UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS E DA NATUREZA DEPARTAMENTO DE GEOCIÊNCIAS CURSO DE GEOGRAFIA JADIELE CRISTINA BERTO DA SILVA “QUANTAS ANÔNIMAS GUERREIRAS BRASILEIRAS!”: A LUTA DAS MULHERES NEGRAS NAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DE IPIRANGA E GURUGI - PARAÍBA João Pessoa – PB 2018
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA DEPARTAMENTO DE ...JADIELE CRISTINA BERTO DA SILVA “QUANTAS ANÔNIMAS GUERREIRAS BRASILEIRAS!”: A LUTA DAS MULHERES NEGRAS NAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS E DA NATUREZA
DEPARTAMENTO DE GEOCIÊNCIAS
CURSO DE GEOGRAFIA
JADIELE CRISTINA BERTO DA SILVA
“QUANTAS ANÔNIMAS GUERREIRAS BRASILEIRAS!”: A LUTA DAS
MULHERES NEGRAS NAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DE IPIRANGA
E GURUGI - PARAÍBA
João Pessoa – PB
2018
JADIELE CRISTINA BERTO DA SILVA
“QUANTAS ANÔNIMAS GUERREIRAS BRASILEIRAS!”: A LUTA DAS
MULHERES NEGRAS NAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DE IPIRANGA
E GURUGI - PARAÍBA
Monografia apresentada ao curso de
Bacharelado em Geografia da
Universidade Federal da Paraíba, como
requisito para a obtenção do título de
Bacharel em Geografia.
Orientadora: Prof. Drª Maria de Fátima
Ferreira Rodrigues
João Pessoa – PB
2018
À todas as mulheres que fizeram com que
o sonho de cursa uma universidade
pública fosse possível, em especial à
minha mãe Cristina Verônica de Araújo
Silva,
DEDICO.
AGRADECIMENTOS
À luz do celular e do amanhecer, inicio a construção dos agradecimentos, com a
certeza que nada se faz sozinho, mesmo não visualizando no espaço tem pessoas e
energias a nos ajudar, como exemplo: eu, Jadiele Berto, na sala do Gestar às 4:50 da
manhã existem\existiram inúmeras pessoas que agiram para que a minha presença aqui
fosse possível. São muitas pessoas que tenho que agradecer, na verdade, todo o processo
de construção deste trabalho carrega um pouquinho de cada pessoa que conviveu ou
convivem comigo, desde a saída da minha cidade natal. Cabe destacar que muitos nomes
do passado e presente não serão mencionados, mas a todos que contribuíram de forma de
direta ou indireta, dedico meus sinceros agradecimentos e abraços quentinhos.
Agradeço à Deus pelo sopro da vida, pelo zelo e cuidado, por mostrar que as coisas
fantásticas da nossa curta experiência na Terra se encontram aparentemente escondidas
nas coisas simples que existem;
Agradeço à minha família Cristina Verônica, Joaquim Berto, Jadiael Berto,
Jadiaele Berto e Bia, que com todas as dificuldades que passamos juntos, jamais
abdicaram do amor, do carinho e outros sentimentos que fazem uma família imperfeita
se sentir mais que perfeita. E dentro desta, não poderia deixar de ressaltar a minha mãe,
Cristina Verônica, minha base, a quem eu devo tudo, principalmente a confiança de deixar
a filha mais nova de uma cidade do interior e de menor, ir à capital, sozinha, mas cheia
de esperança. Obrigada, obrigada por todo o esforço;
À Biatriz Santos, companheira de luta, pelo encorajamento e afeto! Por acreditar
que tudo iria dar certo e fazer de forma conjunta para que tivéssemos este resultado, pelos
novos olhares da realidade, pelo amor em cada palavra, por ser maravilhosa e por lutar ao
meu lado contra o fim do racismo, machismo e LGBTfobia e qualquer forma de violência
e desigualdade;
À Maria de Fátima Ferreira Rodrigues pela paciência que teve em me orientar
durante esses três anos. Profê, sou eternamente grata pela inserção na pesquisa científica,
por cada conselho, conhecimento e experiência. Gratidão pelo carinho, pelo cuidado e
preocupação, por possibilitar a visão crítica das realidades, por acreditar e confiar em
mim, por abrir as portas do Gestar. Enfim, por todas as coisas ditas e não ditas, feitas ou
só pensadas, por toda ajuda, minha gratidão! Você é o exemplo de cidadã, profissional e
pessoa que eu almejo ser;
Aos demais professores do Curso de Geografia no Departamento de Geociências
da Universidade Federal da Paraíba pelas informações passadas, pelas parcerias
construídas;
Ao meu quadrilheiro sem quadrilha (por uma causa maior), a poc mais linda,
maravilhosa e torneada da Geografia – UFPB, para o menino mais fofo e companheiro,
agradeço à Diego dos Santos Dantas por todo o auxílio desde a acomodação em João
Pessoa a ajuda para conclusão deste trabalho. Diego, quando te chamei no inbox, não
previa a dimensão do que nossa relação iria tomar, de fato ganhei um irmão. Você integra
a minha família, obrigada por ficar sempre no meu pé, por se preocupar, desculpa as dores
de cabeça que eu te dei. Que toda as vezes que você estiver triste ou desanimado possa
olhar para o céu e ver como ele é (sempre) lindo;
À Rai_vosa, Raissa Helena, rshelena81, por todos os ovos, cuscuz e frangos que
eu peguei na madrugada durante a escrita do trabalho. Brincadeiras à parte, gratidão pela
confiança, parceria e batata-palha e frita divididas, pelo carinho e por sempre escutar o
meu desmoronamento. És uma das poucas pessoas que já viram o meu lado sensível e
fraco e que sempre disponibilizou o ombro cheio de afeto para me socorrer. Tu és linda
por dentro e por fora e a tua criatividade vai te levar ao topo! Aposto em você por uma
arte sensata e diversificada;
À Analice Alves, meu toquinho cheio de amor. Obrigada pela atenção e todos os
momentos que me salvou de enrascadas e me ajuda a entrar nelas! Quero muito aproveitar
a vida com vocês, a família que eu formei aqui em Jampa;
À Joannes Moura pelos conselhos, disciplina e ajuda! Pelo coração enorme por
trás do K-pop e pela ironia diária. Teu futuro é brilhante, Joaninha;
À turma 2014.1 pela trajetória de lutas e glórias, pelos memes, vácuos, discussões
e sentimentos compartilhados;
Às minhas cebrutinhas, Vanessa Gomes e Noemia Elana, ou melhor, Shirley e
Horrana pela força, risos, abraços, pelas rezas. Com vocês, eu sei que iremos construir
um espaço acolhedor e fortalecedor para juventude negra. Que os nossos gritos possam
ecoar e nossa ação derrubar o poder posto;
À ABAYOMI, a Coletiva que dá asas, protegida pela natureza e pela força dos
orixás. À todas Abayomi’s minha gratidão, pelos passos dados, pelas vitórias alcançadas,
pela doação para o crescimento desse grupo. Durvalina Rodrigues, Marli Soares, Vanessa
Gomes, Mana Manissima, vocês são especiais para mim;
À todos os componentes do grupo Gestar: território, trabalho e cidadania pelo
acolhimento, pelas vivências e conhecimentos compartilhados, às companheiras do
NEDET, Rose Cruz, Natanaelma Silva, Claúdia Veloso e Perazzo, bem como Amanda
Marques, Salomé Maracajá, Viviane Sousa e Mariana Borba pelos conselhos, indicações
e vivências;
Às MOL\Litro, Joicy Santos, Juliane Monique e Wirlayne Rosa e à Niedja Alves,
minhas fadas maravilhosas que mesmo de longe sinto o amor e carinho delas;
À toda Comunidade Negra de Ipiranga e Gurugi, povo forte e de luta, inspiração
para resistência diária de ser preto no Brasil;
À AGB Seção João Pessoa pelos anais disponibilizados e a Nego da Capoeira que
muito me auxiliou na Comunidade do Gurugi;
Ao CNPq e a PROPESQ UFPB pelos anos de bolsa de Iniciação Científica,
imprescindível para a continuidade na pesquisa e na vida acadêmica como um todo;
Por fim, agradeço ao ex - presidente Lula por possibilitar oportunidades a classe
trabalhadora, e principalmente as populações em situação de vulnerabilidade. E a
presidenta DEMOCRATICAMENTE eleita Dilma Rousseff, a qual sofreu com o golpe
político, midiático, jurídico, parlamentar e machista ocasionado por quem não venceu nas
urnas e entranhado nas raízes da asquerosa elite brasileira marcada pelas mãos cobertas
de sangue. À toda população que como eu sofre com os impactos do golpe, AVANTE!
Você pode me inscrever na História Com as mentiras amargas que contar,
Você pode me arrastar no pó, mas ainda assim, como o pó, eu vou me levantar.
Minha elegância o perturba? Por que você afunda no pesar?
Porque eu ando como se eu tivesse poços de petróleo jorrando em minha sala de estar.
Assim como lua e o sol, com a certeza das ondas do mar
Como se ergue a esperança, ainda assim, vou me levantar
Você queria me ver abatida? Cabeça baixa, olhar caído?
Ombros curvados com lágrimas com a alma a gritar enfraquecida?
Minha altivez o ofende? Não leve isso tão a mal,
Porque eu rio como se eu tivesse minas de ouro no meu quintal.
Você pode me fuzilar com suas palavras, e me cortar com o seu olhar
Você pode me matar com o seu ódio, mas assim, como o ar, eu vou me levantar
A minha sensualidade o aborrece? E você, surpreso, se admira,
Ao me ver dançar como se tivesse, diamantes na altura da virilha?
Das chochas dessa História escandalosa, eu me levanto
Acima de um passado que está enraizado na dor, eu me levanto
Eu sou um oceano negro, vasto e irrequieto,
Indo e vindo contra as marés, eu me levanto.
Deixando para trás noites de terror e medo
Eu me levanto
Em uma madrugada que é maravilhosamente clara
Eu me levanto
Trazendo os dons que meus ancestrais deram,
Eu sou o sonho e as esperanças dos escravos.
Eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto!
Maya Angelou – Ainda assim, eu me levanto!
RESUMO
Na pesquisa em pauta analisamos o empoderamento das mulheres negras na luta
pelo território das comunidades remanescentes de quilombos Ipiranga e Gurugi no estado
da Paraíba – Brasil. Para tal, discutimos a inserção das mulheres no processo de
constituição e fortalecimento de associações comunitárias dos quilombos, identificamos
a questão étnico-racial no âmbito da ciência geográfica a partir dos trabalhos publicados
em eventos e revistas, interpreta a articulação dos marcadores sociais de diferenças nas
mulheres quilombolas, e por fim, analisamos o empoderamento feminino na luta das
comunidades remanescentes de quilombos, bem como suas dificuldades e desafios. O
referencial teórico adotado ancora-se na interdisciplinaridade empregando autores do
campo da Geografia e áreas afins como: Arruti, (2006), Reis e Silva (2005, Haesbaert
(2004; 2007) e Raffestin (1993), Ângela Davis (2016) e Crenshaw (1989: 2002), Silva
(2009;2010) e Sardenberg (2009). Do ponto de vista metodológico, foram realizadas
pesquisas bibliográficas e documentais, bem como o trabalho de campo, imprescindível
para a verticalização da pesquisa, haja vista que informou sobre a realidade social, a
vivência dos sujeitos sociais, a história de luta pela terra e por melhores condições de vida
e suas formas de resistência. A pesquisa teve como meta dar visibilidade as mulheres no
que tange as práticas de resistência no espaço agrário. Verificamos que as mulheres têm
se constituído enquanto sujeitos históricos, conquistando espaços expressivos, os quais
têm se consolidado no percurso temporal. A luta das lideranças femininas tem
fragmentado a sociedade machista, patriarcal e androcêntrica, contudo as mulheres ainda
estão se empoderando na perspectiva de sujeitos ativos que lutam para si e pela
comunidade.
Palavras-chaves: comunidade remanescente de quilombo (CRQ), empoderamento,
interseccionalidade, mulheres negras
ABSTRACT
In this research, we analyze, from quantitative and qualitative research, the empowerment
of black women in the fight for the territory of the remaining communities of Ipiranga
and Gurugi quilombos in the state of Paraíba - Brazil. To this end, we discuss the insertion
of women in the process of constitution and strengthening of community associations of
quilombos, we identify the ethnic-racial question in the scope of geographic science from
the works published in events and magazines, interprets the articulation of social markers
of differences in Quilombola women, and finally, we analyze women's empowerment in
the struggle of the remaining communities of quilombos, as well as their difficulties and
challenges. The theoretical reference adopted is anchored in interdisciplinarity, using
authors from the field of Geography and related areas such as: Arruti, (2006), Reis e Silva
(2005, Haesbaert (2004; 2007) and Raffestin (1993), Angela Davis (2016) and Crenshaw
(1989: 2002), Silva (2009; 2010) and Sardenberg (2009). From the methodological point
of view, bibliographical and documentary researches were carried out, as well as the field
work, essential for the verticalization of the research, since it informed about the social
reality, the social subjects' experience, the history of struggle for land and better living
conditions and forms of resistance. The research had as goal to give visibility to the
women in what concerns the practices of resistance in the agrarian space. We have
verified that women have been constituted as historical subjects, conquering expressive
spaces, which have been consolidated in the temporal route. The struggle of women's
leaders has fragmented the macho, patriarchal and androcentric society, yet women are
empowering themselves in the perspective of active individuals struggling for themselves
and the community.
Keywords: remaining community of quilombo, empowerment, intersectionality, black
women
LISTA DE SIGLAS
AACADE – Associação de Apoio aos Assentamentos e Comunidades Afrodescendentes
ACNI – Associação da Comunidade Negra do Ipiranga
ACPRG – Associação Comunitária dos Parceleiros Rurais do Gurugi
ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
AGB – Associação Brasileira de Geógrafos
CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CPT – Comissão Pastoral da Terra
CRC – Combahee River Collecitve
CRQ – Comunidade Remanescente de Quilombo
ENG – Encontro Nacional de Geógrafos
FCP – Fundação Cultural Palmares
GESTAR – Território, trabalho e cidadania
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IHGP – Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
OIT – Organização Internacional do Trabalho
ONG’S – Organizações Não Governamentais
PIBIC – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
RBG – Revista Brasileira de Geografia
RTID – Relatório Técnico de Identificação e Delimitação
SEBRAE – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
UFPB – Universidade Federal da Paraíba
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1: Localização das Comunidades Quilombolas Ipiranga e Gurugi................ 16
Ilustração 2: Publicação sobre a questão étnico-racial na RGB ..................................... 29
Ilustração 3: Produções nos Programas de Pós-Graduação no Brasil ............................ 30
Ilustração 4: Produção no programa de pós-graduação em Geografia .......................... 31
Ilustração 5: Produção sobre identidade e territorialidades negras nos ENG’s .............. 32
Ilustração 6: Espacialização das CRQ’s por estados abordadas nos ENG’s .................. 33
Ilustração 7: Comunidades Remanescentes de Quilombos identificadas pela Fundação
Cultural Palmares por estados no Brasil - 2018 ............................................................. 34
Ilustração 8: Produção da abordagem educacional do ENG’s ....................................... 35
Ilustração 9: Fragmento da Carta da Sesmaria da Jacoca,, com ênfase na Posse de
Gurugy e no Sítio Piranga .............................................................................................. 52
Ilustração 10: Museu Quilombola da Comunidade de Ipiranga ..................................... 59
Ilustração 11: Coco de roda no barracão da Comunidade Quilombola de Ipiranga ....... 60
possuem problemas no Brasil, pois a abolição da escravidão e a universalização da
cidadania já estavam outorgados, as oportunidades são acessadas igualmente por sujeitos
independentes da raça e que a população negra estava realizada com a situação social e
de bem-estar (FERNANDES, 1965, 96).
Nas últimas décadas, os estudos das relações étnico raciais denunciam a
desigualdade estrutural se opondo a democracia racial. A democracia racial é uma
construção ideológica que prega harmonia das raças no Brasil, tendo como precursor
Gilberto Freyre na obra Casa Grande e Senzala de1933. A negação da desigualdade racial
omite o racismo e suas ações, e, atua impedindo a consciência negra, justamente por se
aliar ao processo de branqueamento, onde tudo que se caracteriza como preto/negro é
ruim e negativo, por sua vez o racismo é internalizado de forma depreciativa, o que
acarreta muitas vezes no desprezo ou não aceitação dos elementos culturais, fenótipos e
ideológicos da população negra.
O processo de escamoteamento da memória negra é resultado da colonialidade
gerada no processo de formação do país, conduzida por ideais e padrões europeus que
orientaram a compreensão das realidades desde a formação do território brasileiro aos
processos atuais apenas por um viés de análise. À medida que a identidade e cultura são
apropriadas pelo modo de produção capitalista passam a operar conforme a lógica desse
sistema que possui um modelo padrão de território servindo para corrobora o modelo
espacial que abriguem seus interesses.
A primeira publicação sobre a temática étnico-racial na Revista Brasileira de
Geografia data de 1941, no campo Tipo e Aspecto do Brasil, o ensaio intitulado Negras
Baianas descreve a origem e o cotidiano das mulheres negras da Bahia de forma bem
estigmatizada, ressaltando elementos da vestimenta, religiosos, do trabalho, da culinária.
Em 1947, as comunidades quilombolas são tratadas no ensaio de João Milanez da Cunha
Lima, intitulado Mocambo. O trabalho apresenta as estruturas habitacionais dos
quilombos nos arredores da cidade de Recife. Ao longo da história da revista, alguns
ensaios e artigos pautam a população negra, mas verifica-se que as produções estão
concentradas entre 1941 a 1974, apenas (Ilustração II).
29
Ilustração 2: Publicação sobre a questão étnico-racial na RGB
Informações da Revista Nome do Artigo/Nome do Autor
1 v3, n. 4, out./dez. 1941 Negras Baianas
2 v9, n2, abr./jun. 1947 Mocambo, João Milanez Da Cunha Lima
3 v24, n4/ 1962 Os Quilombos Baianos, Pedro Tomás Pedreira
4 v26, n1, 1964 O mundo afro-asiático, Jorge De Oliveira Maia
5 v29, n1, 1967 A fazenda de café escravocrata no Brasil,
Orlando Valverde
6
v36, n3, 1974 O Princípio Classificatório "Cor", sua
complexidade e Implicações para um Estudo
Censitário, Tereza Cristina N. Araujo Costa
Fonte: Biblioteca IBGE – Org: Jadiele Berto, 2018
A RBG considerada uma das revistas de mais alta qualidade pelas instituições que
analisam a produção científica no Brasil mostra que temas concernentes a questão étnico-
racialnão integra o interesse da geografia brasileira, mesmo com todos os fatos históricos
que marcaram a população negra, só foram registradas 6 produções dentre ao quantitativo
cumulativo de 61 volumes e 238 números, entre 1939 a 2006, poucas produções foram
registradas.
Na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
responsável pela consolidação da pós-graduação no Brasil foi verificada 5160 produções
sobre a temática étnico-racial entre os anos de 1987 a 2016, adotando como escala de
grande área do conhecimento as Ciências Humanas é computado 2758 trabalhos.
(Ilustração 3)
30
Ilustração 3: Produções nos Programas de Pós-Graduação no Brasil
Fonte:CAPES – Org.: Jadiele Berto, 2018
De 1994 a 2017, no campo da Geografia foi constatado 81 trabalhos que possuem
como temática central questão étnico-racial. A área que mais se destaca em trabalho é
organização e dinâmica dos espaços agrário e regional. As universidades com mais
destaque de produção, são: Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal de
Goiás (UFG) e Universidade Federal Fluminense (UFF), sendo a USP primeira instituição
no ranking de concessão de bolsas, investimento da CAPES em bolsas e fomento, além
de ser a mais antiga do Brasil no que tange a Pós-Graduação em Geografia, criada 1971.
(Ilustração 4)
0
100
200
300
400
500
600
Produções nos Programas de Pós - Graduação no Brasil
Geografia
Ciências Humanas
Ciências, tecnologias, linguagens e expressões artísticas
31
Ilustração 4: Produção no programa de pós-graduação em Geografia
Fonte: CAPES – Org: Jadiele Berto, 2018
Tendo como objeto de estudo as comunidades remanescentes de quilombos, a
CAPES enumera 555 obras de 1993 a 2017, tendo a História, Sociologia e Educação
como principais áreas do conhecimento desses trabalhos e como instituições que
prevalecem nos estudos são Universidade de São Paulo, Universidade de Brasília e
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Cabe destacar a influência da área de saúde
e exatas no que tange aos pesquisadores requisitados para avaliação. Neste sentido, os
estudos sobre essa temática na Geografia apresentam 39 produções, sendo a Universidade
Federal de Goiás, a terceira principal instituição a pesquisar o objeto prevalecendo as duas
primeiras citadas anteriormente.
No Encontro Nacional de Geógrafos (ENG), o acesso ás teorias, conceitos,
fenômenos, sujeitos e objetos reverberou na criação de eixos de abordagem para a
temática étnico-racial ((a) espaço e relações étnico-raciais, (b) identidades e
territorialidades negras, (c) territórios, (d) manifestações culturais e religiosas e (e)
educação).
Na abordagem Espaço e relações étnico-raciais foi quantificado 15 artigos que
pautam as categorias geográficas relacionadas às relações étnico-raciais, cujas temáticas
0
2
4
6
8
10
12
19
94
19
96
20
01
20
02
20
03
20
04
20
05
20
06
20
07
20
08
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09
20
10
20
11
20
12
20
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20
14
20
15
20
16
20
17
Produção nos programas de pós - graduação em Geografia
32
mais tratadas foram a produção do espaço e as trajetórias individuais e coletivas negras.
Na abordagem Identidades e Territorialidades Negras ficaram evidenciadas as
comunidades remanescentes de quilombos/comunidades negras rurais, seja pela ótica da
identidade e cultura seja pelo conflito e trabalho totalizando 63 trabalhos, o que a torna
mais trabalhada no âmbito da temática étnico-racial (Ilustração 5).
Ilustração 5: Produção sobre identidade e territorialidades negras nos ENG’s
Fonte: Anais do ENG – Org: Jadiele Berto, 2018
As comunidades quilombolas aparecem inicialmente no XIII ENG – Ano de 2002,
o que é preocupante dado que a Constituição deu notoriedade para o assunto, entretanto
somente no XVI ENG – Ano de 2010 que o “boom3” ocorreu, e majoritariamente no
campo da Geografia Agrária/Rural. A região com mais estudos sobre as comunidades
quilombolas é o Sudeste, essa conta com grupos de estudos consolidados na pesquisa, a
exemplo: Território, Desenvolvimento e Agricultura da USP, GECEL - Grupo de Estudos
de Cidade, Espaço e Lugar da UFF, Território, desenvolvimento e agricultura da UNESP-
Rio Claro e Cultura, e, Natureza e Populações Tradicionais da UNICAMP. O mapa a
seguir especializa por estados, as comunidades quilombolas tratadas nos artigos dos
ENG’s. (Ilustração 6)
3 Salientamos que não foram encontrados o ENG 1992
0
5
10
15
20
25
30
XIII - Ano 2002 XIV - Ano 2006 XVI - Ano 2010 XVII - Ano 2012 XVIII - Ano 2016
Produção sobre Identidade e territorialidades Negras
33
Ilustração 6: Espacialização das CRQ’s por estados abordadas nos ENG’s
Fonte: Anais ENG – Org: Jadiele Berto, 2018
O comparativo da espacialização das CRQ’s pelo Brasil e as produções sobre as
comunidades quilombolas nos ENG evidencia que existe uma distribuição irregular das
produções. Vale ressaltar que foram registradas repetições de comunidades como caso de
estudo e que os registros em ponto no mapa não correspondem a localização geográfica
das comunidades. A região Nordeste se destaca no Brasil pelo número de comunidades
34
remanescentes de quilombos identificadas, especialmente em razão dos estados do
Maranhão e Bahia. Os principais fatores responsáveis pela elevação consistem na
homologação do Decreto 4.887/2003, além dos conflitos recorrentes no campo brasileiro,
as políticas públicas dirigidas para a população, a necessidade de preservação ambiental.
Diante do quantitativo de comunidades quilombolas certificadas e principalmente
identificados pela Fundação Cultural Palmares, se reconhece que a produção no campo
da Geografia é ínfima. (Ilustração 7)
Ilustração 7: Comunidades Remanescentes de Quilombos identificadas pela Fundação Cultural
Palmares por estados no Brasil - 2018
Fonte: Fundação Cultural Palmares (FCP) – Org.: Jadiele Berto, 2018
35
É inquietante o fato de ao longo de 15 anos, a Geografia não conseguiu incorporar
totalmente as comunidades quilombolas como temática, sequer quando considerada a
área física da Geografia na pesquisa, por entender que estudo dessa natureza auxilia no
processo de elaboração do relatório técnico de identificação e delimitação das
comunidades, entre outros fatores, a quantidade de estudo se eleva. É evidente que dentre
o período de três décadas de garantia de direitos, a ciência geográfica não chegaria
contemplar todas as comunidades quilombolas, longe de afirmar que esse é o dever da
Geografia, o que se apresenta é questionamento dos esforços em relação a esses grupos,
ou melhor, parafraseando o geógrafo Yves Lacoste: a quem serve a Geografia?!
A abordagem Territórios e Manifestações Culturais apresenta 8 artigos
evidenciando como elementos ritos, saberes e simbolismos associados a população negra.
Ao ponderar que algumas manifestações advindas da população negra são apropriadas
para fins diversos, não foram incluídos artigos que não tinham como centralidade nos
títulos essa vinculação. A abordagem educacional expôs 22 trabalhos, a segunda maior
tendência, começou a ser pautada no XIV ENG – Ano 2006. Trouxe elementos desde o
currículo escolar até as relações dentro das escolas e a aplicação da Lei 10.639/03,
principal assunto dos artigos dessa abordagem. (Ilustração 8)
Ilustração 8: Produção da abordagem educacional do ENG’s
Fonte: Anais dos ENG’s – Org.:Jadiele Berto
A capes contabiliza 11 trabalhos sobre a Lei 10.639 na Geografia, sendo 10
dissertações e 1 tese, no âmbito das Ciências Humanas o quantitativo eleva-se para 475
0
2
4
6
8
10
12
14
XIV-2006 XVI -2010 XVII -2012 XVIII -2016
Produção da abordagem educacional do ENG's
36
trabalhos, dessas 358 dissertações. O crescente número de trabalhos expressa a
importância da escola no combate ao racismo e a necessidade da equidade educacional
aportada nos princípios dos direitos humanos e a promoção da diversidade cultural.
Mesmo não entrando no ranking das instituições que mais produzem sobre a
questão étnico-racial, é interessante fazermos a autocrítica, por isso também investigamos
a instituição, na qual desenvolvemos a pesquisa. Na Universidade Federal da Paraíba
observa-se o quantitativo de 129 produções nos programas de pós-graduação, destaca-se
os trabalhos no campo da Psicologia, Sociologia e Ciência da Informação. A Geografia
apresenta 6 produções sobre a questão étnico-racial, sendo abordadas as comunidades
quilombolas, indígenas e a Lei 10.639 e todas na tipologia de dissertação, haja vista a
instauração recente do programa de doutorado.
Os dados revelam que a questão étnico racial no Brasil está ganhando cada vez
mais espaço, principalmente em áreas como a Educação focando nos efeitos da Lei 10.639
e as ações afirmativas. A visibilidade dessa questão é fruto das ações dos movimentos
sociais negro, seja na construção da Constituição Cidadã, impulsionando pressão
internacional, desconstrução do Mito da democracia Racial, conscientizando sobre os
efeitos do racismo e a identificação como negro e as ações-afirmativas para ingressos de
estudantes negros nas universidades brasileiras. Dialogando com Bernardino (2004),
Marçal e Cirqueira apresentam alguns fatores históricos que reverberam nas produções
nessa temática: em 1955, o reconhecimento pelo Estado da existência do racismo no
Brasil pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2001 a III Conferência Mundial
Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Conexas de Intolerância
na qual o Brasil se comprometeu a elaborar e implementar políticas públicas, o
surgimento de pesquisas de órgãos institucionais brasileiros.
1.2 Geografia de gênero/feminista
Entre as décadas de 1970 a 1980, as Geografias feministas despontam no
pensamento geográfico. De origem anglo-saxã, as geografias feministas foram propostas
por mulheres brancas de algumas renomeadas universidades norte-americanas e
europeias que denunciaram os privilégios inerentes a produção científica. Elas contaram
os postulados das correntes pós-coloniais e pós-estruturalistas e com os avanços da
Geografia Humana, com o processo de renovação e valorização do campo da Nova
Geografia Cultural que alçavam “novos modos de se construir e entender a realidade, até
37
então calçada no racionalismo moderno, no raciocínio científico e na celebração da
técnica” (CÔRREA, 2007, p.12). Silva (2009) explica que a Nova Geografia Cultural
instituiu pactos com as geografias feministas, energizando o debate com outras áreas da
Geografia.
Conforme Silva, 2010, o debate de gênero na ciência geográfica causa incômodo
e problematizações, e com isso, indagações no que concerne a validade desses estudos
para o crescimento da geografia. De fato, para uma ciência que apresenta a universalidade
do sujeito, trazer à tona indivíduos que constrói o espaço e que não são pautados ao longo
da trajetória da ciência, causa no mínimo um sentimento de negligência. Afinal, a quem
serve a geografia? Propomos um diálogo de Silva (2009) e Mignolo (2004) finalizando a
explicação da construção do conhecimento feminista.
o objetivo de desafiar a crença fundamentalista da universalidade do
saber geográfico estabelecido, por meio da reivindicação de novas
versões científicas que pudessem trazer para a visibilidade grupos sociais
repudiados pelo conhecimento hegemônico. As(os) geógrafas(os) que
participam desse movimento contestatório procuraram meios para
construir outras versões geográficas da realidade social. Contudo,
estavam cientes de que sua formação intelectual e toda a base conceitual
disponível no campo científico eram frutos do saber hegemônico
justamente aquele que contestavam. Assim, paulatinamente,
desconstruíram o discurso geográfico, procurando revelar as redes que
tecem o saber/poder da sociedade, e construíram novas versões da
ciência geográfica. (2009, p.26)
“Apesar de crucial, a contribuição do ponto de vista da 'epistemologia
feminista' foi ainda uma crítica 'interna' da ciência que permitiu formular
perguntas semelhantes do ponto de vista da raça e da geopolítica do
conhecimento. Isto é, permaneceu dentro das fronteiras temporais e
espaciais autodefinidas pelo discurso da modernidade (MIGNOLO, p.
686).
Ao passo que essa geração se propôs a revisão de ideias e de valores da sociedade
marcando a história do pensamento científico, para além da Geografia com a análise
epistemológica das correntes de pensamentos e métodos, as geógrafas feministas
apontavam a invisibilidades das mulheres enquanto sujeitos da ciência, os privilégios
epistêmicos e a predominância dos homens, o que possibilita a inserção de novas
concepções. Para a produção da perspectiva científica feminista na Geografia, foi
necessária uma intensa discussão epistemológica dentro da ciência visando a proposição
38
de abordagens, por isso, talvez por atuar primeiro dentro das próprias bases teórico-
metodológica, as epistemologias feministas na ciência geográfica colaboraram com
outras ciências.
A abordagem feminista e de gênero estão conectados. Em conformidade com
Bondi (1990), Veleda da Silva (1998) e Zirbel (2007), surgindo como movimento político
e se inserindo na academia, o feminismo foi estruturado e concebido a partir de teorias e
ações por pesquisadoras. A abordagem feminista busca engendrar novas possibilidades
de refletir a sociedade e a ciência a partir de lógicas não-dominantes, isto é, a criação de
novas epistemologias que as acolhessem, à vista disso, problematiza os paradigmas da
produção científica e os princípios tradicionais da sociedade. Logo, a incidência na
ciência e na sociedade é uma das marcas dessa abordagem, de modo que almejam
transformações social e a notoriedade das mulheres como agentes de produtores da
ciência, da política e, portanto, do espaço. Sobre os estudos, Velada da Silva (1998)
esclarece que
Alguns autores fazem uma distinção explícita entre Geografia Feminista
e Geografia de Gênero, considerando a primeira como aquela que busca
uma transformação não só da Geografia, mas também da forma como
vivemos e trabalhamos e a Geografia de Género trata o género como uma
dimensão da vida social que deve ser incorporada nas estruturas
existentes (BONDI, 1990). Considero que a Geografia dita feminista é
aquela que incorpora as contribuições teóricas do feminismo à
explicação e interpretação dos fatos geográficos e o género é um dos
resultados dessas contribuições, ou seja, uma categoria útil de análise
geográfica. (1998, p.108)
A abordagem de gênero apresenta pesquisas ancoradas na construção social das
identidades do ser homem e mulher, ou seja, o gênero emerge como categoria de análise, enquanto
um conceito representação utilizado para analisar as relações de poder dentro dos sistemas
estruturantes. A priori, a epistemologia era fundamentada na categoria mulher, associada à
diferença biológica e a investigação de maneira isolada, visto que se pregava problemas comuns
a todas as mulheres. O conceito de gênero admitido pela geografia feminista com a interpretação
crítica à utilização da categoria mulher diz respeito às características atribuídas ao feminino e ao
masculino que são concepções históricas e socialmente construídas pelas sociedades, sendo o
âmbito cultural constituidor das diferenças entre homens e mulheres e não às concepções
genéticas e morfológicas, Scott (1995).
A construção dos gêneros se manifesta na dinâmica das relações sociais, marca-se no
contexto de relações socioespaciais re-constituídas, formada por sujeitos de diversas identidades.
39
É preciso elucidar que a natureza relacional da concepção de gênero não é compreendida neste
trabalho como binário, limitado à relação homem-mulher, contudo abrange outros eixos de poder
na sociedade e a dinamicidade dos indivíduos. Assim, a categoria gênero está articulada com
outros sistemas estruturantes das relações de poder, como com classe, raça, etnia, sexualidade,
entre outros, logo a metodologia aplicada enfatiza a diversidade, à análise crítica dos sujeitos e
grupos pesquisados e o cuidado com o tratamento das narrativas.
A negação da universalidade é empreendida na investigação dos papéis por meio
da incorporação do marco temporal e espacial. Os marcos temporais e espaciais são de
suma importância para as análises das relações de gênero, dado que os lugares ocupados
por mulheres e homens no âmbito social e espacial evidenciam a dinâmica espacial do
gênero. Espaço e gênero estão articulados, logo as investigações de gênero engendram
variados estudos do espaço, e dos postos de mulheres e homens na sociedade, um grande
exemplo é o olhar diferenciado das mulheres e homens acerca da organização espacial e
o seu resultante no surgimento de diversas possibilidades de produção integrando o
gênero na ciência geográfica na percepção das relações e dinâmica de produção do
espaço, ou seja, é a partir de um determinado lugar social que se tem a perspectiva sobre
o mundo e esta está condicionada com o tempo.
Aliar o Feminismo à ciência geográfica é reconhecer que é no espaço onde as
relações sociais se situam e obtém os aspectos necessários para sua reprodução e
reprodução. A construção do espaço é dinâmica, portanto as relações de gênero como
elemento das relações sociais modificam no tempo e espaço. Neste sentido, o espaço
abriga as relações sociais ou relações de gênero estabelecidas pelos gêneros e a relação
sujeito-espaço requer a procura por explicações acerca da organização espacial na ótica
do feminismo. É dessa aproximação que se tenciona um campo que não recuse a
produção do conhecimento e ciência de mulheres e homens.
Ao tecer problematizações ao foco principal da geografia e ao fazer científico,
as/os geógrafas/os feministas se atentam as identidades, diferenças, diversidade,
subjetividade e corpo, e se preocupam com as ações machistas e androcêntricos na
investigação geográfica. Janice Wonk analisa as contribuições da epistemologia feminista
para a ciência geográfica na entrevista cedida à Revista Latino-americana de Geografia e
Gênero.
as maiores contribuições têm sido prestar mais atenção aos
múltiplos aspectos da diversidade, não somente ao gênero, mas também
a raça, a etnicidade, a sexualidade e a juventude. Adicionalmente,
40
estudos feministas tem sido o ponto central em promover a atenção a
métodos qualitativos, e as questões filosóficas e metodológicas, tais
como aspectos da subjetividade, ‘reflexividade’, ‘posicionalidade’, as
interseções das identidades, e aspectos da vida, tais como as emoções
que estão entrelaçadas com as experiências e formas de espaços e
lugares. Estas ideias agora permeiam as múltiplas áreas da Geografia
Humana (cultural e social), não apenas no trabalho no qual, o gênero é
central. (2010, p.150)
A epistemologia feminista não se restringe às mulheres, como conhecimento
constituído também pode ser praticada por homens. A tendência de vincular a proposta
epistemológica sucede da gênese do movimento contestatório na academia e a busca pela
visibilidade das mulheres enquanto sujeito de estudo e enquanto produtora de
conhecimento científico. A abordagem feminista na ciência excede nacionalidade e a
julgamento instantâneo de corpos praticantes do conhecimento, isto implica afirmar que
homens podem adotar as epistemologias feministas, a exemplo os estudos de
masculinidade, bem como um exemplo preciso quanto à nacionalidade é a contestação
das mulheres negras do dito Terceiro Mundo à própria abordagem.
Quando foi cunhada, a geografia feminista comprometida com o projeto político
feminista de desenvolver estudos teóricos sobre gênero, tinha como objetivo “construir a
igualdade entre homens e mulheres no âmbito da disciplina, centrar as investigações sobre
as mulheres, e desafiar as filosofias, conceitos e metodologias que sustentam a hegemonia
da geografia masculina” (SILVA, 2009, p.27).
41
2. Quilombo é história: breves considerações
Abordar o tema comunidades remanescentes de quilombos remete à memória da
escravidão no Brasil, ainda que essa tenha sido abolida em 13 de maio de 1888, portanto
há 130 anos, o direito às terras tradicionais foi uma conquista do povo negro na
Constituição de 1988, todavia os pilares que sustentam essa conquista resultam de lutas
travadas por séculos entre o povo negro, a elite conservadora e o Estado brasileiro
inicialmente em processo de constituição e, posteriormente, desde a república na adoção
de suas políticas de Estado.
A escravidão negra teve início com a colonização portuguesa, na primeira metade
do século XVI, implementado pelos estados europeus no chamado Novo Mundo.
Conforme Munanga (2000; 2008) Munanga e Gomes (2006) a população negra resistiu a
barbárie da escravidão por meio de atos de coragem, expressos na luta e na organização,
na negação do trabalho forçado e na busca pela liberdade, que culminou muitas vezes
com a formação de quilombos. Portanto, esses territórios apresentam uma condição, um
modo de vida e uma organização sócio espacial cuja formação remete a história dos
negros e dos seus descendentes até as gerações contemporâneas, e devem ser entendidos
considerando-se os desdobramentos históricos que distinguiram trajetórias individuais e
coletivas desse povo.
Na significação atribuída ao termo quilombo pelos próprios negros, está posto o
sentido de um processo de ocupação territorial e reprodução cultural que se ressignifica
a partir do contato com outros grupos étnicos em conjunturas políticas diversas. Pesquisas
realizadas em diferentes áreas geográficas e em diferentes campos do conhecimento
balizam e conferem suporte empírico a essa interpretação. Contemporaneamente,
estudado sob diferentes aspectos, o conceito de quilombo apresenta diversas variações e
segundo Arruti, (2006, p.71) “sempre foi um tema que instigou o imaginário político”.
Para além desse debate político que consideramos relevante e que segundo Munanga
(2000; 2008) remete em sua origem à história de diferentes regiões da África, nos séculos
XVI e XVII.
Trabalhado na perspectiva histórica e sócio espacial, o conceito de quilombo de
Munanga (1995; 1996) considera a manifestação da apropriação dos sentidos de que é
portadora essa nominação. Na África, contada de forma mítica, a palavra quilombo revela
a diáspora dos negros e remete a disputas tribais. Aqui no Brasil esse conceito vincula-se
42
às diásporas a que foram submetidos os negros na relação transatlântica África Brasil, e
incorpora à sua dinâmica outros grupos étnicos, a partir de Palmares. Para Munanga
o quilombo é seguramente uma palavra originária dos povos de línguas
bantu (kilombo, aportuguesado: quilombo). Sua presença e seu
significado no Brasil têm a ver com alguns ramos desses povos bantu
cujos membros foram trazidos e escravizados nesta terra. Trata-se dos
grupos lunda, ovimbundu, mbundu,kongo, imbangala, etc., cujos
territórios se dividem entre Angola e Zaire. (...) Pelo conteúdo, o
quilombo brasileiro é, sem dúvida, uma cópia do quilombo africano
reconstruído pelos escravizados para se opor a uma estrutura
escravocrata, pela implantação de uma outra estrutura política na qual
se encontraram todos os oprimidos. Escravizados, revoltados,
organizaram-se para fugir das senzalas e das plantações e ocuparam
partes de territórios brasileiros não-povoados, geralmente de acesso
difícil.(1995/1996, p.58)
A expressão quilombos no Brasil apresenta intrinsecamente uma trajetória cuja
concepção histórica remete aos ancestrais e também às gerações contemporâneas do povo
negro e deve ser entendido considerando seus desdobramentos históricos pelas quais
esses grupos étnicos passaram. A definição histórica tem seu principal apoio no Conselho
Ultramarino em 1740, descrevendo o quilombo como "toda habitação de negros fugidos,
que passem de cinco, em parte despovoada [...]". Nessa definição, tem-se um dos
elementos, o isolamento geográfico, todavia se os quilombos se localizavam, em sua
maioria, em lugares de complicado acesso, muitos, quando se deparavam com
possibilidades, se fixavam em locais próximos a áreas de plantação, ou de pequenos
centros de comércio. Assim, a apreensão de que os quilombos eram formados somente a
partir de fugas, processos insurrecionais, de rebeliões, como também de grupos isolados
ou de uma população estritamente homogênea apresentam-se equivocada, todavia
expressa uma forma de resistência e ruptura ao sistema escravista.
Estudos sobre o tema afirmam que havia outros elementos que ocasionaram os
surgimentos de quilombos, algumas comunidades se formaram através de doações ou
heranças de terras alcançadas a partir da desagregação da lavoura de monoculturas, a
permanência em terras que cultivavam no interior de grandes propriedades tanto durante
como após o período escravocrata, da compra de terras pelos próprios escravizados,
liberados pelo fim sistema escravista; assim como de terras que foram conquistadas pelos
negros pela prestação de serviços ao Estado, a exemplo da participação na guerra do
Paraguai, de qualquer forma, a entrada e permanência na terra significou uma forma de
resistência ao sistema escravista. Expressões como “terras de pretos”, “calhombolas”,
43
“mocambos” e “mocambeiros”, revelam as formas de organização que desencadeiam na
transformação do território pelo grupo étnico, ou seja, apontam territorialidade.
A historiografia brasileira omitiu a participação de mulheres quilombolas no
processo de libertação dos negros no período da escravidão, mesmo com a Lei
10.639/2003 que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana
nas redes públicas e particulares da educação, pouco se conhece e menciona. Algumas
mulheres quilombolas do período da escravidão surgem com vigor, atualmente, a partir
do movimento negro e de uma gama de estudiosos que se dedicam a visibilizar e analisa
as questões étnico-raciais do país.
Zeferina, mulher de origem angolana trazida ao Brasil pela sua mãe Amália na
condição de escravizada no século XIX, liderou o Quilombo do Urubu, na atual periferia
de Salvador região do Parque São Bartolomeu, Bahia. Escritos da década de 1820 revelam
o enfrentamento da liderança quilombola com capitães do mato e o exército. Sua luta
excede a criação e proteção da população negra e indígena no Quilombo do Urubu, a
rainha4 Zeferina participou do planejamento do levante contra o sistema escravocrata que
seria no dia 25 de dezembro de 1826, entretanto, haja vista o confronto com os capitães
do mato, o movimento iniciou no dia 17 de dezembro. Gomes (1986, p.75) narra “em
Urubu foi presa, [...] uma extraordinária mulher, Zeferina, que de arco e flecha enfrentou
soldados. Durante a luta comportou-se como verdadeira líder, animando os guerreiros,
insistindo para que não dispersassem”.
Aqualtune Ezgondidu Mahamud era filha do Rei do Congo e viveu no século
XVII. A princesa negra africana comandou dez mil homens para enfrentar a invasão do
seu reino, derrotada e aprisionada, foi vendida como escravizada para o Brasil, onde foi
confinada a ser escrava reprodutora. Ao tomar conhecimento sobre Palmares, mesmo
grávida planejou sua fuga e de alguns escravizados. Posto as suas habilidades políticas,
militares e administrativas, Aqualtune governou o quilombo dos Palmares, foi mãe de
Ganga-Zumba e avó de Zumbi, sendo a base do fortalecimento do quilombo.
Uma das mulheres quilombolas mais conhecidas, Dandara dos Palmares5 é um
grande símbolo de resistência para a população negra e feminina que lutou contra o
4 É corriqueiro Zeferina ser designada como chefe, guerreira e rainha. Segundo Gomes (1986, p.75), “ o
presidente (da província), num elogio involuntário, referiu a ela como “rainha””. 5 Moura (1972) critica a posição dos escravizados na historiografia brasileira como passivos e submissos
ao sistema escravocrata. Em Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas, o autor aponta os
quilombos como forma de resistência e organização do escravizado, reconhecendo a grandiosidade do
44
sistema escravocrata do século XVII. Pouco se conhece da sua origem nacional,
entretanto seus feitos como líder quilombola foi popularizado. Dandara comandava
exércitos, dominava técnicas da capoeira e lutou com armas pela liberdade e defesa dos
negros escravizados, ao lado de Gamba Zumba, primeiro chefe dos Palmares e Tio de
Zumbi, por sua vez viria a ser o companheiro afetivo. Com Zumbi dos Palmares, formou
aliança quanto à negação do tratado de paz proposto pelo Governo português. Num ato
de resistência e de fidelidade aos princípios de liberdade, Dandara cometeu suicídio
durante a disputa no Quilombo dos Macacos pertencentes ao Quilombo dos Palmares. A
redenção seria uma escolha, contudo a líder optou pela morte à escravidão.
Conhecida e consagrada no dia 25 de julho6, Tereza de Benguela viveu no século
XVIII no Vale do Guaporé, nos arredores de Vila Bela da Santíssima Trindade, no Estado
do Mato Grosso próximo à fronteira com a Bolívia, mas veio do oeste da Angola no
continente africano. Ela lutou e liderou o Quilombo de Quariterê ou do Piolho, o qual
acolhia 100 pessoas, entre negros e indígenas. Tereza foi denominada rainha, em razão
da sua forma de comando na produção agrícola, no comércio e na governança e
recrutamento da comunidade que garantiu a sobrevivência de muitos aquilombados e o
crescimento do quilombo, tendo em vista que o mesmo resistiu por um período
considerável na época da escravidão. A rainha de origem do grupo Bantu, foi presa após
a destruição do quilombo e escolheu o suicídio a viver sob regime de escravidão.
Essas mulheres dão sentido a frase “nossos passos vêm de longe”, não se
contiveram diante da condição de mercadoria-reprodutora. Martins (2010) considera que
antes de produzir lucro na forma de mercadoria como produtor direto, o escravizado já
produzia lucro para a personificação do capital, dado a sua posição como artefato de
comércio. Sobre a escravidão feminina e resistência: MOTT (1991) descreve a condição
Quilombo dos Palmares, mas também de outros quilombos de difícil eliminação em diferentes regiões do
Brasil. Cf: MOURA, Clovis. Rebelião na senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. Conquista: São
Paulo, 1972
625 de julho é instituído pela Lei 13.987 como o Dia Nacional de Teresa de Benguela e da Mulher Negra,
e resulta da luta do movimento negro e de mulheres negras. A referência advém do Dia da Mulher Negra
Latino Americana e Caribenha, criada em 25 de julho de 1992, durante o 1º Encontro de Mulheres Afro-
Latino-Americanas e Afro-Caribenhas, na República Dominicana. A data busca visibilizar as condições de
opressão racial, de gênero, classe e étnica em que vivem as mulheres negras, bem como fortalecer as
entidades de mulheres negras.
45
da mulher escravizada no Brasil, Davis (2016) traz a partir da interseccionalidade a
mulher negra no contexto estadunidense, Reis e Silva (2005) expõe formas de resistência,
entre elas o aborto.
Para Almeida (2002) e Leite (2002), o quilombo7 simboliza resistência, uma
forma de organização política e social que marca um espaço conquistado na luta pela
sobrevivência sustentado por gerações. No transcurso histórico, a palavra quilombo
adquiriu diversos significados, no que tange o âmbito jurídico, desde o período colonial
quando foi criminalizado, aos dias atuais quando é tido como patrimônio histórico e
cultural, e seus habitantes como sujeitos de direitos, resultado da luta do movimento negro
frente ao Estado brasileiro na Constituição Federal de 1988.
Resultado da luta do movimento negro, em 1988 o Estado brasileiro se assume
como um dos responsáveis pela exclusão e marginalização dos negros na sociedade e
adota numa tentativa possibilitar a inclusão da etnia negra e o acesso às políticas públicas,
como forma de reparação social, uma série de leis, dentre as quais para as comunidades
quilombolas destaca “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado
emitir-lhes os respectivos títulos” no artigo 68º do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias (ADCT) na Constituição Federal de 1988. As discussões sobre os quilombos
na Constituinte de 1988, ou sobre o direito a terra reivindicado pelo povo negro, desaguou
na escolha da nominação de “remanescentes das comunidades de quilombo”. Segundo
Arruti (2006, p. 80-81), o termo ‘remanescentes’ também surge para resolver a difícil
relação de continuidade e descontinuidade com o passado histórico, onde a descendência
não parece ser um laço suficiente. De forma semelhante à dos grupos indígenas, o
emprego do termo implica no limite, na expectativa de encontrar nas comunidades atuais
formas atualizadas dos antigos quilombos.
O reconhecimento da importância dos quilombos como parte da história da
resistência negra na Constituição de 1988 art. 68, Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias (ADCT) contribuiu para que os quilombolas a partir do contato com
7Almeida (1998) apresenta o levantamento bibliográfico sobre quilombos entre o período de 1995 a 1997,
dentre outros objetivos o trabalho visa quantificar os títulos, diferenciar os gêneros de produção e verificar
os posicionamentos políticos dos autores. Posteriormente em Almeida (2002) retrata a construção histórica
das definições atribuídas aos quilombos.
Almeida, Alfredo Wagner Berno de. Quilombos: repertório bibliográfico de uma questão redefinida (1995-
1997). Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais BIB, 1998, 45, p. 51 - 70.
Disponível em http://www.anpocs.com/index.php/edicoes-anteriores/bib-45/485-quilombos-repertorio-
bibliografico-de-uma-questao-redefinida-1995-1997/file acessado em 01 de maio de 2018
problemas e vulnerabilidades exclusivos de subgrupos específicos de mulheres, ou que
afetem desproporcionalmente apenas algumas mulheres” (CRENSHAW, 2002, p. 173).
Antes de adentrarmos ao campo da interseccionalidade das mulheres quilombolas,
é necessário entender os eixos de poder separadamente para de situarmos a importância
da sua combinação.
Neste trabalho as mulheres são pensadas a partir do conceito de gênero, o qual é
estruturado para explicar os aspectos específicos que a cultura impõe ao feminino e
masculino, ponderando a construção social enquanto relação de poder entre elementos de
sexo, descarta o determinismo biológico pautado na perspectiva naturalista, imutável no
comportamento e universal que justificou as desigualdades mediante as diferenças físicas.
O sexo se difere do gênero, uma vez que é conferido aos aspectos biológicos, gênero parte
da construção social e histórica. O patriarcalismo fundamenta as relações de gênero. Esta
mentalidade que tem origem na Grécia Antiga e tem como conteúdo um sistema social
cuja hierarquia entre gênero impõe a superioridade masculina e mesmo com os avanços
na sociedade, o patriarcado mantém o poder e a influência sobre as normas e instituições
sociais. Historicamente construídas, as estruturas hierárquicas do patriarcado se
fundamentam em uma gama de conhecimentos os quais legitimam o determinismo
imposto com a função real de limitar a mulher, ou melhor, atribuir um papel inferiorizado
para a mulher na sociedade.
Como marcador social de diferença, o olhar sob o gênero esclarece experiências
sobre as mulheres quilombolas pesquisadas. Como as mulheres presentes na luta pela
terra no Gurugi, no processo de divisão dos lotes de moradia e plantio, as mulheres
autônomas e mães-solo foram coagidas a assumir apenas os lotes de moradia.
Muita gente mim fazia medo porque eu era mãe solteira, tinha um filho
pequeno, e não ia dar conta para pagar o terreno. Me fazia muito medo,
então o medo me fez eu perder tudo isso aí. Aí eu resolvi ficar com o
terreno da casa, porque antes eu tinha sofrido muito na casa dos outros
com filho. Tinha medo de passar isso de novo então invés de ficar com
dois e no final não ter nada nada, resolvi só ficar com um por medo.
(Depoimento concedida por Dona Maria da Penha – Comunidade
Quilombola do Gurugi)
71
Não é atual a gratuidade do trabalho da mulher tido como ajuda no meio rural,
suspeitamos que esse seria o motivo real da violência sofrida, além da limitação imposta
a mulher pela sua condição de mãe. O não reconhecimento da mulher enquanto
trabalhadora rural expressa que o sujeito em questão não gera valor econômico e social.
O trabalho da mulher é compreendido como adicional às atividades domésticas, o que é
legitimado pela sociedade patriarcal. Conforme Pacheco (2009), “no Brasil quase 15
milhões de mulheres do campo estão privadas do acesso à cidadania por não terem
reconhecida a sua condição de agricultoras familiares, camponesas ou trabalhadoras
rurais. Embora representem 47,8% da população residente no meio rural, somente 16%
são titulares das terras onde moram”. Fundamentado na não-identificação da mulher
como produtora rural, o acesso às políticas públicas se limita, muitas vezes, para o
homem, mesmo que o trabalho da mulher seja de suma importância para a reprodução
camponesa.
Conforme Munanga (2003), o conceito de raça não surgiu por acaso. Emerge no
século XV com as descobertas dos navegantes e seu contato com povos “diferentes”. A
historiografia aponta que a emergência do conceito de raça no âmbito das ciências
naturais, foi empregado na Zoologia e na Botânica para qualificar as espécies de fauna e
flora. No que se refere às relações nas Ciências Humanas, o conceito foi empregado no
sentido moderno da palavra em 1684 pelo francês François Bernier para classificar a
diversidade humana em grupos fisicamente contrastados, denominados raças.
(MUNANGA, 2003, p.1). Nos Tempos das Trevas, o qual a igreja era detentora do
conhecimento, os teólogos concordavam a existência de humanidade nos ditos
“diferentes”, visto que possuíam traços e vestígios que comprovavam, todavia fazia-se
necessário a convenção ao cristianismo para a conquista da humanidade plena. A ideia da
igreja impulsionou e justificou a colonização de povos orientais, além de outros eventos
catastróficos e vergonhosos em outros momentos históricos com o fortalecimento e
desenvolvimentos de outras teorias.
No século XVIII, conhecido também como no “século das luzes” marcado pela
racionalidade, os filósofos questionam o monopólio do conhecimento detido pela igreja.
Neste período, as explicações científicas contraiam maior proeminência na análise dos
fenômenos naturais e sociais e através do questionamento dos europeus acerca da
humanidade dos não europeus a cor da pele passa a ser o critério para a classificação dos
seres humanos em raças, sendo estes divididos em: brancos, negros e amarelos. No século
XIX, outros critérios de caráter morfológicos passam a ser incorporados a essa
72
classificação, a exemplo do formato do crânio e das feições faciais, estatura, formato dos
lábios, queixo e etc. Os “homens de sciencia” nas instituições brasileiras são fortemente
influenciados pelo pensamento científico europeu, e neste contexto pelas doutrinas
racistas importadas que inferiorizavam a população negra e indígenas. Sobre a entrada
dos teorias e conceitos no Brasil, Schwarcz (1993) afirma
A entrada coletiva, simultânea e maciça dessas doutrinas acarretou, nas
leituras mais contemporâneas sobre o período, uma percepção por
demais unívocas e mesmo coincidente de todas essas tendências. Tais
modelos, porém, foram utilizados de forma particular, guardando-se suas
conclusões singulares, suas decorrências teóricas distintas. (Schwarcz,
1993, p.43)
No Brasil, as teorias raciais foram adaptadas à realidade brasileira, em virtude da
multirracialidade do país, o qual estava no processo de construção do projeto de nação e
apresentava o fator miscigenação. Neste sentido, as teorias raciais europeias auxiliaram
na construção do imaginário construído a partir dos viajantes e naturalistas, e a
legitimação dos interesses da elite. Com os avanços da ciência, principalmente no campo
da genética, o conceito de raça mostrou-se inoperante para explicar a diversidade humana.
Mesmo assim, a historiografia constata a ocorrência de pesquisa comparativas com os
patrimônios genéticos dos indivíduos pertencentes a mesma raça, por meio das quais
verificou-se a existência de raças e sub-raças que se cruzam, mas também se
hierarquizam. Atualmente, o conceito de raça é tratado nas Ciências Sociais como
construção social, cultural e política produzidas no transcurso histórico pelas relações
sociais, e, portanto, relações de poder. Ratts (2003) dialoga com Guimarães (1999)
concernente a desnaturalização do conceito de raça enquanto concepção unicamente
usada para classificação social, fundamentada na ação negativa diante de determinados
grupos sociais e apoiada pela ideia particular de natureza. A conotação política atribuída
ao conceito de raça pelo movimento negro serve para evidenciar a influência de
características física na determinação do lugar social dos sujeitos na sociedade, ou seja, a
estrutura complexa de hierarquização social que emprega características fenótipicas como
eixos de poder, e, portanto, desigualdade do grupo. À medida que possibilita a valorização
das características que diferenciam os grupos sociais, o conceito rompe com as teorias
raciais persistente no imaginário social.
Como marcador social de diferença e desigualdade, a raça explicaria o fato das
trajetórias e narrativas da população negra serem vistas como iguais. Mesmo sendo
73
sujeitos de múltiplas identidades, de diferentes vivências, a sociedade tende a não nos
diferenciar enquanto sujeitos e portadores de experiências diversas. Às vezes, essa
história não é construída pelos próprios sujeitos, são escritas de uma história única.
Carneiro (2018)14 afirma “uma das características do racismo é a maneira pela qual ele
aprisiona o outro em imagens fixas e estereotipadas, enquanto reserva para os racialmente
hegemônicos o privilégio de serem representados em sua diversidade”.
A maioria das pessoas que conhecem o Gurugi conhecem como lugar
dos macacos, dos negros, não é Gurugi como lugar de pessoas e sim
como lugar de animais eu vou pra comunidade dos macacos, vou passar
na comunidade dos negros, dos macacos do Gurugi’’ a gente sempre
sofreu esse preconceito, que as pessoas que moram fora tem medo
contado por pessoas preconceituosas que aqui só mora macaco na visão
deles lá né! (Depoimento concedido por Isabel Souza – Comunidade
Quilombola do Gurugi) grifos nossos
A associação dos negros aos macacos justificou a escravidão. A teoria da seleção natural
de Darwin (1859) mostrou que todas as raças humanas descendiam do mesmo grupo e os
ancestrais mais próximos dos seres humanos foram os grandes macacos. Com a hierarquização
civilizatória, focava-se as semelhanças e diferenças raciais, os africanos estavam muito mais
próximos em termos evolutivos dos grandes macacos do que estavam, os europeus. Essa
vinculação parte da negação da humanidade do sujeito negro, porquanto mesmo com
características dos humanos, os macacos são animais irracionais, sem capacidade intelectual e
sem alma. Assim, os negros eram mercadorias, objetos, coisas15, mas nunca humanos.
Como marcador social, a geracionalidade é posta enquanto decisiva nas
comunidades quilombolas. Os troncos mais velhos16– que nas comunidades estudadas são
em maioria mulheres – são respeitadas e valorizadas por serem transmissoras da histórias
e culturas das comunidades. São sujeitos que participavam/participam da luta pela terra e
14Disponível em https://www.geledes.org.br/negros-de-pele-clara-por-sueli-carneiro/ - acessado em 15 de
maio de 2018 15“As condições desfavoráveis da vida em cativeiro teriam retirado dos escravos da capacidade de pensar o
seu modo de vida fora do modelo de organização político-social, econômica, jurídica e ideológica instituída
pela vontade do senhor de escravo, ocorrendo assim, uma “coisificação social”, no sentido de que a
violência exercida pelo sistema escravista chegava a fazer com que os negros concebessem a si mesmos
como não-homens, como criaturas inferiores, como “coisas”, daí a denominação “teoria do escravo-coisa”.
cf: Vítor Nazareno da Mata Martins ; CORDOVIL, Danilson Jorge Coelho ; Dawdson Soares Cangussu ;
Maurício Sousa Silva . A coisificação do Escravo. Recanto das Letras, 2006 acessado em 14 de maio de
2018 16“Os troncos mais velhos são os chefes de famílias mais velhos no caso como comunidade negra pela
ligação com a África os troncos era muito mais velho as mulheres do que os homens quem domina a
economia sempre é a mulher o povo fala muito em Tia Quili que foi escravizada, Tia Zó, chamava semprede
tia porque todo mundo aqui era tia, parente. (Depoimento concedido por José Ricardo do Nascimento -
Líder comunitário).
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pelo reconhecimento enquanto quilombolas. A geracionalidade permite vislumbrar o
conflito de posicionamentos do interior das comunidades, tanto no Ipiranga como no
Gurugi, o processo de luta pela terra afeta diretamente nas posturas dos quilombolas.
No Ipiranga, as terras eram de herdeiros, por isso eram ditas como coletivas, por
ocasião do pleito pelo projeto de moradia do Governo Federal, este apresentava como
critério a documentação do lote individual, houve a fragmentação de terras dentro da
comunidade. No Ipiranga, os mais novos anseiam pela titulação quilombola, visto que
não possuem terras para moradia ou plantio e vivem com seu núcleo familiar dentro da
casa dos pais, além da possibilidade de conquista de todo o território ocupado
tradicionalmente pelos seus antepassados. Os mais velhos persistem na posição de deixar
a terra como estar por medo da reincidência de conflitos na luta pela terra e por não
apreciarem a ideia de uma propriedade coletiva.Cientes que o atual território do Ipiranga
é constituído por diversos sujeitos munidos de poder, como granjeiros, fazendeiros. No
Gurugi, houve a titulação do assentamento, mas tal como Ipiranga, a comunidade cresceu
e as terras não atendem as demandas das famílias.
Uma das experiências de trabalho das mulheres mais corriqueiras dentro das
comunidades quilombolas pesquisadas tange a profissão de empregada doméstica, a qual
deve ser entendida pela intersecção de marcadores sociais. O trabalho doméstico é um
dos legados do período escravista. Ao analisar a exclusão capitalista articuladas ao
sexismo e racismo, Davis (2016, p.98) afirma que o serviço doméstico “trazia o familiar
selo da escravidão” e sobre o sistema escravista evoca a designação de “instituição
doméstica” enquanto expressão refletora do caráter desse modo de produção. A mulher
negra era tida como propriedade/mercadoria, da mesma forma que os homens, elas eram
vistas como unidade de trabalho lucrativa, para os proprietários de escravizados “elas
poderiam ser desprovidas de gênero”, ainda na função de escravizadas reprodutoras,
podendo dar lucro antes de produzir o trabalho, elas eram reconhecidas como
instrumentos ampliador da força de trabalho. “Nas palavras de um acadêmico, a mulher
escrava era, antes de tudo, uma trabalhadora em tempo integral para seu proprietário, e
apenas ocasionalmente esposa, mãe e dona de casa” (DAVIS, 2016, p.17).
Apesar das críticas extremamente adequadas a obra Casa-Grande e Senzala, a
utilizaremos com o propósito de apresentar elementos da relação escravizados-
proprietário no espaço doméstico relevantes para considerarmos as relações atuais de
trabalho no contexto em questão. A priori, é necessário pontuar que não era qualquer
cativo que adentrava no dia-a-dia da Casa-Grande, a escolha se fundamentava nas
75
características morais e físicas. Os escravizados servis poderiam ser considerados como
pessoas de casa ou da família, essa proximidade decorre do convívio com os habitantes
da casa-grande, todavia essa afetividade não extingue a dominação e crueldade
vivenciadas pelos escravizados domésticos, notadamente no que diz respeito aos ciúmes
das sinhás mais velhas, os mesmos motivos que poderiam levar as escravizadas serem
conduzidas para casa-grande, poderiam ser os mesmo que as arrastavam a sofrer com as
perversidades da escravidão (FREYRE, 2002). Essa relação ocorre atualmente,
geralmente é na reivindicação dos direitos profissionais das trabalhadoras domésticas que
as bases de afetividade são abaladas.
Na obra A Integração dos Negros na Sociedade de Classes, Florestan Fernandes
(1965) investigou a situação social da população negra durante a constituição do sistema
capitalista no Brasil, influenciada pelo liberalismo econômico europeu, o qual produziu
novos modelos de relações sociais, adotando como escala espacial o estado de São Paulo
no século XX. A população negra estava “abandonados à própria sorte”. Com a
oficialização da abolição e a difícil adequabilidade ao padrão do sistema capitalista
consistiu no resultado das trajetórias humilhantes no passado escravista, marcada pela
submissão e vulnerabilidade que perdurou com o fim da escravidão. As novas relações
sociais se organizaram com as antigas com intuito de garantir interesses da classe
dominante e sustentar seus privilégios. A história da constituição do trabalho livre no
Brasil se estabelece pela elite agrária exercendo o poder socioeconômico advindo do
trabalho compulsório dos(as) negros(as), o contingente populacional dos libertos tentando
entender a importância para sua sobrevivência de se inserir ou ser inserido nesta nova
lógica e a chegada de imigrante europeus para fins de branqueamento e mão de obra.
No final do século XIX, a integração socioeconômica dos negros sucedeu pelos
trabalhos subalternos, isto é, a inserção da mão-de-obra liberto ao mundo do trabalho
ocorreu pelo trabalho doméstico das mulheres negras. Neste sentido, as mulheres
escravizadas passaram a ser empregadas domésticas. A divisão sexual do trabalho
configurou mediante a hierarquização a participação das mulheres escravizadas neste
novo lugar que pouco se diferenciava do anterior.
A recorrência nas narrativas negras de empregadas domésticas no período da
escravidão até os dias atuais se configura na inserção no mercado de trabalho como a
única profissão para essas mulheres, não é por acaso que elas passaram a ser provedoras
para família e homens negros (FERNANDES, 1965). No contexto estadunidense
elucidado por Davis (2016, p.102) condiz com a realidade brasileira, haja vista que “se as
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mulheres brancas nunca recorreram ao trabalho doméstico, a menos que tivessem certeza
de não encontrar algo melhor, as mulheres negras estiveram aprisionadas a essas
ocupações”.
A interseccionalidade é acionada para compreender que o marcador gênero define
a vinculação dessa atividade com as mulheres, na organização e cuidado com a casa e,
principalmente da família, contudo o fato de não se destinar a qualquer mulher é
delimitado pela raça no que tange o histórico de servidão compulsória e classe para
observarmos o acesso às oportunidades. A predominância das mulheres negras no
trabalho doméstico é produto das entranhas históricas do país, as quais definiram os
lugares a serem ocupados pela população negra.
A territorialidade se articula com outros marcadores sociais na realidade das mães
quilombolas, essas eram recorridas por pessoas externas ao grupo com intuito de criar as
meninas visando também a instrução educacional nos centros urbanos. Como espaços
marginalizados, a leitura dos “de fora” são repletos de estigmas e imaginários que tentam
justificar as suas posições. Neste sentido, a territorialidade concerne às atividades
humanas com finalidade do sujeito ou grupo social em comandar, influenciar e incidir nas
relações, sujeitos e objetos num determinado local. “Pode ser compreendida como
mediação simbólica, cognitiva e prática que a materialidade dos lugares exercita nas ações
sociais” (DEMATTEIS, 1999), ou seja, é dinâmica e relacional, se altera na escala
espacial e temporal, segundo as qualidades da sociedade instaurada (SAQUET, 2006).
Relatos de sofrimentos passados pelas mulheres quilombolas em “casas de
família” são comuns. A tristeza de não poderem se dedicar às necessidades dos seus filhos
visto a necessidade do trabalho em cuidar de filhos de outras mulheres evoca um passado
singular com as suas ancestrais. “Minha mãe me deu eu tinha sete ano e voltei pra casa,
morava em João Pessoa, não aprendi ler nem escrever, mas eu uma pessoa muito bem
informada”17! Na tentativa de um futuro melhor para a crianças, as mães atribuem as
responsabilidades de criação para os externos a comunidade, estes, geralmente, são
conhecidos, vivem na área urbana e possuem poder aquisitivo maior.
Assim como no passado colonial, as relações entre patrões e empregados são
assinaladas por diversos sentimentos, do carinho e respeito a desconfiança e “ruindade”.
Sobre essa relação:
é difícil é difícil então é assim tinha época e era boa mais tinha época
que era difícil muito difícila pessoa leva muita fica sei lá não se
17
(Depoimento concedido por Acotirene Up - Comunidade Quilombola de Gurugi)
77
preocupe leva muito carão mesmo que como eu tinha filho criava a
minha filha comigo e não tinha com quem deixar tinha que levar
mesmo eu fazendo sabia que estava tudo certo mas as patroas Dinha
mandava fazer aquele serviço de novo era muito xiingada era muito
xingada muito xingada(Depoimento concedido por Dona Penha –
Comunidade Quilombola do Gurugi)
A insuficiente legislação nacional sobre o trabalho analisa as categorias
identidades e marcadores sociais, todavia as suas falhas e ausências são também
responsáveis pelo controle e exploração das trabalhadoras. As trabalhadoras domésticas
negras têm escolaridade menor e ganham menos em relação às trabalhadoras brancas. No
transcurso histórico, o trabalho exercido pelas domésticas é visto como segmento mais
inferiorizado no grande mercado de trabalho, a julgar pela admissão de trabalhadores
informais, salários muito baixos, sem carteira de trabalho assinada, horas excessivamente
longas, não possuem um dia de descanso semanal garantido e, às vezes, são vulneráveis
a abusos físicos, mentais e sexuais ou a restrições à liberdade de movimento entre outros
fatores.
78
4. Era resistência mesmo: empoderamento e inserção das mulheres em
organizações coletivas
Inseridas no modo de produção capitalista, as mulheres negras reivindicam
direitos sociais, geralmente, direitos necessários à sobrevivência, lutam pela reparação,
cuja a problemática advém do sistema capitalista, do jeito que ele se construiu na
sociedade. As hierarquizações constituintes do processo de formação do território revela
a subalternização de gênero segundo raça, à vista disso: em primeiro lugar situa-se o
homem branco; em segundo, a mulher branca; em terceiro, o homem negro; e, por último,
a mulher negra (CARNEIRO, 2003) (RATTS, 20003).
As mulheres quilombolas, identificadas racialmente como mulheres negras pela
auto atribuição, compõem um dos grupos mais vulneráveis da sociedade brasileira, cuja
existência vincula-se ao acesso à terra, fundamento de sobrevivência e da identidade
étnica, por isso, busca a proteção do domínio do território como patrimônio simbólico e
material. A luta por melhores condições de existência sempre foi permanente para as
mulheres negras, desde o período escravista na diáspora até os dias atuais, elas buscavam
variadas formas de organização que poderiam não se enquadrar nos parâmetros formais.
Atualmente, as comunidades remanescentes de quilombos são representadas por
associações legalmente constituídas, conforme estabelecido pelo Decreto 4.887. É a
necessidade de organização de espaços coletivos que marca o surgimento da Associação
da Comunidade Negra do Ipiranga (ACNI), fundada em 2006, emergente no contexto de
luta das negras/os pela apropriação do território tradicional através da auto atribuição
como quilombola, por intermédio da Fundação Cultural Palmares. A trajetória de negação
de direitos enquanto cidadãos caracteriza a formação dessa organização, para além de um
espaço de socialização e debates, se apresenta como instrumento de reivindicação de
serviços básicos para a comunidade, muitos ainda hoje não foram atendidos, seja eles
responsabilidades da instância municipal, estadual, federal ou a ação junta destes.
Atualmente, atendendo atualmente mais de 150 associados, a associação é regida desde a
sua formação pelas mulheres quilombolas.
Oliveira (2010) afirma que as associações têm como finalidade apoiar os
associados nas questões econômicas, técnicas, culturais e políticas. No contexto do rural,
essa forma de organização é analisada como uma tática que atua para os sujeitos rurais
lutarem por seus direitos socioeconômicos, possibilitando a luta contra o capital
financeiro de maneira organizada, além disso proporciona a luta pela entrada e
79
permanência na terra, pela participação como cidadãos e pelo bem-viver. É neste contexto
de luta, que as mulheres estão presentes.
As associações emergem na história buscando a melhoria na qualidade de vida,
posto que o trabalho coletivo e as vivências oportunizam o crescimento e o
desenvolvimento para o espaço ocupado. Os princípios do associativismo são
empregados nas associações, ao passo que se refere a ideia de que coletivamente se pode
encontrar soluções viáveis para as dificuldades que a vida em sociedade impõe. Neste
contexto de coletividade surge a Associação Comunitária dos Parceleiros Rurais do
Gurugi (ACPRG), fundada em 1983 resultando do processo de luta pela terra, atualmente
contém 80 sócios cadastrados.
A predominância das mulheres lideranças na Comunidade Ipiranga e a
participação na associação do Gurugi se associa a construção desses quilombos, como
também a divisão sexual do trabalho. As mulheres estiveram na frente da luta pelos
direitos territoriais e básicos à sobrevivência, ao tempo que os homens estavam
trabalhando na agricultura. Isso não deve supor que as mulheres não estavam no campo,
mas que para elas estavam reservadas jornadas dupla ou tripla, nas quais eram mães,
donas de casa e camponesas, sendo estes trabalhos não reconhecidos como tais.
As mulheres lideranças da associação são responsáveis por construir a base
política organizacional, e evocar a consciência de política dos habitantes como
quilombola, principalmente enquanto territórios diferenciados no que tange a comunidade
do Gurugi, dado que apesar de unidos geograficamente e pela atribuição étnica, a
população da Comunidade de Ipiranga se designava enquanto povo pertencente do
Gurugi.
Antes do surgimento da Comunidade Quilombola de Ipiranga, as pessoas
da comunidade eram consideradas como comunidade do Gurugi. Depois
observaram que havia uma história por trás, uma história própria, um
território próprio e diferenciado. Cada pessoa tinha sua pose de terra, a
comunidade quilombo do Ipiranga tinha suas terras com os títulos de
pose, já a comunidade do Gurugi era considerado assentamento. Então
com o tempo as pessoas começaram a se definir como IPIRANGA! Por
isso houve a necessidade de formar a associação em 2004. (Depoimento
de Ana Rodrigues – Comunidade Quilombola de Ipiranga)
Os objetivos são lutar pelos direitos da comunidade, fortalecer o
movimento quilombola, ter o verdadeiro reconhecimento que o povo
quilombola merece perante a sociedade. (Depoimento de Joselma
Rodrigues – Comunidade Quilombola de Ipiranga)
80
Leite (1999) explica a dificuldade da identificação quilombola vinculada aos
estereótipos e estigmas construídos socialmente no país, bem como a dificuldade de
compreender a história do território além dos limites do próprio grupo a fim de apreender
as inter-relações entre esses, e acrescenta que esse processo deve se estabelecer
concomitante com a construção da cidadania negada outrora.
O empoderamento diz respeito ao acesso ao poder de sujeitos que são desprovidos
de poder como, mulheres, negros, homossexuais enquanto grupos. O processo
compreende a construção de autonomia e do autocontrole sobre a vida, sendo um meio
para o desenvolvimento e democracia. Se relaciona com a capacidade de proteção de
especificidades de determinados grupos sociais, na luta pela garantia de direitos e espaços
deliberativos. Como explicita a autora, empoderamento consiste no
processo da conquista da autonomia, da auto-determinação. E trata-se,
ao mesmo tempo, de um instrumento/meio e um fim em si próprio. O
empoderamento das mulheres implica, para nós, na libertação das
mulheres das amarras da opressão de gênero, da opressão patriarcal. Para
nós latino americanas, em especial, o objetivo maior do empoderamento
é questionar, desestabilizar e, por fim, acabar com a ordem patriarcal que
sustenta a opressão de gênero. Isso não quer dizer que não queiramos
também acabar com a pobreza, com as guerra, etc. Mas para nós o
objetivo maior do empoderamento é destruir a ordem patriarcal vigente
nas sociedades contemporâneas, além de assumirmos maior controle
sobre “nossos corpos, nossas vidas”. (SANDENBERG, 2006, p. 2)
De acordo com Sardenberg (2009), o empoderamento surge a “praxis para a
teoria”. A autora reconhece o uso diversificado da palavra compreendendo que a
concepção emerge de novas experiências do processo. O empoderamento se posiciona na
democratização de poder, a ampliação de poder e gestão sobre problemáticas que marcam
a vida. Conforme Stromquist (2002, apud SANDENBERG, 2006), o empoderamento
abrange quatro dimensões: a dimensão cognitiva refere-se à percepção da autoestima; a
dimensão política diz respeito ao saber acerca das desigualdades; a dimensão econômica
que consiste na habilidade de gerar renda, e a dimensão social.
O processo de empoderamento requer uma desconstrução acerca da ideologia
dominantes e das nuances por ela imposta e a partir desse processo contínuo de
desconstrução pode-se transformar as estruturas e esferas que preservam a opressão e as
desigualdades sociais e, por fim, construir ações que possibilitem os grupos, com diversos
marcadores de diferenças, o acesso aos meios para uma vida digna. A ideia do ser
negro/quilombola encontra seu contraponto como o que se segue: “é ter uma história, uma
81
história negra no sentido bonito de vivência, de costumes, de cultura, de raízes, danças,
comidas, penteados18” (Grifos nossos). É negada a importância da população negra na
construção da sociedade brasileira, quando emerge na historiografia se resume ao período
da escravidão vinculado também a estigmas socialmente construídos, por isso o “sentido
bonito” é uma oposição ao apagamento histórico e marginalização do povo
negro.Historicamente, as minorias sofrem com o processo de produção social que
determina o lugar e a função desses sujeitos na sociedade. Aos negros, pobres, indígenas,
mulheres, entre outros grupos sociais são impostas representações convenientes para fixa-
los identidades subversivas. O estigma19 é uma construção social fundamentada em
aspectos oriundos de prejulgamentos decorrente de segregação, a qual inferioriza um
sujeito e aprecia o seu oposto.
O empoderamento cognitivo/psicológico compreende o sentimento de autoestima,
a visão da capacidade individual, demonstrado na autoconfiança. O processo de
crescimento da autoconfiança enquanto expressão surge da mudança na avaliação
subjetiva do indivíduo no tocante às suas habilidades, entendimento da realidade, da sua
inserção em espaços deliberativos e de qualificação, e desenvolvimento na capacidade de
trabalho.As mulheres quilombolas estão cada vez mais reforçando a ideia de beleza
natural negra mediante a valorização da estética negra, com uso de turbantes e torços,
cabelo crespos e cacheados e corpos que não seguem o padrão de beleza midiático
europeu concernente a mulher branca, alta e magra e de cabelo liso. O processo
educacional auxilia na inserção de negras jovens no lugar de exercício político das
lideranças. Na situação de quilombo-assentamento, por isso atendido pelo Programa
Nacional de Educação na Reforma Agrária, Gurugi conta com a realização da inserção
da educanda(o) no seu espaço comunitário e no movimento no qual atua. É o caso de
Isabel Rodrigues que assumiu a associação do Gurugi num período de desmobilização
engendrado pelo aspecto geracional.
na época eu tinha só apenas 20 anos de idade, a gente começou a estudar
junto com o CPT que é a comissão pastoral da terra pelo programa
nacional, e ai quando eu comecei a estudar o estudo pedia que eu fizesse
um tempo comunidade. A partir desse tempo comunidade que Nego,
Giselda e outros meninos viram a capacidade que eu tinha de assumir
uma liderança dentro da comunidade. O objetivo da associação
naquele momento era reerguer ela, porque já tava se perdendo pelo
18
Depoimento de Ana Rodrigues - Comunidade Quilombola de Ipiranga 19 Cf: GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio
de Janeiro : LTC, 2008.
82
caminho e não tinha quem assumisse na época. E ai se precisava de uma
liderança que realmente colocasse pulso firme e colocasse isso em
diante, na época era como se a gente tivesse reerguendo o que os nossos
pais deixaram. (Depoimento concedido por Isabel Souza – Comunidade
Quilombola do Gurugi) Grifos nossos
Foi por intermédio da associação que jovens negras tiveram a oportunidade de
demonstrar sua capacidade de trabalho e de organização, sua forma de condução frente
às dificuldades e, principalmente a necessidade de estarem organizados. O
empoderamento psicológico pode ser verificado nos relatos das mulheres negras de
Ipiranga e Gurugi no que tange a um dos principais elementos responsáveis pela inserção
no exercício de liderança comunitária:
O poder da fala, que eu sempre gostei de falar muito e nessa fala eu
expressava o que eu sentia em relação a comunidade, o interesse pela
comunidade mesmo. (Depoimento concedido por Isabel Souza -
Comunidade Quilombola do Gurugi)
Eu nunca tive medo de falar porque o tempo que eu cheguei a conviver
com a questão da terra eu já tinha convivido muito pelas casas de gente
rica! Não aprendi ler nem escrever mas eu era uma pessoa muito bem
informada,entendeu?! As pessoas me explicava como devia falar as
palavras certas e as palavras erradas (Depoimento de Acotirene Up-
Comunidade Quilombola do Gurugi)
Os relatos concernem a importância da fala não somente no seio da comunidade,
mas também externo a ela. É através das experiências coletivas que paulatinamente as
mulheres ultrapassam limites pessoais como a vergonha e timidez, ao se entenderem
como sujeitos sociais capazes de sugerir, criticar e solicitar. A linguagem aporta ideologia
e elementos simbólicos como sistema de dominação. Foucault (2009) analisa a
consolidação das relações de poder pelo discurso, o qual expressa causas, lutas e os
controles, por consequência é preservado por grupos em diversos âmbitos. À vista disso,
os moradores preocupados não só com as normas oficiais da língua portuguesa, mas
também com a ideia do que se quer passar e como se deve esta coesa adotam posturas e
desistem de oportunidades. No contexto de divisão dos lotes de acordo com as famílias,
Acotirene Up se refere a comunidade, e principalmente as mulheres “nós que nesse tempo
era tão despreocupado que quase todos era leigos, não conhecia leis e nem sabia muito se
expressar, sempre tinha uns que andava sem medo, mas sempre tinha uns que era muito
medroso, muito mesmo”
83
A dimensão psicológica é afetada pelas atividades nos espaços políticos e sociais,
como também depende do próprio sujeito na propriedade da subjetividade. Para a
população negra, a fala pode representar dois entraves distintos, mas que se relacionam,
é o silenciamento e a falta de educação formal. O silenciamento pode até ser confundido
com a timidez e, por isso ser naturalizado, contudo possui relação intrínseca com o
racismo, ao passo que o sujeito se sente menos qualificado para assumir determinado
cargo, apesar de estar no mesmo grau de habilidade, técnica e inteligência de quem
exerce20. Diferente do silenciamento que atinge sujeitos em qualquer idade, a falta de
educação formal atinge mais pessoas mais velhas que não tiveram acesso às escolas. Em
outro momento histórico, no período pós-escravidão, o segundo depoimento “casas de
gente rica” se referiria racialmente as propriedades das pessoas brancas. O caso
representaria o negro da casa-grande, o sujeito negro que ascendesse da posição de
miséria e ignorância se comportava como branco.
O empoderamento social concerne também o direito ao conhecimento e
informação, tanto nos âmbitos educacionais, quanto no acesso a habilidades laborais. A
dimensão econômica trata da possibilidade da geração de renda autônoma, essa remete a
independência financeira com o homem, a possibilidade de sustentação da família, a
inserção nos espaços públicos e o reconhecimento da capacidade da mulher. Observa-se
a associação como uma estratégia de atuação para os sujeitos rurais lutarem por seus
direitos socioeconômicos, possibilitando a luta contra o capital financeiro de maneira
organizada, além disso proporciona a luta pela entrada e permanência na terra, pela
participação como cidadãos e pelo bem-viver. E neste contexto de luta, as mulheres estão
presentes, estabelecendo laços com a associação e preservando fazeres ancestrais e os
aproveitando com as oportunidades geradas, entre elas a geração de renda.
As lideranças femininas através da associação estabelecem alianças com
instituições governamentais e não governamentais na pretensão de oferecer cursos de
qualificação que gerem renda. Fica evidente o desejo das mulheres de construírem um
espaço próprio quando as relações de poder as marginalizam, e é na coletividade que as
mulheres se apoiam para traçar estratégias de rompimento. Existem problemas quanto a
continuidade das atividades, aspectos concernentes ao funcionamento sem o auxílio
gestor, produtor e financiador externo não é programada, à vista disso mesmo sendo