SUMÁRIOSUMÁRIO
PROPOSTA PEDAGÓGICA ........................................................................................ 03Um Mundo de Letras: práticas de leitura e escritaMaria Angélica Freire de Carvalho e Rosa Helena Mendonça
PGM 1 – LINGUAGEM: ORALIDADE E ESCRITA ....................................................... 11O essencial para saber ler e escrever no processo inicial de alfabetizaçãoLuiz Carlos Cagliari
PGM 2 – TEXTO: LEITURA E PRODUÇÃO DE SENTIDOS .......................................... 26Texto: leitura e produção do sentidoIngedore G. Villaça Koch
PGM 3 – GÊNEROS TEXTUAIS: OBJETOS DE ENSINO ............................................. 41Gêneros como objetos de ensino: questões e tarefas para o ensino Sandoval Nonato Gomes-Santos
PGM 4 – COMPREENSÃO E PRODUÇÃO DE TEXTOS ................................................ 63Leitura e escrita: produção de sentidosMônica Magalhães Cavalcante
PGM 5 – A GRAMÁTICA NA ESCOLA ............................................................................80Língua Portuguesa: o ensino de gramáticaLuiz Carlos Travaglia
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 2 .
PROPOSTA PEDAGÓGICAPROPOSTA PEDAGÓGICA
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA
Maria Angélica Freire de Carvalho1
Rosa Helena Mendonça2
Texto quer dizer Tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um
produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém, mais ou menos oculto, o
sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a idéia gerativa de que o texto se
faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido – nessa
textura – o sujeito se desfaz nele qual aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreções
construtivas de sua teia3.
Com os estudos da Lingüística Textual4, o texto passou a ser tomado como objeto central de
ensino. Assim, nas aulas de Língua Portuguesa, as atividades de leitura e de produção de
textos ganharam mais espaço. Entretanto, a abordagem precisa ser ampliada, no sentido de
entender-se o texto, também, como objeto de interação e, portanto, de aprendizagem, para
além do contexto escolar e para além, é claro, das aulas de Língua Portuguesa.
Pensar a forma como se organizam os enunciados e como interagimos com os mais variados
interlocutores nas práticas sociocomunicativas é fundamental para um fazer pedagógico
produtivo. Por essa razão, é importante trazer, mais uma vez, como temática para o programa
Salto para o Futuro, idéias que fundamentam o texto como objeto de ensino e de
aprendizagem.
As práticas de leitura e de escrita estiveram presentes nas discussões temáticas que
compuseram inúmeras séries do Salto para o Futuro, ao longo dos quinze anos de exibição do
programa. Com o propósito de ampliar as reflexões sobre tais práticas, mais uma vez, elas
são o mote de uma série que enfatiza o texto como unidade de ensino, ao abordá-lo sob a
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perspectiva da oralidade e da escrita, atentando para os múltiplos ângulos de observação, tanto
em relação à sua constituição, estrutura e linguagem, quanto ao seu entendimento –
compreensão/interpretação5– pelo leitor/ouvinte.
As dificuldades apontadas, em geral, tanto pelos professores quanto pelos alunos, no dia-a-dia
escolar, em relação às atividades com o texto, destacam-se como o grande “nó” para um
saber-fazer pedagógico. E é a forma de lidar com o texto, seja para a sua escrita, seja para sua
intelecção, em suma, para a produção de sentidos, que permitirá desenvolver uma
aprendizagem significativa com a linguagem na escola.
O domínio da escrita, favorecido pelo contato com diferentes textos nas classes de
alfabetização, por exemplo, estende-se a todos os segmentos de ensino, aprimorando-se por
meio das práticas sociais com a linguagem e legitimando-se por meio de um trabalho
pedagógico que tome o texto como fonte e ferramenta de ensino desde as séries iniciais.
Esse trabalho deverá desenvolver-se de modo a considerar o texto além da sua estrutura
organizacional, englobando a linguagem que o caracteriza, o contexto de produção, os
espaços de circulação e os possíveis interlocutores. Uma abordagem significativa para o texto
em sala de aula, portanto, deverá compreendê-lo como uma proposta de sentidos suscetível às
interações.
Um problema que se pode destacar em relação às práticas de leitura e de escrita no ambiente
escolar é a artificialidade com que, muitas vezes, se trata a relação autor-texto-leitor e, ainda,
o ensino da gramática tomando-a como um fim em si mesma. Exemplos de práticas que
abordam o texto somente sob o ponto de vista estrutural, desvinculado de um contexto de
produção e de circulação, e que não levam em conta a sua proposta comunicativa podem
resultar num trabalho com a escrita e com a leitura meramente formal, distanciado de uma
concepção de texto como unidade de ensino e como forma de interação.
Escolher determinadas “peças” de linguagem e não outras e, do mesmo modo, privilegiar uma
dada forma composicional em relação às inúmeras possibilidades de apresentação dos
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 4 .
enunciados6 são estratégias do produtor que direcionam a construção de sentidos. Essas
escolhas são realizadas pelo produtor do texto, levando em conta conhecimentos partilhados,
ou presumidamente partilhados, pelo leitor. São tarefas esperadas do leitor: a identificação de:
tais estratégias e, ainda, a articulação dos conteúdos apresentados no texto, de modo a se
aproximar de um sentido7 pretendido pelo produtor.
O texto, assim visto, é concebido, portanto, como espaço de interação, constituindo-se por
meio dos processos de coesão, construídos sob sua articulação escrita, e também leitora8, e de
coerência que se estabelece nos diferentes contextos comunicativos e pelos diversos
interagentes.
Apresentar aos alunos esses caminhos de contato/interação com as práticas de letramento
contribui para que o processo de autoria9 se construa no ambiente pedagógico, abrangendo as
diferentes disciplinas escolares. Reconhecer as marcas constituidoras da textualidade, aceitar
tais marcas como “provocações” de sentidos e identificar os propósitos comunicativos são
passos necessários para a produção de textos, tanto para a leitura quanto para a escritura, pois,
conforme nos lembra Marcuschi (1998, p. 4), produz sentidos tanto quem escreve quanto
quem lê textos10.
Em suma, escolher determinadas marcas lingüísticas em meio a muitas outras oferecidas pela
língua, apresentá-las, sistematizá-las, adequá-las aos usos de linguagem, ao cotidiano e à
norma, inscrevê-las nos variados contextos de significação são compromissos de uma prática
que pode, e deve, sistematicamente ser vivenciada na escola. Inclui-se, também, nesse
compromisso, desenvolver estratégias de domínio da ortografia, da gramática da língua/texto,
por meio de atividades significativas com a linguagem, visando à descoberta de caminhos
para o desenvolvimento da competência textual dos alunos. Para isso, é necessário um
trabalho de seleção e de combinação dos elementos lingüísticos no universo das inúmeras
possibilidades que a língua oferece.
Nessa perspectiva, o trabalho com textos nas aulas de Língua Portuguesa oferecerá subsídios
para que a relação do aluno com o texto nas outras disciplinas escolares se amplie, de modo
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 5 .
que os processos de compreensão/interpretação possibilitem a construção de conhecimentos e
o desenvolvimento da autoria, princípios caros a uma prática pedagógica que se pretende
crítica e participativa.
Ao considerar os aspectos apresentados, a série Um Mundo de Letras: práticas de leitura e
escrita11 toma, ao longo dos cinco programas, o texto como eixo norteador das práticas com a
linguagem na escola, desde a aquisição da escrita, numa perspectiva de alfabetização por meio
de textos, práticas de letramento, ao seu domínio e à habilidade leitora, processos que se
expressam no exercício da autoria, tanto nas práticas de escrita quanto nas de leitura de textos.
A série compreende também pontos de encontro e de desencontro na abordagem dos registros
oral e escrito no fazer pedagógico: a transposição de marcas da oralidade para a escrita, o que
é comum na aquisição deste sistema; dificuldades na aprendizagem da ortografia; adequações
necessárias – e importantes – na construção dos mais variados gêneros discursivos e seus
contextos: do cotidiano aos usos literários, tecnológicos e científicos nas práticas
comunicativas. Essas práticas constituirão assuntos para debates que se pretendem
enriquecedores, sem o objetivo de esgotar a complexa discussão sobre a linguagem no
cotidiano escolar, seus múltiplos aspectos e o domínio normativo.
Ao longo dos cinco programas, serão discutidos temas como, por exemplo: (i) a cultura da
oralidade e a sua importância para o desenvolvimento da escrita; (ii) a leitura de textos como
atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos; (iii) os gêneros discursivos
no cotidiano escolar; (iv) a produção de textos e o domínio das estratégias de organização da
informação e da estruturação textual; (v) a aula de Língua Portuguesa: ensino e gramática .
Esta série pretende, enfim, oferecer aos professores, de diferentes segmentos de ensino e de
áreas do saber, conhecimentos e reflexões que se podem ampliar sobre um fazer pedagógico,
bem como sobre alternativas e sugestões para um trabalho que considere o aluno, antes de
tudo, como sujeito de aprendizagem que, essencialmente, inscreve sentidos na sua relação
constante, colaborativa e co-construtiva na e pela linguagem.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 6 .
Pontos para reflexão ao longo da série:
• Que concepção de língua/linguagem subjaz às práticas de ensino de Língua Portuguesa?
• De que forma oralidade e escrita perpassam as práticas sociais e escolares de linguagem?
• Como considerar as peculiaridades do ensino/aprendizagem da escrita, tomando como questão político-pedagógica o fato de grande parte dos alunos das escolas públicas ser oriunda de comunidades em que a cultura oral é o traço predominante?
• Como conceituar alfabetizar e letrar? O que significa alfabetizar letrando?
• O que significa tomar o texto como elemento central das práticas de ensino?
• Qual a importância de, ao se trabalhar com o texto na escola, enfocá-lo com um todo formado de elementos constitutivos que precisam ser analisados em suas especificidades?
• De que forma contemplar, nas práticas escolares, textos de diferentes gêneros/tipos, preservando o debate sobre seus contextos sociais de circulação?
Temas que serão discutidos na série Um Mundo de Letras: práticas de leitura e escrita, que será apresentada no programa Salto para o Futuro/TV Escola/SEED/MEC de 16 a 20 de abril de 2007:
PGM 1 – Linguagem: oralidade e escrita
Os objetivos do primeiro programa são: descrever práticas de linguagem, especificando as
características dos registros oral e escrito; destacar os usos de linguagem nos variados
contextos comunicativos, os gêneros que deles resultam. Neste programa, pretende-se
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 7 .
enfatizar a cultura da oralidade e a sua importância para o desenvolvimento da escrita, discutir
a aquisição do registro escrito como um processo que se dá ao longo das séries iniciais e que
se estende às práticas sociais com a linguagem e, ainda, ressaltar a relação entre usos de
linguagem e norma lingüística: variações lingüísticas e ensino da língua.
PGM 2 – Texto: leitura e produção de sentidos
No segundo programa da série, a proposta é conceituar “texto”, enumerando seus aspectos
constitutivos e destacar sua importância como espaço de interação social. O programa visa,
também, abordar mecanismos de coesão e de coerência textual, diferenciar os tipos de
intertextualidade, apresentar os processos de escrita e leitura sob contextos diversos de
produção e de uso, estabelecer uma comparação entre as principais teorias sobre texto e
leitura, enumerar estratégias lingüísticas que estão em jogo na produção de sentidos (escrita e
leitura) e promover uma discussão sobre as práticas de ensino da leitura,
compreensão/interpretação de textos.
PGM 3 – Gêneros textuais: objetos de ensino
O terceiro programa se propõe a destacar os diversos usos de linguagem, a constituição dos
gêneros discursivos e estabelecer uma distinção entre gêneros discursivos/textuais e tipologia
textual, assinalando o enfoque teórico. E, ainda, enfatizar os domínios da estrutura
composicional e do estilo como recursos importantes para a escrita dos mais diferentes textos,
refletir sobre as práticas atuais de linguagem, ressaltar a presença dos gêneros digitais,
destacar o uso da linguagem nos gêneros digitais (televisão, internet) e refletir sobre a sua
concepção na prática pedagógica.
PGM 4 – Compreensão e produção de textos
O quarto programa tem como proposta apresentar estratégias de referenciação discursiva nos
diferentes gêneros e o seu funcionamento na produção de textos (escrita e compreensão).
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 8 .
Sugerir atividades de sala de aula que levem em conta a diversidade constitutiva dos gêneros,
bem como as particularidades da linguagem. Objetiva, também, ressaltar a importância da
diversidade de gêneros para um trabalho com a produção de textos na escola, tanto para a
escrita quanto para a intelecção. Enfatizar a presença de textos literários na escola e o trabalho
com a multiplicidade de sentidos e, ainda, identificar a ambigüidade como recurso lingüístico
em gêneros como, por exemplo, publicitário e humorístico (piadas).
PGM 5 – A gramática na escola
No último programa da série, os debates vão focalizar a estruturação de uma abordagem
pedagógica de gramática a partir das três concepções básicas – mecanismo internalizado,
descritiva e normativa –, que se adeqüe ao ensino de língua que toma o texto como unidade de
ensino. Esta concepção pedagógica privilegia a dimensão significativa no ensino de
gramática. Pretende-se apresentar o trabalho com a gramática da língua em suas diferentes
variedades (inclusive a variedade oral e escrita) por meio de quatro tipos de atividades de
ensino de gramática: uso, reflexiva, normativa, teórica. O programa visa, ainda, discutir
sobre as concepções de erro e de adequação no ensino de gramática para a
produção/compreensão textual, tendo em vista a situação concreta e específica de interação
comunicativa em que se insere o ato de produzir/compreender textos e, conseqüentemente,
como pode/deve acontecer a intervenção do professor para orientar os alunos na seleção de
recursos lingüísticos para a constituição de sua fala e escrita.
Notas:
Doutora em Lingüística pela UNICAMP. Analista Educacional do programa Salto para o Futuro/TVEscola/SEED/MEC. Professora Adjunta de Língua Portuguesa do Centro Universitário Tecnológico Estadual da Zona Oeste/UEZO – Campo Grande/Rio de Janeiro. Consultora desta série.
2 Mestre em Educação pela PUC-Rio. Supervisora Pedagógica do programa Salto para o Futuro/ TVEscola/SEED/MEC. Consultora desta série.
3 BARTHES, Roland. O prazer do texto, São Paulo, Perspectiva, 1987, pp. 82-83.
4 Trata-se de um ramo da Lingüística que se desenvolveu na Europa, especialmente, na Alemanha e que tem como objeto de estudo o texto. Os estudos da Lingüística do Texto vêm
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se expandindo e ganhando destaque não só na Ciência da Linguagem, pois estabelecem diálogos com outras ciências como, por exemplo, Filosofia da Linguagem, Psicologia Cognitiva e Social, Antropologia, Ciências da Computação, entre outras. Para aprofundamento, sugerimos a leitura de KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Introdução à Lingüística Textual: trajetória e grandes temas. São Paulo, Martins Fontes, 2004.
5 Nesta proposta não fazemos uma distinção entre compreensão e interpretação, tal como propõe a Análise do discurso, ciência que tem como objeto de estudo o discurso, seus processos e condições de produção, entendemos os processos como interdependentes. Uma distinção para esses conceitos encontra-se no livro ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas, São Paulo, Pontes, 5 ed., 2003: “(...) A interpretação é o sentido pensando-se o co-texto (as outras frases do texto) e o contexto imediato. (...) No entanto, a compreensão é muito mais do que isso. Compreender é saber como um objeto simbólico (enunciado, texto, pintura, música, etc.) produz sentidos. É saber como as interpretações funcionam. Quando se interpreta já se está preso em um sentido. A compreensão procura a explicitação dos processos de significação presentes no texto e permite que possam ‘escutar’ outros sentidos que ali estão, compreendendo como eles se constituem” (p. 26).
6 Bakhtin, em seu livro Estética da criação verbal, propõe a classificação dos gêneros, “formas mais ou menos estáveis de enunciados”, em primários – aqueles que fazem parte da esfera cotidiana da linguagem e que podem ser controlados diretamente na situação discursiva, tais como: bilhetes, cartas, diálogos, relato familiar..., e secundários - textos, geralmente, mediados pela escrita, que fazem parte de um uso mais oficializado da linguagem; dentre eles, o romance, o teatro, o discurso científico... que, por essa razão, não possuem o imediatismo do gênero anterior. BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: ---, Estética da criação verbal, [trad. francês. Maria Ermantina Galvão; revisão, Marina Appenzeller], 3 ed. São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 279-287.
7 É importante destacar que, como tem evidenciado KOCH em vários de seus trabalhos, não há “o” sentido para o texto, mas sentidos possíveis que se partilham no curso de interação. O produtor, por meio das escolhas lingüísticas, orienta o leitor na construção do(s) sentido(s) que se dá em variadas direções contando com informações textuais e extratextuais.
8 A coesão não se estabelece somente por meio de articuladores e/ou elementos encadeadores explicitados na superfície textual, mas também por meio da construção de inferências, isto é, “estratégias cognitivas por meio das quais o ouvinte ou o leitor, partindo da informação veiculada pelo texto e levando em conta o contexto (em sentido amplo), constrói novas representações mentais e/ou estabelece uma ponte entre segmentos textuais, ou entre informação explícita e informação não explicitada no texto”. KOCH, Ingedore G. V. Desvendando os segredos do texto. São Paulo, Cortez, 2002, p. 50.
9 Para que o sujeito se constitua autor, ele deve ser capaz de organizar seu discurso extrapolando os aspectos formais e as regras que condicionam o texto, deve imprimir ao texto suas marcas, isto é, sua singularidade, sua expressividade enquanto produtor de sentidos. Sobre esse assunto sugerimos a leitura: POSSENTI, Sírio. Indícios de autoria, Revista Perspectiva, Florianópolis, v.20, nº01, p. 105-124, jan./jun. 2002.
10 MARCUSCHI, Luiz Antonio. Aspectos lingüísticos, sociais e cognitivos na produção de sentido. Texto apresentado por ocasião do GELNE, 2-4 de setembro, 1998. Mimeografado.
11 Esta proposta origina-se da série “Um Mundo de Letras” exibida pela TV Escola, canal da Secretaria de Educação a Distância (SEED/MEC), em cinco programas sob os títulos: “Um mundo imerso em palavras”; “O poder das histórias”; O som das palavras “; As normas da língua”; “Caminhos para ler o mundo”, respectivamente. A série original trata de questões relativas à alfabetização, letramento e cidadania, levando em conta as diferenças culturais e regionais do Brasil. Na série, os programas traçam um panorama de experiências propondo novas maneiras de abordar o processo de alfabetização e incentivar a prática da leitura.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 10 .
PROGRAMA 1PROGRAMA 1
LINGUAGEM: ORALIDADE E ESCRITA
O essencial para saber ler e escrever no processo inicial de alfabetizaçãoO essencial para saber ler e escrever no processo inicial de alfabetização
Luiz Carlos Cagliari1
1. Introdução
O processo de alfabetização depende de muitos fatores, porém, o principal deles é como uma
pessoa consegue ler. O segredo da alfabetização está, pois, na leitura. O termo leitura tem
muitos sentidos, aplicando-se a muitas áreas e a habilidades diferentes, como ler o mundo, ler
um quadro, fazer uma leitura de um fato ou de um lugar, etc. Na escola, o significado mais
usual e mais importante é saber interpretar. A leitura é algo que traz uma mensagem que
precisa ser entendida. Para se chegar a essa habilidade, é preciso percorrer um longo caminho
de estudos e praticar o ato de ler inúmeras vezes, em inúmeras circunstâncias e com inúmeros
tipos de material escrito. Esse é o ponto de chegada. Mas, para alcançar esse objetivo, é
preciso dar os passos iniciais. A alfabetização é, exatamente, os primeiros passos dessa
caminhada. Mal comparando, a alfabetização se assemelha ao engatinhar de uma criança e
seus primeiros passos na vida. Andar e correr são habilidades que vêm depois.
2. Definindo o que é a alfabetização
As considerações acima nos permitem definir o processo de alfabetização como a habilidade
de saber ler no sentido primeiro do ato de ler, que é decifrar o que está escrito. O resto vem
depois.
A definição de alfabetização tem estreita ligação com o objetivo da escrita, que é permitir a
leitura. Todos os sistemas de escrita têm esse objetivo. Desse modo, nenhum sistema de
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 11 .
escrita transcreve a fala de uma pessoa ou de grupo social, mas simplesmente a representa.
Esta é a razão pela qual cada um lê em seu dialeto. Um paulista lê uma revista em seu dialeto,
mas a mesma revista é lida por um carioca, um gaúcho, um nordestino, um português, um
angolano em diferentes dialetos. Seria ridículo que todos fossem obrigados a ler numa única
variedade. Diante disto, a escola precisa saber que seus alunos irão ler cada qual em seu
dialeto. A leitura no dialeto padrão é uma habilidade que vem mais adiante.
3. A linguagem oral e a linguagem escrita
Todo falante de uma língua fala comumente em seu dialeto, mas é ouvinte de todos os outros
que encontrar. A variação lingüística, entre outras características, traz marcas geográficas
(paulista, carioca, nordestino, português europeu, angolano, etc.), marcas sociais (dialeto dos
letrados, dos ricos, dialeto das classes pobres, dos advogados, dos jovens, dos idosos, etc.) e
marcas de estilo (dialeto padrão, estilo formal, informal, gíria, jargão, etc.). Essas marcas
representam regras diferentes de falar, regras gramaticais e regras de uso social. A variação
nas regras gramaticais não mostra um despreparo, uma deficiência, um descuido, mas um
sistema bem estabelecido. Somente a comparação de um sistema com outro é que mostra as
variações de uma mesma língua. Com os usos, a variação adquire valores sociais, atribuídos
pela sociedade e não pelo sistema gramatical. Quando alguém acha que uma pessoa das
classes mais desfavorecidas fala errado, está emitindo um juízo falso lingüisticamente, porque
essa pessoa usa seu sistema gramatical com perfeição. Isto ocorre com todos os dialetos. Na
sociedade, porém, é preciso, às vezes, falar o dialeto padrão do lugar, para mostrar aos outros
que a pessoa tem estudos e cultura e sabe se comportar de modo adequado aos costumes do
lugar. É por isso que a escola vai ensinar o dialeto padrão a quem não sabe, dando a esses
alunos uma chance a mais de ter melhores oportunidades na vida em sociedade.
Como a escrita é uma marca da cultura da sociedade, obviamente, adota uma variedade culta
da linguagem oral para sua forma escrita. Não escrevemos no nosso dialeto, mas no dialeto
padrão. Isso não é um empecilho, pelo contrário, faz com que a escrita cumpra seu objetivo
maior, que é permitir a leitura, deixando que cada falante leia em seu dialeto ou no dialeto
padrão.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 12 .
4. Começar sem saber
As crianças que começam a se alfabetizar sabem falar uma variedade (dialeto). Grande parte
delas sabe ouvir e entender o dialeto padrão, mas não o usam, porque sua vida na comunidade
não exige isso. Portanto, o processo de alfabetização precisa começar usando a variedade dos
alunos e não uma variedade que eles não falam.
5. A ortografia organiza a leitura
Para a escrita conseguir seu objetivo, ela teve que inventar a ortografia. Sem a ortografia,
nosso sistema iria trazer incontáveis formas diferentes de escrever uma mesma palavra,
porque as pessoas falam de modos diferentes (cf., por exemplo, compremu, compramos,
compramu; acharão, acharu; dentro, drentu; mais, maich; caldo, caldu, cardo, cardu, carrdu,
etc.). Com isto, descobrimos que quem manda no sistema de escrita é a ortografia e não o
princípio alfabético (letra = som e vice-versa). Uma letra representará tantos sons quantos
ocorrerem para ela em todas as palavras da língua; para todos os falantes, a letra A tem o som
de A em andamos; o som de E em andemu; o som de U em andaru, etc.
6. A categorização gráfica organiza o visual da escrita
A primeira coisa que uma pessoa precisa fazer para decifrar uma escrita é reconhecer quais
caracteres estão escritos, que letras a palavra tem. Dependendo do tipo de letra (fonte, estilo),
a pessoa pode ter sérias dificuldades. Se ela não souber que letra está escrita, como poderá
proceder à leitura? Todos nós já passamos pela experiência de não saber ler o que alguém
escreveu, porque não identificamos as letras. As letras de fôrma, sobretudo maiúsculas, são as
de mais fácil identificação. As letras minúsculas, menos, mas, como estamos familiarizados,
esses dois tipos são os melhores. Letra cursiva é muito difícil para o principiante, porque ele
não sabe onde começa uma e acaba outra. É importante salientar que as dificuldades iniciais
de um alfabetizando são muito diferentes das dificuldades que aparecem ao longo dos
estudos. No começo, a escrita parece o que, para nós, seriam rabiscos; depois, formas
geométricas; depois, letras. As diferentes formas de escrever uma mesma letra também são
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 13 .
uma fonte de grandes perplexidades por parte de alguns alunos. Um rabisco torna-se letra
quando adquire uma função no sistema de escrita, isto é, representa um som numa palavra.
Nesse momento, a letra torna-se uma unidade abstrata. Por isso, podemos variar sua forma
gráfica que suas funções permanecem as mesmas (cf. a - a; E - e; B - b; R - r, etc.).
7. O princípio acrofônico é um bom começo
Para se identificar as letras, principalmente na escrita cursiva ou como atividade inicial do
alfabetizando, recorremos à identificação da palavra. A palavra é a principal unidade de todos
os sistemas de escrita, inclusive o alfabético. Identificada uma palavra (possível, verdadeira
ou falsa – dependendo da adivinhação), o leitor passa a atribuir à palavra as letras, seguindo
seus conhecimentos da ortografia. Se o aluno não souber a ortografia, seu processo de
adivinhação é total e terá mais chances de errar. Feita a identificação das letras, passa-se à
interpretação da palavra. Neste caso, o contexto em que ela se insere é de grande ajuda,
porque o seu significado precisa se encaixar em meio a outros significados.
Dadas essas dificuldades, é comum, na alfabetização, que o professor diga de qual palavra se
trata para, em seguida, analisar quais letras tem, como se combinam e, assim, decifrá-la pela
análise das letras. Por razões de motivação, muitos professores começam a alfabetizar usando
os nomes das crianças. É pelos nomes de pessoas e de objetos que os pais também procedem,
quando querem começar a alfabetizar seus filhos.
8. A categorização funcional é o que vale
Apesar das dificuldades do sistema de escrita, os procedimentos de identificação gráfica das
letras e de sua associação com alguns sons possíveis (princípio acrofônico) fazem com que o
processo de alfabetização dê a partida suavemente e coloque o processo em aceleração. Como
o objetivo da alfabetização é saber ler, levando-se em conta outros fatores pressupostos (cf. os
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 14 .
alunos sabem falar, sabem refletir minimamente sobre a linguagem em seu aspecto fonético e
semântico...), uma boa metodologia consiste em desenvolver no aluno a habilidade de ler,
identificando letras e palavras. Em pouco tempo, os alunos são desafiados a ler uma variedade
de palavras e isso lhes dá autoconfiança.
O grande problema do processo de alfabetização está no outro lado da moeda: escrever.
Ninguém se alfabetiza escrevendo apenas. Basta copiar chinês, para aprender chinês? Basta
fazer hipóteses sobre a escrita chinesa para aprendê-la? Muitos conhecimentos são
necessários, muitas regras precisam ser aprendidas na teoria e na prática. Quando se lê, a
palavra já vem pronta na sua escrita ortográfica. Quando se vai escrever, é preciso partir da
fala (do dialeto); analisar quais sons (vogais e consoantes) a palavra tem; buscar uma
correspondência entre sons e letras, no começo, por um processo, em parte, de adivinhação
(princípio acrofônico); passar os sons para letras; checar o resultado (ortografia ou algum tipo
de escrita permitido). Esta é uma habilidade altamente complexa, que o aluno consegue
começar e desenvolver somente depois que adquiriu certa prática de leitura decifrativa, isto é,
depois de adquirir certa prática de manuseio de letras, sons e palavras. A consciência da
variação dialetal na leitura ajuda o aluno, no caminho de volta, a não se assustar com as
diferenças entre fala e escrita, indo diretamente para as formas ortográficas ou semi-
ortográficas.
O fato de uma letra referir-se a muitos sons, por causa da variação dialetal, porém exercer
uma mesma função no sistema ortográfico chama-se categorização funcional das letras. É a
alma do negócio.
Com o desenvolvimento de algumas habilidades de reconhecimento – 1) da forma gráfica das
letras (categorização gráfica); 2) de algumas relações entre letras e sons (princípio
acrofônico); 3) da função ortográfica que gerencia as relações entre fala e escrita
(categorização funcional) – o alfabetizando, em pouco tempo, aprende como proceder para
saber ler e escrever. A sofisticação dessas habilidades requer tempo, prática e dedicação. Para
isto, é necessária a ação do professor, não somente a do aluno.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 15 .
9. A prática do professor
Há muitos métodos de alfabetização. Há muitas teorias. Há práticas diferentes. Todavia, em
nenhum caso se dispensa o professor, que deve ter uma formação bem feita, que lhe dê o
instrumental teórico e prático para conduzir o processo de alfabetização. Como em todas as
atividades da vida, a competência técnica faz a diferença. Quanto mais o professor souber
sobre a linguagem oral e escrita, melhores chances ele terá de ensinar e de orientar seus
alunos para que superem suas dificuldades e atinjam os objetivos propostos. O modo como o
professor irá trabalhar o princípio acrofônico (também chamado de princípio alfabético), a
categorização gráfica e a categorização funcional, isto é, ensinar a reconhecer letras, montar
palavras na leitura e na escrita, enfim, sua programação de atividades, é uma questão que tem
de ser deixada para o professor resolver, porque, afinal, ele é quem conhece a classe de alunos
que tem e quais suas habilidades como professor. O método é o professor, mas os
conhecimentos técnicos precisam ser buscados na ciência, no caso, na Lingüística. Grandes
problemas advieram à Educação neste país, quando substituíram o professor pelos métodos
prontos (da alfabetização à universidade). O ser professor exige dele ciência e arte: ciência
para tratar cientificamente de tudo que ensina e arte para interagir com seus alunos e orientá-
los no processo de aprendizagem.
10. A prática na prática
Sem querer substituir o professor por um método predeterminado e por ações definidas passo
a passo, a prática de ensino em sala de aula acaba sugerindo procedimentos metodológicos
que, devidamente adaptados a cada professor, ajudam o processo de ensino e de
aprendizagem. As sugestões abaixo estão voltadas para os três pontos teóricos destacados.
Categorização gráfica:
• Usar um painel com o alfabeto de letras de fôrma maiúsculas, incluindo Ç, K, Y, W.
• Ensinar o nome das letras (um pouco por vez).
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 16 .
• Falar sobre o mundo da escrita, história da escrita, variação no aspecto gráfico das letras, sem fazer exercício; bastam os exemplos comentados.
• Mais adiante, ensinar as letras de fôrma minúsculas comparadas com as maiúsculas.
Princípio acrofônico (alfabético):
• Mostrar a relação entre letra e som, usando a primeira letra dos nomes dos alunos, de pessoas conhecidas e de objetos.
• Mostrar rimas e destacar as letras iguais nas palavras.
• Descobrir letras dentro de palavras. Usar pares de palavras em que há a variação de apenas uma letra/som (pares mínimos do tipo pata – lata; boi - foi).
• Descobrir sons em diferentes contextos de palavras e quais as letras que os representam.
Categorização funcional:
• Discutir com os alunos a questão da variação dialetal, pronúncias diferentes para uma mesma palavra.
• Discutir a questão da ortografia, como forma de neutralizar a variação dialetal.
• Escrita espontânea de palavras, de frases, de histórias.
• Correção ortográfica comentada.
Exemplos de estratégias de escrita
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 17 .
Tentativa da Júlia de escrever um bilhete para sua amiga Carol. Apesar de conhecer a forma
gráfica de algumas letras isoladas (começou a escrever seu nome), o texto manuscrito se
mostra com uma forma gráfica diferente, uma seqüência de laços. Aqui falta o conhecimento
da categorização gráfica das letras. A criança escreve assim por causa da maneira como
interpreta o gesto mecânico de escrita do adulto, que mantém o lápis fixo ao papel
constantemente.
Outra estratégia de escrita de uma história. O primeiro exemplo mostra um uso de letras de
fôrma maiúsculas e o segundo, de escrita manuscrita cursiva. Os dois alunos aprenderam a
forma gráfica de algumas letras e escreveram seqüências de letras. Aqui falta o conhecimento
da categorização funcional das letras. Quando esta prática se repete, o aluno fica
completamente perdido, porque ele sabe que não sabe ler.
Conhecendo a forma gráfica das letras, a criança é capaz de escrever palavras cujas letras são
ditadas por um adulto [HOMEM DA LUA]. Esse ditado-cópia não é suficiente para que a
criança aprenda a ler, mas pode ser um bom começo. O fato de um aluno “decorar” a escrita
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 18 .
de algumas palavras e de identificá-la lendo ajuda-o a refletir sobre a categorização funcional,
ou seja, a relação entre letras e sons. Quando, porém, a memorização é mecânica ou simples
cópia, a reflexão do aluno desaparece.
Os antigos e modernos ditados podem perpetuar a dificuldade que o aluno tem com a
categorização funcional, mesmo quando adquirem excelente caligrafia. Não adianta pedir para
a criança pensar, fazer hipóteses: ela precisa mesmo de explicações detalhadas. Analisar com
os alunos como se lê e como se escreve uma palavra vale muito mais do que muitos ditados
tradicionais.
Alguns alunos não chegam nem mesmo a aprender a categorização gráfica, apesar de
escreverem ocasionalmente algumas letras. Esta tentativa de escrever o próprio nome revela
isso. A variação no traçado mostra que a aluna poderia ser uma boa copista, mas só isto não
basta. Ela sabe que a simples cópia não a leva a escrever por iniciativa própria o que desejar;
então, começa a fazer tentativas estranhas. A questão da programação de conteúdo e das
estratégias de ensino e de aprendizagem, na alfabetização, assume um papel muito importante.
A alfabetização não pode ser feita “de qualquer jeito”.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 19 .
Com poucos conhecimentos, um aluno já pode tentar escrever suas histórias. Os erros de
ortografia vão aos poucos sumindo e sobram poucos. Ao tentar escrever com os próprios
recursos, aparecem muitas hipóteses de como os alunos acham que as palavras são escritas
(ortografia) e de como se pode contar um fato (organização do texto). Grande parte do
processo de alfabetização é dedicada a isso. Veja: Oca chorro / caxorro [cachorro]; mimodeu
[me mordeu]; no são [no chão]. Se o aluno só escreve, sem o professor analisar, discutir e
corrigir, - com o tempo, o aluno acha que pode escrever de qualquer jeito.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 20 .
O menino guardinnha
O menino ele apredeu ser um guarda iele eraosje
iele mãondava todo os quardas ida cidade para
ve sinão tei ladro sitifer eles prede sinão tifer ele
não prede ieles jegara com um labral qui eu mandei
[não prende e eles chegaram com um ladrão que eu mandei]
Mais eles pegaro o homen erado ieu fale i o nome dele
iera dodal mente erado o nome dele era Artur muito erado
easim acaba aestoria fin
O professor não precisa ter medo de ver textos escritos assim. Eles mostram que o aluno já
aprendeu a ler (está alfabetizado) e está muito adiantado na habilidade de passar da fala para a
escrita. Muitos problemas de escrita podem se reduzir a dificuldades ortográficas, porém,
esses problemas se corrigem com o tempo.
As hipóteses que as crianças fazem quando aprendem a ler e a escrever, ou seja, o que
costuma acontecer durante o processo de alfabetização
1. Diferença entre desenho e escrita: desenho representa o mundo, escrita representa palavra.
A escrita pode ser figurativa (pictogramas) ou geométrica (letras)
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2. Como a escrita representa a fala e permite a leitura, qualquer rabisco pode assumir o valor
de escrita, como as assinaturas e os rabiscos que as crianças fazem para escrever. Esse
sistema, porém, não pode ser usado para todas as finalidades da escrita.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 21 .
3. Aprendendo a forma gráfica das letras do alfabeto, a criança passa a escrever usando
seqüências de letras aleatórias: ASPTLMONSPTOA [era uma vez um macaco chamado
Mico]. Aluno que escreve assim é sinal de alerta para o professor: está indo para o caminho
errado. É preciso usar palavras curtas para explicar as relações entre letras e sons.
4. Quando o aluno é exposto à escrita manuscrita cursiva, pode interpretar erroneamente a
forma gráfica das letras. Com essa dificuldade não saberá, depois, relacionar letras com sons.
Um aluno que vê escrito prato pode pensar que essa palavra tem as seguintes letras: j s c a t
i e ou que rato começa com a letra c.
5. Aluno não corrige e vai escrevendo o que acha que precisa. Assim, uma palavra como “pai”
acaba recebendo a seguinte escrita: APAAIPAI e “sapato”: SABAPATO. A escrita está
correta, mas veio com os erros da tentativa de escrita. Isto é muito comum, mas alguns
professores não se dão conta disso.
6. Ao relacionar letras com sons, alguns alunos usam o nome das letras e não o valor
alfabético. Assim, escrevem HRA para “agora”. CAMLO para “camelo”, etc.
7. Seguindo o modelo das cartilhas, alguns alunos, em vez dos nomes das letras, usam as
famílias de letras (BaBeBiBoBu) e escrevem LT para “lata”; OA para “bola”.
8. Aparecem as mesmas escritas acima, quando o aluno repete várias vezes uma sílaba para
perceber sua maior saliência: LA LA LA TA TA TA: tem o L e o T; ou prolonga a sílaba:
BOOOO LAAAA: tem o O e o A.
9. Eventualmente, alguns alunos escrevem palavras ou letras de forma espelhada. Um pouco
de exercício de escrita espelhada e não espelhada, feito pelo professor, mostra o contraste e o
uso da direção da escrita.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 22 .
10. Nas escritas espontâneas iniciais, depois que o aluno aprendeu a usar letras relacionadas
com sons, a primeira dificuldade que aparece é de como separar as palavras da fala em escrita.
A falta de segmentação ou a segmentação indevida aparecem. Isso deve ser tratado como erro
de ortografia, que se corrige com o tempo.
Ex.: erumaveis [Era uma vez]; sitifer [se tiver]; aestoria [a estória]
oca choro [o cachorro]; dodal mente [totalmente]; nucei [não sei]
11. A troca de letras tem muitas causas: variação, murmurar os sons, atenção, etc.
bargi [balde]; acharo [acharam]; comprano [compando]; mecadio [merdadinho]; tele [dele];
latrão [ladrão]; pola [bola]
13. Na alfabetização, ocorrem muitos casos de hipercorreção: o aluno corrige uma forma
errada e, depois, generaliza uma regra que não se aplica em outros contextos. Ele escreve
MEDECO, corrige para MÉDICO e, depois, passa a escrever DECE em vez de DISSE;
corrige POLA, escrevendo BOLA e, depois, escreve BETE para PENTE.
14. Alguns alunos misturam letras (quando estudam vários estilos ao mesmo tempo):
caCHorro; casTeLo.
15. Ao aprender ou ver algumas marcas da escrita, como acentos, til, alguns alunos começam
a colocar tais marcas em lugar errado: petecã; éla; úrúbú, póde.
16. Erros de ortografia podem mostrar uma variedade de casos. No fundo, erro de ortografia é
erro de ortografia. Com relação à grafia das palavras: ou se sabe ou não se sabe; ou se escreve
certo ou errado. Por isso, o aprendizado da ortografia exige tempo, muita leitura e muito
exercício de escrita sob a supervisão do professor. Os erros de ortografia costumam chocar
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 23 .
muito os professores e demais adultos, mas, na alfabetização, é um estágio inevitável de
aprendizado.
17. Não confundir simples erro de ortografia com outros tipos de erros que têm causas mais
graves, revelando que o aluno não aprendeu a categorização gráfica ou funcional das letras.
Os erros de ortografia têm uma relação com uma possível dúvida ortográfica e não é
simplesmente uma escrita estranha. Assim, se o aluno escreve MIGODE em vez de BRINCO
DE não é um simples erro de ortografia. Mas, se escreve BICO em vez de BRINCO pode
revelar uma simples dificuldade com a ortografia, no início. A falta de letras é mais grave do
que o uso estranho de certas letras em certos contextos.
18. Superadas as dificuldades acima, a partir de então, os alunos podem escrever textos livres,
espontâneos ou motivados pelo professor. A passagem do texto oral internalizado na
mente do aluno para o texto escrito, expresso no papel, apresenta algumas dificuldades
e problemas específicos. O sucesso da produção de bons textos depende crucialmente
do modo como o professor leva seus alunos a produzirem textos. Se o modelo é de
frases soltas, o resultado será textos desconexos. Se o aluno tiver mais liberdade para
expressar na escrita o que poderia dizer falando, o resultado será textos mais bem
elaborados.
11. Bibliografia comentada
Alfabetização e Lingüística (de Luiz Carlos Cagliari, Editora Scipione, São Paulo, 10ª ed.
2006 – 1ª ed. de 1989). O livro apresenta uma visão geral dos problemas de linguagem oral e
de linguagem escrita, que aparecem no processo de alfabetização. Acompanha um cartaz
sobre a história das letras. Obra essencial para quem precisa de informações lingüísticas
aplicadas à prática de alfabetização.
Alfabetizando sem o Ba Be Bi Bo Bu (de Luiz Carlos Cagliari, Editora Scipione, São Paulo,
1998). Além de apresentar as questões teóricas que constituem os conhecimentos técnicos
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 24 .
lingüísticos de que um alfabetizador precisa, traz comentários sobre métodos e metodologias,
bem como sugestões de atividades.
Diante das Letras: a escrita na alfabetização (de Gladis Massini-Cagliari e Luiz Carlos
Cagliari, Editora Mercado de Letras, Campinas, 1999). Coletânea de artigos sobre diferentes
aspectos da linguagem oral e escrita, como categorização gráfica, funcional, ortografia,
história do alfabeto e o que é preciso saber para ler, decifrando a escrita.
Nota:
Professor Adjunto MS-5, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus de Araraquara, SP. Desenvolve pesquisas nas seguintes áreas: Lingüística, com especialidade em Fonética; Alfabetização; Sistemas de escrita; Ensino e aprendizagem; Letramento.
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PROGRAMA 2PROGRAMA 2
TEXTO: LEITURA E PRODUÇÃO DE SENTIDOTexto: leitura e produção do sentido
Ingedore G. Villaça Koch1
Neste texto tomo, como pressuposto básico, a concepção de que o texto é lugar de interação
de sujeitos sociais que, dialogicamente, nele se constituem e são constituídos. E, ainda, que
esses sujeitos – ao operarem escolhas significativas entre as múltiplas formas de organização
textual e as diversas possibilidades de seleção lexical que a língua lhes oferece – constroem
objetos-de-discurso e propostas de sentido, por meio de ações lingüísticas e sociocognitivas.
A esta concepção subjaz, necessariamente, a idéia de que há, em todo e qualquer texto, uma
gama de implícitos, dos mais variados tipos, somente detectáveis pela mobilização do
contexto sociocognitivo no interior do qual se movem os atores sociais.
Em decorrência, fica patente que a leitura de um texto exige muito mais que o simples
conhecimento lingüístico compartilhado pelos interlocutores: o leitor é, necessariamente,
levado a mobilizar uma série de estratégias tanto de ordem lingüística, como de ordem
cognitivo-discursiva, com o fim de levantar hipóteses, validar ou não as hipóteses formuladas,
preencher as lacunas que o texto apresenta, enfim, participar, de forma ativa, da construção do
sentido. Dessa forma, autor e leitor devem ser vistos como ‘estrategistas’ na interação pela
linguagem.
1. Concepção de leitura
Fala-se, constantemente, sobre a importância da leitura na nossa vida, sobre a necessidade de
cultivar o hábito de leitura entre crianças e jovens, sobre o papel da escola na formação de
leitores competentes. Mas, no bojo dessa discussão, cabe levantar uma série de questões,
como: O que é ler? Para que ler? Como ler? Evidentemente, as perguntas poderão ser
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 26 .
respondidas de diferentes modos, cada um deles revelando uma concepção de leitura,
dependendo da concepção de sujeito, de língua, de texto e de sentido que se adote.
1. 1. Leitura: foco no autor
Sobre essa questão, afirmei em Koch (2002) que, à concepção de língua, como
representação do pensamento, corresponde a de sujeito psicológico, individual, dono de
sua vontade e de suas ações. Trata-se de um sujeito visto como um ego que constrói uma
representação mental e deseja que esta seja “captada” pelo interlocutor exatamente da maneira
como foi mentalizada.
Nessa concepção de língua como representação do pensamento e de sujeito como senhor
absoluto de suas ações e de seu dizer, o texto é visto como um produto – lógico – do
pensamento (representação mental) do autor, nada mais cabendo ao leitor senão “captar” essa
representação mental, juntamente com as intenções (psicológicas) do produtor, exercendo,
assim, um papel totalmente passivo.
A leitura, assim, é entendida como a atividade de captação das idéias do autor, sem que se
levem em conta as experiências e os conhecimentos do leitor, a interação autor-texto-leitor
com propósitos constituídos socio-cognitivo-interacionalmente. O foco de atenção é, somente,
o autor e suas intenções. Daí as perguntas que, freqüentemente, são feitas: Foi isso mesmo
que o autor quis dizer? Será que o autor realmente pensou nisso?
1.2. Leitura: foco no texto
Por sua vez, à concepção de língua como estrutura corresponde à de sujeito determinado,
“assujeitado” pelo sistema, caracterizado por uma espécie de “não consciência”. O
princípio explicativo de todo e qualquer fenômeno e de todo e qualquer comportamento
individual repousa sobre a consideração do sistema, quer lingüístico, quer social.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 27 .
Nessa concepção de língua como código — portanto, como mero instrumento de
comunicação — e de sujeito como (pre)determinado pelo sistema, o texto é visto como
simples produto da codificação de um emissor, a ser decodificado pelo leitor/ouvinte,
bastando a este, para tanto, o conhecimento do código utilizado.
Conseqüentemente, a leitura é vista como uma atividade que exige do leitor o foco no texto,
em sua linearidade, uma vez que tudo está dito no texto. Se, na concepção anterior, ao leitor
cabia o reconhecimento das intenções do autor, nesta concepção cabe-lhe somente o
reconhecimento do sentido das palavras e estruturas do texto: basta-lhe conhecer o código (a
língua), que terá a chave para a interpretação. Em ambas, porém, o leitor é caracterizado como
passivo, por realizar uma atividade de reconhecimento, de reprodução.
1.3. Leitura: foco na interação autor-texto-leitor
Em contraposição às concepções anteriores, na concepção interacional (dialógica) da
língua, os sujeitos são vistos como atores/construtores sociais, sujeitos ativos que —
dialogicamente — se constroem e são construídos no texto, considerado o próprio lugar da
interação e da constituição dos sujeitos da linguagem. Desse modo, há lugar, em todo e
qualquer texto, para toda uma gama de implícitos, dos mais variados tipos, somente
detectáveis quando se tem, como pano de fundo, o contexto sociocognitivo dos participantes
da interação.
Nessa perspectiva, o sentido de um texto é construído na interação texto-sujeitos e não é
algo que preexista a essa interação. A leitura é, pois, uma atividade interativa altamente
complexa de produção de sentidos, que se realiza, evidentemente, com base nos elementos
lingüísticos presentes na superfície textual e na sua forma de organização, mas que requer a
mobilização de um vasto conjunto de saberes no interior do evento comunicativo. Isto é:
a) a leitura é uma atividade na qual se levam em conta as experiências e os conhecimentos do
leitor;
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 28 .
b) a leitura exige do leitor bem mais do que o conhecimento do código lingüístico, uma vez
que o texto não é apenas o produto da codificação de um emissor a ser decodificado por um
receptor passivo.
É esta a concepção sócio-cognitivo-interacional de língua que privilegia os sujeitos e seus
conhecimentos em processos de interação. O lugar mesmo de interação é o texto, cujo
sentido “não está lá”, mas é construído, considerando-se, para tanto, as “sinalizações” ou
pistas textuais fornecidas pelo autor e os conhecimentos do leitor que, durante todo o
processo de leitura, deve assumir uma atitude “responsiva ativa” (Cf. Bakhtin, 1992, p.
290). Em outras palavras, espera-se que o leitor concorde ou não com as idéias do autor,
complete-as, adapte-as, etc., uma vez que “toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma
forma ou de outra, forçosamente, a produz” (Bakhtin, 1992, p. 290).
2. A interação: autor-texto-leitor
Pela consonância com essa posição, destacamos aqui um trecho dos Parâmetros Curriculares
Nacionais de Língua Portuguesa (1998):
“A leitura é um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de construção do
significado do texto, a partir dos seus objetivos, do conhecimento sobre o assunto, sobre o
autor, de tudo o que sabe sobre a língua: características do gênero, do portador, do
sistema de escrita, etc. Não se trata simplesmente de ‘extrair informação da escrita’
decodificando-a letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que
implica, necessariamente, compreensão. Qualquer leitor experiente que conseguir analisar
sua própria leitura constatará que a decodificação é apenas um dos procedimentos que
utiliza quando lê: a leitura fluente envolve uma série de outras estratégias como seleção,
antecipação, inferência e verificação, sem as quais não é possível rapidez e proficiência. É
o uso de procedimentos desse tipo que permite controlar o que vai sendo lido, tomar
decisões diante de dificuldades de compreensão, arriscar-se diante do desconhecido,
buscar no texto a comprovação das suposições feitas etc.”
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 29 .
Nesse trecho, encontra-se reforçado, na atividade de leitura, o papel do leitor enquanto um
construtor de sentido, utilizando-se, para tanto, de uma série de estratégias, entre as quais a
seleção, antecipação, inferência e verificação.
2.1. Estratégias de leitura
Assim, espera-se que o leitor processe, critique, contradiga ou avalie a informação que tem
diante de si, que a aceite ou a conteste, que dê sentido e significado ao que lê (cf.: Solé, 2003,
p. 21).
Essa concepção de leitura, que põe em foco o leitor e seus conhecimentos, em interação com
o autor e o texto, para a construção de sentido, vem já há algum tempo merecendo a atenção
de estudiosos do texto e alimentando muitas pesquisas sobre o tema.
Na qualidade de leitores ativos, estabelecemos relações entre nossos conhecimentos
anteriormente constituídos e as novas informações contidas no texto, fazemos inferências,
comparações, formulamos perguntas relacionadas com o seu conteúdo. Mais ainda:
processamos, criticamos, contrastamos e avaliamos as informações que nos são
apresentadas, produzindo sentido para o que lemos. Em outras palavras, agimos
estrategicamente, o que nos permite dirigir e auto-regular nosso próprio processo de leitura.
2.2. Objetivos de leitura
É claro que não devemos nos esquecer de que a constante interação entre o conteúdo do texto
e o leitor é regulada, também, pelo propósito com que lemos o texto, pelos objetivos da
leitura. De modo geral, podemos dizer que há textos que lemos para nos manter informados
(jornais, revistas); há outros que lemos para realizar trabalhos acadêmicos (dissertações, teses,
livros, periódicos científicos); há, ainda, aqueles cuja leitura é realizada por prazer, por puro
deleite (poemas, contos, romances); os que lemos para consulta (dicionários, catálogos), os
que somos “obrigados” a ler de vez em quando (manuais, bulas), os que nos caem em mãos
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 30 .
(panfletos), ou os que nos são constantemente apresentados aos olhos (outdoors, cartazes,
faixas).
São, pois, os objetivos do leitor que nortearão o modo de leitura, em mais tempo ou em menos
tempo; com mais atenção ou com menos atenção; com maior engajamento ou com menor
engajamento, enfim.
3. Leitura e produção de sentido
Se, portanto, a leitura é uma atividade baseada na interação autor-texto-leitor, nesse processo
faz-se necessário considerar a materialidade lingüística do texto, elemento sobre o qual e a
partir do qual se constitui a interação. E, por outro lado, é preciso também levar em conta o
autor e o leitor, com seus conhecimentos e vivências, condição fundamental para o
estabelecimento de uma interação com maior ou menor intensidade, durabilidade, qualidade.
3.1. Leitura e ativação de conhecimento
É por essa razão que falamos de um sentido para o texto, não do sentido do texto, e
justificamos essa posição, visto que, na atividade de leitura, é preciso ativar lugar social,
vivências, relações com o outro, valores da comunidade, conhecimentos textuais (cf. Paulino
et al., 2001).
3.2. Pluralidade de leituras e sentidos
A pluralidade de leituras e de sentidos pode ser maior ou menor dependendo, por um lado, do
texto, do modo como foi constituído, do que foi explicitamente revelado, e do que foi
implicitamente sugerido; por outro lado, da ativação, por parte do leitor, de conhecimentos de
natureza vária, bem como de seus objetivos e de sua atitude perante o texto.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 31 .
Assim, considerar o leitor e seus conhecimentos e que esses conhecimentos são diferentes de
um leitor para outro implica, necessariamente, aceitar uma pluralidade de leituras e de
sentidos em relação a um mesmo texto.
É claro que, com isso, não preconizamos que o leitor possa ler qualquer coisa com base em
um texto, pois, como já afirmamos, o sentido não está apenas no leitor, nem no texto, mas na
interação autor-texto-leitor. Por isso, é de fundamental importância que o leitor considere, na
e para a produção de sentido, as “sinalizações” do texto, além dos conhecimentos que possui.
4. Fatores de compreensão da leitura
A compreensão de um texto varia, portanto, segundo as circunstâncias de leitura e vai
depender de vários fatores complexos e inter-relacionados (Alliende & Condemarín, 2002).
Embora tais fatores estejam intimamente relacionados na compreensão da leitura, cabe
chamar a atenção para os casos em que fatores relativos ao autor/leitor, por um lado, ou ao
texto, por outro lado, podem interferir no processo, de modo a dificultá-lo ou facilitá-lo.
4.1. Fatores relativos ao autor/leitor
Esses fatores referem-se ao conhecimento dos elementos lingüísticos (uso de determinadas
expressões, léxico antigo etc.), esquemas cognitivos, bagagem sociocultural, circunstâncias
em que o texto foi produzido.
Em outras palavras, podemos dizer que os conhecimentos selecionados pelo autor – na e para
a constituição do texto – “criam” um leitor-modelo. Desse modo, o texto, pela forma como é
constituído, pode exigir mais ou menos conhecimento prévio de seus leitores. Isto é, um texto
não se destina a todo e a qualquer leitor, mas pressupõe um determinado tipo de leitor e exclui
outros.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 32 .
Em nosso dia-a-dia, deparamo-nos com inúmeros textos veiculados em meios diversos
(jornais, revistas, rádio, TV, internet, cinema, teatro), cuja produção é “orientada” para um
determinado tipo de leitor (um público específico), o que, aliás, vem evidenciar o princípio
interacional constitutivo não apenas do texto, como do próprio uso da língua.
4.2. Fatores relativos ao texto
Além dos fatores da compreensão de leitura ligados ao autor e ao leitor, há os relacionados ao
texto, que dizem respeito à sua legibilidade, podendo ser materiais, lingüísticos ou de
conteúdo (Cf.: Alliende & Condemarín, 2002).
Dentre os aspectos materiais que podem comprometer a legibilidade, os autores citam: o
tamanho e a clareza das letras, a cor e a textura do papel, o comprimento das linhas, a fonte
empregada, a variedade tipográfica, a constituição de parágrafos muito longos... E, em se
tratando da escrita digital, a qualidade da tela e o uso apenas de maiúsculas ou de minúsculas,
bem como o excesso de abreviações.
Além dos fatores materiais, há fatores lingüísticos que podem dificultar a compreensão, tais
como: a seleção lexical; estruturas sintáticas muito complexas, caracterizadas pela abundância
de elementos subordinados; orações supersimplificadas, marcadas pela total ausência de
nexos para indicar relações de causa/efeito, espaciais, temporais; ausência de sinais de
pontuação etc.
Uma bula, por exemplo, é conhecida como um texto de difícil leitura por seus aspectos
materiais, lingüísticos e de conteúdo, a tal ponto que já existe em andamento uma proposta
oficial para resolver o problema.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 33 .
5 . Escrita e Leitura: contexto de produção e contexto de uso
Depois de escrito, o texto tem uma existência independente do autor. Entre a produção do
texto escrito e a sua leitura, pode passar-se muito tempo, de modo que as circunstâncias da
escrita (contexto de produção) podem ser absolutamente diferentes das circunstâncias da
leitura (contexto de uso), fato esse que interfere na produção de sentido. O mesmo acontece
também quando o texto vem a ser lido num lugar muito distante daquele em que foi escrito ou
quando foi reescrito de muitas formas, mudando consideravelmente o modo de constituição
da escrita com o objetivo de atingir diferentes tipos de leitor.
6. Texto e Leitura
Cabe, assim, reiterar que a leitura é uma atividade que solicita intensa participação do leitor,
pois, se o autor apresenta um texto lacunoso ou incompleto, por pressupor a inserção do que
foi dito em esquemas cognitivos compartilhados, é preciso que o leitor o complete,
produzindo uma série de inferências.
Assim, no processo de leitura, o leitor aplica ao texto um modelo cognitivo (frame ou
esquema), baseado em conhecimentos que ele tem representados na memória social.
A hipótese inicial pode, no decorrer da leitura, confirmar-se e se fazer mais precisa; ou pode
exigir alterações, maiores ou menores. Em certos casos, torna-se necessária, até mesmo, a
reformulação total dessa hipótese, que terá de ser descartada.
Assim, o texto é um exemplo de que o autor pressupõe a participação do leitor na construção
do sentido, considerando a (re)orientação que lhe é dada. Nesse processo, ressalta-se que a
compreensão não requer que os conhecimentos do texto e os do leitor coincidam, mas que
possam interagir dinamicamente (Alliende & Condemarín, 2002, p. 126-7).
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 34 .
7. E a produção de textos?
Relativamente à prática de produção de textos, podem-se destacar as seguintes afirmações dos
PCN:
“Um escritor competente é alguém que sabe reconhecer diferentes tipos de texto e
escolher o apropriado a seus objetivos num determinado momento (...).”
“Um escritor competente é, também, capaz de olhar para o próprio texto como um objeto
e verificar se está confuso, ambíguo, redundante, obscuro ou incompleto. Ou seja: é capaz
de revisá-lo e reescrevê-lo até considerá-lo satisfatório para o momento. É, ainda, um
leitor competente, capaz de recorrer, com sucesso, a outros textos quando precisa utilizar
fontes escritas para a sua própria produção.”
Assim, no que diz respeito à produção do sentido, defendem os PCN que o trabalho de análise
epilingüística em sala de aula é importante, por possibilitar a discussão sobre os diferentes
sentidos atribuídos aos textos e sobre os elementos discursivos que validam ou não essas
atribuições, propiciando, inclusive, a construção de um repertório de recursos lingüísticos
a ser utilizado quando da produção textual.
A Lingüística Textual vem trazendo ao professor subsídios indispensáveis para a realização
das atividades acima sugeridas, visto que ela tem por objeto o estudo dos recursos lingüísticos
e condições discursivas que presidem à construção da textualidade e, em decorrência, à
produção textual dos sentidos, o que vai significar, inclusive, uma revitalização do estudo da
gramática: não mais, é claro, como um fim em si mesma, mas com o objetivo de evidenciar de
que modo o trabalho de seleção e combinação dos elementos lingüísticos nos textos que
lemos ou produzimos, dentro das variadas possibilidades que a gramática da língua nos põe à
disposição, constitui um conjunto de decisões que vão servir de orientação na nossa busca
pelo sentido.
Assim sendo, é preciso que os produtores de textos dominem uma série de estratégias de
organização da informação e de estruturação textual. A continuidade de um texto resulta de
um equilíbrio variável entre dois movimentos fundamentais: retroação e progressão. Desta
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 35 .
forma, a informação semântica contida no texto vai distribuir-se em (pelo menos) dois
grandes blocos: o dado e o novo, cuja disposição e também dosagem interferem na construção
do sentido. A informação dada (ou melhor, aquela que o produtor do texto apresenta como
dada) tem por função estabelecer os pontos de ancoragem para o aporte da informação nova.
A retomada desta informação opera-se por meio de remissão ou referência textual, que leva à
formação, no texto, de cadeias referenciais anafóricas. Estas cadeias têm papel importante na
organização textual, contribuindo para a produção do sentido.
A informação nova introduz-se por meio das diversas estratégias de progressão textual, entre
as quais as de contigüidade semântica (emprego de termos pertencentes a um mesmo campo
de sentido), progressão temática, progressão tópica e articulação textual.
8. A importância do contexto
Já foi salientado que o recurso ao contexto é indispensável para a produção e a compreensão
e, deste modo, para a construção do sentido. O contexto engloba não só o co-texto, como a
situação de interação imediata, a situação mediata (entorno sócio-político-cultural), o contexto
acional e, portanto, o contexto sociocognitivo dos interlocutores. Este último, na verdade,
subsume os demais. Ele reúne todos os tipos de conhecimentos arquivados na memória dos
actantes sociais, que necessitam ser mobilizados por ocasião do intercâmbio verbal: o
conhecimento lingüístico propriamente dito, o conhecimento enciclopédico, o conhecimento
da situação comunicativa e de suas “regras” (situacionalidade), o conhecimento
superestrutural ou tipológico (gêneros e tipos textuais), o conhecimento estilístico (registros,
variedades de língua e sua adequação às situações comunicativas), bem como o conhecimento
de outros textos que permeiam nossa cultura (intertextualidade).
Nesta acepção, portanto, vê-se o contexto como constitutivo da própria interação pela
linguagem. É neste sentido que se pode dizer que certos enunciados são gramaticalmente
ambíguos, mas o contexto se encarrega de fornecer condições para uma interpretação unívoca.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 36 .
Admite-se, pois, que:
1. O contexto desambigüisa;
2. O contexto permite preencher as lacunas do texto (“o contexto completa” - cf. Dascal &
Weizman, 1987; Clark, 1977, que fala em estabelecer os “elos faltantes - “missing links”-, por
meio de inferências-ponte);
3. Os fatores contextuais podem alterar o que se diz (“o contexto modifica” – ironia, etc.);
4. Tais fatores se incluem entre aqueles que explicam por que se disse isso e não aquilo (“o
contexto justifica”). De qualquer maneira, sob essa perspectiva, falar de discurso implica
considerar fatores externos à língua, alguma coisa do seu exterior, para entender o que nela é
dito, que por si só seria insuficiente.
As relações entre informação explícita e conhecimentos pressupostos como partilhados
estabelecem-se, como dissemos, por meio das estratégias de “sinalização textual”, por
intermédio das quais o locutor, por ocasião do processamento textual, procura orientar o
interlocutor no recurso ao contexto.
É por isto que o sentido de um texto, qualquer que seja a situação comunicativa, não depende
tão-somente da estrutura textual em si mesma (daí a metáfora do texto como um “iceberg”).
Os objetos de discurso a que o texto faz referência são apresentados em grande parte de forma
lacunar, permanecendo muita coisa implícita. O produtor do texto pressupõe, da parte do
leitor/ouvinte, conhecimentos textuais, situacionais, culturais e enciclopédicos e, orientando-
se pelo Princípio da Economia, não explicita as informações consideradas redundantes. Ou
seja, visto que não existem textos totalmente explícitos, o produtor de um texto necessita
proceder ao “balanceamento” do que necessita ser explicitado textualmente e do que pode
permanecer implícito, por ser recuperável via inferenciação (cf. Nystrand & Wiemelt, 1991;
Marcuschi, 1997). Na verdade, é este o grande segredo do locutor competente.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 37 .
O leitor/ouvinte, por sua vez, espera sempre um texto dotado de sentido e procura, a partir da
informação contextualmente dada, construir uma representação coerente, por meio da
ativação de seu conhecimento de mundo e/ou de deduções que o levam a estabelecer relações
de causalidade, temporalidade etc. Levado pelo Princípio da Continuidade de Sentido
(Hörmann, 1976), ele põe em funcionamento todos os componentes e estratégias cognitivas
que tem à disposição para dar ao texto uma interpretação adequada. Esse princípio se
manifesta, pois, como uma atitude de expectativa do interlocutor de que uma seqüência
lingüística produzida pelo falante/escritor possa ser considerada coerente (cf. Grice, 1975,
Princípio da Cooperação).
Verifica-se, assim, que o uso da linguagem, quer em termos de produção, quer de recepção,
repousa visceralmente na interação produtor – texto – ouvinte/leitor, que se manifesta por
uma antecipação e por uma coordenação recíprocas, em dado contexto, de conhecimentos e
estratégias sociocognitivas e interacionais.
Tanto em textos escritos como em textos orais, o produtor, visando à produção de sentidos,
faz uso de uma multiplicidade de recursos que vai muito além das simples palavras que
compõem as estruturas. Em obediência à Máxima da Relevância (Grice, 1975) e com base em
seu modelo do interlocutor, o falante/escritor verbaliza somente as unidades referenciais e as
representações necessárias à compreensão e que não possam ser deduzidas sem esforço pelo
leitor/ouvinte, por meio de informações contextuais e/ou conceituais (Princípio da
Seletividade).
Mencione-se, a título de exemplo, o emprego de uma expressão referencial anafórica, que
implica uma pressuposição de conhecimento partilhado e obriga o interlocutor a uma busca no
contexto, cognitivo ou situacional. Visto que o produtor do texto procede à seleção daquela
expressão que se mostra mais adequada ao seu projeto de dizer, seu emprego vai exigir do
interlocutor a percepção do porquê da escolha feita, no contexto dado, com vistas à
construção do sentido.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 38 .
Verifica-se, desta forma, a justeza da definição de Van Dijk (1997): “contexto é o conjunto de
todas as propriedades da situação social que são sistematicamente relevantes para a produção,
compreensão e funcionamento do discurso e de suas estruturas”.
Todos os fatores aqui mencionados, que intervêm nos processos de leitura e produção de
textos, são responsáveis pela produção de sentidos.
Referências bibliográficas
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Porto Alegre: Artmed, 2005.
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Hörmann, H. Meinen und Verstehen. Grundzüge einer psychologischen Semantik.
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Paulino, Graça et al. Tipos de textos, modos de leitura. Belo Horizonte: Formato, 2001.
Solé, Isabel. Ler, leitura, compreensão: “sempre falamos da mesma coisa?”. In:
TEBEROSKY, Ana et al. Compreensão de leitura: a língua como procedimento.
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Van Dijk, Teun A. Cognitive context models and discourse. In: Oostendorp, H. van ;
Goldman, S. (eds.) The construction of mental models during reading.
Hilldsdale, N.J.: Erlbaum, 1997.
Nota:
Mestre e doutora em Língua Portuguesa pela PUC/SP e Livre-docente pela UNICAMP. Professora-titular do Depto. de Lingüística do IEL - Unicamp. Autora de diversos livros sobre língua, linguagem e ensino. Tem inúmeros trabalhos publicados em revista e coletâneas, no país e no exterior.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 40 .
PROGRAMA 3PROGRAMA 3
GÊNEROS TEXTUAIS: OBJETOS DE ENSINO
Gêneros como objetos de ensino: questões e tarefas para o ensinoGêneros como objetos de ensino: questões e tarefas para o ensino
Sandoval Nonato Gomes-Santos1
PP A R AA R A I N Í C I OI N Í C I O D ED E C O N V E R S AC O N V E R S A
Quase uma década vai se completar desde a publicação dos Parâmetros Curriculares
Nacionais de Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental. Hoje, parece que já temos,
reunidos, alguns elementos importantes para avaliar os efeitos das diretrizes curriculares que
foram expostas nesse documento nas práticas de ensino-aprendizagem da disciplina Língua
Portuguesa. Principalmente, as implicações que as discussões sobre um currículo centrado nos
gêneros (textuais ou discursivos) produziram e têm produzido na escola, em diferentes regiões
do país.
Desde a publicação do documento até hoje, só cresceu o interesse em compreender as
possibilidades e os desafios do conceito de gênero, tanto para o currículo da formação inicial
e a pesquisa na universidade, quanto para as políticas públicas de formação continuada do
professor e de avaliação-distribuição de livros didáticos, e, principalmente, para as práticas
didáticas de ensino de língua na escola. Atualmente, com certo distanciamento em relação às
discussões iniciais (anteriores mesmo à publicação dos PCN em 1997-1998), é possível
retomar certas preocupações e algumas indagações que vêm marcando a apropriação da
proposta de trabalho com gêneros como objetos de ensino nas práticas escolares de ensino-
aprendizagem da Língua Portuguesa.
Sem o constrangimento de que um currículo centrado no ensino-aprendizagem de gêneros
pudesse significar apenas “mais um modismo” da Universidade, imposto para a escola por
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 41 .
intermédio da lei, podemos agora avaliar o diálogo institucional estabelecido entre as várias
instâncias envolvidas com o tema do ensino-aprendizagem de língua na escola: o diálogo
entre pesquisadores do campo dos estudos da linguagem e professores (em ações de formação
inicial e continuada); entre os professores-alunos de cursos de graduação e pós-graduação e
professores-pesquisadores da universidade (no ensino e na iniciação à pesquisa); entre esses
professores-pesquisadores e o mercado editorial (por meio de consultorias à elaboração e
mesmo da elaboração de livros didáticos) etc. Desse diálogo, ainda em andamento, questões
iniciais retornam e outras, novas, aparecem.
Algumas dessas questões foram apontadas com bastante precisão por Rojo (2000), em um
texto não por acaso intitulado Modos de transposição dos PCNs às práticas de sala de aula:
progressão curricular e projetos. Ao discutir a proposta curricular que toma o gênero como
objeto de ensino e o texto como unidade de ensino, a autora enfatiza que a apropriação da
proposta curricular expressa nos PCN pelas práticas escolares de ensino-aprendizagem requer
um esforço que envolve três eixos de atuação: a) “a construção de currículos plurais e
adequados a realidades locais”, b) “a elaboração de materiais didáticos que viabilizem a
implementação destes currículos” e c) “a formação inicial e continuada de professores e
educadores” (p. 28).
Para contribuir no diálogo instigado pelas percepções de Rojo, proponho enfocar, neste texto,
questões relativas à “realização do currículo em sala de aula”, ou seja, às práticas de ensino-
aprendizagem de gêneros, considerados objetos de ensino. Suponho que um primeiro passo
para refletir sobre essas práticas seja reconhecer que elas têm uma história, que elas são
construídas no seio daquilo que Chervel (1998) descreveu como cultura escolar2.
Assim, quando ouvimos, por exemplo, que hoje devemos ensinar gêneros, que a gramática
deve ser contextualizada ou que é preciso trabalhar a oralidade, essas afirmações não são
feitas por acaso. Elas testemunham que há uma demanda de reflexão sobre o ensino-
aprendizagem de gêneros pelo professor, nos mais diversos contextos socioculturais pelo
Brasil afora. Na base dessas questões está uma indagação primeira, de tão familiar às vezes
deixada em segundo plano: o que, para que e como se ensina quando se pretende ensinar a
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 42 .
língua? É nesse tripé que proponho localizar a discussão sobre o ensino-aprendizagem de
gêneros na escola. Ou seja, proponho que essa discussão enfoque três eixos:
• As finalidades da escola como agência de produção-recepção de gêneros;
• Os gêneros como objeto de ensino em um projeto curricular;
• O investimento na elaboração didática dos gêneros como objetos de ensino.
1. Gênero e forma escolar
Um dos passos principais na construção de uma proposta curricular para o ensino-
aprendizagem da Língua Portuguesa é o reconhecimento de que a Língua Portuguesa é uma
disciplina escolar. Uma disciplina escolar não aparece ao acaso. Para Soares (2002) 3, sua
constituição é resultado de motivações socioculturais e históricas: aquilo que supomos ser a
disciplina Língua Portuguesa e seu ensino não é definido pela ação isolada de cada professor,
mas está ligado àquilo que se pretende ensinar (quais os objetos de ensino visados?), às
finalidades do ensino (para que ensinar?) e aos meios de ensino (como ensinar?).
Ao se apropriar de objetos de saber e de práticas variadas de linguagem que se constroem na
sociedade, a escola os transforma em objetos a serem ensinados. Quando falamos de um
currículo centrado no ensino-aprendizagem de gêneros, podemos então pensar na escola,
como muito bem sugeriu Schneuwly (2006) 4, como uma agência “inventora” de gêneros, os
chamados gêneros escolarizados. Assim, os gêneros, ao se tornarem objetos a serem
ensinados (ao adquirirem uma forma escolar, no dizer de Schneuwly), não se configuram de
modo igual àquele modo com que aparecem nas práticas do cotidiano, embora estejam
vinculados intimamente a essas práticas. Um relatório da visita ao museu, por exemplo,
produzido por crianças da 3ª. série do Ensino Fundamental, necessariamente será diferente do
esboço produzido por um jornalista que visa, a partir de suas anotações, à produção de uma
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 43 .
reportagem sobre o museu. Será diferente, ainda, do relatório do biólogo que faz uma
pesquisa sobre zootecnologia. Será diferente porque o gênero, uma vez escolarizado:
i) é apropriado em uma situação diversa daquela em que seria apropriado fora da escola, ou
seja, a forma escolar implica certa ruptura com o quotidiano;
ii) torna-se passível de segmentação em dimensões que podem ser objeto de ensino-
aprendizagem;
iii) integra um desenho curricular mais amplo, que inclui uma determinada programação de
conteúdos, além de procedimentos e instrumentos de avaliação;
iv) adquire uma forma textualizada (em geral, um caráter escritural), ou seja, ele se
materializa em textos que permitem sua circulação e seu reconhecimento públicos.
A escola pode ser considerada inventora de gêneros também pelo fato de criar seus próprios
gêneros: os chamados gêneros escolares. Alguns, entre eles, são criados para servir ao próprio
funcionamento da instituição escolar – como histórico escolar, diário de classe, plano de
aula, requerimento escolar etc. –, e outros são tornados objetos a serem ensinados. O
exemplo mais representativo, nesse caso, é a dissertação escolar.
Esses dois modos de invenção de gêneros pela escola podem ser considerados, para um
determinado discurso pedagógico, um artificialismo, uma forma pela qual a escola reduz o
conhecimento, corrompe-o, ou um mascaramento, uma forma de a escola escamotear as reais
necessidades dos alunos quanto à aprendizagem de práticas de linguagem efetivamente
autênticas.
Entretanto, com base no pressuposto de que a linguagem é diálogo (tal como propôs Bakhtin)
e de que a prática de ensino-aprendizagem constitui-se na interação entre indivíduos em um
determinado contexto sociocultural e histórico (como enfatiza a psicologia de base
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 44 .
vigotskiana), é possível pensar que a invenção de gêneros pela escola é condição para a
inserção dos indivíduos em determinadas práticas de letramento (de leitura-escuta e produção
de textos), especialmente em se tratando daquelas práticas em que circulam gêneros de que os
alunos não se apropriariam se não estivessem na escola, como é o caso, por exemplo, de
alguns gêneros orais formais públicos (solicitação de informações, debate, conferência,
entrevista para emprego etc.). A tarefa da escola na apropriação desses gêneros implicaria não
apenas a garantia do acesso a eles, mas, principalmente, o desenvolvimento de uma postura
reflexiva sobre as práticas em que eles circulam.
Em síntese, se considerarmos, com Bakhtin (1929, 1952-3), que os gêneros se constituem e
vão-se diversificando historicamente nas práticas sociais e que sua apropriação se dá sempre
em relação intrínseca com essas práticas, a principal contribuição da escola e a finalidade do
trabalho de ensino seria inserir os alunos em práticas de letramento das mais simples às mais
complexas, transformando seus modos de agir pela linguagem, de forma que possam não
apenas usar a linguagem adequadamente – como se costuma dizer –, mas também
desenvolver, ao longo da escolaridade formal, uma postura de reflexão sobre ela, sobre as
implicações, os efeitos das ações de linguagem na própria construção da sociedade e da
cultura5.
2. Os gêneros como objeto de ensino em um projeto curricular: por que um currículo
centrado no trabalho com gêneros?
Uma das questões iniciais que sempre retorna quando se propõe um currículo que tem como
porta de entrada o trabalho com gêneros como objetos de ensino e com textos como unidades
de ensino é: já não trabalhamos com textos na sala de aula? O que muda com a proposta de
ensino de gêneros? Não são apenas os nomes dos conteúdos que mudaram? Essas questões
são significativas porque apontam para o fato de que, para se discutir o currículo que se
almeja construir para a disciplina Língua Portuguesa, é necessário reconhecer que já temos
um lastro de práticas de ensino construídas historicamente. Por exemplo, um pressuposto
comum, bastante freqüente entre os professores de Língua Portuguesa, diz respeito à
necessidade de se trabalhar uma diversidade de textos e à necessidade de adequação das ações
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 45 .
de linguagem aos vários contextos de uso. A questão, nesse caso, parece ser: como
transformar esse pressuposto em orientação curricular na prática didática?
Podem ser apontadas diversas motivações para a opção por um currículo com base no
trabalho com gêneros. Do ponto de vista histórico, pode-se dizer que essa opção vai-se
consolidando com o prestígio de uma perspectiva teórica que concebe a linguagem como
prática social, e o processo de ensino-aprendizagem como construído na interação dos três
pólos do chamado triângulo didático: o professor, os alunos e os objetos de ensino, em um
dado contexto sociocultural.
Essa perspectiva ganha visibilidade crescente a partir do final dos anos 1970 e início dos anos
1980, no Brasil. A partir desse momento, propostas curriculares foram divulgadas,
investigações sobre o ensino-aprendizagem se diversificaram, livros didáticos transformaram-
se. Rojo & Cordeiro (2004) apresentam um percurso bastante interessante dos modos com que
se vêm trabalhando as práticas de leitura e produção de textos na tradição escolar brasileira a
partir dos anos 1980. Segundo as autoras, a proposta de trabalho com gêneros distingue-se de
outros dois modos de conceber o trabalho com o texto na escola:
i) Inicialmente, o texto visto como material ou objeto empírico que, em sala de aula,
propiciava “hábitos de leitura”, de produção, de análise lingüística. O texto tomado, portanto,
como objeto de uso, mas não de ensino;
ii) Mais tardiamente, o texto visto como suporte para o desenvolvimento de
estratégias e habilidades de leitura e de redação.
Uma terceira possibilidade de trabalho com o texto é aquela chamada pelas autoras de
enunciativo-discursiva. Nessa terceira via, o texto é tratado em articulação ao gênero a que ele
pertence. Mesmo não escolarizado, o indivíduo é capaz de reconhecer, apropriar-se e produzir
determinados gêneros, a depender do modo com que se integra às práticas em que esses
gêneros circulam.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 46 .
Assim, uma criança que participa da prática de conversação em sua família, ocasião em que se
contam histórias e piadas, ou da prática de leitura de cartas, provavelmente reconhecerá os
gêneros piada e carta pessoal com certa facilidade. Se não exercita a prática de discussão
coletiva de questões polêmicas, por hipótese terá mais dificuldade de produzir o gênero
debate quando for solicitada para isso. Isso não significa dizer que os gêneros são uma fôrma,
uma camisa-de-força que determina por completo cada ação de linguagem do indivíduo. São
formas flexíveis de materialização dos textos.
Vejamos um exemplo (Gomes-Santos, 2003) que ilustra o modo com que construímos
diálogo por meio dos gêneros, tanto com outros locutores, quanto com outros textos. Após
leitura e comentário da versão de uma lenda amazônica – a Lenda da Cobra Grande – o
professor apresenta aos alunos de 2ª. série do Ensino Fundamental a proposta de produção
escrita – recontar a lenda – por meio das seguintes instruções:
Produção de Texto
Como você percebeu, na Lenda da Cobra Grande o encanto só pode ser quebrado se um
corajoso guerreiro cortar a ponta do rabo da cobra, fazendo com que ela volte a ser uma
índia bela e atraente. E você, que outra solução arrumaria para quebrar o encanto da cobra?
Conte-nos esta história.
Respondendo à tarefa, um dos alunos escreveu:
“Para Quebrar o fentiço que o caçador colocou na índia precisa pegar um facão e cortar o
rabo da cobra grande, e depois liberta a índio do fentiço que o cassado colocou, eu mesmo
Fábio vol cortar o rabo da cobra grande.” (Texto: Quebra o encanto da cobra grande)
Outro aluno atendeu à mesma tarefa assim escrevendo:
Era uma vez uma índia muito bela e o Paje trasformou ela em uma cobra muito grande e
para desfazer o encanto tinha que dar um beijo na cobra e o índio deu um beijo na nele
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 47 .
tornou uma bela india denovo e se casaram e viveram felizes para sempre. (Texto: A bela
índia)
No primeiro caso, o aluno estabelece diálogo com as instruções do professor, que orientam
para que “outra solução” deveria ser encontrada para quebrar o encanto da cobra. Na
apropriação que faz do gênero lenda, ele se representa como figura textual, agente da quebra
do encanto – “eu mesmo Fábio”. Ao fazer isso, busca, de certo modo, satisfazer a injunção da
instrução, que exige uma resposta do escrevente à questão apresentada. Nesse caso, a resposta
do aluno, ao enunciar “eu mesmo”, pode remeter à seqüência interrogativa da instrução
iniciada por “E você”.
Já no segundo caso, a solução para a quebra do encanto da cobra é constituída em referência
aos “contos de fadas”. Nesse texto, a remissão aproxima-se do conto “A Bela Adormecida”, já
que “para desfazer o encanto tinha que dar um beijo na cobra”, o que ocasionaria a quebra
do encanto e, por conseguinte, o happy end do casal: “tornou uma bela india denovo e se
casaram e viveram felizes para sempre”.
Esses enunciados de escrita infantil testemunham o caráter dialógico do processo de
produção-recepção dos gêneros no interior de uma determinada prática social.
3. A elaboração curricular dos gêneros como objetos de ensino
Os critérios para a organização e seqüenciação dos conteúdos curriculares, conforme os PCN,
teriam que levar em conta os eixos USO – REFLEXÃO – USO, princípio que deve atravessar
toda a escolaridade e que implica “compreender que tanto o ponto de partida como a
finalidade do ensino da língua é a produção/compreensão de discursos” (PCN – 1o. e 2o.
ciclos [nota de rodapé], p. 44). Trata-se, assim, de um princípio curricular “em que se
pretende que, progressivamente, a reflexão se incorpore às atividades lingüísticas do aluno
de tal forma que ele tenha capacidade de monitorá-las com eficácia”(PCN – 1o. e 2o. ciclos,
p. 48).
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 48 .
Uma proposta de trabalho com o gênero como eixo norteador do currículo de Português exige
que se defina uma entrada para o ensino que conjuga a abordagem do texto por meio,
principalmente, das condições em que ele é produzido e circula. Nessa direção, muito mais do
que o ensino de estruturas globais dos textos ou de seqüências tipológicas (narração,
descrição, argumentação etc.), enfocam-se os sentidos neles construídos. Isso porque o texto é
considerado em seu processo de significação, com base nos componentes que caracterizam o
gênero a que ele pertence: finalidades reconhecidas, estatuto dos interlocutores, coordenadas
espaço-temporais, suporte material e organização textual (ver Maingueneau, 2004).
Com base nesse princípio geral, a entrada curricular pelos gêneros:
i) Amplia o repertório de textos tornados unidades de ensino, incluindo-se aqueles ligados a
gêneros orais (especialmente os formais públicos) e aqueles ligados às novas tecnologias de
comunicação-informação (os gêneros digitais);
ii) Aborda os conteúdos gramaticais, em articulação com o trabalho com os gêneros
selecionados para o ensino;
iii) Dá lugar ao tratamento de fenômenos de variação, relativos à modalidade, à
norma e ao registro da língua.
Essa entrada curricular pelos gêneros distingue-se de pelo menos dois outros modos de
organizar o currículo de Português. Vejamos:
(a) a entrada pelos objetos gramaticais: o foco é um objeto gramatical (encontro de letras,
tonicidade, classes de palavras, sujeito e predicado etc.) e os textos (poemas, trava-línguas,
quadrinhas, contos, receita culinária etc.) que são selecionados e trabalhados em sala de aula,
em função do ensino do tópico gramatical escolhido.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 49 .
(b) a entrada por temáticas relacionadas a datas cívicas e comemorativas (Dia da Pátria,
Tiradentes, Abolição da Escravatura, Semana do Folclore, Dia do Índio, Natal etc.) ou a
questões de cunho sociocultural (violência, drogas, família etc.). Os textos (poemas, lendas,
cantigas, causos, notícias de jornal, contos etc.), nesse caso, são pretexto para a discussão da
temática que está em foco. Não raro, a opção pelas temáticas é seguida pelo retorno aos
tópicos gramaticais.
Embora a diversidade textual seja considerada em ambas as entradas, o que indica, conforme
mencionei, que ela é um ponto em comum nos modos como se busca encaminhar o ensino,
uma questão continua a merecer discussão: qual a natureza do material textual selecionado?
Tanto em uma quanto na outra entrada, os textos selecionados costumam ser aqueles ligados a
gêneros escritos (ou que se materializam geralmente na modalidade escrita). A oralidade
parece ser tratada com base em pelo menos três procedimentos:
• como modo de motivar para a aula ou como introdução a exercícios escritos (leitura oral e
coletiva de comandos de questão dos exercícios etc.);
• como oralização dos textos escritos selecionados (leitura oral);
• como comentário dos textos oralizados, detectando-se o assunto de que tratam e outros
elementos, ligados, em geral, à sua organização estrutural (no caso da narrativa, por exemplo,
ênfase nos elementos como personagens, ações, cenário etc.). Trata-se de um exercício
preliminar, que prepara as questões que serão pedidas no exercício escrito.
Nessa perspectiva, o trabalho com a oralidade não aparece voltado ao ensino de determinados
gêneros orais, especialmente os formais públicos, mas está a serviço do ensino de outros
objetos ou serve de suporte para o desenvolvimento de tarefas ligadas a esses objetos.
Ainda no que se refere à natureza do material selecionado, caberia pensar em como se lida (e
se pretende lidar) com os gêneros em que as modalidades oral e escrita se constituem em
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 50 .
conjunto com outros registros semióticos, como a imagem e o som. Refiro-me, por exemplo,
àqueles gêneros que integram a chamada mídia eletrônica (os gêneros digitais), com que um
contingente cada vez maior de indivíduos tem tido contato, direta ou indiretamente, embora se
deva reconhecer que o acesso a esse domínio ainda não esteja democratizado na sociedade
brasileira como um todo. A consideração desses gêneros parece ser condição indispensável e
tarefa imprescindível para aprofundar a compreensão dos modos de inserção dos indivíduos
no mundo das práticas letradas, atualmente.
A diversidade textual – já presente em muitas práticas de ensino do Português – é reenfocada
em uma proposta curricular baseada no trabalho com gêneros. Isso porque se acredita que não
basta expor os alunos a uma multiplicidade de textos (para cada aula um texto novo, de um
gênero diferente!), mas selecionar e trabalhar esses textos com base no gênero a que eles
pertencem. Assim, um professor que planejasse trabalhar com o gênero notícia, diversificaria
os textos com base em determinados critérios, como, por exemplo:
• diferença de veículos de comunicação: jornais de empresas jornalísticas diferentes;
• diferença de suportes midiáticos: a notícia que aparece no jornal impresso diferencia-
se daquela que aparece na versão digital e daquela que aparece no telejornal;
• diferença de públicos leitores: uma notícia que aparece em uma revista dirigida a
adolescentes diferencia-se daquela dirigida ao público feminino ou a profissionais de
determinadas áreas.
Diferenças como essas (e outras mais) podem incrementar o processo de apropriação dos
textos pelos alunos, inserindo-os de modo mais reflexivo nas práticas de leitura-escuta e
produção de textos do gênero em foco.
A questão da diversidade textual e o modo com que ela deve ser encarada representam duas
das principais preocupações dos professores na construção curricular. Uma das indagações
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 51 .
que, em geral, aparece é: quais os gêneros que se deve selecionar? A decisão a esse respeito
vai depender fundamentalmente dos objetivos da equipe de professores quando da elaboração
do currículo para determinada série ou ciclo de ensino. Por exemplo, há gêneros propícios ao
desenvolvimento das práticas de leitura-escuta e produção textual, enquanto outros parecem
mais adequados ao trabalho com um desses eixos de práticas.
Assim, ao optar por trabalhar, por exemplo, com um gênero como bula de medicamentos, cuja
produção em nossa sociedade está sob a responsabilidade de um grupo muito específico de
indivíduos (os chamados bulólogos), a pergunta que se poderia formular é: qual o objetivo de
pedir aos alunos que produzam bulas?
Há vários critérios possíveis para a seleção dos gêneros a serem ensinados. Os PCN de Língua
Portuguesa para o Ensino Fundamental (especialmente aqueles relativos ao segundo segmento
desse nível de ensino) explicitam um critério – os domínios de circulação social dos gêneros:
cultura literária, imprensa, divulgação científica e publicidade.
Dolz, Noverraz & Schneuwly (2001/2004, p. 121), por sua vez, conjugam esses domínios de
circulação social dos gêneros com outro critério, ligado ao desenvolvimento de determinadas
capacidades de linguagem – narrar, relatar, argumentar, expor e descrever ações. O quadro a
seguir (ver pág. 47), proposto pelos autores, mostra uma organização possível de
agrupamentos de gêneros:
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 52 .
DOMÍNIOS SOCIAIS DE COMUNICAÇÃO
CAPACIDADES DE LINGUAGEM DOMINANTES
EXEMPLOS DE GÊNEROS ORAIS E ESCRITOS
Cultura literária ficcional NARRARMimeses da ação através da criação de intriga
Conto maravilhosoFábulaLendaNarrativa de aventura[...]
Documentação e memorização de ações humanas
RELATARRepresentação pelo discurso de experiências vividas, situadas no tempo
Relato de experiência vividaRelato de viagemTestemunhoNotícia[...]
Discussão de problemas sociais controversos
ARGUMENTARSustentação, refutação e negociação de tomadas de posição
Texto de opiniãoDiálogo argumentativoCarta do leitorCarta de reclamação[...]
Transmissão e construção de saberes
EXPORApresentação textual de diferentes formas dos saberes
SeminárioConferênciaArtigo ou verbete de enciclopédiaEntrevista de especialista[...]
Instruções e prescrições DESCREVER AÇÕES Regulação mútua de comportamentos
Instruções de montagemReceitaRegulamentoRegras de jogo[...]
Uma organização curricular baseada no trabalho com gêneros exige a definição de quais
aqueles gêneros mais adequados, conforme as necessidades e as possibilidades de
aprendizagem dos alunos. Alguns entre esses gêneros podem retornar ao longo da
escolaridade dos alunos. Nesse caso, o retorno de um gênero já estudado em uma série-ciclo
de ensino é orientado por um trabalho diferenciado, que leve em conta os conhecimentos já
aprendidos e permita algum tipo de progressão no processo de aprendizagem.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 53 .
Assim, se a escola definiu a lenda como um dos gêneros a serem trabalhados na 1ª. série do
Ensino Fundamental e se também a equipe de professores da 7ª. série tiver optado pelo
mesmo gênero, a abordagem desse gênero será necessariamente diferenciada em cada uma
das séries: ou seja, os objetivos serão outros, os recursos textuais trabalhados serão diferentes,
as tarefas propostas também, além dos instrumentos de avaliação, entre outros aspectos.
A aposta é que o aluno se aproprie, ao longo de sua escolaridade fundamental, de um conjunto
de gêneros orais-escritos: aprenderia a lê-los/escutá-los, a produzi-los e a desenvolver uma
reflexão sobre eles. Essa perspectiva de trabalho distingue-se, significativamente, de outra:
daquela em que, embora o texto seja considerado, sua abordagem está a serviço do tratamento
de outros objetos (sobretudo dos gramaticais) ou fica muito minimizada pela falta de uma
sistematização curricular que o considere unidade efetiva de ensino.
Além do problema da seleção de gêneros para o ensino, duas outras questões merecem ser
mencionadas. A primeira refere-se à possibilidade de conjugar várias perspectivas (entradas)
curriculares: é possível juntar a entrada pelos gêneros com uma entrada pelas temáticas? A
prática dos professores tem mostrado que esse procedimento pode apresentar vantagens. O
importante, a meu ver, é não perder de vista que o objeto específico do Português, como
disciplina escolar, é a linguagem. O trabalho com as temáticas parece interessante na medida
em que permitir trabalhar os modos com que elas se configuram em um determinado gênero.
Assim, um professor que escolhesse trabalhar, por exemplo, o tema “Água”, poderia optar
por um gênero que seria foco do ensino (notícias jornalísticas, por exemplo) e, nesse caso,
trataria dos modos com que o tema se concretiza, ganha corpo no gênero escolhido. Poderia
mais: mostraria aos alunos os modos diversos com que esse tema se constrói em outros
gêneros: em uma peça publicitária de uma marca de Água Mineral, em um conto, em uma
lenda, em uma entrevista televisiva etc.
Uma segunda questão ainda relativa à construção curricular é como a gramática e aspectos
ligados à ortografia podem ser integrados a uma proposta de trabalho com gêneros. Essa
questão mereceria ser tratada com bastante atenção, já que ela representa um dos tópicos mais
debatidos quando o assunto é ensino do Português. O debate sobre como se deve tratar essa
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 54 .
questão parece ter esclarecido melhor a indagação sobre se podemos ou não ensinar a
gramática e as convenções do sistema de escrita.
Apenas para instigar a discussão, proporia que pensássemos na possibilidade de integrar esses
objetos ao trabalho com os gêneros. Esse procedimento parece possível quando pensamos que
determinados gêneros, do ponto de vista de sua organização textual, privilegiam alguns
recursos lingüísticos e não outros. Uma peça publicitária, por exemplo, organiza-se
textualmente em seqüências tipológicas predominantemente injuntivas (Beba Coca-Cola, Use
sempre copiadoras TOSHIBA etc.). Ora, a injunção se realiza pelo modo imperativo do verbo
e por outros recursos gráficos ou semióticos (a depender, por exemplo, do suporte
considerado: pontuação no suporte impresso; imagens e sons, no suporte digital e televisivo).
Com esse procedimento, o professor estaria trabalhando com seus alunos tanto as seqüências
tipológicas que organizam textualmente o gênero em foco, quanto os recursos lingüísticos
(gramaticais) que ajudam a construir essa textualidade.
Como efeito desse trabalho, possibilitaria aos alunos perceberem uma dimensão que marca a
constituição histórica de todos os gêneros: a heterogeneidade. Com base nessa idéia, podemos
pensar que não existem gêneros puramente orais e puramente escritos. Os gêneros foram
sempre multimodais, no sentido de que sempre se construíram nas relações complexas entre o
oral, o escrito, o visual, o gestual etc6.
4. A elaboração didática dos gêneros como objetos de ensino
Como traduzir a proposta curricular em seqüências de atividades de ensino? Essa é uma
indagação bastante freqüente quando se discute o ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa:
o como fazer.
Em geral, o professor elabora, consciente ou inconscientemente, de modo mais ou menos
intuitivo, mais ou menos formalizado, uma seqüenciação dos conteúdos e o modo com que
eles serão trabalhados, conforme o tempo (em geral, um bimestre letivo) destinado para esse
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 55 .
fim. Essa idéia aparece na discussão que propõem De Pietro & Schneuwly (2003/2006) sobre
a necessidade de se construir o modelo didático do gênero que se pretende ensinar.
Nessa direção, o ensino de um gênero exige que esse gênero se torne conhecido pelo
professor. Esse é o primeiro passo para que o professor possa definir quais as dimensões, os
componentes do gênero que serão objeto de um ensino sistemático, ou seja, elabora-se um
modelo didático do gênero. Para isso, quatro fontes de informação podem ser convocadas:
i) As práticas sociais de referência: como o gênero funciona, como se dá sua produção e
recepção nas práticas sociais;
ii) A literatura sobre o gênero: como se define o gênero, como ele é caracterizado nos
estudos que se voltam para ele;
iii) As práticas linguageiras dos alunos, suas necessidades e possibilidades de aprendizagem,
segundo sua faixa etária e seu grau de letramento;
iv) As práticas escolares: ou seja, o modo com que a escola vem lidando com o ensino de
língua, as experiências acumuladas, as formas de trabalho já experimentadas no cotidiano
escolar.
Com base nessas quatro fontes de informação, torna-se possível definir aquilo que se pretende
ensinar do gênero selecionado, excluindo-se ou deixando para outro momento o ensino de
determinadas dimensões do gênero. Por exemplo, se o professor opta por ensinar o gênero
debate: ao definir um modelo didático desse gênero, o professor pode optar por excluir de
seus objetivos de ensino o trabalho com estratégias de convencimento que utilizam má-fé e
falso testemunho, ou a agressão direta. Embora esses sejam componentes freqüentes em um
tipo de debate conhecido pelos alunos – o debate político –, parece que eles pouco têm a ver
com a função educativa da escola.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 56 .
Outra situação possível na definição daquilo que se pretende ensinar é aquela em que o
professor elege algumas dimensões do gênero e deixa as outras para aprofundamento em outra
série. Assim, um mesmo gênero – por exemplo, a fábula – pode ser objeto de estudo na 1ª. e
na 4ª série. Para cada uma dessas séries podem ser definidos componentes diferentes do ponto
de vista, por exemplo, da organização textual do gênero: para a 1ª., pode-se enfocar o trabalho
sobre a construção das personagens; para a 4ª., o trabalho se voltaria para os modos de
configuração dos discursos direto e indireto. Decisões como essas dependem, em grande
medida, do diálogo que precisa ser estabelecido entre a equipe de professores de Português e
desses com os professores de outras disciplinas.
É a partir da definição desse modelo didático do gênero que a equipe pode elaborar o
conjunto de atividades e tarefas e o modo com que elas serão seqüenciadas, além dos
procedimentos e recursos didáticos a serem utilizados e dos instrumentos de avaliação da
aprendizagem a serem propostos.
Trata-se da elaboração do que Dolz, Schneuwly e seus colaboradores (2001/2004) chamam de
seqüência didática, um conjunto de oficinas de ensino/aprendizagem seqüenciadas e
articuladas em torno do gênero a ser ensinado. Guimarães, Cordeiro & Azevedo (2006)
apresentam os componentes de uma seqüência didática, como a seguir:
• a apresentação do projeto de trabalho e da situação de comunicação (evocação das características mais importantes – objetivo, enunciador, destinatário, conteúdos – do gênero de texto a ser produzido),
• a produção de um primeiro texto (a fim de delimitar as capacidades e as dificuldades do aluno),
• as oficinas de trabalho (atividades e exercícios organizados em função da modelização das características do gênero) e
• a produção final (em que o aluno retoma os conhecimentos adquiridos ao longo da seqüência e o professor avalia os progressos realizados).
As autoras assinalam que:
Preferencialmente, uma seqüência didática deve ser realizada num espaço de tempo relativamente curto e ter um ritmo adaptado às possibilidades de aprendizagem dos alunos. As atividades e os exercícios propostos devem ser variados e levar os alunos a distinguir o que eles já sabem fazer do que ainda devem adquirir.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 57 .
Vejamos o exemplo, apresentado pelas autoras, de uma seqüência de ensino do gênero
narrativa de aventura de viagem desenvolvida com alunos de 3ª. série do Ensino
Fundamental (na faixa etária entre 9 e 11 anos):
OOFIC IN AFIC IN A 1 – P 1 – P ES Q U IS AES Q U IS A S O B R ES O B R E N A RR A TIV A SN A RR A TIV A S D ED E A V EN TU R A SA V EN TU R A S D ED E V IA G EN SV IA G EN S
Nesta oficina, os alunos exploraram obras originais e adaptações para aprenderem a identificar o título, o nome do autor, as personagens típicas, as características espaciais e temporais do gênero, assim como os momentos de ação, aventura, suspense e as unidades lingüísticas que os indicam.
OOFICINAFICINA 2 – P 2 – PESQUISAESQUISA SOBRESOBRE TIPOSTIPOS DEDE NARRADORESNARRADORES
Esta oficina foi realizada para que os alunos aprendessem a distinguir o autor do narrador e a narrar na 1a ou na 3a pessoa.
OOFICINAFICINA 3 – C 3 – CARACTERÍSTICASARACTERÍSTICAS CULTURAISCULTURAIS DOSDOS SÉCULOSSÉCULOS XVI, XVII XVI, XVII EE XVIII XVIII
Esta oficina centrou-se na descoberta das características culturais da época: profissões, modo de vida de famílias ricas e pobres, vestimentas, embarcações e armas utilizadas.
OOFICINAFICINA 4 – I 4 – IDENTIFICAÇÃODENTIFICAÇÃO, , FUNÇÃOFUNÇÃO EE CARACTERÍSTICASCARACTERÍSTICAS DASDAS PERSONAGENSPERSONAGENS NUMANUMA AVENTURAAVENTURA DEDE VIAGENSVIAGENS
Esta oficina objetivava a identificação das características do protagonista, de seus companheiros e do antagonista. Os alunos aprenderam também a identificar o objetivo, as situações vividas pelo protagonista e as ações por este realizadas.
OOFIC IN AFIC IN A 5 – E 5 – E TA P A STA P A S P AR AP AR A AA ES CR ITAES CR ITA D ED E U MAU MA N A RR A TIV AN A RR A TIV A D ED E A V EN TU R A SA V EN TU R A S D ED E V IA G EN SV IA G EN S
Nesta oficina, os alunos fizeram um apanhado dos elementos necessários para a reescrita do texto inicial ou escrita do texto final (criação e caracterização das personagens; estabelecimento do objetivo que o protagonista deverá alcançar e as dificuldades a superar; organização das aventuras no espaço-tempo; criação de um título).
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 58 .
A proposta de seqüência didática apresenta, a meu ver, várias vantagens, uma vez que leva em
conta tanto o pólo do aluno – o que ele já conhece e como aprende –, quanto o pólo do
professor – os instrumentos didáticos (as tarefas, por exemplo) de que se utiliza para ensinar
se baseiam no que ele conhece sobre o repertório de conhecimentos e de práticas de
letramento de que os alunos já se apropriaram e daquilo que são capazes de aprender.
Além disso, tendo finalizado a seqüência didática para o ensino de um gênero, o professor terá
elementos para avaliar, juntamente com os alunos, as dificuldades, os desafios e os avanços
encontrados no percurso de estudo do gênero. Esses dados podem ajudar o professor a ajustar
a seqüência quando a propuser a outra turma de alunos, em outro ano letivo. Com o passar do
tempo, o professor teria um arquivo significativo de seqüências (contendo tarefas, recursos
didáticos, procedimentos e instrumentos de avaliação da aprendizagem). Esse arquivo serviria
como referencial didático que, ao mesmo tempo em que testemunharia a memória do
cotidiano de suas práticas didáticas, comporia um mosaico de experiências passível de servir a
outros professores, ao projeto educativo da escola como um todo.
É preciso dizer que a proposta de seqüência didática descrita acima não é a única forma de
planejar o ensino. Essa proposta, entretanto, nos instiga a inventar outros modos de organizar
o ensino de um dado gênero. O que parece significativo é a idéia de que não há ensino casual:
programá-lo parece ser o passo inicial para que possamos desenvolver uma postura de
reflexão constante sobre ele, na sala de aula, na comunidade escolar, nos espaços de
formação, na sociedade como um todo.
5. Para continuar o diálogo
As questões apresentadas neste texto pretenderam pôr em questão os desafios que um
currículo que toma o texto como unidade de ensino do gênero como objeto de ensino coloca
para as práticas de ensino-aprendizagem da língua na escola. Quase uma década depois da
publicação dos PCN, temos incrementado a reflexão sobre o ensino de gêneros com um olhar
mais preciso (mas não definitivo) sobre o que significa uma proposta de trabalho centrada no
gênero.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 59 .
Diferentes contextos socioculturais em que se ensina Português, pelo Brasil afora, têm-se
integrado, de modos os mais diversos, às discussões sobre o currículo de Português com base
no trabalho com gêneros. Algumas questões têm retornado e outras são propostas. Não seria
possível tratar de todas elas neste texto. Aponto para uma que me parece particularmente
significativa, relativa ao lugar do livro didático em um currículo centrado no trabalho com
gêneros. A conversa só está começando, o diálogo continua aberto.
Para saber mais... algumas referências
Textos teóricos
BAKHTIN, M., VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem [1929]. São Paulo: HUCITEC,
1979.
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: Estética da Criação Verbal [1952-3]. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
MAINGUENEAU, D. Análise de textos da comunicação. São Paulo: Cortez, 2004.
MEURER, J. L., BONINI, A. & MOTTA-ROTH, D. (orgs.). Gêneros – teorias, métodos,
debates. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.
ROJO, R. H. R. Gêneros do discurso e gêneros textuais: questões teóricas e aplicadas. In:
Meurer, J. L., Bonini, A. & Motta-Roth, D. (orgs.). Gêneros – teorias, métodos, debates. São
Paulo: Parábola Editorial, 2005.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 60 .
Textos que tematizam o gênero como objeto de ensino
De PIETRO, J.-F. & SCHNEUWLY, B. O modelo didático do gênero: um conceito da
engenharia didática. In: Moara – Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal do Pará, Belém, PA, n. 26, 2006.
DOLZ, J., NOVERRAZ, M & SCHNEUWLY, B. Seqüências Didáticas para o Oral e a
Escrita: Apresentação de um Procedimento. In: Roxane Rojo & Glaís Sales Cordeiro (orgs.).
Gêneros Orais e Escritos na Escola. Campinas. Mercado de Letras: 95-128. (Original
publicado em S'exprimer en Français. Séquences Didactiques pour L'oral et L'écrit. Bruxelas:
Editions de Boeck, 2001/2004.
GOMES-SANTOS, S. N. Recontando histórias na escola: gêneros discursivos e produção da
escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
GUIMARÃES, CORDEIRO, G. S., AZEVEDO, I. C. M. Realidades sociais diferentes e
gêneros textuais: duas experiências do contexto escolar brasileiro. Moara – Revista do
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará, Belém, PA, n. 26,
2006.
SCHNEUWLY, B. & DOLZ, J. Gêneros Orais e Escritos na Escola. Campinas: Mercado de
Letras (Roxane Rojo & Glaís Sales Cordeiro, org. e trad.), 2004.
ROJO, R. Modos de transposição dos PCNs às práticas de sala de aula: progressão curricular
e projetos. In: A Prática de Linguagem em Sala de Aula. Campinas: Mercado de Letras, 2000.
_____. ROJO, R. A Prática de Linguagem em Sala de Aula. Campinas: Mercado de Letras,
2000.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 61 .
ROJO, R & CORDEIRO, G. S. Apresentação: gêneros orais e escritos como objetos de
ensino: modo de pensar, modo de fazer. In: Gêneros Orais e Escritos na Escola. Campinas.
Mercado de Letras: 95-128. (Original publicado em S'exprimer en Français. Séquences
Didactiques pour L'oral et L'écrit. Bruxelas: Editions de Boeck, 2001/2004.)
Notas:
Professor da Universidade Federal do Pará. Doutor em Lingüística - Unicamp. Pós-doutor pela Universidade de Genebra, em colaboração com Bernard Schneuwly. Temas principais de pesquisa: práticas de ensino-aprendizagem de língua materna, processos de constituição da língua portuguesa como disciplina escolar, práticas de produção-recepção de gêneros textuais.
2 CHERVEL, A. La culture scolaire – une approche historique. Paris: Belin, 1998.
3 SOARES, M. Português na escola – história de uma disciplina curricular. In: BAGNO, M. (org.). Lingüística da Norma. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 155-177.
4 As considerações sobre a noção de forma escolar são creditadas a Bernard Schneuwly, em conferência intitulada “Genres et forme scolaire: enseignement e apprentissage de la langue première à l’école”, durante a abertura da Jornada de Estudos “Corpus et Genres: apport des grands corpus pour la caracterisation des genres scolaires”, em 10/06/2006, na Université de Paris X, em Nanterre (FR).
5 Agradeço a João Wanderley Geraldi por me ter chamado a atenção para a importância desse aspecto.
6 Esse aspecto foi explicitado por Roxane Rojo, por ocasião da Mesa Redonda “Análise de gêneros hoje: contribuições para a compreensão dos gêneros como elementos constitutivos das práticas sociais”, no V Congresso Internacional da Associação Brasileira de Lingüística (ABRALIN), realizado no período de 28/02 a 03/03/2007, na Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte (MG).
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 62 .
PROGRAMA 4PROGRAMA 4
COMPREENSÃO E PRODUÇÃO DE TEXTOS
Leitura e Escrita: Produção de sentidosLeitura e Escrita: Produção de sentidos
Estudo dos processos referenciais como um meio de (re)construir a coerência em
atividades de compreensão e produção de textos
Mônica Magalhães Cavalcante1
Vista como atividade sócio-interativa situada, a língua não é uma forma de representar a
realidade. Assim, é na interação (seja com um texto ou um outro indivíduo) que emergem
os sentidos numa espécie de ação coletiva, o que permite dizer que as relações que
possibilitam a continuidade temática e a progressão referencial no texto, fazendo surgir
coerência e coesividade, não são propriedades intrínsecas apenas. Coesão e coerência
não se esgotam nas propriedades léxico-gramaticais imanentes à língua enquanto código,
nem no texto enquanto artefato. Embora as relações léxico-gramaticais continuem
cruciais, requerem-se, ainda, atividades lingüísticas, cognitivas e interacionais integradas
e convergentes que permitam o acesso à construção de sentidos partilhados (...). Portanto,
mais do que um simples instrumento de representação e comunicação, a língua é uma
forma de ação e interação. É neste sentido que o texto pode ser visto como um sistema de
construção do conhecimento ou um lugar de explicitação da experiência humana e não
apenas um artefato lingüístico. (...) E será neste contexto que a questão central dos
processos referenciais deverá ser analisada (Luiz Antonio Marcuschi).
Uma explicação necessária
Os sentidos de um texto, falado ou escrito, não se esgotam naquilo que ele explicita.
Compreender ou produzir um texto envolve um processo de interação contínua entre o
enunciador e os possíveis interlocutores que, por sua ação conjunta de criar e recriar sentido e
referência, podem ser chamados de co-enunciadores. Como bem afirmou Bakhtin ([1929]
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 63 .
1972), essa interatividade é inerente à própria língua e constitui um princípio universal de
dialogismo em todos os usos de fala e escrita. Nesse processo de construção e de reconstrução
da coerência textual, os mecanismos de referenciação são essenciais. Cada vez que, por meio
de expressões nominais e de pronomes substantivos, nós nos referimos a entidades presentes
no universo do discurso, para nomeá-las ou redesigná-las, estamos nos valendo de processos
referenciais. Assim, nos exercícios de compreensão de texto e de redação, mesmo quando os
manuais de ensino não mencionam tais processos, ainda assim, estão fazendo uso deles.
Compete, por isso, aos professores de Língua Portuguesa chamar a atenção dos alunos para o
modo como, somente através de estratégias de referenciação, é possível ir recuperando as
ligações entre as entidades que aparecem num texto e que se relacionam a muitos de nossos
conhecimentos de mundo. É dessa maneira que se compreende o que o enunciador de um
texto quis (ou não) revelar. E é dessa maneira que, quando elaboramos um texto, vamos
guiando o co-enunciador, por processos referenciais, para o rumo que pretendemos alcançar,
mas que ele alcançará a seu modo, conforme suas experiências e sua visão das coisas. Foi
pensando nisso que propusemos, aqui, algumas atividades de referenciação que poderão ser
úteis nas aulas de compreensão e produção de textos.
Uma estratégia fundamental para se produzir ou para se compreender um texto é ir
(re)construindo, gradativamente, as entidades a que se faz referência no universo do discurso.
Essas entidades, que criamos e recriamos em nossas práticas sociais e comunicativas, quando
elaboramos ou quando entendemos um texto, são os chamados referentes, que se manifestam
sob a forma de expressões referenciais, como nomes próprios, ou grupos nominais inteiros,
ou pronomes pessoais e demonstrativos. Assim, no trecho abaixo, podemos identificar, dentre
outros, um conjunto de referentes, designados pelas expressões referenciais grifadas:
(1) "O mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão
sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me
alegra, montão. (...) Confiança – o senhor sabe – não se tira das coisas feitas ou
perfeitas: ela rodeia é o quente da pessoa" (Guimarães Rosa – Grande Sertão:
Veredas).
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 64 .
Quando interpretamos o exemplo acima, não podemos afirmar que os referentes de “as
pessoas”, ou de “a vida”, ou ainda de “as coisas feitas e perfeitas” sejam exatamente os
mesmos para todos os leitores, nem que correspondam às mesmas entidades idealizadas pelo
narrador da obra. Com certeza, o que o enunciador concebe como “pessoas” só coincide em
parte com o que cada leitor imagina serem as pessoas, porque cada um tem suas experiências
pessoais, familiares e culturais. Do mesmo modo, quando o enunciador fala do que “a vida lhe
ensinou”, o leitor não vai recuperar com precisão como era a “vida” a que ele se refere. Essa
coincidência total entre o que um escritor cria e o que um leitor recria nunca existirá. Haverá,
sim, muitos aspectos em comum nos sentidos e nas representações das entidades para
escritores e leitores, e é isso que basta para que se promova a (re)construção de um texto.
Nem o significado das expressões referenciais, nem os próprios referentes pelos quais
compreendemos o mundo têm total estabilidade num texto. Eles se encontram em constante
transformação, porque dependem do modo como os percebemos, do modo como nossa cultura
nos influencia a vê-los e a denominá-los, do modo como julgamos que nossos interlocutores
os encaram e até do modo como os textos, falados e escritos, guiam nosso olhar para eles.
Ao ser introduzida num texto uma dada entidade, constrói-se para ela uma referência, que não
começa nem termina no momento em que a representamos por uma expressão referencial,
mas que tem seqüência num processo amplo de referenciação, do qual participa não apenas
quem enuncia o texto, mas também quem há de possivelmente interpretá-lo e reconstruí-lo.
Os referentes criados no universo do discurso se relacionam uns com os outros de maneiras
diversas, o que produz uma espécie de continuidade referencial. Em termos técnicos, é o que
se costuma tratar como anáfora. Um tipo muito comum de relação anafórica acontece quando
um mesmo referente é retomado totalmente dentro do texto, como se dá com “Mário Lago”,
no exemplo (2).
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 65 .
(2) Ai, que saudades de Lago
Mário Lago morreu, ontem, no Rio de Janeiro. Os 90 anos de vida sucumbiram a
um enfisema pulmonar, que já havia causado a internação do artista entre 15 de
fevereiro e 12 de março. Mário Lago deixou um rasto de histórias na dramaturgia,
boemia e até na política.
"O que lhe dá prazer?" Mário Lago, então com 87 anos, respondeu à jornalista:
"Viver. Eu digo sempre: meus pais, quando acabaram de me fazer, riam pra burro!
Então eu tenho que justificar essa alegria, né? Viver é uma grande coisa...". Até
que chegou aos 90 no dia 26 de novembro do ano passado. Viveu. "Eu nunca abri
mão da minha condição de boêmio. Nem na militância política. Eu dizia: 'A
minha tarefa está cumprida, então, agora, eu vou para o meu cabaré'".
Na verdade, Mário Lago queria mais um bocadinho de vida. "Tenho confiança de
que vou até os 100", anunciou ao Jornal do Brasil (20/01/2002). Mas a queria
lúcido. "O problema não é envelhecer, é encorocar... Não pode ficar velho
coroca". Aqui e agora. "Não sou aquele velho que diz: 'Ah, no meu tempo'. Meu
tempo é hoje" (O Povo, 20/5/2002).
O referente que é retomado tem recebido diferentes nomes nos estudos sobre o assunto, como
antecedente, gatilho, desencadeador e âncora. No exemplo acima, a âncora para os
anafóricos “Mário Lago”, “o artista”, “lhe” e pronomes elípticos é a própria expressão “Mário
Lago”, que é retomada outras vezes no texto. Como o anafórico e sua âncora coincidem neste
caso, porque representam a mesma entidade, dizemos que eles são correferenciais.
Mas existem outras espécies de anáfora que não são correferenciais: ocorrem quando um
referente não é diretamente retomado por inteiro, mas guarda com sua âncora (que, às vezes,
pode nem ser um outro referente, mas uma pista qualquer do texto) algum tipo de associação
no contexto de uso. Em (3), por exemplo, podemos considerar como anafóricas as expressões
referenciais “a professora” e “o fundo da sala”, não porque expressem a mesma entidade, mas
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 66 .
pelo modo como se associam indiretamente com sua âncora “as crianças”, compondo um
cenário de escola e de aula.
(3) Todas as crianças haviam saído na fotografia, e a professora estava tentando persuadi-las a comprar uma cópia da foto do grupo.
– Imaginem que bonito será quando vocês forem grandes e puderem dizer: “Ali está a Catarina, é advogada”, ou também: “Este é o Miguel. Agora é médico".
Ouviu-se uma vozinha vinda do fundo da sala:
– E ali está a professora. Já morreu.
(Essas historinhas são verdadeiras – fonte: internet)
Observe-se que, ao contrário do anafórico “a foto do grupo”, que retoma uma entidade já
mencionada antes, no caso, “a fotografia”, as expressões referenciais destacadas em (3)
remetem a referentes que nunca foram mencionados no texto; aparecem ali pela primeira vez,
mas são formalmente manifestados como se já os conhecêssemos, porque o enunciador supõe
que saibamos da relação que há entre eles e suas âncoras, de acordo com os hábitos de nossa
comunidade cultural. A esse fenômeno, dá-se o nome de anáfora indireta, um dos principais
mecanismos de articulação das idéias num texto.
Não se empregam expressões referenciais simplesmente para dar continuidade a referentes
que vão sendo introduzidos, nem apenas para dar coesão ao tecido textual, mas,
principalmente, para fazer as referências irem progredindo aos poucos, a partir das indicações
deixadas pelo texto, que vão ativando na memória dos interlocutores informações e
sentimentos diversos. A seleção das diferentes formas de expressão referencial, por isso,
nunca é ingênua: atende sempre aos propósitos discursivos do enunciador em contextos
particulares de uso. Leia-se o texto seguinte:
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 67 .
(4) Tempo de desejar, tempo de pensar
Amanhecer: o mais antigo
sinal de vida sobre a Terra.
Amanhecer: ainda o mais novo
sinal de vida sobre a Terra.
Amanhecer e vida humana
se entrelaçam na mesma luz.
Adia-se outra vez
a instauração do amor,
o advento da paz?
Mesmo assim, mesmo em sonho
outra vez se deseja
a instauração do amor,
o advento da paz.
(Carlos Drummond de Andrade)
Veja-se que, em (4), o referente de “amanhecer” vai ganhando novos contornos à medida que
novos predicados vão sendo atribuídos a ele, como “o mais antigo sinal de vida sobre a
Terra”, e, em seguida, num aparente paradoxo, “ainda o mais novo sinal de vida sobre a
Terra”, até chegar ao objetivo maior de compará-lo à instauração do amor e ao advento da
paz, que se renovam na vida humana. Podemos dizer, assim, que o referente vai sendo
recategorizado, isto é, vai sendo transformado, e que essas modificações podem ou não ser
reveladas para o leitor pelas próprias expressões referenciais, como aconteceu com o
“amanhecer” no texto acima.
Por vezes, porém, uma recategorização de referente pode se verificar apenas implicitamente,
e, nessa situação, compete ao receptor, como co-enunciador do texto, fazer as inferências
necessárias, que o enunciador espera que ele faça, para reconstruir a referência, a partir de
outras indicações contextuais. Isso acontece, por exemplo, com “álcool” na piada abaixo, que
passa de “bebida alcoólica”, na voz do médico, para “álcool etílico”, na voz do bêbado.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 68 .
(5) O médico tenta examinar o paciente, que está completamente embriagado.
– O senhor toma muito álcool?
– Não, doutor! Muito difícil... Só mesmo quando não tem uma cachacinha por perto (Piadas de bêbado – autor desconhecido).
Aqui, o jogo referencial se efetiva a partir da associação entre as âncoras “médico” e
“paciente” e o anafórico “muito álcool”, conduzindo o leitor a inferir que o médico estaria
elaborando uma pergunta rotineira sobre o hábito de o paciente consumir bebida alcoólica.
Ademais, a âncora “completamente embriagado” constitui um forte gatilho para disparar essa
inferência. A expectativa se quebra no instante em que o bêbado opõe “álcool” a “uma
cachacinha”, denunciando que estava se referindo ao outro tipo de álcool, ao qual costumava
recorrer quando se acabava sua cachacinha. É neste momento que se promove a
recategorização do referente e se atinge o propósito humorístico da piada.
Vale notar como gêneros dos discursos humorístico e literário lançam mão do artifício das
ambigüidades ou das vaguezas referenciais para obter uma ampla variedade de efeitos de
sentido e de transformações. O texto abaixo, como veremos, não explicita para o leitor qual é,
de fato, o referente do pronome “eles” nem dos pronomes elípticos que lhe são
correferenciais. Essa estratégia permite um raio maior de possibilidades referenciais e
favorece a leitura de uma situação comum, com a qual o leitor se identifica, em que as pessoas
se aproveitam de nossa passividade, de nosso costume de não reagir às invasões de
privacidade, às perdas de direito, às agressões em geral:
(6) Na primeira noite, eles se aproximame roubam uma flordo nosso jardim.E não dizemos nada.Na segunda noite, já não se escondem:pisam as flores, matam nosso cão,e não dizemos nada.Até que um dia,o mais frágil deles
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 69 .
entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz e,conhecendo nosso medo,arranca-nos a voz da garganta.E já não podemos dizer nada 2.
Outros gêneros do discurso também se beneficiam do recurso à vagueza dos significados e
das referências, especialmente certos anúncios publicitários, como encontramos abaixo:
(7) * Nenhuma mulher quer um homem bom de pia.
(Colchões Orthocrin)
* Nossos clientes nunca voltaram para reclamar.
(Outdoor de uma casa de serviços funerários) (Slogans maneiros – fonte: internet)
Existe, ainda, uma maneira diferente de estabelecer relações anafóricas de modo indireto:
consiste em usar uma expressão referencial para resumir trechos inteiros de um texto, como
no caso seguinte:
(8) Texto do Bial para Bussunda
Assisti a algumas imagens do velório do Bussunda, quando os colegas do
Casseta & Planeta deram seus depoimentos. Parecia que a qualquer instante iria
estourar uma piada. Estava tudo sério demais, faltava a esculhambação, a
zombaria, a desestruturação da cena. Mas nada acontecia ali de risível, era só dor
e perplexidade, que é mesmo o que a morte causa em todos os que ficam. A
verdade é que não havia nada a acrescentar no roteiro: a morte, por si só, é uma
piada pronta. Morrer é ridículo. Você combinou de jantar com a namorada, está
em pleno tratamento dentário, tem planos pra semana que vem, precisa autenticar
um documento em cartório, colocar gasolina no carro e no meio da tarde morre.
Como assim? E os e-mails que você ainda não abriu, o livro que ficou pela
metade, o telefonema que você prometeu dar à tardinha para um cliente? Não sei
de onde tiraram esta idéia: morrer. A troco? (...) Que pegadinha macabra: você sai
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 70 .
sem tomar café e talvez não almoce, caminha por uma rua e talvez não chegue na
próxima esquina, começa a falar e talvez não conclua o que pretende dizer. Não
faz exames médicos, fuma dois maços por dia, bebe de tudo, curte costelas gordas
e mulheres magras e morre num sábado de manhã. Se faz check-up regulares e
não tem vícios, morre do mesmo jeito. Isso é para ser levado a sério? (...) Morrer
cedo é uma transgressão, desfaz a ordem natural das coisas. Morrer é um exagero.
E, como se sabe, o exagero é a matéria-prima das piadas. Só que esta não tem
graça (Pedro Bial).
Os anafóricos grifados no exemplo resumem, ou melhor, encapsulam os conteúdos de
extensão variada a que fazem remissão. Diferentemente dos casos anteriormente analisados,
aqui a âncora não é mais uma entidade pontualmente localizável, mas declarações inteiras que
o anafórico encapsula numa única expressão referencial. Chamamos esses casos de anáfora
encapsuladora, uma estratégia muito eficiente para sintetizar o que vem sendo dito no texto e,
ao mesmo tempo, para organizar o que vai ser comentado em seguida. Trata-se de um
excelente recurso argumentativo, muito eficaz na expressão dos pontos de vista que o
enunciador deseja revelar, como ocorre com o emprego de “pegadinha macabra” no exemplo
acima.
Explorar o uso de expressões referenciais nas aulas de compreensão e produção de textos é
fundamental para levar o aluno a reconstruir a coerência textual, avaliando como os referentes
se mantêm e como evoluem no discurso. Um texto é uma entidade abstrata, um espaço em
que se articulam relações entre o que é dito e um conjunto de informações socioculturais. Nas
ligações de sentido e de referência que compõem um texto, os conteúdos dados dão apoio à
introdução do novo. Cabe ao professor conduzir o aluno a conseguir lidar com os processos
referenciais, de modo a alcançar as relações entre o que está explícito no texto e o que só se
obtém de maneira implícita, por inferência. Sugerimos, a seguir, algumas atividades que
podem ser úteis nas aulas de Língua Portuguesa.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 71 .
Faça com seus alunos
Um dos exercícios básicos de compreensão leitora é solicitar aos alunos que identifiquem a
que se referem as expressões anafóricas sublinhadas num texto (ou seja, qual a âncora delas).
Os textos, evidentemente, devem ser adaptados a cada nível de ensino.
Atividade 1: Algumas das expressões anafóricas sublinhadas no texto abaixo remetem a
âncoras que podem ser precisamente reconhecíveis no próprio texto; outras podem ter mais de
uma âncora e outras podem encapsular porções textuais. Diga a que se referem essas anáforas
grifadas.
As meninas-dos-olhos
A luteína e a zeaxantina são as novas promessas na prevenção e no tratamento
da degeneração macular.
Todo mundo já ouviu dizer que cenoura faz bem para a vista. Isso porque ela é a
principal fonte de betacaroteno, um precursor da vitamina A, cujos poderes
antioxidantes são conhecidos desde a década de 80. Pois bem, a substância perdeu
o posto de menina-dos-olhos (com perdão do trocadilho) dos oftalmologistas para
outros dois nutrientes – a luteína e a zeaxantina. Os últimos estudos indicam que
elas, sim, são as principais aliadas na prevenção e no tratamento da degeneração
macular. Com 3 milhões de vítimas no Brasil, a doença é a principal causa de
cegueira de pessoas com mais de 60 anos. As propriedades das duas substâncias
vieram à tona graças à descoberta de que elas estão presentes em quantidades
abundantes numa das estruturas mais nobres dos olhos – a mácula, situada no
centro da retina e responsável pela visão central. Constatou-se também que, nos
pacientes com degeneração macular, a concentração de luteína e zeaxantina é
bastante reduzida. Com isso, abriu-se uma nova linha de pesquisa para o controle
da doença, a que investiga os efeitos da suplementação. Os resultados até agora
são animadores. Doses extras dos nutrientes evitam a evolução do mal,
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 72 .
preservando a visão de doentes em estágio inicial. A luteína e a zeaxantina
funcionam como uma espécie de óculos de sol naturais, protegendo a mácula dos
raios mais nocivos. Além disso, como o betacaroteno, são antioxidantes, que
preservam a saúde das células maculares. (...) (Veja, 07/02/2007)
Comente com seus alunos sobre como, muitas vezes, rebatizamos algumas expressões
referenciais do texto, ou para não abusar das repetições, que comprometem o estilo, ou para
acrescentar novos significados e valores que ajudam a explicitar nossos pontos de vista. Você
pode elaborar uma atividade de compreensão e outra de produção para trabalhar a substituição
de expressões referenciais, como as seguintes.
Atividade 2: Discuta com os alunos as razões pelas quais, na reportagem abaixo, as
expressões referenciais foram recategorizadas. O objetivo, aqui, é mostrar como o emprego de
expressões que transformam o referente pode orientar a argumentação para o fim desejado.
Peça-lhes que respondam às seguintes questões:
a) Quais os meios de pesca da lagosta mencionados no texto?
b) Esses meios são designados ora como “esses apetrechos”, ora como “equipamento de
pesca”, ora como “apetrechos que servem à pesca predatória”. Mas é a recategorização “a
mais nova e ameaçadora estratégia para a captura da lagosta” que mais apóia o ponto de vista
defendido no texto. Que ponto de vista é esse? Alerte para o fato de que, ao empregar tal
expressão, ao mesmo tempo, todas as outras estratégias de captura são recategorizadas
também como ameaçadoras.
Do jereré à marambaia – pelo fim da pesca predatória
No começo, era o jereré, que se assemelha a uma rede de caçar borboletas.
Depois, a rede caçoeira, que foi da pesca porque captura espécimes de qualquer
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 73 .
tamanho e destrói o hábitat das lagostas ao arrastar o que encontra no fundo do
mar, mas acabou sendo reintroduzida, desde 1995.
Além da rede caçoeira, difundiu-se a atividade de mergulho com uso de
compressor de ar, apesar de ilegal. Agora, a mais nova e ameaçadora estratégia
para a captura da lagosta é a marambaia, utilizada como recife artificial, também
clandestinamente. Todos, meios ou apetrechos que servem à pesca predatória.
É praticamente consenso entre os interessados no fim da crise da lagosta que o
único equipamento de pesca seja o manzuá. Mas o diretor da federação dos
pescadores, José Carlos dos Santos, observa que até mesmo esse apetrecho pode
ser usado como predador. “A questão é o tamanho da malha usada no manzuá”.
Como o esforço de pesca só cresce, os apetrechos vão sendo substituídos por
outros com maior capacidade de captura das lagostas. “Estão pegando as crianças
e matando”, alerta José Carlos, referindo-se aos indivíduos juvenis. No mesmo
tom de apelo, como se falasse de pessoas, o pescador aposentado Zé de Nana
questiona: “Mata-se o pai, a mãe, o filho. O que vai ficar mais?” (Revista
Universidade Pública – outubro de 2006).
Como vimos, os sentidos e as referências não estão congelados dentro de um texto: eles
apenas são ativados e guiados pelos indícios contextuais, a partir dos quais os enunciadores e
co-enunciadores constroem a referência em suas mentes.
Atividade 3: Pergunte a seus alunos que conhecimentos culturais foram ativados pelo
personagem do texto abaixo para mencionar a expressão referencial “a etiqueta” nesse
contexto.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 74 .
Um menino de três anos foi com seu pai ver uma ninhada de gatinhos que haviam
acabado de nascer. De volta a casa, contou com excitação para sua mãe que havia
gatinhos e gatinhas.
– Como você soube disso? - perguntou a mãe.
– Papai os levantou e olhou por baixo – respondeu o menino. Acho que ali estava a etiqueta. (Essas historinhas são verdadeiras – fonte: internet)
Além de tarefas de compreensão de texto, também exercícios de escrita explorando processos
referenciais podem ser muito úteis em aulas de redação. A atividade sugerida a seguir pode
ser realizada com produções dos próprios alunos, exibidas em transparência, por exemplo,
para que a turma, em conjunto, discuta algumas possibilidades de substituição (os alunos não
devem preocupar-se em tirar todas as repetições, pois, em algumas situações, elas podem ser
adequadas).
Atividade 4: A notícia a seguir foi adaptada para esta tarefa. As expressões referenciais que
designam quem cometeu o crime foram propositalmente repetidas por meio do pronome
“ele”. Você deve, primeiro, chamar a atenção para os problemas que são gerados a partir do
mau uso das expressões referenciais. Dependendo do nível da turma, algumas sugestões de
substituição podem ser fornecidas, como “o acusado”, “o assassino”, “o vigia” etc. É
importante também discutir que outras recategorizações não seriam adequadas e por quê.
TRAGÉDIA
O vigilante Antônio dos Santos, 36, assassinou a mulher, a filha de 16 anos e um
vizinho em Horizonte, na Região Metropolitana de Fortaleza. Antes, ele teria
violentado uma mulher de 20 anos e tentado estuprar uma criança de 11. Ele,
segundo a polícia, desconfiava que a esposa o traía com o vizinho. Após o crime,
ele teria tentado se matar disparando um tiro no ouvido. Ele se encontra internado
no Instituto Dr. José Frota (IJF), em Fortaleza, e não corre risco de morte. O
delegado de Horizonte informou que ele será acusado em flagrante por crimes de
homicídio, estupro e tentativa de estupro.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 75 .
As tarefas propostas a seguir têm o propósito de salientar a importância de certos empregos
referenciais vagos ou ambíguos para a obtenção de sentidos inusitados em gêneros literários,
humorísticos e publicitários.
Atividade 6: Nem sempre a ambigüidade atrapalha a captação dos sentidos de um discurso,
pois pode se prestar à construção do humor. Solicite aos alunos que explicitem o duplo
sentido das expressões “uma ‘mudinha’”, “um extrato” e “um homem mais maduro”. Logo
após, comente como a âncora “o fim da picada” se recategoriza a partir do momento em que o
anafórico “o pernilongo” vai embora.
TROCADILHOS
Por que a plantinha não fala?
R: Porque ela ainda é uma "mudinha".
O que o tomate foi fazer no banco?
R: Tirar um extrato.
Por que a mulher do Hulk largou dele?
R: Porque ela queria um homem mais maduro.
Qual o fim da picada?
R: Quando o pernilongo vai embora.
Atividade 7: Neste exercício, assim como no anterior, você deve salientar o modo criativo
como a referência é construída, o que não acontece somente com as piadas e com os poemas.
Pergunte aos alunos qual o ponto de vista que o anúncio abaixo tenta incutir na mente dos
leitores, chamando atenção para o modo como o referente é designado nesta situação: “um
bumbum seco”.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 76 .
* Dê ao seu bebê algo que você não teve na infância. Um bumbum seco.
(Fraldas Johnson's) (Slogans maneiros – fonte: internet)
Atividade 8: Agora, você pode mostrar como a vagueza pode favorecer a reconstrução de
referentes distintos num texto literário, e a importância que isso tem para esse tipo de
discurso. Peça que identifiquem a que se referem as expressões grifadas e discuta todas as
possibilidades com os alunos.
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 77 .
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.
(REIS, Ricardo. In: PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1981. p. 204.)
Sugestões de leitura para os professores
APOTHÉLOZ, D.; CHANET, C. Défini et démonstratif dans les nominalisations. In:
De MULDER & VETTERS, C. (eds.). Relations anaphoriques et (in)cohérence.
Amsterdan: Rodopi, 1997. p. 159-86.
APOTHÉLOZ, Denis; REICHLER-BÉGUELIN, Marie-José. Construction de la
référence et stratégies de désignation. In: BERRENDONNER, Alain e
REICHLER-BÉGUELIN, Marie-José (eds.) Du syntagme nominal aux objets-
de-discours. TRANEL, n. 23, p.227-71, 1995.
BLIKSTEIN, Izidoro. Kaspar Hauser ou A fabricação da realidade. São Paulo:
Cultrix, 1983.
KLEIBER, Georges. L'anaphore associative. 1 ed. Paris: PUF, 2001.
KOCH, Ingedore G. V. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 1997.
_____. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Atos de referenciação na interação face-a-face.
Conferência apresentada por ocasião do II Congresso Internacional da
ABRALIN. Fortaleza, março de 2001.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 78 .
Notas:
Doutora em Lingüística, com pós-doutorado na área de Referenciação. Professora da Universidade Federal do Ceará.
2 Nota da edição: O texto, que aparece na Internet como se fosse de autor desconhecido, é um fragmento do poema "No Caminho, com Maiakóvski" e foi escrito nos anos 60 pelo poeta fluminense Eduardo Alves da Costa. Este mesmo fragmento também já circulou bastante em folhetos e camisetas tendo sido creditado, anteriormente, ao poeta russo Vladimir Maiakóvski e a Bertold Brecht.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 79 .
PROGRAMA 5PROGRAMA 5
A GRAMÁTICA NA ESCOLA
Língua Portuguesa: o ensino de gramática
Luiz Carlos Travaglia1
1. Introdução
Para falarmos do ensino de gramática, é preciso lembrar antes que toda metodologia é
resultado de uma série de opções que o professor faz, individualmente ou no contexto escolar.
Estas opções configuram aquilo em que o professor acredita e, portanto, são elas que acabam
dando forma às atividades de ensino/aprendizagem em sala de aula. Desse modo, uma real
mudança de postura metodológica do professor só acontecerá se as opções e crenças que o
guiam no ensino-aprendizagem mudarem. Por esta razão, julgamos pertinente falar, mesmo
que sucintamente, de algumas opções que dão forma à proposta para o ensino de gramática
que apresentamos a seguir2.
1.1. O que é gramática
O termo gramática pode ser usado com mais de um valor, por isto, para falar de ensino de
gramática, é importante saber o que se entende por gramática.
Há três concepções básicas e importantes de gramática:
a) Gramática é o próprio mecanismo da língua presente nas mentes das pessoas e que lhes
permite utilizar a língua tanto para dizer (falando ou escrevendo), quanto para compreender o
que é dito (ouvindo ou lendo). É o que se chama de gramática internalizada. Esta é o saber
lingüístico que um falante adquiriu, tendo em vista suas capacidades e o meio em que cresceu.
Quando o aluno chega à escola, ele já sabe esta gramática, pelo menos o mecanismo das
variedades lingüísticas com que ele teve contato no meio em que viveu (dialetos regional e
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 80 .
social e registros de grau de formalismo e cortesia usados, essencialmente, por sua família e
amigos) e a utiliza, quase sempre, sem problemas, sendo um falante competente dessas
variedades do Português;
b) O segundo modo de conceber a gramática é o que se chama de gramática descritiva. Esta
gramática resulta do trabalho dos lingüistas ou estudiosos da língua que buscam dizer como é
o mecanismo da língua de que falamos em a, ou seja, como a língua é constituída (quais são
suas unidades, categorias, construções) e como ela funciona. Ao fazer isto, eles consideram as
variedades lingüísticas (dialetos, registros e modalidades: língua oral e escrita), registrando
que elas podem ter e têm gramáticas diferentes, mas com muita coisa igual e semelhante entre
si. A gramática descritiva é consubstanciada em uma metalinguagem com uma nomenclatura
própria, que compõe um conhecimento teórico sobre a língua. Ter esse conhecimento é saber
sobre a língua, o que é diferente de conhecer a língua, que é saber usá-la, mesmo que não se
saiba dizer nada sobre ela;
c) Finalmente temos a gramática normativa. Esta é constituída por regras que a sociedade
estabeleceu para o uso da língua. Por muito tempo a gramática normativa foi baseada
exclusivamente na variedade da língua que chamamos de “culta e padrão”. Esta variedade foi
eleita pela sociedade como sendo a melhor forma da língua não por critérios lingüísticos, mas,
sobretudo, por um critério elitista, porque era o modo como os grupos sociais de maior
prestígio (político, econômico e cultural) usavam a língua. Além desse critério, outros foram
utilizados para estabelecer o que pertence ou não a esta variedade chamada de culta e,
portanto, o que deve ou não ser usado nesta variedade da língua. Estes outros critérios são
essencialmente:
a) Lógicos, baseados na estruturação do pensamento a partir da concepção de língua como
forma de expressão do pensamento. Este critério recomenda, por exemplo, usar a preposição
“a” com verbos de movimento e não a preposição “em”, porque esta indica localização: “Vou
à cidade” e não “Vou na cidade”;
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 81 .
b) Políticos, como o nacionalismo, que recomenda que não se usem estrangeirismos, ou seja,
palavras e construções de outras línguas;
c) Comunicacionais, pelos quais se recomenda a clareza, a precisão, a concisão da linguagem
e se condenam como defeitos o hermetismo e a dubiedade, a imprecisão e a prolixidade;
d) Históricos, que recomendam ou não o uso de determinados modos de dizer meramente por
tradição, como exigir que se use o verbo “assistir” (com o sentido de presenciar) com a
preposição “a” (João assistiu ao show), quando a lingüística já mostrou que este é um fato em
que está ocorrendo mudança e se encontra em variação na língua e, portanto, ocorrem os dois
modos de dizer. Este critério é altamente problemático, pois ele se aplica a alguns fatos e não
a outros (por exemplo: ninguém exige que hoje se fale “asinha” em vez de “depressa”, porque
antigamente era assim);
e) Estéticos pelos quais se recomenda fugir a tudo o que enfeie a língua (como pleonasmos
viciosos, ecos, cacofonias) e se use o que a torne mais bela (eufonia, figuras de linguagem,
harmonia).
Antigamente, a gramática normativa era constituída por uma série de recomendações do que
usar e de proibições de uso de outros elementos da língua. O que se podia usar era o que
estava de acordo com a norma culta e era “certo” e o que não se podia usar era o que não
estava de acordo com a norma culta e era “errado”. Hoje a gramática normativa é mais uma
atitude de despertar uma consciência de que a língua apresenta muitas variedades e que,
devido a regras sociais, é mais adequado ou menos adequado usar a língua de um modo ou de
outro, conforme a situação de interação em que estamos. A gramática normativa, hoje, é, pois,
o conhecimento social de uma “etiqueta” de como se deve usar a língua, semelhante a outras
etiquetas sociais, como, por exemplo, as regras que nos dizem que roupa é mais ou menos
apropriada ou recomendada para certas ocasiões (por exemplo: um professor – que não seja
de natação – não vai dar aula de calção de banho). Do mesmo modo, a sociedade estabeleceu
também certas regras para o uso da língua: quando podemos ou não dizer palavrões, por
exemplo. Assim sendo, a gramática normativa é vista, atualmente, mais como um conjunto de
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 82 .
normas sociais para o uso das diferentes variedades da língua. O conceito de certo e errado foi
substituído por outro: o de adequado e não adequado. Temos que ensinar a norma culta e
padrão aos alunos, explicitando como ela é (em oposição às variedades não cultas) e quando
deve ser usada, mas não dizer para o aluno que o outro modo de dizer (que é permitido pela
língua) nunca pode ser usado. A adequação que a competência comunicativa deve considerar,
na escolha dos recursos da língua para compor os textos, é tanto da variedade lingüística à
situação de interação, quanto dos recursos lingüísticos escolhidos para a produção do efeito de
sentido que se pretende em função do objetivo que se tem (o que podemos chamar de
adequação comunicacional).
Como quase toda a produção cultural de nossa sociedade é registrada e veiculada na variante
considerada “culta e padrão”, o seu domínio é importante para se acessar com mais facilidade
toda essa produção. Cabe à escola ensinar a variedade chamada “Português padrão e/ou
culto”, tendo cuidado para não impor essa variante como modelo único de uso da língua na
fala e na escrita, mas sim como uma variedade importante em nossa sociedade e que devemos
usar em dadas circunstâncias que devemos indicar aos alunos.
É importante lembrar que a língua apresenta variedades de três tipos: 1) dialetos: de região,
de classe social, de sexo, histórico, de idade e de função; 2) modalidades: língua oral e língua
escrita; 3) registros nas seguintes dimensões: A) grau de formalismo (que vai do mais formal
ao coloquial); B) sintonia com várias dimensões: a) status; b) tecnicidade; c) cortesia; d)
norma3.
1.2. Concepção de linguagem
Quando trabalhamos na escola com a língua, a concepção que temos de linguagem e,
portanto, da língua, afeta fundamentalmente nosso modo de agir em sala de aula. Podemos
conceber a linguagem de três modos: a) como expressão do pensamento; b) como código
objetivo de comunicação, pelo qual transmitimos informações aos outros; c) como forma de
interação. Tudo o que sugerimos neste texto para o ensino de gramática baseia-se na
concepção de linguagem como forma de interação. Isto é, quando dizemos alguma coisa,
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 83 .
agimos na sociedade para alcançar os objetivos que temos. Dizer é agir. Mas, como sempre
agimos sobre outro(s) e ele(s) reage(m), a ação, então, se dá entre interlocutores usuários da
língua, por isto temos interação.
A linguagem é, pois, um lugar de interação humana, de interação comunicativa pela produção
de efeitos de sentido entre interlocutores, em uma dada situação de comunicação e em um
contexto sócio-histórico e ideológico.
1.3. Objetivos de ensino de Língua Portuguesa
Em nossas aulas de Português para falantes da língua, podemos agir com objetivos diferentes.
Basicamente podemos: A) ensinar sobre a língua, formando pessoas que são capazes de
analisar a língua, analistas da língua que têm conhecimento teórico sobre a mesma; B)
ensinar a língua, formando usuários competentes da língua, isto é, pessoas que sabem usar a
língua em diferentes variedades da mesma, de modo adequado a cada situação de interação
comunicativa. Isto inclui saber usar a variedade escrita e a variedade culta, padrão, mas não
só.
Nossa proposta é que a formação de usuários competentes da língua é o objetivo prioritário
do ensino de língua materna, embora não o único. Como nos comunicamos por textos em
situações concretas e específicas de interação comunicativa (e para que haja comunicação os
textos devem produzir efeitos de sentido perceptíveis), entende-se que um usuário da língua
tem competência comunicativa quando é capaz de usar os diferentes recursos da língua de
forma adequada à produção e à compreensão de textos, que produzam os efeitos de sentido
pretendidos para a consecução dos objetivos desse usuário da língua em situações concretas e
específicas de interação comunicativa.
O que se pretende prioritariamente, portanto, é desenvolver a competência comunicativa do
aluno, ou seja, “fazer com que ele seja capaz de usar cada vez um maior número de recursos
da língua, de forma a produzir os efeitos de sentido desejados de forma adequada a cada
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 84 .
situação de interação comunicativa em que esteja inserido” (TRAVAGLIA, 2004), para
alcançar seus objetivos.
Para chegar ao domínio das diferentes variedades lingüísticas, a estratégia básica e
fundamental é possibilitar o contato com essas variedades e seu uso pelo aluno. É importante
também que ele conviva com os mais diversos tipos, gêneros e espécies de textos4 para
descobrir a função e a especificidade de cada um.
Os recursos lingüísticos funcionam como pistas e instruções de sentido, para transmitir
elementos de significação. Estes, no todo e na relação com outros fatores, constituem o
sentido que o produtor do texto espera que seja percebido pelo recebedor em sua atividade
para compreender o texto. Se os recursos da língua são pistas e instruções de sentido, ao
trabalhar com o ensino de gramática, adotamos, sobretudo, a concepção pedagógica de que
no ensino, para o desenvolvimento da competência comunicativa, a gramática deve ser vista
como um estudo das condições lingüísticas da significação.
1.4. Organização do ensino5
Geralmente, as atividades de ensino/aprendizagem de língua materna costumam ser divididas
e organizadas em cinco grandes blocos:
1- Vocabulário;
2- Gramática;
3- Produção de textos;
4- Compreensão de textos;
5- Ensino de recursos e convenções da língua escrita, incluindo ortografia e pontuação.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 85 .
Essa divisão em blocos das atividades de ensino/aprendizagem de língua é mais uma questão
de facilidade de organização didático-pedagógica, porque, na verdade, todos os elementos da
língua atuam em conjunto na constituição e funcionamento dos textos e fazem parte da
gramática da língua, entendida como o mecanismo que permite que nos comuniquemos por
meio dessa forma de linguagem que é a língua. Assim, o léxico (exercícios de vocabulário),
bem como os tipos de textos e suas estruturas e características próprias, a significação dos
diversos tipos de recursos da língua e de cada recurso especificamente fazem parte da
gramática da língua. A gramática da língua inclui: a) todos os recursos que a constituem em
todos os planos (fonológico, morfológico, sintático, semântico, pragmático) e níveis (lexical,
frasal, textual) e b) todas as regras, princípios e estratégias que tais recursos atendem ao
compor textos para funcionar na comunicação, criando efeitos de sentido. Portanto, deve-se
entender essa divisão apenas como um artifício para organizar o estudo da língua e o trabalho
correspondente em sala de aula.
As atividades de ensino de gramática podem ser organizadas a partir de dois pilares básicos6:
a) os recursos da língua; b) as instruções de sentido. No caso dos recursos da língua podemos
partir: a) de um recurso específico (cf. o exemplo 13) ou b) de um dado tipo de recurso — cf.
exemplos 12 (adjetivos e locuções adjetivas), 14 (colocação de palavras e elocução), 16
(pronomes possessivos) e 18 (preposições) — e trabalhar verificando que efeitos de sentido
eles são capazes de produzir em textos diversos. No caso das instruções de sentido, partimos
de um valor e buscamos todos os recursos da língua que podem exprimir a instrução de
sentido em questão, estabelecendo diferenças entre eles. Exemplos de instruções de sentido
com que podemos trabalhar são: comparação, quantidade, as modalidades (como a certeza e a
incerteza — cf. exemplo 17— obrigação, possibilidade, probabilidade, necessidade, ordem,
volição), causa e conseqüência, alternativa, adição, oposição, tempo, lugar, modo, etc.
Mais de uma vez falamos em recursos da língua. São recursos da língua:
a) Todas as suas unidades, no plano fonético-fonológico (sons, fonemas, sílabas);
morfológico (morfemas: raízes e radicais, também chamados de lexemas; sufixos, prefixos,
flexões: mudanças de forma para indicar categorias gramaticais); lexical (palavras); sintático
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 86 .
(sintagmas, orações, frases, períodos simples ou compostos); semântico (semas = traços de
significado de uma palavra, campos semânticos); textual (os textos e suas diferentes
categorias: tipos, gêneros e espécies7);
b) Todas as formas de construção (ordem direta ou inversa, a ordem em geral, coordenação,
subordinação, repetições, concordância, etc.);
c) As categorias gramaticais: gênero, número, pessoa, tempo, modalidade, voz, aspecto;
d) Recursos supra-segmentais, tais como entonações, pausas, altura de voz, ritmo;
e) Outros.
2. Ensino de gramática
Como vimos, uma vez que nosso objetivo prioritário é o desenvolvimento da competência
comunicativa, a gramática, pedagogicamente, será essencialmente o estudo das condições
lingüísticas da significação, o que vai orientar a escolha dos recursos da língua em função do
efeito de sentido que se quer produzir e de acordo com a situação de interação comunicativa.
Por exemplo: Se tenho sede, e quero conseguir água numa dada situação (por exemplo, um
professor dando um curso em uma escola para colegas até então desconhecidos), posso usar
um dos textos de (1), mas qual ou quais será(ão) mais ou menos adequado(s)? Na situação
dada, certamente o texto (1a) seria inadequado (embora dito em norma culta), porque traria
efeitos de grosseria por parte do falante. O texto (1e) seria mais adequado, por exemplo, para
instruções escritas passadas pelo organizador de uma atividade de caminhada ou trilha.
Certamente um dos outros três seria mais adequado para a situação dada acima e a escolha
dependeria de outros fatores, inclusive o grau de cortesia.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 87 .
(1) a) Fulano, vai buscar um copo de água para mim, anda! (com entonação de ordem peremptória)
b) Estou com a boca seca.
c) Fulano, seria muito difícil me arrumar um copo de água? (com entonação de pedido gentil)
d) Por favor, alguém podia me arrumar um pouco de água para beber? (com entonação de pedido gentil)
e) Trazer uma garrafa de água para a caminhada.
A gramática da língua é uma só: é o mecanismo lingüístico que permite ao usuário da língua
falar, escrever, ouvir e ler, comunicando-se por meio de textos lingüisticamente compostos.
Sugerimos em Travaglia (1996), como modo de abordar esse mecanismo e desenvolver a
competência comunicativa dos alunos, quatro tipos de atividades de ensino de gramática que
chamamos de:
a) gramática teórica;
b) gramática de uso;
c) gramática reflexiva;
d) gramática normativa.
Estes tipos de atividade não precisam ser usados sempre separadamente, às vezes, para
abordar um dado tópico, podemos lançar mão ao mesmo tempo de mais de um tipo de
atividade. É o caso, por exemplo, do que pode ser feito ao estudar a correspondência entre
oração adjetiva e adjetivo (Cf. atividades 10 e 12 mais adiante). Uma atividade pode ser ao
mesmo tempo de mais de um tipo, como as atividades (15) e (16), que são simultaneamente
reflexivas e de uso. Na atividade do exemplo (21), trabalha-se com a normativa, em seguida
com a teórica e, finalmente, com a de uso.
2.1. Gramática teórica
Realizamos atividades de gramática teórica quando ensinamos e cobramos do aluno a
metalinguagem com a nomenclatura própria da gramática descritiva a que nos referimos no
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 88 .
item 1.1. Ensinamos classificação de unidades e outros recursos da língua, regras de
funcionamento e, depois, pedimos aos alunos que façam classificações e explicações de
elementos da língua que apresentamos. Assim são atividades de gramática teórica aquelas
com instruções como as que registramos de (2) a (7) e todas aquelas que, de um modo ou
outro, cobrem conhecimento lingüístico sobre a língua, conhecimento teórico presente na
gramática descritiva. Uma atividade como a de (8) já é uma atividade de gramática de uso,
mas exige um conhecimento teórico prévio.
2) Classifique as palavras sublinhadas no texto (ou nas frases) abaixo.
(3) Sublinhe os pronomes pessoais usados no trecho acima.
(4) Justifique a concordância do verbo com o sujeito nas frases abaixo.
(5) Diga o grau em que está o adjetivo sublinhado na frase abaixo.
(6) Qual das orações sublinhadas abaixo é subordinada adverbial causal.
(7) Relacione as duas colunas, usando a seguinte legenda: a) prefixo; b) sufixo.
(8) Complete as frases abaixo usando a forma do modo indicativo do verbo indicada entre parênteses (presente, pretéritos imperfeito, perfeito ou mais-que-perfeito, futuro do presente ou futuro do pretérito).
Nossa sugestão é que o ensino teórico, que muito comumente predomina nas aulas de
Português, deve ceder espaço para os outros tipos de atividade, ocupando um mínimo do
tempo disponível. Quando se trabalha com o ensino teórico, sugerimos8 que ele deve ter
objetivos, tais como: a) facilitar, no ensino, a referência a elementos da língua, mas não deve
ser cobrado dos alunos, sobretudo no Ensino Fundamental e em especial em suas séries
iniciais (1ª a 4ª ); portanto, ser um instrumento de mediação e não um fim em si; b) ser objeto
de uma cultura científica necessária na vida moderna; c) ser usado como um instrumento para
ensinar a pensar (objetivo geral da educação e não um objetivo de ensino de língua).
2.2. Gramática de uso
O próprio nome desse tipo de atividade já diz o que ela é. Temos uma atividade de gramática
de uso, quando o aluno é levado a usar recursos e regras da língua. Assim, são atividades de
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 89 .
gramática de uso: a) todos os exercícios estruturais9 (veja exemplos 9 e 10); b) exercícios de
completar lacuna; c) todos os exercícios de vocabulário em que o aluno deve construir frases
ou textos, usando determinadas palavras; d) todos os exercícios de construção de frases ou
textos com determinados recursos da língua (por exemplo: uma dada classe de palavras, um
tipo de construção, uma figura de linguagem, etc.); e) atividades com variedades lingüísticas
(como passar de uma para outra ou, dada uma situação, identificar e usar a variedade esperada
e adequada; veja o exemplo 11, em que se trabalha com o registro de sintonia na dimensão da
cortesia); f) todas as atividades de produção e compreensão de texto, porque nestas atividades
o falante usa os recursos, regras e demais elementos da língua, que tem internalizados, para
construir ou para compreender o texto.
(9) Exercício de transformação, que leva ao uso do pronome pelo nome, evidenciando a
equivalência entre os dois.
Modelo: P- Meu colega desenhou seu cachorro.
A- Meu colega o desenhou.
P- Meu colega desenhou seu cachorro.
A- Meu colega o desenhou.
P- Eu desenhei meus brinquedos.
A- Eu os desenhei.
P- Minha irmã arrumou a cozinha.
A- Minha irmã a arrumou.
P- Eu arrumei minhas roupas.
A- Eu as arrumei.
P- José comprou os ingredientes.
A- José os comprou.
P- Antônio comprou o carro de Pedro.
A- Antônio o comprou.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 90 .
(10) Exercício de transformação, que leva à percepção da equivalência entre adjetivos e
orações adjetivas e o uso de um pelo outro (ver o comentário em gramática reflexiva).
Modelo: P- O aluno que estuda é aprovado.
A- O aluno estudioso é aprovado.
P- O aluno que estuda é aprovado.
A- O aluno estudioso é aprovado.
P- Um homem que trabalha é bem visto por todos.
A- Um homem trabalhador é bem visto por todos.
P- As empresas que competem ganham muito dinheiro.
A- As empresas competitivas ganham muito dinheiro.
(11) Diga de maneira mais educada, gentil, cortês:
a) Passe-me o arroz!
Os alunos poderiam responder:
A1- Por favor, passe-me o arroz!
A2- Por favor, poderia me passar o arroz!
A3- Você quer me passar o arroz, por favor?
A4- Por favor, você me passaria o arroz?
A5- Tenha a bondade de me passar o arroz.
b) Saí da frente, sô!
c) Anda logo, sua pamonha!
2.3. Gramática reflexiva
As atividades de gramática reflexiva ocorrem quando perguntamos:
a) O que significa?
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 91 .
b) Quais seriam as alternativas de recursos lingüísticos a serem utilizados? Se trocarmos o
recurso ou elemento da língua escolhido e usado, muda o sentido?
c) Em que situação pode e/ou deve ser usado determinado recurso ou elemento da língua e
com que fim, produzindo que efeito de sentido?
d) Se mudarmos a situação o sentido muda? Ou seja, comparar os efeitos de sentido que um
recurso ou diferentes recursos podem produzir em diferentes situações de interação
comunicativa.
Portanto, as atividades de gramática reflexiva se ocupam, sobretudo, com a forma de atuar em
sociedade usando a língua, o que se faz graças aos efeitos de sentido que se pode produzir
com os textos compostos para tal atuação social, e não se preocupam com a nomenclatura
(metalinguagem) usada na classificação dos elementos lingüísticos.
Observe-se que as atividades de gramática reflexiva, por discutirem o efeito de sentido, as
escolhas de recursos da língua em função do efeito de sentido, do objetivo e da situação são,
além de uma aula de gramática, também uma aula de produção de texto e de compreensão de
texto e, freqüentemente, também de léxico. Este fato faz com que estas atividades sejam um
fator de integração das diferentes áreas em que o ensino/aprendizagem de língua geralmente é
dividido.
Vejamos alguns exemplos.
No exercício (10) o professor pode perguntar ao aluno se os textos com a oração adjetiva
significam a mesma coisa que os textos com o adjetivo correspondente e, se não, qual a
diferença de sentido. A resposta é que não têm o mesmo sentido. Com o adjetivo parece que
se tem uma qualidade intrínseca da pessoa, algo que é permanente e que, muitas vezes, ela faz
com prazer. Assim “aluno estudioso” é aquele que sempre estuda, gosta de estudar, faz parte
de seu modo de ser estudar muito e sempre. Já “aluno que estuda” é aquele que estuda, mas
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 92 .
estudar não é uma característica intrínseca do aluno, significa que ele estuda para determinado
fim, mas nem sempre o faz com prazer. O mesmo tipo de diferença se nota nos demais textos
do exercício (10). Todavia nem sempre esta diferença ocorre, sobretudo quando a oração
adjetiva é uma espécie de definição do sentido do adjetivo, como no caso em (12).
(12) a- Os leões são animais carnívoros.
b- Os leões são animais que comem carne.
No exercício (13), trabalha-se com as várias funções e valores que um recurso da língua (no
caso a palavra “como”) pode exercer e ter em diferentes textos.
(13) 10 “BRÁS, BEXIGA E BARRA FUNDA, como membro da livre imprensa que é, tenta
fixar tão-somente alguns aspectos da vida trabalhadeira, íntima e quotidiana desses novos
mestiços nacionais e nacionalistas.”
No trecho acima do texto “Artigo de Fundo” a palavra “como” significa “na condição de”,
“na qualidade de”. A palavra “como”, como vimos, pode ter muitos outros valores. Relacione
os valores indicados na primeira coluna com os trechos da segunda coluna.
a) Modo
b) Causa
c) Conformidade (algo ou alguém que age de acordo com algo estabelecido anteriormente por alguém, ou por uma instituição, lei, etc.)
d) Comparação
e) Admiração, espanto
f) Na condição de, na qualidade de
g) Introdutor de exemplo
h) Forma do verbo comer
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 93 .
i) No lugar de, substituição
(f) Divulgado como símbolo de Goiânia, é exibido como cenário nas fotografias dos turistas.
(g) Ele tinha muitas habilidades como tocar piano, cultivar plantas muito bem.
(d) Como Goiânia, outras cidades têm belos monumentos.
(a) Como posso chegar a São Paulo?
(b) Como não tinha medo mudou para o Brasil para tentar a sorte, para buscar uma vida melhor.
(i) Não podendo comprar um lindo ursinho de pelúcia, a menina tinha como ursinho uma lata de leite.
(e) Como São Paulo é grande!
(d) Não deixando Pasqualino brincar com seu ursinho de lata, Lisetta agiu como a menina rica.
(b) Como Ugo pediu, sua mãe parou de bater em Lisetta.
(c) Preparou a festa como sua mãe pediu.
(h) Eu não como carne de porco.
(a) Ela queria saber como devia se comportar.
(d) Entre elas uma alegre, que pisou na terra paulista cantando e na terra brotou e se alastrou como aquela planta, também imigrante, que há duzentos anos veio fundar a riqueza brasileira.
No exercício (14) temos uma atividade que enfoca, ao mesmo tempo, a colocação de palavras
e a elocução (no caso, o uso das pausas), evidenciando como a elocução interfere com o
sentido.
(14) A- A palavra “só” pode ser usada em diferentes posições em um texto. Conforme a
posição, o sentido do texto muda. Além disso, podemos falar o mesmo texto, fazendo pausas
em diferentes lugares, o que também pode mudar o sentido do texto. Nos textos abaixo a barra
(/) indica o lugar da pausa ao falar. Compare os textos, comentando a diferença de sentido
entre eles e quais têm o mesmo sentido, apesar da colocação diferente de “só” por
interferência do modo de falar (a elocução)
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 94 .
a- Só Maria veio à reunião.
b- Maria só / veio à reunião.
c- Maria / só veio à reunião.
d- Maria veio só / à reunião.
e- Maria veio / só à reunião.
f- Maria veio à reunião só.
Provável resposta: No texto a o sentido é que apenas Maria veio à reunião, as demais pessoas
esperadas não compareceram. O texto b mantém o mesmo sentido, apesar da colocação da
palavra “só” depois de Maria, porque a pausa leva a esta leitura de que apenas Maria veio à
reunião. Já o texto c, com a mesma colocação de palavras de b, devido a uma elocução
diferente, com ligeira pausa após a palavra Maria, significa que a única coisa que Maria fez
foi vir à reunião. O texto e tem este mesmo sentido, mas devido à posição da pausa tem-se
uma espécie de ênfase no fato de ela ter vindo apenas à reunião, contrariando uma provável
expectativa do interlocutor de que ela provavelmente viria para mais alguma coisa. O texto d
assim como o texto f significam que Maria foi à reunião sozinha, desacompanhada. Neste
caso o texto f parece ser o melhor para exprimir simplesmente este sentido. Já d pode conter a
idéia adicional de que Maria poderia ter vindo sozinha a outros eventos.
(15) Tendo em vista a situação indicada, diga qual dos dois textos abaixo você usaria.
Textos: A) O doce está uma delícia.
B) Este doce está uma delícia.
Situação: Você foi almoçar na casa de sua amiga X. No final do almoço, ela serviu um doce
muito gostoso. Quando todos terminaram a sobremesa, ela retirou o doce da mesa e o guardou
na geladeira. Vocês ficaram conversando e chegou outro amigo, Y. Sua amiga X oferece
doce para o amigo Y, que acabou de chegar. Ele recusa. Você, que já comeu o doce e sabe
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 95 .
que ele é muito bom, quer convencê-lo a aceitar, usando este argumento. Qual dos dois textos
diria? A ou B? Pode explicar por quê?
Provável resposta: usaria A, porque o doce não está visível. Se ele ainda estivesse sobre a
mesa, por exemplo, teríamos que usar o texto B. Esta é a diferença entre “o” e “este”. O
segundo só pode ser usado em textos quando o elemento que ele acompanha está presente na
situação de fala.
O exercício (16) explora valores não de posse dos pronomes possessivos. A forma pode ser de
coluna relacionada, conforme o grau e competência dos alunos.
(16) A- As palavras meu, teu, seu, nosso, vosso e seus respectivos femininos e plurais, como
vimos, indicam posse, isto é, que alguém é possuidor ou proprietário de algo. Você acha que
nos trechos abaixo essas palavras indicam posse? O que elas estão indicando?
a) José certamente tem seus cinqüenta anos.
b) Como vai, minha madrinha?
c) O nosso personagem teve então uma idéia mirabolante, meio maluca.
d) Mariana, o que acontece? Por que você faz estas coisas? Certamente você não saiu aos seus.
Provável resposta: Embora haja uma idéia de posse, ela se atenua e podemos notar que
aparecem os seguintes sentidos em cada trecho: a) quantidade aproximada, estimada; b)
afetividade: carinho, cortesia; c) familiaridade; d) parentes, familiares.
B- Escolha uma das palavras indicadoras de posse listadas acima e construa um pequeno texto
com um dos valores encontrados e que não seja de posse. Diga o valor com que você
empregou a palavra11.
(17) 12 4) a) No texto “O sonho de voar”, que frase do quarto parágrafo demonstra que o
narrador não está seguro de estar mesmo ficando mais leve que o ar?
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 96 .
b) Que palavra da frase “Parecia que eu estava quase flutuando no ar”, do mesmo
parágrafo, indica que o garoto não estava certo se realmente flutuava?
5. Leia e responda no caderno:
a) Realmente eu estava flutuando no ar.
b) Provavelmente eu estava flutuando no ar.
c) Certamente eu estava flutuando no ar.
d) Eu estava flutuando no ar.
e) “Parecia que eu estava flutuando no ar.”
- O falante mostra certeza de flutuar em quais frases?
- O falante mostra incerteza, dúvida a respeito de flutuar em quais frases?
Respostas: 4a) A frase é “Ou era só impressão?”; 4b) A palavra é “parecia”; 5) Certeza:
frases a, c, d; Incerteza: frases b, e.
(18) 13 Estudo de valores de preposições
3) Leia: “A reportagem da Folha percorreu na sexta-feira e ontem o quadrilátero entre as
avenidas São João e General Olímpio da Silveira, Pacaembu, Rio Branco e Duque de Caxias e
encontrou entulho acumulado havia semanas.”
Nesse trecho, a palavra “entre” indica, em conjunto com os nomes, uma posição intermediária
a dois ou mais pontos citados. No trecho acima, são vários pontos no espaço. Esses pontos
podem ser também no tempo ou em outra idéia ou noção qualquer.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 97 .
Copie, do quadro, o que a palavra “entre” indica nas frases seguintes:
a) posição intermediária no espaço;
b) posição intermediária no tempo;
c) posição intermediária em outra idéia ou noção.
a) Entre 1990 e 2004, a inflação no Brasil subiu e desceu várias vezes.
b) Nosso jardim era muito bonito. Entre a sibipiruna e o flamboyant, havia várias palmeiras..
c) Joãozinho estava entre alegre e triste com a notícia de que a família ia se mudar. Alegre
porque ia conhecer novos lugares, triste porque ia ficar sem seus amigos.
d) Entre surpreso e assustado, ele subiu para receber o prêmio.
e) Todas as manhãs eu caminhava muito para ir à escola, pois entre minha casa e a escola
havia dois quilômetros.
f) Trabalhei muito entre o amanhecer e o anoitecer, mas à noite fui descansar.
Resposta: a) posição intermediária no tempo; b) Posição intermediária no espaço; c) Posição
intermediária em outra noção: a dos sentimentos; d) Posição intermediária em outra noção: a
dos estados; e) Posição intermediária no espaço; f) Posição intermediária no tempo.
4) Faça três frases com “entre” indicando posição intermediária no espaço, no tempo e em
outra idéia ou noção.
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 98 .
(19) Diga os valores ou sentidos que a palavra “por” pode ter no texto abaixo. Dê exemplos
de situações em que esses sentidos podem ocorrer.
-“Antônio falou por Teresa”
Resposta possível: a) “no lugar de Teresa, representando-a, um porta-voz”. Por exemplo,
numa reunião ou solenidade a que Teresa não pôde comparecer; b) “a favor de Teresa”. Por
exemplo, numa situação em que a acusam de algo ou numa situação em que ela precisa de
ajuda de algum tipo (por exemplo, financeira) por algum motivo (por exemplo: doença); c)
“por meio de Teresa”. Neste caso, Teresa é como se fosse um aparelho. É um sentido
semelhante a “Falei com meu pai pelo telefone”. Numa situação de comunicação mediúnica,
em uma casa religiosa em que a mediunidade é exercida. Neste caso, Antônio seria um
espírito que falou com as pessoas por intermédio da médium, que é Teresa.
(20) As duas concordâncias abaixo são permitidas pela norma culta quando os sujeitos são
unidos por “com”. Mas os dois textos têm uma diferença de sentido, conforme usemos uma
ou outra concordância. Diga qual é a diferença de sentido.
a) O noivo com sua noiva entrou no salão de festas, sorrindo alegremente.
b) O noivo com sua noiva entraram no salão de festas, sorrindo alegremente.
Resposta: Em a com o verbo no singular entende-se que os dois entraram, mas somente o
noivo sorria, em b, com o verbo no plural, entende-se que os dois sorriam.
2.4. Gramática normativa
Nas atividades de gramática normativa, como já dissemos, sempre se valorizou a norma culta
escrita em detrimento das demais variedades da língua, inclusive, da língua falada. Como
vimos em 1.1, hoje se vê a gramática normativa como uma conscientização da existência de
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 99 .
muitas variedades lingüísticas e do modo de usá-las de acordo com as normas estabelecidas
por nossa sociedade. Evidentemente, devido à importância social da norma culta, temos de
ensiná-la aos alunos que não a dominam, fazendo o contraste claro entre o que é da norma
culta e o que não é.
Na escola, as atividades de gramática normativa vão sempre mostrar as diferenças entre as
variedades lingüísticas, orientar quando usá-las ou não em termos de adequação, social e
comunicacional, dando um destaque à norma culta.
A atividade (11), vista como uma atividade de gramática de uso, é também uma atividade
normativa. A atividade (20) também envolve questões de normatividade: a regra de
concordância verbal com sujeito composto com os núcleos unidos por “com” (Cf. também
21). A seguir apresentamos mais alguns exemplos de atividades de gramática normativa.
21) Assinale os trechos em que a concordância do verbo com o sujeito não foi feita de acordo
com o que pede a norma culta. Explique porque não atende à norma culta14. Reescreva o
trecho para que fique de acordo com a norma culta15.
a- Eu com meus colegas exigem uma explicação.
b- O presidente com sua comitiva chegou pela manhã a Paris.
c- Eu com minha família oferecemos-lhe toda ajuda de que você precise.
d- Exige uma explicação, eu com meus colegas.
e- Meus pais com meus irmãos fizeram uma festa surpresa em meu aniversário.
f- Chegou para a festa meus amigos da faculdade com suas esposas.
g- Dançava sem parar os rapazes com suas namoradas.
h- Reformou a capela o padre com todos os paroquianos.
Resposta: Não estão de acordo com a norma culta: a (Eu com meus colegas exigimos uma
explicação.); d (Exigimos uma explicação, eu com meus colegas); f (Chegaram para a festa
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 100 .
meus amigos da faculdade com suas esposas); g (Dançavam sem parar os rapazes com suas
namoradas). (Aqui não explicamos porque não atende à norma culta).
(22) Minha amiga chegou e disse-me:
“O meu primo que eu falei dele para você chegou. Está lá em casa.
Ao dizer isto, ela não usou a norma culta. Como ela deveria falar para usar a norma culta?
Resposta: O meu primo, de quem lhe falei chegou. Está lá em casa.
(23) Nos trechos abaixo, aparecem algumas formas de verbo muito usadas pelas pessoas, mas
que não pertencem à norma culta. Assinale-as e diga qual seria a forma do verbo na norma
culta.
a) Espero que você seje feliz.
b) Eu vou ponhá seu livro aqui, depois você o leva.
c) Não que eu esteje com raiva de você, mas você não foi minha amiga.
d) Quando eles vieram para a festa, eu já tinha chego há muito tempo.
Resposta: a) seje à seja ; b) ponhá à pôr ; c) esteje esteja ; d) tinha chego tinha
chegado.
Evidentemente as atividades de gramática normativa não se resumem a diferenças entre a
norma culta e outras variedades da língua, mas aqui não temos espaço para mais. No caso da
norma culta é preciso que se faça sempre um tipo de gramática contrastiva, mostrando como é
a forma ou construção na norma culta em contraste com a de outras variedades, pois não se
pode exigir norma culta dos alunos sem mostrar objetivamente como ela é. Além disso, não se
deve passar para os alunos a idéia de que se um texto está na norma culta ele está ótimo, não
tem problemas. Não é este o caso. Serve aqui o exemplo do repórter que disse “No tempo do
UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 101 .
frio as pessoas ficam mais favoráveis a ter problemas respiratórios”. O texto está em norma
culta, mas tem um problema de escolha lexical que cria uma inadequação comunicacional em
relação ao que ele queria dizer. “Ficar favorável” significa querer ter problemas respiratórios,
o que é pouco provável em nosso mundo. Talvez fosse mais adequado o repórter dizer “No
tempo do frio as pessoas ficam mais sujeitas a terem problemas respiratórios / mais
vulneráveis aos problemas respiratórios”.
3. Considerações finais
Como se pode perceber, o ensino de gramática é um problema complexo, que envolve
múltiplas facetas que o professor não pode negligenciar ao preparar as atividades de
ensino/aprendizagem para trabalhar com seus alunos. Nosso objetivo, neste texto, foi chamar
a atenção do colega professor para questões básicas envolvidas no ensino/aprendizagem da
gramática da língua, dentro de uma perspectiva textual-interativa, recomendada pelos PCN.
Esperamos ter chamado sua atenção e despertado seu desejo de saber mais. A pequena
bibliografia que colocamos contém textos importantes para este fim e, para quem deseja ir
ainda além, boas indicações em suas referências bibliográficas.
Referências Bibliográficas
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Oralidade e escrita: perspectiva para o ensino de língua. São Paulo: Cortez,
1999.
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POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas, SP:
ALB/Mercado de Letras, 1996.
RAMOS, Jânia M. O espaço da oralidade na sala de aula. São Paulo: Martins Fontes,
1997.
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SUASSUNA, Lívia. Ensino de Língua Portuguesa: Uma abordagem pragmática.
Campinas, SP: Papirus, 1995.
TRAVAGLIA, Luiz Carlos, ARAÚJO, Maria Helena Santos e ALVIM PINTO, Maria
Teonila. Metodologia e prática de ensino da Língua Portuguesa. 3a ed.
Uberlândia: EDUFU, 1995.
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gramática. São Paulo: Cortez, 1996. (11a ed.: 2006).
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TRAVAGLIA, Luiz Carlos, COSTA, Silvana e ALMEIDA, Zélia. A Aventura da
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UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 103 .
Notas:
Professor Associado de Língua Portuguesa e Lingüística do Instituto de Letras e Lingüística da Universidade Federal de Uberlândia.
2 Para maiores informações e exemplos sobre tudo o que dizemos neste texto, recomendamos a leitura de Travaglia (2006), Travaglia (2003) e Travaglia, Araújo e Alvim Pinto (1995).
3 Veja o capítulo 5 de Travaglia (1996).
4 Cf. Travaglia [2003a] (2007).
5 Parte deste item foi transcrita do Manual do Professor, de Travaglia, Costa e Almeida (2005a, p. 14).
6 Para maiores detalhes e exemplos veja Travaglia (2003) capítulo 4: A sistematização do ensino de gramática.
7 Veja Travaglia [2003a] (2007).
8 Sobre os objetivos de ensino de gramática teórica ver o capítulo 5 (Para que ensinar teoria gramatical) de Travaglia (2003). Sugerimos também a leitura de Travaglia (1996), capítulo 12 (Gramática Teórica).
9 Sobre este tipo de atividade e outros de gramática de uso, ver Travaglia, Araújo e Alvim Pinto (1995).
10 Exercício elaborado por Luiz Carlos Travaglia, Maura Alves de Freitas Rocha e Vania Maria Bernardes Arruda-Fernandes, em 2007, para o livro 6 da Coleção A Aventura da Linguagem, a sair pela Editora Dimensão, Belo Horizonte.
11 (16B) e (18 – 4) são atividades de gramática de uso.
12 Exercícios do exemplo (17) extraídos, com pequenas adaptações, de Travaglia, Costa e Almeida (2005): A Aventura da Linguagem, 4ª série, pág. 11. Aqui está sendo explorada a modalidade do verbo.
13 Exercícios do exemplo (18) extraídos, com pequenas adaptações, de Travaglia, Costa e Almeida (2005): A Aventura da Linguagem, 3ª série, pág. 153. Naturalmente é o valor das preposições que está sendo explorado.
14 Esta parte é uma atividade teórica.
15 Esta parte é uma atividade de uso.
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