UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA
PROGRAMA DE PS GRADUAO EM FILOSOFIA
POSFIL - UFU
JOS DONIZETT DE ALMEIDA JNIOR
DA POTICA FILOSOFIA: O HERI TRGICO EM PROMETEU E SEU ASPECTO
HISTRICO NA FUNDAMENTAO DA VIRTUDE NO DILOGO PROTGORAS DE
PLATO
UBERLNDIA MG
2017
JOS DONIZETT DE ALMEIDA JNIOR
DA POTICA FILOSOFIA: O HERI TRGICO EM PROMETEU E SEU ASPECTO
HISTRICO NA FUNDAMENTAO DA VIRTUDE NO DILOGO PROTGORAS DE
PLATO
Dissertao apresentada ao Instituto de Filosofia da
Universidade Federal de Uberlndia MG, ao programa de ps
graduao stricto sensu (POSFIL), como requisito para a
obteno do ttulo de Mestre em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Dennys Garcia Xavier
UBERLNDIA MG
2017
AGRADECIMENTOS
Eu agradeo primeiramente aos meus pais, Jos Donizett de Almeida
e Eleida Maria
Vilela, pelo o apoio e dedicao em todos esses anos,
principalmente pelas dificuldades que
tivemos de enfrentar, a fim de uma conquista maior, esta que
seria a minha formao
acadmica. Agradeo aos meus amigos Bruno, Rodrigo e Sandra pelos
conselhos e
dedicao. Sou imensamente feliz por ter o apoio da minha esposa,
Gabriela, e a sua famlia,
do qual devo todo o meu respeito e gratido. Agradeo tambm a
todos os professores pelos
ensinamentos, dos quais eu vou levar comigo por toda a vida. Por
fim, claro, no posso
deixar de agradecer ao professor Dennys Garcia, que foi sempre
atencioso e disposto a
esclarecer as mais diversas obscuridades do meu pensamento.
Gostaria de exaltar tambm a
importncia do departamento de filosofia da UFU que foi sempre
presente e compreensivo s
minhas dificuldades de deslocamento e tempo, alm do professor
Sertrio que foi bastante
atencioso quando eu mais precisei.
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo apresentar o mito de Prometeu
como circunstncia
fundamental para o incio da discusso base de todo o dilogo na
obra Protgoras. Esse
trabalho consiste de uma pesquisa bibliogrfica, no qual
utilizaremos a concepo de Paideia
relacionado ao mito de Prometeu com nfase na obra Protgoras de
Plato, a partir do
entendimento do autor Wenner Jeager. Dividimos o trabalho em trs
captulos que possuem
uma construo gradativa, caracterizando entre eles a noo de aret
virtude; desde a sua
concepo cosmognica at a sua fundamentao nos dilogos Socrticos,
no qual possvel
percebermos a dialtica e a sofstica que se misturam compondo
todo o cenrio do
pensamento da poca. Nossa primeira inteno no uma abordagem
tcnica em relao aos
temas essenciais da filosofia antiga, mas sim uma introduo na
qual, no primeiro momento,
conduziremos o leitor ao surgimento do perodo tico at o
helenismo, perpassando pelos
tragedigrafos que enalteciam a imagem do heri como Prometeu,
expresso pela
manifestao do teatro grego que representava o instrumento da
Paidia na Grcia Antiga.
Em seguida, direcionamos o estudo para a compreenso do mito de
Prometeu citado por
Protgoras no dilogo homnimo. Aps a apresentao e anlise da obra
Prometeu
Acorrentado, uma das peas mais importantes escrita por squilo,
temos, na parte final deste
trabalho, a conduo do dilogo de Protgoras e Scrates, descrito
por Plato. Nesta parte
final, buscamos esclarecer a relao de Prometeu e a aret, como
tentativa sofstica de utilizar
o mito [digresso do discurso] em favor dos argumentos acerca da
natureza da virtude, que
ser tema de discusso no decorrer de toda obra, na qual ambos os
dialogantes mudariam de
posio devido a forma acidentada dos argumentos apresentados na
maior parte do texto.
PALAVRAS-CHAVE: Aret; Prometeu; Plato; Protgoras; heri;
tragdia
ABSTRACT
This work aims to present the myth of Prometheus as a
fundamental
circumstance for the beginning of the main discussion of all the
dialogue in the
Protagoras work. This work consists of a bibliographical
research, in which we will use
the conception of Paideia related to the myth of Prometheus with
emphasis in the work
Protagoras of Plato. We divide the work into three chapters that
have a gradual
construction, characterizing between them the notion of areta -
virtue; from its
cosmogonic conception to its foundation in the Socrates
dialogues, in which it is
possible to perceive the dialectics and the sophistry that are
mixed, composing the
whole scene of the thought of the time. Our first intention is
not a technical approach in
relation to the essential themes of ancient philosophy, but
rather, an introduction in
which, in the first moment, we will lead the reader to the
appearance of the attic period
until Hellenism, passing through tragediographers that exalted
the image of the hero -
like Prometheus, expressed by the manifestation of the Greek
theater that represented
the instrument of Paideia in Ancient Greece. Next, we direct the
study to the
understanding of the myth of Prometheus quoted by Protagoras in
the homonymous
dialogue. After the presentation and analysis of the work
Prometheus Bound, one of the
most important pieces written by Aeschylus, we have in the final
part of this work the
conduction of the dialogue of Protagoras and Socrates described
by Plato. In this final
part, we seek to clarify the relationship between Prometheus and
aret, as a tempting
sophistry of using the myth [digression of discourse] in favor
of arguments about the
nature of virtue, which will be the subject of discussion in the
whole work, where both
dialogues would change positions due to the rough form of the
arguments presented in
most of the text.
Key Words: Aret; Prometheus; Plato; Protagoras; hero;
tragedy
SUMRIO
DEDICATRIA
......................................................................................................................03
AGRADECIMENTOS
............................................................................................................04
RESUMO
.................................................................................................................................05
ABSTRACT
.............................................................................................................................06
SUMRIO
...............................................................................................................................07
INTRODUO
.......................................................................................................................08
1. CAPTULO: O heri: A importncia do perodo arcaico na perpetuao
dos mitos e
das divindandes no desenvolvimento do esprito
tico................................................13
1.1 A Gnese da
teogonia.............................................................................................13
1.2 O Surgimento do mito de Prometeu, o heri trgico
.............................................20
1.3.1 Paideia: as tragdias e sua importncia na construo do
pensamento
greco-romano
.........................................................................................25
1.3.2 As tragdias e os trgicos
.......................................................................26
1.3.3 O teatro
Grego.........................................................................................31
2. CAPTULO: O Prometeu de
squilo...........................................................................37
2.1 A tormenta de Prometeu
........................................................................................38
2.2 Prometeu liberto em conscincia
...........................................................................43
2.3 O Prometeu Moderno
............................................................................................48
2.4.1 O ato de Prometeu como condio necessria na construo do
argumento de Protgoras quanto s virtudes
..........................................51
2.4.2 O mito de Prometeu, os Sofistas e suas atribuies
...............................52
2.4.3 A virtude como cincia
..........................................................................59
3. CAPTULO: A natureza da virtude: uma anlise do processo de
construo do
conceito de aret no dilogo Protgoras
......................................................................63
3.1 A unidade das virtudes
..........................................................................................64
3.2 A Ode de Simnides e o discurso sofista na obra Protgoras
.............................71
3.3.1 A virtude cincia e o homem como a medida de todas as
coisas ..........78
3.3.2 Dos vcios e das
virtudes........................................................................79
3.3.3 Do relativismo sofista a dialtica socrtica
...........................................87
3.3.4 Do espanto como resultado do Logos
...................................................94
CONSIDERAES FINAIS
..................................................................................................98
REFERNCIAS
.....................................................................................................................100
8
INTRODUO
O dilogo Protgoras considerado um dos dilogos menores de Plato
em sua fase
socrtica. Nessa fase, Plato desenvolve uma srie de textos
narrando as discusses de
Scrates, seu mestre. A datao da obra Protgoras seria, Segundo
Werner Jaeger1, por volta
de 432 a.C, visto que no apresentado um relato da morte de
Scrates (399 a.C) no texto, e
por ser relacionada a segunda visita de Protgoras em Atenas.
Nesse caso, a obra estaria no
estgio que podemos considerar a fase da juventude de Plato,
quando o mesmo, em vrios
escritos, apresenta os dilogos socrticos, atentando s refutaes
de Scrates e as narrativas
acerca das muitas aes distintas creditadas ao mesmo. As
tetralogias que significa a
conexo de quatro importantes obras que descrevem uma ideia
central, faz parte da estrutura
bibliogrfica desenvolvida por Plato durante a atividade como
Filsofo; temos como
exemplo, os dilogos de Scrates em defesa do pensamento racional,
da moral e da poltica.
Como grande admirador e aluno, Plato, aps a morte de Scrates,
compe nove tetralogias,
dentre elas temos: Eutidemo, Protgoras, Grgias e Menon. Segundo
Plato: outrora na
minha juventude experimentei o que tantos jovens experimentaram.
Tinha o projeto de, no dia
em que pudesse dispor de mim prprio, imediatamente intervir na
poltica (1999, p. 5)2, e
assim o fez, o jovem Plato, Arstocles dos ombros largos,
desenvolveu seu prprio
pensamento em sua fase de amadurecimento, dispondo do
conhecimento adquirido atravs de
seus esforos, escrevendo uma das obras mais importantes de sua
biografia, A Repblica. Por
conseguinte, com relao s obras de Plato, segundo os autores
Reale e Antiseri, na obra
Histria da Filosofia (1990), seriam essas as tetralogias
existentes, no obedecendo,
evidentemente, a ordem cronolgica:
I: Eutfron, Apologia de Scrates, Crton, Fdon;
II: Crtilo, Teeteto, O Sofista, A Poltica;
III: Parmnides, Filebo, O Banquete, Fedro;
1 Utilizamos aqui uma citao indireta da obra Protgoras traduzida
por Eleazar Magalhes Teixeira, em sua
apresentao. Sendo assim: PLATO. Protgoras. Traduo e notas
Eleazar Magalhes Texeira. Fortaleza:
Edies UFC, 1986, p. 10. Na apresentao da obra, o autor das notas
e tradudor justifica algumas possveis
dataes e consideraes dos especialistas em Plato, porm, convm
afirmar que, assim como Eleazar
Magalhes, levaremos em considerao o ponto de vista de Jaeger,
citado por Eleazar: JAEGER, W. Paidia II:
os ideales de la cultura grega. Mxico - Buenos Aires: Cultura
Econmica, p. 112-115. 2 Cito aqui a passagem utilizada na seo Vida
e Obra da coleo Os pensadores. Assim: PLATO.
Dilogos. In: Fdon. Coleo: Os Pensadores. So Paulo: Editora Nova
Cultura, 1999. Nesta obra no est
contido o responsvel direto pela traduo e notas, mas uma lista
consideralvelmente extensa de especialistas em
Plato, tais como: Pierre-Maxime Schuhl, Koyr, Schaerer e David
Ross. Acreditamos que a principal referncia
e traduo utilizada para a composio dessa obra seria: PLATO. The
dialogues of Plato. Traduo Benjamim
Jowett. 4. ed. Oxford, 1953.
.
9
IV: Alcebades I, Alcebades II, Hiparco, Os Amantes;
V: Teages, Crmides, Laqus, Lsis;
VI: Eutidemo, Protgoras, Grgias, Menon;
VII: Hpias menor, Hpias maior, Ion, Menexemo;
VIII: Clitofonte, A Repblica, Timeu, Crtias;
IX: Minos, As leis, Epinome, Cartas. (REALE; ANTISERI, 1990,
p. 127)3
Devido a dificuldade de determinar uma ordem cronolgica das
obras de Plato, Reale
e Antiseri buscam organizar as obras pelos temas centrais
discutidos e apresentados. Dessa
forma, no seria possvel garantir com exatido a que fase de
produo literria podemos
definir tais obras, mas, pelo menos, podemos organiz-las a fim
de sistematizar os aspectos
estilsticos da literatura de Plato. Sendo assim (ibidem, 1990,
p. 128): os escritos de ltimo
perodo so, pela ordem, os seguintes: Teeteto, Parmnides, O
Sofista, A Poltica, Filebo,
Timeu4, Critias e As leis. E, assim, os autores definem como
produes em sua fase central:
(Ibidem, 1990, p. 128): [...] A Repblica, [...] que a precede
Fdon5, e o Banquete, e que a
segue Fedro. Podemos verificar tambm, segundo os autores, que a
transio da fase de
3 REALE, G. ANTISERI, D. Histria da filosofia: antiguidade e
idade mdia. 5. ed. So Paulo: Paulus, 1990. 4 A favor disso, vale
lembrar que, Na obra Timeu, de Plato, o personagem Timeu descreve o
mundo sensvel
como uma cpia imperfeita do mundo intelegvel, um reflexo do
mundo perfeito. Segundo a obra de Plato,
Demiurgo seria um Deus criador do nosso universo que, inspirado
pelo mundo das essncias, da verdade, da
condio imutvel, considerou construir algo que pudesse
assemelhar-se com o seu mundo. Timeu, 2011, p. 95
96, 28c 5 28b 3: Mas ainda quanto ao mundo, temos que apurar o
seguinte: aquele que o fabricou produziu-o
a partir de qual dos dois arqutipos: daquele que imutvel e
inaltervel ou do que devm. Ora, se o mundo
belo e o demiurgo bom, evidente que ps os olhos que eterno; se
fosse ao contrrio o que nem correcto
supor , teria posto os olhos no que devm. Portanto, evidente
para todos que ps os olhos no que eterno,
pois o mundo a mais bela das coisas devenientes e o demiurgo a
mais perfeita das causas. Deste modo, o que
deveio foi fabricado pelo demiurgo que ps os olhos no que
imutvel e apreensvel pela razo e pelo
pensamento. Assim sendo, de acordo com estes pressupostos,
absolutamente inevitvel que este mundo seja
uma imagem de algo. Conferir: PLATO. Timeu-Crtias. Trad. Rodolfo
Lopes. 1 ed. Coimbra: CECH, 2011. 5 No dilogo Fdon, no perodo mdio
(central), Plato, atravs do dilogo entre Cebes, Simias e
Scrates,
retoma a concepo apresentada no Mnon, (81c-d) acerca da
imortalidade da alma, como veremos na rplica de
Cebes aos argumentos de Scrates (PLATO, 1999, p.135): isso que
ests dizendo, Scrates, consequncia
necessria de outro princpio que te ouvi expor: que nosso
conhecimento somente recordao. Se este princpio
exato, temos de ter aprendido em outro tempo as coisas que nos
recordamos. Portanto, Cebes conclui: [...]
esta a mais uma prova de que nossa alma imortal (Ibidem, 1999,
p. 135).Nessa obra de Plato, temos a
retomada da discusso acerca da existncia de dois mundos
possveis, j descrito na obra Mnon; o mundo
sensvel e o mundo inteligvel, que seriam diferentes estgios do
caminho da alma em seu processo contnuo e
circular. No mundo inteligvel, segundo Plato, seria a contemplao
da verdade pura; ao passo que, no mundo
sensvel, a memria inteligvel seria contida pelos limites da
sensibilidade que desvirtuam as lembraas.
Admitamos, ento, que existem duas classes de realidade, uma
visvel e outra invisvel. (PLATO, 1999, p.
144). PLATO. Dilogos. In: Fdon. Coleo: os pensadores. So Paulo:
Editora Nova Cultura, 1999. Diante
dessa frase, Reale argumenta que: uma das passagens mais famosas
e mais grandiosas que Plato nos deixou
nos seus escritos , sem dvida, a passagem central do Fdon. Os
estudiosos o reconheceram desde muito,
destacando o fato de que ela constitui, na literatura europia, a
primeira descrio de uma histria espiritual
apresentada atravs das suas vrias fases, assim como a primeira
[...] afirmao clara da viso teleolgica e ideal.
De maneira ainda melhor, poder-se-ia dizer que ela constitui a
primeira explorao e demonstrao racionais da
existncia de uma realidade suprassensvel e transcedente. (REALE,
2007, p. 49) Conferir: REALE, G. Plato:
histria da filosofia grega e romana. Traduo de Henrique Cludio
de Lima Vaz; Marcelo Perine. So Paulo:
Edies Loyola, 2007. v. 3. Conferir tambm: PLATO. Dilogos. In:
Fdon. Coleo: Os Pensadores. So
Paulo: Editora Nova Cultura, 1999.
.
10
juventude para o amadurecimento de seu pensamento se d com as
seguintes obras (Ibidem,
1990, p. 128): Grgias, [...] Menon6, [...] e o Crtilo. Por fim,
os autores concluem que as
outras obras que no foram citadas seriam da primeira fase de
Plato - a fase da juventude,
sendo Protgoras o coroamento das obras consideradas to somente a
representao dos
dilogos socrticos, sem interveno de Plato com a sua prpria
filosofia.
A maioria dos outros dilogos, especialmente os breves,
constitui
certamente escritos de juventude , o que, de resto, se confirma
pela
temtica acentualmente socrtica que neles se discute. Alguns
desses
dilogos podem ter sido retocados e parcialmente refeitos na
idade
madura. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 128)
a partir desses escritos que nasce o pensamento socrtico, no
qual Plato est
intimamente ligado, visto que sua teoria se baseia,
principalmente, nas concepes de
Scrates, seu orientador - ao qual frequentava; alm de Herclito
de feso e Parmnides de
Eleia, Filsofos responsveis pela criao de duas escolas7
relevantes no pensamento
6 Nesta obra, Plato descreve que atravs da maiutica e da
experincia, a alma remonta o processo de
desdobramento na reconstruo dos conhecimentos em seu interior,
revelando a verdade no mago dos
indivduos. Tal condio pode ser melhor entendida se voltarmos aos
argumentos de Scrates no dilogo Mnon,
escrito relativamente antes de Fdon. Assim: Sendo ento a alma
imortal e tendo nascido muitas vezes, e tendo
visto tanto as coisas aqui quanto as no Hades, enfim todas as
coisas, no h o que no
tenha aprendido; de modo que no nada de admirar, tanto com
respeito virtude quanto ao demais, ser possvel
a ela rememorar aquelas coisas justamente que j antes conhecia.
Pois, sendo a natureza toda congre e tendo a
alma aprendido todas as coisas, nada impede que, tendo
rememorado uma s coisa fato esse
precisamente que os homens chamam aprendizado , essa pessoa
descubra todas as outras coisas, se for corajosa
e no se cansar de procurar. Pois, pelo visto, o procurar e o
aprender so , no seu total, uma rememorao. No
preciso ento convencer-se daquele argumento erstico; pois ele
nos tornaria preguiosos, e aos homens
indolentes que ele agradvel de ouvir, ao passo que este faz-nos
diligentes e inquisidores.
Confiando neste como sendo o verdadeiro, estou disposto a
procurar contigo o que a virtude (PLATO, 2001,
p 52 53, 81c 5 81e 1). nesta mesma obra que Plato apresenta o
famoso exemplo do escravo, que no
conhecendo os contedo ou regras geomtricas consegue express-las
facilmente atravs dos questionamentos
(Mtodo dialtico) feitos por Scrates na passagem (Mnon, 82b).
Plato demonstra logo, luz do exemplo
matemtico do episdio do escravo, que a aporia , precisamente, a
fonte do conhecimento e da compreenso
(JEAGER, 2013, p. 715). Sendo assim, o processo recorrente da
alma quanto sua condio de renovar-se e
relembra-se acontece atravs estmulos sensveis, tal como
conhecemos o conceito de anamnese. Plato concebe
a existncia de dois mundos, o suprassensvel e o sensvel.
Cincia-virtude para Plato seria resultado do
movimento contnuo da alma, entendido como um processo de
rememorao dos contedos essenciais
adquiridos no mundo inteligvel, a partir da passagem efmera no
mundo sensvel. A favor disso, conferir:
PLATO. Mnon. Traduo de Maura Iglsias. Rio de Janeiro: PUC-Rio
Loyola, 2001. Conferir tambm:
JAEGER, W. Paidia: a formao do homem grego. Traduo de Arthur M.
Parreira. So Paulo: Martins
Fontes, 2013. 7 Na escola Jnica estariam, segundo Reale e
Antiseri (1990, p. 29 - 38), os Filsofos responsveis por buscar
a
explicao da origem do universo atravs da physis (natureza). Os
Filsofos que poderamos classificar como
pertencentes a essa linha de pensamento so: Tales de Mileto,
Anaximandro de Mileto, Anaxmenes de Mileto e
Herclito de feso. Todos esses Filsofos esto inseridos em um
captulo II - Os primeiros Jnicos e a questo
do princpio de todas as coisas da obra Histria da Filosofia:
antiguidade e idade mdia, j citada
anteriormente. A escola Jnica se encontrava na cidade de Mileto,
na Jnia entre os sculos VI e V a.C. Tambm
no captulo II da mesma obra, os autores descreveram a importncia
do pensamento da escola Eleata, no qual a
preocupao fundamental seria a descoberta do Ser e sua
caracterstica ontolgica. Esto presentes nesse linha de
raciocnio os Filsofos: Xenfanes, Parmnides, Zeno e Melisso de
Samos. Situada na cidade de Eleia na
Grcia entre os sculos V e IV a.C.
11
filosfico. Plato seria ento responsvel por registrar os dilogos
de Scrates e evidenci-lo
como um dos Filsofos mais influentes do pensamento ocidental.
Mas, alm disso, Plato
utilizou-se do personagem Scrates em seus dilogos intermedirios
e do ltimo perodo,
apresentando algumas de suas concepes e demonstrando os
processos socrticos para a
elevao do esprito luz do conhecimento. No dilogo da
juventude/transio, Potgoras,
Plato termina a obra com um dilema; resultado do dilogo entre o
Sofista e o Filsofo que,
volta e meia, mudavam as prprias convices para determinar a
natureza da virtude.
Partimos ento para a seguinte indagao, seria a aret suscetvel de
ser aprendida? E com
base nesse questionamento que faremos uma anlise mais
direcionada quanto s
possibilidades de obteno da virtude na construo dos argumentos
no dilogo Protgoras e,
consequentemente, apresentaremos os dilogos para demonstrarmos
os processos dialticos
socrticos para alcanar a resposta no interior da alma no mundo
sensvel. Citamos as mais
importantes obras platnicas nas notas da Introduo deste trabalho
a fim de orientarmos o
leitor acerca do processo que levou o Filsofo a conceber a
posteriori conceitos como
reminiscncia e anamnese. Partindo desses conceitos, podemos
dialogar com o cerne da obra
Protgoras, possibilidade ou no de alcanarmos a aret e se ela
pode ser considerada uma
cincia.
Para isso, desenvolveremos o trabalho em trs captulos para
definir a essncia potica
presente nos escritos platnicos. Na primeira parte,
apresentaremos a gnese teognica para
conduzir o leitor, com breves consideraes, ao entendimento da
concepo do divino e do
cosmos, na percepo cosmognica. Faremos tambm, uma ponte em relao
ao surgimento
de Prometeu e a conduo herica em favor da humanidade, citado na
obra Protgoras. Alm
disso, ser comentado tambm a importncia do teatro como
instrumento para a formao dos
gregos, elevando o carter dos mesmos, manifestando e cultuando o
esprito tico presente
naquela poca. No prefcio da obra Teatro Grego, Mello e Souza8
descreve o milagre da
Grcia Antiga: a trplice beleza ideal da Arte, da Cincia e da
Liberdade, com que o gnio
grego, ento em plena e exuberante florescncia, dotou o patrimnio
cultural e cvico da
Humanidade (1950, p. 5). Sendo assim, na parte central da obra,
faremos uma breve anlise
da pea de squilo, que remontaria a caracterstica do trgico
fundamentando assim a
Paideia, instrumento pedaggico essencial da Grcia antiga. Na
terceira parte do trabalho,
dedicaremos a ateno obra Protgoras, partindo das consideraes
iniciais que sero
evidenciadas no segundo captulo, seguiremos para as digresses e
a aporia, presentes no
8 A favor disso, conferir: MELLO e SOUZA, J. B. Teatro Grego.
Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc. Editores, 1950. v. 22.
12
final da obra. Como nas palavras de Jeager, importante ressaltar
que Ao contrrio dos
dilogos anteriores, o Protgoras no se desenrola modestamente,
dentro de um crculo
acanhado, como na realidade se exercia a ao do Scrates histrico.
Com seu mestre, Plato
enfrenta [...] as grandes celebridades intelectuais do seu tempo
(JEAGER, 2013, p. 624).
Tais consideraes, protagonizada por Scrates, so fundamentais
para Plato conceber o
ideal humano da plis: a natureza humana e a sua relao com a
virtude poltica aret.
13
1. CAPTULO I: O HROI: A IMPORTNCIA DO PERODO
ARCAICO NA PERPETUAO DOS MITOS E DAS
DIVINDADES NO DESENVOLVIMENTO DO ESPRITO
TICO.
APRESENTAO
Nesse captulo, temos o intuito de apresentar a noo do Heri na
perpetuao dos
mitos, elevando o carter da Paidia presente nos mitos e poesias
picas que constituiam o
pensamento na Grcia antiga. Nesse primeiro momento,
demonstraremos, de forma breve, a
noo da Gnese cosmognica que representava os saberes do apogeu
grego, que
posteriormente foi expresso nas peas de teatro contemporneas
existencia de Scrates.
Segundo Jeager, no Prometeu agrilhoado e no Prometeu libertado,
no constituem s um
adorno potico, mas caracteriza ao mesmo tempo a oniscincia do
heri (2013, p. 299). Na
percepo de Eleazar, a partir de Homero, a virtude representa a
maior aspirao do heri:
ser homem de coragem, capaz de conquistar a glria atravs de bons
golpes de espada e de
certeiros arremessos de lana (PLATO, 1986, 17). Nessa medida,
essa seo que representa
a primeira parte do trabalho, se dedica compreenso de dois
importantes pontos: (1) A
Gnese da Teogonia; e (2) o surgimento do mito de Prometeu. Esses
dois pontos
correspondem, efetivamente, noo que o Heri surge das narrativas
histricas e passa a
expressar, tempos depois, espcime que referncia e modelo para o
cidados do perodo
helenstico. As aretai ou virtudes que a plis grega quase sempre
associa a essa palavra, a
bravura, a ponderao, a justia, a piedade, so excelncias da alma
[...] A virtude fsica e a
virtude espiritual no so, pela sua essncia csmica, mais do que a
simetria das partes
(JEAGER, 2013, p. 534 535). Para a melhor compreenso do conceito
de virtude socrtica,
descrita por Plato, importante conhecermos a manifestao
intelectual e cultural que
antecedeu essa nova perspectiva, construo da gnese desse
manifesto que revelou uma
forma diferente de conceber o mundo atravs de uma avaliao
racional dos modelos criados
pelos mitos.
1.1 A GNESE DA TEOGONIA
14
Considerados os mais importantes poetas picos e fundadores da
educao grega,
Homero9 e Hesodo10 passaram a registrar essas narrativas11
contadas de gerao em gerao;
com isso, escreveram obras relevantes quanto ao nascimento da
filosofia. Existe, na histria
da filosofia, uma ampla discusso quanto sua ruptura ou continuao
em relao
mitologia, e isso pode ser compreendido mais adequadamente como
uma transio entre o
pensamento mitolgico (cosmogonia) e o pensamento cosmolgico12.
Hesodo, mais
especificamente na obra Teogonia13, apresentou alguns aspectos
que podemos considerar
primordias para o nascimento da filosofia, ao questionar e
apresentar alguns relatos quanto ao
surgimento do nosso universo, isto , as causas das quais o nosso
universo surgiu. Mesmo
ainda sendo um relato fictcio, faz surgir a uma ntima relao com
a filosofia, ao tentar,
atravs de argumentos com fundamento espistemolgico, explicar a
origem do universo.
Temos, aqui, uma importante citao no qual podemos vizualizar um
trecho (116 138) da
poesia de Hesodo:
Sim, bem primeiro nasceu o Caos, depois tambm
Terra de amplo seio, de todos sede irresvalvel sempre,
Dos imortais que tm cabea do Olimpo nevado,
E Trtaro nevoento no fundo do cho de amplas vias
E Eros: o mais belo entre os deuses mortais,
Solta-membros dos deuses todos e dos homens todos
Ele doma no peito o esprito e a vontade.
Do caos rebos e Noite negra nasceram.
Da noite alis ter e Dia nasceram,
Gerou-os fecundada unida a rebos em amor. (HESODO, 116 138,
1995)
9 Homero foi considerado autor das obras Ilada e Odisseia.
Considerado um dos mais importantes poetas gregos
da grcia antiga, viveu entre 928 a.C a 898 a.C. Nas palavras de
Jeager, em sua obra Paideia: a formao do
homem grego, no captulo Homero como educador, o reconhecimento
de Homero fora tardio, e, por muitas
vezes, desconsiderado pelos que no reconhece a importncia de
suas poesias para a expresso cultural de uma
gerao, ao afirmar: por mais que esse utilitarismo repugne, com
razo, nosso sentido esttico, no deixa de ser
evidente que Homero, e com ele todos os grandes poetas da
Grecia, deve ser considerado, no como simples
objeto da histria formal da literatura, mas como o primeiro e
maior criador e modelador da humanidade grega.
(JAEGER, 2013, p. 61). Conferir: JAEGER, W. Paidia: a formao do
homem grego. Traduo de Arthur M.
Parreira. So Paulo: Martins Fontes, 2013.. 10 Hesodo tambm era
um poeta pico e foi responsvel por escrever poesias que tinham
relao direta com a
suas prpria dificuldades vivenciadas em seu tempo. Viveu durante
o sculo VII a.C. e foi autor de poesias como
Trabalhos e os Dias (Os trabalhos de Hrcules) e Teogonia, como
citado anteriormente. 11 Tais narrativas podem ser classificadas
como mitos, que so histrias contadas, registros orais, de
personagens
fictcios ou religiosos, transmitidos de forma hereditria atravs
da formao cultural dos gregos, envolvendo
seres sobrenaturais. 12 Cosmologia (entendida como a ordem da
razo) a explicao dos fenmenos naturais atravs de argumentos
racionais, isto , desvinculamos o aspecto fictcio e religioso
pertencente aos argumentos mitolgicos para a
compreenso das coisas atravs da Physis (natureza). 13 Seu ttulo
original: traduzido: Theogonia (theos = deus + gonia = nascimento),
um poema
escrito por Hesodo no sculo VIII a.C, com 1022 versos hexmetros
(, traduzidas como "poesias de
seis medidas"; uma transliterao e forma de medida potica
literria constitudas de seis ps mtricos por
verso).
https://pt.wikipedia.org/wiki/Hex%C3%A2metrohttps://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%A9_(poesia)
15
Aqui temos o conceito de Khos (Caos) que representa uma das noes
da gnese
conceptiva do universo atravs da cissiparidade. Para Torrano14,
Khos15 a potncia que
preside procriao por cissiparidade. Se a palavra Amor uma boa
traduo possvel para o
nome ros, para o nome Khos uma boa traduo possvel a palavra
Cissura ou (e seria o
mais adequado, se no fosse pedante): Cissor (1995, p. 44). A
definio mais exata do
conceito de cissiparidade pode ser mais compreendida, na
atualidade, como um processo de
mitose16 comentado mais frequentemente nos estudos em cincias da
natureza. O prprio
Torrano define essa noo como um bipartido dos seres originrios,
compreendido em suas
palavras da seguinte forma: os primeiros seres nascem todos por
cissiparidade: uma
divindade originria biparte-se, permanecendo ela prpria ao mesmo
tempo que dela surge
por esquizognese17 uma outra Divindade (Ibidem, p. 44). Por esse
processo de gnese
atravs da autogerao e diviso de si mesmo, o Khos pode ser
entendido ontologicamente
como o No-ser. Segundo Torrano, Tudo o que provm de Khos
pertence esfera do no-
ser; todos os seus filhos , netos e bisnetos (exceto ter e Dia)
so potncia tenebrosas, so
foras da negao da vida e da ordem (Ibidem, p.44). Podemos
arriscar dizer que a noo
ontolgica do Khos, segundo Torrano, pertence a concepo de no-ser
em Parmnides. O
Filsofo da escola Eleata afirma, em seu poema Da natureza, que a
identidade do Ser o
pensamento e, assim, determina que o Ser imutvel, isto , no
podemos reconhecer no Ser
as transformaes do mundo, as mutaes, a mobilidade; que pressupe
o no-ser (mundo
sensvel de Plato efmero e transitrio). Segundo Reale, o grande
princpio de
Parmnides, que o prprio princpio da verdade (o slido corao da
verdade robusta),
este: o ser e no pode no ser; o no ser e no pode ser de modo
algum (REALE;
ANTISERI, 1990, p. 50)18. Parmnides, na obra Da natureza,
determina o Ser em sua
14 Comentador e tradutor da obra Teogonia (1995), que ser
bastante citada no decorrer das sees. 15 Outra definio apresentada
por Torrano, seria que o Khos um bico de ave que se abre,
fendendo-se em dois
o que era um s (TORRANO, 1995, p. 44) 16 Na biologia, esse tipo
de concepo pode ser considerada como uma reproduo que ocorre sem a
conjugao
de material gentico. Existe um nico progenitor que se divide por
mitose. Os seres provenientes deste tipo
de reproduo so geneticamente iguais ao organismo que os originou
(a no ser que haja mutaes) e so
denominados clones. Conferir: Mitose, in: Dicionrio Priberam da
Lngua Portuguesa. Disponvel em:
. Acesso em: 20 de Janeiro de 2017. 17 No foi possvel encontrar
uma definio exata dessa palavra, mas partindo para a terminologia
da mesma,
dividindo-a em duas palavras (gnese) e (esquizo), pudemos
defin-la como a desagregao da origem de um ser,
conforme a anlise estrutural da prpria palavra. Conferir:
Esquizo e gnese ", in: Dicionrio Priberam da
Lngua Portuguesa. Disponvel em: . Acesso em: 20 de Janeiro
de
2017. 18 REALE, G. ANTISERI, D. Histria da filosofia:
antiguidade e idade mdia. 5. ed. So Paulo: Paulus, 1990.
https://www.priberam.pt/DLPO/etimologiahttps://www.priberam.pt/DLPO/etimologia
16
condio imutvel, incriado, imperecvel e sem fim, dizendo
(PARMNIDES, 2002, B8 1
B8 32)19:
S falta agora falar do caminho que . Sobre esse so muitos os
sinais
de que o ser ingnito e indestrutvel, pois compacto, inabalvel
e
sem fim; no foi nem ser, pois agora um todo homogneo, uno,
contnuo. Com efeito, que origem lhe investigarias? como e onde
se
acrescentaria? Nem do no-ser te deixarei falar, nem pensar: pois
no
dizvel, nem pensvel, visto que no . E que necessidade o
impeliria
a nascer, depois ou antes, comeando do nada? E assim,
necessrio
que seja de todo, ou no. Nem a fora da confiana consentir que
do
que no nasa algo ao p dele. Por isso nem nascer, nem
perecer,
permite a Justia, afrouxando as cadeias, mas sustm-nas: esta
a
deciso acerca disso ou no ; decidido est ento, como
necessidade, deixar uma das vias como impensvel e
inexprimvel
(pois no via verdadeira), enquanto a outra autntica. Como
poderia o que perecer? Como poderia gerar-se? Pois, se era, no
,
nem poderia vir a ser. E assim a gnese se extingue e da destruio
se
no fala. Nem divisvel, visto ser todo homogneo, nem num lado
mais, que o impea de ser contnuo, nem noutro menos, mas todo
cheio do que e por isso todo contnuo, pois o que com o que .
Alm disso, imvel nas cadeias dos potentes laos, sem princpio
nem fim, pois gnese e destruio foram afastadas para longe,
repelidas pela confiana verdadeira. O mesmo em si mesmo
permanece e por si mesmo repousa, e assim firme em si fica. Pois
a
potente Necessidade o tem nos limites dos laos que de todo o
lado o
cercam. Portanto, no justo que o que seja incompleto: pois
no
carente; ao que [no] , contudo, tudo lhe falta.20
Na percepo de Torrano, o resultado da origem do universo atravs
do Khos
corresponde o no-ser pelas [...] foras da deliberao, da penria,
da dor, do esquecimento,
do enfraquecimento, da aniquilao, da desordem, do tormento, do
engano, da desaparioe
da morte em suma, tudo o que tem a marca do No-ser21 (TORRANO,
1995, p.44). Ainda
seguindo a interpretao de Torrano, acerca da gnese do universo
expresso na obra
Teogonia, de Hesodo, importante ressaltar as trs linhagem
existentes, que compem
diferentes genealogias, num reflexo notvel da constituio do
universo atravs da formao
dos Deuses. No captulo Trs fases e trs linhagens, desenvolvida
por Torrano, estabelecido
uma composio csmica que no segue exatamente uma sucesso
cronolgica, ainda que,
nas palavras do estudioso, as trs fases conservem mltiplos
contatos entre si. No primeiro
19 PARMNIDES. Da natureza. Traduo de Jos Gabriel Trindade
Santos. 1. ed. So Paulo: Loyola, 2002. 20 Traduo alternativa,
conferir: REALE, G. ANTISERI, D. Histria da filosofia: antiguidade
e idade
mdia. 5. ed. So Paulo: Paulus, 1990, p. 53. 21 Segundo o
comentador Torrano, Dia e Noite so princpios ontolgicos, a
exprimirem imageticamente a
esfera do Ser e a do No-Ser. Esta oposio especular (rebos: ter:
Noite: Dia) subsumida no jogo
enantiolgico que a mundiviso exposta na Teogonia. Dia e noite,
Ser e no-Ser, guardam em si uma relao
ntimae profunda entre si: o Ser vige e configura-se segundo uma
estrutura configurada pelo No-ser, de tal
forma que o pensamento pensa o que o Ser no pode no pensar o
No-Ser (1995, p. 45).
17
momento, prximo a origem e formao do universo, temos a noo que
[...] prevalece a
fora fecundante do Cu, que, vido de amore com inesgotvel desejo
de cpula, frequenta
como macho a Terra de amplo anseio (Ibidem, 1995. p. 53). E
assim, origina-se os primeiros
deuses pelo resultado da cpula do Cu, que diante da Terra,
responsvel pela fecundao,
expele o lquido vital, assim: Cobrir a terra e fecund-la
hierogamicamente atravs da chuva-
smen; ser o assento dos Deuses dar-lhes origem e fundamento,
fundar-lhes a existncia
(Ibidem, 1995, p. 54). A segunda linhagem representa,
cronologicamente, eventos posteriores
quanto constituio e resoluo entre os Deuses. No sentido mais
amplo, destaca-se a
presena de Crono, filho de Urano, que destrona seu pai ao se
rebelar junto aos irmos e
orientados pela me (Gia). Os doze tits filhos de Urano conflagam
um plano e, Crono, seria
o responsvel por golpear Urano em seus orgos genitais enquanto o
mesmo copulava.
Segundo Vernant:
Terra concebe um plano particularmente engenhoso. Para
execut-lo,
fabrica dentro de si mesma um instrumento, um tipo de foice, a
hrpe,
em metal branco. Depois, coloca essa foice na mo do jovem
Crono.
Ele est no ventre da me, ali onde Urano se uniu a terra, e
fica
espreita, em emboscada. Quando Urano se deita sobre Gaia, ele
agarra
com a mo esquerda as partes sexuais do pai, segura-as firmemente
e,
com o faco que brande na mo direita, corta-as. Depois, sem se
virar,
para evitar a desgraa que seu gesto teria provocado, joga por
cima do
ombro o membro viril de Urano. Desse membro viril, cortado e
jogado
para trs, caem sobre a terra gotas de sangue, ao passo que o
prprio
sexo atirado mais longe, nas ondas do mar. No momento em que
castrado, Urano d um berro de dor e se afasta depressa de Gaia.
Vai
ento se instalar bem no alto do mundo, de onde no mais sair.
Como
Urano tinha o mesmo tamanho de Gaia, no h um s lote de terra
que
no encontre l em cima um pedao equivalente de cu. (2000, p.
22-
23)22
Pela sede de garantir o seu destino, Crono garante o domnio do
mundo espreita do
prenncio ameaador de Urano (cu). Como descrito na Teagonia, nos
trechos (459 465,
2000, p. 131), resumidamente, podemos aqui expressar: Pois soube
da Terra e do Cu
constelado, que lhe era destino por um filho ser submetido,
apesar de poderoso, por desgnos
do grande Zeus. Mas justamente pela forma que concebeu assegurar
o poder derrotado,
segundo Torrano: com essa arma e por esse limite que Crono
batido e derrotado: o ardil
concertado por Ria com Cu e Terra, as artes e violncia de Zeus.
(TORRANO, 1995, p.
56). O movimento que constitui a Titanomaquia representa a
guerra dos opostos,
22 VERNANT, J.P. O universo, os deuses, os homens. Traduo de
Rosa Freire de dAguiar. So Paulo:
Companhia das letras, 2000. A passagem da Ode de Hesodo,
Teogonia, na seo Histria do Cu e de Crono,
no trecho (154 210) possvel conferir o registro original desse
episdio. Conferir: HESODO. Teogonia: a
origem do universo. Traduo de Jaa Torrano. 3. ed. So Paulo:
Iluminuras, 1995, p. 113.
18
compreendida por Herclito, O obscuro, como era conhecido o
Filsofo da escola Jnica. O
mobilismo de Herclito apontava os argumentos na condio do Ser
(origem) como
continuamente mutvel; vale lembrar que Herclito foi predecessor
de Parmnides, e
podemos perceber como ambos concebia os diferentes momentos
quanto concepo do
universo e do Ser. Segundo Herclito, em seu dcimo Fragmento
Sobre a Natureza, afirma:
Correlaes: completo e incompleto, concorde e discorde, harmonia
e desarmonia23, e todas
as coisas, um, e de um, todas as coisas (MARCONDES, 2005, p. 7
15)24. E ainda, em um
de seus aforismo mais famosos, no fragmento doze, faz uma
metfora em relao
mutabilidade do Ser, dizendo: para os que entram nos mesmos
rios, correm outras e novas
guas. Mas tambm almas (psychal) so exaladas do mido (Ibidem,
2005, p. 7 15)25. De
forma mais geral, Torrano chega nessa relao da guerra dos
contrrio de Herclito e o
Ser resultado do movimento da gnese teognica afirmando:
Assim, o segundo momento da partilha csmica consiste no
movimento de uma guerra em que tudo tanto quanto a sorte das
duas foras que se combatem, est em jogo, e em que tudo, at
as Divindades Primordiais e Extremas, originadoras da
Totalidade
Csmica, se dissolve e se funde nessa nica oposio na qual se
opem essas duas foras que no so seno desempenho e empenho de
combater. O movimento dessa guerra funde e revolve tudo em
si
prprio e transmove tudo em sua prpria conflagrao. At o
princpio
ontolgico e cosmognico de ciso e de distino, o Caos,
traspassado, envolvido e contido no incndio divino (kama d
23 Nesse segundo momento, descrito por Torrano, possvel perceber
as caractersticas do pensamento de
Herclito no interior da obra de Hesodo, a concepo da guerra
entre os opostos que traz a harmonia e resulta
em vida e movimento, isto , o eterno devir. Na pgina 56, da obra
Teogonia (1995), Torrano afirma: A
Totalidade Csmica parece reingressar nas Origens donde proveio:
Cu e Terra parecem fundir-se desabando-se
um no outro, a chama prodigiosa rene tudo num nico sopro, e o
prprio Caosesse princpio cosmognico de
ciso e de diferenciao traspassado na fuso desse incndio (vv.
690-705). Devemos notar tambm a forte
influncia de Parmnides e Herclito para a constituio e definio
dos escritos de Scrates e Plato. Podemos
identificar que o Ser de Herclito, transitrio e mutvel, est
presente no mundo sensvel de Plato; por outro
lado, reconhecemos a concepo do Ser imutvel de Parmnides em
relao ao mundo inteligvel
(suprassensvel) de Plato. A distino entre dois planos do ser, o
sensvel e o inteligvel, superava
definitivamente a anttese entre Herclito e Parmnides. (REALE;
ANTISERI, 1990, p.137) Herclito, foi
fortemente refutado por Parmnides por considerar a essncia do
ser o Devir. Parmnides desconsidera a
possibilidade do Devir (guerra dos opostos) como essncia do Ser;
ao contrrio, Herclito afirma que tudo flui e
nada permanece, disto, fica evidente o antagonismo entre os
pressupostos ontolgicos de Herclito e Parmnides.
Reconhecer esse processo , antes de mais nada, estabelecer uma
sucesso dos estgios do Ser em sua dualidade,
visto que constitui a essncia do pensamento platnico a diviso
epistemolgica em dois mundos possveis23, ao
qual a alma banha-se no conhecimento da verdade pura no mundo
inteligvel que, naturalmente, se reduz doxa
ao retornar ao mundo sensvel. O inteligvel, exatamente enquanto
no pode ser captado pelos sentidos, que
apreendem somente o corpreo, mas apenas pela inteligncia, que
transcende a dimenso do fsico e do corpreo
, por sua prpria natureza, incorpreo (REALE, 2007, p. 66).
Conferir: REALE, G. Plato: histria da
filosofia grega e romana. Traduo de Henrique Cludio de Lima Vaz;
Marcelo Perine. So Paulo: Edies
Loyola, 2007. v. 3. 24MARCONDES, D. Textos bsicos de filosofia:
dos pr-socrticos a Wittgenstein. 4. ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2005. A favor disso, conferir: ARISTTELES. Do Mundo, 5.
396 b 7. 25 A favor disso, conferir tambm: ARIO DDIMO, in: EUSBIO,
Preparao Evanglica, XV, 20.
19
thespsion ktekhen khos, v. 700): tudo um s e vivo fogo que,
ao medirem-se, as foras antagnicas conflagram; e, nessa
Ekpyrosis
que a guerra, Zeus se mostra Rei, e seus inimigos se fazem
prisioneiros (Cf. Herclito, frags. 30 e 53 D.K.). (TORRANO,
1995,
p. 57)
No terceiro momento, nasce uma infinidade de seres mitolgicos
pela profcua
copulao26 advinda de deuses e tits. A ascenso de Zeus, atravs da
Titanomaquia, estrutura
o processo de hierarquizao entre os deuses e, a partir da, feito
a diviso das tarefas e
poderes entre seus irmos e todos os Deuses que foram importantes
na conquista do Olmpo.
Segundo Torrano, tendo completado e coroado a Grande-Partilha
das honras, o reinado de
Zeus a grande percepo que fixa cada Deus em seu mbito. Isto ,
que sobrev a diviso da
Opulncia do Ser nessa Grande Partilha dos privilgios de valor e
de poder que constitui o ser
de cada Deus (1995, p. 68)27. possvel conceber, no desfecho do
terceiro momento, um
preldio ao persongem principal desse trabalho, Prometeu; visto
que, aos inimigos de Zeus,
todos sero lanados ao Trtaro, ao infra-mundo ou ao alm mundo, os
inimigos vencidos e
agrilhoados significa, a rigor, exclu-los da atual fase do mundo
(TORRANO, 1995, p. 57).
importante conhecermos, mesmo brevemente, a constituio do mundo
e dos deuses a
gnese da genealogia, descrita pelas odes de potas como Hesodo e
Homero e perpetuada
pelas tragdia e cultura teatral anos mais tarde, fortalecendo
ainda mais o esprito tico e
atemporal dos gregos.
Ao analisarmos brevemente os processos aos quais os registros
escritos das poesias
picas possuem um contexto epistemolgico, evidenciamos os
principais colaboradores, no
caso, Homero e Hesodo. A partir disso, podemos assumir aqui a
importncia dos mitos na
construo da sociedade e na formao dos cidados; nas palavras de
Jaeger (JAEGER, 2013,
p. 21): A educao uma funo to natural e universal da comunidade
humana, que, pela
sua prpria evidncia, leva muito tempo para atingir a conscincia
daqueles que a recebem e
praticam, sendo, por isso, relativamente tardio o seu primeiro
vestgio na tradio literria.
Dessa forma, fica evidente o intervalo entre os primrdios da
tradio oral de transmisso de
conhecimento para a sua perpetuao nos escritos, mais
especificamente nos poemas picos.
Desse processo de construo da linguagem e pensamento fez nascer
a filosofia, no mbito
26 No caso de Zeus, segundo Torrano: casa-se com Mtis, a
oceanina; com Tmis, a uranida; com Eurnome, a
oceanina; com Demter, a cronida sua irm; com Memria, a uranida;
com Leto, neta de Cu e Terra; e com
outra irm sua, Hera; e assim constitui o seu reino. (TORRANO,
1995, p. 60) 27 HESODO. Teogonia: a origem do universo. Traduo de
Jaa Torrano. 3. ed. So Paulo: Iluminuras, 1995.
20
espistemolgico, visto que as possibilidades de expresso do
pensamento ali presentes so
essenciais no incio da construo e classificao dos objetos de
estudo da filosofia.
1.2 O SURGIMENTO DO MITO DE PROMETEU: O HERI TRGICO
No desenvolvimento da histria temos um constructo de ideias e
narrativas descritos
no mbito do aspecto herico na cultura grega. Assim, no perodo
arcaico, sculo VIII a.C, as
histrias que perpassavam atravs da transmisso oral foram
fundamentais para estabelecer o
desenvolvimento do esprito tico no perodo helenista, sculo V
a.C. Nesta seo, ser
desenvolvido a anlise de alguns escritos de Homero e Hesodo, a
fim de compararmos a
evoluo do pensamento e dos conceitos apresentados no interior
dos escritos entre os dois
perodos, tal como a concepo e nascimento das divindades e seu
papel nos textos, peas e
poesias, mais tarde manifestados pelos tragedigrafos28, potas,
Filsofos e sofistas. Alm
disso, faz-se necessrio buscarmos discutir o papel do heri e seu
aspecto fundamental na
diviso entre deuses e mortais29.
Ao voltarmos memria h tempos passados, mais especificamente no
sculo VIII
a.C, temos uma concepo diferente quanto ao aspecto epistemolgico
quele tempo. Na
poca, os mitos auxiliavam na formao cultural da grcia antiga.
Podemos dizer, com
clareza, que os mitos tambm foram essencias no processo de
educao do homem, e isto est
intimamente ligado ao nosso tema central: os heris, os mitos e
as divindades, quando
avaliamos a formao dos homens em tempos passados. Isso um
aspecto de grande
influncia quanto relao do homem da grcia antiga e os aspectos
dos personagens
hericos que seriam fundamentais no processo dialtico. Na obra
Mitologia Grega (1998), de
J. S. Brando, no primeiro captulo, Introduo aos Mitos dos Heris,
possvel compreender
uma srie de diferentes afirmaes acerca da gnese30 e estrutura
morfolgica dos heris,
28 Afinal, segundo Jaeger (2013, p. 291): a tragdia tica no
passaria de um fragmento dramatizado dos cantos
hericos, representado por um coro dos cidado de Atenas. Essa
obra ser bastante utilizada nesse trabalho,
portanto, reaparecer em trechos importantes no decorrer do texto
e, alm disso, ser parte fundamental da
segunda e terceira seo desse trabalho: JAEGER, W. Paidia: a
formao do homem grego. Traduo de
Arthur M. Parreira. So Paulo: Martins Fontes, 2013. 29 Em favor
disso, Mircea Eliade, citada na obra Mitologia Grega, de J. S.
Brando, remata o retrato do heri que
utilizando a frmula sumria, poderamos dizer que os heris gregos
compartilham uma modalidade existencial
sui genesis (sobre-humana, mas no divina) e atuam numa poca
primordial, precisamente aquela que
acompanha a cosmogonia e o triunfo de Zeus (BRANDRO, 1998, p.
19). BRANDO, J. S. Mitologia grega.
8. ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1998. 30 Quanto prpria
gnese do heri, diferentemente da manobra de Mircea Eliade e Angelo
Brelich, que
descrevem a estrutura do heri e sua importncia, Otto Ranck,
tambm utilizado J. S. Brandro, busca
determinar uma lenda padro do heri, afirmando que: o heri
descende de ancestrais famosos ou de pais da
mais alta nobreza: habitualmente filho de um rei. Seu nascimento
precedido por muitas dificuldades, tais
21
alm da validao etimolgica que o autor faz da palavra heri31. Na
discusso do captulo
temos o Filsofo italiano Angelo Brelich, fortemente citado pelo
autor, buscando determinar
as caractersticas do heri, dizendo: virtualmente, todo heri um
personagem, [...]
fundador de cidades e seu culto possui um carter cvico; o heri ,
alm do mais, [...]
representante prototpico de certas atividades humanas
fundamentais (BRANDO, 1998, p.
19). A postura dos homens, assim como a dos heris,
independentemente de suas condies
fsicas ou sociais, seriam determinadas pelo destino imputado
pelos deuses, sendo a tragdia e
a poesia pica o reflexo da realidade difcil no desenvolvimento
do homem e das suas
virtudes. Na imagem32 a seguir temos o tit Prometeu, o heri
trgico:
como a continncia ou a esterilidade prolongada, o coito secreto
dos pais, devido a proibio ou ameaa de um
Orculo, ou ainda por outros obstculos , como o castigo que pesa
sobre a famlia. 31 Etimologicamente, (hros) talvez se pudesse
aproximar do indo-europeu serv, da raiz ser-, de que
provm o avstico haurvaiti, ele guarda, e o latim servre,
conservar, defender, guardar, velar sobre, ser til,
donde heri seria o guardio, o defensor, o que nasceu para
servir. (BRANDRO, 1998, p. 15) 32 FUEGER, H. Prometeu com o fogo
divino. Neoclassicismo, 1817. Disponvel em: <
http://mitologiaefantasia.blogspot.com.br/2016/07/prometeu-pandora-e-criacao-da-humanidade_16.html>.
Acesso em: 23/06/2016.
http://mitologiaefantasia.blogspot.com.br/2016/07/prometeu-pandora-e-criacao-da-humanidade_16.html
22
Na obra Teogonia (1995), de Hesodo, o poema Histria de Prometeu
descreve a
origem do tit e de seus irmos, alm disso, nos apresenta o
primeiro momento do intercepto
entre Zeus e Prometeu que, com astcia, o heri trgico dos mortais
engana Zeus por dividir
um animal ao ocultar, atravs das entranhas, a carne e o coro33.
Persuadido, o deus do olimpo
escolhe os ossos e a brilhante gordura, presentiando os mortais
o sabor do alimento; restou a
Zeus apenas a fria, o rancor e a clera. A partir desse desfecho,
Zeus retira dos mortais a
possibilidade do conhecimento, o fogo inestimvel. Segundo o
poema: negou nos freixos a
fora do fogo infatigvel; aos homens mortais que sobre a terra
habitam (trecho 563 564 -
Histria de Prometeu)34. Segundo Vernant: Prometeu tem uma relao
de cumplicidade, de
conaturalidade com os homens. Seu estatuto se aproxima das
criaturas humanas , pois estas
tambm so ambguas, tm um aspecto de divindade (VERNANT, 2000,
p.61)35.
Sendo Prometeu um vidente, o destino j estaria claro, ser
eternamente castigado por
Zeus. O dom da viso futura concedido a Prometeu por ser filho do
Tit Jpeto e da
ocenide Clmene. Pelas venturas cometidas no decorrer da histria,
no s Prometeu foi
punido, como seus irmos tambm. A Histria de Prometeu, uma das
partes do poema
Teogonia, inicia-se apresentando a rvore genealgica que provm o
heri trgico, disparando
diretamente os efermos que os irmos do mesmo sofreram. Ao comear
por Mencio, o
soberbo, lanado ao inferno, na mais obscura profundidade. Atlas,
tambm seu irmo, fora
destinado a suportar o peso dos cus; Epimeteu, o desastrado,
aceitou de Zeus a moldada
mulher virgem: Pandora; Prometeu, o astuciador, foi acorrentado
no culmine de um
rochedo distante, sendo diariamente atacado no fgado por uma ave
de rapina. A obra reflete o
esprito de Zeus quanto dureza de seus castigos, como descrito no
ltimo trecho do poema:
E quem acolhe uma de raa perversa
Vive com uma aflio sem fim nas entranhas,
33 Quanto a polminca em torno da origem divina ou humana do
heri, podemos descrever diferentes formas de
sacrifcios voltados aos deuses e heris, isto porque era uma
atividade comum homenagear os deuses e heris
atravs de sacrifcios. Segundo Brando (1998, p.17): como diferena
fundamental se argumentava uma
oblao em que apenas uma parte da vtima era ofertada aos
imortais, enquanto a parte restante a melhor delas
era consumida pelos sacrificantes, graas a Prometeu. BRANDO, J.
S. Mitologia grega. 8. ed. Rio de
Janeiro: Editora Vozes, 1998. Tambm em favor disso, temos a
interpretao de Vernant acerca do ato de
prometeu ao ludibriar Zeus quanto separao do animal, afirmando:
assim se apresenta a diviso: de um lado,
o sebo apetitoso envolvendo s os ossos nus; de outro, um bucho
pouco apetitoso dentro do qual est tudo o que
bom para comer. [...] dependendo da escolha de Zeus, vai-se
traar de um ou outra forma a fronteira entre os
homens e os deuses. [...] com ar de absoluta satisfao, Zeus pega
ento a parte mais bonita, o pacote com o
apetitoso sebo branco. Todos olham, ele abre o embrulho e
descobre os ossos brancos totalmente descarnados.
Tem ento um tremendo ataque de raiva contra aquele que quis
ludibri-lo (VERNANT, 2000, p. 62).
VERNANT, J.P. O universo, os deuses, os homens. Traduo de Rosa
Freire de dAguiar. So Paulo:
Companhia das letras, 2000. 34 HESODO. Teogonia: a origem do
universo. Traduo de Jaa Torrano. 3. ed. So Paulo: Iluminuras, 1995.
35 VERNANT, J.P. O universo, os deuses, os homens. Traduo de Rosa
Freire de dAguiar. So Paulo: Companhia das letras, 2000.
23
No nimo, no corao, e incurvel o mal.
No se pode furtar nem superar o esprito de Zeus
pois nem o filho de Jpeto o benfico Prometeu
escapou-lhe pesada clera, mas sob coero
apesar de multissbio a grande cadeia o retm.
(HESODO, 610 616, 1995)36
Na obra Os trabalhos e os dias, na seo que apresenta o
complemento da histria de
Prometeu na Teogonia, temos a construo do plano de Zeus para
vingar do bom filho de
Jpeto. O pai dos homens e dos Deuses, Zeus, esclama: Filho de
Jpeto, mais que todos frtil
em planos, alegras-te de ter roubado o fogo e enganado minha
inteligncia, o que ser uma
grande desgraa para ti prprio e para os homens futuros. (HESODO,
54 56, 2012)37.
Como afirmou o filho de Crono, no possvel enganar sua
inteligncia e, assim, ordenou a
Hfesto38 para moldar atravs dos elementos: gua e terra, a mais
bela representao humana,
inspirada face das deusas imortais. Alm disso, para Atena39,
Zeus ordenou que a ensinasse
os mais diversos trabalhos. Afrodite40, seria responsvel por
atribuir a essa nova mulher os
sentimentos de desejo, fogo e inquietao. Hermes41, o mensageiro,
a pedido de Zeus,
aspirou nela um carter fingido, enganador. Por ltimo, na formao
dessa nova mulher, a fim
de ser um instrumento fundamental no plano de Zeus para castigar
os homens e Prometeu, a
deusa Atenas, a pedido do pai de todos, concede a ela graa e
persuaso; e na teogonia de
todos ali presentes so atribudas a ela a linguagem e seu nome:
Pandora.
Depois, quando completou o irresistvel profundo engano,
o Pai enviou a Epimeteu o clebre matador de Argos,
o rpido emissrio dos deuses, levando o presente. E Epimeteu
no
pensou no que lhe dissera Prometeu: nunca um presente
aceitar de Zeus olmpio, mas mandar
36 HESODO. Teogonia: a origem do universo. Traduo de Jaa
Torrano. 3. ed. So Paulo: Iluminuras, 1995. 37 HESODO. Os trabalhos
e os dias. Traduo e notas de Alessandro Rolim de Moura. Curitiba:
Segesta
Editora, 2012. 38 Hefesto um deus da mitologia grega,
considerado o deus dos arteses, dos ferreiros e dos escultores.
Segundo os escritos de Hesodo na obra Os trabalhos e os dias,
Zeus, o pai de todos, ordenara que Hefesto,
com seus talentos e pelos seus instrumentos caractersticos,
criasse a Pandora. Conferir: KURY, M.G.
Dicionrio de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editora, 1990. 39 A Capital e maior cidade da Grcia recebeu o
nome de Atenas, em homenagem a deusa. Atena a deusa que
representa a sabedoria, alm de fazer parte do panteo grego sendo
uma das deusas mais importantes. 40 Afrodite a deusa que representa
a sexualidade, o amor e a beleza. Costuma-se assumir duas
personalidades
dessa deusa, sendo uma, pelos escritos de Hesodo, representada
no amor homosexual e divino, denominada
como Afrodite Urnia (Celeste), que se originou atravs dos orgos
genitais do Urano, retirado em seu duelo
com Crono. E, em outro aspecto, nos escritos de Homero,
conhecida como a Afrodite Pandemos, representando
o amor e o desejo sexual, originada de relao de Zeus e Dione
(deusa das ninfas). Conferir: KURY, M.G.
Dicionrio de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editora, 1990. 41 Hermes faz parte tambm do panteo dos deuses
do olmpo que, no total, so doze. Hermes tem vrios
atributos, mas poderia ser definido como o mensageiro do olmpo.
Conferir: KURY, M.G. Dicionrio de
mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora,
1990.
24
de volta, para que no venha a ser um mal para os mortais.
Mas ele, depois de o receber, bem quando tinha o mal,
compreendeu.
(HESODO, 83 89, 2012)
Dessa forma, temos como exemplo a Pandora, esposa de Epimeteu,
que carrega
consigo uma caixa que teria todos os enfermos causados aos
homens, sendo um presente de
Zeus para vingar-se do ato de Prometeu ao roubar o fogo que
traria conhecimento aos mortais.
No episdio, o filho de Crono formulou minuciosamente seu plano,
criando a mulher dos
enganos: Pandora, ao atrapalhado Epimeteu, que aceita seu
presente sendo enganado por
Zeus, o soberano. A mulher, removendo com as mos a grande tampa
de um jarro, espalhou-
os, e preparou amargos cuidados para os humanos. (trecho: 94 95
Prometeu e Pandora)42.
Ao abrir a caixa de pandora Epimeteu percebe o engano que
cometeu, ao lembrar-se do
aviso de seu irmo Prometeu, o vidente. Nesse caso, reafirma-se a
atitude de Zeus ao cumprir
com o seu juramento, de enganar Prometeu de curvo pensar, mesmo
este sendo um vidente,
atribuindo aos pupilos de Prometeu os males e efermos que o
mundo oferece. Assim, de
modo algum pode-se escapar inteligncia de Zeus (trecho: 105 -
Prometeu e Pandora).
Percebemos, nesse sentido, um sentimento que valoriza a
imortalidade dos heris na
cultura grega, se avaliarmos a essncia da imortalidade como algo
constantemente presente na
memria e na herana cultural; seja pelos feitos benficos
humanidade, como a insero do
conhecimento advinda dos sacrifcios de Prometeu; seja pelo
singelo ato de Scrates ao
recusar renncia de seus principios. Nos escritos de Homero, a
Ilada43 e a Odisseia44, temos
a figura do heri pico e/ou arcaico que consolida a sua existncia
pelas virtudes, no pelo
fato de ser imortais. De acordo com Kothe: o heri pico o sonho
do homem fazer a sua
prpria histria; o heri trgico a verdade do destino humano
(KOTHE, 1987, pg. 15)45.
Sendo assim, podemos considerar a morte como produto essencial
das tragdias, como
42 HESODO. Os trabalhos e os dias. Traduo e notas de Alessandro
Rolim de Moura. Curitiba: Segesta
Editora, 2012. 43 A autoria da obra de Homero, cuja existncia
questionada por alguns especialistas. O poema pico Ilada
(aproximadamente no sc. VIII a.C.) descreve, atravs de versos
hexmetro datlico, a guerra de Troia, que tem
como personagem principal o guerreiro Aquiles. Segundo
profetizou Prometeu, o filho da ninfaTtis seria maior
que seu prprio pai, esta que seria uma das pretendentes de Zeus.
Com receio, Zeus ofereceu Ttis como esposa
a Peleu, um humano consideralvemente velho, que junto a ninfa
Ttis mergulhou o filho Aquiles no rio
Estiges e, assim, perpetuou o destino do guerreiro Aquiles como
sendo um imortal, com uma nica fraqueza, o
seu calcanhar. interessante ressaltarmos que a imortalidade de
Aquiles no tem relao com a finitude de sua
vida, mas sim, com os atos de coragem e da forma como escolheu
seu prprio destino, ao preferir morrer lutando
como um grande guerreiro e no simplesmente desfrutar de uma vida
sem fim. A favor disso, conferir:
HOMERO. Ilada. Traduo de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro:
Sem editora, 1967. 44 Obra subsequente Iliada, a Odisseia seria a
segunda parte da histria que descreve a volta de Odisseu sua
cidade natal, taca. Odisseu um importante guerreiro grego que
lutou na guerra de Tria por dez anos e, ao
desconsiderar os deuses, na volta para a cidade natal, recebeu
como punio de Poseidon a difcil jornada de dez
anos navegando no mar. 45 KOTHE, F. R. O heri. 2. ed. Editora
tica. 1987.
25
resultado contingente quanto ao destino do heri ou vontade
divina, j descrita na poesia
pica Ilada:
Canta-me a clera deusa! Funesta de aquiles Pelida,
Causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta
E de baixarem para o Hades as almas de heris numerosos
E esclarecidos, ficando les prprios aos ces atirados
E como pastos das aves. Cumpriu-se de Zeus o desgnio
Desde o princpio em que os dois, em discrdia, ficaram
cindidos,
O de Atreu filho, senhor de guerreiros, e Aquiles divino.
(HOMERO, Ilada, I, verso: 1 7, 1967, p. 47)46
Podemos comparar ento o tit Prometeu com a atitude de Scrates,
visto que, o filho
de Jpeto estava condicionado a ser libertado se o futuro a Zeus
fosse revelado. Prometeu, o
vidente, seria o nico capaz de eclarecer a Zeus o conhecimento
do tempo que ainda no se
cumpriu. Ao compararmos com Scrates, temos, ainda, um homem que
foi acusado por
corromper os jovens e por cometer heresia, simplesmente por
conduzir a todos que o
cercavam ao caminho da verdade no interior da alma. No dilogo de
Plato, na obra Fdon47,
a narrativa apresenta o que o amigo de Scrates, que d nome a
obra, presenciou naquele
julgamento das aes do ateniense, que, corajosamente, se manteve
seguro com as prprias
concepes; mesmo sofrendo, asssim como Prometeu, pagou com um
destino inevitvel.
Fdon descreve o que pode perceber em Scrates quando o mesmo j
havia feito a sua
escolha: [...] eu me encontrava junto a um homem feliz, amigo
Equcrates, feliz por seu
comportamento, pelas palavras que proferia e pela coragem e
serenidade com que faleceu.
(PLATO, 1999, p. 118)48. O apogeu das circunstncias descritas
nos dois contextos tem uma
relao direta por existir o heri dos prprios ideais, que defende
seus principios para salvar
os homens das trevas da ignorncia. O resultado, de forma trgica,
que ambos sofrem
consequncias irredutveis.
1.3.1 PAIDEIA: AS TRAGDIAS E SUA IMPORTNCIA NA
CONSTRUO DO PENSAMENTO GRECO-ROMANO
APRESENTAO
46 HOMERO. Ilada. Traduo de Carlos Alberto Nunes. Rio de
Janeiro: Sem editora, 1967. 47 Um dos ltimos dilogos de Plato, Fdon
uma obra que descreve a morte de Scrates e a atitude do mesmo
perante situao de ser condenado morte por manter as concepes que
expressava aos seus alunos. Essa obra
escrita por volta de (387 a.C.). 48 PLATO. Dilogos. In: Fdon.
Coleo: Os Pensadores. So Paulo: Editora Nova Cultura, 1999.
26
Esta seo constitui a segunda parte do primeiro captulo; eis que
consideramos
essencial falarmos das tragdias e dos trgicos que reestruturaram
a nova forma de ensinar e,
para isso, dedicamos uma parte desse captulo para falarmos: (1)
das tragdias e os trgicos;
(2) do teatro Grego. A obra base de todo o trabalho Protgoras,
que corresponde ao sofista
que dialoga com Scrates acerca da noo de aret, se esta ensinvel
ou no. Mas o que
relaciona a compreenso das tragdias com a obra de Protgoras
seria, segundo Eleazar,
porque Parte das discusses dos sofistas em torno do ensino da
virtude era feita em forma de
discurso e de mito, preferncia demonstrada por Protgoras e por
outros sofistas neste dilogo
de Plato (PLATO, 1986, p. 26). Ora, atravs dos argumentos
apresentados no decorrer do
trabalho, ficar evidente que muito dos mitos eram expressos em
peas de importantes
tragedigrafos e comedigrafos da poca, que representavam de forma
cnica e pedaggica as
histrias que eram contadas hereditariamente.
Scrates, que torna-se o guia de todo o Iluminismo e de toda a
filosofia moderna; o
apstulo da liberdade moral, separado de todo o dogma e de toda
tradio, sem outro governo
alm daquele da sua prpria pessoa obediente apenas aos ditames da
voz interiorda sua
conscincia (JEAGER, 2013, 492), foi vtima de Aristfanes,
comedigrafo; motivo
fundamental de tratarmos to somente das tragdias, visto que
expressou em sua pea As
Nuvens uma verso sofista de Scrates que, julgado mais tarde, se
mostra efetivamente
distinto de tamanha confuso. Segundo Eleazar, Aristfanes foi um
dos primeiros a envolver
Scrates nesta confuso. Adversrio de suas idias, em 423 em sua
comdia As nuvens j o
caricaturava como o mais ridculo dos sofistas (PLATO, 1986, 29
30). Essa imagem
pejorativa, criada pelo comedigrafo, cicatrizou a personalidade
dos Filsofos at os tempos
atuais. Mas, se pensarmos no uso do mito por Protgoras no Dilogo
homnimo, sentimos a
importncia de evidenciarmos os principais representantes das
tragdias, como squilo,
Sfocles e Eurpedes. Segundo Jeager: A poesia ps-homrica torna-se
cada vez mais
expresso vigorosa da presente vida espiritual, na ordem social e
privada, o que s era
possvel pelo abandono da tradio heroica, a qual constitua
originalmente, com os hinos aos
deuses, o objeto nico da poesia (2013, p. 288). Aqui,
apresentaremos algumas das mais
importantes peas, alm dos principais representantes que
expressavam toda a potica em
prosa. Evidenciaremos tambm, nesta seo, toda a constituio
arquitetnica que era palco
de toda manifestao dionisaca, para efetivar tal composio
cultural como fundamento do
esprito tico.
1.3.2 AS TRAGDIAS E OS TRGICOS
27
Segundo o Filsofo grego Aristteles: Uma vez que a tragdia a
imitao de
homens melhores do que ns, deve seguir-se o exemplo dos bons
pintores de retratos: estes,
fazendo os homens iguais a ns e respeitando a sua forma prpria,
pintam-nos mais belos.
(ARISTTELES, 1453 b 08, 2008, p. 69)49. A tragdia, assim como a
comdia, so
responsveis, diretamente, na promoo de valores humanistas. Ao
analisarmos mais
amplamente essa ideia, percebemos a importncia do teatro50
grego, visto que o mesmo
deveria servir proposta da Paideia51, que a formao de valores
sociais, polticos e
humanistas do cidado grego. Podemos considerar, de antemo, que o
teatro tinha como
principal fundamento a pedagogia, isto , a partir do
entreterimento era possvel transmitir
conhecimento e garantir a formao dos cidado gregos.
Antes de relacionarmos a tragdia utilizada no exemplo de
Protgoras em seu dilogo
com Scrates, na obra Protgoras52, preciso entendermos mais
claramente e de forma breve
as caractersticas da tragdia e quais foram os principais trgicos
que moldaram a construo
desse elemento importante na formao da sociedade grega entre os
sculos VIII a.C e VI a.C.
Dessa forma, situaremos ento as referncias que foram
fundamentais na passagem
pensamento mitolgico para o filosfico. Alm disso, utilizaremos
alguns pensadores mais
contemporneos que serviro para fortalecer e esclarecer alguns
pontos que sero tratados no
decorrer dos textos. Tais como Werner Jaeger, com uma obra
relevante acerca da concepo
de Paideia e a formao do homem grego, que nos apresenta um
processo de estgios da
histria da Grcia, j citado nas sees anteriores. Sendo assim,
como correspondncia,
utilizamos aqui tambm Vernant, com a obra Mito e tragdia na
Grcia antiga (1991), que
vai buscar explicar de forma mais objetiva a noo de tragdia
constituda nos escritos
antigos; como tambm a relao dos deuses com os homens. No
pensamento de Vernant, a
tragdia significa: [...] um modo novo do homem se compreender,
se situar em suas relaes
com o mundo, com os deuses, com os outros, tambm consigo mesmo e
com seus prprios
atos. (VERNANT, 1991, p. 89)
49 ARISTTELES. Potica. Traduo de Ana Maria Valente. 3. ed.
Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian,
2008. 50 Para alguns tericos, podemos entender como teatro a
forma de representarmos Deus na terra. Mas,
corriqueiramente, consideramos o teatro um lugar para
manifestarmos e expressarmos corporalmente e
oralmente as peas escritas nos mais variados estilos. 51
Expresso que surge em tempos homricos e que significa um processo
de formao de um cidado perfeito. 52 Protgoras um dilogo Platnico no
qual apresentado os questionamentos de Scrates quanto s
concepes do sofista Protgoras quanto natureza da virtude e sua
possibilidade de ser ensinada.
28
O drama antigo explora os mecanismos pelos quais um
indivduo,
por melhor que seja, conduzido perdio, no pelo domnio da
coao, nem pelo efeito de sua perversidade ou de seus vcios, mas
em
razo de uma falta, de um erro, que qualquer um pode cometer.
Desse
modo, ele desnuda o jogo de foras contraditrias a que o homem
est
submetido, pois toda sociedade, toda cultura, da mesma forma que
a
grega, implica tenses e conflitos. Dessa forma, a tragdia prope
ao
espectador uma interrogao de alcance geral sobre a condio
humana, seus limites, sua finitude necessria. (VERNANT, 1991,
p.
96)53
Em geral, podemos identificar tambm trs pontos caractersticos da
tragdia54 grega,
o primeiro deles, no qual podemos compreender no interior dos
escritos, temos a constncia
do fator transcedental55, que legitima a dicotomia entre o homem
e as mais diversas
divindades; estas que agem como uma conscincia que interfere nas
escolhas e no destino que
o heri assume. A catarse, conforme esclarecido anteriormente, o
desfecho essencial das
tragdias, sendo o ponto crucial que o personagem se reconhece e
aceita o destino como
consequncia de sua aprendizagem. Por ltimo, reconhecemos o papel
do heri que, apesar
dos erros, possui em si uma natureza virtuosa, por reconhecer
sua condio humana e assumir,
dessa forma, uma nova postura purificadora dos males percorridos
durante a tragdia.
squilo56, responsvel por inserir o aspecto trgico nas peas, foi
fundamental na
construo do teatro grego e no fortalecimento e resgate dos
personagens mitolgicos, agora
reconhecidos como parte da religio57 pantesta ali estabelecida,
no s isso, segundo Jeager,
squilo a ressuireio do homem herico dentro do esprito da
liberdade. o caminho
53 VERNANT, J.P.; VIDAL-NAQUET, P. Mito e tragdia na Grcia
antiga. So Paulo: Brasiliense, 1991. v.
2. 54 Quanto ao dizeres do ttulo do captulo, podemos expressar
resumidademente, nas concepes de Jaeger, a
importncia da tragdia e o seu preldio, assim: a tragdia devolve
poesia grega a capacidade de abarcar a
unidade de todo o humano. Nesse sentido, s a epopeia homrica se
pode comparar a ela. Apesar da grande
fecundidadeda literatura, nos sculos intermedirios, s a epopeia
a iguala quanto riqueza do contedo, fora
estruturadora e amplitude do seu esprito criador. como se o
renascimento do gnio potico da Grcia se
tivesse mudado da Jnia para Atenas (JAEGER, 2013, p. 287);
conferir: JAEGER, W. Paidia: a formao do
homem grego. Traduo de Arthur M. Parreira. So Paulo: Martins
Fontes, 2013. 55 Fator transcedental uma direo moral imposta na
conscincia por intermdio de Deuses. Nas tragdias
muito comum presenciarmos a luta constante entre o heri e a
vontade divina. 56 Considerado um dos fundadores da escrita trgica
e responsvel por escrever obras como: Os persas (472
a.C.); Sete contra Tebas (467 a.C.); As Suplicantes (463 a.C.);
Prometeu Acorrentado (462 459 a.C.);
Agmennon (458 a.C.); Coforas (458 a.C.) e (Eumnides 458 a.C).
squilo nasceu em (525 a.C.), na pequena
cidade de Elusis, prxima Atenas, e morreu na cida de Gela em
(456-455 a.C.). Conhecido como Dramaturgo,
tragedigrafo e poeta, squilo tambm foi um soldado que lutou
importantes batalhas em defesa da Grcia, e
todas essas experincias foram transcritas em seu grande acervo
de obras que, infelizmente, no sobreviveram ao
tempo, nos restando apenas sete peas que foram acima citadas. As
trs grandes batalhas no qual squilo, em sua
juventude, defendeu Atenas so conhecidas como: As Guerras Persas
em (490 a.C.); A Batalha de Salamina
(480 a.C.); e a Batalha de Plateia em (479 a.C.); referncia:
SQUILO. Tragdias. Traduo de Jaa Torrano
So Paulo: Iluminuras, 2009. 57 Para Jeager, no h dvida de que
Sfocles inferior a squilo quanto ao vigor da sua mensagem
religiosa.
(JEAGER, 2013, p. 317).
29
direto e necessrio que vai de Pndaro a Plato, da aristocracia do
sangue aristocracia do
esprito e do conhecimento. S passando por squilo possvel
percorrer esse caminho
(JEAGER, 2013, p. 286). Posteriormente, porm, contemporneo ao
squilo, temos dois
grandes representantes da tragdia na Grcia antiga: Sfocles e
Eurpedes. Sfocles nasceu
em 406 a.C., tambm reconcido a ele autoria de vrias peas
trgicas, as mais conhecidas
so: Ajax (445 a.C.), Antgona (442 a.C.), As Traqunes estaria
situada aproximadamente na
data de (430 a.C.); dipo Rei (427 a.C.) e dipo em Colono (401
a.C.) completando o que
classificado como trilogia Tebana58. Ao contrrio da grande
influncia divina nas obras de
squilo, o tragedigrafo Sfocles direciona o seus escritos no
mbito antropolgico, centrado
no cotidioano e nos dilemas humanos com base s consequncias
trgicas e o destino pr-
determinado, segundo o estudioso Jeager: um escultor de homens
como Sfocles pertence
histria da educao humana, como nenhum outro poeta grego, no
sentido inteiramente novo.
na sua arte que pela primeira vez se manifesta a conscincia
desperta da educao humana
(JEAGER, 2013, p. 321)59. Cito agora um dos trechos agonizantes
da obra dipo Rei de
Sfocles, ao qual o protagonista esclama as suas filhas Antgona60
e Ismnia a necessidade de
perfurar61 os olhos para no mais ver o mundo que vos
cercava:
E choro por vs, porque nunca mais vos verei, e porque penso
nas
amarguras que tereis de suportar pela vida alm... A que
assembleias
de tebanos, a que festas solenes podereis comparecer, sem que
volteis
com os olhos banhados de lgrimas, impedidas de v-las? E
quando
atingirdes a idade florida do casamento, quem ser... sim! quem
ser
bastante corajoso para receber todos os insultos, que sero um
eterno
flagelo para vs, e para a vossa prole? Que mais falta para
vossa
58 Referncia indireta do livro: SFOCLES. A trilogia tebana.
Traduo de Mario da Gama Kury. 9. ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. 59 Segundo a interpretao de
Jeager, quanto Potica de Aristteles, que apresenta os
importantes
tragedigrafos, as peas de Sfocles algo totalmente diverso da ao
educadora, no sentido de Homero, ou da
vontade educacional, no sentido de squilo (ibidem, 2013, p.
321). Contrrio a essa noo, Nietzsche apresenta
crticas s abordagens moralizantes descritas pela tradio
ps-aristotlica. A favor disso, conferir:
NIETZSCHE. Fragmentos finais. Traduo de F. R. Kothe. Braslia:
Editora UNB, So Paulo: Imprensa Oficial
do Estado, 2002, p. 152 -153. 60 Antgona a obra dedicada filha
de dipo, fezendo parte da trilogia tebana, sendo a terceira parte
da pea. 61 Encontra-se aqui referida a cena do Rei dipo de Sfocles,
em que o protagonista, depois de informado pelo
Mensageiro de que o rei de Corinto, que ele supunha seu pai,
tinha morrido, pelo que ele era chamado a ocupar o
trono, desencadeia uma srie de revelaes que o levaro a descobrir
que cometera, sem o saber, o duplo crime
(parricdio e incesto) predito pelo orculo. (ARISTOTELES, pag.
57, 2008) ARISTTELES. Potica.
Traduo de Ana Maria Valente. 3. ed. Lisboa: Fundao Calouste
Gulbenkian, 2008. Aristteles considera
dipo uma das tragdias mais importantes do teatro Grego, na
seguinte citao poderemos conferir como o
enredo de dipo, segundo o Estagirita, possui caractersticas
relevantes quanto ao desenvolvimento da histria:
1453b (ARISTTELES, pag. 63, 2008): O temor e a compaixo podem,
realmente, ser despertados pelo
espectculo e tambm pela prpria estruturao dos acontecimentos, o
que prefervel e prprio de um poeta
superior. necessrio que o enredo seja estruturado de tal maneira
que quem ouvir a sequncia dos
acontecimentos, mesmo sem os ver, se arrepie de temor e sinta
compaixo pelo que aconteceu; isto precisamente
sentir quem ouvir o enredo do dipo. ARISTTELES. Potica. Traduo
de Ana Maria Valente. 3. ed.
Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2008.
30
infelicidade? Vosso pai? Mas ele matou seu pai, casou-se com a
sua
me, e desse consrcio que vs nascestes. (SFOCLES, 1950, pg
113 -114) 62
Dentre eles, Eurpides foi o dramaturgo que mais se dedicou
escrita de peas
trgicas. Alm disso, segundo Aristteles, Eurpides seria o mais
trgico dos trs representates
aqui citado, enaltecendo essa caracterstica, afirma Jeager: A
impiedade de Eurpedes no
sentido que lhe deu a tradio mais religiosa, apesar de tudo, que
a tranquila credulidade
de Sfocles (JEAGER, 2013, p. 318). O aluno de Plato em sua obra
Potica
(ARISTTELES, 1453 a 26, 2008, pg. 62)63 argumenta que: a melhor
prova disso que,
nos concursos dramticos, as tragdias deste gnero, se forem bem
feitas, revelam-se as mais
trgicas e Eurpides, se certo que no estrutura bem outros
aspectos, mostra ser, no entanto,
o mais trgico dos poetas. Percebemos que, ao considerarmos os
escritos trgicos64 e a nica
stira que nos restou do total de suas obras, revela-se uma
identidade euripideana, no qual,
representa fielmente as caracterstica do homem como tal, e no
como deveriam ser, como
fazia Sfocles em sua obras. Nas palavras de Aristteles: se a
censura por no ter
representado a verdade como mas deveria ser, pode resolver-se o
problema como
Sfocles, que disse que ele representava os homens como deviam
ser e Eurpides como eles
eram. (Ibidem, 1460 b 34, 2008, pg. 98). Nesse contexto, temos
um dramaturgo que se
distancia das concepes mitolgicas e vai buscar representar nas
tragdia a natureza
humana, dotada de razo e essencialmente poltica.
O essencial de toda tragdia se desenvolve na existncia
quotidiana,
num tempo humano, opaco, feito de presentes sucessivos e
limitados
num alm da vida terrena, num tempo divino, onipotente, que
abrange
a cada instante a totalidade dos acontecimentos, ora para
ocult-los,
ora para descobri-los, mas sem que nada escape a ele, nem se
perca no
esquecimento. (VERNANT, 2006, p. 20)65.
A relao direta entre o teatro grego, a poesia pica, a tragdia,
os mitos e as
divindades o desenvolvimento da cultura grega e a organizao do
pensamento dos
atenienses. [...] os mitos e as lendas hericas constituem um
tesouro inesgotvel de exemplos
e modelos da nao, que neles bebe o seu pensamento, ideias e
normas para a vida
62 MELLO e SOUZA, J. B. Teatro Grego. Rio de Janeiro: W. M.
Jackson Inc. Editores, 1950. v. 22. 63 ARISTTELES. Potica. Traduo
de Ana Maria Valente. 3. ed. Lisboa: Fundao Calouste
Gulbenkian,
2008. 64 As obras mais reconhecidas so: Medeia (431 a.C.), As
Troianas (415 a.C.) e Ifignia em ulis (405 a.C.), no
podemos esquecer de sua nica stira remanescente que seria O
Ciclope, a datao desconhecida, mas seria
escrita por volta de (408 a.C.). 65 VERNANT, J.P. As origens do
pensamento grego. 16. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2006.
31
(JAEGER, 2003, pag. 68)66. Com os mitos, os homens primitivos
que no possuam um
conhecimento mais sofisticado e racional, conseguiam explicavar
os fenmenos67 da natureza
de forma imaginativa, com personagens mitolgicos e deuses que se
apresentavam como parte
da natureza, o que hoje classificamos como pantesmo68. O mito e
as divindades davam
sentido existncia desses homens primitivos, ajudando a resolver
os questionamentos que
surgiam durante a difcil e efmera vida naqueles tempos. Dessa
forma, podemos relacionar
os mitos, as poesias picas (contidas com uma variedade de
personagens mitolgicos), as
tragdias e os teatros gregos em um amplo contexto que
representavam os valores
epistemolgicos e morais expressos na cultura ateniense.
1.3.3 O TEATRO69 GREGO
Por volta do sculo VI. a.C. a IV a.C70, inicia-se uma ampla
abertura do pensamento e,
consequentemente, algumas transformaes na sociedade so
estabelecidas; novamente,
segundo Mello e Souza, o momento histrico em que surgiu a
tragdia grega impunha-lhe,
portanto, como nota dominante, esse orgulho muito natural num
povo que, vencedor em
prlio de tamanha gravidade, adquirira a ntida conscincia de seu
prprio valor (Ibidem, p.
12). O incentivo educao cultural, poltica, fsica e, sobretudo,
moral, promove, no interior
daquela comunidade, a criao dos processos de diviso de uma
sociedade complexa. Temos,
nesse caso, a criao de leis, a possibilidade do discurso aberto
ao pblico, como nova forma
66 Utilizamos outra edio: JAEGER, W. Paideia: a formao do homem
grego. Traduo de Parreira Artur M
Parreira. 5. ed.. So Paulo: Martins Fontes, 2003. 67 Podemos
entender como fenmenos da natureza, nesse caso, como as mudanas da
lua, a luz do dia e a
escurido da noite, os astros, os troves, a chuva e etc. 68 O
termo pantesmo se refere expresso utilizada para designar a crena
de que Deus est em tudo. No
pantesmo spinozista, o Filsofo argumenta que Deus no
transcedente, mas sim, imanente. Ou seja, Deus se
identifica e est na natureza, no mundo, e no fora dele. 69
Utilizaremos nessa seo uma imagem do teatro Epidauro e algumas
consideraes sobre o mesmo na
percepo de Antony Manson, em sua obra Histria da arte ocidental.
Sengundo o autor Os gregos antigos
fundaram o teatro moderno ocidental. Suas tradies comearam por
volta de 550 a. C, com as festas religiosas
para celebrar o deus Dionsio. Cantos e danas, que faziam parte
dos rituais, acabaram se transformando em
peas de teatro. Mais tarde, escritores compuseram comdias e
tragdias, geralmente encenadas por poucos
personagens (alguns atores do sexo m