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UMA VISÃO ANTROPOLÓGICA NA LITERATURA DE VIAGEM
DE JEAN DE MANDEVILLE (Século XIV)
Claudia Marilia Marques Espanha1
O estudo descreve as Viagens Medievais ocorridas no período circunscrito do século
XIV, através das viagens feitas (ou não) por Jean de Mandeville, relatadas em seu livro Viagens
de Jean de Mandeville.
O estudo focou o imaginário medieval descrito em suas narrativas e nas reconstruções
dos principais itinerários de sua viagem. As rotas foram restauradas e mapeadas, as cidades, os
portos, os povos, as principais terras e reinos encontrados foram localizados e demarcados.
Foram examinadas as diversas formas em que a Ásia foi representada pelo autor e a
descrição do maravilhoso, do diferente, do “outro”, além do que foi observado em diversas
terras, ilhas e reinos, e como essa alteridade relacionada à Ásia foi construída nas narrativas de
sua viagem, apresentando-nos a Ásia no seu plano simbólico, mostrando como ela é
essencialmente o lugar “do outro”, descrevendo-o como é criado, como é visto e compreendido
pelo Ocidente Latino.
Temos que ter em mente que a ideia sobre “o outro” que esta alteridade se constrói
conjuntamente com a composição de sua própria identidade, que é a do homem ocidental
medieval. A forma em que Mandeville examina e comenta as características do “outro”, como
define “as gentes” dos diversos lugares por ele visitado, são, fortemente os termos que o
definem por si só.
Viajar em si promove normalmente o encontro em terras distantes e desconhecidas, além
do encontro, alimenta a curiosidade, o espanto, o estranhamento e o maravilhamento de coisas
jamais vistas, do diferente que é natural, que é criação Divina, portanto o maravilhoso.
1
UFF - Universidade Federal Fluminense, e-mail: [email protected]
Orientadora: doutora Vânia Leite Fróes, UFF - Universidade Federal Fluminense
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Ressaltamos a importância das narrativas de viagem nos últimos séculos da Idade
Média, que de certo modo tornam presentes muitos dos ideais e construções utópicas do
medievo, ao mesmo tempo em que pelo imaginário ou pelo vivido constroem conhecimentos
que antecipam as grandes navegações no mar-oceano, ou seja, as viagens no Atlântico.
Cristóvão Colombo, em sua viagem de conquista para os Reis Católicos Fernando de
Aragão e Isabel de Castela, supôs ter chegado ao Oriente, pois imaginou conquistar para os seus
soberanos uma faixa de terra fronteiriça ao império do Grande Cã. Certamente leu e releu os
Livros de Viagens de Marco Polo e Jean de Mandeville. O exemplar de Marco Polo que
Colombo possuía com suas anotações pessoais sobreviveu até os dias de hoje e o que sabemos
de suas familiaridades com os relatos de viagem de Jean de Madeville estão descritas no livro
Memorias del Reinado de los Reyes Católicos de Andrés Bernáldez. O filho de Colombo,
Fernando, escreveu que entre as razões que levaram seu pai a empreender sua viagem, estavam
as palavras descritas em livro de Marco Polo, um veneziano, e de John Mandeville, um lorde
inglês.2
A principal hipótese da pesquisa é a descrição da Ásia e de como ela é entendida, quase
como um território a parte, território do estranho, do diferente, do maravilhoso, integrado pelo
autor. Procuramos, portanto, analisar como Mandeville a constrói. Estudar o imaginário de uma
sociedade é ir ao fundo de sua consciência e da sua evolução histórica. É ir à origem e à natureza
profunda do homem, criado a imagem de Deus (...).3
O MUNDO DE JEAN DE MANDEVILLE
Os relatos de viagens mais famosos, que se tornaram sucesso em sua época, são as
viagens de Marco Polo e Jean de Mandeville, onde nossos autores e desbravadores contam suas
2 GREENBLATT, Stephen. Possessões Maravilhosas. São Paulo, 1996, p. 45.
3 LE GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval. Portugal: Editorial Estampa, 1994.p. 17.
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aventuras e descobertas, e o que encontraram de extraordinário e maravilhoso em seus trajetos
de viagens.
Marco Polo narrou em seu Livro das Maravilhas a Ásia mongólica, que circula por toda
a Latinidade e muito cedo é traduzida para as línguas vernáculas, copiado como um best seller,
incendiando as mentes daqueles que querem agora conhecer este mundo dos sonhos. A literatura
de viagem tão ao gosto dos mercadores e das gentes de marinharia tomam as cortes, as praças
e mercados. Pouco tempo depois, os livros passaram a produzir imagens figurativas das suas
viagens.
Jean de Mandeville declarou em seu livro que saiu em viagem no dia de São Miguel,
provavelmente 19 de setembro do ano de 1322, retornando 34 anos depois, isto é, no ano de
1356, em data posterior à grande peste que havia dizimado boa parte da população europeia.
Suas narrativas de viagens são finalizadas em torno de 1356-57, com forte influência do livro
de Marco Polo, inclusive no título, tornando-se, um dos livros mais populares na Europa no
final do século XIV, dos séculos XV e XVI, com o título de Viagens de Jean de Mandeville ou
Livro das Maravilhas do Mundo.
No século XV, seu livro poderia ser encontrado em uma extraordinária variedade de
línguas europeias, não só Latim, Francês, Alemão, Inglês e Italiano, mas também checo,
dinamarquês e irlandês. Seu enorme sucesso é atestado pelos duzentos e cinquenta manuscritos
medievais existentes, três vezes mais que o livro de Marco Polo que conta com 80 manuscritos
encontrados. Certamente os dois livros foram referência para os viajantes e navegadores,
mesmo nos quinhentos, período das grandes descobertas atlânticas.
Em seu livro, Mandeville fornece aos seus leitores informações inéditas, interessantes,
diferentes e exóticas sobre vários povoados e lugares, sobre as práticas sociais e religiosas
desses povos, tais como os tártaros, os sarracenos, os brâmanes, entre outros.
Descreve em suas narrativas, desde a partida da Inglaterra até o Mar Mediterrâneo,
itinerários, onde sugere rotas alternativas, partindo de vários portos, tais como Gênova, Veneza,
Pisa ou Brindisi, com descrição de várias rotas até Constantinopla, em direção
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ao extremo oriente, seu pretenso destino final.
Falaremos um pouco sobre o nosso autor, Jean de Mandeville: cavaleiro inglês, nascido
na cidade de Saint Albans, situada à 35 km ao norte de Londres, Inglaterra. Estudos recentes
apresentam Mandeville, além da condição de cavaleiro, também com a qualificação de
“barbado”, que indica a sua atuação como médico. Há também referências à sua profunda
religiosidade. Falecido na cidade de Liège, Bélgica no ano de 1372.
Uma pergunta importante que poderá nortear nosso trabalho é a que devemos o imenso
sucesso de seu livro, a esse interesse que foi despertado por suas narrativas de viagens? A
resposta estaria no fascínio do imaginário, as viagens poderiam ser vividas e imaginadas pelo
leitor, a partir da descrição do que era diferente, exótico, de crenças e lendas distintas do
ocidente, onde se buscava saber sobre os outros e sobre outras terras desconhecidas,
principalmente as terras longínquas do oriente.
Um outro questionamento dos pesquisadores sobre seu livro, seria se o autor, Jean de
Mandeville, realmente viajou para todos os lugares descritos em seu livro ou somente escreveu
sobre vários relatos de viagens que leu, existentes em sua época, que circulavam na Europa no
século XIV. Devemos perceber que todo esse debate se Mandeville viajou ou não, se escreveu
apenas os relatos de viagens que leu ou escutou, ou simplesmente acerca da existência ou não
de Mandeville não altera o quadro de seu livro ser um sucesso de público para a época em que
foi escrito e como seu discurso convenceu os seus contemporâneos de forma inquestionável.
O ITINERÁRIO DE VIAGEM DE MANDEVILLE
Como um legítimo cavaleiro inglês, sua partida não poderia de deixar de ser da
Inglaterra. Mas o autor sugere outros lugares de partida, como Irlanda, Gales, Escócia ou
Noruega, traçando um itinerário até a cidade de Constantinopla - antigo nome da cidade de
Istambul, na Turquia. Sugere que a partida pode ser feita pelos portos do Mar Mediterrâneo,
indicando os portos de Gênova, Veneza, Pisa ou Brindisi.
Seu destino após Constantinopla é a cidade de Jerusalém, a Terra Santa, partindo do
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Porto de Constantinopla, navegando por várias ilhas da Grécia, no Mar Egeu, tais como Patmos,
Silo, Kos, Rodes, Creta e Chipre, entre outras, até a Terra Santa. Além de indicar o caminho a
ser percorrido, Mandeville quer revelar aos seus leitores, os costumes, os hábitos e as
diversidades de cada terra, reino e ilha em que passou: “Embora essas coisas não digam respeito
ao caminho a ensinar, ainda assim elas tratam do que prometi declarar acerca dos costumes, dos
hábitos e das diversidades de cada pais.” (FRANÇA, 2007, p. 51 e p.37)
ITINERÁRIO DA INGLATERRA À CONSTANTINOPLA
Mandeville ensina e estimula a todos que se interessarem a fazer uma viagem ao
ultramar, pois podem tomar caminhos diversos, tanto por mar como por terra, pois todos
caminhos darão a um mesmo fim. Mas mesmo assim não descreve todas as cidades e vilas por
onde poderão passar, pois demandaria um longo relato. O autor compromete-se a falar dos
lugares principais por “onde se deve passar para tomar o caminho certo”.
“Primeiramente, aquele que parte de lugares do Ocidente, como Inglaterra, Irlanda,
Gales, Escócia ou Noruega, pode, se assim quiser, ir pela Alemanha e o reino da Hungria...”
(FRANÇA, 2007, p. 37)
Partindo da cidade de Londres, percorrendo de barco o rio Tâmisa, Mandeville
provavelmente atravessou o canal da Mancha à barco até os Países Baixos, na cidade costeira
de Roterdã e percorreu, em caravana, por vias fluviais, o rio Mosa, adentrando no reino da
Alemanha, navegando através do rio Reno e seus afluentes, até chegar ao rio Danúbio, passando
a navega-lo. Foi até o Reino da Hungria, onde visitou várias cidades, tais como a cidade de
Sopron (hoje a cidade de Cypon) na Hungria Ocidental, a cidade de Manleville (hoje a cidade
de Semlin - em alemão ou Zemun – em sérvio) e a cidade de Belgrado (hoje na Sérvia). Nesse
ponto o rio Danúbio encontra-se com o rio Marrok (antigo nome do rio Morava) e
provavelmente, Mandeville percorre esse rio até chegar em Constantinopla, passando antes pela
Terra dos Pincenarez, que era um povo das estepes da Ásia Central de língua turca que se
estabeleceu no norte do rio Danúbio. Deixaram de existir como um povo distinto e foram
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assimilados pelos povos vizinhos, como os búlgaros, os magiares e os gagauz; pela cidade de
Nye (antigo nome da cidade de Nis, localizada na Sérvia, as margens do rio Nissava), a cidade
de Finepape (antigo nome da cidade búlgara de Plovdiv) e a cidade de Andrinopla (trata-se de
Edirne, cidade da Trácia, na Turquia europeia).
Chegando na cidade de Constantinopla, que anteriormente era chamada cidade de Bizâncio,
o autor, que é um homem de grande fé e um cristão fervoroso, descreve a igreja de Santa Sofia
como a mais bela e a mais nobre igreja do mundo. Descreve Constantinopla como uma cidade
muito bela, muito nobre, bem amuralhada e triangular.
Figura 1 – Itinerário de viagem partindo de Londres - Inglaterra
e chegando à Constantinopla - Turquia
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ITINERÁRIO A PARTIR DOS PORTOS DE GÊNOVA E VENEZA
O itinerário de viagem partindo da França ou Borgonha ou Lombardia, Mandeville afirma
que não é necessário mencionar os nomes de cidades ou vilas pois a rota já é comum e conhecida
por muitas nações.
Chegando no Porto de Gênova ou no Porto de Pisa, ganham o mar através do Mar
Tirreno (é uma parte do Mar Mediterrâneo que se estende ao longo da costa oeste italiana), ou
saindo do Porto de Veneza, ganham o mar através do Mar Adriático (é uma parte do Mar
Mediterrâneo ao norte e ao leste da Itália e ao oeste dos Balcãs), podendo visitar as cidades de
Nápoles ou Roma e desse ponto partem para a cidade de Brindisi (cidade costeira do mar
Adriático), onde podem retomar ao mar através de seu porto.
Continuando o itinerário, seguindo por mar, iremos em direção da Ilha de Gref
(atualmente Ilha de Corfu, uma ilha a oeste da Grécia e da Albânia), que pertencia aos genoveses
na Idade Média, a partir do qual chega-se a Grécia, aportando na cidade de Myrok (atualmente
Mavroro – Albânia) ou na cidade de Valona (atualmente Vlorë - Albânia) ou a cidade de Duras
(atualmente Durrês - Albânia) ou em outros diversos portos da costa. Mandeville não menciona,
a partir desse ponto, como fazer para chegar a Constantinopla, Deixa em aberto, somente diz
que a partir dessas cidades, vai-se a Constantinopla. Poderia ser por terra, por mar ou por
navegação fluvial.
Para chegarmos a cidade portuária de Damieta no Egito, partindo de Constantinopla,
podemos aportar em três ilhas distintas, intermediárias, como Creta, Rodes ou Chipre. Além de
possuir belas cidades e vilas, são pontos de comercio no Mar Mediterrâneo. A partir delas,
navega-se até a cidade portuária de Damieta onde partiremos, por terra, para Alexandria, onde
desemboca no mar o rio Nilo. Continuando o caminho, vai-se a Babilônia do Egito (atualmente
cidade do Cairo), situada às margens do rio Nilo, onde reside o sultão.
Para viajar com mais segurança, deve-se solicitar ao sultão licença e permissão para
prosseguir com mais segurança por suas terras e domínios. Seguindo caminho para o Monte
Sinai, atravessa-se o Mar Vermelho, que é chamado assim porque em alguns lugares sua areia
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é avermelhada, onde o povo de Israel, junto a Moisés, o atravessou sem se molharem, quando
foram perseguidos pelo faraó. Para cruza-lo são quatro jornadas de caminho.
É necessário passar pelos desertos da Arábia, os mesmos desertos que Moisés conduziu
o povo de Israel. Pelo deserto, chega-se ao Vale de Elim, um dos lugares onde os israelitas
montaram acampamento, e logo chega-se ao Monte Sinai, local onde Moisés viu a sarça que
ardia, falou com Deus e recebeu os dez mandamentos. No local existe um Monastério, que foi
fundado por Justiniano no século VI. Próximo ao Monastério situa-se a igreja de Santa Catarina,
onde encontramos muitos relicários e maravilhas que descreveremos à frente.
No deserto vivem os beduínos e os ascopates – que são os habitantes da Etiópia. Moram
em tendas que fazem com peles de animais. A razão pelas quais não constroem habitações é a
carência de água. De acordo com a estação, a água é encontrada em um lugar ou em outro. São
homens fortes, lutadores e numerosos. São homens de má índole: falsos, cruéis e de má
natureza.
Quando termina o deserto, em direção a cidade de Jerusalém, chega-se a cidade de
Besabéia (atualmente Berseba), cidade cristã. Viveu nessa cidade o patriarca Abraão. Segundo
Mandeville, ela foi fundada por Betsabéia, esposa do nobre Urias, e nela, o rei Davi gerou o
sábio Salomão, que depois de Davi foi rei de Israel.
A duas milhas de distância chega-se a Hebron, uma das cidades mais antigas, conhecida
anteriormente pelo nome de Vale Mambre, e também pelo nome de Vale de Lágrimas, pois
Adão chorou por cem anos a morte de seu filho Abel, morto por seu irmão Caim. Foi, em
outrora, cidade principal dos Filisteus, onde haviam gigantes. Cidade onde Josué e Calebe
conjecturaram com os seus para conquistarem a Terra Prometida. Estão sepultados em Hebron,
os patriarcas Adão, Abraão, Isaac e Jacó, e suas mulheres4.
4
A bíblia relata que foram enterrados em Hebron: Abraão, Sara, Isaac, Rebeca e Jacó, numa caverna chamada Cova de Macpela, adquirida por
Abraão (Gn 23, 19). Referencias datadas do período helênico (séc II d. C.) atestam que esse é o lugar autentico de sepultamento dos patriarcas.
Essa caverna foi explorada pelos canônicos agostinianos em 1119, onde foi declarada a descoberta dos ossos dos patriarcas. Segundo a tradição,
essa caverna localiza-se abaixo de Haram el-Khalil (recinto sagrado do amigo do Deus Único Misericordioso), e no local está uma mesquita
muçulmana.
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De Hebron vai-se a Belém em meio dia, pois dista a apenas cinco milhas e o caminho é
muito bonito, com agradáveis planícies e bosques. Antigamente seu nome era Éfrata. Bem
próximo, encontra-se o local onde desceu a estrela que havia guiado os três reis magos Gaspar,
Melquior e Baltazar. Os três reis trouxeram para Nosso Senhor ouro, incenso e mirra. A viagem
foi um verdadeiro milagre de Deus, pois estavam em uma cidade da Índia chamada Cassak, que
fica a cinquenta e três jornadas de Belém. Chegaram a Belém no decimo terceiro dia após terem
visto a estrela. Foi no quarto dia depois da visão que se encontravam em Cassak e para Belém
levaram nove dias, que foi um verdadeiro milagre.
MARAVILHAS E ESTRANHAMENTOS: IDENTIDADE E ALTERIDADE
No século XIII presenciamos o início da era das grandes viagens, que eram quase que
exclusivamente continentais. Os homens que se deslocavam anteriormente eram movidos por
um espírito de hostilidade. O século XII foi o século das Cruzadas, da Guerra Santa, um estado
de espirito que além da produção de hostilidade como motivo para viajar, somente as
peregrinações ao Santos Lugares marcavam presença para os deslocamentos de viagens. O
Oriente Próximo é o local de infiéis, que devem ser esmagados, conquistados ou convertidos.
O Extremo Oriente é um ambiente de lendas, ao qual o homem ocidental não teve mais
acesso depois de Alexandre, o Grande. Por isso é imaginado segundo as Histórias de Alexandre,
repletas de grandes fabulações. Aliás, o Extremo Oriente nutre a mesma ignorância em relação
ao Ocidente. O historiador medievalista Claude Kappler trata desse assunto em suas anotações
quando diz: No Extremo Oriente há tantas lendas sobre o Extremo Ocidente quantas neste há
sobre aquele. Os chineses ignoram todo o Ocidente, com exceção de algumas lendas muito
vagas. A Europa está quase sempre ausente de seus livros. Para eles o Ocidente também é um
mundo mítico e escatológico.5
5 KAPPLER, Claude. Monstros, demônios e encantamentos no fim da Idade Média. São Paulo. 1994.
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MARAVILHAS E ESTRANHAMENTOS NAS TERRAS ALÉM DE JERUSALÉM
Concentraremos, agora, na direção da diversidade, da diferença, da fantástica variedade
de criaturas e coisas maravilhosas, apresentadas por Mandeville.
DO REINO DA AMAZÔNIA ONDE VIVEM SOMENTE MULHERES
A primeira maravilha que descreveremos será o Reino da Amazônia, a terra de Feminia,
local no qual só vivem mulheres. A sua localização está entre o Reino da Caldéia e a cidade de
Tarmegite (A cidade situa-se a leste do Mar Cáspio).
“Houve um tempo em que um homem chamado Colopeus governou o reino e os
costumes de casamento eram normais como em outros lugares. Mas, em uma guerra contra o
Reino de Escítia, foi morto em batalha junto com vários guerreiros de boa linhagem do reino.
Quando a rainha e as demais nobres damas se deram conta de que estavam viúvas e de todo o
sangue nobre havia se perdido, armaram-se e levadas pelo desespero, mataram todos os homens
do país que tinham restado, pois queriam que todas as mulheres fossem viúvas como elas. A
partir de então, não permitem que qualquer homem permaneça no meio delas por mais de sete
dias e tampouco permitem que qualquer menino varão seja criado entre elas”.
(FRANÇA, 2007: p.153)
Figura 2 - Provável localização do Reino da Amazônia
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TIPOS DIFERENTE DE GENTE: PESSOAS COM UM PÉ SÓ
Descendo o reino da Caldéia, ao sul, encontra-se a Terra da Etiópia, que se estende até
o Egito. As pessoas têm a pele mais negras que em outras partes e são chamados de mouros.
Existem nessas terras muitos tipos diferentes de gente. Tem pessoas com somente um pé e
caminham tão rápido que é uma maravilha. O pé é de tal magnitude que dá sombra em todo
corpo quando a pessoa, deitada para descansar, volta-o para o sol.
SERES CHAMADOS CANOPHOLOS
Navegando pelo Mar Oceano, passando por diversas outras ilhas, chega-se a Nacumera,
ilha bela e rica, com o perímetro de mais de mil milhas. Seus habitantes, tanto homens como
mulheres, têm cabeça de cão e corpo de homem, são chamados de canopholos. São gentes
razoáveis e de bom entendimento. Adoram um boi como Deus. Carregam consigo um boi de
Figura 3 – Reino da Amazônia
Bibliothèque Nacionale de France
John Mandeville, Livro das Maravilhas. Paris,1410-1412.
Figura 5- Gente com um pé só.
John Mandeville, Livro das Maravilhas.
Paris, 1410-1412.
Figura 4 - Seres chamados Conophodos.
Marco Polo, O Livro das Maravilhas. Iluminação do Master of
Egerton. Paris 1410-1412. Manuscrito pergaminho, 299 páginas,
Departamento BnF de Manuscritos, Francês 2810, fol. 76v
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ouro ou prata na testa, como um sinal de que amam seu deus. São altos e bons guerreiros, andam
desnudos, apenas com um trapo que tampam os membros genitais. Quando lutam levam um
escudo que lhes cobre todo o corpo, e uma grande lança. Quando fazem prisioneiros em batalha,
os comem. Seu rei é muito devoto e religioso, conforme suas crenças. Diz devotamente
trezentas preces diariamente ante de comer. Carrega em seu pescoço um maravilhoso e nobre
rubi do oriente, que recebeu quando se tornou rei. A justiça impera na ilha, pois o rei é muito
justo e equilibrado em seus julgamentos. (Mandeville, pp. 179-180)
ORIGEM DE SERES MONSTRUOSOS
Nos tempos de Noé, costumavam vir do inferno, os demônios para se deitarem com as mulheres
da descendência de Cam, filho de Noé, e engendrar seres monstruosos e disformes, alguns sem
cabeça, outros com enormes orelhas, outros com um só olho, outros gigantes, outros com pés
de cavalo e outros com diversas formas desfiguradas. Da geração de Cam procede os pagãos e
diversas gentes que vivem nas ilhas do mar que rodeia toda Índia. (FRANÇA, 2007: p. 197)
FRUTO QUE DELE CRESCE UMA AVE
Figura 6 - Criaturas Monstruosas
John Mandeville, Livro das Maravilhas.Paris,1410-1412.
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Atravessa-se o Reino de Caldilhe, muito grande e belo. Nele cresce um tipo de fruto
parecido com as cabaças, que quando maduro e partido ao meio, encontra-se um pequeno
animal de carne, osso e sangue, parecido com um cordeiro sem lã. O animal e o fruto podem
ser comidos. É uma grande maravilha! Desse fruto magnifico eu comi, por isso sei que Deus é
maravilhoso em suas obras. No entanto, disse-lhes que não me surpreendia, pois em nosso país
havia uma maravilha de igual dimensão, a dos barnacles. Mandeville explica que em sua terra,
existiam árvores que davam frutos dos quais saiam aves voadoras, boas para comer. As que
caiam na água viviam e as que caiam em terra morriam imediatamente, e que eram muito boas
para se comer. Ao ouvirem, ficaram maravilhados, e alguns julgaram ser impossível algo assim.
(FRANÇA, 2007: p. 225).
Figura 7- que se encontra um pequeno animal de carne, osso
e sangue, parecido com um cordeiro sem lã.
Libro de las Maravillas de Marco Polo fº 210.
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ÁRVORES E SEUS FRUTOS DIFERENTES, SERES METADE HOMEM
E METADE CAVALO E GRIFFOUNES
Na Terra de Bacharie6 vive gentes muito más e muito cruéis. Existe, nessas terras,
árvores que dão lã como das ovelhas, com a qual fazem tecidos para se vestirem.
Há também muitos ypotaynes, que as vezes vivem na água, as vezes na terra, são metade
homem, metade cavalo, e comem os homens se os pegam.7
Nesse reino há também muitos Griffounes8 mais do que nenhum outro. Alguns dizem
que a parte superior de seu corpo é como águia e a parte inferior como do leão. O corpo do
griffo é maior e mais forte que oito leões desta parte de cá, e maior e mais forte do que cem
águias nossas. Um griffo pode levar voando a seu ninho, um grande cavalo, ou dois bois unidos,
tal como são levados no arado. As garras de suas patas são tão grandes e compridas como os
cornos dos bois e delas são feitas conca para bebida. Suas costelas e plumas de suas asas servem
para fazer arcos muito resistentes para caçada.
DO ESTADO REAL DE PRESTES JOÃO
6
Bactriana.
7 Mandeville provavelmente confunde hipopótamos e hipocentauros ou centauros, seres míticos, metade homem e metade cavalo.
8 O griffo é um animal fabuloso, com cabeça, bico e asas de águia e corpo de leão. Possui natureza divina e representa o espaço aéreo, próprio
da águia e o espaço terrestre, representado pelo leão.
Figura 8 - Combate de Centauros e Grifos
Bibliothèque Nacionale de France - John Mandeville, Viagem (Livro das Maravilhas). Paris, 1410-1412.
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Na Ilha de Pentoxena9, reina Prestes João. Seu domínio é muito extenso, e existem
muitas boas cidades, vilas e ilhas grandes e largas. Toda a Índia está dividida em ilhas em razão
dos grandes rios que nascem no Paraíso e dividem toda a terra em muitas partes. No mar, o
imperador possui muitas ilhas. Sob seu poder estão muitos reis, muitas ilhas e povos diferentes.
A terra é muito boa e rica, porém não mais como do Grande Cã.
Os mercadores não vão com grande frequência para a Ilha de Pentoxena, como vão para
as terras do Grande Cã, pois a viagem é muito longa, e em Catai encontra-se de tudo do que o
homem possa necessitar, tais mercadorias como sedas, especiarias, tecidos de couro e outros
produtos. Ainda que na ilha de Prestes João tenha todos esses produtos e sejam muito mais
baratos, os mercadores temem a longa viagem e os perigos do mar daquelas partes, pois em
muitos lugares do mar, existem rochas imantadas, cuja a própria natureza atrai o ferro, por isso
não se deve navegar por esses mares, barcos que tenham amarras ou cravos de ferro, pois seriam
atraídos para essas rochas e jamais poderiam sai dali. Mandeville testemunha que ele mesmo já
viu nesse mar, ao longe, algo que parecia uma grande ilha cheia de árvores e matagais com
grande quantidade de espinhos e sarças. Os marinheiros disseram para ele que eram barcos que
tinha sido atraído pelas rochas imantadas. A distância para à Ilha de Pentoxena é bem maior do
que a distância para ir ao Reino do Grande Cã, pois para ir até Catai necessita cerca de doze
meses ou mais, por terra e mar, partindo de Gênova ou Veneza.
O caminho que os mercadores fazem para chegar a Ilha de Pentoxena é maior e mais
complexo, com muitos perigos. O trajeto a ser feito, é simples, porém muito mais demorado.
Tem que passar pelo Reino da Pérsia, em direção da cidade de Hermes10, chamam-na assim,
pois foi o filósofo Hermes que a fundou, atravessando um braço de mar e chega-se a uma cidade
chamada Golbach11, onde também se acha todos os tipos de mercadorias. Nessa ilha há tantos
tipos de papagaios, como em minha terra há cotovias, comenta nosso autor.
9
Lugar não situado.
10 Cidade de Ormuz.
11 Cidade de Khambhat, antiga cidade da Índia.
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O Reino possui sobre a autoridade do imperador, setenta e duas provinciais, cada uma
com seu próprio rei, ao qual tem sob sua autoridade outros reis, e todos pagam tributos ao
imperador Prestes João. Seus domínios compreendem a largura de quatro meses de jornada e
de comprimento são imensuráveis, já que se estendem até as ilhas que supomos estar no extremo
oposto de onde estamos. Prestes João é cristão, como a maior parte dos seus súditos, acreditam
no Pai, no Filho e no Espirito Santo. São homens de boa fé e religião, leais uns aos outros, não
existindo entre eles fraude ou corrupção.
SOBRE A ORIGEM DO NOME PRESTES JOÃO
Havia, a muito tempo atrás, no tempo em que a cristandade se estendia, no ultramar, por
toda a Turquia, Síria, Tartária, Jerusalém, Palestina, Arábia, Alepo e por todo Egito, um
Figura 10 - Imperador Prestes João.
Image of Prester John, enthroned, in a map of East Africa in Queen Mary's Atlas, Diogo Homem, 1558.
British Library, Add. 5415 A, folio 15 verso.
Figura 9 - Navegação por Mares do Reino de Prestes João. Os perigos das rochas imantadas.
Marco Polo, O Livro das Maravilhas. Iluminação do Master of Egerton. Copiados para Paris 1410-1412.
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imperador, que era um príncipe muito valente e tinha em sua companhia muitos cavaleiros
cristãos. O imperador tinha o desejo de ver como era o culto da igreja entre os cristãos. Assim
sucedeu que o imperador, junto com um cavaleiro cristão viajou até o Egito, onde foi assistir
uma missa em uma igreja cristã. Era um dia de sábado, após Pentecostes e o bispo ministrava
o sacramento da ordem sacerdotal. O imperador contemplava e seguia a liturgia. Perguntou
quem eram aqueles ordenados diante do prelado e o que lhes estava reservado. O cavaleiro
respondeu que logo se converteriam em prestes12. O imperador, imediatamente disse que não
queria mais ser chamado de nem de rei e nem de imperador e sim de Preste. E que queria ter o
nome do primeiro preste que saísse, que foi o de nome João. Assim, desde então tem sido
chamado de Preste João.
SOBRE O MAR ARENOSO
Nos domínios de Prestes João há muitas maravilhas, e entre elas, o Mar Arenoso,
formado de areia e gravela, sem uma gota de água. Flui e reflui formando grandes ondas, como
ocorre em outros mares, e jamais, em nenhuma estação fica parado ou tranquilo. Ninguém se
atreve a atravessa-lo, nem em barco nem usando qualquer outro meio, razão pela qual não se
sabe que territórios existem além desse mar. E ainda que esse mar não tenha água, em suas
margens há bons pescados de outra espécie, diferentes, não encontrados em outro mar. Tem
muito sabor e são deliciosos de comer.
A três jornadas de distância do Mar Arenoso, existem grandes montanhas, das quais flui
um grande rio que vem do Paraíso. Está cheio de pedras preciosas, mas sem água. Flui pelo
deserto até formar o Mar Arenoso, onde desemboca e morre.
Três vezes por semana flui arrastando enormes quantidades de pedras, que fazem muito
barulho. Deixam de ser vista quando adentram no Mar Arenoso, onde se perdem para sempre.
Nesses três dias ninguém se atreve a entrar no rio, mas nos outros dias pode-se adentrar
com facilidade. (FRANÇA, 2007: p. 230-231)
12
Significado de Prestes: ao alcance, disponível, presente, pronto, preparado, disposto para o convento.
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ARVORETAS MÁGICAS, HOMENS SELVAGENS CORNUDOS E PAPAGAIOS
PSITAKES FALANTES
Além do rio Arenoso, em direção aos desertos, existe uma grande planície arenosa entre
as montanhas. Todos os dias ao nascer do sol, nessa planície, começa a crescer umas arvoretas,
que continuam crescendo até o meio-dia, quando aparecerá seus frutos, coisa que parece feitiço,
pois depois do meio-dia, as arvoretas começam a decrescer e retomam para a terra, de forma
que, ao pôr-do-sol não aparecem mais. Isso acontece diariamente. E é uma grande maravilha.
Nesse deserto há muitos homens selvagens, cornudos, de horroroso aspecto e que não
falam, apenas grunhem como os cerdos. Há cães selvagens em grandes quantidades.
Essa planície tem grande variedades de papagaios, entretanto há papagaios
chamados Psitakes que falam com uma voz nítida e clara igual aos homens. Os que falam tem
cinco dedos em cada pata e uma língua larga. Os que tem 3 dedos em cada pata não falam nada
que seja compreensível, apenas gritam. (FRANÇA, 2007: p. 231)
VALE DO PERIGOSO – UMA DAS ENTRADAS DO INFERNO
Perto da ilha de Pentoxena e da ilha de Milstorak, à margem esquerda do rio
Frison,13existe um vale entre as montanhas com a longitude de aproximadamente de quatro
milhas. Ouve-se, no vale, frequentemente, tormentas, murmúrios e ruídos, tanto de dia como
de noite. Ouve-se grandes barulhos e ruídos, tais como soar de tambores, bombos e trombetas,
como uma grande festa. Este vale sempre esteve cheio de demônios. Diz-se que é uma das
entradas do inferno.
No vale há muito ouro e prata, motivo pelos quais muitos infiéis entrem nele em busca
dos tesouros que poderão encontrar. Poucos regressam, principalmente os infiéis e os cristãos
que têm a cobiça de possuir, são rapidamente estrangulados pelos demônios. No centro do Vale,
sob uma rocha, existe uma cabeça de demônio terrificante e horrível. Não houve ninguém no
mundo que fosse tão corajoso, cristão ou não, que ao olha-la não tivesse pavor e a nítida
13
Rio Ganges.
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impressão que iria morrer. Seu olhar é tão cortante, seus olhos são tão móbeis e faiscantes, que
mudam constantemente de forma e expressão ao ponto de ninguém se atrever a se aproximar.
Irradia fogo e fumaça e tanta pestilência, que dificilmente alguém poderia resistir.
Os bons cristãos, firmes em sua fé, põem entrar sem correr perigo, pois confessam-se e
benzem-se com o sinal da cruz, de modo que os demônios não têm poder sobre eles. Não deixam
de temer quando os demônios os rodeias, lançam ataques, ameaçam com golpes, trovões e
tempestades. Acham que Deus quer se vingar deles, por intermédio dos seus, pois agiram contra
Sua Divina vontade. Mandeville adentra nesse vale com seus companheiros e conta que hesitou
muito antes de entrar, mas tomou coragem frente a valentia de dois frades da Lombardia, que
se dispuseram a entrar se alguém entrasse. Foi feita uma missa antes da entrada no vale, onde
todos se confessaram e comungaram. Entramos 14 homens no total e saímos apenas 9 homens.
Dois deles eram da Grécia e três da Espanha. Os companheiros que não quiseram ir, foram por
outro caminho e nos esperaram na saída do vale. Quando entraram no vale, encontraram grande
quantidade de ouro, prata e pedras preciosas, mas não sabem se tudo era verdade como parecia
ou ilusão, já que os demônios são astutos e fazem com que algo pareça o que não é, com o
propósito de enganar. Declara que não tocou em nada, pois não queria se desviar de sua
devoção, pois estava mais devoto do que jamais tinha sido em razão de tanto terror aos
demônios e a grande quantidade de corpos mortos que jaziam estendidos no caminho, por toda
a extensão do vale. Muitos dos defuntos estavam vestidos como cristãos e seus corpos não
estavam deteriorados. Confessa, nosso autor, que apesar de terem sentido muito medo e por
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muitas vezes tenham sido lançados em terra por ventos, raios e temporais, sentiram-se mais
crentes e protegidos pela graça de Deus.
ILHA DE GIGANTES
Além do vale, passamos defronte a uma grande ilha, cujos habitantes são grandes como
gigantes, medindo 28 a 30 pés de altura e não vestem roupas, apenas cobrem seus corpos com
peles de animais. Não comem pão, preferem ingerir carne crua e bebem leite, pois nessa terra
há ambulância de todo o tipo de animal. Não tem casas e preferem comer carne humana a
qualquer outra.
Ninguém se atreve entrar voluntariamente ou se aproximar, pois se suas gentes verem
um barco com pessoas dentro, entram logo ao mar para pega-los e os comem vivos.14 Contam,
que há uma outra ilha, no qual vivem gigantes maiores, por volta de quarenta e cinco pés de
altura, mas confesso que não os vi, pois não me aproximei, pois ninguém chega próximo dessas
ilhas sem serem devorados.
Nessas ilhas vivem ovelhas enormes como bois, que dão muita lã em estado bruto.
Mandeville fala que já viu muitas ovelhas como essas. Outras pessoas viram e lhes contaram
que gigantes dessas ilhas quando veem homens no mar, próximo à sua ilha, imediatamente se
14
Esses gigantes aparecem também nos Contos de Mil e Uma Noites, na terceira viagem de Simbá, o marujo.
Figura 11- Vale do Perigoso: Peregrinos em uma das entradas do inferno.
Jean de Mandeville, Livro das Maravilhas. Paris, XV século. Paris, BNF, Departamento de Manuscritos,
Francês 2810, fol. 215.
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lançam ao mar para pega-los, dois homens em cada mão, para leva-los a terra e devora-los crus.
(FRANÇA, 2007: p. 237).
PARAÍSO TERRESTRE
Mais além das terras, ilhas e do deserto dos domínios de Prestes João, em direção ao
oriente, não há nada mais do que grandes montanhas, enormes rochas e a Terra das Trevas, na
qual não se pode ver nem de dia nem de noite, segundo testemunham gentes que moram nas
terras daqui.
Esse deserto e esse lugar tenebroso se prolongam até o Paraíso Terrestre, lugar onde
viveram Adão e Eva. O Paraiso está a oriente, no mesmo ponto que começa a Terra. Deus fez a
Terra completamente redonda, situando-a no centro do firmamento. No princípio não havia
montanhas nem vales, apenas se formaram como consequência do dilúvio de Noé, que arrastou
a terra mole e macia, enquanto a terra dura e rochosa permaneceu, originando-se as montanhas.
Madeville comenta a respeito do Paraíso Terrestre, confessando aos seus leitores que nunca
esteve lá, pois o Paraiso não estava a seu alcance. Contudo, fala o que ouviu dos sábios do
ultramar:
“O Paraíso Terrestre, segundo eles, acha-se no ponto mais alto da Terra,
tão alto que quase roça o círculo da Lua e tão alto que o dilúvio de Noé não
pode chegar até ali, tendo coberto toda a terra do mundo, a parte de baixo e a
parte de cima, exceto o Paraíso. E esse Paraiso está completamente rodeado de
por uma muralha, que não se sabe do que é feita, porque as paredes estão
completamente cobertas de musgo; segundo parece, talvez seja feita de pedra
ou algum outro material do qual se fazem muralhas. Ela se estende de sul a norte
e só tem uma entrada, que é de fogo ardente, de modo que nenhum mortal pode
ultrapassa-la.” (FRANÇA,2007: p.249)
Nenhum mortal consegue aproximar-se do Paraíso, pois por terra é impossível ir, em
razão das feras selvagens que há no deserto, das altas montanhas e dos lugares tenebrosos que
existem antes do Paraiso. Tampouco se pode navegar por seus rios, pois correm muito
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impetuosamente, pois vem do alto, formando ondas enormes, a tal ponto que nenhum barco
consegue navegar contra seu curso.
Muitos grandes senhores tentaram navegar por seus rios com grande contingente de
homens, mas não alcançaram êxito. Muitos morreram esgotados de remar contra suas enormes
ondas, muitos se afogaram e morreram perdidos entre as ondas, outros ficaram cegos, outros
surdos em razão do barulho de suas águas. Nenhum mortal pode aproximar-se do Paraíso sem
ter a graça especial de Deus.
Mandeville declina de sua exposição acerca do Paraiso, pois não pode falar do lugar que
não viu e sequer conseguiu se aproximar.
NASCENTES DOS RIOS DO PARAÍSO
No lugar mais alto do Paraíso, justo no centro, há um manancial, em que são as nascentes
dos quatro rios, o primeiro chama-se Fison15 e significa lugar de encontro, porque nele vertem
suas águas vários outros rios. Atravessa a Índia ou Emlak. Em alguns trechos sua água é clara
e em outros turva. Em alguns trechos sua água é quente e em outros frias.
O segundo chama-se rio Nilo ou Geon, e atravessa a Etiópia e o Egito, suas águas estão
sempre turvas, por isso a origem do seu nome, pois em Etíope e Egípcio, geon significa turvo.
O terceiro chama-se rio Tigre, que cruza a Assíria e a Grande Armênia. O significado de
seu nome é o veloz, pois flui muito mais rápido que nenhum outro rio, pois o animal tigre é
muito veloz.
E por último, o rio Eufrates, o significado de seu nome é o fértil, pois perto dele são
cultivados muitos alimentos, tais como cereais, frutas, entre outros. Atravessa a Média, Armênia
e Pérsia.
Conforme visualizarmos o mapeamento dos rios que nascem no Paraíso, observamos
que estão fisicamente bem distantes um do outro, portanto suas nascentes são bem diferentes e
distantes. Os rios que ficam mais próximos um do outro, são os rios Tigre e Eufrates, que tem
15
Ganges.
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suas nascentes mais próximas, portanto, a localização do Paraiso Terrestre poderia estar na
região da Mesopotâmia, ao norte.
A nascente do rio Nilo fica ao sul, na região onde é atualmente o Sudão e sua foz fica
no Mar Mediterrâneo. Quando ao rio Ganges, sua nascente é na região do Himalaia, na Ásia,
onde vários rios o formam. Corre em direção ao sul e sua foz fica na Baia de Bengala, na Índia.
RETORNO DE MANDEVILLE AO OCIDENTE
Mandeville retorna para o ocidente no ano da graça de 1356, trinta e quatro anos após
deixar sua terra. E segundo suas próprias palavras, muito a contragosto, por causa de uma artrite
gotosa. Passa a escrever suas memorias, pois é obrigado a repousar.
“Agora, regressei, muito a contragosto por causa de uma artrite gotosa. Sendo obrigado a
descansar, recordei o passado, compilei essas coisas e as coloquei por escrito, do modo que
pude me lembrar, no ano da graça de 1356, trinta e quatro anos depois de deixar nossas terras.”
(FRANÇA, 2007: p. 256).
Antes de retornar a sua cidade, Mandeville passa pela cidade de Roma e em audiência
com o Papa, abre seu coração ao Santo Padre e obtém sua absolvição de tudo que pesava em
sua consciência, que eram coisas referentes a diversas questões graves. Aconselha a todos que
viajarem a fazerem a mesma coisa no retorno, pois conviveram entre tantos povos diversos,
com seitas e religiões diferentes, precisam proceder como ele e obter o perdão para os pecados
cometidos.
Figura 12 - Rios que nascem no Paraíso Terrestre.
Livro das Maravilhas. Jean de Mandeville, O mestre de Boucicaut, iluminador, Paris, 1410-1412.
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Mostra para o Santo Padre, suas narrativas de viagem, contendo informações de
coisas que não havia visto, mas recolhida de outras pessoas, e com as próprias informações das
maravilhas e costumes que ele próprio havia visto. O Papa julgou necessário que seu livro fosse
examinado e corrigido de acordo com o parecer de seu sábio conselho privado. Mandeville
consegue o aval do conselho do Papa, e mostraram para ele um outro livro, que tinham
confrontado com o seu, que continha cem vezes mais coisas descritas, e que tinha servido de
referência para fazerem o Mappa Mundi. Assim seu livro foi ratificado e aprovado pelo Santo
Padre (Papa Inocêncio VI).
CONCLUSÃO
A forma em que Mandeville vê a Ásia, como um lugar diferente em todos os aspectos
da vida ocidental na Europa, constrói grandes formas de alteridade, principalmente quanto ao
corpo, como misturas do gênero animal com o gênero vegetal, como exemplificação temos o
relato da visita ao Reino de Caldilhe, onde cresce um tipo de fruto parecido com as cabaças,
que quando maduro e partido ao meio, encontra-se um pequeno animal de carne, osso e sangue,
parecido com um cordeiro sem lã; misturas do gênero animal com gênero humano, como o
autor relata em sua visita a ilha de Nacumera, os seres canopholos, com corpo de homem e
cabeça de cão. Tudo isso faz crer que Mandeville era um bom leitor dos Bestiários e que
naturalmente categorizou os seres estranhos a partir de suas leituras. Nada exclui a possibilidade
de serem efetuados acréscimos, já que, como diz o famoso ditado “quem conta um conto
aumenta um ponto” e uma outra estranheza seria sobre as línguas: alguns seres não falam, e
alguns deles tem a boca fechada e outros seres falam línguas extremamente estranhas, portanto
o estranhamento quanto a língua é caracterizado como uma diferença a ser alcançada e
superada.
Jaques Le Goff analisa a Ásia como uma espécie de Índica, como um grande território
onde estão todas as fantasias, como da fertilidade, de gentes estranhas, animais estranhos,
costumes estranhos, um território longínquo, fechado, onde se localiza o Paraiso.
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Outro tipo de estranhamento é o tipo de paisagem, identificada por exemplo o que é o
deleite de toda cristandade, como a descrição e a busca do Paraíso Terrestre, o vale do Perigoso,
com suas entradas para o inferno e seus seres infernais. entre outras terras e ilhas onde há fartura
e variedades de alimentos e de aromas, e de riquezas minerais.
Em resumo a Ásia de Mandeville com grandes maravilhas e fantasias não difere
muito de outras narrativas contemporâneas de sua época, tais como as de Marco Polo, Túndalo,
entre outras. Não podemos deixar de mencionar a repercussão de sua obra, como a quantidade
de leitores e de edições copiadas, inclusive para outras línguas. Seu livro foi um “best seller”
para época, e, portanto, onde há quem narre, há principalmente quem ouça, já que a leitura
medieval é sobretudo feita pelos ouvidos. Mandeville fala para leitores sedentos de ouvirem
sobre as fantasias e maravilhas, mas também sedentos de conhecer um novo mundo que estava
se abrindo para toda a Europa. A Ásia é portanto, como a Índica de Le Goff, lugar pleno de
maravilhas, fantasias e estranhamentos, longínqua, rude e perigosa, mas encantadora.
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Referências
Fontes
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2016.
Mandeville's travels : the Egerton version / from the edition by George F. Warner. Disponível
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http://quod.lib.umich.edu/c/cme/acd9576?rgn=works;view=toc;rgn1=author;q1=mandeville.
Acesso em 15 de março de 2016.
Bibliografia
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Sintesis, 1994.
GREENBLATT, Stephen. Possessões Maravilhosas. São Paulo: EDUSP, 1996.
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________. Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Editorial Estampa, 1980.
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______________. Nós e os Outros: A reflexão Francesa sobre a diversidade Humana. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, vol. 1
ZINK, Michel. LITERATURA in Dicionário Temático no Ocidente Medieval-volume II. São
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