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Universidade de So Paulo
Faculdade de Sade Pblica
Ateno domiciliar e produo do cuidado:
apostas e desafios atuais
Paula Bertoluci Alves Pereira
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps-graduao em Sade Pblica da Faculdade
de Sade Pblica para obteno do ttulo de
Mestre em Cincias.
rea de Concentrao: Servios de Sade Pblica Orientadora: Profa.
Dra. Laura Camargo Macruz Feuerwerker
So Paulo
2014
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Ateno domiciliar e produo do cuidado:
apostas e desafios atuais
Paula Bertoluci Alves Pereira
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps-graduao em Sade Pblica da Faculdade
de Sade Pblica para obteno do ttulo de
Mestre em Cincias.
rea de Concentrao: Servios de Sade Pblica Orientadora: Profa.
Dra. Laura Camargo Macruz Feuerwerker
So Paulo
2014
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expressamente proibida a comercializao deste documento, tanto na
sua forma
impressa como eletrnica. Sua reproduo total ou parcial
permitida
exclusivamente para fins acadmicos e cientficos, desde que na
reproduo figure
a identificao do autor, ttulo, instituio e ano da
tese/dissertao.
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Aos meus pais, Maria Lucia e Hlio, e meu irmo Pedro, por me
apoiarem
intensamente nessa jornada e me ajudarem na construo de caminhos
para a
concretizao de meus sonhos e por me deixar voar neles.
minha tia Marisa (in memorian), pelos afetos e bons encontros e
por me
mostrar a potncia num sopro de vida.
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AGRADECIMENTOS
minha orientadora Profa. Laura Feuerwerker, que me recebeu de
braos
abertos desde o nosso primeiro encontro. Agradeo pelos afetos,
pelo apoio intenso
durante toda essa caminhada, me ajudando a processar o que vaza
e atravessa nos
encontros da pesquisa e de meu trabalho no SUS.
Aos amigos e familiares, pelos momentos compartilhados de
alegrias e tristezas
e por me darem fora para que eu seguisse firme nesta caminhada,
mesmo estando
ausente nos momentos finais de dedicao escrita.
minha querida amiga Natlia, pelo nosso murinho de conversas,
desabafos,
por compartilharmos as mesmas inquietaes em relao vida,
fisioterapia e sade
coletiva. Por estarmos sempre juntas, mesmo distantes, nos
apoiando.
s amigas do corao Amanda, Angelina e Nia, que me acompanham
desde
a graduao, pela amizade, apoio incondicional e por sempre me
proporcionarem bons
encontros. Pelo acolhimento e carinho, sempre.
Ao Grupo de Estudos em Micropoltica do Trabalho, da Faculdade de
Sade
Pblica-USP, pelos encontros sempre produtivos e muito potentes,
pelos afetos e
afeces produzidas, pelas amizades e apoio durante essa
caminhada.
s Secretarias Municipais de Sade de Embu das Artes-SP,
Campinas-SP e
So Bernardo do Campo-SP e seus respectivos servios de ateno
domiciliar, por
meio de seus gestores, trabalhadores, usurios e cuidadores,
agradeo pela
receptividade e por possibilitarem a minha imerso em seu
cotidiano da produo do
cuidado, me afetando com o a intensidade do seu trabalho vivo e
da construo de
redes vivas.
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Secretaria Municipal de Sade de Vinhedo, por meio de sua
Secretria Ndia
Capovilla, que permitiu a conciliao das minhas atividades do
mestrado e do grupo
de pesquisa com o meu trabalho no Ambulatrio Municipal de
Fisioterapia.
Denise, chefe do setor de fisioterapia, por sempre me apoiar e
incentivar a
construir meus caminhos e sonhos, e aos amigos e colegas de
trabalho do centro de
especialidades e do FOFITO a quem tenho um apreo muito
grande.
Aos usurios e seus familiares do SUS, por compartilharem um
pouquinho de
suas vidas comigo e por serem uma de minhas inspiraes para
repensar, problematizar
e inventar modos outros de produo de mais vida.
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SOBRE IMPORTNCIAS
Um fotgrafo-artista me disse outra vez:
veja que pingo de sol no couro de um lagarto
para ns mais importante do que o sol inteiro no corpo do
mar.
Falou mais: que a importncia de uma coisa no se mede com fita
mtrica nem
com balanas nem com barmetros etc. Que a importncia de uma coisa
h que ser
medida pelo encantamento que a coisa produza em ns (...)
Manoel de Barros
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PEREIRA, PBA. Ateno domiciliar e a produo do cuidado:
apostas e desafios atuais. [dissertao de mestrado] Faculdade
de
Sade Pblica, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2014.
Resumo Introduo: A ateno domiciliar (AD) vem ganhando destaque
em funo do envelhecimento da populao e do predomnio das doenas e
agravos no transmissveis, como uma alternativa aos modos j
institudos de cuidado, podendo ser uma modelagem potente que
permite a transformao das prticas de sade, produzindo uma
assistncia que favorece a criao de vnculo entre trabalhador e
usurio, o acolhimento, a humanizao e o desenvolvimento de
corresponsabilidade. Em 2011, foi criada a poltica nacional de
ateno domiciliar, regulamentada pela Portaria no 963/GM/MS de 27
maio de 2013, a qual estabelece diretrizes bastante especficas
acerca dos servios de AD e institui o cofinanciamento federal, o
que poder implicar numa ampliao significativa dos servios
existentes. Objetivo: Analisar experincias de ateno domiciliar do
SUS, suas potencialidades e desafios na produo do cuidado, bem como
os efeitos iniciais da Portaria n 963/GM/MS, de 27 de maio de 2013
sobre as iniciativas municipais. Mtodos: Pesquisa qualitativa de
abordagem cartogrfica, onde foram explorados trs servios de AD do
SUS, no Estado de So Paulo. Com o intuito de mapear analisadores
significativos para a potencializao da ateno domiciliar como
arranjo assistencial para produo do cuidado orientada
integralidade, diferentes iniciativas compuseram a cartografia,
tais como entrevistas, observao participante e construo de dirio de
campo. Resultados e Discusso: A AD pode ser um importante
dispositivo para anlise das tenses, apostas e desafios que emergem
na prtica dos servios de sade, bem como dar a visibilidade aos
vazios assistenciais na rede. A portaria ministerial quando tomada
como dispositivo, faz normatizaes que vem gerando tenses junto aos
SAD, ao mesmo tempo em que estes criam linhas de fuga ao produzirem
outros arranjos. Concluso: A AD pode ser uma modelagem substitutiva
ao modelo hospitalocntrico, ao mesmo tempo que pode ser uma
estratgia ao enfrentamento de dificuldades que a ateno bsica sofre,
o que pode orientar a construo de arranjos mais permeveis realidade
brasileira. A AD pode ser um dispositivo fundamental para dar
visibilidade aos vazios de ateno e para aprofundar a discusso sobre
a rede e dispositivos de gesto do cuidado. Palavras-chave: Ateno
domiciliar, Servio de assistncia domiciliar; Poltica nacional;
Micropoltica do trabalho; Produo de cuidado.
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PEREIRA, PBA. Home care and the production of care in heatlh:
bets
and challenges. [dissertation]. So Paulo (BR): Faculty of
Public
Health, So Paulo University; 2014.
Abstract Introduction: Home care (HC) is gaining prominence due
to the aging population and the prevalence of non-communicable
diseases and injuries, as an alternative to established modes of
care, being regarded as a powerful modeling organization that
enables the transformation of health care practice, producing a
company committed to creating relationship between worker and
patient with hosting, humanization care and the development of
responsibility. In 2011, the national policy of home care,
regulated by Ordinance 963/GM/MS of May 27, 2013, which sets very
specific guidelines about HC services and establishes the federal
co-financing, which may involve a significant expansion of the
services. Objective: To analyze home care experiences of the NHS,
its potentials and challenges in care production, as well as the
initial effects of Ordinance No. 963/GM/MS of 27 May 2013 on
municipal initiatives. Methods: A qualitative study of cartographic
approach, where three services of HC, located in the State of So
Paulo, were explored. In order to map to significant analyzers to
potentiation of home care as a medical care arrangement for care
production oriented to the integrality, various initiatives were
included in the mapping, such as interviews, participant
observation and construction of a field diary. Results and
Discussion: HC can be an important dispositive for analysis of
tensions, bets and challenges emerging in the practice of health
services, as well as giving visibility to the empty assistance in
the health net. The ministerial order when taken as a dispositive,
make regulations that has sparked tensions with the HC services,
while they create other ways by producing other arrangements.
Conclusion: HC may be a substitutive model of hospital-centered
model, while it may be a strategy to cope with difficulties that
primary care suffers, which can guide the construction of more
permeable arrangements to Brazilian reality. HC can be a key device
for providing visibility to empty the attention and further discuss
about health network and managed care devices. Keywords: Home Care
Services, home health care; National policy; Micropolitics of work;
Care production.
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Sumrio
LISTA DE ABREVIATURA E
SIGLAS.................................................................12
APRESENTAO...................................................................................................14
1.
INTRODUO...................................................................................................17
1.1. ATENO DOMICILIAR UMA MODALIDADE DE ATENO EM
DESTAQUE..................................................................................................17
1.2. O ESTADO DA ARTE DA ATENO DOMICILIAR NO
MUNDO........................................................................................................19
1.3. NOTAS SOBRE A ATENO DOMICILIAR NO
BRASIL.........................................................................................................22
1.4. A ATENO DOMICILIAR NO MBITO DA SADE SUPLEMENTAR
ALGUMAS
CONSIDERAES...............................................................24
1.5. O ESTADO DA ARTE DA ATENO DOMICILIAR NO MBITO DO
SUS................................................................................................................26
1.6. O MARCO REGULATRIO DA ATENO DOMICILIAR NO
BRASIL.........................................................................................................31
2.
OBJETIVOS........................................................................................................36
2.1. OBJETIVO
GERAL......................................................................................36
2.2. OBJETIVOS
ESPECFICOS.........................................................................36
3.
METODOLOGIA...............................................................................................37
3.1. TIPO DE
ESTUDO........................................................................................37
3.2. LOCAL DE
ESTUDO...................................................................................37
3.3. PARTICIPANTES DA
PESQUISA..............................................................37
3.4. TCNICAS E PROCEDIMENTOS PARA A COLETA DE DADOS..........38
4. RESULTADOS E
DISCUSSO........................................................................45
4.1. BREVE RETOMADA A ALGUNS
CONCEITOS.......................................45 4.2. UM POUCO
SOBRE CADA
LUGAR..........................................................48
4.2.1. Sobre o municpio de Embu das
Artes-SP...........................................48 4.2.1.1. A
ateno domiciliar em Embu das Artes-SP - o
SADS.............................................................................................49
4.2.2. Sobre o municpio de So Bernardo do
Campo-SP..............................50
4.2.2.1. A ateno domiciliar do municpio de So Bernardo do Campo
-SP - o
PID.....................................................................................51
4.2.3. Sobre o municpio de
Campinas-SP.....................................................52
4.2.3.1. A ateno domiciliar no municpio de Campinas-SP o SAD
Sul..................................................................................................54
4.3. APOSTAS E DESAFIOS DA ATENO DOMICILIAR UM OLHAR
SOBRE A MICROPOLTICA DO TRABALHO E PRODUO DO
CUIDADO.....................................................................................................55
4.3.1. Dinmica das equipes de ateno domiciliar e suas
apostas................56
-
4.3.2. Interferncias e rudos nos processos de admisso e
alta/excluso dos
usurios na
AD........................................................................................60
4.3.3. Reconhecimento diferena e anlise sobre a prpria
experincia......65 4.4. REPENSANDO A IDEIA DE REDE EM
SADE.......................................66
4.4.1. Produo de dispositivos para construo de rede uma
experincia na gesto do
cuidado....................................................................................68
4.4.2. AD como um observatrio da
rede......................................................69
4.4.2.1. Alguns limites e fragilidades da ateno bsica dando
visibilidade aos
rudos....................................................................72
4.4.2.2. Dificuldades no acesso aos insumos e materiais pela
ateno
bsica..............................................................................................75
4.4.2.3. A falta de investimento pela gesto municipal nos
recursos
materiais para garantir o cuidado pelas equipes de
AD..................................................................................................76
4.4.2.4. Desafios em relao reabilitao e a produo de
Iniquidade.......................................................................................77
4.4.2.5. Dificuldades no acesso e deslocamento aos servios de
sade...............................................................................................81
4.5. O CUIDADOR E A ATENO
DOMICILIAR...........................................81 4.5.1.
Disputas frente aos arranjos familiares e as singularidades do
cuidador/usurio.....................................................................................83
4.5.2. Encontros com o cuidador quando a vida
vaza..................................92
4.6. EM CENA: OS CUIDADOS
PALIATIVOS.................................................94
4.6.1. Disponibilidade aos cuidados paliativos uma aposta na vida
diante da
morte.......................................................................................................95
4.7. O USO DE TECNOLOGIAS DURAS NA
AD...........................................100 4.8. AD E AS
PORTARIAS MINISTERIAIS UMA POLTICA EM
CONSTRUO..........................................................................................102
4.8.1. A Portaria n 963/GM/MS como
dispositivo.....................................103 4.8.2. Sobre a
composio das
equipes........................................................106
4.8.3. Os desenhos da AD o que prope a portaria e tenses que
emergem
na
prtica...............................................................................................108
4.8.4. As modalidades de assistncia ou AD1, AD2 e
AD3.........................110
5. CONSIDERAES
FINAIS...........................................................................114
6. REFERNCIAS
BIBLIOGRFICAS............................................................118
APNDICE
.............................................................................................................126
APNDICE 1 TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO DE
PARTICIPAO NA
PESQUISA...........................................................................126
ANEXOS..............................................................................................
ANEXO 1 - APROVAO DO COMIT DE TICA DA FACULDADE DE SADE
PBLICA-USP...........................................................................................128
-
ANEXO 2 - CURRICULO LATTES
PESQUISADORA.........................................131 ANEXO 3 -
CURRICULO LATTES
ORIENTADOR.............................................133
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AD Ateno Domiciliar
AD1 Modalidade de Ateno Domiciliar Nvel 1
AD2 Modalidade de Ateno Domiciliar Nvel 2
AD3 Modalidade de Ateno Domiciliar Nvel 3
ADT/AIDS Assistncia Domiciliar Teraputica em AIDS
AIDS Sndrome da Imunodeficincia Adquirida
ANS Agncia Nacional de Sade Suplementar
ANVISA Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria
APS Ateno Primria em Sade
CGAD Coordenadoria Geral da Ateno Domiciliar
CHCA Canadian Home Care Association
CID-10 Classificao Internacional de Doenas e Problemas
Relacionados Sade Dcima Reviso
CIF Classificao Internacional de Funcionalidade, Incapacidade
e
Sade
CNES Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Sade
COBRAD Congresso Brasileiro de Ateno Domiciliar
COFEN Conselho Federal de Enfermagem
CP Cuidados Paliativos
CREAS Centro de Referncia Especializado de Assistncia Social
CRI Centro de Referncia do Idoso
DAB Departamento de Ateno Bsica
EMAD Equipe Multiprofissional de Ateno Domiciliar
EMAP Equipe Multiprofissional de Apoio
ESF Estratgia Sade da Famlia
EURHOMAP Mapping Professional Home Care in Europe
FSESP Fundao Servio Especial de Sade Pblica
FSP Faculdade de Sade Pblica
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GT Grupo de Trabalho
HSPE Hospital do Servidor Pblico do Estado de So Paulo
IAMSPE Instituto de Assistncia Mdica do Servidor Pblico
Estadual
INPS Instituto Nacional de Previdncia Social
INSALUD Instituto Nacional de Salud
LAPA Laboratrio de Planejamento e Administrao da UNICAMP
MS Ministrio da Sade
NASF Ncleo de Apoio Sade da Famlia
NEPHOS Ncleo de Educao Permanente e Humanizao em Sade
PS Pronto-Socorro
RDC Resoluo da Diretoria Colegiada
RN Resoluo Normativa
SAD Servio de Assistncia Domiciliar
SAMDU Servio Mdico Domiciliar e de Urgncia
SAMU Servio de Atendimento Mvel de Urgncia
SMS Secretaria Municipal de Sade
SUS Sistema nico de Sade
UBS Unidade Bsica de Sade
UFF Universidade Federal Fluminense
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
UNICAMP Universidade Estadual de Campinas
UPA Unidade de Pronto Atendimento
USP Universidade de So Paulo
-
APRESENTAO
A inteno de estudar a modelagem de ateno domiciliar e a produo
do
cuidado, bem como a poltica que a institui no SUS e os efeitos
nos processos
micropolticos originou-se com base em minhas experincias durante
a graduao e
como trabalhadora da sade no SUS.
Desde a graduao em fisioterapia no perodo de 2002-2006, na
Universidade
Estadual de Londrina-PR, a sade coletiva j fazia parte de minhas
inquietaes.
Primeiro porque na grade curricular o tema da sade coletiva era
nfimo; resumia-se a
apenas uma disciplina no segundo ano, no qual poucas
problematizaes eram
realizadas acerca da sade assunto de tremenda complexidade e que
se resumia
decoreba. O curso era voltado principalmente para a formao
clnica e no eram
priorizadas discusses sobre o SUS que era o lugar em que
estvamos realizando a
nossa formao!
Em um segundo momento, durante a participao no movimento
estudantil por
meio do Centro Acadmico de Fisioterapia, conheci estudantes de
outros cursos da
rea da sade e juntos formamos um grupo de discusso sobre sade e
educao, fora
dos espaos da universidade, no qual comecei a ter o primeiro
contato com as
bibliografias e autores fundamentais para a construo do SUS.
Esse grupo, que era formado por militantes de movimentos
estudantis, mas fora
do espao dos centros acadmicos e da academia, foi um dos
organizadores locais do
VER-SUS (Vivncias e estgios na realidade do SUS) em Londrina-PR,
por meio do
qual tive a oportunidade de conhecer um pouco mais da realidade
local do sistema de
sade, no qual estvamos completamente apartados enquanto alunos.
Tambm fui
estagiria no VER-SUS em Blumenau-SC, onde as discusses sobre a
sade coletiva,
o processo de trabalho, a integralidade e necessidades em sade
se acaloraram e me
despertaram ainda mais a busca para aprofundar-me na rea.
Aps seis meses de formada, em meados de 2007, recebi a grata
surpresa de
ser convocada pelo concurso pblico para a Secretaria Municipal
de Sade de
-
Vinhedo, como fisioterapeuta, local em que estou at hoje. Nos
anos em que trabalhei
no Ambulatrio Municipal de Fisioterapia, sempre estive instigada
a tentar produzir
redes e articulao junto a setores dentro e fora da sade e a
estimular espaos de
conversa para colocarmos em questo o nosso cotidiano de
trabalho, que muitas vezes
era desgastante e solitrio.
Mas, foi na experincia de trabalhar por pouco mais de um ano em
um servio
recm inaugurado de ateno domiciliar municipal, que fui
atravessada por questes
antes no percebidas e vivenciadas. Foi uma experincia
gratificante e que me
mobilizou muito, tanto pela aposta que eu tinha no trabalho em
equipe
multiprofissional e a possibilidade de construir cuidado no
espao do outro com o
outro, quanto pelas dificuldades na gesto e organizao do servio,
que foi construdo
com um vis poltico-partidrio.
Para dar conta de toda a desterritorializao produzida frente ao
trabalho na
ateno domiciliar, busquei fontes em que eu pudesse me embeber de
autores,
conversas e problematizaes acerca do trabalho em sade e, mais
especificamente,
na modelagem de ateno domiciliar. No coletivo do Conexes, grupo
de estudos
coordenado na poca pelos professores Ricardo Teixeira e Srgio
Resende de
Carvalho, na UNICAMP, tive as minhas primeiras aproximaes com os
temas da
subjetividade e cuidado em sade e autores como Deleuze e
Espinosa, que me afetaram
bastante.
Em um dos momentos em que procurava bibliografias que me
apoiassem no
cotidiano da ateno domiciliar, entrei em contato com as produes
da linha da
Micropoltica do Trabalho e o Cuidado em Sade, da UFRJ, sobre a
pesquisa nacional
sobre o estado da arte da ateno domiciliar, que foram a minha
inspirao para a
elaborao de um projeto de pesquisa nesse tema.
Desde os primeiros contatos com a Profa. Laura, a quem admiro e
por quem
tenho muito carinho, fui acolhida em minhas angstias e
questionamentos acerca do
cotidiano dos servios de sade, da solido enquanto trabalhadora,
das experincias
que me marcaram, como a ateno domiciliar, me aproximando cada
vez mais da
micropoltica do trabalho e do cuidado em sade. Isso me instigou
a persistir na
realizao de um projeto de pesquisa sobre o tema, considerando a
sua potncia na
-
produo de modos no-hegemnicos e a novidade da inaugurao de uma
poltica de
ateno domiciliar e que efeitos ela produziria.
Como a vida mesmo uma caixinha de surpresas, fui intensamente
atravessada
durante o mestrado com a perda de uma pessoa muito especial,
minha tia. Em sete
meses de tratamento de cncer de pulmo, eu vivi em ato o que a
vida nua - a potncia
de vida que existe mesmo no limite de foras a que uma pessoa
pode chegar (conceito
descrito por Agambem). Experimentei, junto de minha famlia, a
sensao de
impotncia, de choro contido, de negao, de dvidas sobre o que e
como fazer, mas
tambm de esperana e de aprendizado sobre a vida e a morte nos
cuidados paliativos.
O seu desejo foi respeitado, que era de morrer em casa, apoiada
pela equipe de ateno
domiciliar que foi essencial para dar suporte ela e ao meu tio
nessa hora to difcil.
A aposta radical no respeito ao outro foi diferena marcante para
produzir vida, na
iminncia da morte e cuidado.
E so todas essas histrias e apostas que trago comigo para a
elaborao dessa
dissertao.
-
17
1. INTRODUO
1.1. ATENO DOMICILIAR UMA MODALIDADE DE ATENO
EM DESTAQUE
Ao longo do sculo XX, ocorreu uma mudana significativa nos
aspectos
demogrficos, epidemiolgicos, sociais e culturais no mundo,
observando-se intenso
processo de urbanizao, aumento da longevidade e da expectativa
de vida ao nascer
e inverso do padro de morbidade, com reduo das doenas
infectocontagiosas e
aumento das doenas e agravos no transmissveis. Em decorrncia
desses fatores, h
mudana do perfil de adoecimento, com uma presena cada vez mais
significativa de
agravos crnicos implicando graus variados de dependncia, e a
inverso da pirmide
etria com o intenso envelhecimento populacional (WHO, 2008;
SILVA et al, 2010).
Em funo disso, vem sendo produzidas mudanas na lgica de
organizao da
ateno sade: mudanas no papel dos hospitais, a ambulatorizao
de
procedimentos e humanizao do cuidado, entre outros. Os hospitais
cada vez mais se
destinam ateno de casos graves e clinicamente instveis,
principalmente por causa
dos custos e de temas relacionados qualidade da ateno. Assim, se
evita a
hospitalizao para diminuir a exposio a riscos como os de infeces
hospitalares
(LACERDA et al, 2006; KERBER et al, 2008).
Desta forma, vem se intensificando a busca por modalidades
alternativas de
ateno, dentre essas, a ateno domiciliar (AD) merece destaque
(AMARAL et al,
2001; LACERDA et al, 2006; FEUERWERKER e MERHY, 2008; KERBER et
al,
2008).
Pode-se dizer haver duas vertentes principais que explicam o
investimento
crescente nessa modalidade de organizao da ateno: iniciativas
relacionadas
reduo de gastos, racionalizao da utilizao de recursos e
iniciativas voltadas
reorganizao e ressignificao de modos de produo do cuidado
considerando as
-
18
necessidades de sade e a intensividade do cuidado1 por elas
requerida, tomando a
integralidade como referncia (LACERDA et al, 2006; MERHY e
FEUERWERKER,
2007; FEUERWERKER e MERHY, 2008).
O conceito de AD apresenta diferenas segundo cada pas e os
diversos
servios existentes, sendo que cuidado em domiclio um termo
elstico que pode
assumir conotaes distintas (WHO, 2012).
Segundo o estudo EURHOMAP (WHO, 2012), define-se ateno
domiciliar
como a prestao de cuidados a curto e longo prazo realizada no
domiclio, que pode
ser da ordem da preveno, assistncia a pacientes agudos,
reabilitao e cuidados
paliativos. Tambm pode ser definida como o conjunto de
atividades assistenciais,
sanitrias e sociais que se realizam no domiclio, incluindo a
execuo de aes de
cunho integral, implicando necessidade de coordenao e relaes
entre os servios e
recursos assistenciais (GONZLEZ RAMALLO et al, 2002; WHO, 2008).
Tem como
objetivos dar cobertura assistencial queles no atendidos em
outros tipos de servios,
assegurar a continuidade do atendimento integral aps a alta
hospitalar e atuar como
ponte entre o hospital e a ateno primria, otimizando a gesto dos
recursos existentes
(ALONSO e ESCUDERO, 2010).
Inicialmente, as aes no domiclio estavam orientadas a transferir
o hospital
para a casa do paciente, processo conhecido como home care.
Apesar de muitos pases
ainda se referirem a ateno domiciliar com o termo hospitalizao
em domiclio, as
aes efetuadas so diferentes do previsto originalmente no home
care; essas
modificaes ocorreram principalmente pelo alto gasto implicado em
dispensar a
tecnologia hospitalar para cada domiclio. Percebe-se a existncia
de diferentes lgicas
de atuao dos servios de AD no mundo. Os servios vinculados ateno
bsica
trabalham de forma a evitar a internao, j os vinculados ao
hospital incentivam a
desospitalizao do paciente a fim de descongestionar os leitos
hospitalares.
O componente de reduo de gastos e da racionalizao da utilizao
dos
recursos, embora presentes em todos os mbitos da prestao de
servios de sade,
1 Intensividade do cuidado: paciente clinicamente estvel no
sentido de permitir que o cuidado seja realizado no espao
domiciliar, porm a complexidade do seu estado de sade exige que
estes sejam feitos com maior frequncia;
-
19
tiveram papel preponderante no crescimento significativo da AD
na sade
suplementar, implicando aumento acelerado da criao de empresas
prestadoras de
servios na rea e transferncia de gastos para as famlias e para o
SUS (CUNHA,
2007; FEUERWERKER e MERHY, 2008).
Quando comparado aos custos da assistncia hospitalar, alguns
estudos
apontam que a adoo da AD para o cuidado do paciente com AVC pode
significar a
reduo proporcional na ordem de 52% a 58% (PEREIRA, 2005; REHEM e
TRAD,
2005). Porm, segundo ANDREAZZI e BAPTISTA (2007) existem dvidas
em
relao a real reduo de custos promovida pelo servio de AD,
considerando que os
servios existentes so muitas vezes distintos e de difcil
padronizao para que sejam
avaliados. Alm disso, no se considera o gasto indireto atribudo
famlia quando o
usurio retorna ao espao domiciliar, com a aquisio de
medicamentos, recursos de
sade e a disponibilidade de um cuidador, seja ele particular ou
um membro da famlia
que muitas vezes deixar de trabalhar a fim de promover o cuidado
integral
(ANDREAZZI e BAPTISTA, 2007).
1.2. O ESTADO DA ARTE DA ATENO DOMICILIAR NO MUNDO
A AD apresentou grande crescimento na Europa e Amrica do Norte e
seu
desenvolvimento nestes pases tem ocorrido principalmente por ser
uma alternativa
efetiva para a diminuir custos hospitalares e pela possibilidade
de ofertar um cuidado
mais humanizado e acolhedor no ambiente do paciente, alm de ser
uma modalidade
vivel e potente do ponto de vista sanitrio, social e econmico
(COTTA et al, 2002,
REHEM e TRAD, 2005; WHO, 2008, 2012).
O primeiro servio de AD como extenso da cobertura hospitalar
surgiu em
1947 vinculado ao Hospital Guido Montefiore de Nova York, nos
Estados Unidos, a
fim de descongestionar os leitos hospitalares e promover um
ambiente mais acolhedor
e psicologicamente favorvel ao tratamento do enfermo em seu
domiclio (MENDES
-
20
JNIOR, 2000; COTTA et al, 2002; GONZLEZ RAMALLO et al, 2002;
REHEM
e TRAD, 2005), alm de ser uma alternativa populao de baixa renda
que no tinha
condies em arcar com o seguro mdico (GONZLEZ RAMALLO et al,
2002).
Anteriormente, no sculo XIX e incio do XX, eram realizadas aes
domiciliares pela
categoria da enfermagem, principalmente com objetivo educativo e
preventivo, a fim
de combater as epidemias por doenas infectocontagiosas (MENDES
JR, 2000).
Na Europa, a primeira unidade de assistncia domiciliar teve
lugar na Frana,
no Hospital de Tenon de Paris em 1951, sendo chamada de
hospitalizao em
domiclio. Em 1957, na mesma cidade, foi criado um servio no
governamental sem
fins lucrativos chamado de Sant Service que referncia at hoje no
cuidado em
domiclio a pacientes crnicos e terminais. (COTTA et al, 2001;
GONZLEZ
RAMALLO et al, 2002). Em 1992, o sistema de sade nacional francs
j reconhecia
a modalidade de hospitalizao em domiclio como uma alternativa
hospitalizao
(COTTA et al, 2001).
A partir da dcada de 60, diversos servios de AD foram criados na
Europa de
acordo com a necessidade e a demanda de cada local e
regulamentados conforme cada
sistema nacional de sade (COTTA et al, 2001).
No Reino Unido foi implantado o hospital care at home ou
hospital at home
em 1965. Durante os anos setenta, iniciaram na Sucia e na
Alemanha o hospital based
at home e o haslische krankenpflege, respectivamente. Nos anos
oitenta, surgiram as
primeiras unidades na Espanha e na Itlia, com o trattamento a
domicilio ou
ospedalizzacione a domicilio. No Canad, as primeiras experincias
ocorreram a partir
da dcada de sessenta para a alta precoce de pacientes em ps
cirrgico e estendido ao
atendimento de pacientes agudos em 1987, com a experincia
chamada de hspital
extra-mural (COTTA et al, 2001; GONZLEZ RAMALLO et al, 2002).
Na
Espanha, a AD se desenvolveu principalmente na Comunidade
Valenciana e no Pas
Basco, sendo a primeira unidade inaugurada em 1981, no Hospital
Provincial de
Madrid. Em 1983, a assistncia domiciliar foi includa na rede de
sade espanhola pelo
Instituto Nacional de Salud (INSALUD), sendo reconhecida como
Servio de
Hospitalizao a Domiclio trs anos aps. Concomitantemente, outros
grandes
hospitais das duas comunidades inauguraram seus respectivos
servios, a fim de
-
21
diminuir os custos e descongestionar os leitos hospitalares,
porm sem um plano
diretor que unificasse os conceitos, dotaes e critrios destas
unidades (GONZLEZ
RAMALLO et al, 2002).
Inicialmente vinculada ao mbito hospitalar, a AD foi objeto de
embate na
Espanha para sua regulamentao ao final dos anos oitenta e na
dcada de noventa, na
Comunidade Valenciana e Pas Basco, sendo estabelecido forte
investimento para sua
implantao na ateno primria. Nas demais comunidades, no h
normatizao desta
modalidade. (COTTA et al, 2001; GONZLEZ RAMALLO et al,
2002).
A vinculao do servio de AD bastante varivel na Europa, enquanto
no
Reino Unido a principal conexo com a ateno primria em sade
(APS), outros
pases optaram por vincular seus servios estrutura hospitalar
(COTTA et al, 2001;
ALONSO e ESCUDERO, 2010).
H diferenas em relao ao pblico-alvo na AD de cada pas, sendo
que
muitos esto voltados assistncia de pacientes agudos e idosos,
que necessitam de
maior intensidade do cuidado, e outros aos cuidados paliativos e
ateno a
enfermidades degenerativas. A Frana um exemplo em que o foco so
pacientes
crnicos e em cuidados paliativos (COTTA et al, 2001; GONZLEZ
RAMALLO et
al, 2002).
Considerando o crescimento heterogneo dos servios de AD nos
pases
europeus e as diferenas apresentadas em relao ao conceito,
modelo adotado,
desenvolvimento e regulamentao, alguns esforos no sentido de
conhecer mais a
fundo estas experincias esto sendo realizados por diversos rgos.
Desde 1996, a
Oficina Europia da Organizao Mundial de Sade coordena o programa
From
Hospital to Home Health Care que tem como objetivo promover,
padronizar e registrar
esta modalidade assistencial (COTTA et al, 2001; WHO, 2012).
Em 2006, a Comisso Europia elaborou o Projeto EURHOMAP
(Mapping
Professional Home Care in Europe). O estudo foi desenvolvido e
coordenado pelo
Institute for Health Services Research da Holanda, em colaborao
com outros
institutos europeus, no perodo de 2008 a 2010, a fim de conhecer
aspectos no campo
da AD nos trinta e um pases do continente e obter informaes
sobre quatro aspectos
principais - poltica pblica e regulao, financiamento, organizao
e prestao de
-
22
servio, clientes e cuidadores informais -, com o objetivo de
facilitar a elaborao de
polticas e a tomada de deciso por parte dos gestores, alm de
identificar os novos
desafios. (GENET et al, 2011; WHO, 2012)
Em uma das fases do projeto realizou-se uma reviso sistemtica da
literatura
cientfica sobre AD na Europa na ltima dcada, identificando que
apesar de haver
semelhanas, a configurao de cada servio dependente da histria
e
desenvolvimento de cada pas, sendo as polticas pblicas
determinantes em seu
processo (GENET et al, 2011; WHO, 2012).
No mesmo sentido, a Associao Canadense de Home Care (Canadian
Home
Care Association CHCA) lanou ao final de 2012 um estudo
intitulado Home Care
Policy Lens. Tem como objetivo delinear a situao da assistncia
domiciliar em seu
sistema nacional de sade, bem como auxiliar as autoridades e os
gestores no
desenvolvimento e avaliao das polticas que enfatizam o cuidado
integral,
identificando problemas no desempenho e a capacidade na prestao
do cuidado
domiciliar. A iniciativa contar, entre outras aes, com: reviso
de literatura
vinculando assistncia domiciliar a modelos assistenciais de
ateno integral, fruns
nacionais com a participao dos interessados no assunto e suas
impresses acerca da
nova poltica nacional2.
1.3. NOTAS SOBRE A ATENO DOMICILIAR NO BRASIL
O crescimento da AD no Brasil foi decorrente dos mesmos fatores
que
influenciaram o seu desenvolvimento em escala mundial.
2 Citado na referncia bibliogrfica como: POLICY lens to focus
integration of home care under development. Canadian Medical
Association Journal (CMAJ), Ottawa, v. 184, n. 3, p. e171-72, fev.
2012.
-
23
Provavelmente a primeira experincia brasileira em AD foi
realizada pelo
Servio de Assistncia Mdica Domiciliar e Urgncia (SAMDU), em
1949, rgo
vinculado inicialmente ao Ministrio do Trabalho e incorporado ao
INPS em 1967,
como exigncia do sindicato dos trabalhadores, a fim de suprir a
carncia no
atendimento prestado pelo servio de urgncia vigente na poca
(MENDES JNIOR,
2000; REHEM e TRAD, 2005).
Em 1967 foi criado o Servio de Assistncia Domiciliar do Hospital
de
Servidores Pblicos do estado de So Paulo (HSPE) ligado ao
Instituto de Assistncia
Mdica ao Servidor Pblico Estadual (IASMPE), funcionando como a
primeira
atividade planejada em AD e como extenso da cobertura da
assistncia hospitalar.
Eram realizados atendimentos a pacientes com doenas crnicas e/ou
em situao
social que dificultasse o acesso a unidade ambulatorial e alta
precoce de pacientes em
ps-cirrgico da rea ortopdica e cirurgia geral capazes de se
restabelecer no
domiclio (MENDES JNIOR, 2000; REHEM e TRAD, 2005).
A partir da dcada de 90, os servios de ateno domiciliar
apresentaram franco
crescimento no Brasil, principalmente nos grandes centros, tanto
no SUS quanto na
iniciativa privada (AMARAL et al, 2001; FEUERWERKER e MERHY,
2008; SILVA
et al, 2010), geralmente orientadas para a extenso de cobertura
e/ou para a alta
hospitalar precoce (SILVA et al, 2010).
Apesar de existirem muitas dimenses do cuidado domiciliar e
grande
diversidade de modelagens e organizaes, a sistematizao e
registros de servios
pblicos e privados ainda so escassos e limitados s experincias
consideradas como
bem-sucedidas ou mais antigas. (REHEM e TRAD, 2005; SILVA et al,
2010).
At recentemente, a inexistncia de uma poltica nacional com
cofinanciamento restringiu a expanso das iniciativas pblicas, j
que todo o
investimento ficava a cargo dos gestores locais (municipais ou
estaduais)
(ANDREAZZI e BAPTISTA, 2007).
-
24
1.4. A ATENO DOMICILIAR NO MBITO DA SADE
SUPLEMENTAR ALGUMAS CONSIDERAES
As experincias de AD vinculadas iniciativa privada tiveram
grande
expanso nos ltimos vinte anos (AMARAL et al, 2001; REHEM e TRAD,
2005). A
dificuldade em descrever um nmero preciso e atual de servios
deve-se ao fato de a
AD no ser regulada e nem estar includa no rol de procedimentos
obrigatrios da
Agncia Nacional de Sade Suplementar (ANS) (SILVA, 2013). Assim
sendo, sua
regulamentao feita apenas pela Agncia Nacional de Vigilncia
Sanitria
(ANVISA), por meio da Resoluo da Diretoria Colegiada (RDC no
11/2006) que
define os requisitos bsicos para o funcionamento destes servios,
mas no estabelece
critrios de contratualizao e mecanismos de regulao (BRASIL,
2006; SILVA,
2013).
A Resoluo Normativa no211/2010 da ANS (BRASIL, 2010) inclui no
rol de
procedimentos que a internao domiciliar poder ser realizada pela
operadora em
substituio internao hospitalar quando a mesma dispuser deste
servio, mediante
a RDC ANVISA no 11/2006 (BRASIL, 2006). Estar sujeita contratao
deste
servio parte quando no operar como substituto do servio
hospitalar, uma vez que
no considerado um procedimento obrigatrio. Tambm poder oferecer
a
medicao de uso oral domiciliar, de forma facultativa como foi
estabelecida pela RN
ANS no310/2012 (BRASIL, 2012b).
O Relatrio Tcnico da Pesquisa Implantao de Ateno Domiciliar
no
mbito da Sade Suplementar Modelagem a partir das Experincias
Correntes3
realizada pela Universidade Federal Fluminense (UFF) em 2007, j
apontava que os
servios de AD vinculados s operadas de sade suplementar, foram
implantados na
lgica da racionalizao dos custos e concedidos como benefcio a
sua clientela,
mediante contratao, embora os usurios a considerassem como um
direito adquirido.
3 Relatrio Tcnico da Pesquisa intitulada Implantao de Ateno
Domiciliar no mbito da Sade Suplementar Modelagem a partir das
Experincias Correntes, realizada pela Universidade Federal
Fluminense em 2007, sob coordenao do Prof. Dr. Tlio Batista
Franco.
-
25
Indica alguns paradoxos criados pela falta de regulamentao do
servio de AD pela
ANS, que apesar de no estar formalmente includo como
procedimento obrigatrio,
reconhecido pelo judicirio e ofertado em larga escala. Pela
falta de consenso entre
as partes e de normativas referentes AD, houve um aumento dos
recursos
administrativos e judicirios, principalmente relacionados ao
critrio de alta do
paciente do servio de AD (FRANCO, 2007; FRANCO e MERHY,
2008).
No caso da sade suplementar, a questo outra. O conflito se
estabelece entre o direito do cidado ao acesso universal sade, o
direito do consumidor aos bens a que tem acesso em funo de seu
poder de compra e o direito das empresas ao lucro na rea da sade
(SILVA, 2013).
Algumas pesquisas que avaliaram servios de AD de operadoras
brasileiras
identificaram que os mesmos, pelo fato de serem ofertados de
forma adicional, estaro
sujeitos modelagem e regras pr-estabelecidas pela empresa, sendo
difcil a
mensurao da quantidade de experincias (FRANCO e MERHY, 2008;
MARTINS
et al, 2009).
Alm disso, h um questionamento em relao desrresponsabilizao
das
operadoras, que fazem a cobertura de todos os gastos quando o
paciente est em
internao hospitalar, mas quando o mesmo cuidado pelo servio de
AD da
operadora, os gastos relacionados aos insumos e materiais so
transferidos para a
famlia e tambm para o SUS. Vem se discutindo se os motivos para
a oferta da AD
pela sade suplementar levam em considerao as lgicas de mercado
ao invs das
necessidades de sade dos usurios e a produo de cuidado de forma
mais
humanizada, apesar de experimentarem bons resultados em alguns
grupos especficos
em que ofertada a AD (SILVA, 2013).
Dessa forma, ainda carecem medidas de regulamentao da AD na
sade
suplementar que garantam o direito ao usurio em usufruir dessa
modalidade de
ateno por sua operadora, diminuir as tenses existentes nesse
campo tanto no
campo do pblico-privado como na relao com o usurio -, e
estabelecer critrios
mais claros acerca dos parmetros de cobertura, critrios mnimos
de oferta e valores
de pagamento (SILVA, 2013).
-
26
1.5. O ESTADO DA ARTE DA ATENO DOMICILIAR NO MBITO
DO SUS
Como subsdio a criao de uma poltica de ateno domiciliar, foi
realizada
uma pesquisa nacional pela Linha de Pesquisa Micropoltica do
trabalho e o cuidado
em sade da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
encomendada e
financiada pelo Ministrio da Sade do Brasil (MS) em 2006,
tomando como base
servios de AD no mbito do SUS e reconhecidos pelo MS4. Foram
analisados, dentre
outros elementos, o projeto tecnopoltico, a organizao, processo
de trabalho e arranjo
tecnolgico de trs experincias ligadas a hospitais e quatro
ligadas a secretarias
municipais de sade (SMS), nos seguintes municpios: Londrina-PR,
Rio de Janeiro-
RJ, Belo Horizonte-MG, Sobral-CE e Marlia-SP.
Observou-se a existncia dos mais variados arranjos e perfis de
atendimento:
cuidados paliativos, acompanhamento de recm-nascidos prematuros,
cuidado a
pacientes com sndrome da imunodeficincia adquirida (AIDS),
pacientes em restrio
crnica ao leito e feridas. Identificaram-se diferentes
interesses e compreenses entre
trabalhadores e gestores acerca do projeto tecnopoltico e
arranjo adotado e
heterogeneidade na organizao e dinmica de trabalho das
equipes.
(FEUERWERKER e MERHY , 2008).
Constatou-se principalmente que cada experincia modulada
dependendo do
tipo de pacientes atendidos pelo servio, implicando diferentes
arranjos tecnolgicos
e desenhos singulares, apesar de serem encontradas
similaridades. (REHEM e TRAD,
2005; FEUERWERKER e MERHY, 2008; SILVA et al, 2010). De acordo
com o
objeto de trabalho de que a equipe se ocupa, so produzidos
diferentes arranjos e
formas de organizao do trabalho no servio de AD, tambm
influenciados pela
insero/vinculao da AD na rede de ateno sade. Tudo isso implica
na
4 Projeto de pesquisa intitulado Implantao de Ateno Domiciliar
no mbito do SUS Modelagem a partir das Experincias Correntes,
demandada pelo Ministrio da Sade ao grupo de pesquisa de Redes
Substitutivas em Sade, da linha de pesquisa Micropoltica do
Trabalho e o Cuidado em Sade, da ps-graduao em Clnica Mdica da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
-
27
construo de aes mais ou menos potentes e inovadoras no cuidado
do paciente
(FEUERWERKER e MERHY, 2008).
A maior parte dos servios de AD vinculada ao hospital atendia um
pblico
especfico, definido de acordo com seu quadro clnico ou
patologia, tais como usurios
que necessitavam de assistncia ventilatria, acompanhamento de
feridas, recm-
nascidos prematuros e baixo peso, funcionando com a lgica da
alta precoce, reduo
de custos, preveno de riscos e humanizao da assistncia
(FEUERWERKER e
MERHY, 2008; SILVA et al, 2010).
Um exemplo o acompanhamento a recm-nascidos prematuros pela
equipe
AD de um servio filantrpico de Belo horizonte/MG, que atuava
junto com a famlia
prestando cuidados no domiclio na perspectiva da vida nova.
Inclusive em situaes
adversas, quando a gravidez foi de difcil aceitao, a equipe e
famlia tentavam
construir o cuidado compartilhado em um ambiente onde os pais
tinham mais
autonomia para cuidar, favorecendo a aceitao da criana
(FEUERWERKER e
MERHY, 2008; SILVA et al, 2010).
Em todos os municpios pesquisados existiam equipes de AD que
faziam
atendimento aos pacientes crnicos acamados, geralmente por um
longo perodo de
tempo, com maior possibilidade de melhora em virtude do
tratamento no domiclio e
mostrando a possibilidade de se construir linhas de cuidado
integral e compartilhado.
As equipes descreveram situaes de atendimento adversas, em que
necessitavam de
solues criativas para lidar com a famlia e a escassez de
recursos e materiais, com
bons resultados na recuperao de feridas e sequelas motoras, alm
da construo de
autonomia do cuidador ou o paciente (FEUERWERKER e MERHY,
2008).
Em Londrina/PR, a assistncia a pacientes em cuidados paliativos
era realizada
por uma equipe especfica, enquanto que nos demais municpios, por
uma equipe
generalista. Percebeu-se que a equipe especificamente orientada
aos cuidados
paliativos, como trabalhava na perspectiva de oferecer ao usurio
e a famlia a
possibilidade de conviver melhor com a situao da morte iminente,
era mobilizada
fortemente pelas questes culturais, religiosas e sociais. O
vnculo entre trabalhadores,
usurios e sua famlia era produzido pela possibilidade de ofertar
conforto,
solidariedade e cuidado (FEUERWERKER e MERHY, 2008).
-
28
J no cuidado domiciliar ao paciente com AIDS, as equipes atuavam
na
possibilidade de prolongar e ampliar sua perspectiva de vida e
para tanto, uniam
esforos no sentido de conseguir a adeso do paciente no
tratamento proposto,
resgatando e construindo redes de apoio, e a autonomia do mesmo
em seu cuidado. A
potncia do trabalho da equipe estava na produo do cuidado em um
universo muitas
vezes polmico e complexo que demandava solues criativas e
inovadoras, a
superao de preconceitos e o resgate de redes de solidariedade
(FEUERWERKER e
MERHY, 2008). Em Belo Horizonte/MG havia a experincia de gesto
compartilhada
entre dois servios de AD destinados ao tratamento do paciente
com AIDS, um sob
tutela estadual e outro municipal, que atuavam regionalizando os
atendimentos
(SILVA et al, 2010).
A antibioticoterapia endovenosa era realizada em todos os
servios de AD para
completar o tratamento das infeces agudas de pacientes oriundos
do hospital. Esse
tipo de assistncia se caracterizava como o de menor
possibilidade de criao de
vnculo, em funo da alta rotatividade e de uma insero mais
pontual no domiclio
do paciente (FEUERWERKER e MERHY, 2008).
Seguindo a mesma lgica, os servios de AD vinculados s unidades
de pronto-
atendimento (UPA) tinham como foco o atendimento a pacientes
com
descompensaes clnicas agudas, com o objetivo de evitar a
internao hospitalar.
Este servio atuava na lgica da pr-hospitalizao, oferecendo
cuidado mais intensivo
que o promovido pela ateno bsica. Os pesquisadores sugerem que
as duas situaes
descritas anteriormente so marcadas por aes mais instrumentais,
que tem como
objetivo capacitar o prprio paciente para o seu cuidado, quando
possvel, com pouca
participao da equipe, e menor possibilidade de criao de vnculo
entre usurio e
trabalhador, sendo a forma menos potente da AD (SILVA et al,
2010).
Em Sobral/CE foi analisado o nico servio de AD efetivado
inteiramente pelas
equipes da ESF, que apesar de sua dedicao, encontravam muitas
dificuldades para
conciliar a necessidade do cuidado intensivo para uns e toda a
demanda de trabalho
que a ESF exigia, alm da necessidade de utilizar recursos
materiais no disponveis
na ateno bsica (FEUERWERKER e MERHY, 2008).
-
29
Ficou evidente tambm a existncia de certa disputa entre
trabalhadores e
usurio/cuidador em torno da elaborao do plano teraputico. Foram
observadas
equipes em que o plano teraputico era construdo de forma
compartilhada com a
famlia, havendo singularizao do cuidado ao considerar os
recursos disponveis da
famlia, suas propostas e necessidades, at equipes que
transferiam o hospital para o
domiclio do paciente, e construam o plano teraputico na lgica da
racionalidade
tcnico-cientfica, tratando o cuidador como mero executor do seu
plano (DE
CARVALHO et al, 2007; MERHY e FEUERWERKER, 2007; FEUERWERKER
e
MERHY, 2008; DE CARVALHO, 2009; SILVA et al, 2010) .
Em um dos planos de anlise das experincias estudadas, foi
utilizada a
produo de Merhy (2002) que trata sobre o trabalho vivo em ato e
as tecnologias em
sade. Compreende-se que todo o trabalho composto por trs
diferentes tipos de
tecnologias e que dependendo do arranjo com que so combinados
pode-se configurar
um trabalho mais centrado em aes relacionais ou mais pautado
pelos procedimentos
e equipamentos.
As tecnologias duras representam os equipamentos, mquinas,
instrumentos
como o estetoscpio, exames laboratoriais e de imagem,
medicamentos, que so
produtos j existentes, fruto de um trabalho anterior e
disponibilizadas para serem
utilizadas de uma certa maneira. As tecnologias leve-duras
representam a combinao
do saber-estruturado (da clnica, da epidemiologia, dentre
outros) com o trabalho vivo
do trabalhador da sade durante o encontro com o usurio, que
poder estabelecer uma
relao centrada somente no saber j concebido ou mostrar-se aberto
aos desafios
decorrentes da interao com o usurio. As tecnologias leves so as
utilizadas para
construir as relaes no encontro entre trabalhadores e usurios,
que acontece em ato,
por meio da escuta, da criao de vnculo e confiana. Esse tipo de
tecnologia que
possibilitaque o profissional se aproxime da singularidade de
cada usurio, suas
necessidades, contexto de vida, enriquecendo a produo do plano
teraputico de cada
indivduo (MERHY, 2002; MERHY E FRANCO, 2007; MERHY e
FEUERWERKER, 2009).
Dependendo da forma em que so combinadas essas tecnologias, a
produo
de cuidado pode ser mais pautada na lgica instrumental, sem
participao ativa do
-
30
usurio, ou mais pautada na lgica relacional, em que h
compartilhamento do cuidado
e possibilidade de se produzir aes que reconhecem os usurios
como sujeitos
singulares, mesmo que haja disputa na construo do plano
teraputico (MERHY,
2002; MERHY E FRANCO, 2007; MERHY e FEUERWERKER, 2009)
A disputa se faz ento entre a institucionalizao da casa como um
espao de cuidado dominado pela racionalidade tcnica (e pelo
predomnio das tecnologias duras e leve-duras na produo do cuidado)
e a desinstitucionalizao do cuidado em sade, havendo construo
compartilhada do projeto teraputico, ampliao da autonomia do
cuidador/famlia/usurio, ampliao da dimenso cuidadora do trabalho da
equipe (e o predomnio das tecnologias leves e leve-duras na produo
do cuidado). (MERHY E FEUERWERKER, 2007)
Essa tenso existente entre ambos os plos constitutiva da produo
de
cuidado na ateno domiciliar, e poder ser produtiva enquanto
possibilidade de se
ofertar cuidado compartilhado e inovao no domiclio como um
espao
desinstitucionalizado ou pode ser uma tenso que se resolva por
meio da produo de
cuidado por uma equipe que subordina a famlia sua racionalidade
tcnico-cientfica
(DE CARVALHO et al, 2007; MERHY E FEUERWERKER, 2007). O que
ser
essencial para definir se a ateno domiciliar se configurar como
uma modelagem
potente e substitutiva o projeto tecnopoltico que as equipes
colocam em prtica e a
forma como combinam as tecnologias em sade (MERHY E
FEUERWERKER,
2007).
O estudo realizado apontou que o domiclio pode se apresentar
como um
espao potencializador de mudanas no processo de cuidado no
sentido da
integralidade, j que favorece ampliao do olhar e do agir
desinstitucionalizado5, indo
alm das questes especificamente tcnicas. Isso permite que as
dimenses sociais e
afetivas sejam agregadas e que a prtica clnica seja reinventada
a partir de modos anti-
hegemnicos que reconhecem o paciente em suas mltiplas relaes.
Indicou que,
5 Agir desinstitucionalizado: Organizao do cuidado em locais
mais prximos ao territrio do usurio, fora dos aparelhos
tradicionais de sade, que permitem a possibilidade de reconstruo da
autonomia do mesmo e vnculo com os trabalhadores. (Feuerwerker,
L.C.M.; Merhy, E.E., 2008)
-
31
dependendo do arranjo adotado, o trabalho no espao domiciliar
pode ser substitutivo6
no sentido de possibilitar a produo de autonomia e de
alternativas coletivas criativas
do cuidado, permitindo a criao de vnculo e da experimentao na
construo dos
projetos de cuidado junto ao usurio e a famlia (FABRCIO et al,
2004; LACERDA
et al, 2006; FEUERWERKER e MERHY, 2008; KERBER et al, 2008).
Desta forma, acredita-se que a ateno domiciliar pode ser uma
modelagem de
potente de organizao do cuidado, que permite a transformao das
prticas de sade
no sentido de uma assistncia comprometida com a criao de vnculo
entre
trabalhador e usurio, com o acolhimento, a humanizao e o
desenvolvimento de
corresponsabilidade (MERHY e FEUERWERKER, 2007; FEUERWERKER
e
MERHY, 2008).
1.6. O MARCO REGULATRIO DA ATENO DOMICILIAR NO
BRASIL
Debates sobre as diferentes modelagens da ateno domiciliar
comearam a
ganhar espao no mbito federal em 2002, com a instituio da ateno
domiciliar no
SUS pela Lei Federal no 10.424/2002 (BRASIL, 2002), incorporada
Lei Federal
8.080/90 (BRASIL, 1990).
No mesmo ano, foi estabelecida a possibilidade da assistncia
domiciliar a ser
desenvolvida pelos Centros de Referncia em Assistncia Sade do
Idoso, pela
Portaria SAS/MS no249/2002 (MINISTRIO DA SADE, 2002). Trata em
seus
artigos da vinculao da AD ao servio hospitalar e a articulao
entre os Centros de
Referncia, a Rede de Ateno Bsica e a ESF. a primeira iniciativa
no sentido de
conectar o tema da assistncia domiciliar com a ateno bsica,
especializada e a
hospitalar (REHEM e TRAD, 2005).
6 Substitutivo: a possibilidade do cuidado em sade que
desinstitucionaliza o modo hegemnico, criando novas prticas de
produo de cuidado em sade (SILVA, 2010)
-
32
Em 2006, foi produzida pela ANVISA a Resoluo da Diretoria
Colegiada da
Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria (RDC/ANVISA) no 11/2006
que Dispe
sobre o Regulamento Tcnico de Funcionamento de Servios que
prestam Ateno
Domiciliar, orientando as normas de funcionamento dos servios de
AD (BRASIL,
2006).
No mesmo ano, o Ministrio da Sade lanou a Portaria GM/MS n
2.529/2006
(MINISTRIO DA SADE, 2006) que regulamentava a Internao
Domiciliar no
mbito do SUS como o conjunto de atividades prestadas no domiclio
a pessoas
clinicamente estveis que exijam intensividade de cuidados acima
das modalidades
ambulatoriais, mas que possam ser mantidas em casa, por equipe
exclusiva para este
fim e tratou sobre o financiamento especfico a esta prtica, com
repasse federal fundo
a fundo para custeio das equipes, mediante apresentao de
projetos municipais
(MINISTRIO DA SADE, 2006).
Entretanto, a transferncia de recursos nunca chegou a ser
efetivada, e a
regulamentao e o debate na esfera federal sobre a ateno
domiciliar se manteve
estagnada pelo perodo de 2006 a 2011, ano em que esta portaria
foi revogada
(BRASIL, 2012a).
Em agosto de 2011, o Ministrio da Sade lanou, por meio da
Portaria
GM/MS no 2.029/2011, de 24 de agosto de 2011, o Programa Melhor
em Casa, que
instituiu a Poltica Nacional de Ateno Domiciliar no SUS
(MINISTRIO DA
SADE, 2011b).
A formulao dessa poltica foi fruto das contribuies de um grupo
de trabalho
(GT) formado no incio de 2011, constitudo por algumas reas
tcnicas do Ministrio
da Sade e equipes de experincias locais de AD, como Betim/MG,
Belo
Horizonte/MG e Campinas/SP. A nova poltica props-se a partir da
produo anterior
e fazer uma reflexo crtica acerca das portarias j publicadas,
principalmente a que se
refere internao domiciliar, considerando a realidade e as
necessidades locais
(BRASIL, 2012a).
Sob a coordenao do Departamento de Ateno Bsica do Ministrio da
Sade
(DAB/SAS/MS), o documento regulamenta a Ateno Domiciliar no
mbito do
Sistema nico de Sade, estabelece as normas para habilitao e
cadastro dos servios
-
33
de AD e suas respectivas Equipes Multiprofissionais de Ateno
Domiciliar (EMAD)
e Equipes Multiprofissionais de Apoio (EMAP), habilitao dos
servios de sade a
que estaro vinculados e determina os valores de incentivo para o
seu funcionamento
(MINISTRIO DA SADE, 2013a).
Ela define a ateno domiciliar de forma complementar RDC/ANVISA
no
11/2006, como uma nova modalidade de ateno sade, substitutiva
ou
complementar as j existentes, caracterizada por um conjunto de
aes de promoo
sade, preveno e tratamento de doenas e reabilitao no ambiente
domiciliar, de
carter contnuo e integrado s redes de ateno sade (MINISTRIO DA
SADE,
2013a). Enfatiza ao longo da portaria que sua implantao exige
maior integrao e
colaborao entre os diferentes pontos de ateno, sendo que a
implantao das redes
para dar suporte assistncia contnua no domiclio e a preparao das
equipes de
trabalho so essenciais na produo de cuidado no domiclio (PEREIRA
et al, 2005;
MINISTRIO DA SADE, 2013a).
Afirma que a AD deve estar estruturada na perspectiva das Redes
de Ateno
Sade, sendo um componente da Rede de Ateno s Urgncias e tem
como
ordenadora de seu cuidado e ao territorial a ateno bsica
(MINISTRIO DA
SADE, 2011b).
O documento menciona que o servio de AD pode estar vinculado a
qualquer
servio da rede de sade e fixado no territrio, facilitando o
acesso. O paciente que se
beneficiar do servio de AD poder ser oriundo da ateno bsica,
servio de ateno
s urgncias e emergncias ou hospital. Nesta lgica, a AD foi
includa como
possibilidade de atendimento pr-hospitalar ou ps-hospitalar. Na
primeira situao, o
usurio advm da ateno bsica ou servios de ateno s urgncias e
emergncias, a
fim de evitar a hospitalizao. No segundo, so includos usurios
dos servios
hospitalares, para dar continuidade do cuidado no domiclio
(MINISTRIO DA
SADE, 2013a).
Classifica a ateno domiciliar em trs modalidades (AD1, AD2 e
AD3), de
acordo com a complexidade, sendo que o apoio financeiro a AD1 no
contemplado
no mbito da AD (MINISTRIO DA SADE, 2013a).
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34
A primeira modalidade (AD1) corresponde aos cuidados
domiciliares
realizados no mbito da ateno bsica, pelas equipes da Estratgia
Sade da Famlia
(ESF) e do Ncleo de Apoio Sade da Famlia (NASF), de forma
complementar aos
servios ambulatoriais de especialidades e de reabilitao, quando
necessrio. Essas
so aes j previstas na ESF e financiadas no mbito da ateno
bsica.
Os usurios elegveis AD1 so aqueles em estabilidade clnica e
com
dificuldade ou impossibilidade fsica de locomoo at uma unidade
de sade, com
necessidade de cuidados de menor complexidade e menor frequncia,
dentro da
capacidade de atendimento das Unidades Bsicas de Sade (UBS)
(MINISTRIO DA
SADE, 2013a).
A segunda modalidade de AD (AD2) compreende usurios que exigem
maior
complexidade e frequncia de cuidado e de recursos de sade, alm
de
acompanhamento contnuo, podendo ser oriundos de diferentes
servios da rede de
ateno; devendo se incluir em um dos critrios estabelecidos pela
portaria, tais como
cuidados paliativos, necessidade de superviso e reabilitao
motora e funcional
intensa, quadro cardiorrespiratrio que exija monitoramento e
outros procedimentos
(MINISTRIO DA SADE, 2013a). Pode ser considerada como
atendimento
domiciliar, segundo a definio da RDC/ANVISA no11/2006: conjunto
de atividades
de carter ambulatorial, programadas e continuadas desenvolvidas
em domiclio
(BRASIL, 2006).
A terceira modalidade (AD3) a que exige maior complexidade do
cuidado.
Segue os mesmos critrios da AD2 incluindo a necessidade de uso
de algum
dispositivo respiratrio complementar (oxigenoterapia e suporte
ventilatrio no
invasivo), dilise peritoneal ou paracentese (MINISTRIO DA SADE,
2013a).
Aproxima-se da definio de internao domiciliar conforme a
RDC/ANVISA
no11/2006: conjunto de atividades prestadas no domiclio,
caracterizadas pela ateno
em tempo integral ao paciente com quadro clnico mais complexo e
com necessidade
de tecnologia especializada. (BRASIL, 2006; MINISTRIO DA SADE,
2013a)
Desde 2011, a portaria ministerial que instituiu a Poltica de
Ateno
Domiciliar no SUS sofreu algumas mudanas, dentre elas a
universalizao da ateno
domiciliar no pas, por meio da Portaria n 963/GM/MS, de 27 de
maio de 2013
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35
(MINISTRIO DA SADE, 2013a) e a redefinio dos valores de repasse
federal aos
servios implantados, por meio da Portaria n 1.505/GM/MS, de 24
de julho de 2013
(MINISTRIO DA SADE, 2013c).
As portarias vigentes so os documentos mais recentes no sentido
de ampliar a
adoo da ateno domiciliar como alternativa assistncia e
representam um avano
principalmente por estabelecer cofinanciamento federal para a
ateno domiciliar, o
que poder incentivar a construo de novos servios e o incremento
dos j existentes.
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36
2. OBJETIVOS
2.1. OBJETIVO GERAL
Analisar os efeitos iniciais da Portaria n 963/GM/MS, de 27 de
maio de 2013
sobre as iniciativas municipais, com destaque para suas
potencialidades e desafios na
produo do cuidado.
2.2. OBJETIVOS ESPECFICOS
Analisar os principais elementos da poltica nacional de ateno
domiciliar
expressa na Portaria n 963/GM/MS, de 27 de maio de 2013;
Analisar os projetos tecnopolticos de trs servios de ateno
domiciliar,
incluindo a orientao do projeto de cuidado, os processos de
trabalho e suas
articulaes com os demais servios da rede de ateno sade.
Analisar os usos que as experincias locais de AD fazem da
portaria ministerial;
Identificar desafios atuais da AD tomada como dispositivo para a
mudana do
modelo de ateno.
-
37
3. METODOLOGIA
3.1. TIPO DE ESTUDO
Pesquisa qualitativa de abordagem cartogrfica.
3.2. LOCAL DE ESTUDO
um estudo no mbito do SUS, tendo sido explorados trs servios de
ateno
domiciliar (SAD) vinculados aos seguintes municpios: Embu das
Artes-SP,
Campinas-SP e So Bernardo do Campo-SP.
Os critrios para seleo incluram: a) servios habilitados pelo
Programa
Melhor em Casa do Ministrio da Sade; b) pelo menos um SAD
existente h pelo
menos dez anos e outro implantado recentemente. Dessa forma,
poderia se observar
alguns efeitos da Portaria n 963/GM/MS, de 2013, sobre servios j
institudos e
organizados h mais tempo e sobre aqueles implantados pouco tempo
antes da portaria
ministerial.
3.3. PARTICIPANTES DA PESQUISA
Gestores municipais e dos servios de ateno domiciliar,
trabalhadores dos
servios de ateno domiciliar e usurios e cuidadores inseridos nos
servios,
perfazendo um total aproximado de 60 participantes.
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38
A quantidade de trabalhadores da sade que participaram do estudo
foi definida
de acordo com a sua disponibilidade durante o perodo da
observao-participante nos
servios de ateno domiciliar.
Os usurios/cuidadores que participaram do estudo foram
identificados junto
aos trabalhadores da sade, com base nos casos que mais
mobilizaram as equipes.
3.4. TCNICAS E PROCEDIMENTOS PARA A COLETA DE DADOS
A abordagem cartogrfica foi efetivada por meio de um intenso
mergulho no
cotidiano do trabalho das equipes e a movimentao da pesquisadora
foi orientada
pelas mtuas afeces produzidas pelos encontros com gestores,
trabalhadores e
usurios.
Apesar de trs servios haverem sido estudados, no se pretendeu
qualquer tipo
de comparao. O que se quis foi mapear analisadores
significativos para a
potencializao da ateno domiciliar como arranjo assistencial para
produo do
cuidado orientada integralidade.
A cartografia como mtodo de pesquisa-interveno pressupe uma
orientao do trabalho do pesquisador que no se faz de modo
prescritivo, por regras j prontas nem com objetivos previamente
estabelecidos. No entanto, no se trata de uma ao sem direo, j que a
cartografia reverte o sentido tradicional de mtodo sem abrir mo da
orientao do percurso da pesquisa (PASSOS e BARROS, 2009).
Desta forma, o trabalho cartogrfico pressupe que somente no
plano de
experimentao o pesquisador/autor/cartgrafo ir traar seu percurso
de interveno.
Isso se faz a partir de mltiplas formas de entrada, como uma
rede de conexes em
que h de se considerar as implicaes, afetos e transbordamentos
decorrentes dos
encontros produzidos durante a pesquisa, para se construir os
novos rumos de
investigao e promover sua anlise (PASSOS e BARROS, 2009).
-
39
O pesquisador tem que se manter aberto s diferentes perspectivas
de produo
de mundo com que ir se deparar, e atento durante todo o percurso
investigativo,
considerando que o conhecimento no algo dado, mas feito e
desfeito
constantemente, no havendo um estatuto nico de verdade
(FEUERWERKER e
MERHY, 2011).
Ao contrrio do que prescreve a cincia oficial, em que h uma
necessidade em
se revelar uma verdade, controlando e isolando o objeto para no
que o investigador
no seja contaminado, o meu objetivo foi produzir-me enquanto
sujeito implicado,
reconhecendo no haver neutralidade na produo do conhecimento.
Ele se d a partir
da mistura do pesquisador, no campo, com o seu objeto,
construindo espaos
interseores com os pesquisados, reconhecendo que eles so parte
do processo de
produo de conhecimento e no uma vitrine a ser observada. Ao se
misturar e fazer
conexes em ato, o pesquisador produz e se produz na construo do
conhecimento ao
transitar pelos territrios de suas implicaes. Assim, levei
comigo toda a minha
implicao como trabalhadora do SUS e fui me construindo a cada
momento como
pesquisadora, ao inundar-me nesses encontros que foram se
produzindo (ABRAHO,
2014).
Para encontrar-se com o territrio investigado, diferentes
iniciativas
compuseram a cartografia, tais como o mapeamento dos servios de
AD, entrevistas,
observao participante, oficinas.
Inicialmente tinha imaginado usar casos traadores, mas a intensa
conexo com
as equipes e usurios durante a observao participante diminuram a
importncia dos
traadores para escapar do plano da representao que eventuais
entrevistas poderiam
abrir. Ou seja, estive em ato com eles, explorando suas
experincias e afeces ao vivo
e a cores.
Segundo Fernandes, 2011, a observao participante uma tcnica de
pesquisa
definida classicamente pela antropologia por Malinowsky:
Trata-se de uma tcnica de levantamento de informaes que pressupe
convvio, compartilhamento de uma base comum de comunicao e
intercmbio de experincias com o(s) outro(s) primordialmente atravs
dos sentidos humanos: olhar, falar, sentir, vivenciar entre o
pesquisador, os sujeitos observados e o contexto dinmico de relaes
no qual os sujeitos vivem e
-
40
que por todos construdo e reconstrudo a cada momento.
(FERNANDES, 2011)
Isso implica ao pesquisador estar, observar e participar em ato
durante o
processo de experimentao do campo, lidando e produzindo
alteridade e fazendo as
suas escolhas ticas, sem apegar-se a juzos morais. Como
ferramentas, utilizei o dirio
de campo, a fim de registrar as observaes para anlise futura e
outras, como a
gravao de udio (FERNANDES, 2011).
Foi um campo intenso e extenso, pois estive aproximadamente 10 a
15 dias em
intensa convivncia com as equipes de cada servio. Durante todo o
percurso da
pesquisa fiz a construo de um dirio de campo e gravao de udio
quando
permitido, para me ajudar na sua elaborao.
Para a escolha dos municpios que compuseram o meu campo de
pesquisa,
participei de algumas oficinas de ateno domiciliar do Programa
Melhor em Casa,
promovida pelo MS com apoiador do CGAD/MS em So Paulo-SP, da
Regio
Metropolitana de Campinas-SP e da Regio dos Mananciais e Rota
dos Bandeirantes-
SP sobre a Ateno Domiciliar; da reunio do Ncleo de Educao
Permanente e
Humanizao em Sade (NEPHOS) dos municpios que compreendem a Regio
dos
Mananciais e Rota dos Bandeirantes-SP; do Congresso Brasileiro
de Ateno
Domiciliar, realizado no municpio de Campinas-SP. Ao participar
desses espaos,
tive a oportunidade de conhecer um pouco sobre cada SAD e me
aproximar dos seus
gestores.
Os primeiros encontros com os gestores de cada servio tiveram o
objetivo de
apresentar o projeto de pesquisa e iniciar o processo de liberao
para sua realizao
em cada municpio. Aps o projeto ser deferido, iniciei a
aproximao junto s
equipes, inicialmente na sede e depois acompanhando-as durante a
jornada de trabalho
em campo, como observadora participante.
Foi necessrio que em cada lugar, eu desenhasse em ato cada passo
da
observao participante, uma vez que tambm fui intensamente
afetada durante essa
caminhada e atravessada pelos diversos acontecimentos intrnsecos
dos espaos
interseores.
-
41
Sendo tarefa do cartgrafo dar lngua para afetos que pedem
passagem, dele se espera basicamente que esteja mergulhado nas
intensidades de seu tempo e que, atento s linguagens que encontra,
devore as que lhe parecerem elementos possveis para a composio das
cartografias que se fazem necessrias. O cartgrafo antes de tudo um
antropfago. (ROLNIK, 1989)
Para a construo e imerso no campo, levei no bolso o que Rolnik,
1989
descreve como o Manual do cartgrafo, que so os equipamentos que
se levam para
a sua experimentao: um critrio, um princpio e uma regra. O
critrio o grau de
intimidade a depender das conexes estabelecidas no encontro e do
seu grau de
abertura para isso; o princpio est relacionado a busca pela vida
nos espaos de
produo de encontro, o quanto dela se efetua; e, como regra,
atenta-se ao limite que
condiz as desterritorializaes que so suportadas sendo cuidadoso
com o outro e
consigo mesmo.
Para tanto, fui acolhida em minhas angstias, dvidas, incertezas
e afetamentos
pelos amigos do grupo de pesquisa em micropoltica da FSP/USP e,
principalmente,
pela minha orientadora Profa. Laura Feuerwerker, que me ajudou a
processar os
acontecimentos dentro e fora do campo e a construir novos passos
para o campo e a
minha construo enquanto sujeito implicada, pesquisadora e
trabalhadora do SUS.
Em cada SAD, participei das reunies de equipe e de cuidadores,
da rotina de
trabalho na sede, acompanhei as visitas e atendimentos
domiciliares de quase todos os
trabalhadores, abordando cada trabalhador no dia-a-dia, e
construindo junto com ele e
o gestor, os caminhos a serem percorridos. Foram momentos
fundamentais em que fui
acolhida pelos trabalhadores e pude, em ato, experimentar junto
com eles o seu
trabalho vivo, perceber as afetaes e afeces que so produzidas na
produo de
cuidado com os usurios/cuidadores, os arranjos que fazem para
promoverem a AD,
as apostas que fazem no cotidiano e os desafios que
enfrentam.
O pesquisador no neutro, ele se contamina ao dar passagem para
os mltiplos
processos de subjetivao e de fabricao de mundos, sendo
atravessado e inundado
pelos encontros. um exerccio permanente de desaprendizagem e
desinstitucionalizam do j prescrito (ABRAHO, 2014), corroborando
com o que diz
Rolnik, 1989, sobre as desterritorializaes que vai sofrendo em
ato e os
-
42
desencantamentos das mscaras que nos constitui, ao mesmo tempo
em que vai
construindo novas mscaras e novos sentidos nesse processo.
Em muitas situaes, o meu devir trabalhadora era convocado e eu
me sentia
participante ativa daquele processo. Houve lugares e momentos em
que o meu devir
pesquisadora era mais intenso e reafirmado e, outros em que o
meu devir trabalhadora
vinha tona, inclusive participando dos espaos de confraternizao
coletiva, em
conversas sobre o caso clnico de pacientes, trocando experincias
pessoais e
profissionais.
Considerando que os SAD possuem uma rotina intensa de atividades
dentro e
fora da sede, optei por fazer a apresentao do projeto durante as
reunies de equipe,
aproveitando o seu espao de encontro coletivo, mas tambm
aproveitei os encontros
individuais no dia-a-dia para conversar sobre isso. Ao expor o
projeto de pesquisa, fiz
o convite para os trabalhadores participarem e pedi permisso
para acompanh-los em
seu cotidiano; pactuei junto com as equipes a possibilidade de
utilizar recursos de
gravao de udio e elaborao de dirio de campo escrito; e firmei o
compromisso de
retornar ao servio aps a finalizao da dissertao, a fim de
conversar e processar
com as equipes os resultados da pesquisa.
As reunies de equipe so espaos importantes em que os
trabalhadores
debatem os casos de usurios que esto mobilizando e trazem
elementos sobre a
produo de cuidado, como processam os casos que os afetam e
atravessam o seu
cotidiano e cuidam do prprio sofrimento, como negociam frente s
disputas mais
intensas de projeto teraputico, que mediaes so feitas e que
arranjos produzem para
promover o cuidado. A partir dessas reunies e da observao
participante, escolhi,
junto com os trabalhadores, alguns casos que mobilizam as
equipes, para que eu
pudesse conversar tambm com o usurio/cuidador e compreender como
construda
a sua rede viva, bem como sua relao com os servios de sade.
Em relao aos casos escolhidos, combinei com as equipes o momento
mais
oportuno para a entrevista com o cuidador e, se possvel, com o
usurio. Ao todo, nove
casos foram escolhidos, sendo que em apenas trs no foi possvel
realizar a entrevista.
Em sua maioria, eram casos significativos, seja pela
vulnerabilidade social,
intensividade do cuidado ou tenses relacionadas ao projeto
teraputico.
-
43
Durante a conversa com os cuidadores (no foi possvel ter contato
com os
usurios por seu alto grau de dependncia), pude explorar tanto
suar relaes com a
equipe do SAD e outros servios de sade a que o usurio est
vinculado, como outros
elementos de sua rede viva, seus desejos, afetamentos e construo
de seus territrios
de existncia, por meio de seus deslocamentos e
ressignificaes.
Para compreender as apostas e o projeto tecnopoltico do SAD, alm
da intensa
conexo com os trabalhadores, realizei entrevistas
semiestruturadas, com gestores dos
SAD, com alguns gestores municipais.
Para a explorao sobre as redes, constru diferentes caminhos a
fim de
compreender mais sobre a articulao entre os vrios pontos de
ateno e desmistificar
algumas tenses que ressoaram durante a imerso em cada campo.
Assim, tambm
entrevistei gerentes de UBS, gestor de servio de reabilitao
terceirizado e do SUS,
gestor de instituio hospitalar do SUS e participei da reunio do
KANBAN, que um
dispositivo da rede municipal de sade, para a gesto do cuidado
de pacientes em
internao hospitalar.
Utilizei um roteiro de preocupaes7 para a realizao de todas as
entrevistas
para me ajudar a abordar os entrevistados e direcionar alguns
pontos importantes que
eu no poderia deixar de lado. Entretanto, foi fundamental
deixar-me afetar e, em ato,
fazer exploraes durante a conversa, por meio da conexo que era
estabelecida entre
mim e o outro.
A possibilidade de ser permevel imprevisibilidade de cada
encontro me
garantiu dar diferentes tons a cada conversa, operando sempre
com as tecnologias
leves. A cartografia, neste sentido, potente, ao possibilitar a
construo de uma
pesquisa em ato, permitindo perceber que a conversa estabelecida
entre mim, a
cuidadora e um dos trabalhadores que me acompanhava estava sendo
atravessada por
mltiplos afetos que vazam em meio experincia da cuidadora e seu
esposo, e de
recordaes da trabalhadora e sua experincia pessoal. Nesse
momento, me coloquei
7 Definido por Rolnik, 1989, como um dos componentes do
equipamento que o cartgrafo leva para a cartografia, que algo que
ele vai redefinindo constantemente para si, a depender de sua
permeabilidade aos encontros
-
44
como ouvinte, pois as histrias de ambas foram se conectando ao
longo da conversa e
deram voz produo de vida no limite - vida nua -, em meio ao
sofrimento e o cuidar.
Participei das reunies de cuidadores, e fui afetada intensamente
por suas
histrias, saberes, angstias, concepes de vida e sade, e os seus
modos de viver.
Para mim, um encontro em que aflora muito mais um devir
trabalhadora que
pesquisadora, pois como se eu estivesse vivenciando a minha
prtica no ambulatrio
de fisioterapia, tentando tecer laos e produzir vida junto ao
usurio e sua famlia,
mesmo que muitas vezes eu me sinta de mos atadas.
Para realizar a anlise do campo de pesquisa, tomei como base: a)
o dirio de
campo; b) a transcrio das entrevistas gravadas em udio; c) minha
caixa de
ferramentas, construda em ato; d) reunies com minha orientadora;
e) reunies do
grupo da micropoltica FSP/USP, em que apresentei e discuti
resultados do campo; f)
as muitas Paulas que existem em mim, compostas pelo meu devir
trabalhadora do
SUS, fisioterapeuta, estudante de ps-graduao, o que me afetou no
trajeto da
dissertao, etc.
Segundo Rolnik, 1989, para o cartgrafo, a teoria sempre
cartografia, ou seja,
a caixa de ferramentas do cartgrafo, bem como as fontes a que
ele recorre no campo
de experimentao e em sua anlise, vo sendo construdas durante o
percurso da
cartografia, ao mesmo tempo em que novas paisagens vo se
formando a partir dos
encontros. O objetivo do cartgrafo no de explicar ou revelar,
mas dar linguagem e
cor aos afetos, expressando as intensidades que so produzidas
pelas dinmicas e
movimentos de cada lugar.
Dessa forma, durante e ao final do campo, para a elaborao da
dissertao,
foram construdos analisadores que nos pareceram dar visibilidade
e dizibilidade a
aspectos fundamentais da ateno domiciliar por meio das
experincias locais, bem
como as apostas e desafios que emergem de cada lugar, com o
intuito de dar luz as
potencialidades e alguns efeitos produzidos pela poltica de AD
do governo federal
o que so produzidos em cada mundo e os seus agenciamentos.
O projeto de pesquisa foi aceito pelo Comit de tica e Pesquisa,
CAEE:
13018713.0.0000.5421 e Parecer no 533.883. Para a participao do
projeto, todos
assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
(APNDICE 1).
-
45
4. RESULTADOS E DISCUSSO
4.1. BREVE RETOMADA A ALGUNS CONCEITOS
A vida a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela
vida.
(Vinicius de Moraes)
Durante a caminhada para a construo da pesquisa e da dissertao,
alguns
conceitos foram importantes para refletir e analisar
criticamente o experienciado, em
relao organizao dos servios, ao processo de trabalho e produo de
cuidado
pelas equipes da AD e os efeitos e usos da portaria ministerial.
E tambm enquanto
pesquisadora e trabalhadora do SUS. Tais conceitos emergem de
alguns autores da
filosofia, como Deleuze, Guattari, Foucault, Espinosa, Pelbart,
Agambem, e outros; e
do campo da sade coletiva, nas produes da linha de pesquisa em
micropoltica do
trabalho e do cuidado em sade, da UFRJ e militantes do campo,
como Merhy,
Feuerwerker, dentre outros. A minha inteno aqui no de seguir
estritamente uma
linha filosfica, mas fazer uso desses autores que vem
atravessando os meus modos de
existncia, a forma como venho pensando a sade coletiva, o
cuidado em sade, a
micropoltica do trabalho e tambm a vida, enriquecendo a minha
caixa de
ferramentas.
(...) as anlises desses autores dissecam teoricamente os
processos de produo do mundo como um instrumento de luta, buscando
possibilidades para a resistncia aos modos de subjetivao e de
fabricao do mundo que o capitalismo mundial agencia. Abrem a
perspectiva de reinveno da vida. Abrem a perspectiva de pensar e
operar as relaes de poder, a produo do saber, a fabricao das relaes
com o outro, enfim, pensar e operar os processos de subjetivao em
defesa da vida (...) (FEUERWERKER, 2014, p. 18)
A compreenso sobre as dinmicas da micropoltica do trabalho
pode
possibilitar a construo de dispositivos analticos para
vizibilizar apostas e desafios
da modelagem da ateno domiciliar e o cenrio construdo na relao
entre os trs
-
46
atores fundamentais em todo esse processo: usurios,
trabalhadores e gestores,
reconhecendo que os trs governam seus projetos, negociam e at
mesmo se impem,
mesmo que o ltimo expresse o lugar formal do governo (MERHY,
2000).
Os modelos de ateno sade so construdos de forma a enfrentar e
resolver
os problemas de sade de uma dada sociedade, mobilizando recursos
fsicos,
tecnolgicos e humanos (MERHY, 1997; SILVA JR & ALVES,
2007),
comprometidos com a defesa da vida individual e coletiva, tendo
como finalidade a
produo dos atos de cuidar. Estes so operados por meio dos
saberes tecnolgicos,
configurados a partir das dimenses materiais e no materiais do
fazer em sade
(MERHY, 2000).
No trabalho em sade, durante o encontro entre usurio e
trabalhador produtor
do ato, h a construo de um espao interseor8, cada um com suas
intenes,
necessidades e modos capturados de agir (MERHY, 1997). Esse
espao interseor o
lugar constitutivo das disputas de plano teraputico, cujos
atores, trabalhador e usurio,
so mutuamente afetados em ato na produo do cuidado.
Segundo Espinosa, citado por Deleuze, o corpo no definido pelos
seus
rgos, funes ou substncias, mas por modos de existncia que
produzem complexas
relaes, tanto cintica como uma composio de velocidades e
lentides num plano
de imanncia -, como dinmica como o poder de afetar e de ser
afetado. Esses afetos
podem causar alegrias ou tristezas, levando ao aumento ou
diminuio da potncia de
agir, respectivamente (DELEUZE, 2002). Pensando no cotidiano do
trabalho vivo em
ato, onde mltiplos fluxos de intensidades e movimentos circulam
no encontro entre
trabalhador-trabalhador e trabalhador-usurio, em cada cena podem
ser produzidas
linhas de vida a partir do acolhimento, escuta, porosidade,
cuidado compartilhado, ou
de morte, com o assujeitamento do outro pelo saber estruturado,
protocolos e
normativas, levando ao aumento ou diminuio da potncia de cada
um,
respectivamente (FRANCO e MERHY, 2011).
Quando h porosidade na produo desses encontros, h a
possibilidade de
serem agenciados modos mais compartilhados de produo do cuidado,
com abertura
8 Entendido aqui como o que se produz nas relaes em ato entre os
sujeitos (MERHY, 1997 p.87).
-
47
para a escuta sobre as necessidades do outro e produo de
alteridade. A porosidade
tambm a possibilidade do trabalhador produzir-se enquanto
sujeito que experimenta
e se constri junto do outro, no respeito s diferenas, num
processo em que cada um
convoca sua caixa de ferramentas, com seus saberes e concepes
sobre o modo de
viver, disputa e nego