos instrumentos, essa relação com
eles.”
GERALDA E GERALDONA
“A produção das obras para a Geralda – a Geralda é um organismo vivo, se ela for
analisada desde o seu princípio em 1994, que nem se chamava Geralda ainda. A primeira
construção do instrumento foi uma bolsa da Fundação Vitae. A forma geral parece a mesma,
mas muitos instrumentos saíram, outros entraram, como um organismo vivo, ela vai
evoluindo de acordo com as necessidades de cada peça de cada projeto. A minha relação com
o instrumento foi se transformando continuamente durante muito tempo até o momento em
que ela se transformou radicalmente. Em 2001, um amigo veio aqui em casa, o instrumento
estava aqui. Ele olhou para o instrumento e disse: „Tato, que linda! Como é o nome dela?‟ Até
então, era só um instrumento, era uma orquestra, era algo, era uma coisa. Ela? Não só é „ela‟
como está grávida porque tem um bumbo na frente! Isso foi uma revelação para mim! Essa
noite eu toquei seis horas direto no instrumento e da noite para o dia, literalmente, a minha
relação com o instrumento mudou. Começaram a surgir sons que eu nem suspeitava que
existissem: uma voz orquestral da combinação de certos sons que eu nunca tinha prestado
atenção porque eu comecei a tocar o instrumento de maneira diferente. Eu comecei a lidar
com ele como uma entidade feminina, não era mais uma coisa. A partir daí, pouco tempo
depois, uma outra amiga sugeriu o nome de Dona Geralda porque era mulher de um ex-
caseiro meu, que ela conhecia, em Friburgo. Dona Geralda era uma cabocla robusta. Esse
instrumento tem cento e vinte quilos: encaixou. Eu falei: „Dona Geralda, não, mas Geralda,
sim, Geralda tem a ver. É redonda, geral, girar...‟ Virou Geralda. A produção das obras para a
Geralda implicam na montagem do instrumento. O instrumento está permanentemente
montado na Gamboa, que é um lugar onde eu ensaio, num Centro de Artes. Quando eu tenho
uma viagem internacional, tenho que desmontá-la em mil pedacinhos para caber em quatro
cases. Isso é bem complicado. Demora quatro horas mais ou menos, essa desmontagem, mas
ela consegue viajar comigo, no mesmo avião. Percebe como eu crio encrencas? Eu não
253
consigo evitar! Eu me divirto com isso. Em muitos casos, quando são Festivais maiores, tem
uma equipe que cuida dos aspectos mais formais: divulgação, transporte. A experiência com a
Geralda não é transferível. Tem que ser eu viajando e fazendo o concerto. Eu tenho um
parceiro maravilhoso de trabalho, que é o Alexandre Fenerich. Alexandre Fenerich é um
compositor de São Paulo. Ele fez Mestrado aqui no Rio de Janeiro, mas ele terminou o
Doutorado agora, em São Paulo. Ele é fundalmentalmente um músico eletroacústico, de
técnicas digitais. Desde 2005, tocamos juntos em torno da Geralda. É um parceiro mesmo
porque nós gravamos todos os sons da Geralda e ele tem todos eles armazenados. Criamos a
Geraldona, que é conseqüência dessa Geralda real que eu toco e dessa Geralda virtual que
ele tem armazenada. Ele me espacializa para oito canais. Através de uma bateria midi, eu
interfiro em todos os programas dele, mando comandos para os programas que ele tem,
disparo coisas no sistema dele. A Geralda virou um sistema de interações mútuas onde a
combinatória é praticamente infinita. Tem projetos que eu sou convidado como compositor e
estou dentro de uma estrutura idealizada e pensada por um diretor e por um produtor e eu
participo de uma equipe.”
GESTÃO DE PROJETOS
“A Caprichosa voz que vem do pensamento é um projeto meu e da [Maria] Alice
[Poppe]. Ganhamos edital, chamamos a equipe. A tempo foi outro projeto nosso. Ganhamos
edital, chamamos, contratamos, pagamos equipamento, fizemos prestação de contas,
conseguimos o espaço, fizemos contrapartidas. Código Fonte foi outro projeto que fizemos
juntos e também foi fruto de edital, da Secretaria de Cultura. Nesses casos, somos
responsáveis por fazer o projeto, contratar a equipe e assegurar que essa equipe tenha as
condições necessárias para a realização das suas visões, dentro dos limites orçamentários do
projeto, e fazer ponte com a comunicação social: ser totalmente atuante. Não basta ficar aqui
criando. Mais eu do que a Alice porque a Alice é uma intérprete mais especializada, é uma
bailarina de alto nível. Eu não sou um intérprete de alto nível, eu não me considero como tal.
Eu sou um criador, compositor. Toco as minhas coisas, mas ela se especializou em dançar”.
254
APÊNDICE F – Luciano Garcez e “O espírito da qoisa”
ENTREVISTA COM LUCIANO GARCEZ, EM SUA RESIDÊNCIA, EM SANTA
TEREZA (RJ), EM 22 DE AGOSTO DE 2010.
FORMAÇÃO
“A minha formação se deu na cidade de São Bernardo. Minha tia tocava violão
popular e eu via minha tia tocando com a professora. Eu queria tocar também: isso com seis,
sete anos. Fui estudando violão popular até os onze, com a professora da minha tia. Tinha um
piano em casa. Eu já sabia um pouco de harmonia, meio intuitivamente. Minha mãe tinha
muitas, muitas partituras de peças para piano, muitos métodos. Eu abri o piano e comecei a
brincar, a tocar. Comecei a pegar os livros, comecei a ler ao piano. Fui meio autodidata.
Quem me ensinou um pouco a teoria foi a professora de violão. Minha mãe não se meteu em
nada. Mas minha avó, pelo contrário, sim, dos onze anos até eu entrar para a Faculdade – eu
entrei com dezessete ou dezoito na [Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho”] (UNESP) para o Curso de Composição. Minha mãe tinha as sonatas completas de
Mozart e eu fui tocando tudo aquilo, fui decifrando tudo aquilo. A minha formação se deu
lendo essas coisas e ouvindo muito, dos onze aos dezessete anos. A Faculdade começou a dar
nome para as entidades que eu criei para mim. Eu sabia que havia acordes com sétimas, mas
escapadas, antecipações e etc. eram coisas que eu havia descoberto tocando Mozart, tocando
Beethoven, tocando Chopin... e ouvindo muito. Eu ouvia fanaticamente: todos os autores,
todos, todos, qualquer coisa. Principalmente classicismo, romantismo e início do século XX,
que era o que tinha na banca de jornal – comprava essas coleções. Eu tenho até hoje
guardadas as fitas, aquelas coleções da Salvat. Eu ouvia cinco ou seis horas por dia. Era uma
coisa ensandecida. Nessa de ouvir, eu fui criando dentro de mim estruturas de composição,
como soa uma flauta, como soa uma trompa e como é que se organiza isso. Eu fui atrás de
partituras. Eu ia ao Centro Cultural, em São Paulo e xerocava partituras de orquestra. Meus
pais não tinham dinheiro, a gente era uma família de certa forma pobre, mas o acesso, naquela
época, a uma fita numa banca de jornal era muito barato. Foi a época em que a cultura
começou a ficar barata: década de oitenta. Não era nada metódico, mas eu já tinha noção. Eu
tenho os livros de História da Música até hoje, que eu ganhei do ex-chefe da minha mãe, que
também gostava de música erudita. Aí, eu consegui ordenar na minha cabeça o que era
classicismo. Quando eu entrei na Faculdade, eu já sabia muita coisa. A decepção foi esse
255
culto que até hoje existe e que me afastou da Universidade, que é o culto da techné. Eu chamo
techné de uma maneira simplificada a mania de dar nome e classificar tudo. Isso é o que erige
a Faculdade. Eu voltei sabendo disso, mas isso me afastou em 97, não obstante tivesse tudo
aberto para mim na vida acadêmica. Eu não suportava mais. Eu fui o primeiro aluno, eu fui o
orador da turma, mas eu não suportava a academia por causa do desencanto de pegar uma
obra e ficar dissecando essa obra e dando nomes. Tudo bem: chegava ao final. E aí? Para
mim, isso sempre teve cheiro de necropsia: pegar um cadáver, cortar... ele ficou vivo? Não!”
BERÇO
“Eu sou do ABC, sou de São Bernardo do Campo, nasci em 72. A minha família não
é exatamente uma família de músicos, apesar de a minha mãe ter sido professora de piano, ter
estudado doze anos de piano. Mas ela abandonou o piano. Num certo tempo ela fechou o
piano e nunca mais tocou. A minha família é de origem portuguesa e italiana. A parte de mãe
é toda italiana, Locozelli, e por parte de pai é toda portuguesa. Então, são quatro famílias
italianas e, que eu me lembre, duas famílias portuguesas que se encontraram. Por isso, eu tive
formação católica, fiz o catecismo muito pelo contato com as minhas avós italianas porque na
Itália o catolicismo é absolutamente forte. Tem também uma história, da minha mãe e do meu
pai, de os dois serem espíritas, meio de mesa branca e meio de umbanda e a minha mãe ser
uma pessoa que tem uma mediunidade muito forte, muito forte. Desde que eu ainda era
criança, a minha mãe incorporava uma preta velha e o meu pai incorporava caboclo. Eu
lembro muito criança a minha mãe recebendo os guias. Não era exatamente candomblé, era
mais umbanda, mesa branca, espiritismo. No candomblé, que seria o lado mais africano, quem
entrou mesmo fui eu e bem mais tarde. Mas eu me lembro da minha mãe recebendo,
inclusive, uma preta velha que se chamava Vó Maria, eu acho, e as pessoas iam atrás dela. Eu
me lembro de ter, assim, quinze pessoas em casa para se consultar com a minha mãe. Por
exemplo, ela veio aqui [em casa]. Um dia em que ela estava aqui, eu havia comprado duas
camisas – sempre compro roupas em brechó. Ela já havia falado ao telefone e quando ela
chegou aqui, ela disse que eu precisava me livrar dessas camisas. „Por quê?‟ „Porque são duas
pessoas que morreram‟. „Mãe, mas você vê as pessoas?‟ „Não vejo, mas eu sei e elas estão
aqui na Terra. Elas ainda não conseguiram desapegar e elas estão próximas desses objetos‟.
„Bom, você vê, eu não vejo... está aqui, faz o que quiser com essas camisas‟. Ela deixou uns
dias aí fora e depois acabou jogando fora. Ela já viu coisas do tipo: „Fulano de tal está
doente‟. E a pessoa estava. „Fulano de tal morreu‟. E a pessoa morreu mesmo, no dia seguinte
256
ou então já tinha morrido. O meu pai também era médium e o meu pai via coisas com uma
clareza assustadora. Essa questão da espiritualidade sempre esteve muito forte apesar de eu
mesmo nunca ter exatamente essa proximidade, essa coisa meio Chico Xavier. Então, isso
para a minha cabeça, que é racional, que é européia, sempre foi uma coisa meio conflituosa.
Tanto, que o meu altar é isso mesmo [aponta o altar que construiu em na sala do
apartamento]: ele é a África, a Europa...” O começo da minha formação [na música] foi com
canção popular, dos sete aos onze anos. Minha avó queria ter sido cantora de rádio, cantava
muito bem e cantava muito canções: Noel [Rosa], Ismael Silva. Eu me lembro da minha avó
cantando, eu até falo em O espírito da qoisa: „Pela boca descabida de minha avó‟. Eu falo
muito da minha avó porque eu fui meio que criado por ela e ela foi meio que uma baliza
estética indireta para mim – minha avó por parte de mãe. Aliás, minha avó e minha bisavó de
ascendência italiana. Então, eu ouvia muito as canções populares. Pode parecer uma coisa
meio mitônoma, meio fabularia, mas não é, não: desde criança eu ouvia a minha avó cantando
e eu achava a canção, a música, a palavra e a música a coisa mais perfeita que o homem podia
fazer. Eu via assim. É uma coisa muito rudimentar, um pensamento muito de criança, mas era
muito claro isso para mim. Eu via um carro e dizia: „O carro tem as rodas‟. Era muito óbvio
aquilo ser construído pelo homem mas algo como „Anoiteceu, o sino gemeu e a gente ficou
feliz a rezar/Papai Noel, vê se você tem a felicidade‟... Eu me lembro do meu pai cantando
para mim e explicando: „Olha, o compositor que fez isso, não era um compositor feliz...‟ Ele
escreveu: „Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel‟ e, no final, „sendo assim
felicidade‟(...) „é brinquedo que não tem‟. Era um hino de Natal, mas de um conteúdo muito
triste. Eu achava isso a coisa mais absolutamente fantástica do mundo. Para mim, isso estava
acima de qualquer coisa. Então, eu imaginava assim: „Quando eu crescer, eu vou querer ser
compositor‟. Isso é uma coisa que está além de tudo: criar uma coisa que não tem conexão
com a realidade e, ao mesmo tempo, era a própria realidade. Claro, eu não tinha esse nível de
elaboração como criança, mas eu via que era algo transcendente e eu disse: „Eu não tenho
dúvida, eu quero seguir por esse caminho!‟ Eu não sabia que caminho era esse – exatamente
de compositor, exatamente de poeta – mas eu sabia que era desse mundo. Tanto, que as
lembranças que eu tenho da minha infância, todas elas, sem exceção, são vinculadas à música:
a minha avó me cantando coisas, o meu avô me cantando coisas: canções italianas, por
exemplo: o Masolin – „quel masolin...‟”
EXPERIMENTALISMO
257
TUDO JUNTO E MISTURADO
“A minha vida é absolutamente rocambolesca em termos de coisas misturadas. A
minha música reflete um pouco isso.”
MÚSICA E POESIA: VELHOS PROCEDIMENTOS, NOVAS IDEIAS
“Eu não excluo, a minha estética não é de exclusão. Toda estética moderna de
exclusão está fadada ao fracasso. Essa é uma das únicas certezas que eu posso dizer como
compositor. É nisso que muitos compositores estão naufragando. Tanto na Música Popular
quanto na Música Erudita. O sujeito se apóia numa técnica, se apóia em procedimentos e toma
aquilo como poética. Isso nunca foi poética. Fazendo um paralelo entre música e poesia, você
não precisa escrever mais um soneto, mas os procedimentos de equilíbrio ainda existem: as
assonâncias, as estruturas, as rimas internas, as rimas tonantes, as rimas sonantes. Você pode
não mais abrir um acorde com uma sétima aqui e uma terça ali, mas pode botar uma oitava e
um cluster no meio, são infinitas possibilidades.”
TÉCNICA E POESIA
“A técnica brota da poesia. A técnica vem em função da presentificação de uma ideia,
de um ser, de um estar. Pode ser um piano: ele materializa a ideia. A imagem também pode
materializar uma ideia. Parte tudo da poiésis. O mal do nosso tempo é a técnica que tenta o
tempo todo se justificar. Não funciona. É o abandono do „eu‟ como se falar „eu‟ fosse pecado.
Em Música Popular, há a questão da afinação: a Maria Bethânia desafina, a Nana Caymmi
desafina. Dentro da poiésis delas, isso é perfeito. Estamos, com isso, tocando numa das
feridas mais profundas da nossa época, que é essa ausência total de poesia, de coragem, nesse
sentido do fazer artístico. Para um fazer artístico com poesia e coragem, é necessário auto-
conhecimento, o que é muito difícil. Esse é o problema geral da nossa época. O auto-
conhecimento é um processo, assim como a perfeição, é uma busca que nunca chega, é só um
processo. Mas se os artistas não forem verazes, se não tentarem dizer o que é o tempo deles, o
que eles são e a transcendência disso tudo, quem vai falar sobre isso? O médico? O juiz? O
político?”
MÚSICA POPULAR
258
“Debussy fala – em O balanço da bossa, Augusto de Campos cita Debussy – que na
pomposidade há mediocridade e que, às vezes, a genialidade está numa valsa de café
concerto, que era a Música Popular. Milhaud veio para o Brasil: „Vocês têm isso aqui e não
dão valor!‟ Precisou ele vir aqui para que Ernesto Nazareth fosse recebido nas salas de
concerto. A harmonia do Nazareth é chopiniana, o ritmo é samba, é maxixe com melodia de
tango brasileiro: se fazem a dissecação do cadáver, dizem que não presta. Nada que é
fragmentado funciona. A poética funciona na integridade, na inteireza. Se a gente olhar a
harmonia de Caymmi em O mar, por exemplo, é tônica, subdominante, tônica, dominante,
tônica: „O mar quando quebra na praia é bonito, é bonito‟...é perfeito. Se você for, através de
parâmetros e tecnologias pressupostos – eu uso a palavra techné – definir o objeto, você não
vai conseguir definir. Você vai reduzir o objeto, Automaticamente, você vai excluir: „Então, é
Música Popular!‟ Por quê? Por causa de tais parâmetros. As únicas respostas que nós temos
hoje em dia são parametrais. Acabou-se a história de Música Popular por conceito adorniano,
indústria cultural... isso acabou. Só porque o sujeito faz um putz putz techo e inovou
parâmetros com transformação da onda e usou um programa simulador está fazendo Música
Erudita? O sujeito pode pegar uma acorde maior, como Scelsi, que foi considerado o pai da
música espectral e transformar pouco a pouco: esse é um dos compositores mais importantes
da segunda metade do século XX! Nós estamos numa época de fascínio total pelos
parâmetros!”
O PIANO
PIANISMO E ROMANTISMO
“O piano virou uma espécie de instrumento centro para mim. Foi através dele que eu
cheguei a tudo. Eu voltei ao violão por causa da Música Popular e ainda tenho as unhas
compridas, mas eu toco violão muito basicamente. O piano é o centro, para mim. Sempre foi.
O piano é um instrumento base, de 250 anos para cá, desde Mozart. O piano é uma tecnologia
perfeita. O piano foi o instrumento central do romantismo. O Brasil chegou à chamada
modernidade meio enviesado, trazendo para o século XXI ainda um romântico, um
compositor neo-romântico. Eu reputo muito a ele e à escola nacionalista o pianismo porque é
uma escola muito centrada no piano. Se o Brasil é assim, a gente tem que entender o Brasil
259
dessa forma e absorver o que há de positivo e o que há de negativo. Eu não repudio nada. Eu
sou romântico, eu sou idólatra do Romantismo.”
O PIANO NO CONJUNTO DA OBRA
“Por eu ter me dedicado muito à canção, as minhas peças para piano são circunscritas
à época da Faculdade. Eu escrevi para alguns pianistas: por exemplo, para o Sérgio
Villafranca, de São Paulo, que era o pianista do Koeulreutter. Dentro do estilo canção eu
também escrevi para piano, bastante coisa. De três anos para cá, eu escrevi peças que marcam
o meu retorno à Música Erudita.”
PIANO AO VIVO
“Se eu tenho um computador na minha frente, em que eu posso ver o Glenn Gould
tocando Bach maravilhosamente bem, o que vai me fazer ir até uma sala de concerto para ver
um sujeito tocando dez vezes pior o mesmo Bach? Temos que começar a pensar nisso e
começar a entender o que isso está dizendo para a gente: o que o computador está nos
dizendo, o que o youtube está nos dizendo. Bach e o youtube estão juntos. A academia ainda
não está vendo isso, a academia está vendo o computador como um objeto em que você pode
colocar um programa, o Max, que vai mudar tudo. Temos oportunidade de ver vídeos
raríssimos: o youtube é só uma dessas coisas, existem muitas outras e outras tantas ainda vão
aparecer. Isso ainda vai mais longe. A sala de concerto está virando um museu. Os sujeitos
vão até lá para fazer o mesmo repertório que a professora dele fazia e que a professora da
professora dele fazia. O que é o palco? Antes de pensar em piano, violoncelo ou orquestra: o
que é o palco? O palco é um local de celebração, é uma local de projeção pessoal,
aristotelicamente falando. É um lugar catártico. O palco é e sempre foi simbolicamente, para a
plateia, um espaço de possibilidades múltiplas. O sujeito, quando ia ver Shaekespeare, saía
transtornado. E hoje em dia? O que move o sujeito até o Teatro? As artes cênicas estão
melhores em relação a isso. O teatro ainda tem esse germe de loucura, de caos. A música de
concerto ao vivo tende a acabar porque o sujeito senta: „Agora, eu vou executar Prokofief,
Sonata em si bemol sustenido maior e etc‟. Depois: „Agora, vamos ouvir...‟ Virou isso! Nós
temos CDs e e podemos ouvir a mesma sonata duas mil vezes com a partitura ou comendo um
crepe de maçã: mil possibilidades com uma qualidade técnica muito melhor porque foi
regravada mil vezes! O Glenn Gould mesmo gravava, recortava e regravava para ficar
260
perfeito. „Então, a perfeição venceu a imperfeição?‟ Não estou dizendo isso. Eu estou dizendo
que hoje nós temos um parâmetro chamado CD que, normalmente, é muito bom com boa
acústica que a sala não tem, por exemplo. Se eu sou pianista, eu vou chegar na sala com
propostas diferentes: a primeira delas é que ali não há perfeição. Se eu tenho o CD, eu tenho
que chegar com a vida que o CD não tem, com esse lado teatral, com esse lado humano, com
esse lado da interação. A gente sabe muito bem que os intérpretes eruditos detestam isso. Eles
não gostam nem de falar das peças.”
PIANO (IM)PESSOAL
“O que eu vejo de pianistas impessoais... Uma manifestação da impessoalidade: „Eu só
toco Schumann‟. Ele senta lá e toca como se fosse um tuberculoso. Parece que até o final do
concerto ele vai morrer. Isso é uma caricatura! Esse sujeito tem o „eu‟ dele? O que ele tem é
uma ideia estereotipada do que seja „eu‟. Nem Schumann era assim! É da nossa cultura, a
estereotipia, a estereotipia em tudo. As interpretações de Horowitz de Scarlatti são bem
conhecidas. O Scarlatti dele, em termos de época não é exatamente correto, nem
tecnicamente, a gente sabe que ele esbarra naquelas passagens rapidíssimas, mas é
maravilhoso! É delicioso! Ele é um dos melhores intérpretes de Scarlatti: é a poiésis de
Horowitz. Os pianistas precisam levar para o palco o que de anti-pianistas eles têm, o que
odeiam no piano, na carreira. O ódio tem que estar incorporado, o anti-piano, a anti-música.
Quando Horowitz esbarra, é a anti-música. A cultura nasce quando você desafia um deus.
Prometeu pega o fogo e traz para os Homens. Temos que entender isso, enfiar isso na cabeça
de uma vez. O ser humano não está mais suportando a impessoalidade, por isso as pessoas
estão indo menos a concertos. O sujeito cria uma persona de pianista de satisfaz àquilo.
Aquilo desaba. Você tem alguma dúvida que o Glenn Gould era fanático por Bach? Ninguém
tem dúvida. Até cantarolar as linhas ele cantarolava, beirava a loucura. É maravilhoso! Aí,
alguém diz: „Eu quero ser o Glenn Gould!‟ Seja outra coisa, essa você nunca vai ser. Faça um
favor para todos nós: principalmente, não seja! Não tente ser o Glenn Gould, é anti-natural.
Não existem duas árvores iguais na natureza, não existem dois cipestres iguais.”
MÚSICA CÊNICA
ROTULAÇÕES
261
“A minha ideia é caminhar para a ópera. Descobri dentro de mim que a música é
teatral. Mas vamos deixar isso muito claro: é difícil justamente por causa dessa ponte, dessa
transição em que a gente está vivendo. A gente pensa muito dicotomicamente: yin e yang. Eu
também: é positivo ou negativo. Ou é tradição, ou é ruptura. Ou você está fazendo a ópera
tradicional ou está fazendo a trans-ópera, a música-vídeo, o novo teatro musical... a gente está
sempre querendo rotular. É época de rotulações. É época de experimentação, mas
experimentação poética, não apenas técnica. A gente tem que começar a apostar nisso, a
acreditar visceralmente nisso. O meu caminho me leva para a ópera.”
O ESPÍRITO DA QOISA
“O espírito da qoisa previa imagens e movimentação cênica [na estreia]. Se
forçássemos, ia sair uma coisa muito grotesca. Nós precisaríamos de uma equipe maior e de
mais tempo para mais ensaios. As imagens seriam documentos da Revolução Francesa
fundidos a pores-de-sol. Precisariamos também de mais equipamentos. As ideias estão
anotadas na partitura original. O que fizemos foi uma versão. Precisaríamos de mais ensaios
para fazer soar de maneira orgânica, inteiriça, para que as pessoas não olhassem e pensassem:
„Olha, está aparecendo um vídeo!‟. O ideal é que não haja tempo para que elas pensem. Elas
devem ser invadidas pela coisa.”
OS INTÉRPRETES
“O compositor vive totalmente através do intérprete. Essa proximidade, até intelectiva,
de você perguntar e entender mesmo a figura do compositor é fundamental porque o
compositor não é só uma partitura, é uma pessoa também. Ainda. Eu acho importante essa
questão de ver o lado humano, apesar de alguns acharem que o autor já morreu faz tempo. Eu
tive oportunidade de me associar a intérpretes acessíveis para fazer música, experimentar,
trocar ideias. Esse contato sempre foi satisfatório. A resposta do outro, o que outro fazia,
imediatamente depois que eu escrevia, alterava [o processo composicional]. Tem uma foto
minha [aponta para a fotografia na parede da sala do apartamento] com amigos do Curso de
Composição. O que está à esquerda é o Alê Siqueira, que hoje é um compositor conhecido, da
Marisa Monte. Eu sempre interagia facilmente. Isso era comum na [Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), nós éramos muito próximos dos intérpretes,
havia esse ambiente. Dentro da estética da Música Popular tem a cifra e a melodia. As coisas
262
que eu queria escritas, eu escrevia para piano ou para cravo, ou para dois pianos. Algumas
coisas estão gravadas em CD. Nesse CD, uma das canções, que é um samba, foi gravada pelo
pianista Rodrigo Zaidan. O piano, nessa canção, foi concebido junto com ele, que é
compositor aqui do Rio, amigo meu, parceiro meu. Eu pensei nele porque ele tem uma forma
de tocar piano que é uma espécie de transposição da ideia do João Bosco, do violão muito
ritmado com muitas conduções de baixo. Ele tem uma mão esquerda muito marcada para o
baixo e uma mão direita muito quebrada, que não é comum a gente ouvir no piano. O piano
do Jobim, por exemplo, é espaçado enquanto a bateria e o baixo exercem cada um a sua
função. Eu tenho a felicidade de ter contato com intérpretes que atuam tanto na Música
Popular quanto na Música Erudita. Nos últimos dez anos tem sido mais comum encontrar
intérpretes com conhecimento de vários estilos.”
O PÚBLICO
“Os intérpretes nada esperam do público, nem pensam nele. Eles aprenderam que se
bastam: querem o aplauso, querem um nome. Essa idolatria aos intérpretes que vem, em parte,
do Romantismo, vive até hoje. Os intérpretes nem tomam conhecimento sobre a plateia, se é
especializada ou não: „Coitados dos que não aprenderam sobre acordes, que não sabem o que
é forma sonata e não sabem o que é uma série dodecafônica! Eu sei. Pobrezinhos!‟ Até
mesmo os sujeitos que se dizem trans-vanguarda são muito mais Românticos do que o próprio
Berlioz, do que o próprio Liszt. Berlioz, quando escreveu um réquiem, queria que todo mundo
que entrasse na igreja fosse tocado e é um compositor tido como o hiper-romântico do
Romantismo francês. Ultra-romântico, mas ele estava preocupado com o público. Isso me fez
voltar para a Música Popular: uma possibilidade de fazer poesia e música para o público
entender. Mas uma coisa que me assustou muito foi observar compositores populares fazendo
música pseudo-erudita: uma música com uma letra que ninguém entende, uma música que
ninguém entende. Tem que haver um grau de permeabilidade com relação ao público! „Ah, eu
faço para o futuro‟. „Será que o futuro, de fato vai entender o que você faz?‟ Onde está o selo
de validade e de eternidade na obra? Não existe isso! Eu sei que grande parte do que eu
escrevo também não é entendido. Qualquer um que lida com linguagem – porque eu lido com
linguagem – e experimenta vai ter um grau de incompreensão, mas a incompreensão absoluta
se deve àquele que aposta apenas em afiar a sua faca e fica eternamente afiando a faca – a
tecnologia. Tem uma hora em que a faca tem que entrar em alguém ou cortar uma fruta. Essa
é a questão da tecnologia: pegar a faca e dizer „Olha o gume!‟ Vamos lá! Vamos usar a faca!
263
Matar alguém! É a música eletrônica, eletroacústica, espectral! É o apogeu disso! Tem que
tentar extrair uma poiésis disso. Isso tem que significar alguma coisa para alguém além do
compositor e do técnico, isso tem que acontecer. O Berio fez isso. A sinfonia do Berio é isso:
tem trechos da melodia que são francamente populares. A sinfonia do Berio é pop, é popular.
Os artistas não estarão servindo ao público executando sempre um repertório que está nos
CDs e DVDs já existentes. Isso não é o suficiente. Eles têm que servir ao público, servir a
Deus, servir a alguém, servir à estética, servir a alguma coisa. Não façamos a nossa música
para ela virar uma tese acadêmica, para sermos laureados com os louros do cadáver. A arte
não é isso, nunca foi isso! Isso não grassa só na Música Erudita, grassa também na Música
Popular. Lá em São Paulo, que é o ápice disso, há cantoras extremamente afinadas, que têm
um 440 no ouvido o tempo todo, até no chuveiro são afinadíssimas, mas são incapazes de
escolher um bom repertório. Os CDs delas são insuportáveis. Elas não conseguem se ver, elas
vêem apenas a cantora em cada uma. Isso se chama persona. Jung viu isso muito bem: ele e
todos os psicanalistas, mas o Jung fala isso de forma mais clara. O self é o todo. Uma das
manifestações do self é a persona. Uma das aflições do Homem moderno é que ele se refugia
na persona. Se o sujeito é médico, para ele ficar em paz com ele mesmo, ele tem que ser
médico 24 horas por dia. Então, ele vai a um churrasco como doutor, fala com a esposa e com
o filho como doutor. Chega uma hora em que ele rui porque ele é mais do que um médico.
„Eu sou músico‟: está rejeitando 99 por cento do que é. O público está ficando cada vez
menor. O homem comum pode não ter toda essa elocubração que eu estou tendo aqui mas ele
sente isso. Ele sente, ele sabe disso. Ele vai ver o sujeito tocando piano e pensa: „Agora, são
as Bagatelas de Schoenberg; agora, dois Noturnos de Chopin‟. O celular está no modo
silencioso e ele vai ficar esperando a garota que ele conheceu na véspera ligar para ele. O que
será mais interessante? O homem frio, gelado, ou a garota? Mesmo para mim, que sou
músico, a garota é mais interessante. Aquele Noturno eu já ouvi mil vezes. Eu estou falando
do homem Luciano, do self e não da persona músico. Aí está a malícia de Jung: você pode ser
compositor o tempo todo, mas na hora em que uma coisa chamada desejo, chamada Eros
bater, é o Eros, o desejo é o que vai falar mais alto. Wagner sabia disso quando ele compunha.
Mozart sabia disso quando ele compunha. Muitas coisas podem ser feitas com relação ao
afastamento entre público e música de concerto. Quando eu regia uma Orquestra Jovem, a
gente fez um repertório que tinha de tudo: século XVII, Música Renascentista, Música
Medieval, Mozart, Romantismo e Webern, as Bagatelas. A gente ensaiou, era difícil de reger.
No início, os próprios músicos estranharam, mas foram se aproximando da música: „Será que
vai funcionar? O público não vai gostar disso!‟ „Vocês já estão gostando, o público pode
264
gostar‟. Tocamos. Estrategicamente eu deixei o Webern por último. Virei para o público: „O
que nós vamos ouvir é uma peça de um compositor da chamada Segunda Escola de Viena. A
Primeira era Mozart, Haydn e Beethoven que pelo menos alguém aqui já ouviu o nome. Era
um Teatro de São Bernardo, o Elis Regina, ficava mais ou menos na periferia. Era um público
que, a priori, teoricamente não ia gostar. Mas não foi assim: „Olha, essa música é feita assim,
com o arco muito próximo ao cavalete. Por favor, violinista!‟ E o violinista tocou. „Ele usa
muito o pizzicato,que é o beliscar das cordas. Por favor, cello!‟ Plum, plum, plum. „Ele usa
também cordas duplas e uma coisa que a gente chama de trítono, que soa muito dissonante.
Escutem essa música como se fosse uma árvore de Natal em que as luzes piscam porque ele
usa uma coisa que não dá para a gente ouvir, que é o silêncio. Tentem fazer isso fluir na
cabeça de vocês como se fosse uma música que vocês ouviram há muito tempo. Tocamos três
vezes. Fomos aplaudidos de pé. Os músicos ficaram assustados com a euforia. Na primeira
vez, você ainda escutava as cadeiras balançando, as pessoas tossindo. Na terceira vez, o
silêncio era absoluto. Ninguém se mexia! Na hora do bis, perguntei à plateia: „O que vocês
querem de bis?‟ Eles gritaram: „Webern, Webern, Webern!‟ Os músicos ficaram assustados,
olhando para mim. Quando você faz o cadáver andar... Você nunca sabe o que o público vai
gostar, as referências culturais do público são inapreensíveis, ou melhor, é melhor você gostar
do que está tocando: é o Horowitz tocando Scarlatti, ele se diverte! Quem não se entusiasma
com o entusiasmo do outro? É uma questão simples de catarsis, identificação, é Aristóteles, é
muito simples, é você abrir o seu mundo. Que época terrível é a nossa em que os artistas não
abrem o seu mundo para o público! A arte está dirigida para a persona do próprio artista.”
265
APÊNDICE G – Maria Teresa Madeira: intérprete de música e cena
ENTREVISTA COM A PIANISTA MARIA TERESA MADEIRA, NA SALA
CHIQUINHA GONZAGA (UNIRIO), EM 11 DE JULHO DE 2012.
“A minha formação como pianista foi tradicional. Eu sou do subúrbio, sou de Nova
Iguaçu. A minha mãe teve uma escola de música lá durante quase cinqüenta anos. Eu nasci ali
dentro, apesar de ela nunca ter me dado aula... Eu sempre tive outra professora na escola... era
basicamente piano, o que tinha. Teve um tempo que tinha um pouco de flauta doce. Naquela
época, era mais difícil se ter instrumentos de flauta e sopro. Então, tinha, basicamente, violão
e piano. Eu comecei a tocar, fazer aula. Também tinha aula de dança. Estudei clássico, dança
flamenca, dança afro. Fiz ballet durante mais de vinte anos. Eu dei aula de dança, me
sindicalizei como bailarina profissional. Estudei em Nova Iorque, fui fazer curso de férias lá.
Eu dancei muito: o piano, sempre paralelo. Eu entrei para a faculdade cedo, com dezessete
anos. Continuei fazendo dança e depois eu fui parando, mas o ballet foi sempre para mim um
meio muito importante, até como válvula de escape para soltar a energia de um outro jeito. Eu
gostava muito, eu freqüentava muito ballet, eu fiz vários cursos aqui com várias pessoas
importantes. Foi uma formação muito sólida. Fisicamente eu não tive, nunca, problema como
os músicos têm, graças a esse treinamento, que é muito rígido. A gente tem a questão da
postura. Isso dá uma soltura – conviver no meio artístico. Eu fiz umas oficinas de teatro
quando adolescente. Eu sempre gostei da questão da música contemporânea e convivia, na
Escola de Música, com alguns compositores da época. Eu tinha muita curiosidade de ver o
que estava sendo feito e fiquei sabendo: o Tim [Rescala] começou a aparecer com o trabalho
dele de teatro. Eu o procurei. Isso deve ter quase trinta anos. Eu falei: „Eu tinha muita vontade
de tocar alguma coisa erudita, mas que tivesse humor, que fosse uma coisa diferente‟. Eu já
tinha ouvido algumas coisas: aquela peça do Cage, do silêncio, e outras coisas cênicas. Mas
eu tinha vontade de fazer alguma coisa com a qual eu me identificasse. E aí o Tim [Rescala]
escreveu o Estudo para piano e dedicou para mim. Isso, nos anos [19]80. Ele faz uma citação
daquele primeiro Estudo de Cramer e depois há uma conversa da personagem com o piano.
Ela gosta de tocar, mas às vezes dá [nela] uma angústia. A partir dali, ele escreveu quando ele
começou a chamar essa maneira de escrever como música da fala porque a gente fala e toca
ao mesmo tempo: fez a Orquestra dos Sonhos, fez A Dois, que é para dois percussionistas, o
Romance Policial.
266
Em 2000, a Prefeitura do Rio encomendou obras de vários compositores. O Tim
[Rescala] resolveu escrever o Noturno Depois do Vinho e eu o estreei, na Sala Cecília
Meireles. Ele o escreveu com outra característica: não teria a fala, só a cena, o que foi um
desdobramento... outra faceta dele como compositor... o que eu não tinha feito ainda. Eu tinha
feito coisas dele com cena, mas com fala, o que ajudou muito. De repente, o Noturno Depois
do Vinho era uma peça que não tinha fala, era a cena com a música, o que já foi outra
dificuldade. A diferença é que com a fala você tem que, obviamente, trabalhar a métrica junto
da música para não ficar uma coisa artificial, outro tipo de trabalho. Mas quando tira a
palavra, você tem que se fazer entender... com o agravante de que a pianista toca de lado para
o público. Eu tinha que usar o corpo, certos códigos que você vão sendo apresentandos ao
longo da música, que ajudam quem está vendo a identificar o que eu estou tocando a fazer
uma ligação porque o humor [da peça] está nisso: são códigos que você identifica e vai
repetindo. O que ele faz? Ele pega quatro Noturnos de Chopin, faz citações. Como a
personagem está bêbada, ela se confunde nas partituras. Ela pega aquele bolo de partituras e
tem uma música contemporânea escrita no meio daquela música tradicional, mas são pedaços.
Ela confunde tudo. Eu me lembro do Tim [Rescala] me dirigindo para a estreia. Várias vezes
nos encontramos e ele falava assim: „Ela tem que ter classe. Ela está bêbada, mas ela tem que
ter classe‟. Foi difícil achar o meio termo para não ficar vulgar. Afinal, é uma pianista erudita.
Foi um trabalho juntar isso tudo e ter concentração porque você ouve as pessoas rindo e você
não pode rir, senão quebra. É uma peça difícil. O resultado sonoro é bem árido. São delírios.
A cena é fundamental porque ajuda quem está assistindo a decodificar quando é um delírio
dela e quando ela está lendo. Nisso o Tim [Rescala] me ajudou muito. Ele me dirigiu na
entrada... tanto no teatro quanto no DVD: sempre com a orientação dele porque ele é uma
pessoa de teatro e, como é muito bom músico, ele tem uma visão muito boa do todo, do que
está acontecendo. Eu interfiro – até foi questão de uma discussão entre nós. Como eu não sou
atriz, eu não tenho técnica, eu não tenho formação de teatro – para mim é mais fácil arriscar.
Então, eu dizia: „Tim, eu posso fazer assim?‟ Quando a pessoa tem uma cultura muito forte
ela tem até um certo medo de arriscar determinadas coisas. Como eu não tenho, nenhuma,
então, eu falava: „E aqui?‟ Ele falava: „Faz!‟ E algumas coisas eu fui incorporando. O Tim
[Rescala], da forma que ele dirige, ele acaba fazendo acontecer a espontaneidade e como eu
não sou uma pessoa presa... Com os músicos que ele trabalha, ele sabe que consegue isso. A
formação do músico muitas vezes não dá muito espaço para ele se conhecer fisicamente.
Quando você desenvolve qualquer trabalho físico de expressão corporal, com qualquer
pessoa, tem que ter um cuidado para saber o que é que ela fez antes, se ela tem alguma
267
vivência. Vemos isso com os alunos. Uns respondem muito mais rápido do que outros. Uns
não têm uma autoconsciência muito clara: até para saber que está melhorando, que está
acertando, que está se encontrando, que está resolvendo determinadas coisas, demora mais um
pouco do que os outros. Isso é um tiro no escuro. Muitas vezes não têm coragem de se jogar.
Isso vai ser de cada um. Se houvesse uma interação maior de outras artes com a música na
formação do músico... Mas, além disso, cada pessoa tem que ter uma disposição interna para
fazer isso. Isso é o mais importante. Ela tem que se despir de determinados preconceitos. Eu
tinha feito a estreia da peça na Sala Cecília Meireles e estava, um dia, na entrada, esperando
para assistir a um concerto. Tinha um senhor conversando com um amigo meu. Ele falou:
„Você que é fulana? Prazer! Eu te vi tocando aquela música. Sinceramente, eu acho que você
não tem necessidade disso. Você fez muito bem, mas...‟ Eu falei com ele: „Eu me sinto como
se fosse... sabe essas modelos que desfilam na passarela? Se você é um intérprete, você está a
favor, você está prestando um serviço: o da sua interpretação‟. Na verdade, essa música,
particularmente, eu adoro fazer. Tem um lado ali que eu consigo botar para fora, que na
música tradicional eu não consigo. Para mim, é um deleite. É difícil, mas eu gosto muito, eu
usufruo daquilo, cada pedacinho. Existem certas coisas que você toca que talvez não seja a
música ideal do seu repertório, que você gosta. Eu me sinto sempre como se fosse um meio. O
intérprete é isso: aquelas modelos que desfilam na passarela e muitas vezes não vão comprar
aquela roupa. Elas desfilam apresentando a roupa como o assunto principal. O pianista tem
que ter o cuidado de não se sentir o centro sempre. É um instrumento diferente de um violino
ou de uma flauta que você está sempre procurando um parceiro para fazer as suas sonatas. O
piano é um instrumento muito solitário. Por outro lado, é um instrumento com muitas
possibilidades. Essa maneira de olhar o instrumento como solitário acaba com que você vá
[apenas] aos concertos de piano e ouça [apenas] piano. Até para sermos criativos na nossa
interpretação como pianistas solistas, temos que ouvir outros timbres, imitar outras coisas.
Isso é cultura geral, isso é a vida. Os pianistas devem assistir a concertos de outros
instrumentos, outras formações. Se eles puderem assistir um pouco de teatro, melhor ainda.
Se eles puderem ver dança, outras manifestações... Ouvir só não adianta: tem que olhar,
assistir. Até para depois dizer que não gostou. A gente tem aqui no Rio muitos compositores
vivos fazendo muita coisa. Tentar se aproximar um pouco do que eles estão fazendo, do que
eles estão vivendo, dessas mudanças todas... A Bienal de Música Contemporânea vai
apresentar [apenas] uma música daquele compositor, que às vezes não é nada diante da obra
inteira. Eu sou cria da Bienal. Eu toco na Bienal de Música Contemporânea desde 1983. Já
estou veterana. Assistir, prestar atenção no trabalho dos compositores que estão mais
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próximos para não ficar preso a conceitos... os conceitos são mutantes. O que é o novo? O que
foi feito antes já é velho? Como assim? Ver as coisas, procurar se informar ao invés de ter já
um conceito sobre aquilo e querer encaixar o que você acha naquilo. Deixar aquele novo
apresentar alguma coisa. Temos que ser generosos. Sem generosidade, não dá para viver: com
o colega, com o que ele faz, com o que acontece. Você tem que ter generosidade porque se
não as pessoas não têm com você. Isso é uma mão dupla, uma troca. Vivemos de música ou
de qualquer manifestação artística: dependemos muito dessa troca. Mesmo que no final você
não concorde com essa linha de pensamento ou com aquela, tem que ter um diálogo, uma
conversa. Hoje em dia, vivemos num mundo em que não é possível a desculpa de que não se
sabe o que está acontecendo. Tem coisa demais acontecendo, mas a gente tem mais
possibilidades de saber o que está acontecendo.”