UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO E MEIO AMBIENTE NÍVEL MESTRADO LAYLA DANIELLE ARAÚJO PINTO A RELAÇÃO ENTRE O PLANEJAMENTO URBANO E A ÉTICA AMBIENTAL: O ESTATUTO DA CIDADE E A POLÍTICA NACIONAL DE MOBILIDADE URBANA SOB A ÓTICA DO MEIO AMBIENTE SÃO CRISTÓVÃO 2019
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
DESENVOLVIMENTO E MEIO AMBIENTE
NÍVEL MESTRADO
LAYLA DANIELLE ARAÚJO PINTO
A RELAÇÃO ENTRE O PLANEJAMENTO URBANO E A ÉTICA AMBIENTAL:
O ESTATUTO DA CIDADE E A POLÍTICA NACIONAL DE MOBILIDADE URBANA
SOB A ÓTICA DO MEIO AMBIENTE
SÃO CRISTÓVÃO
2019
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LAYLA DANIELLE ARAÚJO PINTO
A RELAÇÃO ENTRE O PLANEJAMENTO URBANO E A ÉTICA AMBIENTAL:
O ESTATUTO DA CIDADE E A POLÍTICA NACIONAL DE MOBILIDADE URBANA
SOB A ÓTICA DO MEIO AMBIENTE
Dissertação apresentada como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre
pelo Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento e Meio Ambiente
(PRODEMA) da Universidade Federal de
Sergipe.
LINHA DE PESQUISA: Planejamento e
Gestão Ambiental
ORIENTADOR: Prof. Dr. Antônio Carlos
dos Santos
SÃO CRISTÓVÃO
2019
2
LAYLA DANIELLE ARAÚJO PINTO
A RELAÇÃO ENTRE O PLANEJAMENTO URBANO E A ÉTICA AMBIENTAL:
O ESTATUTO DA CIDADE E A POLÍTICA NACIONAL DE MOBILIDADE URBANA
Profa. Dra. Silvia Maria Santos Matos - Universidade Federal de Sergipe
Examinadora Interna
_______________________________________________________________________ Prof. Dr. Givaldo Barbosa da Silva – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia/SE
Examinador Externo
3
É concedido ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente
(PRODEMA) da Universidade Federal de Sergipe (UFS) responsável pelo Mestrado em
Desenvolvimento e Meio Ambiente permissão para disponibilizar, reproduzir cópia desta
O primeiro capítulo refere-se à introdução do trabalho, apresentando e delimitando o
tema, situando-o na problemática atual, juntamente com a questão norteadora da pesquisa.
Serão pontuados os objetivos geral e específicos, e metodologia a ser utilizada.
O segundo capítulo será intitulado “Ética Ambiental e a reflexão filosófica na concepção
do desenvolvimento sustentável”, perpassando da crise ambiental intensificada pelo acúmulo
do conhecimento científico (assunto abordado por autores como Gilberto Dupas, Catherine e
Raphael Larrère), e como se conduziram os debates acerca do desenvolvimento sustentável e
concepção da ética ambiental, através de movimentos e debates que vem ocorrendo desde 1960.
Serão feitos estudos e análise teórica/conceitual sobre tais temas através dos autores Catherine
e Raphael Larràre, Enrique Leff, Jose Eli da Veiga e Ignacy Sachs.
Tal conceituação servirá de base para se ‘verificar os fundamentos do planejamento
urbano sob a perspectiva das questões ambientais’, aliado ao estudo e análise teórica e
conceitual sobre o planejamento urbano, por meio dos autores Henri Acselrad, Milton Santos,
Jan Gehl, Douglas Farr, Ermínia Maricato, Herbert Girardet, Francisco Mendonça –
formulando o terceiro capítulo, que será intitulado “A produção do espaço urbano e a questão
ambiental”. Nesse capítulo será abordada a problemática atual na qual estão inseridas as
cidades, e da qual são também responsáveis; bem como a incorporação das questões ambientais
no planejamento urbano, fruto dos debates levantados acerca do desenvolvimento sustentável,
que constroem os modelos de cidade sustentável.
Os estudos feitos, em ambos segundo e terceiro capítulos, serão o aporte teórico que irá
proporcionar a análise documental a ser trabalhada no quarto capítulo, que será intitulado “O
Estatuto da Cidade e a Política Nacional de Mobilidade Urbana sob a ótica do meio ambiente”,
onde pretende-se analisar a inserção do discurso ambiental nas políticas urbanas brasileiras.
Nesse capítulo serão apresentadas duas das políticas referentes ao planejamento urbano
brasileiro, o Estatuto da Cidade (2001) e a Política Nacional de Mobilidade Urbana (2012), bem
como análise da sua ligação com o discurso ambiental, de forma a avaliar como a preocupação
com a natureza, e responsabilidade para com os recursos naturais e degradação ambiental foi
inserida (ou não) em tais políticas.
Por fim, no quinto capítulo, serão discutidas as considerações finais da pesquisa, a fim
de responder à questão norteadora. Pretende-se, para tal, correlacionar a análise da política
urbana brasileira, no tocante às questões éticas e ambientais, com as diretrizes que convenções
e políticas internacionais apontam como o caminho mais adequado para o alcance da
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sustentabilidade, no âmbito das questões urbanas. Ou seja, estabelecer um paralelo entre o
percurso que o planejamento urbano do Brasil está seguindo diante das discussões acerca da
ética ambiental e do desenvolvimento sustentável.
Pretende-se, então, com a elaboração dessa pesquisa, subsidiar o debate sobre os
processos de formação do espaço urbano e suas implicações no meio ambiente e, assim,
compreender de que maneira a ética ambiental tem sido, ou não, incorporada nas discussões e
decisões acerca do planejamento urbano, reafirmando a importância da sua inserção nesse
debate. Dessa forma, e que, junto a isso, possa motivar o progresso de políticas públicas urbanas
e processos decisórios que contemplem a uma relação mais saudável entre o homem, sociedade
e a natureza.
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2 ÉTICA AMBIENTAL E A REFLEXÃO FILOSÓFICA NA CONCEPÇÃO DO
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
A crise ambiental que se vive na atualidade decorreu, dentre outras coisas, da
intervenção do homem sobre a natureza de maneira exploratória. Essa intervenção foi
possibilitada, principalmente, pelo avanço do conhecimento técnico-científico e
aproveitamento econômico que esse conhecimento proporcionou sobre os fenômenos e
recursos naturais e que, durante a maior parte de seu percurso, não levou em consideração os
limites dos ecossistemas e respeito aos demais seres vivos. Aliado a isso, destaca-se também o
crescimento da população e consequente aumento da utilização desses recursos para suprir as
necessidades dessa nova demanda populacional, e diversos impactos causados pela ação
antrópica, que resultaram em um grave cenário de degradação do meio ambiente.
Esse capítulo tem por objetivo, então, apresentar o percurso e questionamentos da ética
ambiental diante da crise ambiental, e suas consequentes reflexões na conceituação acerca do
desenvolvimento sustentável.
Na primeira parte será discutido o agravamento da crise ambiental, que se deu, em
grande parte, pela apropriação econômica do progresso técnico-científico. Em seguida, serão
revisados os percursos da ética ambiental, que reflete acerca da crise e da responsabilidade
humana para com a natureza e futuras gerações; para então concluir com as contribuições que
tais reflexões acrescentaram à conceituação do desenvolvimento sustentável, entendido como
caminho viável para mitigar tal crise, evitando o aprofundamento dela e suas possíveis
consequências, algumas irreversíveis, para o homem e o meio ambiente.
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2.1 O progresso técnico-científico e a intensificação da crise ambiental
Desde os primórdios da humanidade, esta interage com a natureza e seus recursos,
provocando mudanças nos espaços em que vive. Mas é a partir do advento da ciência moderna,
com aprimoramento do conhecimento científico e das técnicas dele provenientes, que tais
alterações passam a mudar de forma significativa a relação dos homens entre si, com os demais
seres e com a natureza, resultando em distúrbios que passaram a chamar atenção a respeito de
como tal relação se constituiu e as consequências que dela decorreram.
As sociedades modernas estabeleceram uma relação com a natureza que foi constituída
partindo do pressuposto que o ser humano era exterior a essa e, mais do que isso, que o ser
humano teria o direito de interferência e de domínio sobre ela. Ideia esta reforçada, em grande
parte, pelo conhecimento que se produziu ao longo do percurso da humanidade e que permitiu
a intervenção dos homens sobre os recursos naturais, através da técnica. A natureza, então
compreendida como um elemento externo ao homem, e a serviço das suas necessidades,
destituída de valor moral ou ético, foi objeto do avanço da ciência moderna e o constante
desenvolvimento da técnica proporcionaram, de forma cada vez mais intensa, a interferência
dos seres humanos sobre os recursos naturais e demais seres vivos, permitindo ganhos materiais
que moldaram o modo de vida das populações (SANTOS; SANTOS FILHO, 2017). Dessa
maneira, com a posse de conhecimentos sobre os fenômenos naturais e de técnicas, cada vez
mais aprimoradas, para lidar com eles, e tratando a natureza como algo externo e produto para
usufruto humano, as sociedades desenvolveram uma relação de controle e superioridade para
com os recursos e ecossistemas naturais.
Ideias e teorias produzias por filósofos como Bacon e Descartes nos séculos XVI e
XVII, respectivamente, apontavam que a evolução da ciência teria como função primordial
proporcionar conhecimentos sobre o funcionamento da natureza e dos fenômenos naturais,
através do avanço das técnicas e os diversos instrumentos então criados, e que tais
conhecimentos possibilitariam melhorias às condições da vida humana, ao garantir o domínio
sobre essas técnicas e a justiça na relação entre os homens. No entanto, a concepção da natureza
apenas como objeto a serviço das necessidades humanas e o desejo de dominação sobre seus
recursos conduziu a humanidade à, além de incontestáveis avanços, tragédias ecológicas e
sociais, uma vez que essas mesmas técnicas geraram diversos impactos, muitas vezes
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imprevistos, e que a própria ciência não conseguiu prever ou não soube solucionar (GIACOIA
JÚNIOR, 2004).
O progresso técnico-científico, favorecido pelo acúmulo do conhecimento científico e
avanço da ciência moderna, ao longo das décadas passadas, conduziram à racionalização da
natureza e à apropriação dos recursos naturais, promovendo uma relação de poder do homem
sobre o meio ambiente. É quando o homem passa a ter cada vez mais meios de intervir na
natureza, ao extrair, manusear, e mesmo transformar as matérias primas, para atender as
diferentes demandas e necessidades que ele cria para diferentes estilos de vida, perfazendo um
ciclo constante de dependência/interferência para com tais recursos, e ainda do descarte destes
após seu uso, de acordo com seus processos de produção. Tal relação fez com que o homem se
afastasse da natureza de forma conceitual, enxergando-a apenas como algo externo e que lhe
provinha as matérias primas que eram necessárias para o suprimento de suas necessidades,
estabelecendo uma relação de exploração para com os recursos naturais e os demais seres vivos
(LARRÈRE & LARRÈRE, 1997).
Esse afastamento conceitual da natureza e dos demais seres vivos (seres então
considerados irracionais, logo destituídos de moral) contribuiu para reforçar a ideia de que esta
não era dotada de direitos, ficando estes concentrados na mão dos homens, os quais poderiam
agir apenas de acordo com seus objetivos e interesses, desconsiderando as consequências de
suas ações. Para Hans Jonas, o domínio da técnica possibilitou que a ciência moderna se
desenvolvesse de forma matematizada, para que se intervisse tecnicamente sobre os recursos
naturais. Esse mesmo domínio técnico-científico levou as sociedades modernas, principalmente
as sociedades ocidentais - que intensificaram a adoção de um estilo de vida completamente
dependente de diversas tecnologias, a confiar que a ciência seria sempre capaz de manejar e
disponibilizar recursos necessários à sobrevivência da humanidade; no entanto, esse domínio e
intervenção sobre a natureza, que durante o percurso da humanidade pouco levou em
consideração o respeito para com os limites do meio ambiente, conduziu-nos a uma grave crise
ecológica, que aparenta ser, em certas situações, algo irreversível (GIACOIA JÚNIOR, 2004).
Assim, o desenvolvimento tecnológico, que se realizou de forma progressiva,
principalmente a partir dos séculos XVII e XVIII, e acentuou-se desde então, culminou com o
aproveitamento econômico e industrial dessas tecnologias, através da modernização das
máquinas e descobertas frequentes que possibilitaram que tal aproveitamento crescesse de
forma expoente ao longo do tempo. A partir disso foram experimentados avanços em todos os
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setores, que produziram imensos e incontestáveis benefícios para a humanidade2, mas que
também geraram catástrofes ambientais de alcance inimaginável. A superexplorarção dos
recursos naturais, ou mesmo a invenção de novos artefatos, criaram situações de consequências
imprevisíveis, muitas delas desconhecidas, a exemplo da energia nuclear e organismos
geneticamente modificados, cujos efeitos nocivos ainda não se sabe como controlar e resolver.
Diante desse cenário de avanço de conhecimento científico, e aproveitamento econômico de tal
conhecimento, sem considerar os limites da natureza e as consequências da interferência
humana nos processos naturais, ou mesmo diante da incerteza da reversão de tal interferência,
que culminaram em graves problemas ecológicos e sociais, passa-se a discutir acerca de tais
questões.
O economista e cientista social Gilberto Dupas destrincha e conceitua o que ele chama
de “ideologia do progresso”, publicando em 2006 o livro “O mito do progresso”. Nessa obra, o
autor perpassa desde o significado semântico da palavra progresso, até a evolução desta como
um conceito, e como este permeou a trajetória política, econômica e social da humanidade e
que culminou, entre outras coisas, na grave crise socioambiental na qual estamos todos
inseridos na atualidade. Para ele, o alvorecer do século XXI trouxe o seguinte paradoxo: o
conhecimento científico acumulado, e as diversas técnicas decorrentes desse conhecimento,
foram colocados à serviço de um sistema capitalista hegemônico e global, que revolucionaram
de forma profunda o estilo de vida humano3, produzindo cada vez mais e melhor, assumindo a
assunção de progresso (grifo dele); no entanto, por outro lado, consequências negativas
derivaram ao mesmo tempo, dentre as quais exclusão social, concentração de renda e
subdesenvolvimento, gerando impasses, riscos e profunda instabilidade dentro desse sistema
como um todo. Diante de tal cenário, passou-se a questionar como seria possível equilibrar os
tantos benefícios contra o perigo sempre latente de um desastre absoluto:
2 Dentre os inúmeros benefícios à vida humana proporcionados pelo conhecimento científico, um dos mais
significativos a citar é o avanço nas questões médicas e de saúde, que possibilitou a descoberta da cura e tratamento
de doenças; e o aumento da produção de alimentos, com melhoramento de sementes e controle de pragas, e
inovação das técnicas agrícolas; tendo sido ambos de fundamental importância no aumento da expectativa de vida
e responsáveis pelo crescimento populacional mas que, ao mesmo tempo, contribuíram para o agravamento dos
impactos aos sistemas naturais de diversas formas. 3 Sobre a mudança do estilo de vida humano, Dupas (2006, p. 142-143) destaca a questão do consumo de matérias
primas e produtos, quando o sistema capitalista hegemônico passa a criar e induzir necessidades para a
humanidade, materializadas através de objetos e serviços de desejo, e transformando esses em material de
manipulação em busca de lucro. Com isso, torna obsoletos produtos já existentes, estimulando a aquisição dos
produtos novos, gerando um ciclo vicioso de consumo. Assim, afirma que essa lógica de produção e consumo
incessantes estão entre os responsáveis pelo empobrecimento das relações sociais e degradação do meio ambiente
– uma vez que, em escala global, observa-se esse ciclo que produz o sucateamento de produtos e geração de
desperdício de matéria prima e recursos naturais, que custam uma degradação incessante da natureza e de energia.
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E as consequências negativas do progresso [...], para além de seus irresistíveis
sucessos, acumularam um passivo crescente de riscos graves que podem levar
de roldão o imenso esforço de séculos da aventura humana para estruturar um
futuro viável e mais justo para as futuras gerações. [...] ...nós temos a
responsabilidade ética para com eles, ainda que não estejamos mais aqui
quando eles vierem nos acusar. (DUPAS, 2006, p. 16)
Dupas (2006) constata que esse sistema hegemônico passou a dominar e conduzir o
conhecimento científico de acordo com seus próprios interesses – se apropriando do discurso
sobre o progresso para transformá-lo num instrumento de legitimação da acumulação de posses
e lucros. Porém, isso não significou assumir a responsabilidade sobre as consequências
causadas, uma vez que se passou a acreditar que a própria evolução científica e tecnológica
conseguiria, evoluindo ao longo do tempo, solucionar os problemas por elas mesmas criados, a
fim de não impedir o avanço das técnicas, ou mesmo conduzi-las de forma mais criteriosa e
ética.
É de consenso de grande parte da comunidade científica que desde os primórdios da
vida na Terra, as mudanças abruptas no ambiente terrestre foram decorrentes de impactos de
asteroides, erupções vulcânicas, entre outras causadas por fenômenos naturais. Porém, nos
últimos 10 séculos, período da vida humana no planeta, passou-se a observar mudanças nos
padrões das vegetações que recobrem a superfície da Terra – tendo essas mudanças sido
iniciadas com o avanço das técnicas agrícolas das primeiras civilizações e a intervenção das
atividades humanas sobre a natureza, através do poder das primeiras ferramentas utilizadas na
agricultura. Assim, ainda que houvesse intervenção humana sobre o meio ambiente e utilização
dos recursos naturais, estes eram feitos em escala local, através de técnicas mais rudimentares,
e de forma a respeitar os limites da natureza, partindo da consciência de que a vida humana
dependia de tais recursos – a exemplo da conserva de colheitas. Nas Américas, os processos de
devastação mais intensos começaram com a forma de exploração e colonização das terras recém
conquistadas, em meados do século XVI, através de processos de cultivo e pastoreio que aos
poucos iam agredindo os ecossistemas dos quais faziam parte. Porém, como afirma o autor
“Nos últimos cinquenta anos, as novas tecnologias e o desenvolvimento industrial decorrente
alteraram muito mais profundamente e rapidamente os tênues equilíbrios dos ecossistemas que
sustentam a vida na terra” (DUPAS, 2006, p. 224).
Assim, conforme afirmado pelo autor, foi a Revolução Industrial o marco da mudança
dessa tendência: a partir de onde a exploração dos recursos naturais e transformação da matéria
prima, conduzida principalmente através da queima do carvão, que passou a deixar marcas
significativas da ação humana sobre o meio ambiente. Portanto, para Dupas (2007), o
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aproveitamento industrial do conhecimento científico que proporcionou, sobretudo, o domínio
da natureza e aproveitamento dos recursos naturais, conduziu a humanidade à uma capacidade
de produção e consumo nunca vistos anteriormente na história da humanidade. Juntamente a
esse crescimento econômico, o sistema dominante (capitalista global) fortalecia cada vez mais
a ideia de progresso, trazido pela produtividade em todos os setores, assumido pelo discurso
hegemônico e ideal de globalização, deixando evidente que “Para vários importantes cientistas,
a ameaça mais grave à humanidade nesse início de século XXI é o ataque sem trégua ao meio
ambiente decorrente da lógica da produção global e da direção dos seus vetores tecnológicos
contidos nos atuais conceitos de progresso” (DUPAS, 2006, p. 219).
Dupas (2007) faz, então, questionamentos sobre o que ele chama de ‘mito do progresso’,
procurando analisar o que é, de fato, esse progresso, quem o incentiva e a quem ele serve, e
quais as consequências socioambientais para alcança-lo, questionando se a humanidade estaria
ficando mais satisfeita e feliz a medida que as técnicas avançam. O autor afirma que essa ideia
é dominada pelos sistemas de produção, que visam, a frente de tudo, o crescimento econômico,
destinado aos lucros individuais e privados, embora passem frequentemente a ideia de que esse
progresso serviria ao bem-estar humano e qualidade de vida de todos – e por isso configura-se
como um mito. Assim, ele aponta para a necessidade de se descontruir com esse discurso
hegemônico (grifo dele) sobre o crescimento econômico associado com a ideia de progresso,
uma vez que se percebe, ao longo do tempo, que tal crescimento é alcançado em detrimento das
questões sociais e ambientais, não trazendo os devidos benefícios que deveria à qualidade de
vida das populações, e não se preocupando com os custos ambientais para alcançá-lo.
Dupas (2006) traz, com isso, uma forte crítica a respeito da falta de ética e de
responsabilidade diante desses discursos do sistema hegemônico e capitalista, que conduzem o
conhecimento científico e as diversas formas de produção em prol dos seus próprios interesses,
e que seria necessário, assim, “[...] criar uma motivação econômica para retardar a devastação,
já que a motivação ética parece ser inútil diante da lógica avassaladora do capitalismo global e
dos agentes do capital” (DUPAS, 2006, p. 225). Ainda, segundo ele, é preciso fazer uma análise
profunda sobre os caminhos desse progresso, e definir como tratar e controlar o
desenvolvimento científico e tecnológico, uma vez que este conduz a humanidade a graves
riscos também, apesar das vantagens evidentes, visto as consequências nefastas que
contribuíram para o agravamento da crise ambiental.
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Santos Filho (2015) desenvolve ainda a ideia de que essa crise ambiental moderna, na
qual estamos todos inseridos atualmente, decorre então de uma crise do paradigma ambiental
vigente: tal paradigma é o responsável por identificar as questões e problemas de ordem
ecológica e, ao mesmo tempo, responde-las e solucioná-las. Uma vez que tais problemas estão
ficando sem resolução e, pior, têm se agravado de forma abrupta nas últimas décadas, em
decorrência das intervenções tecnocientíficas nos processos naturais, então esse paradigma
encontra-se em crise.
Ele aponta que, no percurso para que se trate a crise do paradigma ambiental moderno,
existem três caminhos possíveis: a) manter o paradigma ambiental moderno: funda-se na crença
de que o avanço da tecnologia conseguiria resolver os problemas ecológicos, ao mesmo tempo
que associa tais problemas ao capitalismo e seus modos de produção – no entanto, não haveria
como tornar o sistema econômico em algo sustentável, porque ainda assim ele trataria a
natureza como “mercadoria”, visando a obtenção de lucro, explorando-a sem considerações
éticas; b) retroceder: retornar ao ideal de natureza intocada, preservá-la da ação humana, uma
vez que responsabiliza as intervenções tecnocientíficas pela crise ambiental – tal alternativa
seria inviável tanto por negar os avanços da modernidade quanto pela impossibilidade de tal
retorno, uma vez que o homem faz parte na natureza e dela depende sua sobrevivência; e c)
avançar: trabalhar na construção de um novo paradigma ambiental, que supere a separação entre
Natureza e Cultura, fundamentando um novo contrato social ecológico:
O objetivo primordial é reconciliar a cosmovisão da sociedade com a
realidade de uma base finita de recursos naturais, reorientando os
padrões de uso, de apropriação e de distribuição dos bens ambientais,
bem como disciplinando o uso, a apropriação e a distribuição de novas
tecnologias. (SANTOS FILHO, 2015, p. 126)
Assim, a partir da constatação que “uma crise ambiental é essencialmente uma crise
paradigmática” (SANTOS FILHO, 2015, p. 130), o autor afirma que essa crise ameaça a
continuidade da vida humana de forma plena e digna – uma vez que o mau uso das técnicas tem
interferido nos processos naturais que fornecem bens materiais essenciais para sobrevivência
da humanidade. Fazendo a ressalva de que não se trata de desconsiderar os avanços obtidos
pela ciência e pela técnica, que tanto proporcionaram melhorias à vida humana, ou mesmo
associar a crise ambiental a um problema exclusivamente econômico, o autor defende que não
seria adequado, ou mesmo possível, a busca pelo retorno da natureza intocada, mas sim
ressignificar o conceito de natureza, seus limites, a responsabilidade humana diante da
intervenção técnica sobre ela, bem como questionar os atuais padrões de civilização.
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A ciência, principalmente a ciência moderna, trouxe consigo uma questão ambígua,
onde por um lado pôde proporcionar avanços que impactaram positivamente a vida da
humanidade, mas levantando também dúvidas a respeito do seu limite e da capacidade de lidar
com o desconhecido, produto de seus próprios avanços, revelando-se um paradoxo. No entanto,
entende-se que para auxiliar a solucionar esse problema não se deve “limitar a técnica, mas
orientá-la diferentemente, de maneira a respeitar essa natureza de que fazemos parte”
(LARRÈRE & LARRÈRE, 1997).
Fica entendido então que, dentre outras coisas, foi a apropriação econômica do
conhecimento científico que possibilitou as mais variadas transformações na forma de vida
humana, que moldou a forma como as populações passaram a utilizar os recursos, a se
comportar diante da natureza e de outros seres humanos, e a ocupar e modificar o espaço. Faz-
se necessário, como reiterado por Dupas, entender a quem essa aproveitamento do
conhecimento científico serve, de que forma ela acontece, e questionar quais são as
consequências que todo esse processo ocasiona à vida humana e ao meio ambiente, sejam elas
positivas e negativas. E, para além disso, questionar quais são os limites do progresso
econômico, e a capacidade dos sistemas naturais de sustentar e absorver as consequências desse
progresso, e aonde ele levará a humanidade. Fica entendido que caso continue a acontecer de
forma despreocupada, sem levar em conta o respeito à natureza e às futuras gerações, a crise
ambiental que se vive continuará se agravando em proporções incalculáveis, trazendo ameaças
não apenas à natureza, mas para a própria vida humana – questões essas que passaram a ser
discutidas sob as diversas perspectivas da ética ambiental, e refletidas nos conceitos do
desenvolvimento sustentável.
2.2 Os percursos da ética ambiental
As ameaças dos problemas ambientais e crise ecológica que passaram a ser percebidas
mais intensamente por volta de 1960, tempo no qual também os temores sobre uma possível
guerra nuclear (período da Guerra Fria) e a emergente conscientização a respeito das injustiças
sociais que ficavam cada vez mais evidentes, e começavam a provocar reflexões sobre a relação
entre o homem e o meio ambiente. Relação essa que, durante um significante período de tempo,
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foi de domínio e poder do homem sobre a natureza e demais seres vivos, sem os devidos
questionamentos a respeito do limite da natureza, dos direitos dos demais seres vivos, ou mesmo
a preocupação as condições de vida das futuras gerações.
Dentre as áreas de atuação da filosofia, o campo da ética levantou, historicamente,
questionamentos no âmbito da relação entre os seres humanos, mas entre esses exclusivamente.
Dilemas éticos percorreram, e percorrem, toda a trajetória da humanidade, influenciando
sobremaneira a organização política, econômica e social das comunidades humanas. Mas a
partir do momento que os problemas ambientais passaram a se mostrar de forma intensa e gerar
consequências, muitas vezes imprevistas, de difícil solução para a vida humana e a própria
natureza e demais seres vivos, as éticas clássicas começaram a ser insuficientes para debater e
lidar com todas as questões do mundo contemporâneo, sobretudo com as questões ambientais
(LARRÈRE, 2010/4). Dentre as publicações que começaram a alertar sobre os efeitos que as
transformações industriais passaram a causar, o livro Primavera Silenciosa (Carson, 1962) e o
Relatório Meadows (1972) destacaram-se por evidenciarem que a busca pelo crescimento
econômico desenfreado, sobretudo na tentativa de recuperar as economias abaladas pelo pós-
guerra, estava causando danos nefastos e até irreversíveis à natureza.
Assim, sendo cada vez mais urgente a necessidade de pensar as problemáticas
relacionadas ao meio ambiente, e ao próprio futuro da humanidade diante das incertezas trazidas
pela crise ambiental, a filosofia ambiental4 e suas reflexões começaram a ganhar espaço nos
cursos e universidades, dentro do âmbito da filosofia (ANDREW, 2009). Conforme o autor, até
as décadas de 1970/80, a preocupação ambiental era focada em preservar a natureza selvagem5,
e nas décadas seguintes foram acrescentados aos estudos e pesquisas até então desenvolvidos,
as questões acerca dos ambientes urbanos, depleção de recursos naturais e poluição, entre
outros.
É também por volta de 1970/80 que se consolida o movimento chamado Deep Ecology
(termo utilizado pelo filósofo norueguês Arne Naess em 1973), uma corrente da filosofia
ecológica e ambiental que irá buscar e incentivar a reestruturação das sociedades humanas em
4 A filosofia ambiental é um ramo da filosofia que irá abarcar a relação entre a sociedade e a natureza, preocupando-
se com a intervenção das atividades humanas sobre os recursos naturais e demais seres vivos. A medida que avança
nos diversos âmbitos de discussão, se subdivide em outros ramos que irão tratar de assuntos específicos, como a
bioética, estética ambiental, ecofeminismo, ética ambiental, entre outros. 5 Considera-se natureza selvagem os espaços ainda intocados, ou minimamente alterados, pela ação humana. O
autor, na referida obra, exemplifica como natureza selvagem parques e reservas naturais dos Estados Unidos, que
eram centro de debates a respeito das teorias de conservação versus preservação dos primeiros movimentos
ambientalistas.
30
prol do valor da natureza e demais seres vivos, ao tempo que defende que estes têm valor
intrínseco, independentemente de suas utilidades para suprir quaisquer necessidades humanas.
Ele argumenta que a interferência humana na natureza representa uma ameaça para atuais e
futuras gerações e, portanto, o meio ambiente deve ser respeitado, lançando a base dos
questionamentos acerca das questões ambientais que viriam ganhar mais espaço
posteriormente, dentre os quais, a ética ambiental (ENCYCLOPEDIA OF
ENVIRONMENTAL ETHICS AND PHILOSOPHY, 2008; MCSHANE, 2009; LARRÈRE,
2010/4).
Foi na virada do século XXI que a filosofia ambiental contemporânea passou a se
ramificar para outras áreas próximas, como teorias sociais, culturais, políticas e econômicas, e
a respeito da saúde dos ecossistemas. Andrew (2009) apontou que a filosofia ambiental ganhou
relevância nos debates em outros espaços para além do campo de discursão da filosofia por ter
começado a levantar reflexões acerca dos problemas ambientais contemporâneos cujas
resoluções deveriam requerer interdisciplinaridade entre diversos setores da sociedade.
Environmental ethics is theory and practice about appropriate concern for,
values in, and duties regarding the natural world. [...] Environmental ethics
starts with human concerns for a quality environment, and some think this
shapes the ethic from start to finish. Others hold that, beyond inter-human
concerns, values are at stake when humans relate to animals, plants, species
and ecosystems. According to their vision, humans ought to find nature
sometimes morally considerable in itself, and this turns ethics in new
directions. (ROLSTON III, 2003, p.1)6
Esses problemas trazidos pela crise ambiental, decorrente dos impactos causados pelo
uso e ocupação do homem no meio ambiente, muitas vezes resultante da apropriação do
conhecimento científico e suas diversas técnicas, como discutido no tópico anterior, e muitas
vezes à serviço do crescimento econômico, passaram então a suscitar discussões filosóficas a
respeito da relação ética entre o homem e a natureza. Diante da problemática ambiental, e social,
consequentemente, começou-se a questionar quais seriam os limites da natureza, como esses
limites poderiam ser medidos, e qual seria o papel e responsabilidade do homem diante de tais
limites. Esse cenário levou a ética ambiental a estudar também todo o conjunto da natureza, e
não somente a relação entre os seres humanos, levantando questionamentos sobre qual seria o
6 Ética ambiental é teoria e prática sobre a preocupação apropriada com os valores e os deveres a respeito do
mundo natural. [...] A ética ambiental começa com a preocupação humana pela qualidade do meio ambiente, e
alguns consideram que isso molda a ética do início ao fim. Outros sustentam que, além das relações inter-humanas,
os valores estão em jogo quando seres humanos se relacionam com animais, plantas, espécies e ecossistemas. De
acordo com essa visão, seres humanos deveriam achar a natureza as vezes moralmente considerável por ela mesma,
e isso leva a ética para novas direções. (ROLSTON III, 2003, p.1) - Tradução nossa.
31
valor do meio ambiente e dos demais seres vivos, e quais seriam os deveres dos homens para
com eles e para com as futuras gerações (VIDAL, 2010).
Segundo Silva, G. (2014), tornou-se então desafio da ética embasar uma nova
consciência racional, uma vez que tem se ampliado o questionamento ético sobre o papel do
homem diante da natureza, na medida que os problemas socioambientais surgiram e se
agravaram, assim como as crescentes contradições sociais. Para Santos (2012), sendo a ética
um conjunto de valores individuais, todos precisariam então estar envolvidos com a tarefa de
repensar a relação do homem com a natureza sob novos parâmetros, uma vez que “todo mundo
está de acordo que é preciso fazer algo em relação ao meio ambiente, que a chamada “crise
ambiental” não é simplesmente uma invenção de ambientalistas catastrofistas, mas uma questão
real” (SANTOS, 2012, p. 44).
Leff (2010) atenta para o que ele chamou de apropriação capitalista na natureza, quando
o processo de globalização avançou de forma a atribuir à natureza valores econômicos, ou seja,
fortalecendo a ideia de apropriação dos recursos naturais para suprimento do consumo humano.
Nos rumos de um possível desenvolvimento sustentável seria necessário que, então, houvesse
uma construção coletiva consciente e respeitosa em prol da proteção da natureza, surgida de
uma ética que abarcasse o cuidado com essa e de um diálogo de saberes entre todos os atores
sociais envolvidos nos diversos processos que regem e ordenam a vida humana:
A ética ambiental propõe um sistema de valores associados a uma
racionalidade produtiva alternativa, a novos potenciais de desenvolvimento e
a uma diversidade de estilos culturais de vida. Isso supõe a necessidade de ver
como os princípios éticos de uma racionalidade ambiental se opõem e
amalgamam com outros sistemas de valores: como se traduzem os valores
ambientais em novos comportamentos e sentidos dos agentes econômicos e
dos atores sociais. Trata-se de ver os princípios éticos do ambientalismo como
sistemas que regem a moral individual e os direitos coletivos, sua
instrumentação em práticas de produção, distribuição e consumo, e em novas
formas de apropriação e transformação dos recursos naturais. (LEFF, 2015, p.
86)
McShane (2009) e Larrère (1997;2010) levantam, também, questionamentos acerca da
ética ambiental, no que concerne ao ‘valor’ da natureza, uma vez que para o antropocentrismo
apenas o homem teria valor moral. Essa vertente da ética voltada para o meio ambiente passa,
assim, a contestar a ideia de que a natureza esteja a serviço do homem, e a atribuir um valor
moral para os demais seres vivos e ecossistemas, ao compreender que o mundo natural tem
valor por si próprio (valor intrínseco) e independe dos seres humanos e de seus interesses
(econômicos, principalmente). McShane (2009) afirma ainda que, dentre as tendências mais
recentes da ética, a ética ambiental tem se evidenciado como uma virtude, através da qual
32
passou-se a discutir sobre valores econômicos e estéticos do meio ambiente natural, que irá
abranger as questões acerca da economia ecológica e estética ambiental, e serviços
ecossistêmicos, e a responsabilidade humana diante de tudo isso.
Holmes Rolston III, filósofo americano, afirma que durante milênios a filosofia pensou
sobre a natureza, e embora embutida de questões éticas, de certa forma, essa preocupação acerca
da relação respeitosa do homem para com a natureza não se desenvolveu de forma considerável
até a constatação da crise ecológica, por volta de 1960. Rolston (2007), afirma que a ascensão
da filosofia ambiental, pouco discutida até meados de 1970, tornou-se em um dos
desenvolvimentos mais surpreendentes da filosofia, por ter ganhado destaque nos debates para
além da filosofia, e ter se estendido à diversas outras áreas como biologia, economia, direito,
sociologia, entre tantas outras, que passaram a ter uma preocupação ética acerca do uso humano
sobre o ambiente natural.
Para Rolston (2007), foi após o Iluminismo e revolução científica que a natureza passou
a ser vista como algo mecanizado e destituído de valores próprios, e que tais valores só passaram
a surgir de acordo com o interesse humano sobre determinados recursos. Junto a isso, as teorias
judaico-cristãs corroboravam a ideia de que Deus criou a natureza para sujeita-la ao domínio
dos seres humanos, fazendo com que, por séculos, a filosofia ocidental fosse
predominantemente antropocêntrica. O autor faz, então, apontamentos a respeito da ética nas
relações humanas, afirmando que os seres humanos são os únicos dotados de uma consciência
que se traduz em ações morais; e questiona, se justamente por possuirmos tal consciência, não
deveríamos incluir as outras cerca de 10 milhões de espécies que dividem o planeta conosco,
respeitando também seus interesses. Com isso, ele faz a seguinte crítica: “A ética ambiental
sustenta que nós, humanos, não somos tão "iluminados" quanto seria de se supor, não até que
alcancemos uma ética mais respeitosa” (ROSLTON, 2007, p. 557), ou seja, defendendo a
inclusão da responsabilidade para com o meio ambiente junto às relações entre os homens,
mesmo porque ele é indispensável para a vida:
A qualidade ambiental é necessária para a qualidade da vida humana. Os
humanos reconstroem dramaticamente seus ambientes; ainda assim, suas
vidas, preenchidas com artefatos, são vividas em uma ecologia natural na qual
recursos - solo, ar, agua, fotossíntese, clima - são questões de vida e morte. Os
destinos da cultura e da natureza estão interligados, de modo similar (e
relacionado) à maneira pela qual as mentes são inseparáveis dos corpos. Assim,
a ética precisa ser aplicada ao meio ambiente. (HOSLTON, 2007, p. 558)
Dessa forma ele reitera que os homens além de se incluir na natureza, da mesma forma
devem incluir a natureza em sua ética, uma vez que existe também um direito humano à
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natureza – como o direito de alimentar-se, direito à água, ar, solo, ecossistemas, além do direito
a um meio ambiente sadio.
Por fim, além de tratar sobre a importância de se preservar qualquer espécie animal ou
vegetal, seja ela necessária ou não para a vida humana; bem como cuidar para que os diversos
ecossistemas sejam capazes de manter seu equilíbrio, e consequentemente contribuir para o
equilíbrio da vida no planeta como um todo, a ideia que Rolston (2007) fortalece é de que a
vida humana está interligada à natureza, e essas não podem ser dissociadas. É, portanto, esse
ponto de vista que o filósofo defende com veemência, de que todas as vertentes que decorrem
da ética para com a natureza (biocentrismo, ética da terra, ética do bem-estar animal, ecologia
política, ética do desenvolvimento sustentável, entre outros), estão associadas e tratam das
relações entre homem, natureza e meio ambiente ao mesmo tempo. E é esse o mesmo fio
condutor do pensamento de Larrère & Larrère (1997):
[...] a natureza como matéria exterior e neutra da qual podemos fazer o que
quisermos, e a respeito da qual não tínhamos nenhuma responsabilidade, já não
existe. Ela é a nossa obra, nela pusemos a nossa vontade, está em nosso poder,
e dela somos responsáveis perante as futuras gerações. (LARRÈRE &
LARRÈRE, 1997, p.11)
Larrère & Larrère (1997) reafirmam, portanto, a questão de não ser mais possível
separar homem e natureza, tanto porque a sobrevivência humana depende de recursos naturais,
quanto porque a natureza intocada já não existe – o ambiente natural está sob interferência
direta ou indireta das ações humanas, mesmo que ainda hajam, por um lado, vertentes que
defendem o respeito absoluto à natureza, visando conservá-la ao máximo, sem qualquer
intervenção do homem; e por outro, vertentes que defendem o direito humano irrestrito na
intervenção do espaço. Os autores, então, reiteram que não adianta mais ficar confrontando as
duas vertentes: não se deve fazer essa divisão, pois o homem faz parte da natureza, já a
transformou e vai continuar a transformar.
Dentre algumas das vertentes que compõem o âmbito da ética ambiental, Larrère
(2010/4) discorre sobre o biocentrismo, o pragmatismo e o ecocentrismo, onde todas trazem
considerações a respeito do valor intrínseco (ou não) da natureza e demais seres vivos. A ética
biocêntrica vai atribuir valor intrínseco e dignidade moral a todos os seres vivos, defendendo
que todos os animais têm igual direito à proteção. É essa a vertente da ética que irá trazer
importantes considerações para a discussão sobre a importância da biodiversidade (tema
norteador da conferência Rio-92), que vai influenciar as políticas de proteção animal ao redor
do mundo. No entanto, a autora pondera a respeito da dificuldade prática do biocentrismo, uma
34
vez que ao atribuir igual valor à todas as espécies animais, ou mesmo porque ele não reconhece
o valor de seres não-vivos, como paisagens e ecossistemas, apresentando-se, portanto, como
uma contradição: como seria possível proteger uma espécie animal sem proteger todo o meio
do qual ela precisa para sobreviver?
A análise de Larrère (2010/4) quanto ao pragmatismo pondera sobre o percurso dessa
vertente que reinsere o homem como o centro dos valores e passa atribuir valor instrumental à
natureza, de forma que defende a sua proteção, mas tende a reduzi-la à fonte de recursos,
materiais e serviços – ou seja, sua valorização é decorrente dos benefícios que ela pode fornecer
à vida humana – apresentando-se, então, como uma vertente reducionista.
Como contraponto à ambas as vertentes, biocentrismo e pragmatismo, diante da
necessidade de buscar algo que responda às questões ambientais contemporâneas, a autora
apresenta então o ecocentrismo. Diferentemente do biocentrismo, que defende a atribuição de
igual valor para todas as espécies animais, o ecocentrismo vai dar destaque a importância da
interdependência de todos os elementos, o pertencimento destes enquanto conjunto, visando a
proteção da “comunidade biótica”: seres vivos e não-vivos, de forma a incluir, também, os seres
humanos e recursos naturais. Dessa forma, traz o homem não para o centro da questão, mas
como parte essencial dela, reintegrando-o à natureza, fazendo-o assumir o compromisso de suas
ações para com o meio ambiente. Para tal, Larrère (2010/4) defende a importância da
articulação entre a ética e a ciência, através do debate público, que norteie as ações humanas
em tudo o que concerne as questões ambientais.
Reafirmando que as nossas ações técnicas foram, em grande parte, responsáveis pelas
consequências decorrentes da crise ambiental, a autora atenta a respeito de que não se deve gerir
os problemas ambientais apenas sob o ponto de vista econômico, ou mesmo que não bastaria
“trazer remédios técnicos para problemas técnicos” – mas refletir sobre como agir diante dessa
crise sob uma dimensão ética, que englobe a natureza e todos seus componentes. A questão
central defendida, então, é como orientar a ação humana a partir de agora, considerando todo o
conhecimento dos riscos e degradação já levantados: para isso se propõem não impedir/limitar
a técnica, mas orientá-la de forma que o valor da natureza e demais seres vivos, e a
responsabilidade perante as futuras gerações, sejam levados em conta, ou seja, fazer um ‘bom
uso’ da natureza, um uso ecocentrado:
Falar de bom uso é dizer que não podemos utilizar simplesmente a natureza,
mas que devemos determinar os critérios do seu uso. A crise ambiental
reafirmou a importância da avaliação. [...] Surgiram novas formas de
avaliação, visando atribuir aos elementos naturais um ‘valor intrínseco’ que
35
não seja redutível a um valor instrumental ou econômico. Mais radicalmente,
pôs-se a questão de uma mudança dos nossos comportamentos, de uma nova
ética de respeito ou de responsabilidade perante a natureza. (LARRÈRE &
LARRÈRE, 1997, p.18)
Os autores trazem assim, à luz desse debate, a reflexão acerca da reconciliação
conceitual entre homem e natureza, defendendo que ambos são integrados e, ao incluir a ética
no centro dessa relação, afirmam ser possível o bom uso da natureza, visto que as atividades
humanas dependem desta e podem, inclusive, contribuir para sua proteção. Assim, segundo os
autores, a partir de 1970, passou-se a inserir a ética nos processos de decisão acerca da proteção
da natureza e gestão de riscos, onde entendem que o caminho a percorrer não é de limitar a
ciência ou as técnicas, mas conduzi-las de maneira que a natureza da qual fazemos parte seja
respeitada. Dessa forma, os autores elucidam que essa é a preocupação ética com as práticas
ambientais atuais. Os seres humanos utilizam a natureza, e precisam fazê-lo, mas essa relação
não pode mais acontecer de forma a não assumir responsabilidades sobre tais usos e as
consequências dos mesmos. Para tal, deve-se determinar os critérios desse uso, e isso foi
reafirmado pela crise ambiental constatada na qual a humanidade está completamente inserida
e é responsável.
Tratando de crise ambiental, os autores apontam que esta tornou-se planetária devido à
globalização dos problemas ambientais, como o risco de crise energética e esgotamento de
determinados recursos naturais, mudanças climáticas e efeito estufa que afetam, ainda que de
forma diferente, diversas localidades do mundo, e o risco da perda da biodiversidade. No
entanto, além da degradação relacionada diretamente com a natureza, Larrère & Larrère (1997)
atentam que essas consequências recaem também sobre os seres humanos, uma vez que estamos
todos expostos a esses riscos, sendo necessário também proteger as populações e suas culturas.
Com isso, afirmam que o que deve ser protegido é um objeto híbrido, mais uma vez trazendo a
importância de reinserir o homem, e todas as suas produções, junto à natureza.
No entanto, ainda que já se tenha muito conhecimento sobre a crise ambiental e efeitos
nocivos que essa degradação pode incidir sobre as populações, os autores trazem também
considerações sobre as incertezas que ainda pairam sobre os limites da natureza e da utilização
das técnicas (a exemplo da energia nuclear, modificações genéticas de plantas e animais, entre
tantos outros); e diante de quaisquer incertezas defendem que:
É pois, necessário, na falta de conhecimentos, apelar à prudência. Num
universo incerto, ou quando se está confrontando com cenários divergentes e
indecisos, não é razoável limitar-se a ser racional. Uma ética da prudência é
então susceptível de evitar as decisões cujos efeitos perversos (incontroláveis
36
e imprevistos) podem ter consequências nocivas. (LARRÈRE & LARRÈRE,
1997, p.194)
Dessa forma, os autores evidenciam que a ética ambiental vai preocupar-se de forma
significativa com as gerações futuras, uma vez que propõe uma prudência mais crítica diante
da utilização das técnicas, principalmente. Contudo, propõem que essa ética voltada para o meio
ambiente deve ser inserida não só nas decisões políticas e econômicas, mas que ela deve
traduzir-se numa mudança de comportamentos, de forma geral. Os autores ainda defendem que,
depois de refletir acerca desse cenário de crise ambiental, é possível voltar a valorizar e respeitar
a natureza, reconhecendo que essa tem um valor intrínseco, e fazer um melhor uso dos seus
recursos, compreendendo que as atividades humanas estão incluídas nela, e por isso mesmo
precisamos protege-la. Assim, Larrère e Larrère (1997) relacionam a proteção da
biodiversidade com a proteção das próprias praticas humanas - produtivas, científicas e lúdicas.
E, embora os problemas apresentados pela crise ambiental tenham atingido proporções
alarmantes, devido às intervenções na natureza e uso despreocupado das técnicas, os autores
acreditam ser possível ainda promover um desenvolvimento durável ao tentar articular natureza
e política, voltar a conciliar naturalismo e humanismo, e elaborar normas éticas que orientem a
ação antrópica diante do meio ambiente. Mas, além de inserir a ética ambiental nas questões
normativas, Larrère e Larrère (1997) propõe que todo o conceito de natureza seja revisto, de
forma que o respeito para com esta seja traduzido numa mudança de comportamento de forma
geral, e esteja presente em todos os aspectos da vida humana que envolva a relação com os
recursos naturais e demais seres vivos, bem como a responsabilidade para com as futuras
gerações. Assim, dentre as perspectivas da ética ambiental, os autores afirmam:
Habitar uma natureza de que fazemos parte e que compreende as nossas obras,
fazer dela uma morada que seja viável e onde se possa viver. Sabemos que isso
não será fácil. Contudo, é possível conceber um bom uso, uma atividade
industriosa que respeite a natureza na sua diversidade. Um bom uso, informado
pela ecologia, e que sujeite a técnica a uma ética. (LARRÈRE & LARRÈRE,
1997, p.306)
Assim, a ética ambiental passou a se afirmar e ganhar espaço em meio as discussões
sobre o desenvolvimento sustentável, trazendo reflexões diretas acerca dos custos ecológicos
provenientes da ação humana sobre os recursos naturais, bem como os riscos e responsabilidade
perante as incertezas e o futuro da humanidade e da vida na Terra, de forma geral. Apontando
a importância de se atribuir um valor intrínseco à natureza e demais seres vivos, e a necessidade
de levar em conta o respeito aos limites recursos naturais, não somente porque a vida humana
depende do bem-estar ecológico, mas também as demais espécies e futuras gerações.
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Larrère e Larrère (1997) defendem, por fim, no aparato da ética ambiental, após
refletirem sobre a crise ambiental, bem como causas/consequências dela, a aplicação do que
eles chamam de ‘princípio da precaução’. Para eles, seria a adoção de tal princípio que apontaria
um caminho viável para as relações que se estabelecem entre homem e meio ambiente, visando
a proteção da natureza e futuro da própria humanidade de forma equilibrada, e que levem em
consideração “o debate público e o conhecimento científico esclarecido” (SANTOS; SOUZA,
2018, p. 111). Dessa forma, Larrère e Larrère (1997) argumentam, então, sobre como poderia
se estabelecer essa responsabilidade perante à natureza e às presentes e futuras gerações.
Fazendo uma crítica à teoria do ‘princípio de responsabilidade’, de Hans Jonas, os autores
defendem a teoria do ‘princípio da precaução’:
A razão sobrepõe-se assim ao medo e abre o espaço do debate público. Uma
tal compreensão do princípio da precaução resulta da prudência, essa virtude
grega do limite e da medida, atenta à singularidade dos casos, que é a
capacidade para deliberar e decidir numa situação de incerteza, [...]. O
princípio de precaução pode assim aplicar-se no espaço político da democracia,
e mesmo tendo em conta as incertezas inevitáveis do saber científico, não se
separar desse último. (LARRÈRE & LARRÈRE, 1997, p. 280-281)
Hans Jonas, filósofo alemão, publicou em 1979 o livro “O Princípio da
Responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica”, onde argumenta que os
problemas socioambientais causados pela tecnologia precisam ser avaliados sob o ponto de
vista de uma nova ética, que oriente a ação da técnica. Jonas defende que, diante das incertezas
e riscos provocados pela técnica, que ameaçam a própria vida humana, deve-se efetivar uma
“ética da responsabilidade”, onde ações mal planejadas e cujos efeitos se desconhecem, sejam
renunciadas (SANTOS; SOUZA, 2018). Contrapondo-se à teoria de Jonas, Larrerè e Larrerè
(1997) propõem para a questão do uso da técnica sobre a natureza e suas consequências, em
partes ainda desconhecidas para as presentes e futuras gerações, prudência para que se garanta,
através da negociação, do debate, da exposição dos riscos, o acesso equitativo de todos ao bem
comum, através da preservação da natureza. Voltando a reafirmar que não se trata de limitar a
técnica, mas orientá-la, para que esta faça da natureza um bom uso. Para isso, veem como
fundamental a reconciliação conceitual entre sociedade e natureza, reinscrevendo o homem
dentro dela, despertando seu sentido de pertencimento de forma a provocar uma mudança
comportamental que reflita na preocupação e cuidado efetivo para com o meio natural.
Contudo, Larrère & Larrère (2015) fazem uma ressalva a respeito da conceituação dos
termos ‘natural’ e ‘artificial’, uma vez que ambos passaram a ser utilizados de forma hierárquica
38
nas discussões a respeito da ética ambiental, aos quais passou a ser atribuído valor: tudo o que
for classificado como natural é bom, ao passo que as coisas artificiais teriam conotação
negativa. Assim, os autores chamam atenção a respeito dessa divisão, afirmando que não é
possível estabelecer esse limite entre o que é natural ou artificial de forma tão simples, visto
que a humanidade vem interferindo na natureza desde os primórdios e porque, tão importante
quanto isso, o homem é parte da natureza – reforçando a ideia de que ambos não devem ser
separados.
Por fim, o ponto central que os autores defendem diante dessa dicotomia natural versus
artificial é que ambos não devem ser separados ou que um seja escolhido em detrimento do
outro, mas que sejam analisadas todas as situações, a fim de considerar suas potencialidades.
Com isso, afirma-se mais uma vez que é papel da ética ambiental não limitar a técnica e negar
os avanços já alcançados, mas orientar seu uso e ponderar suas consequências, ao incluir o
homem (e sua produção) dentro das discussões a respeito da natureza, dos demais seres vivos
e das gerações futuras.
2.3 Os discursos do desenvolvimento sustentável
Antes dos movimentos em prol do meio ambiente começarem a receber destaque e o
debate sobre o desenvolvimento sustentável se expandir para os mais diversos setores, as
discussões sobre a preservação da natureza se dava, quase que exclusivamente, sobre a proteção
das florestas, parques e reservas ambientais. Tais discussões não chegavam a abranger a noção
do uso/exaustão de recursos naturais, e nem degradação ambiental causada pela ação antrópica
sobre a natureza – principalmente depois da Revolução Industrial, juntamente com avanços
técnicos e científicos, que ampliaram a capacidade humana de intervir no meio ambiente; como
tampouco era questionado o quanto esses impactos afetavam a qualidade de vida das
populações atuais e futuras.
Em outubro de 1962, Rachel Carson – bióloga e escritora – lançou um livro chamado
Primavera Silenciosa (Silent Spring), onde denunciou a morte de espécies animais e degradação
ambiental da região onde vivia, ocasionadas devido à poluição ambiental por pesticidas
químicos sintéticos (DDT), que estavam sendo amplamente utilizados. Essa publicação chamou
39
a atenção das comunidades ambientalistas sobre impactos que as ações antrópicas vinham
causando ao ambiente natural e consequentemente, os riscos que tais impactos poderiam causar
a própria vida humana.
Em 1968 ocorreu o Clube de Roma, uma reunião onde vários países debateram sobre o
futuro da humanidade e utilização dos recursos naturais, considerado um “marco das
preocupações do homem moderno com o meio ambiente, incorporando questões sociais,
políticas, ecológicas e econômicas com uso natural dos recursos” (SANTOS, 2004). Tais
reflexões continuaram a ser discutidas na Conferência das Nações Unidas, realizada em
Estocolmo em 1972, quando o aumento da exploração dos recursos naturais, níveis de poluição
e desastres ecológicos passaram a refletir direta e indiretamente na vida da população mundial,
suscitando questionamentos acerca da temática socioambiental e crise ecológica
(GUIMARÃES, 2010). A partir de então os conceitos de ecodesenvolvimento e
sustentabilidade começaram a ser formados e repercutidos, sendo entendidos como um meio
termo entre crescimento econômico e equilíbrio ecológico:
A visão mecanicista da razão cartesiana converteu-se no princípio construtivo
de uma teoria econômica que predominou sobre os paradigmas organicistas
dos processos da vida, legitimando uma falsa ideia de progresso da civilização
moderna. Dessa forma, a racionalidade econômica baniu a natureza da esfera
de produção, gerando processos de destruição ecológica e degradação
ambiental. O conceito de sustentabilidade surge, portanto, do reconhecimento
da função de suporte da natureza, condição e potencial do processo de
produção. (LEFF, 2015, p. 15)
Nos anos que se seguiram, diversas outras reuniões e conferências foram realizadas ao
redor do mundo, a exemplo da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
(1987) e a Rio-92, entre outros, de onde foram divulgados estudos sobre os níveis de degradação
ambiental causados pelas ações antrópicas e relatórios que passaram a trazer o conceito de
desenvolvimento sustentável para os discursos públicos. Dessas reuniões e conferências
mundiais saíram publicações como o Relatório Brundtland7 e Agenda 218, documentos que
passaram a nortear as políticas públicas de diversos países, questionando os limites da
7 O Relatório Brundtland (Our Common Future – Nosso Futuro comum), é o documento final produzido durante
os debates da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento em 1987, que apresenta como ideia
central a noção que o desenvolvimento econômico precisa estar acompanhado do desenvolvimento social, e levar
em consideração os limites de exploração dos recursos naturais para que seja possível alcançar o desenvolvimento
sustentável.
8 A Agenda 21, resultado da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, que
ocorreu no Rio de Janeiro em 1992, é um programa de ações com diversos instrumentos de planejamento para a
construção de sociedades sustentáveis, através de métodos que conciliem eficiência econômica e justiça social,
aliadas à proteção ambiental.
40
intervenção do homem na natureza, e incentivando a adoção de estratégias que fossem capaz
de promover um desenvolvimento mais sustentável, que respeitasse os limites dos ecossistemas
naturais, possibilitando a qualidade de vida dessa geração e das futuras.
A tomada de consciência ecologista e os movimentos verdes, que nasceram na década
de 60, surgiram como reação às insatisfações advindas dos custos ecológicos gerados pelo
crescimento econômico e “progresso”, que não haviam dado atenção aos limites naturais e
sociais no decorrer da história da humanidade, intensificados após a Revolução Industrial,
quando o conhecimento científico acumulado possibilitou um crescimento da produção de bens
materiais através da utilização predatória de bens naturais (SACHS, 2007; DUPAS, 2006).
É cada vez mais fácil apontar a insustentabilidade dos atuais padrões de
crescimento, mas a facilidade desaparece por completo quando se tenta definir
os caminhos que levarão a um desenvolvimento mais sustentável. Desde o final
dos anos 1980, quando os problemas ambientais globais se tornaram mais
graves e evidentes, particularmente a dilapidação da biodiversidade e o
aquecimento global, a noção de desenvolvimento sustentável espalhou-se por
vários países, tornando-se um dos mais imprescindíveis ideais da sociedade
moderna. (EHLERS, 2012, pg. 10)
José Eli da Veiga é um grande expoente para a conceituação do que seria o
desenvolvimento sustentável, nesse contexto de crises socioambientais que passam a permear
mais fortemente o mundo nas últimas décadas. O autor trabalha, em diversas obras, assuntos
que formulam esse conceito. No livro Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI,
Veiga (2010) começa a destrinchar, num primeiro momento, qual seria o significado do termo
‘desenvolvimento’, isoladamente, chegando à conclusão que este foi e é, por vezes, associado
ao crescimento econômico, mas que teóricos como Ignacy Sachs vem trazendo a ideia de
‘desenvolvimento’ como um conjunto de fatores, que envolve também as questões sociais e
ambientais. Para ele, um dos aspectos que contribuem para essa associação é a dificuldade de
mensurar9 esse desenvolvimento, o que o mantem como algo ainda subjetivo, enquanto o
crescimento econômico pode ser avaliado e medido pelo PIB per capita de cada país.
Segundo o autor, os fundamentalistas do mercado apontam o desenvolvimento como
algo decorrente apenas do crescimento econômico, onde esse crescimento chegaria num ponto
9 Sobre os índices para medir o desenvolvimento de um local, o autor mostra que outros fatores passam a valer
como índices, não contando apenas o crescimento da economia, afirmando que o IDH (Índice de Desenvolvimento
Humano) é um dos pontos de partida para esse cálculo, uma vez que diversos indicadores sobre a qualidade de
vida da população serão levados em conta para avaliar o nível de desenvolvimento de determinada localidade,
além do crescimento econômico apenas.
41
de possibilitar a preservação da natureza e a qualidade de vida (curva ambiental de Kuznets10),
além do ultra otimismo tecnológico – acreditar que a evolução da tecnologia vai conseguir
responder a esses problemas causados e revertê-los; no entanto, ele desmonta essa supremacia
mercadológica, afirmando que tais preceitos além de não serem éticos, já existem indicadores
que comprovam tragédias ambientais de países ricos, invalidando a teoria de que crescimento
econômico estaria diretamente relacionado à preservação ambiental que os economistas tanto
tentam legitimar.
Veiga (2010) dá continuidade, na segunda parte do livro, à tentativa de definir qual o
sentido do termo ‘sustentabilidade’, que começou a ser utilizado ao tempo que passaram a
acontecer as conferências mundiais, como a Conferência de Estocolmo, em 1972. Ele afirma
que, diferentemente do ‘ambientalismo pueril’ das décadas anteriores, que pouco se preocupava
com as questões sociais, de pobreza e desigualdade, a sustentabilidade vem abarcar também as
dimensões social, cultural, política (nacional e internacional), territorial, econômica, além da
ecológica e ambiental. No que concerne à sustentabilidade ecológica e ambiental, afirma que:
[...] os objetivos de sustentabilidade formam um verdadeiro tripé: 1)
preservação do potencial da natureza para a produção de recursos renováveis;
2) limitação do uso de recursos não renováveis; 3) respeito e realce para a
capacidade de autodepuração dos ecossistemas naturais.
A sustentabilidade ambiental é baseada no duplo imperativo ético de
solidariedade sincrônica com a geração atual e de solidariedade diacrônica com
as gerações futuras. Ela compele a trabalhar com escalas múltiplas de tempo e
espaço, o que desarruma a caixa de ferramentas do economista convencional.
Ela impele ainda a buscar soluções triplamente vencedoras (isto é, em termos
sociais, econômicos e ecológicos), eliminando o crescimento selvagem obtido
ao custo de elevadas externalidades negativas, tanto sociais quanto ambientais.
(VEIGA, 2010, p. 171-172)
Na última parte do livro, Veiga (2010) traz então a junção do termo ‘desenvolvimento
sustentável’, apontando esse como a ‘utopia do século XXI’, e faz uma crítica à apropriação
econômica do termo11, que passa a utilizá-lo a seu favor e se auto postular como sustentável;
tanto por via de ser um termo que caiu no uso comum, quanto por perpetuar o otimismo de que
é possível associar o livre crescimento econômico com a preservação ambiental – quando já
existem inúmeras pesquisas que invalidam essa associação. O autor afirma que ao trazer a
10 A curva ambiental de Kuznets representa um gráfico, desenvolvido por Simon Kuznets, onde se relaciona o
crescimento do PIB e a educação com o nível de degradação da natureza, estabelecendo a noção de que ao
ultrapassar um certo patamar de riqueza, determinada população passaria a preocupar-se com a preservação do
meio ambiente, e esta seria alcançada. 11 Diversos setores da economia passam a apropriar-se dos discursos do desenvolvimento sustentável, utilizando
estratégias de “marketing verde” e associando os termos que remetam produtos e serviços à sustentabilidade, numa
tentativa de convencer a população das boas intenções para com o meio ambiente, uma vez que tais termos e
discurso sustentável caíram no uso comum.
42
questão ambiental para o discurso econômico, os setores comerciais passam à tentativa de traçar
quais seriam os limites da natureza, as questões de valorações econômica, do quanto poderia
ser pago para fazer usufruto de um bem ou serviço ecossistêmico, sempre apreendendo a visão
econômica, do capitalismo, sobre o desenvolvimento sustentável. Por outro lado, ele também
afirma que “propostas como um mundo de crescimento zero, para não falar de fantasias como
o retorno à suposta simbiose primitiva entre homem e natureza, embora radicais, são
completamente inviáveis” (VEIGA, 2010, p. 206).
Por fim, o autor elucida que esse tal desenvolvimento sustentável não é, até este
momento, um conceito redondo, mas uma utopia ainda sem absoluta definição – menos ainda
qual seria exatamente o caminho para alcança-lo. Para ele, apesar disso, a definição trabalhada
por Sachs é a que mais se adequa, que seria alcançar, ao mesmo tempo, a qualidade de vida
preservando o meio ambiente; onde essa qualidade de vida não necessariamente esteja atrelada
ao crescimento econômico e imperativos de consumo exacerbado que se pratica.
Sachs (1995) afirma que “o poder destruidor das tecnologias, cujo uso permanece
subordinado à busca de projetos financeiros e econômicos de curto prazo, manifestou-se, por
outro lado, pela degradação do meio-ambiente” (SACHS, 1995, p. 31). Para o autor, progressos
econômicos e tecnológicos ao longo das décadas, acarretaram no agravamento das crises
socioambientais, sem prever soluções para estas; e que as crises nos contextos urbanos
precisavam de atenção, uma vez que são nesses locais que ocorrem as relações interpessoais,
que são fontes de inúmeros conflitos, sendo necessário, então, um despertar da cidadania
urbana. O autor ainda faz uma crítica ao uso do termo desenvolvimento que, segundo ele,
deveria ser reservado para quando houvessem progressos nos âmbitos social, econômico e
ecológico de forma integrada e ao mesmo tempo:
O desenvolvimento sustentável obedece ao duplo imperativo ético da
solidariedade com as gerações presentes e futuras, e exige a explicitação de
critérios de sustentabilidades social e ambiental e de viabilidade econômica.
Estritamente falando, apenas as soluções que considerem esses três elementos,
isto é, que promovam o crescimento econômico com impactos positivos em
termos sociais e ambientais, merecem a denominação de desenvolvimento.
(SACHS, 2008, p. 36)
Assim, os debates acerca da sustentabilidade e do desenvolvimento sustentável
começaram a partir da segunda metade do século XX, quando as discussões em torno das
questões relacionadas ao crescimento da população, desenvolvimento econômico e sua relação
com o meio ambiente passaram a ser desenvolvidas de forma mais consistente (SILVA, G.
2014). Conforme Santos (2004), a questão ambiental passou a ser contemplada dentre os
43
conceitos do planejamento entre os anos 1970 e 1980, quando começou a ser discutida a
preservação dos recursos naturais e o papel do homem integrado ao ambiente natural, e de que
forma essa integração refletia na qualidade de vida das populações. Para Veiga (2010), a
sustentabilidade começava a se firmar como um novo valor que emergia a partir dos anos 1980,
e trazia consigo a noção de que existia a possibilidade de se preservar e recuperar os sistemas
naturais já degradados, sendo essa uma condição para a evolução da espécie humana e
progresso social.
A crise ambiental veio, então, contestar o crescimento econômico e as bases de produção
que, por décadas, negaram a natureza, e passaram a refletir numa crise do mundo globalizado
de forma geral. Dessa forma, entende-se como preemente a necessidade de ressignificar as
concepções de progresso e do crescimento sem limites, e idealizar novas estratégias de poder
em torno da reapropriação da natureza – filosófica, epistemológica, econômica, tecnológica e
cultural, como afirma Leff (2015). Os problemas socioambientais que passaram a ser
percebidos devido a grandes desastres que envolveram o meio ambiente e refletiram na
qualidade de vida das populações (SILVA, G. 2014), suscitaram os debates acerca da
preservação da natureza e da própria vida humana.
Das conferências e debates que se seguiram em torno da concepção de desenvolvimento
sustentável, que por vezes debateram e aplicaram as reflexões levantadas pelo princípio da
precaução (LARRÈRE & LARRÈRE, 1997), diversas agendas e acordos passaram a integrar
as políticas internacionais, na tentativa de se começar a efetivar os caminhos apontados para se
mitigar os efeitos da crise ambiental e evitar seu agravamento. Diante do risco de colapso
ecológico e escassez de recursos decorrentes do crescimento econômico e urbano, o
desenvolvimento sustentável trouxe uma visão interdisciplinar para abordar os problemas
ambientais e redirecionar as posturas em relação a estes problemas, a fim de reconciliar
sociedade e natureza de forma equitativa e equilibrada.
44
3 A PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO E A QUESTÃO AMBIENTAL
Tal como as sociedades se desenvolveram ao longo do tempo, juntamente com o vasto
conhecimento e tecnologias dele provenientes, alterou-se também o modo de vida humano e,
consequentemente, as formas de ocupação do espaço. Agrupando-se em cidades, que tiveram
um crescimento acelerado e muitas vezes de forma descontrolada, principalmente nas últimas
décadas, o estilo de vida urbano contribuiu sobremaneira para a intensificação da crise
ambiental na qual estamos inseridos na atualidade. A separação conceitual e prática entre
ambientes natural e construído, urbano e rural, ocasionaram com que, durante muito tempo, a
expansão das cidades e modos de vida adotados nela não levassem em conta a preocupação
com as questões ambientais e, por conseguinte, com a qualidade de vida. No âmbito da crise
ambiental e discussões levantadas no percurso da conceituação do desenvolvimento
sustentável, a preocupação acerca dos impactos do espaço urbano causado aos ecossistemas
naturais passou a se fazer cada vez mais necessária e presente, diante da constatação de não ser
mais possível discutir e pensar essa problemática de forma dissociada.
Esse capítulo tem por objetivo, então, discutir sobre a situação dos espaços urbanos diante
do contexto de degradação e crise ambiental que se vive na atualidade. E, a partir de tal
discussão, verificar como ocorreu a inserção da preocupação com as questões ambientais e
sociais que passaram a compor os debates acerca do planejamento urbano, no âmbito do
desenvolvimento sustentável.
Primeiramente, será evidenciada a problemática socioambiental urbana, na qual as
cidades encontram-se hoje inseridas, e da qual elas são responsáveis, juntamente com os
impactos causados, que tem contribuído para o agravamento da crise ambiental. Diante desse
cenário, será discutido como se deu a inserção da preocupação ambiental junto ao planejamento
urbano após a tomada de consciência ecológica e as diversas conferências realizadas desde
então, e de que forma repensar as questões urbanas pode contribuir para a mitigação dessa crise.
45
3.1 As cidades modernas e a problemática socioambiental urbana
A cidade é, desde a Antiguidade, o centro onde se organizam as sociedades, “onde surge
a filosofia, a reflexão sobre a natureza, o mundo e o conhecimento” (LEFF, 2015, p. 288). No
entanto, no decorrer do percurso da humanidade, os processos urbanos ocuparam o meio
ambiente natural de forma por vezes despreocupada, tirando máximo proveito dos recursos
naturais e provocando diversas interferências na natureza – ao produzir as cidades, acarretando
num conjunto de impactos responsáveis pela intensificação da crise ambiental que hoje se
enfrenta.
Os assentamentos humanos foram, historicamente, produtos da cultura e do modo de
vida de um determinado povo, se expressando de forma diferente durante a história da
humanidade. Diversos modelos de cidades existiram desde as mais remotas civilizações, e
foram se transformando no decorrer do tempo, coexistindo com seus entornos naturais, dos
quais dependiam diretamente dos recursos mais básicos à vida humana, sendo, por vezes,
indissociável a história das cidades da história da humanidade enquanto comunidade. Fato é
que, assim como o modo de vida dos homens sofreu inúmeras transformações ao longo do
tempo, as formas destes se organizarem geograficamente no espaço também se alterou
profundamente. Mendonça (2004) afirma que foi a partir da Era Moderna que se passou a ser
imposta uma nova dinâmica às cidades, visto que as relações sociais, econômicas e políticas
também passaram a se alterar de forma significativa nesse período. Conforme o autor, relações
capitalistas, sobretudo, de domínio e poder, consumo e produção, circulação, apesar dos
avanços proporcionados à vida humana, passaram a intensificar a degradação da natureza e,
assim, a despertar para a necessidade de se intervir de forma racional na construção do ambiente
urbano.
O crescimento das cidades, chegando nos padrões tais quais conhecemos hoje, ao redor
do mundo, aconteceu, entre outros fatores, devido ao aumento exponencial da população
humana a partir de meados de 1940, juntamente com o êxodo rural provocado pela mecanização
da agricultura aliado ao poder atrativo que as cidades passavam a apresentar, quando
comparadas à vida no campo, como facilidade de emprego, educação, saúde, serviços, entre
outros (GIRARDET, 2008). E, especialmente nos locais menos desenvolvidos
economicamente, as cidades se expandiram de forma descontrolada, com a ocupação de locais
inapropriados, e sem infraestrutura básica para suportar tal crescimento. Essa, dentre outras
46
coisas, foi uma das mais significantes causas do agravamento da degradação ambiental: as
populações cresciam, e as cidades cresciam junto para suportar e abrigar esse novo contingente
populacional. O aumento da produção de bens e serviços para atender a essa população, bem
como o aumento dos resíduos gerados tanto pelos processos de produção, impulsionado pela
revolução industrial, quanto pelo uso e descarte desses produtos, passaram a gerar diversos
impactos de ordem socioambiental, de forma cada vez mais intensa.
Esta compreensão consolida a ideia de que o espaço urbano não é resultante de
uma simples aproximação entre as pessoas para uma melhor convivência, mas
estreitamente ligado ao processo de produção e apropriação do próprio espaço,
tornando ele próprio, objeto de especulação. Para a compreensão dos contornos
do urbanismo atual, faz-se, pois, necessário compreender a estreita vinculação
do processo de urbanização com o processo de produção industrial, porquanto,
trata-se da geração de novas configurações onde as atividades produtivas
passam a acontecer em espaços na sua grande maioria coletivos e
centralizados. (CENSI; SCHONARDIE, 2015, p. 177)
Como afirmado pelas autoras, o processo de urbanização, acompanhando o crescimento
industrial, gerou novas configurações, as atividades urbanas passaram a ser cada vez mais
intensas, e os impactos decorrentes direta e indiretamente dessas atividades provocaram graves
consequências para a qualidade de vida dos seus habitantes e para o meio ambiente. Assim, o
processo de crescimento das cidades e a ação humana despreocupada com impactos causados
à natureza e ao espaço urbano contribuíram de forma intensa para a degradação dos espaços e
os problemas socioambientais urbanos.
Dentre os impactos ambientais intensificados pelas atividades urbanas, destacam-se a
poluição atmosférica – e consequente aumento do aquecimento global, advinda do uso de
combustíveis fósseis e não renováveis, para a realização de atividades de setores como
industrias e sistemas de transporte; depleção de recursos naturais para ocupação ou extração de
matérias-primas; e disposição e tratamento de resíduos, provenientes da alta produção e
consumo. Girardet (2008) afirma que tais impactos ultrapassaram as fronteiras e se tornaram
globais, principalmente pelo modo de vida ancorado na utilização dos combustíveis fósseis, que
tem impactado a natureza de forma nunca vista antes. Para ele, ainda que tais problemas tenham
atingido a proporção mundial, é necessário observar que nas cidades de terceiro mundo os
problemas se agravam diante da falta de condições mínimas de vida, como abastecimento de
água e sanitário, bem como tratamento de lixo, expondo as populações a doenças e epidemias
devido à insalubridade dos locais onde vivem e afetando mais fortemente as populações e
regiões mais pobres.
47
Embora os problemas ambientais urbanos atinjam indiretamente todos os
segmentos da população urbana – o que se verifica pelo amplo reconhecimento
da precarização da qualidade de vida nas grandes cidades –, é a parcela de
menores recursos que mais sofre com as suas consequências: os deslizamentos
provocados pela ocupação imprópria de encostas, as inundações decorrentes
da ocupação de áreas de várzeas e de fundos de vale, a contaminação por acesso
à água não tratada ou os problemas de saúde resultantes do manejo inadequado
de resíduos sólidos são apenas alguns dos problemas ambientais urbanos que
afetam diretamente a qualidade de vida da população de baixa renda. (SOUSA
E SILVA; TRAVASSOS, 2008, p. 43)
Ainda segundo o autor, o acelerado crescimento das cidades ao redor do mundo se deu
também devido às infinitas possibilidades que as novas tecnologias trouxeram, dentre elas
novas tecnologias de construção – cimento, concreto, aço e vidro – que ajudaram a acelerar
todo o processo. Para ele, além de toda energia e recursos naturais que uma cidade produz,
consome e desperdiça nas suas diversas atividades, os impactos ambientais decorrentes das
técnicas utilizadas nos processos de construção, especialmente o concreto armado12, também
somaram forças aos problemas ambientais que se enfrenta atualmente.
Alia-se a isso, o modelo de urbanização tradicional baseado na infraestrutura cinza
monofuncional - que é focada na circulação de automóveis e extensas áreas pavimentadas13
(que causam problemas à questão da drenagem das águas pluviais e consequências afins) com
alto potencial de comprometer a qualidade do ambiente e paisagem urbana, quando seu
planejamento não consideram as questões ambientais (HERZOG; ROSA, 2008). Tal modelo
de urbanização passou a vigorar a partir do começo do século XX, quando começa a produção
de automóveis à motor, movido através de combustíveis fósseis. Os avanços na indústria
automobilística e incentivo à produção, com potencial de grandes ganhos econômicos levaram
às cidades a fornecer infraestrutura para atender essa nova e crescente demanda, marcando um
novo padrão de vida. Além disso, aumenta-se também, a nível mundial, as companhias
fornecedoras dos combustíveis para a operação de tais veículos, perfazendo um ciclo onde o
12 O concreto armado (produto resultante da junção de cimento e ferro ou aço), vidro, aço e outros materiais
atualmente utilizados na construção civil, foram produtos criados no âmbito da revolução industrial e
proporcionaram um poder de inovações, formatos e rapidez não vistos anteriormente na construção civil. A partir
da utilização de tais materiais, foi possível construir edificações em escala de tempo infinitamente menor do que
anteriormente (quando as construções eram feitas através de materiais como pedra, adobe, argila, madeira), que
contribuíram para o rápido crescimento das cidades, num todo. Girardet (2008) elucida o uso do cimento como
uma dessas tecnologias que intensificaram a degradação ambiental porque além de ser um produto artificial, todo
seu processo de confecção e descarte tem efeitos nocivos à natureza, desde a retirada da matéria bruta dos solos e
alto consumo de energia para sua confecção, até a dificuldade em reciclar no momento do descarte. 13 Barlow (2015) traz reflexões sobre como a urbanização e impermeabilização dos solos está interferindo também
no ciclo hidrológico (e agravando a crise hídrica), ao impedir a absorção da água da chuva para abastecimento dos
lençóis freáticos e rios como um todo; afirmando que medidas para amenizar essa situação deveriam ser
incorporadas pelo planejamento urbano, como por exemplo estratégias de captação de água e telhados verdes,
entre outros.
48
crescimento econômico obteve êxito e relevância, sem a devida preocupação com as
externalidades sociais e ambientais que viriam decorrer disso (MENDONÇA, 2004).
Ora, mais uma vez a ideia de “progresso”, proporcionada pelo acúmulo do
conhecimento científico e incorporada pelos agentes econômicos, induziu o crescimento das
cidades apoiado nos meios de transporte motorizados. A utilização de automóveis passou a ser
incentivada em larga escala a partir da década de 1960, para favorecer o crescimento econômico
através das indústrias automobilísticas. Conforme afirma Maricato (2008), o automóvel foi o
maior influenciador do modo de vida urbano na era da industrialização, conformando a cidade
para a sua utilização, sendo por vezes tratado como uma utopia de liberdade e mobilidade, mas
que se converteu, com a intensificação do seu uso, em um dos maiores problemas para as
cidades:
A impermeabilização do solo causada pela urbanização dispersa que avança
horizontalmente sobre todo tipo de território ou uso, a área ocupada e
impermeabilizada pelo automóvel nesse modelo de urbanização
túneis) fragmentando e dividindo bairros inteiros, a custosa e predatória
poluição do ar se somam ao incrível número de acidentes com mortes ou
invalidez, as horas paradas em monumentais engarrafamentos causadoras de
stress, enfim o “apocalipse motorizado” é por demais visível e predatório para
ser ignorado. Suas consequências envolvem desde aspectos subjetivos como a
“solidão da abundância” (uma referência ao modelo de consumo que tem no
automóvel um item central) até o principal causador de impacto sobre o
aquecimento global. (MARICATO, 2008, p. 5-12)
Assim, o uso em demasia dos automóveis, sobretudo os particulares, tem agravado
problemas nos ambientes urbanos não apenas pelo incentivo à dispersão dos espaços e a indução
à pavimentação e impermeabilização destes, bem como pelo aumento dos índices de poluição
do ar. Como reitera Dupas (2006), carros individuais consomem uma quantidade muito superior
de energia do que o transporte público (principalmente quando esse último usa energia limpa14)
e contribuem de forma direta e intensa para o aquecimento global15, causando impactos
significativos no ciclo de evapotranspiração dos recursos hídricos. Dessa alteração nos padrões
14 Energia limpa é aquela que não libera resíduos e gases poluentes (responsáveis pela geração do efeito estufa e
consequente aquecimento global) durante sua produção e consumo, ou que o fazem de forma mínima, minimizando
as agressões ao meio ambiente, como por exemplo a energia eólica ou solar, as células de biocombustíveis
(biomassa, biodiesel, bioetanol, entre outros). 15 No Brasil, das emissões de gases de efeito estufa proveniente dos transportes, 32% é decorrente do transporte
coletivo, enquanto 68% é provocada pelos transportes individuais (dados do Ministério do Transporte, 2013). Essa
disparidade é consequência da priorização histórica que foi dada às indústrias automobilísticas, que marginalizou
e sucateou os outros meios de transportes que não fossem o individual motorizado. Tal priorização foi responsável
pela geração de um ciclo infindável de “deterioração das cidades e utilização injusta e antidemocrática do espaço
urbano”, intensificando tanto problemas sociais quanto ambientais. (RUBIM; LEITÃO, 2013).
49
do ciclo hídrico, observa-se como consequência períodos de longa estiagem em algumas
regiões, e intensas precipitações em outras – este segundo, quando aliado à impermeabilização
dos solos nas áreas urbanas ocasionam enchentes e inundações que afetam, muitas vezes de
forma devastadora, as populações e ambiente locais, especialmente nos lugares mais carentes.
Girardet (2008) aponta dois significantes reflexos da urbanização baseada na utilização
de automóveis (particulares, principalmente, em detrimento dos públicos ou coletivos).
Primeiro, tal modelo favoreceu que a expansão se efetivassem de forma física – expansão
geográfica das cidades, uma vez que existe a possibilidade de percorrer longas distâncias – e
que consequentemente aumenta ainda mais a dependência dos transportes automotivos. Isso fez
com que muitas cidades expandissem seus territórios para as áreas até então naturais, causando
ainda maior degradação do seu entorno, e incentivando a urbanização de áreas até então rurais.
Ao mesmo tempo, o grande número de automóveis causa quadros de congestionamento diários
às médias e grandes cidades e, além do grande fluxo de automóveis elevarem a poluição do ar
(que, dentre outras coisas, agravam problemas respiratórios da população), o modelo do traçado
de ruas e avenidas a favor do uso de carros afugenta pedestres das ruas16 e espaços públicos,
refletindo na queda da qualidade da vida urbana, que influencia inclusive na questão da
violência urbana.
Dessa forma, o modelo de urbanização adotado devido ao uso dos automóveis, aliado
ao urbanismo moderno17 e a setorização dos espaços (Figura 01), contribuíram de forma intensa
para formação de cidades cada vez mais espraiadas18, causando depleção de espaços até então
naturais nas periferias das cidades. Essas extensões não planejadas das cidades, aliadas a
décadas de um planejamento urbano centrado na utilização de automóveis, causaram tanto a
degradação de áreas naturais adjacentes às cidades e reforçando a dependência do uso de
16 Dentre os problemas causados por esse modelo de traçado urbano que favorece a utilização de automóveis,
observa-se ainda a ocorrência frequente de acidentes de trânsito. No caso do Brasil, esse possui uma elevada taxa
de acidentes, registrando uma média de 22,5 mortes para cada 100mil pessoas, ultrapassando países como China
(20,5), Índia (18,9) e Estados Unidos (11,4). A estimativa é que os gastos anuais para o sistema de saúde brasileiro,
dividido entre tratamentos e custos adicionais gerados por esses acidentes, chegue a cerca de R$ 50 bilhões ao ano.
(RUBIM; LEITÃO, 2013) 17 O urbanismo moderno esteve vigente entre as décadas de 1910 e 1950, principalmente, e teve grandes arquitetos
e urbanistas como expoentes, como Le Corbusier, Walter Gropius, Mies van der Rohe, entre outros. Dentre suas
características, a divisão das áreas urbanas em setores (comercial, residencial, áreas de lazer, etc.) foi uma das mais
marcantes. Tal setorização foi favorecida pela facilidade de locomoção possibilitada pelos automóveis. No entanto,
gerou-se espaços distantes e segregados, causando cada vez mais a dependência dos meios de transporte para
realização das necessidades básicas, quando o espaço de morar/lazer ficou distante do local de trabalho serviços,
e vice-versa.
18 Espraiamento é o termo utilizado para a expansão horizontal das cidades, que gerando a dispersão da malha
urbana, criando espaços distantes e causando impactos negativos na mobilidade urbana.
50
transporte automotivos para percorrer longas distâncias, geraram mais e mais
impermeabilização dos solos e emissão de gases de efeito estufa, como anteriormente frisado,
criando um ciclo cada vez mais degradante e insustentável do modo de vida urbano.
Figura 1 – Setorização no Urbanismo Moderno: Plan Voisin (Le Courbusier, 1925).
Fonte: www.planocidade.wordpress.com. Acesso em 06/03/2019
Com isso, o autor aponta a utilização desregulada de automóveis nas áreas urbanas como
um dos principais problemas para a qualidade ambiental e social das cidades atuais. Defende
que para reduzir de forma significativa os impactos ambientais da urbanização marcada pelo
uso de automóveis individuais, seria necessário combinar políticas de planejamento urbano,
melhorar densidade urbana, ampliar a oferta de transporte público e aliar novas tecnologias
(limpas), além de favorecer a apropriação dos espaços urbanos por pedestres, através da
priorização de áreas para pessoas em detrimento do espaço para automóveis (GIRARDET,
2008).
Fato é que, salvo a ocorrência de grandes catástrofes, os estudos demográficos preveem
que a população mundial continuará em ritmo crescente até 2050, atingindo a faixa dos 8 a 9
bilhões de pessoas (DUPAS, 2007). No Brasil, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE, 2011), estima-se de que 85% da população brasileira atual já
vive em cidades.
Em muitas regiões, abrigar tantos novos moradores levou ao surgimento nas
cidades de grandes áreas de habitação informal, densamente povoadas,
primitivamente construídas e carentes de todos os tipos de serviços. A pressão
sobre as cidades também leva à superpopulação das áreas existentes,
sobrecarregando os serviços, sistemas de tráfego e, com certeza, parques e
espaços comuns”. (GEHL, 2015, p. 217)
51
O crescimento populacional acelerado e o processo de migração, como afirmado por
Gehl (2015), das áreas rurais para as áreas urbanas nas últimas décadas, aliado à falta de
planejamento adequado e de conscientização ambiental da grande maioria das cidades
brasileiras, contribuíram também para o intenso processo de expansão urbana descontrolada e
uma ameaça aos recursos naturais (TIEPO. et al, 2014). Essas áreas de habitação informal
intensificaram o processo de produção irregular das cidades e a consequente degradação
ambiental decorrente deste. A falta de acesso a espaços regulares induziu essa população
crescente e recém-chegada as cidades a buscar outros meios junto ao mercado imobiliário
informal, que geralmente atua em áreas ambientalmente frágeis – loteamentos em áreas de
preservação ambiental, como margens de matas nativas e cursos d’água, encostas e topos de
morro, entre outros (ALFONSIN, 2001).
Maricato (2010) reitera tal questão afirmando que essa falta de alternativa de habitação
legal (que sejam reguladas pela legislação urbanística vigente de um determinado local) para
grande parte da população gera ainda, como uma das principais consequências, a “agressão
ambiental”. Porque a ocupação dessas áreas ambientalmente frágeis torna-se, muitas vezes, a
única alternativa para essa parcela da população, excluída tanto pelo mercado formal quanto
pelos programas assistenciais que são pouco abrangentes ou eficientes, uma vez que “Não é por
falta de leis ou planos que essas áreas são ocupadas, mas por falta de alternativas habitacionais
para a população de baixa renda” (MARICATO, 2010, p. 9). Aliado à questão habitacional, há
ainda o problema da falta de saneamento básico e tratamento dos esgotos domésticos que, no
Brasil, afeta cerca de 34,5 milhões de habitantes urbanos. E que, ainda quando coletado, 80%
do esgoto doméstico não tem tratamento adequado e é despejado nos cursos d’água – os riachos,
lagos, mangues e praias tornam-se canais e destinos finais desses esgotos, perfazendo o ciclo
nefasto de impactos ambientais e sociais urbanos19.
Assim, em inúmeras cidades, problemas de ordem econômica, social e ambiental têm
sido intensificados devido a esse modelo de desenvolvimento carente de planejamento
apropriado e gestão ambiental, em que ocorrem a proliferação de periferias desprovidas de
infraestruturas básicas, o intenso processo de impermeabilização dos solos – e suas
consequências nefastas, a poluição atmosférica, o aumento de “ilhas de calor” e desconforto
térmico, entre outros fatores que afetam diretamente a qualidade do meio ambiente natural e
construído, assim como a qualidade de vida das populações (SANTOS, C., 2013).
19 Dados do IPEA (2009), obtidos com base nos registros do IBGE (MARICATO, 2010).
52
A ideia de desenvolvimento que pode contribuir para efetiva melhora na
qualidade de vida da maioria da população deve vir questionar os valores da
sociedade capitalista em geral e rejeitar a economia produtora de valores de
troca e predadora de recursos naturais não renováveis. Torna-se essencial para
o nosso tempo, refletir acerca de alternativas econômicas que apresentem,
também, viabilidade ambiental. Que o desenvolvimento das cidades possa dar-
se em todas as suas dimensões, sejam elas: social, cultural, ecológica, espacial
e econômica. (CENSI; SCHONARDIE, 2015, p. 178)
Entende-se, portanto, que não apenas a inadequação do planejamento urbano no que diz
respeito ao ordenamento do desenho das cidades, mas também os processos como a vida urbana
acontece foram significantes para o quadro de degradação ambiental e social que se vive
atualmente. Ao mesmo tempo que a ciência evoluiu e proporcionou avanços, apesar benefícios
que agregaram à vida humana, estes também somaram forças à crise ambiental, ao possibilitar
ao homem o uso de técnicas que exploraram os recursos naturais intensamente, ela também
avançou na descoberta e aprimoramento de técnicas que visam a redução dos impactos
ambientais decorrentes das atividades urbanas. Dentre essas, pode-se se citar a criação de
pavimentos permeáveis (Figura 2), os avanços nas técnicas da eficiência energética, a
implementação de recursos de infraestrutura verde (como uso de telhados verdes nas
edificações – Figura 3), entre tantos outros avanços que tem a capacidade de mitigar alguns dos
efeitos negativos do modelo de urbanização vigente supracitados.
Figura 2 – Pavimentos permeáveis.
Fonte: http://www. jardinseafins.com. Acesso em 06/03/2019.
53
Figura 3 – Telhados verdes.
Fonte: http://www.casagrandenetimoveis.com.br. Acesso em 06/03/2019.
Sabe-se que outras variáveis estão inseridas nesse contexto, não apenas a adoção de
técnicas ‘verdes’. O controle do crescimento das cidades, a proteção às áreas verdes inseridas
na malha urbana ou na periferia destas, bem como a utilização dos recursos naturais também
são de suma importância para um desenvolvimento equilibrado. Assim, discutir questões acerca
da qualidade do ambiente urbano e buscar estratégias de planejamento de sistemas urbanos
sustentáveis, são incumbências do planejamento urbano pautado na proposta de
sustentabilidade, respeitando os limites da natureza, a fim de “promover a capacidade de
adaptação de ecossistemas urbanos para enfrentar os desafios das mudanças climáticas e
requalificar as ambiências urbanas, conformando uma nova morfologia e paisagem”
(MASCARÓ; BONATTO, 2013).
Para Mendonça (2004), tal processo de urbanização atrelado à industrialização
evidenciam que o transcurso do planejamento urbano esteve sempre vinculado aos interesses
econômicos, pouco levando em conta os elementos de ordem natural e social, que gerou a
proliferação de ambientes urbanos altamente nocivos, tanto aos habitantes das cidades quanto
ao entorno natural destas.
A industrialização, a produção, a circulação e o consumo de mercadorias,
dentre outros, e a concentração populacional nas cidades que se intensificou
nos dois últimos séculos, tanto promoveram a explosão urbana quanto
introduziram paulatinamente a degradação dos ambientes urbanos. Esta
realidade moderna passou então a exigir, notadamente do Estado, iniciativas
no sentido de ordenar o desenvolvimento dos aglomerados humanos e a
intervenção no equacionamento dos problemas daí derivados. É, certamente,
num tal contexto que se observa o nascimento do planejamento urbano.
(MENDONÇA, 2004, p. 15)
54
Portanto, é desse contexto de intensificação da industrialização e seus consequentes
impactos que, para o autor, nasce o planejamento urbano como um setor específico dentro do
controle dos órgãos governamentais. E, embora o desenho urbano em si tenha existido desde
sempre, é esse setor que passa então a pensar exclusivamente o ordenamento das cidades,
devendo levar em consideração diversas variáveis (econômicas, sociais, ambientais, culturais,
históricas) ligadas ao traçado urbano. A partir de tal afirmação, o autor levanta a reflexão sobre
a complexidade dos problemas no contexto urbano, e os estudos acerca de tais problemas, que
precisam compreender tanto a dinâmica da natureza quanto as duas interações com a
materialidade urbana e as atividades humanas.
Com isso, Mendonça (2004) relembra que as primeiras intervenções urbanas, que
apelaram à qualificação estética e higienização aconteceram em cidades europeias no início do
século XIX, a exemplo de Paris. No final deste mesmo século, as primeiras vertentes do
urbanismo moderno começaram a surgir, naturalistas e humanistas, demonstrando certa
preocupação com a interação entre sociedade e natureza, como o modelo da Cidade-Jardim
(Figura 4), de Ebenezer Howard, em 1898. Howard, pré-urbanista inglês, desenvolveu no final
do século XIX um modelo de cidade utópica, chamada por ele de “Cidade-Jardim”.
Figura 4 – Modelo da Cidade-Jardim.
Fonte: http://www.mediaarchitecture.at. Acesso em 06/03/2019.
Nesse modelo, Howard concebeu a ideia de um espaço que combinasse a vida urbana e
rural, onde propunha que as pessoas pudessem desfrutar dos benefícios de ambos os espaços
(natural e construído), em cidades de tamanho limitado, circundadas por áreas naturais (que
deveriam servir para a agricultura, como fonte de matérias primas e espaços voltados ao lazer),
55
gerando uma perfeita harmonia entre homem e natureza. A cidade de Lecthworth, na Inglaterra,
foi uma das criadas de acordo com o modelo de Howard, e suas ideias influenciaram no
planejamento urbano e teorias do urbanismo posteriores, tendo características aplicadas em
diversas cidades pelo mundo. No entanto, com a passagem do século, tal conformação aos
poucos se perde e passa a dar lugar ao urbanismo moderno, baseado no avanço das técnicas
com ênfase na indústria e na circulação, “revelando uma completa consonância com os ideais
da modernidade capitalista” (MENDONÇA, 2004, p.15).
Por conseguinte, passa a questionar a respeito da real eficácia desse planejamento, uma
vez que as cidades continuaram a crescer e causar impactos de forma caótica no decorrer do
tempo. Dessa forma, sendo esses impactos tão graves, e de difícil resolução, como seria possível
conceber cidades sustentáveis, e mais, o que seriam cidades sustentáveis? É a partir de então
que Mendonça (2004) aponta a abordagem interdisciplinar – o estudo da cidade sob a
perspectiva ambiental – como um caminho para se refletir sobre tal problemática.
A mudança que se observa na evolução da atividade de planejamento que, de
caráter eminentemente economicista abre-se para a abordagem ambiental, é
sobretudo resultante das pressões oriundas da crise ambiental que se acirrou
nas três últimas décadas, [...]. Uma tal mudança de concepção e prática é,
indubitável e paradoxalmente, um dos bons resultados da crise.
(MENDONÇA, 2004, p. 16)
Assim como Mendonça (2004), é de consenso entre outros teóricos das questões urbanas
(GEHL, 2015; GIRARDET, 2008; FARR, 2013; MARICATO, 2008), a relação direta e nociva
que o modelo de urbanização voltado para a utilização de automóveis, em detrimento da
priorização espaços para transportes não-motorizados (caminhadas a pé, ciclovias, por
exemplo) foi o principal responsável pelo estado socioambiental caótico que a maioria das
cidades se encontram atualmente. É fato que outros fatores também têm forte influência nessa
problemática, mas estes quase sempre estabelecem uma relação direta com esse modelo até
então vigente, a citar a depleção de áreas naturais e impermeabilização dos solos a medida que
as áreas urbanizadas se expandem, como já mencionado.
Esse processo de urbanização pautado na construção de infraestruturas voltadas para a
livre circulação dos transportes motorizados gerou áreas degradadas tanto física quanto
economicamente. A fragmentação do espaço urbano induziu a implantação de bairros
residenciais distantes dos centros de serviço, trabalho e lazer, além de afugentar as populações
carentes das áreas mais centrais, conduzindo-as à ocupação das áreas periféricas. Predomina a
visão de que as cidades podem continuar a se expandir, desconsidera-se os impactos da
56
implantação dessa infraestrutura, e como resultado tanto as áreas naturais sofrem pressão,
quanto os efeitos negativos do modelo de mobilidade são socializados. Boareto (2008) atenta
para o fato que esse modelo ainda não se materializou completamente em países como Índia e
China, embora sigam essa mesma tendência mundial. Com isso, traz um alerta para quando esse
padrão passar a vigorar também nos chamados países em desenvolvimento, visto que os
impactos tendem a aumentar de maneira a ficar cada vez mais insustentável, questionando quais
serão as consequências em termos de consumo energético, poluição atmosférica e aquecimento
global, quando se difundir o uso dos automóveis em todo o planeta.
Toda essa problemática associada aos espaços urbanos, juntamente com outros impactos
ambientais observados desde a década de 60, passam a levantar reflexões acerca da ação do
homem e a ser inseridos nas discussões sobre o desenvolvimento da humanidade e sua relação
com o meio ambiente, natural e construído (MENDONÇA, 2004). É nesse contexto que os
debates relacionados ao planejamento urbano começam a evidenciar, cada vez mais, a
necessidade de aprofundar a questão ambiental nos processos decisórios que irão ordenar o
desenvolvimento das cidades, bem como das formas de vida que acontecem nelas.
3.2 O ideal de desenvolvimento urbano sustentável – Cidades Sustentáveis
A tomada de consciência a respeito da crise ambiental, a partir dos movimentos
ambientalistas surgidos na década de 60 do século passado, e dos problemas decorrentes que as
sociedades passaram a enfrentar suscitaram, também, reflexões acerca de uma infindável crise
urbana a qual a maioria das cidades estão submetidas, no limiar do século XXI, como
consequência de um “modelo irracional” e obsoleto das formas de ocupação do espaço
(RATTNER, 2009). Leff (2015) afirma que, depois de as cidades terem se tornado o local onde
concentram-se as populações humanas, se congestiona o consumo e se degrada a energia,
deixando o fato urbano como algo totalmente insustentável, seria necessário repensar toda a
dinâmica da vida urbana sob a ótica da racionalidade ambiental:
[...] romper a inércia crescente de urbanização e repensar as funções atribuídas
à vida urbana. A sustentabilidade global obriga a pensar o substrato ecológico
onde se assenta a cidade, a encará-la como um processo entrópico; a relacionar
a construção do urbano (habitação, transporte, etc) em função da qualidade do
57
ambiente que ele gera e de seu impacto na degradação do ambiente pelo
consumo de recursos. (LEFF, 2015, p. 290)
Assim, começa a ficar indissociável a preocupação com a preservação do meio ambiente
e recursos naturais com a forma de ocupação do espaço materializada em cidades. E tal
preocupação passa a fazer cada vez mais parte dos estudos acerca do ambiente urbano, dos
impactos que causados ao seu entorno natural, bem como dos impactos aos quais ele também
está submetido – decorrentes dos próprios processos de crescimento urbano ao longo do
tempo20.
Girardet (2008) acredita que reconectar humanos e natureza está dentre os maiores
desafios do planejamento urbano para mudança desse panorama atual. É urgente criar uma
relação equilibrada entre as pessoas e o planeta e agora, mais que nunca, a humanidade dispõe
de ferramentas e técnicas que tem a capacidade de promover cidades mais ‘habitáveis’. Para o
autor, a preocupação não deve ser apenas com o crescimento urbano em si, mas a forma como
ele acontece, e suas implicações nos recursos naturais e consumo de energia. Portanto, assim
como Leff (2015), ele afirma ser necessário repensar todos os processos ligados à vida urbana,
e não apenas conter o crescimento populacional ou geográfico das cidades. O autor define como
sustentável uma cidade onde os cidadãos possam suprir suas necessidades e bem-estar sem
degradar o mundo natural ou a vida de outras pessoas, agora e no futuro.
Segundo ele, para conseguir criar assentamentos urbanos sustentáveis, onde meio
ambiente e questões sociais convivam bem e em equilíbrio, seria necessário repensar as formas
de produção e consumo, os sistemas de transporte e construção, a prevenção da poluição – todos
em consonância com o respeito à capacidade de regeneração dos ecossistemas naturais, bem
como preservando as oportunidades de usufruto das futuras gerações (GIRARDET, 2008).
“The concentration of intensive economic processes and high levels of
consumption in cities drives their demand for resources. Urban agglomerations
and their consumption partterns have become the dominant feature of human
presence on Earth, fundamentally changing the humanity’s relationship to its
host planet and ecosystems. Since most population and economic growth in the
coming decades will continue to occur in urban áreas, the overexploitation of
20 Como já mencionado, o crescimento urbano desenfreado, juntamente com os atuais estilos de vida da cidades
contemporâneas, têm gerado e intensificado impactos não somente à natureza e seus recursos; bem como impactos
às próprias áreas urbanas e seus habitantes, perfazendo ciclos de degradação socioambiental, que ora se dão de
forma separada, ora estão diretamente ligados, a exemplo: poluição dos recursos hídricos, que dificulta o acesso
da população ao abastecimento de água potável; enchentes e inundações de áreas urbanas; poluição atmosférica e
agravamento de problemas respiratórios; depleção de áreas naturais e ambientalmente frágeis, com ocupação para
fins de moradia; entre tantos outros.
58
natural resources could become even more acute, unless we find diferente ways
of managing them” (GIRARDET, 2008, p. 8).21
Diante de tal abordagem, tendo a noção que a vida urbana mudou a relação das pessoas
com a natureza, mas não deixando de ser diretamente dependente dela e dos recursos que
provém, Girardet (2008) classifica as cidades contemporâneas, então, como um “sistema eco-
técnico” – uma associação de ecologia e tecnologia. Tal constatação é decorrente da
dependência que a vida urbana tem dos dois sistemas, ao mesmo tempo que ela interfere e
modifica-os, não devendo dissociá-los. Para o autor, deve ser o uso eficiente desses recursos,
tanto ecológicos quanto tecnológicos, que irá melhorar a administração dos sistemas urbanos e,
consequentemente, mitigar o impacto sobre o meio ambiente.
A questão seria, então, como reconfigurar os espaços urbanos de forma que os impactos
sobre a natureza sejam reduzidos de forma significativa, ao mesmo tempo que a qualidade de
vida nos países em desenvolvimento seja melhorada. Nesse ponto, ele afirma que otimizar o
uso urbano dos recursos naturais é um grande desafio, porque o mundo aspira o modo de vida
de países desenvolvidos como Estados Unidos e Japão22, por exemplo, mas a natureza não tem
capacidade de suportar essa demanda. Contudo, o autor aponta que novas opções tecnológicas
estão ficando cada vez mais disponíveis, como sistemas de energia renovável (eólica, solar,
células de combustível), bem como sistemas de reciclagem, e que ambos passam a ter custos
mais acessíveis à medida em que se popularizam. Dessa forma, isso somaria forças à tentativa
de se alcançar uma qualidade de vida melhor (quando comparada aos países desenvolvidos),
sem causar tantos impactos ao meio ambiente, ou seja, aliando os sistemas ecológicos e
técnicos, como Girardet (2008) defende.
No entanto, além de trazer reflexões sobre o uso da tecnologia aliado à natureza para a
promoção da melhoria da qualidade de vida e redução dos impactos ao meio natural, o autor
também sustenta a ideia de que a chave para produzir cidades habitáveis é a difusão da presença
21 “A concentração de processos econômicos intensivos e altos níveis de consumo nas cidades impulsiona sua
demanda por recursos. As aglomerações urbanas e seus padrões de consumo tornaram-se a característica
dominante da presença humana na Terra, mudando fundamentalmente a relação da humanidade com o planeta e
seus ecossistemas. Como a maior parte do crescimento populacional e econômico nas próximas décadas continuará
a ocorrer nas áreas urbanas, a superexploração dos recursos naturais poderia se tornar ainda mais aguda, a menos
que encontrássemos formas diferentes de gerenciá-los. ” (GIRARDET, 2008, p. 8) – Tradução nossa. 22 Girardet (2008) afirma que países desenvolvidos são altamente dependentes de combustíveis fósseis, sendo essa
a base de suas tecnologias, além de sua complexa infraestrutura e níveis de consumo cada vez mais altos,
classificando-os como os lugares mais insustentáveis do planeta. Todavia, ignorando-se a degradação ambiental
que ele acarreta, esse é o modelo de vida e crescimento econômico que países em desenvolvimento aspiram seguir
– cujo o planeta não teria capacidade de suportar.
59
de espaços públicos naturais, limpos, atrativos e agradáveis para caminhar, com vizinhanças
seguras e cultura de rua vibrante e diversa. Fazendo uma crítica ao uso ostensivo de automóveis
na cidade, que afugentam pessoas do espaço público, ao desfavorecer o uso dos pedestres em
detrimento do espaço para transportes motorizados, Girardet (2008) faz uma ressalva sobre a
diferença entre sustentabilidade e habitabilidade, e defende que o ideal seria a união das duas
coisas. Para exemplificar como seria essa união, ele cita a adoção de ciclovias no espaço urbano:
ao mesmo tempo que o aumento de usuários e viagens com bicicletas ajudam a reduzir a
emissão de gases poluentes na atmosfera (sustentabilidade), elas trazem benefícios tanto para a
saúde dos ciclistas quanto promovem maior integração e melhoria da sensação de segurança,
com presença de pessoas e contato humano nos espaços urbanos (habitabilidade).
Entende-se que Girardet (2008), assim como outros pensadores da questão urbana,
sempre faz a associação entre sistemas naturais e sistemas humanos, visto que a dissociação
entre eles não pode mais ser feita – vivemos num mundo urbanizado e a tendência é que isso se
intensifique com o passar dos anos. Da mesma forma, hoje vivemos também num mundo
tecnológico e, tanto para o benefício da qualidade de vida humana quanto pelo bem do meio
ambiente, o ideal seria usar essa tecnologia a favor de ambas as questões. Para tal, é necessário,
portanto, que se somem as forças de todos os agentes que vivem a cidade e na cidade,
transformando-a, principalmente de quem tem o poder de regulamentar e guiar todas as
questões urbanas:
Pois afinal, as cidades estão em constante movimento, em constantes
modificações e, estas podem ser direcionadas para garantir a observância da
dignidade das pessoas que nelas vivem. Repensar as funções do Estado na
gestão dos interesses coletivos e difusos que operam no espaço urbano e na
urbanização é tarefa fundamental para o avanço e transformação das cidades
atuais em cidades sustentáveis. (CENSI; SCHONARDIE, 2015, p. 179)
Como afirma Acselrad (2009, p. 37), “A aplicação da noção de sustentabilidade ao
debate sobre o desenvolvimento das cidades exprime um duplo movimento de
“ambientalização” das políticas urbanas e de introdução das questões urbanas no debate
ambiental”. Segundo o autor, tanto os atores sociais quanto agências multilaterais de
desenvolvimento passam a incorporar a temática do meio ambiente nas questões urbanas, diante
dos conflitos entre os processos de ocupação urbana e redes de abastecimento de energia e água,
entre meios de transporte e qualidade/poluição do ar, entre outros, a fim de orientar as cidades
para a melhoria da “qualidade ambiental da vida urbana”.
60
A respeito da dificuldade de se formular soluções ideais para a promoção desse
desenvolvimento urbano sustentável, entende-se que os problemas ambientais urbanos
dificilmente reagem às soluções tecnológicas rápidas (LYNCH, 2009); mas é necessário
incentivar o desenvolvimento científico que vá fortalecer o interesse público e permitir aos
governos locais monitorar e se posicionar diante de tais questões.
Assim, é fortalecida a ideia do urbanismo sustentável23, um “emergente movimento de
desenho urbano” (FARR, 2013), onde líderes mundiais passam a reconhecer a importância e
necessidade de pensar em assentamentos humanos em que se adotem estilos de vida sem alto
consumo de recursos naturais, e que evitem que a degradação do meio ambiente continue a
acontecer em níveis tão alarmantes. Segundo o autor, esse movimento veio ressaltar os
benefícios da integração dos sistemas humanos e naturais, que reduzido aos princípios mais
básicos, “o urbanismo sustentável é aquele com um bom sistema de transporte público e com a
possibilidade de deslocamento a pé integrado com edificações e infraestrutura de alto
desempenho” (FARR, 2013, p. 28). Por “edificações e infraestrutura de alto desempenho”, o
autor trata de construções dotadas de estratégias sustentáveis, como sistemas de eficiência
energética, captação e aproveitamento de água da chuva, utilização de materiais
reciclados/recicláveis, dentre outras, que possibilitam a uma edificação/infraestrutura a
concepção e utilização de forma que agridam minimamente o meio ambiente.
Tendo levantado como base o estilo de vida norte-americano24 e os impactos que tal
estilo tem ocasionado ao meio ambiente, o autor destaca como o modelo proporcionado pelo
urbanismo tradicional, centrado na ampla utilização de automóveis e falta de contato com a
natureza acarretou sérios prejuízos à qualidade de vida e ao meio ambiente e, por isso, defende
o que ele conceitua como sendo o urbanismo sustentável a adoção de padrões que resgatem a
relação homem-natureza nos espaços urbanos.
23 O conceito de ‘urbanismo sustentável’ passou a ser trabalhado por Douglas Farr, através da obra intitulada
“Urbanismo Sustentável: desenho urbano com a natureza”, publicada em 2013, onde o autor apresentou a definição
do termo, e exemplificou como poderia ser sua aplicação através de algumas diretrizes e exemplificou por meio
de diversos estudos de caso em cidades norte-americanas e europeias. 24 Assim como outros autores (GIRARDET, 2008; GEHL, 2015), Farr (2013) apresenta considerações a respeito
do estilo de vida norte-americano e de como grande parte dos países em desenvolvimento adotam esse modelo
como ideal, e voltam-se para o crescimento econômico na tentativa de alcança-lo; no entanto, faz ressalvas sobre
o impacto que tal estilo de vida tem sobre o meio ambiente, pelo seu alto nível de consumo e degradação dos
recursos, produção de lixo e emissão de gases poluentes – aumentando a pegada ecológica e tornando-se inviável
para ser seguido no mundo todo.
61
No decorrer da sua obra, Farr (2013) lista “os três passos do urbanismo sustentável”, os
quais elege como parte do processo para que seja viável implantar esse novo ideal de
planejamento urbano, que seriam ainda mais eficientes se aplicados de forma conjunta. O
primeiro deles seria “criar um mercado para o urbanismo sustentável”: para o autor, não seria
possível a aplicação de práticas sustentáveis sem o envolvimento dos agentes econômicos –
atuar junto ao setor imobiliário e da construção civil, através do incentivo às práticas de
construção de edificações e empreendimentos sustentáveis25. O segundo passo, “derrubar as
barreiras da era do petróleo ao urbanismo sustentável”, traz críticas acerca da urbanização
dispersa, incentivada pela possibilidade de deslocamento através de meios de transporte
motorizados. Tal modelo de urbanização, que aumentou a dependência dos transportes e,
consequentemente, aumentou o consumo de combustíveis fósseis e emissão de gases poluentes,
deve ser repensado e substituído por traçados urbanos que priorizem os pedestres26. Por fim, o
terceiro passo seria o incentivo às campanhas pela implementação do urbanismo sustentável:
Para que o urbanismo sustentável avance e ganhe ímpeto, é fundamental que
seja visto como um movimento que desempenha um papel integral na
resolução das questões-chave do nosso tempo. Atualmente, ocorre o contrário.
O maior debate sobre política urbana da nossa geração, o das mudanças
climáticas, tem misteriosamente deixado de lado a ideia de mudança no
ambiente construído. (FARR, 2013, pg. 47)
Com isso, o autor se refere a associar ambas as estratégias tanto nos espaços construídos
(edifícios) quanto no espaço urbano; e a importância da adoção, de forma urgente, de tais
estratégias para que se minimize a degradação do meio ambiente, com foco nas mudanças
climáticas e todas as consequências que essas ocasionam - tal apelo se dá devido as altas taxas
de emissão de gases poluentes que as cidades norte-americanas apresentam (principal foco do
estudo na obra referida).
25 Sobre edificações e empreendimentos sustentáveis, o autor se refere às construções que tem certificação
ambiental, dentro dos parâmetros estabelecidos pelas agências que avaliam se uma edificação pode ser
considerada, de fato, sustentável. Aqui também ele menciona não apenas a edificação em si, mas também de
empreendimentos, como os bairros sustentáveis: espaços projetados onde todos os aspectos – edifícios privados e
espaços públicos, contemplam estratégias que consideram a proteção ao meio ambiente e recursos naturais,
mitigando a degradação ambiental e proporcionando qualidade de vida aos usuários e entorno. 26 A respeito de priorização dos pedestres, Farr (2013) trata não apenas em relação ao sistema de transporte versus
uso de calçada e espaços públicos, como também a respeito da disponibilidade de serviços próximos, que
incentivem os percursos à pé: por exemplo, a possibilidade de morar perto da escola, trabalho, oferta de
comércio/serviços e lazer (uso do solo compacto) – o que incentivaria aos habitantes realizar suas atividades diárias
caminhando, ao invés da necessidade de utilizar transporte para deslocamento a fim de realizar as necessidades
diárias mais básicas.
62
Junto às discussões acerca do desenvolvimento sustentável de maneira geral, os
governos dos países mais desenvolvidos passaram a perceber as consequências nefastas que a
rápida e descontrolada urbanização acarreta ao meio ambiente e qualidade de vida de suas
populações, reconhecendo a necessidade de se pensar em assentamentos humanos sustentáveis.
Assim, paralelamente às conferências e debates sobre a problemática ambiental como um todo,
passaram a acontecer também reuniões focadas nas questões urbanas dentro desse contexto de
busca de caminhos possíveis para um desenvolvimento urbano sustentável.
Assim, as diversas conferências realizadas e publicação de documentos elaborados,
através dos debates levantados sobre o impacto das ações antrópicas sobre o meio ambiente e
recursos naturais, passaram a influenciar a institucionalização das preocupações relativas ao
meio ambiente nas decisões políticas ao redor do mundo, dentre as quais, as políticas referentes
ao planejamento urbano.
Contudo, conforme afirma Boareto (2008), o percurso de tais políticas e discussões
sobre a sustentabilidade urbana deve estar sempre relacionado ao combate às desigualdades
sociais, uma vez que as populações mais pobres estão mais expostas aos riscos e impactos
ambientais. Para ele, as abordagens e os conceitos sobre esse desenvolvimento sustentável das
cidades ainda estão em aberto e requerem profundas reflexões e aprimoramentos, mas pautas
como a inclusão social, o combate à pobreza e a equidade no usufruto do espaço público devem
estar presentes em todos os níveis de discussão.
3.2.1 Agendas Habitat – I, II e III
Os problemas socioambientais urbanos que começaram a ser debatidos a partir da
década de 1960, suscitaram a realização de Conferências mundiais, dentre os quais os fóruns
UN-Habitat, que passaram a refletir sobre a crescente urbanização e sua consequente
degradação social e ambiental. Com isso, o Programa Habitat da ONU nasceu com a missão de
“promover social e ambientalmente o desenvolvimento sustentável dos assentamentos humanos
e a aquisição de abrigo adequado para todos” (ANTONUCCI. et al, 2009). Os planos
promovidos pelo programa tiveram sua concepção pensada como instrumentos para conduzir
63
as decisões políticas a entender, enfrentar e buscar soluções aos problemas urbanos locais e
globais.
Realizada em Vancouver em 1976, a primeira Conferência das Nações Unidas sobre
Assentamentos Humanos - Habitat I, foi organizada para começar a discutir as questões
diretamente relacionadas aos assentamentos humanos, suas formas de ocupação do espaço e os
impactos delas decorrentes. Nessa Conferência foi aprovada a Agenda Habitat, um plano de
ação composto de 64 itens, com preocupações direcionadas à qualidade de vida e dignidade
humana, diante do cenário de crescimento econômico desigual, crescimento populacional e
deterioração social, econômica e ambiental. A proposta global, assinada por alguns países, tinha
então o objetivo de promover o desenvolvimento sustentável, ambiental e socialmente, para os
assentamentos humanos. (DRABESKI; BESSA, 2008).
[...] o caráter distintivo do enfoque de 1976 repousa justamente na ênfase dada
ao controle do poder público sobre os processos econômicos e sociais, com um
discurso ideológico desenvolvimentista que acenava para as possibilidades de
um crescimento econômico mais equilibrado através planejamentos nacionais,
regionais e locais que atuassem simultaneamente na redução das disparidades
entre áreas rurais e urbanas e na ordenação do crescimento urbano.
(ANTONUCCI. et al, 2009)
Delegando a resolução dos problemas socioambientais urbanos aos governos e
comunidade internacional, esperava-se um apoio mútuo entre ambas as lideranças no
enfretamento de tais problemas. A comunidade internacional deveria promover financiamento
e assistência técnica para as políticas e estratégias recomendadas no plano de ação, para que as
nações as incorporassem de forma integrada, num cenário geral que, sobretudo, estavam
equiparadas pela Declaração de Direitos Humanos (também definida pela ONU, em 1948).
Assim, o programa abriu o espaço para a discussão da problemática urbana e busca de
resoluções, sobretudo visando o melhoramento dos assentamentos humanos (ANTONUCCI. et
al, 2009).
O foco inicial da Conferência foi a problemática habitacional, que ao ocorrer de forma
irregular e precária, ficou entendida como uma necessidade primária, antes mesmo das demais
questões urbanas. No entanto, a urbanização acelerada e suas nefastas consequências, como a
necessidade do controle e tratamento de resíduos urbanos, a insuficiência das redes de
infraestrutura e oferta de serviços, bem como a decorrente poluição e degradação ambiental,
passaram a introduzir outras preocupações na pauta da agenda, apontando a necessidade de
64
realização de uma outra Conferência que abordasse tais questões (SOUSA E SILVA;
TRAVASSOS, 2008).
Assim, passados vinte anos, em Istambul em 1996, os líderes mundiais se reuniram
novamente, na segunda Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos27,
seguindo o legado da Rio-92, e reafirmaram o compromisso de pensar assentamentos humanos
mais sustentáveis, incorporando outros temas urbanos dessa vez. Nela ficou firmado o
documento chamado Agenda Habitat II, que tomou como referência as discussões acerca das
alternativas para o cenário de crescente urbanização e problemas socioambientais enfrentados,
principalmente nas regiões menos desenvolvidas do planeta, bem como a promoção da
qualidade de vida e equidade de gênero e social:
O objetivo da segunda Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos
Humanos (Habitat II) é abordar dois temas de igual importância global:
"Abrigo adequado para todos" e "Desenvolvimento de assentamentos humanos
sustentáveis em um mundo em urbanização". Os seres humanos estão no
centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável, incluindo abrigo
adequado para todos e assentamentos humanos sustentáveis, e têm direito a
uma vida saudável e produtiva em harmonia com a natureza. [...] Quanto mais
cedo as comunidades, governos locais e parcerias entre os setores público,
privado e comunitário se unirem para criar estratégias abrangentes, ousadas e
inovadoras para abrigos e assentamentos humanos, melhores serão as
perspectivas para a segurança, saúde e bem-estar das pessoas e o mais brilhante
é a perspectiva de soluções para problemas ambientais e sociais globais. (A
Agenda Habitat - Capítulo I: Preâmbulo, 1996)
Nesse trecho, chama atenção a passagem que amplia a discussão para as comunidade e
agentes não-governamentais, para além dos setores tradicionais de representação política, o que
demonstrou uma inovação de caráter participativo e democrático. Com isso, a Conferência
começou a legitimar a ideia de descentralização do poder, ao evidenciar a importância de todos
os atores sociais, incluindo as parcerias privadas, nos debates sobre a problemática urbana e na
busca de resoluções para ela. (ANTONUCCI. et al, 2009).
O documento final da conferência, aprovado de forma consensual pelos países que dela
fizeram parte, afirmou a necessidade de se garantir uma participação equilibrada e democrática
a fim de garantir o desenvolvimento sustentável dos assentamentos humanos, provendo
moradias adequadas e melhores condições da qualidade de vida.
A Agenda é uma plataforma de princípios que deve se traduzir em práticas. As
atividades desenvolvidas no âmbito do Habitat contribuem para o objetivo
global das Nações Unidas de reduzir a pobreza e promover o desenvolvimento
27 Resolução adotada pela Assembléia Geral: Conferência das Nações Unidas sobre assentamentos humanos
(Habitat II). Disponível em <http://www.un-documents.net/ha-1.htm>
65
sustentável dentro de um contexto em que o mundo avança aceleradamente
para a urbanização. [...] Enfim, a formulação de novo papel para o Estado e
novas formas de relação com os atores que constituem as cidades foi reflexo
de questões básicas da agenda de política urbana e habitacional. Defendeu-se
a constituição de um novo contrato social baseado em solidariedade,
convivência democrática e pluralidade. (ANTONUCCI. et al, 2009).
A Agenda Habitat II ainda fomentou a realização de outros encontros internacionais,
que foram possibilitando a inserção de mais temáticas e ampliando o escopo das discussões
sobre as mais variáveis questões advindas da urbanização. O primeiro deles, o I Fórum Urbano
Mundial, realizado em 2002 na cidade de Nairóbi, centrou-se no debate de temas relacionando
a questão da pobreza e do meio ambiente, num contexto de processos econômicos globalizados
que amplificam a problemática dessa questão. Em 2004, ocorreu o II Fórum Urbano Mundial,
em Barcelona, sob o tema “Cidades: um lugar de culturas, inclusão ou integração”, que gerou
grande nível de participação social por reunir questões complexas e desafiadoras relacionadas
à diversidade cultural e sua relação com os espaços urbanos. O III Fórum Urbano Mundial,
ocorrido em Vancouver, em 2006, com menor mobilização social, redirecionou os debates para
as ações que já estavam sendo implementadas através dos planos de conferências anteriores,
destacando a importância do suporte financeiro e técnico, através de cooperações
internacionais, para possibilitar o desenvolvimento do urbanismo sustentável (ANTONUCCI.
et al, 2009).
Ainda segundo os autores, esses fóruns foram marcados por, sobretudo, reforçar as
ideias de inclusão social e descentralização do poder, dando evidencia aos problemas
enfrentados pelos grupos mais afetados pelas dinâmicas da economia globalizada. O encontro
em Vancouver levantou essa questão de forma mais enfática, colocando as questões da
sustentabilidade como “o grande aglutinador das possibilidades de transformação social”.
Todas essas questões se ramificaram em instituições e fóruns paralelos, mundo afora,
fortalecendo a busca pela adoção de práticas voltadas para a minimização dos impactos
socioambientais, sem, no entanto, fazer um questionamento crítico sobre a relação destes com
os processos econômicos mundiais. Esses debates todos levantaram questões que formaram a
base do que viria a ser debatido anos mais tarde, na III Conferência das Nações Unidas, que
ocorreu em 2016.
Realizada em Quito, no Equador, a III Conferência das Nações Unidas sobre Habitação
e Desenvolvimento Urbano Sustentável produziu, como documento final, a Agenda Habitat III.
A conferência traçou ideais que servirão como base para orientar o desenvolvimento urbano
sustentável pelos próximos anos, através de vários documentos respectivos aos diversos setores
66
que compõe as questões urbanas, como mudanças climáticas, infraestrutura, governança,
economia, estratégias espaciais, serviços urbanos, questões socioculturais, entre outros. Dentre
eles, trata também a respeito da “Ecologia Urbana e Resiliência”, e complementa que esse
tópico:
Explora o desafio de gerenciar tanto o bem-estar humano e ambiental, quanto
o papel fundamental das cidades para enfrentar esse desafio. O mesmo propõe
que uma cidade pode ser planejada e gerenciada para fornecer múltiplos
benefícios que contribuam para a qualidade da vida humana, melhorando a
eficiência dos recursos e reduzindo o impacto ambiental global.
(DOCUMENTO DE POLÍTICAS DA HABITAT III – ECOLOGIA
URBANA E RESILIÊNCIA, 2016)28
Essa nova agenda urbana integrou os objetivos das agendas Habitat anteriores, bem
como dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), o Acordo de Paris29 (referente às
mudanças climáticas) e a Agenda 21 (resultante da Conferência Rio 92), entre outras do âmbito
do desenvolvimento sustentável. Diante da constatação que a maior parte da população mundial
vive em cidades, e até pelo menos 2050 essa estatística tende a permanecer e aumentar, a
conferência se voltou para todos os temas que fazem parte do contexto urbano – dos aspectos
geográficos aos sociais.
O documento final30 da conferência afirma que, embora tenham se observado mudanças
significativas na qualidade de vida das áreas urbanas desde as agendas Habitat I e II, ainda
persiste um quadro crítico de desigualdade social (com foco na pobreza e desigualdade de
gênero/etária) e degradação ambiental em aglomerados urbanos, a nível mundial, se
manifestando como alguns dos maiores obstáculos para o alcance do desenvolvimento
sustentável de forma plena. Assim, entende como urgente a necessidade de otimizar as questões
relacionadas à urbanização, a fim de se alcançar o desenvolvimento social e cultural, bem como
a proteção ambiental, desafios existentes e emergentes.
Dessa forma, a Agenda assume compromissos para o alcance da ‘mudança do
paradigma urbano’, que deve ser integrado social, econômica e ambientalmente. Prevê a
inclusão social e erradicação da pobreza, que no âmbito urbano devem ocorrer através da
28 O documento sobre Ecologia Urbana e Resiliência, das Políticas do Habitat III (assim como as demais estratégias
debatidas e traçadas na conferência, conforme comentado nessa pesquisa) estão disponibilizados via online no site
oficial das Nações Unidas, através do endereço eletrônico <http://habitat3.org/>.
29 O Acordo de Paris foi resultante da 21º Conferência do Clima, realizado em Paris em novembro de 2015, que
teve como finalidade selar um acordo global para limitar o aumento da temperatura do globo, e evitar as
consequências do aquecimento global, através da diminuição da emissão de gases de efeito estufa. 30 New Urban Agenda – Habitat III (Nova Agenda Urbana – Habitat III), 2016. Fonte: <http://habitat3.org/>
A Agenda 21, portanto, compõe um programa que vai abordar desde questões sociais a
econômicas, associadas ao uso e gestão de recursos naturais, de forma a integrar o meio
ambiente e o desenvolvimento na tomada de decisões, diante do grave cenário de crise
ambiental no qual a humanidade se insere – tanto como vítima quanto como responsável:
31 Na referida obra, os autores informam que, de acordo com uma pesquisa realizada em 2002, cerca de 6400
governos locais, distribuídos em 113 países, já haviam dado início à construção de suas próprias Agendas 21
Locais, seguindo os instrumentos base da Agenda 21 Global.
70
A Agenda 21 é um documento coletivo, um pacto social, que expressa o desejo
de 179 países, entre eles o Brasil, de mudança do modelo de desenvolvimento
para este século XXI, refletindo um consenso mundial e o comprometimento e
compromisso político de deter e reverter a constante degradação dos
ecossistemas vitais para a manutenção da vida, bem como alterar as políticas
que resultaram em brutais desigualdades entre os países e, no seio das
sociedades nacionais, entre as diferentes classes sociais. (DRABESKI;
BESSA, 2008, p. 350)
Assim como outros documentos elaborados no âmbito do desenvolvimento sustentável,
ela não enfatiza apenas problemas de ordem ambiental, mas sobretudo as questões sociais:
socioculturais, socioeconômicas, sociopolíticas e socioambientais. O documento se subdivide
em 40 capítulos, organizados em 4 partes: Dimensões sociais e econômicas – abordando
temáticas relacionadas ao combate à pobreza, proteção à saúde humana, revisão dos padrões de
consumo, e estímulo ao desenvolvimento sustentável das cidades; Conservação e gestão de
recursos – relativo à proteção ao meio ambiente e gerenciamento de ecossistemas frágeis,
conservação da biodiversidade, combate ao desmatamento e poluição, bem como gestão do
fornecimento de recursos (água potável, agricultura, matéria prima) e segurança ambiental
(resíduos tóxicos, radioativos); Fortalecimento de grupos sociais – preocupação com a inserção
dos diversos grupos nos processos decisórios: mulheres, grupos indígenas, crianças e jovens,
idosos, agricultores, organizações não-governamentais, comunidade científica, empresas e
indústrias, autoridades locais e trabalhadores; Meios de implementação – instrumentos e
mecanismos jurídicos, recursos financeiros, incentivo à ciência para o desenvolvimento
sustentável, promoção da educação e conscientização da população, democratização da
informação.
No que se refere ao planejamento urbano, a Agenda 21 apresenta no capítulo 7 as
estratégias para impulsionar o desenvolvimento sustentável nos assentamentos humanos. Nesse
documento foram elencadas 8 áreas programáticas, entre as quais os países envolvidos devem
eleger como prioritárias para traçar estratégias, de acordo com os objetivos de cada nação:
a. Fornecer abrigo adequado para todos;
b. Melhorar a gestão de assentamentos humanos;
c. Promover o planejamento e o manejo sustentável do uso da terra;
d. Promover o fornecimento integrado de infraestrutura ambiental: gestão de
água, saneamento, drenagem e resíduos sólidos;
e. Promover sistemas sustentáveis de energia e transporte em assentamentos
humanos;
f. Promover o planejamento e a gestão de assentamentos humanos em áreas
propensas a desastres;
g. Promover atividades sustentáveis na indústria da construção; h. Promover o desenvolvimento de recursos humanos e capacitação para o
desenvolvimento de assentamentos humanos.
71
(Agenda 21 – Capítulo 7: Promovendo o desenvolvimento sustentável de
assentamentos humanos, 1996)
Assim, de forma geral, o principal motivo dessas intervenções seria melhorar a
qualidade socioambiental e econômica nos ambientes urbanos, em particular naqueles com
maior nível de pobreza e falta de infraestrutura e recursos. Assim, para cada uma dessas áreas
supracitadas, o documento traçou objetivos e atividades específicas, bem como meios de
implementação, para garantir a efetividade de tais ações. O documento trata de questões social
e ambiental de forma integrada, e prevê que ambas precisam funcionar de forma equilibrada
para que se alcance a qualidade de vida e ambiental ao mesmo tempo. A preocupação maior é
em relação aos assentamentos precários, e regiões menos favorecidas do planeta, uma vez que
para se alcançar um ambiente sadio, é imprescindível que seus habitantes vivam de forma sadia,
e vice-versa.
A proteção aos recursos naturais é amplamente abordada na Agenda 21, tanto no que se
refere à necessidade de mudanças nos padrões de consumo, e a consequente crescente extração
de recursos naturais para atender a tal demanda; quanto à ineficiência dos sistemas atuais e a
degradação que causam, como esgotamento sanitário e poluição de águas pluviais, e tratamento
de resíduos sólidos. Para implementação de tais objetivos, a Agenda 21 incentiva a capacitação
tecnológica e investimento em pesquisas científicas que possam avaliar as especificidades de
cada local e assim, poder traçar o plano de ações integrado com as políticas locais, que devem
ser revisadas para atender tais solicitações. Afirma ser necessário recorrer à cooperação
internacional sempre que necessário, promovendo a troca de experiências aplicadas às práticas
sustentáveis.
Assim, a Agenda 21 apresenta-se como um documento base, que irá nortear as políticas
ao redor do mundo, em todos os setores, em prol de um bem comum. Como mencionado, as
diversas diretrizes apresentadas por ela foram incorporadas pelos setores específicos de cada
tema, após a sua divulgação, dentre os quais a Agenda Habitat III e a Agenda 21 Brasileira,
como corroboram Bassani e Carvalho (2004):
Vale lembrar que a Agenda 21 e a Carta da Terra, não são textos prontos e
acabados. Constituem-se, sobretudo, num referencial permanente para pensar
e repensar novas situações. Os grandes desafios ambientais elencados nestes
documentos, apresentados como as principais questões para o conjunto da
humanidade, estabelecem uma agenda de consenso, na qual pesquisadores e
educadores podem buscar inspiração e estímulos a partir de esforços
interpretativos. Nesses documentos, as orientações e recomendações são
formuladas de maneira que venham a servir como uma direção na construção
72
e reconstrução de um saber e de uma prática. (BASSANI; CARVALHO, 2004,
p. 72)
Com isso, evidencia-se que, ainda que a Agenda 21 seja um vasto programa aprovado
pela Rio-92, e embora assumida como compromisso por mais de 170 países, ela é apenas um
instrumento que deve fomentar a elaboração de políticas próprias, adequadas às realidades de
cada local, não tendo o poder de exigir a obrigatoriedade do cumprimento de suas metas. Para
os autores, apesar do avanço que o documento representa, ele ainda se depara com os planos de
governo baseados no crescimento econômico, sem preocupações palpáveis com a preservação
do meio ambiente e melhoria da qualidade de vida. Para isso, seria necessária a construção de
uma mudança estrutural na sociedade como um todo, uma vez que “uma conduta ambiental
favorável não se constrói por imposição datada por determinação de grandes conferências, nem
como planificações globais” (BASSANI; CARVALHO, 2004, p. 75), mas através de um novo
paradigma que atente para as reais necessidades da vida, em consonância com os limites da
natureza.
3.2.3 Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável
A trajetória das discussões sobre o desenvolvimento sustentável levantadas desde 1960
resultou, também, na criação e implementação dos Objetivos do Desenvolvimento
Sustentável32 (ODS), uma agenda mundial assinada pelos países-membro da ONU, adotada
durante a Cúpula das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, realizada em
setembro de 2015 em Nova York. Essa Conferência foi realizada, então, a fim de incorporar
alguns temas recorrentes, juntamente com suas respectivas propostas e reivindicações que
vinham sendo debatidos em outras conferências internacionais anteriores, que contavam com a
participação de governos, empresas e sociedade civil (ALVES, 2015).
Na agenda dos ODS, composta por 17 objetivos (temas norteadores)33 e 169 metas
(distribuídas para os 17 objetivos) a serem atingidos até 2030, estão previstas estratégias para
32 Disponíveis em <www.estrategiaods.org.br> e <https://nacoesunidas.org/pos2015/ods11/> 33 Os 17 objetivos-chave que norteiam a agenda são: 1. Erradicação da pobreza; 2. Fome zero e agricultura
sustentável; 3. Saúde e bem-estar; 4. Educação de qualidade; 5. Igualdade de gênero; 6. Água potável e
saneamento; 7. Energia limpa e acessível; 8. Trabalho decente e crescimento econômico; 9. Indústria, inovação e
ações mundiais nos setores social, econômico, institucional e ambiental, que visam promover a
prosperidade econômica, o desenvolvimento social e a proteção ambiental de maneira integrada
e universal. Alves (2015) destaca que um dos pontos positivos dessa conferência foi a inclusão
de diferentes instituições, organizações da sociedade civil e especialistas na definição desses
objetivos e estratégias da agenda.
Dentre esses objetivos, com metas e estratégias que irão nortear o desenvolvimento em
vários âmbitos, as questões referentes à temática urbana foram agrupadas no tópico de “Cidades
e Comunidades Sustentáveis”. Como mencionado anteriormente, tais objetivos foram
incorporados pela Agenda Habitat III e somaram forças ao ideal de desenvolvimento urbano
sustentável, visando integrar o bem-estar das populações e a proteção ao meio ambiente.
O ODS “Cidades e Comunidades Sustentáveis” têm como metas a promoção de cidades
que sejam mais inclusivas, seguras e sustentáveis, e que proporcionem a redução dos impactos
ambientais causados pelas diversas atividades antrópicas sobre a natureza e seus recursos. Para
o alcance de tais metas, busca-se a redução de catástrofes e prejuízos causados às comunidades
(especialmente as mais carentes), tornando as cidades mais resilientes34. Dentre as propostas da
pasta, estão: a urbanização de favelas e garantia do acesso à habitação e aos serviços básicos; o
fortalecimento dos espaços de participação e a melhoria da mobilidade urbana; proporcionar
acesso aos sistemas de transportes, em especial aos transportes públicos; proteger os
assentamentos e pessoas em situação de vulnerabilidade, sob risco de catástrofes e desastres;
promover assistência técnica e financeira para apoiar a adoção de técnicas e materiais para
construções sustentáveis e resilientes; e reduzir o impacto ao meio ambiente, induzindo a
melhoria da qualidade do ar e de sistemas de gestão de resíduos; fortalecendo os esforços para
a proteção do patrimônio natural e cultural do mundo.
Ao traçar esses objetivos e estratégias, a própria organização da Conferência reconhece
que é necessário o envolvimento da sociedade civil para o alcance das metas. Aponta para a
importância das organizações e movimentos atuantes no acompanhamento das ações a serem
implantadas pelos governos, assim como na cobrança de políticas que atuem em prol dos
infraestrutura; 10. Redução das desigualdades; 11. Cidades e comunidades sustentáveis; 12. Consumo e produção
responsáveis; 13. Ação contra a mudança global do clima; 14. Vida na água; 15. Vida terrestre; 16. Paz, justiça e
instituições eficazes; 17. Parcerias e meios de implementação. Disponíveis em
<https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/>. 34 A ONU aponta como resilientes as cidades que tem capacidade de enfrentar, de maneira mais adequada e
equilibrada possível, os imprevistos que podem ocorrer às áreas urbanas, principalmente as catástrofes naturais a
que algumas estão mais sujeitas, a fim de preservar a qualidade de vida das populações humanas e,
consequentemente, a preservação do meio ambiente.
74
objetivos supracitados. Além da participação da sociedade civil, deixa evidente que se faz
também necessária a colaboração dos setores privados, que devem atuar como indutores de
práticas que adotem modelos sustentáveis no comércio, serviços, indústrias e agricultura.
Alves (2015) afirma que as agendas organizadas pela ONU a partir do ano de 2015,
dentre elas aos ODS, apesar de articuladas e bem-intencionadas, não mostram capacidade
eficiente de mudar os rumos do modelo de desenvolvimento pautado no crescimento
econômico, que tanto intensificaram os impactos socioambientais. Fazendo uma crítica
especificamente aos ODS, o autor conclui que a agenda faz um apelo ao crescimento econômico
como forma de ajustar os problemas sociais, de uma forma geral:
O ODS #12 diz: "Assegurar padrões de consumo e produção sustentáveis",
mas não apresenta uma definição clara de sustentabilidade. Sintomaticamente,
o símbolo utilizado no ícone de propaganda é o oito deitado, que representa o
infinito. Mais contundente é o objetivo # 8.1: "Sustentar o crescimento
econômico per capita, de acordo com as circunstâncias nacionais e, em
particular, pelo menos um crescimento anual de 7% do PIB nos países menos
desenvolvidos". A ONU - pressionada pelo loby dos países pobres a favor do
crescimento econômico e pelo loby dos países ricos contra a redistribuição da
renda mundial - rendeu-se à lógica simplista de que o crescimento econômico
é solução para os problemas sociais. [...] O que faltou explicar é como, neste
quadro, garantir a sustentabilidade entre economia e meio ambiente. (ALVES,
2015, p. 587-598)
Com isso, ele conclui que tal modelo de desenvolvimento, proposto pela agenda, carece
de sustentação ecológica e de justiça distributiva para o âmbito social; pois apesar dos objetivos
estabelecerem relação constante com temas ambientais, a natureza já se encontra em níveis de
degradação tão elevado que manter o ritmo de crescimento, e ainda induzir o alcance dos países
a esse padrão, pode levar o planeta a um colapso ambiental. Ao repetir a receita do “crescimento
econômico pelo crescimento”, o autor afirma que existe apelo à tentativa de solucionar os danos
ambientais e sociais, mas esse apelo por si só não se mostra suficiente. Uma vez que, pelo
princípio da precaução, não faz sentido continuar apoiando o crescimento econômico ilimitado,
quando a degradação dos recursos naturais e agressão à biodiversidade já alcançaram patamares
tão preocupantes (ALVES, 2015).
75
3.3 A inserção do discurso socioambiental nas políticas urbanas brasileiras
Por séculos o Brasil permaneceu como um país basicamente agrário, até meados da
década de 1930, quando a crise mundial alcançou o ciclo do café e passou a conduzir grandes
contingentes de desempregados aos centros urbanos (BASSUL, 2010). Assim, o país teve seu
desenvolvimento urbano se fortalecendo apenas a partir da segunda metade do século XX, entre
1940 e 1980, devido ao crescimento demográfico e, ainda, ao processo de industrialização e seu
poder de atração de trabalhadores para as cidades (SANTOS, M., 2013).
Durante grande parte da história, até as décadas de 70/80, as políticas urbanas brasileiras
atuavam, principalmente, na definição do desenho urbano (marcação de quadras e
arruamentos), sem preocupar-se diretamente com as questões ambientais, a exemplo da Lei
Federal nº 6.766 - Parcelamento do Solo para Fins Urbanos, de 19 de dezembro de 1979.
Os municípios viram-se obrigados a lidar com os efeitos da urbanização
acelerada inteiramente desaparelhados para essa imensa tarefa. Não havia
recursos financeiros suficientes, meios administrativos adequados nem
instrumentos jurídicos específicos. Influenciado pelos setores dominantes na
economia urbana, o aparelho estatal dirigia seus escassos recursos para
investimentos de interesse privado e adotava normas e padrões urbanísticos
moldados pelos movimentos do capital imobiliário. Tanto quanto ocorria com
a renda econômica nacional, a “renda” urbana concentrava-se. A cidade cindiu-
se. Para poucos, os benefícios dos aportes tecnológicos e do consumo afluente.
Para muitos, a privação da cidadania e a escravidão da violência. (BASSUL,
2010, p. 71)
Essa demanda populacional crescente gerou um processo de urbanização intenso, em
um tempo relativamente curto, distribuindo o espaço de forma desorganizada, levando as
cidades a diversos problemas de cunho social, político, econômico e ambiental. Sobretudo,
devido à segregação das parcelas mais carentes da população, que se amontoaram em favelas e
assentamentos periféricos, ficando com pouco acesso aos serviços e bens urbanos. Tal situação,
à medida que foi se agravando e acirrando os problemas socioambientais, fomentaram a
organização popular, formando os movimentos sociais urbanos, que passaram a cobrar
melhorias do poder público. Aos poucos, foi sendo consolidado o Movimento Nacional pela
Reforma Urbana, em meados de 1980, com o intuito de pressionar os governos o provimento
de condições adequadas de vida nas cidades (BASSUL, 2010).
Os movimentos pela reforma urbana, sobretudo no tocante à questão habitacional,
ganharam força e espaço no período de acessão das demandas sociais e de luta pela
redemocratização do país, recém-saído da Ditadura Militar, que durou de 1964 a 1985. Nesse
76
contexto foi promulgada a Constituição Federal Brasileira, em 1988, que inseriu mudanças
significativas para o cenário público e político do país, dentre os quais nos setores do
planejamento urbano, e que lançou as bases das políticas urbanas que decorreram desde então.
A luta pela reforma urbana fortaleceu, para além da defesa por moradias adequadas, outros
direitos como a disponibilidade de infraestrutura apropriada e oferta de serviços, bem como o
acesso aos equipamentos públicos, as boas condições de habitabilidade, que vão se
interconectar ao direito à cidade:
O debate sobre o direito à cidade está entremeado pelo entendimento da lógica
da localização dos recursos no espaço urbano, sejam eles a moradia, as
oportunidades de emprego, os serviços e os equipamentos urbanos (de
educação, saúde, lazer, cultura, segurança), entre outros. Sua disponibilidade e
sua posição na malha urbana definem os efeitos distributivos sobre a renda
real4 dos diferentes grupos sociais, que têm como fatores as externalidades –
positivas ou negativas, que distribuem custos e benefícios pelo sistema urbano
–, os diferenciais de acessibilidade – relacionados às distâncias entre os locais
de moradia e os locais de produção e consumo –, e a capacidade das famílias
de se adaptarem a mudanças na estrutura do uso do solo urbano. As diferentes
capacidades dos distintos grupos em responder a essas mudanças e a posse dos
recursos (financeiros, educacionais e políticos) disponíveis para tal definem as
injustiças e as desigualdades socioespaciais35. (MARGUTI; COSTA;
GALINDO, 2016, p. 12)
Foi também por volta dos anos 1980, após a tomada de consciência ecológica geral,
trazida pelos movimentos ambientais a nível mundial, que alguns países passaram a ser
induzidos a reforçar suas legislações referentes à proteção e gestão do meio ambiente, dentre
os quais o Brasil, que fortaleceu o movimento ambiental no país, consolidado por marcos no
âmbito do direito ambiental brasileiro. Primeiro, foi promulgada em agosto de 1981 a Lei 6.938,
da Política Nacional do Meio Ambiente, que estruturou o Sistema Nacional do Meio Ambiente
(SISNAMA) e o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA)36, órgãos federativos que
passaram a dar suporte à proteção ambiental. E, em seguida, a própria Constituição de 1988,
que passou a efetivar também a inserção das preocupações ambientais nas políticas brasileiras,
que trouxe, o Capítulo VI tratando inteiramente do meio ambiente, o Artigo 225, que diz que
“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo
35 A desigualdade socioespacial é uma característica marcante das cidades brasileiras, que configura as
disparidades de infraestrutura e equipamentos no tecido urbano, e provocam a segregação entre pessoas e espaços.
Assim, enquanto algumas áreas das cidades dispõem de toda a infraestrutura adequada e oferta de serviços para
uma condição de vida digna, em outras (principalmente favelas e bairros periféricos) há precariedade de
infraestrutura e serviços, evidenciando a vulnerabilidade social e ambiental dos locais, e inclusive ocasionando
degradação de áreas ambientalmente frágeis. 36 O Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) faz parte do Sistema Nacional do Meio Ambiente
(SISNAMA), instituído pela Lei 6.938/81, regulamentada pelo Decreto 99.274/90. Fonte:
O Estatuto da Cidade é, então, a lei que vai regulamentar o capítulo de políticas urbanas
da Constituição, coroando o período de lutas por uma reforma urbana39 no Brasil, posicionando-
se como um conjunto de instrumentos de intervenção para as formas de produção das cidades,
no intuito de mitigar os impactos sociais e ambientais decorrentes dos processos de urbanização.
Ele traz como objetivo maior o desenvolvimento da função social das cidades, através da gestão
democrática e da sustentabilidade urbano-ambiental (ALFONSIN, 2001).
O Estatuto apresenta também como diretriz o controle do uso do solo, que além de
promover o acesso à cidade, visa evitar a poluição e degradação de áreas ambientalmente
frágeis. Assim, no que diz respeito às questões ambientais, a Lei tem a sustentabilidade como
um de seus objetivos, usando o conceito de forma ampla, que se estende direta e indiretamente
no decorrer dos seus artigos e incisos. A Lei desafia e conduz as cidades brasileiras a unir a
gestão urbana com a gestão ambiental, integrando as diversas políticas de planejamento urbano,
habitacional e ambiental (ALFONSIN, 2001). A tarefa de se planejar as cidades, além de uma
função do poder público, passa a ser também compartilhada com a sociedade – ambos
responsáveis pela sustentabilidade dos processos urbanos.
Dessa forma, o Estatuto da Cidade é considerado um marco na política urbana brasileira
por estabelecer “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade
urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do
equilíbrio ambiental”. A Lei veio complementar as políticas já existentes, e subsidiar a
elaboração de novas políticas que irão regulamentar o funcionamento das cidades brasileiras,
como a Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei 12.587, 2012), além de nortear os debates
acerca da promoção de espaços urbanos mais justos, ambiental e socialmente, no intuito de
fortalecer estratégias que buscam, ainda que indiretamente, a proteção ao meio ambiente. Tais
instrumentos tem por objetivo o ordenamento das atividades antrópicas sobre o meio natural e
construído, garantindo o direito à cidade, promovendo a qualidade da vida humana e a
preservação dos recursos naturais, a fim de evitar a intensificação da degradação ambiental.
Dentro do Estatuto da Cidade, no Capítulo III, Art. 41, fica determinado, através do §
2o que: “No caso de cidades com mais de quinhentos mil habitantes, deverá ser elaborado um
plano de transporte urbano integrado, compatível com o plano diretor ou nele inserido”. A partir
39 Segundo Bassul (2002), a luta pela reforma urbana ocorre desde o final dos anos 1970, quando se intensificou
o êxodo rural no Brasil, e as populações mais carentes recém-chegadas as cidades encontrava dificuldades ao
acesso da terra. Construído historicamente através de diversos processos na luta da reforma urbana, o Estatuto da
Cidade só foi aprovado após 12 anos de tramitação e discussões junto ao poder legislativo.
79
de então, passaram a ser instituídas as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana.
Sancionada através da Lei 12.587, de janeiro de 2012, a Política Nacional de Mobilidade
Urbana é mais um dos instrumentos da política de desenvolvimento urbano.
Assim, a Lei apresenta a definição e classificação dos modos de transporte, e das
infraestruturas de mobilidade urbana que fazem parte do Sistema Nacional de Mobilidade
Urbana. Estabelece diretrizes e objetivos gerais que devem servir de base para a formulação de
normas municipais, adequadas a realidade de cada lugar, além de subsídios para que esses
municípios estejam em consonância com os demais, na implementação de suas políticas. Ainda
traz a observação de que as infraestruturas da mobilidade urbana devem estar relacionadas com
um planejamento sistêmico, para que os benefícios sejam efetivos.
A aprovação dessas leis, dentre outras que interferem direta e indiretamente com as
questões socioambientais urbanas, consiste em importantes marcos na gestão da política urbana
brasileira. O modelo de desenvolvimento urbano adotado historicamente no país se traduziu em
graves problemas de ordem social e ambiental, provocando a segregação socioespacial e
externalidades negativas, caminhando para a insustentabilidade do modo de vida urbano (IPEA,
2012). A carência de controle e investimentos públicos durante grande parte da história urbana
do país acarretaram problemas que apontaram a necessidade de articular políticas nacionais que
fossem capazes de conduzir o desenvolvimento das cidades brasileiras de forma mais
equilibrada e justa, ambiental e socialmente.
Mendonça (2004) ainda atenta para o fato que apesar da inserção do discurso ambiental
na Constituição de 1988 não ter estabelecido limites e prazos para a adequação das cidades
brasileiras se adequarem às normas urbanas, esse já deve ser considerado um avanço. Uma vez
que se levanta o debate, e populariza-o, evidenciando cada vez mais os problemas e
incentivando a busca das soluções; passa-se aos poucos a orientar e normatizar o
desenvolvimento das cidades brasileiras, ampliando as discussões relativas à qualidade e
condições da vida urbana, onde a abordagem ambiental passa a ser uma preocupação recorrente.
80
3.3.1 Agenda 21 Brasileira
Em processo paralelo à aprovação do Estatuto da Cidade e criação de órgãos que
regulamentam as questões urbanas no Brasil, a Agenda 21 Brasileira, tendo como base a
Agenda 21 Global, começou a ser discutida no período entre 1996 e 2002, quando foi aprovada.
Esse processo foi coordenado pela Comissão de Políticas de Desenvolvimento Sustentável
(CPDS) e da Agenda 21 Nacional, que contou com o envolvimento de cerca de 40mil pessoas
de todo o país40. Sendo definida como “um processo e instrumento de planejamento
participativo para o desenvolvimento sustentável e que tem como eixo central a
sustentabilidade, compatibilizando a conservação ambiental, a justiça social e o crescimento
econômico” pelo Ministério do Meio Ambiente, a Agenda 21 Brasileira é implementada como
mais um documento norteador de práticas que visem o desenvolvimento sustentável do país
como um todo.
O documento apresenta as diretrizes para que sejam criadas e aprovadas as Agendas 21
Locais, onde cada cidade deve criar sua própria agenda, de acordo com suas necessidades e
especificidades, sendo um instrumento que incentiva a democracia e participação popular nos
processos decisórios41. No que diz respeito à sustentabilidade das cidades, especificamente, é
afirmado que “O desafio atual da gestão das cidades passa ainda pela busca de modelos de
políticas que combinem as novas exigências da economia globalizada à regulação pública da
produção da cidade e ao enfrentamento do quadro de exclusão social e de deterioração
ambiental” (Agenda 21 Brasileira, 2004). Dessa forma, seguindo a tendência mundial das
demais agendas e planos que pensam a questão urbana, a Agenda 21 Brasileira vai preocupar-
40
A CPDS elaborou uma metodologia de trabalho que definiu áreas temáticas e debates em consultas públicas
para a construção do documento Agenda 21 Brasileira. Os seis eixos temáticos trabalhados foram: Agricultura
Sustentável; Cidades Sustentáveis; Infra-estrutura e Integração Regional; Gestão dos Recursos Naturais; Redução
das Desigualdades Sociais; e Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento Sustentável. Para cada tema foram
realizadas consultas aos diferentes segmentos da sociedade, sob a coordenação geral do Ministério do Meio
Ambiente e suas secretarias, por meio de workshops e seminários abertos ao público, a fim de envolver os diversos
atores sociais na definição dos conceitos e propostas para a construção da sustentabilidade. Os resultados dessas
consultas foram sistematizados e analisados pela CPDS, entre 1998 e 1999, que por meio de novas consultas
públicas, consolidadas em encontros regionais, que reuniu novamente a sociedade civil, secretarias do meio
ambiente e instituições de crédito e fomento ao desenvolvimento, para o aprofundamento do debate e consolidação
dos termos do documento. Esse processo de elaboração da agenda continuou entre 2000 e 2001, através da
realização de debates estaduais. A fase final do trabalho ocorreu em 2002, com um seminário nacional que reuniu
membros dos setores executivo, legislativo, produtivo, acadêmico e sociedade civil organizada, onde se definiu o
documento final, e marcou o processo de implementação da Agenda 21 Brasileira. (Dados: Ministério do Meio
Ambiente, disponíveis em: http://www.mma.gov.br/) 41 Ainda em 2002, cerca de 1/3 dos municípios brasileiros iniciaram o processo de construção das suas Agenda
21 Local. (MALHEIROS; PHLIPPI JR; COUTINHO, 2008)
81
se em propor estratégias que proporcionem a integração das questões sociais e ambientais, e
sua relação com o espaço construído, articulando programas que envolvam toda a sociedade na
busca de uma melhor qualidade de vida.
Dentre algumas das ações prioritárias da Agenda 21 Brasileira para os espaços urbanos,
destaca-se: combater o crescimento desnecessário das áreas de expansão urbana das cidades;
ampliar o acesso à moradia adequada aos habitantes; promover a elaboração de planos diretores;
estimular a adoção de empreendimentos sustentáveis; promover melhorias no transporte
público, e incentivo ao seu uso; incentivar uso de combustíveis mais eficientes para os modais
de transporte; impedir a ocupação de áreas ambientalmente frágeis, principalmente locais
próximos à reservas de água; entre outros.
Ao final do documento, são apresentadas as melhorias e mudanças que já foram obtidas
com o passar do tempo, antes mesmo da implementação da Agenda, evidenciando que sua
efetivação tende a trazer novos ganhos ao desenvolvimento sustentável no Brasil. Embora seja
reconhecido o atraso do país diante da problemática socioambiental, alguns avanços foram se
fortalecendo ao longo do tempo, principalmente desde a Rio 92, tais como: o envolvimento do
setor empresarial, que passou a sofrer pressão da sociedade e dos órgãos ambientais – já
ocasionados pelo avanço também da consciência da sociedade para as questões
socioambientais; e progressos na área da ciência e tecnologia, através de avanços nas pesquisas
acadêmicas. No entanto, apesar de alguns avanços obtidos com a implementação da Agenda 21
no país, o tema ainda é considerado recente diante das políticas brasileiras, e ainda demanda
grande atenção para garantir a aplicação prática das estratégias e metas propostas. Uma das
lacunas que a consolidação do documento deixa
[...] refere-se ao desenvolvimento de estudos de avaliação de resultados e
impactos desses processos de âmbito local, que orientem políticas e ações no
sentido de ampliar investimentos nesse componente e melhorar aspectos ainda
não satisfatório, como, por exemplo, forma de engajamento de atores,
continuidade de ações após períodos de mudanças de gestão governamental.
(MALHEIROS; PHLIPPI JR; COUTINHO, 2008, p. 9)
Além dessa falta de instrumentos que monitorem e avaliem os resultados, positivos ou
negativos, da instituição das agendas locais, soma-se o fato que a Agenda 21 brasileira é voltada
para o planejamento estratégico, caracterizando-se como um “protocolo de intensões”; ou seja,
não há obrigatoriedade de sua implantação. Com isso, para que haja apoio à proposta e na
tentativa de efetivar estratégias que visem os objetivos dispostos na Agenda, vê-se como
necessário consolidar a amarração dessas Agendas com o conjunto de políticas nacionais, a fim
de melhorar a estrutura dos governos nacional, estadual e municipal, para que eles exerçam suas
82
atividades de maneira mais eficiente, praticando a inclusão social na tomada de decisões e
incorporando a ideia da sustentabilidade nas suas propostas e ações.
83
4 O ESTATUTO DA CIDADE E A POLÍTICA NACIONAL DE MOBILIDADE
URBANA SOB A ÓTICA DO MEIO AMBIENTE
Em sequência aos capítulos anteriores, nos quais foram trabalhados de forma separada
as discussões acerca do desenvolvimento sustentável, ética ambiental, planejamento e
problemática socioambiental urbana, esse capítulo da pesquisa teve por objetivo analisar como
se deu a junção de tais temas na promulgação de duas das leis que norteiam o planejamento
urbano brasileiro: o Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 2001) e a Política Nacional de
Mobilidade Urbana (Lei12.587, de 2012).
Para tal, num primeiro momento, ambas políticas foram apresentadas de maneira geral,
bem como as considerações a respeito de cada uma delas; para, posteriormente, serem
analisadas, sobretudo a respeito da abordagem às questões ambientais. A análise foi feita
através da identificação de tais abordagens e do tratamento das informações contidas nas
mensagens – no caso da presente pesquisa, nos documentos acima citados. Para o estudo dessas
informações, adotou-se o cumprimento das seguintes etapas:
1. Definição das categorias e subcategorias relacionadas ao objeto da pesquisa: as
categorias são os temas que norteiam a pesquisa, e as subcategorias podem ser
palavras isoladas ou assuntos que se relacionem e apresentem similaridades dentro
de um determinado contexto.
2. Criação tabelas de frequência e ocorrência: constituiu-se num levantamento
quantitativo, no documento ou texto analisado, das palavras/assuntos definidas
como subcategorias; de forma a apresentar quantas vezes tais subcategorias
aparecem, e onde.
3. Análise e correlação dos resultados: foi feita uma análise qualitativa dos resultados
obtidos na tabela de frequência e ocorrência, pontuando os contextos onde e como
essas palavras/assuntos ocorrem, quais os possíveis significados e implicações, e seu
entendimento diante do aporte teórico no qual se baseia a pesquisa.
Ambos os documentos analisados, conforme serão detalhados em seguida, evidenciam
um enfoque nas questões socioeconômicas e de desenvolvimento urbano de forma integrada.
Mas, sendo a proposta e objetivo da pesquisa avaliar a temática do planejamento urbano
relacionado ao meio ambiente e ética ambiental, definiu-se, assim, esses como as categorias
principais a ser analisadas. A partir dessas duas categorias, definiu-se em seguida as
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subcategorias: palavras ou assuntos que são trabalhados e debatidos dentro das categorias, ou
temas que com estas se relacionam. Para a categoria Meio Ambiente, ficaram definidos como
subcategorias os seguintes termos: Meio Ambiente; Desenvolvimento Sustentável/
Sustentabilidade; Natureza; Recursos Naturais; Impactos Ambientais; Poluição. Na categoria
Ética Ambiental, foram estabelecidas as subcategorias: Preservação; Conservação;
Responsabilidade; Precaução; Futuras Gerações.
A partir dessa definição, foi elaborado o Quadro 01 como modelo a ser aplicado para as
duas Leis que a presente pesquisa propôs analisar:
Quadro 01 - Definição de categorias/subcategorias para a análise de conteúdo.
DOCUMENTO ANALISADO
CATEGORIAS SUBCATEGORIAS FREQUÊNCIA OCORRÊNCIA
MEIO
AMBIENTE
Meio Ambiente
Desenvolvimento
Sustentável/
Sustentabilidade
Natureza
Recursos Naturais
Impactos Ambientais
Poluição
Efeito Estufa
ÉTICA
AMBIENTAL
Preservação
Conservação
Responsabilidade
Precaução
Futuras Gerações
Fonte: Autora, 2018.
Com isso, é esperado quantificar esses termos dentro das legislações propostas pela
pesquisa, assim como a maneira como eles aparecem e as relações que estabelecem com os
demais instrumentos regulamentados por cada lei. Através dessa análise, pretende-se
compreender como a política de planejamento urbano brasileiro têm abordado as problemáticas
relacionadas ao meio ambiente, e diante disso, os caminhos que ela propõe como solução para
o enfrentamento desses problemas, na busca da construção de cidades que se desenvolvam de
forma ambientalmente equilibradas e socialmente justas.
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4.1 O Estatuto da Cidade
O exercício de repensar as questões urbanas e a forma como as cidades brasileiras
estavam tomando rumo surge a partir da década de 1960, período no qual a reforma agrária
começou a ganhar força pelo país, juntamente com as primeiras propostas de reforma urbana e
reivindicações, sobretudo, pelo direito à habitação nas cidades. A Emenda Popular 63º, de 1987,
veio tratar dessas demandas num documento que recebeu apoio de movimentos populares,
associações profissionais e acadêmicas, organizações políticas e religiosas. Tais
reinvindicações culminaram na inserção de um capítulo inteiramente voltado para a política
urbana na Constituição Federal de 1988, que trouxe a noção da função social da cidade e da
propriedade42, lançando as bases do que viria a constituir o Estatuto da Cidade (MARGUTI;
COSTA; GALINDO, 2016).
Assim, sendo considerado um dos mais significantes marcos na política urbana
brasileira, o Estatuto da Cidade – Lei Federal 10.257 foi aprovado em 2001 após anos de lutas
pela reforma agrária, no embalo de diversos movimentos sociais que moldavam o cenário
brasileiro recém-saído do período da ditadura militar. A lei, que teve suas raízes construídas
durante fase de redemocratização do país, vem regulamentar o capítulo da política urbana da
Constituição de 1988, nos Artigos 182 e 183, trazendo para o contexto urbano brasileiro
“normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol
do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”
(Lei 10.257, 2001).
O Estatuto da Cidade é, em si mesmo, a consolidação do processo que busca
conferir o direito à cidade à população brasileira, não se restringindo à sua
porção urbana, mas cobrindo, ainda que em distintas perspectivas, a população
de cada um dos municípios brasileiros. [...] trazendo em seu bojo uma série de
outros direitos que se interconectam ao direito à cidade, como a segurança da
posse, a disponibilidade de serviços de infraestrutura e equipamentos públicos,
a habitabilidade e a localização adequada. (MARGUTI; COSTA; GALINDO,
2016, p. 15).
42 Define-se a função social da propriedade como a ideia de que as propriedades privadas não são apenas fontes
de direitos, mas também de obrigações sociais, e os interesses individuais dos proprietários devem estar de acordo
com os interesses sociais, econômicos, ambientais e culturais da cidade e da sociedade como um todo. Essa noção
já aparece na Constituição de 1988, e o Estatuto da Cidade vem somar forças para o poder público atuar sobre essa
questão no âmbito urbano, através de diversos instrumentos jurídicos (aplicação do IPTU progressivo no tempo,
por exemplo), que permitam o equilíbrio entre os interesses individuais e coletivos, quanto à utilização do solo
urbano, entendido como essencial para o desenvolvimento das cidades de maneira mais justa, equilibrada e
sustentável (FERNANDES, 2010).
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Maricato (2010) afirma que “a lei é uma conquista social”, por reunir diversas
abordagens referentes ao governo democrático, justiça urbana e equilíbrio ambiental num
mesmo texto, inserindo as questões urbanas na agenda da política nacional de um país que
durante décadas esteve marcado pela cultura rural. Atenta ainda para o fato das dificuldades
que a lei pode enfrentar para sua ampla aplicação, visto que o país é assolado por desigualdades
socioeconômicas, onde grande parte de sua população não tem acesso à terra formal43,
aglomerando-se em locais que não dispõem de qualquer plano urbanístico, e vivem de forma
precária – tanto na questão da moradia, quanto no espaço urbano que usufruem. Todavia, esse
é um dos motivos pelos quais a lei se faz tão urgente e necessária, pois tem como questão-chave
a função social da propriedade, de forma a garantir o pleno direito à cidade.
A lei é inédita no país por apresentar uma série de instrumentos regulatórios para o
ordenamento das cidades, que podem induzir e orientar a implementação de um modelo de
desenvolvimento urbano que seja mais socialmente justo e menos ambientalmente predatório.
Ela contempla diretrizes expressas que asseguram a participação popular na elaboração,
aprovação e implementação de Planos Diretores (na esfera municipal), incorporando assim o
direito dos cidadãos de atuarem nos processos decisórios; bem como abrange mecanismos que
visam conter a expansão ilimitada das cidades, que tem avançado de forma voraz sobre áreas
ambientalmente frágeis ou de preservação ambiental (ROLNIK, 2001). Para a autora, as
inovações apresentadas pelo Estatuto podem atuar induzindo e normatizando as formas de
ocupação no solo; ampliando a possibilidade de regular as posses urbanas; traçando novas
estratégias de gestão que contemplem a participação direta dos cidadãos nos processos que irão
decidir o destino da cidade.
O Capítulo I do Estatuto da Cidade apresenta os objetivos, supracitados, e as diretrizes
gerais da política urbana, dentre as quais estão:
[...] garantia do direito a cidades sustentáveis; participação popular;
cooperação entre agentes públicos e privados; planejamento do
desenvolvimento das cidades; proteção do meio ambiente natural e do
patrimônio cultural; produção de bens e serviços nos limites da
sustentabilidade ambiental; recuperação pelo poder público de investimentos
43 Dentre os problemas da ocupação informal (por meio de moradias, sobretudo) da terra, Maricato (2010) destaca
o que ela considera como “agressão ambiental”, onde a alternativa que sobra para os cidadãos excluídos do
mercado formal é a ocupação de áreas ambientalmente frágeis, como encostas deslizantes, várzeas inundáveis,
áreas de mangues e beira de córregos, entre outras áreas que deveriam estar sob proteção ambiental. A agressão
ocorre tanto ao meio ambiente, que é frequentemente degradado e poluído, quanto às populações que ocupam esses
locais. Estas estão constantemente sujeitas à problemas que vão desde desastres naturais (inundações,
deslizamentos) à falta de infraestrutura básica, condenando-as à problemas de saúde, exclusão social e aumento
da violência, perfazendo um quadro de intensa vulnerabilidade social, econômica e ambiental.
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que tenham resultado na valorização imobiliária, entre outras. (BASSUL,
2002, p. 133-144).
Dessa forma, a Lei apresenta uma vasta abordagem sobre os diversos aspectos que
dizem respeito aos ambientes urbanos, que vão desde a conformação física das cidades, até a
regulação das atividades que nesta se realizam. No Artigo 2º, onde são apresentadas as diretrizes
gerais, estimula a melhoria da qualidade de vida nas cidades através de aspectos como moradia,
transporte, economia, requalificação de áreas ociosas ou subutilizadas, proteção ao meio
ambiente natural e construído, e, sobretudo, incentiva e prioriza a participação popular nos
processos decisórios.
O Capítulo II vai elencar os instrumentos da política urbana, que de maneira geral, é
possível agrupar nos seguintes conjuntos:
i) instrumentos de indução do desenvolvimento urbano, como é o caso do
parcelamento, da edificação ou da utilização compulsórios; do Imposto Predial
e Territorial Urbano (IPTU) progressivo no tempo; da outorga onerosa do
direito de construir; das operações urbanas consorciadas; do direito de
preempção, entre outros;
ii) instrumentos de regularização fundiária – tendo como bases legais para sua
política o direito à moradia e às cidades sustentáveis – como as zonas especiais
de interesse social (ZEIS); o usucapião especial de imóvel urbano; e a
concessão de uso especial para fins de moradia e de direito real de uso
(CDRU);
iii) instrumentos de democratização da gestão urbana, atendendo aos
princípios constitucionais da democracia representativa e participativa,
garantindo aos cidadãos a liberdade e a oportunidade de participação no
sistema político. (MARGUTI; COSTA; GALINDO, 2016, p. 16)
Tais instrumentos deverão servir, assim, para atender aos objetivos e diretrizes que
norteiam a política. Para cada instrumento, a Lei traça as devidas considerações e objetivos,
bem como estratégias para sua implantação, além da especificação de prazos e meios para
efetivá-los. Esses instrumentos são de ordem jurídica e/ou fiscal – arrecadatório. Quando
arrecadatório, como o IPTU, é previsto que tal recolhimento seja utilizado em prol do próprio