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Perspectiva Filosfica, Recife, v. I, n. 35, jan./jun. 2011
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCOUNIVERSIDADE FEDERAL DA
PARABA
PERSPECTIVA FILOSFICA
Revista dos Programas de Ps-graduao em Filosofia daUniversidade
Federal de Pernambucoe da Universidade Federal da Paraba
Fundada em 1992
Nmero Financiado com Recursos da
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Perspectiva Filosfica, Recife, v. I, n. 35, jan./jun. 2011
PERSPECTIVA FILOSFICARevista dos Programas de Ps-graduaoem
Filosofia da UFPE e UFPB
Volume I N. 35 (janeiro a junho 2011) ISSN 0104-6454
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
Reitor: Amaro Henrique Pessoa LinsVice-Reitor: Gilson Edmar
Gonalves e Silva
Centro de Filosofia e Cincias HumanasDiretora: Maria do Socorro
Ferraz BarbosaVice-diretor: Lucinda Maria da rocha Macedo
Departamento de FilosofiaChefe: Jesus Vazquez
TorresCoordenadores da Ps-graduao: Alfredo Moraes de Oliveira e
Washington Luiz Martins
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA
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Matos
Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes Diretor: Ariosvaldo da
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Brasil CEP 50.740-530Telefones: (81) 2126.8297 Fax: (81)
2126.8298E-mail: [email protected]
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Perspectiva Filosfica, Recife, v. I, n. 35, jan./jun. 2011
Volume I N. 35 (janeiro a junho 2011)
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCOUNIVERSIDADE FEDERAL DA
PARABA
PERSPECTIVA FILOSFICA
Revista dos Programas de Ps-graduao em Filosofiada Universidade
Federal de Pernambuco e da
Universidade Federal da Paraba
A Experincia Humanado Divino
OrganizaoProf. Dr. Marcos Roberto Nunes Costa
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EXPEDIENTE
EditoresAnastcio Borges de Arajo Junior (UFPE)
Marcos Roberto Nunes Costa (UFPE)
Secretrio da Revista: Hugo Medeiros (UFPE)
Conselho EditorialAnderson DArc (UFPB)rico Andrade (UFPE)
Jesus Vazquez Torres (UFPE)Jos Gabriel Trindade Santos
(UFPB)
Juan Bonaccini (UFPE)Marconi Pequeno (UFPB)
Richard Romeiro Oliveira (UFPE)Sandro Sena (UFPE)Tarik Prata
(UFPE)
Thiago Aquino (UFPE)Vincenzo Di Matteo (UFPE)
Comit CientficoEnias Forlin (UNICAMP)Ftima vora (UNICAMP)
Fernando Magalhes (UFPE)Fernando Rey Puente (UFMG)
Giovanni Casertano (Universit degli Studi di Npoli )Giuseppe
Tossi (UFPB)
Juvenal Salvian (UNIFESP)Mrcio Damin (UNICAMP)
Marcelo Pimenta Marques (UFMG)Miriam Campolina Peixoto
(UFMG)
Noeli Rossato (UFSM)Rafael Ramn Guerrero (Complutense de
Madrid)
Rodrigo Jungmann de Castro (UFS)Wilson Antonio Frezzatii
(UNIOESTE)Zeljko Lopari (UNICAMP/PUC-SP)
Reviso MetodolgicaMarcos Roberto Nunes Costa (UFPE)
Reviso OrtogrficaFernando Castim (UNICAP)
Iluminura da capa: livro Illuminated Page de Janet Backhouse
DiagramaoLlian Costa (UNICAP)
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Apresentao
A relao do homem com o divino est presente na filosofia desde as
suas origens. Dos fragmentos pr-socrticos at os dias atuais, o tema
persiste, enaltecido por uns e negado por outros, nas vrias
ex-perincias humanas do sagrado. So mltiplas as perspectivas e
dspares os sentidos atribudos ao perfeito. O xtase e a mstica esto
entre os grandes temas desta rea de investigao filosfica e foram
consagrados no ambiente filosfico da antiguidade tardia e medieval.
O presente volume da Revista Perspectiva Filosfica dedicado aos
temas da mstica, do xtase, do amor, da f e da ascenso espiritual,
enfim, daquilo que se convencionou chamar de experincias humanas do
divino e a sua possvel problematizao filosfica. Selecionamos uma
srie de artigos sobre mstica que tematizam, de modo sistemtico, o
significado do termo, o desejo de unir-se ao divino, a f associada
ao pen-samento e os limites deste desejo e experincia. Trata-se,
pois, de uma coletnea de artigos acerca das grandes msticas e,
tambm, da espiritua-lidade no contexto dos pensamentos filosfico
antigo-tardio e medieval. Encontraremos pensadores cristos como
Orgenes, Santo Anselmo, So Bernardo de Claraval, Nicolau de Cusa,
assim como filsofos pagos, a exemplo dos neoplatnicos Plotino e
Proclo. Alm dessas contribuies, acrescentamos outras perspectivas,
no menos interessantes, como as contribuies tomistas e aquelas mais
prximas da vida religiosa propria-mente dita, como as reflexes
sobre Santo Antonio de Pdua e So Joo da Cruz. Em suma, este volume
versa sobre a grande influncia de pen-sadores da antiguidade tardia
e medieval na formao do pensamento filosfico do Ocidente acerca do
tema do divino e sua, muitas vezes, problemtica relao com o
pensamento.
Anastcio Borges de Arajo JuniorMarcos Roberto Nunes Costa
Editores
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sumrio
Artigos temticos
A mstica em Proclo Jan G. J. ter
Reegen......................................................................................9
O problema de Deus na filosofia de Plotino:convergncias e
divergncias com o Deus judaico-cristo Jandu Evangelista de Oliveira
Marcos Roberto Nunes
Costa......................................................................25
Orgenes: a ascenso espiritual Joo
Lupi...................................................................................................39
Consideraes sobre o uso adequado do termo mstica nafilosofia de
Plotino Loraine
Oliveira.........................................................................................55
Entre o affectus e o intellectus: a experincia humana do
divinono pensamento de Nicolau de Cusa Maria Simone Marinho
Nogueira...............................................................73
Anima annihilata e spirituallis intelectio a filosofia e amstica
medieval Noeli Dutra
Rossatto..................................................................................91
As Meditaes de Anselmo de Canturia Paulo Ricardo
Martines.............................................................................107
O verdadeiro amor nasce de um corao puro, de umaconscincia boa e
de uma f sincera, e ama o bem do prximocomo se fosse seu a mstica
de So Bernardo de Claraval Ricardo Luiz Silveira da
Costa.................................................................125
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Outras persperctivas
O enunciado: uma aproximao entre Toms de Aquino eMikhail Bakhtin
Ivanaldo
Santos............................................................................................141
Caractersticas marcantes da espiritualidade de Santo Antnio Jos
Antnio de C. R. de
Souza....................................................................157
Poesia e mstica em San Juan de la Cruz Josilene Simes Carvalho
Bezerra..................................................................181
A terceira via: da contingncia para a existncia deDeus na
teodiceia tomista Witold
Skwara............................................................................................203
Normas para Submisso de
Textos........................................................219
Revistas
Permutadas.................................................................................221
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a mstica em proclo
The mysTical Proclus
Jan G. J. ter reeGen1
ResumoProclo, na sua grande produo filosfico-teolgica, mostra de
forma clara, a sua tendncia mstica, que neste estudo analisada a
partir de seus Hinos e alguns captulos da Teologia Platnica. A
respeito de seu carater msti-co como pessoa, recorre-se sua
biografia escrita por Marino de Neapolis Palavras-chave: Mistica -
Virtudes - Hinos - Theologia Platonica.
AbstractProcclus, great filosofical-theoloical activity, shows,
clearly, his mystical ten-dency, which in this paper is strudied
looking at his Hymns ans some chapters of his Platonic Theology.
Considering his mystical character as person, the reference is
Proclusbiography written by Marino of Neapolis. Key words: Mistica
- Virtues - Hymns - Platonic Theology.
Introduo
1 - Um dos mais originais pensadores do neoplatonismo foi,
in-contestavelmente, Proclo, um dos expoentes do crepsculo do
pen-samento grego.2 Alm disso, a julgar pelo nmero de seus
comen-trios, foi tambm o mais talentoso sistematizador dos
ensinamentos do grande Plato. Por isso, foi chamado, com toda
justia o Sucessor Platnico.
2 - Nascido em Constantinopla no dia 8 de agosto de 410, mor-reu
em Atenas, aos 17 de abril de 485. Estudou gramtica em Lcia,
embarcou para Alexandria com o objetivo de, num primeiro momento,
aperfeioar-se em retrica, latim e filosofia, para depois se dedicar
ao
1 Professor emrito da UECE. Professor titular da Faculdade
Catlica de Fortaleza (FCF). Doutor em Filosofia Medieval pela PUCRS
e Livre Docente em Filosofia Antiga pela UECE. E-mail:
[email protected] Cf. BASTID, Paul. Proclus et le crpuscule de la
pense grecque. Paris: Librairie Philo-sophique J. Vrin, 1969.
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estudo de Aristteles. De volta a Constantinopla, empenha-se na
ma-temtica e no aristotelismo, at sua ida, obedecendo deusa Atenas,
que lhe apareceu em sonho, cidade de Atenas, onde, sob a orientao
de Plutarco e, mais tarde, sob o sucessor deste Siriano, estuda
Plato, Aristteles e o orfismo, na famosa Escola de Atenas.
Dedica-se, tam-bm, aos Orculos Caldeus, em cujos mistrios iniciado.
Alm disso, e isto constitui um fator de importncia na sua vida, tem
lugar a sua iniciao na teurgia.3 Alis, o seu bigrafo Marino de
Neapolis4 acentua a presena dos deuses e das deusas na vida de
Proclo, apresentando-o como um escolhido e bem-aventurado por parte
desses e, sob cuja pro-teo e inspirao, desenvolveu uma vida
virtuosa e exemplar. Quando, em 450, Siriano vem a falecer,
Proclo assume a direo a direo da Escola, tornando-se, en-to, o
seu Diadocho, funo que exerce at sua morte. Ao seu redor rene-se um
grande grupo de discpulos ao qual Proclo dirige toda a sua energia.
Diz Marino que ele dava diariamen-te cinco cursos, alm de se
obrigar a escrever 770 linhas. [...] Chama ateno a sua
religiosidade profunda traduzida numa constante atitude de orao,
freqente jejum e participao em reunies litrgicas.5
Proclo morre no ano de 485 e, em 529, a Escola de Atenas fechada
por decreto de Justiniano e seus alunos e professores se
disper-sam, os ltimos nas regies de Sria e Prsia.
3 - Sem sombra de dvida, Proclo foi um dos representantes mais
importantes do Neoplatonismo tardio. Isso quer dizer dois scu-los
depois de Plotino, em que, embora se mantenha o essencial e
princi
3 de modo genrico definido como arte de fazer descer o divino ou
deusa alma da pessoa para que esta entre num estado de xtase,
atravs da orao, canto, hinos e meditao, muitas vezes com a ajuda de
pedras, arvores, que simbolizam o divino. 4 MARINO DE NEAPOLIS.
Proclo e a felicidade. Texto bilingue, introd. y notas de Jos
Miguel Garca Ruiz e Jesus Mara Alvarez Hoz.. Bilbao: Iralka, 2004.5
TER REEGEN, Jan G. J. Os elementos teolgicos de Proclo. In:
BAUCHWITz, Oscar Fed-erico (org.). O neoplatonismo. Natal: Argos
Editora, 2001, p.268.
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pal da grandiosa construo metafsica plotiniana, se revela,
entretanto, uma evoluo que
[...] entre outros fenmenos, se manifesta no somente em
ati-tudes, como um vegetarianismo em nome da vida filosfica, cujo
objetivo se torna a salvao da alma, ou numa defesa do paganismo, e
num respeito exagerado para com os rituais, re-velando-se na
teurgia, mas tambm num mtodo interpretativo alegrico, usado para a
leitura de Homero e Plato. 6
Porm, muito mais importantes e incisivas so algumas mudan-as
estruturais , entre as quais a concepo do Nous, pela qual se quebra
a complexa unidade nas trs hipstases : ser, vida e inteligncia. Alm
disso, preciso assinalar a lei dos termos mais importantes do
sistema do movimento triplo de permanncia, processo e retorno. H
tambm a tentativa de explicar melhor a passagem do Uno ao mltiplo
atravs da introduo das nadas. Por fim, a matria apresentada
participando do Uno, fazendo, destarte, parte da ordem
universal.
Da tendncia neoplatnica Proclo herda, ainda, o fervor
reli-gioso, alis, essa tendncia mstica de ordem moral e intelectual
recebe nele uma dimenso prtico-cultual, apoiando-se em mi-lagres e
revelaes to constantes na sua vida. Uma vez que o Uno inacessvel ao
pensamento e s d para ser expressado negativamente, h necessidade
de ritos, [...] de atos simblicos que devem completar os exerccios
intelectuais.7
4 - A sua obra extensa, em sua grande parte, conservada, pode
ser classificada em 07 categorias, a saber:8
a) comentrios, como aqueles sobre Parmnides e Timeu e que
tra-tam respectivamente dos inteligveis e seres csmicos, para os
quais o estudo se dirige e toda a filosofia neoplatnica
6 TER REEGEN, 2001, p.269.7 Ibid., p. 270.8 PROCLUS. Theologie
platonicienne. V Livres. Texte etabli et traduit par H. Saffrey e
L.G. Westerink. Paris: Les Belles Lettres, 1968-1997, L.I. p.
LVIII.
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includa. Vale mencionar, tambm, o comentrio sob re a
Re-pblica;
b) pequenos tratados e escritos ocasionais ou de controvrsia, de
respostas polmicas, monografias, como, por exemplo, Sobre a
Providncia, a Liberdade e o Mal;
c) manuais elementares para iniciantes: Prolegomena Filosofia de
Plato, Introduo Geral Filosofia de Aristteles e da Isagoge de
Por-frio;
d) obras sistemticas, como a magistral Teologia Platnica e a
fa-mosa Elementos Teolgicos;
e) tratados der Matemtica e Astronomia, como o Comentrio sobre o
l Livro dos Elementos de Euclides a Hipotipose das posies
astronmicas;
f) obras de Teurgia, de que sobrevivem to somente fragmentos,
como, por exemplo, Sobre os Orculos Caldeus;
7 - hinos, dos quais apenas sete foram conservados, embora deva
ter composto muito mais, como se pode concluir da, palavras de
Ma-rino de Neapoli.
Analisar o misticismo de Proclo atravs de suas obras uma ta-refa
ingente que excede a extenso de um captulo ou artigo. Por isso,
fez-se uma escolha: analisar-se- a vida de Proclo, como tambm a
grande estrutura da Teologia Platnica e alguns hinos para descobrir
em que sentido e como justificar Proclo como um mstico.
1 O que mstica?
No bem fundamentado artigo Mystical Theology and Spiritual
Ex-perience in Proclus Platnic Theology, John Bussanich cita a
resposta de Blackburn pergunta o que msica?:
F na unio com a natureza divina por meio de contemplao exttica,
e no poder de acesso espiritual a domnios de conheci-mento,
fechados ao conhecimento ordinrio. Tambm aplicado,
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de forma pejorativa, a teorias que assumem qualidades ou aes
ocultas em que no se pode oferecer emprica ou racional
jus-tificao.9
Analisando outras definies ou descries, encontram-se, via de
regra, quatro critrios para reconhecer e /ou definir a mstica:
transcen-dncia, passividade , qualidade notica e inefabilidade;
alguns acrescen-tam a essas condies uma quinta: um estado alterado
de conscincia.10
Resumindo a extensa e abundante literatura, pode-se dizer que
uma experincia mstica sempre envolve a unificao do homem e/ou da
sua mente com a Realidade Suprema, e que isso deve ser considera-do
como a mxima evoluo do esprito humano, ao atingir e fundir-se com a
Razo ltima de todo ser. Suprfluo dizer que isso acompa-nhado por
uma sensao de inexpressvel felicidade e paz.
Deve-se, entretanto, evitar fazer residir a experincia mstica
qua-se que exclusivamente em sentimentos e experincias amorosas,
por importantes que sejam: no se deve nem se pode excluir uma
atividade epistemolgica e outras atividades mentais como
relacionando a expe-rincia atual com o passado e com experincias
futuras, como tambm pretenses teolgicas e metafsicas.11
A leitura das literaturas platnica e neoplatnica coloca em
con-tato e fornece uma srie de realidades que recebem a qualificao
de mstica: silncio, doutrinas, textos, significado espiritual de
textos, entre outros.
Resumindo, podemos descrever a mstica como uma profunda unio com
o Absoluto, que experimentado num estado de absoluto silncio,
baseado na inexpressabilidade daquilo que se v e/ou vive, e
9 PROCLUS ET LA THEOLOGIE PLATONICIENNE, Actes du Colloque
International deLouvain (13-16 mai 1968). En lhonneur de H.D.
Saffrey e L.G. Westerink. dits par A.PH. Segonds et C. Steel.
Leuven/Paris: University Press/Les Belles Lettres, 2000, p.291.10
Cf., por exemplo: MOMMAERS, Paul. Jan van Ruusbroec. Leuven:
Peeters, 2009, p. 7-8; JAMES, W. Varieties or religious
experiences. apud BUSSANICH. Mystical theology and spiritual
experience. [S.l.]: [s.n.], [s.d.], p. 292; KING, Ursula. Christian
mystics: the spiritu-al heart of the christian tradition. New York:
Simon & Schuster Editions, 1998, p. 6.8.15.16.11 BUSSANICH,
[s.d.], p. 299.
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que faz com que quem experimente esse sentimento desenvolva uma
atividade intelectual que pode ser caracterizada como superao.
2 Proclo, o mstico
2.1 O testemunho de Marino de Neapoli
Embora se deva reconhecer que o testemunho de Marinho preci-sa
de certa reticncia e reserva, visto que a sua biografia toma o
carter de hagiografia enaltecedora acrtica, no se pode negar que
ela de inegvel valor em se tratando de um escrito composto
imediatamente aps a morte de Proclo. Apresenta Marinho a figura de
seu mestre que ele acredita ter sido
[...] o homem mais feliz de todos os homens de que se tem
cele-brado, numa longa seqncia de sculos a felicidade, eu no falo
somente o mais feliz em bonheur que a herana dos sbios, embora
tenha a possudo em plenitude, nem porque tinha todas as vantagens
fsicas que lhe permitiram gozar da vida, nem to pouco sob o aspecto
da fortuna, onde a maioria coloca a felici-dade, embora neste ponto
a sorte tenha lhe sido bem favorvel, [...] quero falar de uma
felicidade completa e perfeita qual nada faltava e que reunia as
doces condies da felicidade.12
Depois de contar os acontecimentos e ocorrncias mais
impor-tantes de sua vida, Marino apresenta Proclo como um homem
extre-mamente virtuoso.13
Em primeiro lugar, fala de suas virtudes fsicas, inatas e que so
possudas desde o nascimento e podem ser apresentadas como virtudes
tanto da alma como do corpo. No primeiro caso, podem ser relatadas
a verdade, a temperana, a fortaleza e a justia, enquanto, no
segundo, a agudeza dos sentidos, a fora, a beleza e a sade. Segundo
Marino,
12 MARINHO DE NEAPOLI, 2004, p. 100 13 Ibid., p. 101-125. A
nossa apresentao segue a ordem apresentada por Marinho, e as citaes
feitas so tomadas destas pginas.
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Proclo as possua a julgar dentre outras coisas pela facilidade
com que aprendia as coisas e pela fecundidade de sua alma, alm de
estar longe de ser deselegante e rude.
Em seguida, vm as virtudes ticas que so adquiridas na infncia e
na adolescncia, como, por exemplo, o desejo pela vida filosfica e a
aptido pelo bem. Na vida de Proclo, insere-se, neste contexto, o
so-nho em que lhe aparece a deusa Atenas, exortando-o e
convidando-o a estudar a filosofia.
Tambm esto presentes as virtudes polticas a justia, a sabedoria,
a temperana e a fortaleza - adquiridas por meio do contato e estudo
dos tratados polticos e dilogos de Plato e Aristteles. Para no
ficar s na teoria, insinuava Proclo a outros a se dedicarem prtica
poltica. Conta Marino que, s vezes, participava de deliberaes
polticas nas assembleias pblicas da cidade, porm nunca se
esquecendo que antes de tudo era filsofo.
Mais importantes, entretanto, do que todas aquelas at agora
apresentadas so as virtudes catrticas e teorticas. As primeiras so
adqui-ridas pela assiduidade nos exerccios religiosos e ascticos e
caracteri-zadas pela impassibilidade ou ausncia de paixes, e as
segundas so caracterizadas pela atividade supradiscursiva e
suprarracional no plano do intelecto e cuja aquisio permite a
formao da harmonia entre as teologias rfica, pitagrica, platnica e
caldeia.
Todas essas virtudes que indicam a existncia de um grau de
per-feio, melhor dizendo talvez, de perfeio e santidade, culminam
nas virtudes tergicas, cuja prtica possibilita e permite a unio
mstica com a divindade: por meio delas, existe uma afinidade e
familiaridade que se manifestam em aparies e em sonhos, como por
exemplo, aquele em que Proclo soube do limite de sua vida: 70
anos.14 Alm disso, encon-trava nelas a inspirao para seus versos,
expressos nos hinos, a clari-vidncia para prever e resolver
problemas futuros, provocar ou evitar desastres naturais, e outros
fenmenos semelhantes, caractersticas da teurgia, isto , a
manifestao do divino, ou do deus, por meio de sinais.
14 Na realidade chega idade de 73 anos.
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De toda a descrio de Marino surge uma figura extraordinria, um
homem santo, cuja vida exemplar ilustra como se pode passar pela
limitao do sensvel e atingir um alto grau de unidade com o
divino.
2.2 O caminho ao divino: o mstico Proclo revelado em seus
es-critos
2.2.1 A estrutura da Teologia Platnica No incio do captulo 2 da
Teologia Platnica, Proclo afirma:
Dividirei, ento, para comear, este tratado em trs partes. No
comeo ofereo uma coleo de todas as noes gerais relativas aos
deuses, que Plato ensina, e examinarei o significado e o va-lor das
proposies fundamentais para cada grau da hierarquia; no meio do
tratado, enumerarei todos os degraus da hierarquia divina,
definirei, seguindo o modo de trabalhar de Plato, os seus atributos
prprios e suas processes, e conduzirei tudo aos princpios
fundamentais elaborados pelos telogos; no fim tra-tarei dos deuses,
tanto os hiper-csmicos que os encsmicos, que foram celebrados nos
escritos de Plato, e relacionarei seu estudo s classes universais
da hierarquias divinas.15
No captulo III da Teologia Platnica, Proclo diz que quer falar
uma pa-lavra da prpria teologia e dos modos que ela comporta ,
dizer tambm quais so os modelos de teologia que Plato adotou e os
que ele rejei-ta.16 Depois de apresentar vrias opinies a respeito
da essncia dos deuses, salientando o materialismo de certas
correntes, chega queles que chamam deuses [...] os mais perfeitos
entre as almas e chamam te-ologia a cincia que se eleva at quelas
almas e as conhece.17 Porm, todas essas correntes afirmam que as
almas foram produzidas a partir de um outro princpio superior alma
e colocam o intelecto como guia
15 PROCLO, 1968-1997, L.I., p. 9.16 Ibid., L.I., p. 12 17 Ibid.,
L.I, p. 13.
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de todo o universo.18 Assim sendo, o mais perfeito e feliz que
possa existir a unio da alma com o intelecto e, nessa perspectiva,
a teologia identificada com a procura em relao do degrau do ser do
intelecto.
Conclui, ento, Proclo que todos chamam
[...] deuses os princpios absolutamente primeiros e que so
su-premamente suficientes a si mesmos em relao de tudo que existe,
e a teologia a cincia destes princpios.19
Analisando e aprofundando as palavras de Plato, que agiu sob o
efeito de uma inspirao divina20, afirma que
[...] a classe dos deuses no apreendido nem pela sensao porque
ela transcende tudo que corporal nem pela opinio ou raciocnio,
porque estes so operaes divisveis em partes e adaptadas s
realidades multiformes, nem pela atividade da inteligncia assistida
pela razo, porque este tipo de conheci-mento diz respeito aos seres
realmente seres, enquanto a pura existncia dos deuses supera o
domnio do ser e se defini por aquela unidade mesma que encontrada
no conjunto daquilo que existe.21
Proclo encerra o captulo III da Primeira Parte apresentando em
que consiste, a seu ver, o melhor da atividade do homem:
- dirigir-se ao prprio divino e associar-se ao seu coro;- reunir
constantemente toda a multiplicidade da alma nesta
unidade;- deixar tudo aquilo que vem depois do Uno;- entrar em
contato com esse indizvel e o transcendente de
tudo que existe.22
Em outras palavras, Proclo apresenta aqui um verdadeiro
progra-ma de iniciao mstica, a unio com o principio Absoluto, que,
no
18 PROCLO, 1968-1997,L.I, p. 13.19 Ibid., L.I. p. 14.20 Ibid.,
L.I, p. 15.21 Ibid., L.I. p. 16.22 Cf. Ibid., L.I., p. 16-17.
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gerado, gera tudo, que no pode ser nomeado, mas de que tudo
recebe o seu nome...
2.2.2 O caminho que conduz a essa unio mstica
Beierwaltes, na sua obra Proclo: i fundamenti della sua
metafsica, 23 dedica, na 3 parte, A dialtica, uma exposio
importante, no capitulo XI Dialtica ascendente ou anaggica e suas
etapas essenciais, analisando as vrias obras de Proclo, entre elas
a Teologia Platnica.
Traduz esta anlise, entre outros, o que est escrito no captulo
III da Teologia, examinado no item anterior. Ao apresentar a
dialtica ascendente, ou anaggica, indica, traduzindo o pensamento
procliano quatro elementos importantes:
- a converso do pensamento para si mesmo, considerada uma
passagem necessria efetuao e realizao da dialtica as-cendente;
- a reflexo sobre si mesmo, que conduz ao autoconhecimen-to do
prprio pensamento e isso equivalente a dizer que o sujeito pensante
se afasta da realidade sensvel e se volta aos seres do Ser, em
outras palavras, migra do mutvel ao imut-vel, do aparente ao
verdadeiro;
- este ato leva ao conhecimento das Ideias, que no somente um
pensar, mas inclui, igualmente, um agir que se adianta ao pensar,
atuando e constituindo-se como princpio do filso-fo sempre novo a
qualquer nvel do saber. Destarte, o voltar-se do pensamento a si
mesmo passa para conhecimento de si, incio do conhecimento do
fundamento e do Princpio;
- esta converso deve desenvolver-se com um dinamismo cons-tante,
sempre se renovando e, sobretudo, sempre conquistan-do uma
conscincia mais aguda da essncia do saber que tem de si e de sua
origem.
23 BEIERWALTES, Werner. Proclo: i fondamenti della sua
metafsica. Milano: Vita e Pensiero, 1990, p. 312-362.
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Toda essa movimentao pode ser, na opinio de Beierwaltes,
ca-racterizada como uma abstrao que no somente pode, mas deve ser
entendida como uma fuga da realidade sensvel por amor ao Uno24 uma
fuga por Proclo definida em diferentes lugares como um afastar-se
da multido humana e dos muitos apetites, das percepes enganado-ras,
afinal, de tudo que separa e distancia do verdadeiro conhecimento e
da unio com o mais importante. uma abstrao, ento, e um verter-se
que tem o carter de uma verdadeira catarse.25
Tudo isso, porm, e aqui se toca o mago do misticismo, conduz a
uma assimilao a Deus, a um tornar-se semelhante a Deus, o que
significa para o homem atingir o destino do seu ser: como se pode
ler no Comentrio de Proclo sobre os Orculos Caldeus, II, 20:
Consagremos, pois a Deus este hino: abandonemos a substncia que
flui; andemos at ao verdadeiro fim, a assimilao com Ele; conheamos
o Senhor e amemos o Pai; obedeamos a quem chama, corramos at o que
possui calor, fugindo do frio; se-jamos fogo, faamos nosso caminho
atravs do fogo. Temos a caminho livre ascenso. Um Pai conduz tendo
aberto os caminhos do fogo para que por causa de falta de memria no
fluamos como uma fluncia indigna.26
24 BEIERWALTES, 1990, p. 318.25 Importante a nota 21 da obra
citada de Beierwaltes, em que descreve a como um elemento essencial
da filosofia neoplatnica, em que se desenvolve a concepo
fundamental de Plato. Catarse no deve ser entendida somente como
purificao moral, mas deve ser, ao invs, includa na purificao do
pensamento , como demonstrado de modo convincente, e.o. por
Trouillard [...] : filosofar a execuo desta purificao na
auto-realizao do homem. A especulao determina como atitude
fundamental ser e agir do homem: [...] o itinerrio do eu rumo ao
cume de si mesmo que se deve descrever. Com isto, entretanto, no
deve ser diminuda a importncia moral da ascese, embora a purificao
venha compreendida como unidade inseparvel com a purificao
racional.26 ORACULOS CALDEOS. Com una seleccin de testimonios de
Proclo, Pselo y M. Itlico. In: NUMENIO DE APAMEA. Fragmentos y
testimonios. Madrid: Editorial Gredos, 1991.
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2.2.3 A mstica no hinrio de Proclo
Embora o nmero dos hinos guardados de Proclo seja diminuto,
alguns dizem 05, outros falam de 10, estamos diante de um gnero
lite-rrio muito utilizado pelos autores neoplatnicos.
Pausanias (IX 30.12) estabelece a distino entre dois tipos de
hinos os chamados homricos e os orficos. Os primeiros so grandes,
descritivos e pouco aptos para fomentar a devoo. [...] Os segundos
so curtos e fomentam o fervor religioso.27
Nos hinos de Proclo, como nos hinos rficos, podem ser
ob-servadas duas partes, a saber, a invocao do deus, com seus
atributos tradicionais e a splica de carter pessoal. Interessante
observar como, em alguns, a invocao inicial se retoma no final de
um mesmo hino.
Pode-se afirmar que os hinos de Proclo esto na mesma linha e so,
de certa forma, expresses de sua teologia, significando at o
coroamento desta. Atravs deles, esto sendo conectados os deuses do
panteo neoplatnico, como Hlios, Afrodita, Hecate , Ares e Jano. O
mais importante, entretanto, so aqueles que objetivam a unio com o
Uno. A teurgia , portanto, o caminho mais completo da unio com a
divindade.
Estes hinos de Proclo se fundamentam numa teoria da alma, cuja
faculdade mais elevada do uno da alma leva ao Uno-Bem, e numa
teoria de linguagem como smbolo e sinal, na classificao dos nomes
divinos e na sua considerao tergica como estatuas dos deuses, por
qual razo so objeto de culto na telstica, na iniciao do
culto.28
27 PROCLO. Himnos e epigramas. Trad., introd y notas de Jos
Miguel Garca Ruiz e Jesus Mara Alvarez Hoz.. Bilbao; Iralka, 2003,
p. 6. Foram tambem utilizadas as tradues de J.M. van den Berg, no :
THE PROCLUS HOME PAGE. Leiden University; SOPHIA PERENNIS: Proclus
Hino a Deus; como tambem: INNI DI PROCLO, a cura di Massimo Onetti
Muda. (Os sites so facilmente atingveis atravs destas indicaes,
dispensando a complicada iden-tificao)28 PROCLO, 2003, p.7.
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Pode-se, ento considerar os hinos como uma verdadeira expres-so
da mstica procliana, considerao essa que ser aprofundada por meio
da anlise de dois de seus hinos:
1 Hino a Deus
tu, acima de tudo. De que outro modo justo cantar-te?Como devo
louvar-te a ti que s superior a tudo?Como pode a palavra
exaltar-te? Tu, com efeito,no compreensvel por nenhum
pensamento.Tudo quanto fala e no fala Te chama;Tudo que pensa e no
pensa Te louva;Em torno de Ti se rene o desejo, a dor de todos os
seres.Tudo Te adora, canta um hino silencioso, reconhecendoos Teus
vestgiosDe Ti tudo se originou; s Tu, porm, no tens causa;em Ti
tudo permanece, a Ti tudo acorre;E Tu s o fim de tudo; Tu s Uno e
tudo,No sendo nem Uno nem tudo.Tu que tens muitos nomes, como Ti
chamarei a Ti,O nico inominvel Que esprito celeste penetrar no teu
supraluminoso interior?S benvolo! Tu, que ests acima de tudo! De
que outro modo justocantar-Te
Encontra-se expressa, de maneira clara, a absoluta
transcendn-cia divina de vrias formas: superior a tudo, no
compreensvel por nenhum pensamento, tudo Te adora, de Ti tudo se
originou, e.o. Essa transcendncia, sentida na abismal distncia
entre aquele que canta e o Uno faz com que o conhecimento humano,
que funciona atravs do sensvel, no consiga compreender, por mais
perfeito que seja o seu pensamento, a natureza divina. Alm disso,
tambm no consegue ex-
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press-la, porque palavras so sinais de uma mesma realidade
sensvel, que impede o acesso perfeito ao Absoluto. Mas, mesmo
assim, Proclo tenta aproximar-se do indizvel, concebendo-o como o
objetivo, o fim de tudo, no somente uma coisa, mas todas as
coisas.
Nota-se, ento, de forma clara, a mistura dos elementos afetivo e
notico (ou cognitivo), que so caracteres do carter mstico da
expe-rincia do Divino. E, sobretudo, expressa-se, com grande
finalidade, a grande finalidade de toda esta tentativa de
misteriosa aproximao de Deus indo do sensvel e tentando superar
esse sensvel a unio com o Uno, que tudo, no sendo nem Uno nem
tudo!
2 Hino comum aos Deuses Escutem, deuses, que possuem o leme da
sagrada sabedoria,que, tendo aceso o fogo que eleva as almas dos
mortais,as atrais junto aos imortais, tendo abandonado elas a
caverna cheia de tnebras,uma vez purificadas pelos inefveis
mistrios dos hinos.Escutem, grandes salvadores, e dos livros
sagradosconcedam-me a luz pura que dissipa a escurido,para que
possa conhecer bem o deus imortal e o homem;e que o demnio que
sempre faz coisas funestas sob as correntes o esquecimentonunca se
apodere de mim, que est longe dos bemaventurados;que a minha alma,
cada nas ondas da espantosa gerao,sem querer andar vagando durante
muito tempouma Vingana terrvel no a liga com as correntes da
vida.
Eia, ento, deuses, chefes de uma sabedoria muito
brilhante,Escutem, a mim que com pressa me aproxima de um caminho
que leva ao altoMostrem-me os ritos e mistrios dos mitos
sagrados.
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O grande tema deste hino o desejo que reside na alma do ho-mem
de ter acesso fonte de toda a sabedoria. Esse desejo no algo que
vem do prprio homem, mas foram os deuses que o acenderam nas suas
almas, como um fogo que os possibilite deixar as tnebras da
caverna. Mas h condies: uma delas a purificao, que, entre ou-tras
coisas, reside nos hinos, que destarte so apresentadas com poder
tergico. Prope Proclo neste hino, tambm, uma luz que o faz
distin-guir claramente quem deus e quem o homem, para que no haja
confuso que faa com que o homem possa considerar como um bem que na
realidade um mal. Este mal deve ser compreendido como um
esquecimento da luz divina e um comprometer-se com tudo que vida,
causada pela gerao, terrvel vingana.
Os grandes temas msticos esto aqui presentes, como os deuses
como fontes de toda a sabedoria a quem o homem pode ter acesso, no
por fora prpria, mas por uma catarse profunda, uma purificao pelos
inefveis mistrios dos hinos, que faz com que possam sair da caverna
tenebrosa.
Concluso
Na anlise desenvolvida, no de forma abrangente, mas
introdu-tria, pode-se constatar que, em primeiro lugar, Proclo foi,
na sua vida particular, um homem de uma intensa atividade
espiritual, manifestada na sua vida virtuosa, que pode ser
caracterizada como mstica, uma vez que ela revela uma experincia de
unificao do homem e/ou de sua alma com a realidade mais alta. Essa
unio significa a suprema e mais autntica elevao do esprito humano
ao atingir uma fuso com Deus ou o divino, a razo fundamental de
todo ser. Alm disso, como sinal desta realidade na vida de Proclo,
tem-se a presena nela de grande alegria e paz de esprito.
Essa vivncia pessoal tem consequncias na sua admirvel ativi-dade
cientfica, que concebida como uma ascenso, passando do con-creto e
individual ao mundo da abstrao e da universalidade, o mundo
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inteligvel e das grandes almas, os deuses, onde o conhecer
outro, sem antes e depois, sem raciocnio e onde tudo conhecido,
vivido e concebido no Uno e com o Uno.
Referncias
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Paris: Li-brairie Philosophique J. Vrin, 1969.
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BAUCH-WITz, Oscar Federico (org.). O neoplatonismo. Natal: Argos
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o Problema de deus Na filosofia de PloTiNo:coNverGNcias e
diverGNcias com o
deus Judaico-crisTo
The Problem of God iN The PhilosoPhy of PloTiNus:coNverGeNces
aNd diverGeNces from
The God Judeo-chrisTiaN
Jandu evanGelista de Oliveira1
MarcOs rObertO nunes cOsta2
Resumo corrente entre os tradutores e intrpretes da filosofia
plotiniana traduzir ou referirem-se ao Uno de Plotino, primeira
hipstase inteligvel, como sendo Deus. O presente artigo pretende
investigar a possibilidade de haver ou no condies de equivalncia
entre o Uno plotiniano e a concepo crist de Deus. Para tal,
analisaremos, em primeira instncia, a Enada VI, visando a
relacionar com outras partes das Enadas, assim como com alguns
trabalhos j realizados por outros pesquisadores. Palavras-chave:
Plotino, o Uno, o Deus cristo.
AbstractIt is common among translators and interpreters
translate plotinian philosophy or refer to the One of Plotinus, the
first intelligible hypostasis, as God. This article investigates
the possibility of whether or not conditions of equivalence between
the plotinian One and the christian conception of God. To this end,
we will analyze in the first instance to Ennead VI, in order to
relate to other parts of the Enneads, as well as some work already
done by other researchers.Key words: Plotinus, the One, the
christian God.
1 Mestrando em Filosofia pela UFPE, orientando do Prof. Dr.
Marcos Roberto Nunes Costa. E-mail: [email protected] 2
Professor de Filosofia Medieval da UFPE, ex-presidente da Sociedade
Brasileira de Filosofia Medieval SBFM. Atual Coordenador do Curso
de Filosofia da UFPE.E-mail: [email protected]
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Introduo
Segundo Alain De Libera, embora a filosofia no seja um produ-to
originrio do territrio latino 3, Plotino adquiriu o status de
filsofo em plena Roma cristianizada, onde abriu uma escola e foi
mestre4.
Acredita-se que isso se deu pelo fato de seu pensamento estar
ali-cerado nas duas maiores tradies filosficas do Ocidente: a
platnica e a aristotlica. Ou seja, uma tentativa de sntese do
idealismo platnico, com notvel influncia das concepes cosmognicas
de Aristteles.
No que se refere questo de Deus, o problema surge quando, em sua
cosmologia, comea com a afirmao ontolgica do Uno, de natureza
inteligvel e inefvel, razo de ser de toda a unidade e causa primria
da existncia do mundo. Este Uno deve ser interpretado como o
Uno-em-si, concebido como causa incriada de tudo, o qual vai ser
in-terpretado por muitos como equivalente ao Deus da Tradio
judaico-crist, o que d margens a muitas controvrsias.
Todavia, no presente trabalho, no h a pretenso de examinar a
ontologia/cosmologia plotiniana como um todo, mas, to somen-te,
apontar principais atributos do Uno e investigar a possibilidade de
estabelecer ou no uma equivalncia entre ele e o Deus da Tradio
judaico-crist, uma vez que no h unanimidade entre os tradutores e
intrpretes de Plotino.
3 LIBERA, Alain De. A filosofia medieval. 2. ed. Trad. de
Nicolas Nyimi Campanrio e Yvone Maria de Campos Teixeira da Silva.
So Paulo: Loyola, 2004. p. 61.4 Plotino, que foi discpulo de Amnio
Sacas, nasceu no Egito em 204 e faleceu em Minturno, na Campnia, em
270. Sua nica obra, as Enadas, assim intitulada e publicada por seu
discpulo e bigrafo Porfrio (232/3-305), foi escrita durante o tempo
em ensinou em Roma por nove anos, que so os apontamentos de aulas,
formando um conjunto de cinquenta e quatro trata-dos, que Porfrio
(232 304), seu discpulo direto, ordenou em seis grupos de nove, ou
seja, 54 = 6 (nmero da perfeio) x 9 (nmero da totalidade). O
agrupamento das partes obedece a uma ordem sistemtica ascendente,
de acordo com a mstica plotiniana: a primeira parte se refere ao
homem e Moral; a segunda e terceira, ao mundo sensvel e Providncia;
a quarta, Alma; a quinta, Inteligncia; e a sexta, ao Uno e ao Bem.
Essa disposio, entretanto, de ordem geral, porque, na verdade, a
exposio de Plotino dispersiva, tratando de todas as questes, sem
atender a uma ordem sistemtica e escolar.
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1 A ontologia/cosmologia plotiniana
Plotino inicia sua ontologia/cosmologia afirmando a existncia de
trs hipstases primordiais ou inteligveis, alm do mundo sensvel. Na
primeira hipstase, acima de tudo e at do ser ou para alm do ser5,
est o Uno6, o Superbem, que transcendente, perfeito, eterno,
infinito e necessrio, ponto de partida das outras duas hipstases7,
razo de ser de toda a unidade, causa primeira da existncia e do
agir de todas as coisas, conforme diz o prprio Plotino:
h um princpio nico que governa o universo, e um erro supor que
esse poder esteja atribudo aos astros, como se no houvesse um
senhor nico de quem depende o universo, e que distribui a cada ser
um papel e funes conforme sua natureza. No reconhecer isso destruir
a ordem de que fazemos parte, ignorar a natureza do mundo, que supe
uma causa primeira, um princpio cuja ao tudo penetra8.
5 REALE, Giovanni; ANTISERI, Drio. Histria da filosofia:
Antiguidade e Idade Mdia. 10. ed. So Paulo: Paulus, 2007, p. 439,
fazendo uma relao entre o pensamento de Plotino e seus
predecessores, diz que o princpio ltimo do real, para Aristteles,
era a essncia (ousia) e a inteligncia do Motor Imvel; para Plotino,
ao contrrio, o princpio ainda ulterior, o Uno, o qual est para alm
do ser e da essncia, para alm da inteligncia; o Uno que transcende
a prpria ousia e o prprio Nous. Igualmente SANTA CRUz, Mara Isabel.
Introduccin. In: Plotino: textos fundamentales. Sel., trad. y notas
de Mara Isabel Santa Cruz. Buenos Aires: Eudeba, 1998, p. 15,
fazendo uma relao entre a Inteligncia ou Nous plotiniano, o Motor
Im-vel de Aristteles e o Mundo das Ideais de Plato, os quais esto
no mesmo nvel, j que o Uno anterior ou est alm destes, diz:
Seguindo a linha do platonismo que o precede, Plotino rene na
Inteligncia o primeiro motor aristotlico com o mundo platnico das
ideias. A Inteligncia pensamento que pensa a si mesmo e ao
pensar-se pensa o Mundo da Ideias ou paradigmas, que constitui seu
prprio contedo, sua prpria estrutura interior. O inteligvel se
multiplica em uma infinita pluralidade de inteligveis que, ainda
que distintos entre si, no esto separados; constitui um cosmos
animado por uma vida nica e universal, uma totalidade orgnica e
din-mica em que cada ideia simultaneamente uma inteligncia.6 Embora
a ideia de Uno seja detalhada somente na Enada VI, no entanto, ela
perpassa quase toda obra, uma vez que ela contm vrios temas e no
obedecem a uma ordem sistemtica dos contedos.7 Cf. DUROzOI, Grard;
ROUSSEL, Gerard. Dicionrio de filosofia. 5. ed. Trad. de Marina
Appenzeller. Campinas: Papirus, 2005. p. 371.8 PLOTINO. Enada II: a
organizao do cosmo. Trad., introd. e notas de Joo Lupi. Petr-polis:
Vozes, 2010. p. 29.
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Da primeira hipstase emana a segunda processo9, a Inteligncia, o
Esprito, o Logos ou Nous. Essa segunda processo uma cpia do Uno e,
embora tenha sido engendrada diretamente do Uno, sendo, portanto, a
mais perfeita de todas as processes, ela no tem a unidade perfeita.
Ela marca o incio da multiplicidade.
Por fim, encerrando o mundo inteligvel, vem a Alma Universal ou
do Mundo, terceira hipstase espiritual. Ela plasma todos os seres e
ani-ma todas as almas individuais, inclusive as dos homens. Ela
marca a pas-sagem ou est no limite entre o mundo inteligvel e o
mundo sensvel.
2 Existe equivalncia entre o Uno plotiniano e o Deus
judaico-cristo?
Para tentar responder a essa pergunta, traa-se um paralelo entre
os casos em que o Uno traduzido/interpretado como equivalente a
Deus10 e aqueles que rebatem este tipo de interpretao. Para tal,
co-mearemos por examinar alguns textos em que alguns tradutores
e/ou intrpretes fazem uma estreita relao entre o Uno e Deus, como,
por exemplo, a recente traduo da Enada II, feita por Joo Lupi, que
diz: a Alma se move em torno de Deus, e o envolve com amor. Porque
todas as coisas dependem desse princpio, e, como a Alma no pode ir
para Ele, move-se em torno dele 11. Uma segunda identificao se
encontra em Nicola Abbagnano: Plotino acentua at ao extremo
limi-
9 Segundo ALSINA CLOTA, Jos. El neoplatonismo: sntesis del
espiritualismo antiguo. Barcelona: Anthropos, 1989, p. 53, possvel
que Plotino tenha despertado para a idia de processo a partir do
estranho conceito emanatista de criao do pensador judeo-helenstico
Flon de Alexandria: Em Flon, Deus, que inteiramente transcendente,
cria a partir da supe-rabundncia de sua perfeio. O emanatismo
filoniano reaparecer em Plotino, ainda que em forma completamente
distinta. O processo atravs do qual se produz a criao se chama, na
terminologia plotiniana, prodos, que os modernos tm traduzido por
processo. Em As Enadas, Plotino fala da processes como de uma
sucesso de crculos concntricos, surgidos a partir de um nico ponto:
Existe qualquer coisa que poderia dizer-se centro: ao redor deste,
h um crculo que irradia o esplendor emanante daquele centro; ao
redor deste (centro e primeiro crculo), um segundo crculo, luz da
luz (En. IV, 3, 17). 10 Vale lembrar que a ideia de Deus que subjaz
nosso texto aquela que nos foi passada pela Tradio judaico-crist.
11 PLOTINO, 2010, p. 21.
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te a transcendncia de Deus 12. Posto que, ao passo que Flon
ainda identifica Deus com o ser, Plotino afirma que Deus est para l
do ser, para l da substncia... 13. A mesma identificao se encontra
em Carlo Bssola: Deus o ponto mais alto, alis, o nico ponto
importante de toda a filosofia de Plotino 14.
Mas, qual ser mesmo a origem dessa tendncia em associar o Uno
plotiniano ao Deus judaico-cristo?
Segundo Allan De Libera, a questo pode ter surgido a partir da
traduo ou adaptao das Enadas para o rabe:
parte considervel das Enadas de Plotino foi traduzida para o
rabe e circulou amplamente em terras do isl. O paradoxo que
circulou tanto sob o nome Aristteles como a clebre Te-ologia de
Aristteles , como o qualitativo ambguo de Ancio (ou Sbio) grego (al
Shaikh al-Ynni)15.
Isso se deu no incio do sculo IX d.C. (sculo III da Hgira),
quando apareceu em Bagd uma verso rabe das Enadas, provavel-mente
uma montagem de textos gregos compostos no sculo VI, con-forme
completa o supracitado autor:
a Teologia de Aristteles existe em duas verses: uma curta que a
crtica designa por Vulgata, e outra longa. A Vulgata compe-se de
trs partes distintas: Prlogo, Cabeas de questes, par-frase das
Enadas IV-VI. A maneira como a Teologia foi posta em circulao no
mundo cultural abssida foi de to numerosas interpretaes divergentes
que parece impossvel fornecer, aqui, uma explicao segura16.
12 ABBAGNANO, Nicola. Histria da filosofia. 5. ed. Trad. de
Antnio Borges Coelho. Lis-boa: Ed. Presena, 1999, vol. II. p 59. 13
Ibid.14 PLOTINO. A alma no tempo. Carlo Bssola. Vitria: UFES, FCAA,
1990, p. 33. Dispon-vel em
http://www.upasika.com/docs/helenistica/Bussola%20Carlo%20-%20Plotino%20Alma%20no%20Tempo.pdf
Acesso em: 07 de setembro de 2011.15 DE LIBERA, 2004. p. 83.16
Ibid.
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Tem-se, assim, um primeiro indcio que pode ajudar na compre-enso
da origem do problema.
Alm disso, neste mesmo perodo, foi traduzido e/ou adaptado para
o rabe o Livro das Causas ou Livro do Bem Puro, de Proclo17, e o
livro dos Elementos de Teologia, atribudos ao Pseudo-Aristteles,
que seguem as pegadas de Plotino, segundo o supracitado
comentador:
o texto uma montagem de diversas procedncias em que Pro-clo
ocupa um lugar preponderante com efeito, o Livro das Cau-sas uma
ampla reconstituio dos Elementos de teologia mas em que outras
fontes contribuem c e l (...) o Livro das Causas assim como a
Teologia tm circulado com o nome de Aristte-les (...), Quem quer
que seja, o autor do Kalm fi mahd al-khair (Livro das Causas) no se
contentou em adaptar o pensamento de Proclo ao contexto monotesta
mulumano, ele modificou as ideias com auxlio de doutrina tiradas da
parfrase rabe das Enadas, doutrinas que podiam mostrar-se contrrias
inspira-o autnticas de Plotino18.
O certo que, at hoje, todos reconhecem a existncia de uma
estreita relao das obras supracitadas - Elementos de Teologia
(suposta-mente do PseudoAristteles) e o Livro das Causas (de
Proclo) -, com a filosofia de Plotino, bem como com outros escritos
de filsofos mul-umanos.
Entre esses ltimos, temos, por exemplo, Abu Ysuf Yaqb ibn Ishq
Al-Kindi (800-866), tambm conhecido como O filsofo rabe, primeiro
dos filsofos islmicos que se destacou por introduzir os fi-lsofos
gregos no mundo rabe19, dentre os quais Aristteles e Plotino,
conforme atesta Allan De Libera:
17 Santo Toms de Aquino foi o primeiro escolstico a sugerir que
o Lber de Causis (Livro das Causas) seria uma adaptao rabe de
Proclo. 18 DE LIBERA, 2004, p. 85-6.19 ALKINDI. Wikipdia, a
enciclopdia livre. Disponvel em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Al-Kindi Acesso, 23 de outubro de
2011.
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De acordo com certas testemunhas, a traduo-adaptao das Enadas
teria sido efetuada, assim como, ao que parece, uma das numerosas
tradues da Metafsica de Aristteles por Al-Kindi em Bagdad20.
O tema central dos escritos de Al-Kindi a compatibilidade entre
a filosofia e outras cincias islmicas ortodoxas, particularmente a
teologia. Muitas de suas obras lidam com assuntos de interesse
imediato para a teologia, como a natureza de Deus, a alma e a
sabedoria proftica. Entre-tanto, em alguns pontos, como por
exemplo, ao defender a criao do mundo, portanto, da finitude do
tempo21, sua filosofia entra em contraste como o sistema
plotiniano, posto que nele no h lugar para criao, mas emanao, sendo
que ela no se d no tempo, mas atem-poralmente, visto que o
universo, na sua massa material, existiu desde sempre e sempre
existir22.
Assim, a releitura de Plotino foi-se ampliando e conquistando
cada vez mais espaos no mundo da filosofia. Nesse trajeto, ela
chegou ao mundo judaico por meio de Isaac Israeli (c. 855 c.
955/956)23, cujo pensamento pode ser encontrado em algumas obras
que chegaram at ns, a saber: o Livro das Definies, o Livro dos
Elementos, o Livro do Esprito e da Alma e o Livro das Substncias,
as quais, principalmente a primeira, tem grande relao com Al-Kindi
e de seu crculo (escola), conforme nos diz Allan De Libera: desde
as primeiras linhas do Livro das Defi-nies, a dependncia de Isaac
em relao a Al-Kindi evidente24, visto que, ali
20 Cf. LIBERA, 2004, p.104. Alm disso, segundo este mesmo
comentador, sabe-se que Al-Kindi supostamente corrigiu (ou
explicitou?) a traduo da Teologia de Aristteles de Ibn Nimah de
Emesa21 Ibid.22 PLOTINO, 2010, p. 09.23 Pouco se conhece sobre a
vida desse filsofo, o que se sabe que ele era filho de Salomo e que
nascera no Egito. Alguns sustentam que ele deva ter frequentado o
Crculo do Al-Kindi. Porm, Allan De Libera assegura que nada prova
que Isaac Israeli tenha residido em Bagdad nem que tenha
frequentado o grupo de Al-Kindi (morto por volta de 866). Em
contrapartida, fica claro que ele dispunha de uma verdadeira
biblioteca alkindiana (2004, p. 199).24 LIBERA, 2004, p. 199.
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Isaac prope uma contrao e uma reclassificao em relao a Al-Kindi:
trs definies emergem. A primeira tirada do pr-prio nome (amor da
sabedoria); a segunda extrada das suas propriedades: assimilao s
obras do Criador, isto , compreen-so das verdades das coisas, ou
seja: estudo das coisas a partir das quatro causas: material,
formal, eficiente e final25.
Ou seja, o que Isaac Israeli pretendia era uma reelaborao do
neoplatonismo plotiniano, conforme conclui Allan De Libera:
contra a Teologia de Aristteles, Isaac define o poder e a
vontade de Deus como modalidades da sua essncia, o que tambm sua
atualidade/atividade, no como hipstases distintas ou como um Verbo
realizado. Contra Plotino, identifica Deus (o Cria-dor) ao Uno e
intercala entre o Uno e o Intelecto duas substn-cias: a Matria
primeira e a forma primeira. Novamente contra Plotino, substitui a
terceira hipstase, a Alma, por um sistema de trs hipstases
correspondentes (em nvel universal) aos trs tipos de alma
distinguidos por Aristteles (em nvel individual): a alma racional,
a alma sensitiva e a alma vegetativa, e substitui quarta, a
Natureza, o que chama de a Esfera, o Cu ou, ainda, como Aristteles,
a quinta-essncia(...) 26.
Mas quais os motivos que levaram os tradutores e intrpretes de
Plotino, desde os supracitados filsofos rabes at hoje, a
relacionarem o Uno com o Deus judaico-cristo? O que afinal o Uno,
de forma que venha a ser identificado com Deus?
Na atualidade, Giovane Reale e Dario Antiseri se referem
filo-sofia de Plotino nestes termos: todo ente tal em virtude de
sua uni-dade: retirada a unidade, retira-se o ente. Ora, h
princpios de unidade em diversos nveis, mas todos pressupem um
princpio supremo de unidade 27, e concluem:
25 LIBERA, 2004, p. 199-200.26 Ibid., p. 200-1.27 REALE;
ANTISERI, 2007, p. 340.
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o princpio ltimo do real, para Aristteles, era a essncia (ousia)
e a inteligncia do Motor Imvel; para Plotino, ao contrrio, o
princpio ainda ulterior, o Uno, o qual est para alm do ser e da
essncia28.
Em Klimer e Colomer, o Uno de Plotino concebido da seguinte
forma: o Uno o Ser supremo sobre todas as essncias determinadas e
finitas 29, concepo esta compartilhada por Gonzalez Alvarez, que
diz:
o Uno no encerra em si composio alguma. No pode ser, por
conseguinte, matria, porque a matria convm essencialmente ser
formada por partes externas. Tampouco pode ser esprito, porque no
esprito se d, ao menos em funo do conhecimen-to, a dualidade
sujeito-objeto 30.
Mas, se o Uno no encerra em si composio alguma, o que levou
Plotino a chamar o primeiro princpio de Uno? Ismael Quiles responde
a essa pergunta dizendo: o nome Uno dado por Plotino aps ter
buscado em vo outro nome com que express-lo, pois dado a sua
sim-plicidade, o entendimento incapaz de pens-lo 31, dado que
no podemos dizer o Uno sem introduzir pelo menos uma dualidade
entre sujeito e predicado, e no possvel que exista dualidade
primordial na Unidade absoluta, que o princpio de unificao de todas
as coisas32.
28 REALE; ANTISERI, 2007, p. 340.29 KLIMER, Federico ; COLOMER,
Eusebio. Plotino. In: Historia de la filosofa. Madrid: Editorial
Labor, 1961. p. 110.30 GONzALEz ALVAREz, Angel. Plotino. In: Manual
de historia de la filosofa. Madrid: Editorial Gredos, 1964. p.
121.31 QUILES, Ismael. Plotino: a alma, a beleza e a contemplao.
Trad. de Ivan Barbosa Rigolin e Consuelo Colinvaux. So Paulo:
Centro Editor - Associao Palas Athena, 1981. p. 18.32 ARMSTRONG, A.
H. Plotino. In: Introduccin a la filosofa antigua. 8. ed. Trad. de
Car-los A. Fayard. Buenos Aires: EUDEBA, 1993. p. 289.
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Frente a isso, observa-se que alguns atributos do Uno so
seme-lhantes aos que a Tradio judaico-crist confere a Deus. Porm
ser que essa semelhana suficiente para aproximarmos o Uno e
Deus?
A partir das palavras do prprio Plotino: o Uno tambm per-feito,
porque nada busca, nada possui e de nada tem necessidade. Sen-do
perfeito o Uno tambm transbordante e sua abundncia faz com que Ele
produza algo diferente de si33, verifica-se que os atributos do Uno
que o torna semelhante a Deus so os da perfeio, da autarquia e da
conservao do mundo. Porm, nessa mesma passagem, assumir que Uno
nada possui algo que dificulta a equivalncia entre o Uno e Deus,
pois a Tradio judaico-crist assegura que Deus possui as virtudes no
mais alto grau de perfeio. Outro elemento que destoa da Tradio
judai-co-crist a afirmao de que o Uno nada busca, visto que, aquela
nos ensina que Deus se preocupa com sua criao, inclusive com o
homem, buscando constantemente conduzi-lo ao estado inicial de
perfeio.
Outro ponto de convergncia entre Plotino e a Tradio quan-to
ideia de causa primeira. De forma que muitos veem uma estreita
relao entre as palavras de Plotino: tudo que est sendo, est sendo
por causa do Uno 34 e o Evangelho de So Joo 1, 3: tudo foi feito
por ele, e sem ele nada foi feito.
Entretanto, em Plotino, o Uno se propaga por todo o cosmo, o que
significa dizer que ele est contido em tudo, embora em graus de
perfei-o diferentes, o que levou muitos comentadores a acus-lo de
pante-smo. Tal afirmao estranha ideia de Deus ensinada pela Tradio,
pois, enquanto em Plotino o cosmo derivou do Uno por emanao, a
Tradio ensina que Deus criou o mundo ex nihilo, de forma que Deus o
criador direto dos seres materiais, enquanto que, na filosofia
plotiniana, este mundo deriva indiretamente do Uno, mas engendrado
pela Alma do Mundo, conforme diz o prprio Plotino: a Alma que rege
todas as coisas, produzindo-as e moldando-as, figurando-as e
arranjando-as 35.
33 PLOTINO, 2010, p. 17534 Ibid.35 PLOTINO. A cerca do bem ou do
uno: Enada VI, 9. Integrao, n.53. p. 176, abr. mai. jun, ano 2008.
Trad. de Paulo Henrique Fernandes Silveira. Disponvel em
ftp://ftp.usjt.br/pub/re-
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Tambm na ontologia/cosmologia plotiniana, a criao do mun-do, ou
melhor, a emanao, no se deu por um ato de liberdade do amor divino,
como nas Escrituras bblicas, mas tudo emana do Uno
de-terministicamente36 e atemporalmente, ou seja, eternamente.
Assim sendo, no resta dvida de que o Deus de Plotino necessrio37,
mas no s Deus, como todas as processes que dele derivam.
Finalmente, por colocar o Uno como anterior a qualquer outra
coisa, Plotino acaba por defini-lo como um ser solitrio, o que
significa que
o que solitrio nada conhece, como nada deixa de conhecer, mas,
sendo Uno e unido a si mesmo, no precisa perceber a si mesmo. Por
conseqncia, ele no precisa juntar-se a si mesmo, o fato de ser
consigo, para conservar sua unidade38.
Tais caractersticas no se ligam aos ensinamentos da Tradio
judaico-crist, pois esta defende que Deus no solitariamente, mas
comunitariamente, apresentando-se enquanto Trindade.
vint/175_53.pdf Acesso em 17 de outubro de 2011.36 FRAILE,
Guillermo. Plotino. In: Historia de la filosofa: Grecia y Roma.
Madrid: La Edi-torial Catlica/BAC, 1956, vol I, p. p. 707, da mesma
opinio, quando diz: Na realidade [...] no admitindo a idia de criao
ex nihilo, no tem mais remdio que afirmar que todas as coisas
procedem necessariamente da primeira Causa. Portanto, conforme
conclui ALSINA CLOTA, 1989, p. 54, na criao emanatista plotiniana,
que por sua vez teria sua inspirao na idia emanatista de criao de
Flon de Alexandria, tudo brota do Uno, no por um pro-cesso
deliberativo nem um ato de conscincia. Brota em razo de sua
superabundncia [...]. A criao , pois, conseqncia da suprema
superabundncia do Uno e de sua capacidade de engendrar. E isso se
diferencia profundamente do Deus cristo. 37 CF. FRAILE, 1956, p.
706: A existncia dos seres mltiplos e contingentes do mundo
sen-svel reclama necessariamente a de um Ser Uno e necessrio. Ou
ainda: O Uno o princpio supremo, a fonte primordial da qual se
deriva toda pluralidade dos seres, por uma processo necessria e
eterna. O Uno aquele pelo qual existem todas as coisas. Igualmente
SCIACCA, Michele Federico. Plotino. In: Histria da filosofia:
Antigidade e Idade Mdia. Trad. de Luis Washington Vita. So Paulo:
Mestre Jou, 1966, vol. I, p. 138: O Uno atividade pura, a potncia
de todas as coisas: se ele no existisse, nada existiria. 38
PLOTINO, 2008, p. 180
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Consideraes finais
Diante do exposto, pode-se concluir que, apesar de, em alguns
pontos, haver convergncia entre os atributos do Uno plotiniano e o
Deus da Tradio judaico-crist, na realidade, trata-se de entes
total-mente diversos.
Em primeiro lugar, relembremos a questo da emanao. Se-gundo a
Tradio crist, o mundo no fruto de uma emanao, mas criao de Deus.
Alm disso, a teoria na emanao mostra a gerao do mundo acontecendo
de uma maneira tal em que Uno permanece imvel no centro dela, sem
quer-la nem consenti-la. Assim, o mundo sensvel no fruto de
liberdade do Uno/Deus, mas como expresso necessria da natureza do
primeiro princpio. Tem-se, assim, mais um elemento que pesa na
identificao do Uno com Deus. Ou seja, na filosofia de Plotino,
tanto o Uno com o mundo sensvel existem neces-sariamente. Tal
afirmao mostra-se incompatvel com o pensamento judaico-cristo, pois
aprende-se com ele que Deus, em plena liberdade, criou o mundo por
um ato de amor.
Segundo, no pensamento Cristo, Deus criou o mundo do nada, ou
seja, o criador diferente da criatura. J na teoria da emanao, o
mun-do derivou do prprio Uno, e o Uno por sua vez se propaga pelo
cosmo.
Portanto, diante dessas constataes, conclumos que o Uno de
Plotino no Deus, pelo menos nos padres da Tradio judaico-crist,
todavia, possvel que se conceba uma associao do Uno com Deus, mas
este tem de ser um Deus diferente da concepo dos cristos. Da
concorda-se com as palavras de Carlos Bssola, que diz:
O Uno, evidentemente, Deus, mas no o Deus que as Escrituras
judaico-crists reduzem a um ponto indefini-do nalgum lugar do cu,
com caractersticas antropomr-ficas, e sim o Deus de Spinoza, ou,
talvez, na linguagem da mentalidade moderna, a Energia Eterna,
infinita, inex-plorvel, nica e incomensurvel de que fala
Einstein39.
39 BUSSOLA, Carlo. Plotino: a alma no tempo. Vitria: FCAA/UFES,
1990, p. 32.
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orGeNes: a asceNso esPiriTual
oriGeN: sPiriTual asceNT
JOO lupi1
ResumoOrgenes (c.185-254) foi o primeiro telogo a comentar toda
a Sagrada Escri-tura e a criar uma obra extensa de organizao geral
da doutrina crist; mas foi tambm um homem de Deus e um guia de
almas. Sua espiritualidade mar-cada pela personalidade intelectual:
orao, ascese e mstica fundamentadas na Teologia bblica. O caminho
ou itinerrio da alma at se identificar com Deus passa por trs
estgios: purgativo, iluminativo e contemplativo. Assim como preciso
purificar os sentidos, assim se purifica o entendimento para
compre-ender a Escritura. A orao faz parte do movimento consciente
da alma que culmina na viso beatfica: as npcias da alma, em que o
corpo e os sentidos se espiritualizam.Palavras-chave: Orgenes -
Itinerrio da alma - Orao - Npcias da alma.
AbstractOrigen: the rise of the spirit. Origen (c.185-254) was
the first Theologian to produce a broad commentary of the Sacred
Scriptures, thus crating a com-prehensive work where an orderly
structure of the whole Christian Doctrine is explained. He was also
a man of God and a spiritual leader. The emphasis of Origens
spirituality laids on his own intellectual personality: prayer,
self-discipline, and mystical life are grounded on Biblical
Theology. The path, or itinerary of the soul, goes to identifying
with God, and has three stages: spiritual cleansing, illumination,
and contemplation. Just as we need to purify our senses so our
minds need purification to understand the Holy Scriptures. Prayer
is part of souls conscious movement towards beatific vision:
nuptials of the soul, when body and senses do spiritualize.Key
words: Origen - Itinerary of the soul - Prayer - Nuptials of the
soul.
1 O homem de Deus
Orgenes (c.185-254) dedicou sua vida a estudar, ensinar, e
es-crever; seu plano de trabalho era comentar e pregar toda a
Sagrada Escritura. Desse modo, ele foi o que se costuma chamar um
homem de Deus, e um homem da Igreja. O extenso conjunto de suas
obras cons-titui o primeiro trabalho sistemtico de elaborao de toda
a teologia
1 Doutor em Filosofia UFSC. E-mail: [email protected]
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crist; sistemtico pelo mtodo, pela estrutura de ideias, pela
concep-o coerente da doutrina, pela fundamentao da argumentao,
con-tudo, aberto pela disposio de aceitar sempre outros pontos de
vista quando o assunto era duvidoso. Ensinou e escreveu quando
ainda no se tinham reunido Conclios, nem definido dogmas, quando os
bispos eram eleitos pelo povo ou pelos colegiados dos presbteros.
Natural de Alexandria, com seis sculos de tradio intelectual
centrada no Museu e nas Bibliotecas, independente e democrtica at
na organizao da Igreja, foi ela o terreno frtil para gerar um
esprito criativo, produtivo sem ser prolixo, e livre.
Orgenes no hesitou em afrontar os problemas mais difceis da
Teologia; por isso foi muito criticado e combatido, durante sculos,
mas tambm seguido por multides de adeptos de sua doutrina. En-sinou
numa das primeiras escolas de formao crist, o Didaskalion de
Alexandria, e criou uma outra que foi centro de irradiao para todo
o Prximo Oriente: a de Cesareia da Palestina.
Esse homem de Igreja foi no s um telogo e polemista que marcou
todo o Oriente cristo, mas tambm um modelo de exegeta, de intrprete
da Escritura, e mestre de espiritualidade, seguido tenazmente pelo
monaquismo cristo desde o Egito e a Arbia at Palestina e S-ria.
Aproximar-se dessa espiritualidade abeirar a fonte de onde partiu
uma das correntes mais fecundas do pensamento da Cristandade.
Uma espiritualidade to forte, ampla e continuamente vivida,
oferece muitas perspectivas de anlise e comentrio: a existncia
rea-lizada como testemunho da f (martrio), a unio com Cristo, o
sacer-dcio eclesial so alguns desses aspectos. De todos eles
escolhemos como ponto de partida aquele que nos pareceu mais
pedaggico, no sentido alexandrino, e mais adequado a uma exposio
breve: as etapas do caminho da alma na sua progressiva unio com
Deus.
Para abord-la vejamos antes de mais o que alguns discpulos e
intrpretes de Orgenes disseram a seu respeito. Para isso,
escolhemos as manifestaes de Gregrio e de Eusbio e, dentre os
recentes, a de Henri Crouzel.
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Gregrio Taumaturgo (c.213-271) estudou com ele em Cesareia da
Palestina e, na despedida (c.240), redigiu uma carta conhecida como
Discurso de Despedida ou Discurso de Agradecimento. Nesse
documento, des-creve o mtodo de ensino do mestre e, sumariamente,
expe o que hoje chamaramos de currculos e programas do curso que
Orgenes expunha aos seus alunos. Mas, logo de incio, ressalta que
seu professor foi antes de mais nada um mestre do esprito e um
homem de Deus : minha inteno falar acerca de um homem que se mostra
e tem a aparncia de homem, mas que realmente se encontra, para quem
sabe julgar corre-tamente, despojado da sua condio humana em
virtude de uma maior dignidade que d a entender a sua passagem para
o divino (Discurso de Agradecimento II, 10). Mas a vida com Deus no
pode esquecer a humanidade corporal, e essa precisa de ser sujeita
para no perturbar a alma: Elogiava a filosofia e os filsofos com
grandes panegricos, referindo-se a eles muitas vezes, afirmando que
s vivem realmente os que vivem conforme razo, honestamente, aqueles
que se conhecem a si mesmos, e qual o verdadeiro bem que o homem
deve procurar e o mal que deve repelir (ibid., VI, 75) na expresso
comum, filso-fo designava a pessoa de vida honesta. No testemunho
de Gregrio, Orgenes vivia e ensinava a viver como homem,
dirigindo-se pela ra-zo, sem se deixar dominar pelo corpo, para
assim alcanar a dimenso divina, que s a unio com a Verdade
substancial podia conseguir, e que o mestre propunha aos seus
discpulos: Como centelha que caiu em nossa alma, acendeu-se e
inflamou-se o amor ao Logos sagrado e amabilssimo, que atrai para
Ele, por sua inefvel formosura, a todos os homens e, da mesma
forma, atraiu este homem, seu amigo e intr-prete (Ibid., VI, 83). O
que Gregrio mais admirava em Orgenes era a capacidade de
interpretar as Escrituras, de tirar delas a lio mais cor-reta, mais
espiritual, mais alimentadora da alma. A Palavra divina das
Escrituras abre e esclarece os enigmas mais fechados, e este homem
recebeu de Deus o melhor presente e a maior participao no Cu: ser
intrprete das palavras de Deus para os homens (Ibid., XV, 181).
Na Histria da Igreja, Eusbio de Cesareia (c.265-339) insiste em
explicar o modo filosfico de vida o comportamento guiado pela
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tude e pela razo, pela austeridade e a prudncia: Orgenes
trabalhava arduamente durante o dia, e dedicava grande parte da
noite ao estudo da Sagrada Escritura, s vezes jejuava, restringia o
sono, dormia sempre no cho e vivia em pobreza (Histria da Igreja,
VI 3). Nas muitas pginas que o Livro VI dessa obra dedica a
Orgenes, no esconde Eusbio sua admirao pelo homem de Deus que
alimentava seu esprito na palavra revelada para se entregar misso
de ensinar, orientar e confortar seus irmos das comunidades crists;
e a coragem, f, e pacincia com que Orgenes sofreu perseguies dentro
e fora da Igreja, e com que supor-tou a prova final das torturas no
martrio pelo nome de Cristo.
Para Henri Crouzel, possvel perceber uma opinio geralmen-te
aceita: a de que Orgenes apoia todo o seu trabalho de construo da
Teologia em dois pontos fulcrais: um preliminar, que o estudo
exaustivo da Escritura, tanto exegtico, inclusive filolgico, como
her-menutico e particularmente alegrico; outro, que se baseia nessa
in-terpretao alegrica, a vivncia espiritual: das virtudes e da
ascese at mstica: o alimento da alma a Escritura, ou seja, a
Palavra. Nesses dois pilares o Verbo da revelao, e a participao na
vida divina que a vida do esprito, se sustenta a Teologia, pois s
pode pretender conhecer os mistrios quem os estuda na Escritura
revelada e os viven-cia no esprito. Consequentemente, a
espiritualidade no algo que se possa conceber como uma vida
interior compatvel com a ignorncia dos fundamentos do cristianismo,
nem a ascenso do esprito se pode esperar numa contemplao que fique
alheia ao estudo.
Na opinio de Crouzel estamos muito longe de uma vida espiri-tual
baseada na ascese e no castigo do corpo (necessrio como condi-o
circunstancial, no como objetivo); o caminho espiritual de Orge-nes
est centrado na finalidade: a ascenso do esprito, que condiciona a
mente e o corpo. por isso que, na anlise da espiritualidade de
Orgenes, enfatiza Crouzel o conhecimento dos mistrios e a sabedoria
mstica, muito mais do que o cultivo das virtudes, e a ascese.
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2 Itinerrio da alma
O itinerrio da alma at Deus passa por trs estgios: purgativo
(provas, tentaes, superao de dificuldades, ascese, tal como o povo
no deserto); iluminativa (instruo, feita pelo estudo da Bblia e os
ensi-namentos dos mestres), e mstica (contemplao no amor).
A via espiritual a recuperao da imagem divina que fora im-pressa
na alma, mas se obliterou e sujou na vida corporal; o homem precisa
imitar a Deus para tornar-se de novo semelhante a Ele. Pelo seu
esforo, o homem pode recuperar a perfeio e a dignidade que tinha na
semelhana divina (PA III 76,1: Bergad 6).
A ascenso da alma no um momento isolado: ela se insere no
progresso (prokope) de toda a criao, que, partindo da queda
original, ascende at integrar-se com Deus. pois uma parte do
retorno de Cristo, o Logos, com todas as criaturas, at ao Pai. H,
portanto, um progresso metafsico e cosmolgico que os homens
acompanham (ou no) usando seu livre arbtrio (Lettieri 379-381).
A elevao da alma representada pela subida da montanha. Tal como
Cristo no alto do Monte Tabor, assim a alma em sua ascenso se
transfigura, num prenncio da viso beatfica. Em quase todas as
met-foras e smbolos, Orgenes recorre a uma transposio bsica: os
sen-tidos corporais representam e se transfiguram em sentidos
espirituais. Assim como o corpo imagem da alma, assim os sentidos
corporais servem como elementos de comparao para entender os
movimentos da alma em sua progressiva divinizao. Contudo, os
sentidos podem enganar-nos, mesmo em estados mais avanados de
espiritualizao, e o prprio demnio se serve deles para nos desviar
da perfeio; por isso, no caminho da alma, preciso perceber se a
direo correta ou no: esse dom deve ser praticado e, sobretudo,
deve-se merec-lo, pois ele um carisma.
Esta uma questo importante na ascenso do esprito: a distin-o das
inspiraes que a alma recebe. Orgenes prope normas e cri-trios, a
que poderamos chamar regras para o discernimento (diakrisis) dos
espritos, isto : critrios para distinguir as inspiraes
espirituais,
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cuja origem e qualidade precisamos selecionar (Peri Arxon III,
2,4). Os espritos maus, por vezes, possuem totalmente a mente
humana, tor-nando os possudos em energmenos (Ibid) ou, de modo mais
sutil, atravs de sugestes e persuases, perturbam a inteligncia e
confun-dem a vontade. Os bons espritos, quando inspiram sugestes
santas e celestiais, deixam a vontade livre e clara para
decidir.
3 A via iluminativa pela Escritura
Paralelamente purificao dos sentidos necessria para alcanar o
nvel de espiritualidade e a unio da alma com Cristo, h a purifica-o
do entendimento da Escritura. Orgenes sempre minucioso na leitura e
interpretao de cada passagem para que a Palavra revelada seja
entendida na maior perfeio possvel, livre dos erros ou desvios de
compreenso.
A interpretao da Revelao de uma forma superior no pode ser
alcanada de modo imediato e fcil; ela atingida num processo
gradual, num movimento espiritual de purificao e elevao, que no
nega o corpo e os sentidos, mas se serve deles para super-los.
preciso passar alm do sentido direto das palavras e alcanar seu
sentido oculto, atravs do qual chegamos a um entendimento mais
perfeito daquilo que foi revelado. As palavras da Escritura, ao
mes-mo tempo que mostram, tambm escondem; mostram o superficial,
ocultam o mais importante, que deve ser procurado e encontrado com
nimo livre, desprendido da materialidade, e pronto a receber o que
espiritual. Por isso o sentido literal contm sempre a possibilidade
de uma ou mais alegorias, e so elas que abrem o caminho ao
entendimen-to mstico, ou seja, unio mais perfeita com Deus.
A Palavra ainda comparada ao Corpo de Cristo, ambos, de cer-to
modo, sacrificados para a salvao dos que creem em Deus. No es-tudo
sobre a Pscoa (Peri Pascha, 26), diz Orgenes que se o Cordeiro
Cristo, e Cristo o Logos, o que ser a carne das diversas palavras
seno as Sagradas Escrituras? E, continuando a comparao, diz que tal
como o cordeiro da Pscoa judaica que no podia ser comido cru,
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nem cozido em gua, tambm a Palavra no deve ser lida crua, isto ,
sem interpretao, mas depois de passar pelo fogo do Esprito. Volta
assim ao tema da purificao do entendimento da Escritura, que deve
ser lida no Esprito e no na letra.
A iluminao pela Escritura no apenas um aperfeioamento do
conhecimento: uma contnua revelao do Esprito Santo na alma do
crente, e portanto uma iluminao que transcendente, que atrai o
homem para alm das suas limitaes corporais. A revelao atravs das
Escrituras sempre passvel de novas descobertas: muitas vezes ela
parece ocultar o que contm, contudo a interpretao espiritual
en-contra nela uma inesgotvel riqueza de sentidos (Lettieri ib.
381-384). Mas nem tudo se pode conter na letra da Escritura, pois
diz Orgenes, na Escritura no se contm alguns dos mais divinos e
importantes mistrios de Deus nesses s aos mais perfeitos permitido
adentrar (Comentrio ao Evangelho de Joo, 13, 27). Deus infinito e
inexaurvel e no pode estar todo contido nas Escrituras; mas aquele
que procura, e encontra o alimento espiritual, sente desejo de
procurar sempre mais, pois percebe que h sempre mais mistrios a
descobrir.
4 A via contemplativa: a orao
O tratado de Orgenes sobre a orao o mais antigo estudo
sistemtico cristo sobre as questes ligadas ao ato e atitude de
orar: em sntese, a anlise que Orgenes faz, usando, muitas vezes,
conceitos de filosofia, a seguinte: na orao, no pretendemos mover a
deciso divina, que sabemos ser imutvel, mas mover a nossa alma
(esprito) no seu caminho e aproximao de Deus.
Ao analisar o contexto e as intenes de Cristo quando en-sinou a
orar , considera Orgenes que no Pai Nosso h como uma recomendao
sobre a forma de orar: atitude modesta, voltada para o interior de
si mesmo, sem pedir coisas terrenas, no se preocupando em rebuscar
palavras; essa a via reta e estreita que Jesus prope, a via da
unidade do esprito em si mesmo; a outra via, que busca a glria
humana at no aparecer em pblico do orante uma via tortuosa que
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leva destruio de gente que no tem f, contenta-se com aparncias,
busca frases vazias de sentido, dispersa-se no mltiplo. Repare-se
que, de novo, Orgenes insiste em que a orao mais atitude do que
prece, pois chega a dizer que as palavras so desnecessrias: aquele
que viu as coisas melhores e divinas, coisas que Deus conhece, obtm
aquilo de que precisa, e o Pai sabe o que , mesmo antes de ele
pedir (XXI, 2) . A orao a atitude vivida, no as palavras; no
pedido, submisso vontade divina; no splica por necessidades,
contnua procura de aperfeioamento espiritual.
Uma das mais longas dissertaes feita para comentar o po nosso .
A primeira pergunta vem na sequncia coerente da perspectiva
espiritualista do objeto pedido na prece: devemos pedir o po para o
corpo comer, ou algo celestial? E a resposta, alicerada no
Evangelho, vem sem rodeios: Cristo sempre nos falou do po e do
alimento espi-ritual, pois so eles que nos tornam imagem sua:
Cristo e a sua palavra so o po que d a vida; e no mesmo sentido,
traz Orgenes a doutrina de Paulo. No restam dvidas de que o que
devemos pedir o ensina-mento espiritual, vida da alma; mas o autor
insiste em dar mais peso sua interpretao e toma a expresso de cada
dia para analisar sua procedncia semntica, para concluir que o
nosso ser espiritual cresce com o alimento da Palavra divina. A
sabedoria o po dos anjos de que j se fala no Antigo Testamento; e
uma advertncia final sobre a pureza do po, pois tanto o do corpo
como o da alma devem ser puros para que deem a vida.
O que importa destacar a inteno do autor em explicar e
fun-damentar a orao, que tal que insere, no meio da
espiritualidade, da teologia, e mesmo da mstica, discusses
estritamente racionais emi-tidas por no cristos ou, como diramos
hoje, cientficas e, por isso, neutras. Para Orgenes, no existe vida
espiritual que no se apoie na vida humana filosfica e inteiramente
vivida e, portanto, no existe ora-o sem plena conscincia e cincia
do que se est fazendo.
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5 Via contemplativa: as npcias da alma
No que se refere mstica, preciso distinguir entre a experin-cia
mstica (xtase, arroubos, contemplao, iluminao) e a linguagem, pela
qual no s se descrevem estados e experincias, mas tambm sobre as
metforas e alegorias se representam essas experincias. Pela prpria
natureza da unio mstica, que subtrai a alma vivncia corpo-ral, a
linguagem sonora e sensvel torna-se inadequada, mas no impos-svel
de expressar tais estados. Ela deve recorrer no ao discurso, fala
discursiva, mas alegoria e ao simbolismo, quando no ao
paradoxo.
A mstica de Orgenes no uma mstica de arroubos e xta-ses, ou de
descries do perfeito esquecimento de si mesmo em Deus, como em
outros msticos. uma mstica acessvel a todo aquele que tem f, e se
aproxima da Palavra de Deus com inteno espiritual. A revelao foi
feita para todos, e os que a aceitam devem entend-la no de um modo
literal, mas intelectual e piedoso. Essa a elevao mstica que todos
podem pretender, desde que no impeam a inteno e ao espiritual da
Palavra revelada.
no comentrio s npcias do esposo (Cristo) e da esposa (a alma, a
Igreja) que a mstica de Orgenes assume sua mais completa ex-presso
literria e teolgica. O livro do Cntico dos Cnticos despertou entre
os cristos, ao longo dos sculos, muitas leituras, que, de modo
geral, procuraram atenuar as expresses de sensualidade ali
descritas mostrando as possibilidades de transpor as ideias sobre a
unio dos corpos para a unio divina ou da alma com Cristo, ou da
Igreja com o Verbo, seu esposo. O primeiro e maior modelo desse
tipo de anlise , sem dvida, o comentrio de Orgenes; mas, ao
contrrio de muitos outros, ele no suaviza as expresses de
sensualidade, pelo contrrio, prolonga-as e completa-as com outras
passagens da Bblia. Parece que-rer dizer que o corpo humano e suas
emoes so algo to bom por-que criado por Deus que tudo neles pode
ser divinizado, por mais que seja gerado pelos sentidos e
emoes.
Vejamos como essa anlise da sensibilidade pode ser entendida
como uma esttica, uma teoria dos