DA COLÔNIA AO SHOPPING: um estudo da evolução tipológica da arquitetura hospitalar em Natal Maria Alice Lopes Medeiros Dissertação de Mestrado Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo Universidade Federal do Rio Grande do Norte Natal – RN, 2005
236
Embed
um estudo da evolu§£o tipol³gica da arquitetura hospitalar em Natal
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
DA COLÔNIA AO SHOPPING:um estudo da evolução tipológica da arquitetura
hospitalar em Natal
Maria Alice Lopes Medeiros
Dissertação de Mestrado Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Natal – RN, 2005
Maria Alice Lopes Medeiros
DA COLÔNIA AO SHOPPING:um estudo da evolução tipológica da arquitetura hospitalar em Natal
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo.
Área de concentração: Projeto
Orientadora:
Profa. Dra. Sônia Marques da Cunha Barreto
Natal – RN
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
2005
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO
DA COLÔNIA AO SHOPPING:um estudo da evolução tipológica da arquitetura hospitalar em Natal
Profª. Drª. Maísa Fernandes D. Veloso – PPGAU/UFRN Presidente
Prof. Dr. Pedro Antônio de Lima Santos – PPGAU/UFRN Examinador interno
Dissertação defendida em 13 / 12 / 2005
Divisão de Serviços Técnicos
Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede
Medeiros, Maria Alice Lopes. Da colônia ao shopping: um estudo da evolução tipológica da arquitetura hospitalar em Natal / Maria Alice Lopes Medeiros. – Natal, RN, 2005. 196 f. : il.
Orientadora: Sônia Marques da Cunha Barreto.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo.
1. Arquitetura – Dissertação. Arquitetura hospitalar – Dissertação. 3. Arquitetura – Tipologia – Dissertação. 4. Edifício hospitalar – Projeto arquitetônico – Dissertação. I. Barreto, Sônia Marques da Cunha. II. Título.
RN/UF/BCZM CDU 72 (043.3)
Agradecimentos
Escrevo esses agradecimentos mais de um ano depois do término dos trabalhos. Portanto,
distante do calor dos acontecimentos, das emoções e do cansaço. Por um lado, esse
distanciamento me permite observar os fatos com mais serenidade. Por outro, me arrisco a
ser traída pela memória, deixando de citar alguns nomes daquelas pessoas que considero
terem sido de fundamental importância para realização deste trabalho: os funcionários dos
hospitais pesquisados em Natal. Falo especificamente daqueles que trabalham anos a fio
nessas instituições, alguns inclusive desde sua construção. E que, por sua relação com elas
como um segundo lar, guardam lembranças, escritos e fotos como se fossem suas próprias.
Foi através delas que pude preencher lacunas deixadas pelos documentos oficiais quase
inexistentes. Gostaria de registrar a valiosa ajuda e o apoio prestado por essas pessoas
durante a execução da pesquisa – apoio e ajuda sem os quais seria difícil, ou até mesmo
impossível, realizar algumas das tarefas deste trabalho.
Também gostaria de agradecer a todas as demais pessoas que contribuíram para esse
trabalho, por meio de comentários, sugestões, ou encorajamento. Certamente essa lista
seria grande demais para registrá-la aqui. No entanto, citarei algumas em especial: minha
orientadora, Sônia Marques, pela maneira crítica e instigadora com que leu e discutiu os
textos por mim produzidos; Enilson, por sua companhia e generosidade; por fim, as
companheiras do escritório – Shirley, Laíse e Adriana –, que com talento e paciência
digitaram os projetos dos hospitais.
Resumo
Com base em uma discussão em torno do conceito de tipo e de seu papel na
prática e na teoria da arquitetura, elabora-se um instrumental analítico com
vistas a reconhecer a evolução tipológica da arquitetura hospitalar ocidental.
Verifica-se então como essa evolução tipológica se reflete nos edifícios
hospitalares em Natal, Rio Grande do Norte, usando-se para tanto um
conjunto de 18 dos 29 hospitais implantados na cidade ao longo do século XX.
Conclui-se que o itinerário tipológico da arquitetura hospitalar de Natal repete
o ocidental, a menos de singularidades explicadas pelas características do
desenvolvimento social e econômico da cidade.
Abstract
A conceptual discussion on architectural type and its role in theory and
practice supports the construction of an analytical tool used for recognizing the
typological evolution of hospital architecture in Western societies. The same
tool is applied to analyze the typological evolution of hospital architecture in
Natal, Brazil, through a sample of eighteen hospitals built in the city since the
beginnings of 20th century. The conclusion is that typological evolution in
Natal is almost the same as occidental one, except for a few singularities that
can be explained by local social and economic development.
1.1. Arquitetura e História da Arquitetura ............................................. 31.2. História comparada da Arquitetura e análise tipológica ................. 41.3. A análise tipológica ........................................................................ 41.4. Uma leitura sintética da evolução dos hospitais ocidentais ............ 51.5. Perguntas e hipóteses básicas de trabalho ...................................... 71.6. Objetivo geral e objetivos específicos ............................................ 91.7. Relevância e justificativa da pesquisa ............................................ 91.8. Procedimentos metodológicos ........................................................ 101.9. Estrutura do documento .................................................................. 11
2.1. O conceito de tipo e a crise da Arquitetura Moderna ..................... 142.2. O debate tipológico: uma breve reconstituição .............................. 162.3. Antecedentes dos teóricos do século XIX ...................................... 232.4. Tipo na visão de Quatremère de Quincy ........................................ 252.5. O tipo na obra de Durand ............................................................... 282.6. O tipo na visão de Viollet-le-Duc ................................................... 312.7. Integração dos conceitos de tipo ..................................................... 322.8. Descrição dos instrumentos de análise ........................................... 35
3. Evolução das tipologias arquitetônicas do edifício hospitalar ............ 39
3.1. O hospital no período medieval ...................................................... 413.1.1. O tipo claustral .......................................................................... 423.1.2. O tipo basilical .......................................................................... 463.1.3. O tipo colônia ............................................................................ 48
3.2. O hospital renascentista .................................................................. 503.2.1. A enfermaria cruzada ................................................................ 523.2.2. O tipo casa de campo ................................................................ 54
3.3. O hospital iluminista ....................................................................... 563.3.1. O tipo pavilhonar ....................................................................... 593.3.2. A influência de Florence Nightingale ....................................... 613.3.3. O legado do Iluminismo para a arquitetura hospitalar .............. 62
3.4. O hospital modernista ..................................................................... 633.4.1. O tipo torre sobre pódio ............................................................ 663.4.2. O tipo rua hospitalar .................................................................. 683.4.3. O tipo sanduíche ........................................................................ 72
3.5. O hospital do período pós-modernista ............................................ 743.5.1. O tipo shopping/hotel/residência ............................................... 77
3.6. Um quadro-síntese da evolução tipológica do hospital ocidental .. 81
4. Implantação de hospitais em Natal ao longo do século XX ................. 92
4.1. Política de saúde pública e a situação do hospital em Natal no Brasil Imperial ................................................................................ 94
4.2. A Primeira República: a construção das políticas públicas de saúde e suas repercussões nos hospitais de Natal ........... 96
4.3. Estado Novo, política nacional de saúde e desenvolvimento hospitalar em Natal ......................................................................... 100
4.4. Da redemocratização ao golpe militar de 1964 .............................. 1054.5. O período da ditadura miltar (1964-1985) ...................................... 1114.6. De 1985 ao presente ....................................................................... 1164.7. Uma visão geral do hospital em Natal ........................................... 121
5. Análise tipológica dos hospitais de Natal ............................................... 124
5.1. Preparação do material para análise ............................................... 1275.2. O tipo colônia e o Hospital Colônia São Francisco ........................ 1285.3. O tipo casa de campo ...................................................................... 1295.4. A presença do tipo pavilhonar ........................................................ 133
5.4.1. O Hospital Evandro Chagas ...................................................... 1335.4.2. Policlínica, Casa de Saúde São Lucas, Hospital Colônia João
Machado .................................................................................... 1365.4.3. Hospital Sanatório Getúlio Vargas ............................................ 1395.4.4. Considerações gerais a respeito dos hospitais pavilhonares de
5.5. Hospital Infantil Varela Santiago ................................................... 1435.6. Os hospitais do tipo torre sobre pódio ............................................ 147
5.6.1. Hospital Natal Center ................................................................ 1475.6.2. Hospital Walfredo Gurgel ......................................................... 1505.6.3. Hospital Santa Helena, Hospital PAPI, Hospital Memorial ..... 1525.6.4. Considerações sobre o tipo torre sobre pódio ........................... 155
5.7. Santa Catarina e Maria Alice Fernandes: hospitais rua ................. 1565.8. Promater, Femina e Coração: uma incursão em um novo tipo? .... 159
No Brasil, pode-se registrar uma maior atenção com o projeto arquitetônico de hospitais,
como objeto de estudo e de formação técnico-científica, a partir dos anos 1980. Foi a partir
daquela década quando, por iniciativa conjunta do Ministério da Saúde e da Universidade
de Brasília, passou-se a oferecer de modo sistemático um Curso de Especialização em
Arquitetura do Sistema de Saúde.
No programa do Curso, o hospital era abordado como elemento integrante de um sistema
hierarquizado de atenção à saúde e, como requisito da formação do especialista,
desenvolvia-se ali um projeto arquitetônico de um edifício hospitalar. Nesse projeto,
trabalhava-se com base em normas, elaboradas pelo Ministério, as quais definiam fluxos,
programas e dimensionamento dos espaços, além de recomendações e prescrições quanto a
circulações, modulação do espaço, taxa de ocupação do terreno, localização urbana e
configuração geral, entre outros aspectos e elementos do edifício.
Não se levantavam, nem se discutiam questões tais como:
por que a configuração geral recomendada era a mais adequada?
como se chegou a essa conclusão?
que outras formas foram tentadas no passado e por que foram abandonadas?
Além dessas, outras indagações mais críticas podiam ser levantadas:
se aquelas configurações recomendadas também se tornariam ultrapassadas, então
como saber em que direção se estava caminhando?
se fosse possível entender como se dariam as mudanças, seria possível projetar
estruturas mais adaptadas ou adaptáveis a elas?
as recomendações, prescrições e normas eram transferíveis a geografias com diferentes
níveis de desenvolvimento social e econômico?
Esse conjunto de questionamentos, certamente, pode ser, com maior ou menor ênfase, feito
em outros campos da ação do projetista de arquitetura, que não o da arquitetura hospitalar.
E, até porque indagam sobre o passado e sobre o futuro, requerem respostas que se
formulem em conexão estreita com a História.
3
1.1. Arquitetura e História da Arquitetura
Um ramo da História da Arquitetura, cujo tratado mais representativo é A History of
Architecture, de autoria de Sir Banister Fletcher (publicado por primeira vez em 1896 e
reeditado freqüentemente – foram 19 edições até agora, a última de 1987), admite
implicitamente a importância das questões acima colocadas. Mais que isso, Fletcher (1987)
estabelece conexões explícitas entre a arquitetura e seu entorno físico-geográfico,
ambiental, cultural e socioeconômico, quando analisa a evolução da arquitetura segundo
um método de história comparada.
O enfoque historiográfico de Fletcher parte da descrição dos aspectos climáticos,
geomorfológicos, socioculturais, tecnológicos e econômicos de cada região, em
determinada época. Para Fletcher, é desses aspectos caracterizadores do entorno que, com
a interveniência do ato criativo do arquiteto, resultam os elementos e soluções que
compõem a arquitetura regional naquele período. Portanto, planta, volumetria, estrutura,
aberturas e vedações, entendidas em conjunto, tendem a ser, inevitavelmente,
condicionadas pela cultura (NEWTON, 1991). Em conseqüência, produção arquitetônica e
contextos culturais podem ser associáveis.
Assim, é possível compreender a evolução da Arquitetura em estreita relação com a
evolução histórica das sociedades. E entender como cada solução arquitetônica, em uma
dada época e região, surgiu em resposta a desafios contextuais, consolidou-se e,
posteriormente, foi alterada ou substituída como conseqüência de ulteriores transformações
da sociedade.
Apropriando e adaptando a metodologia historiográfica de Fletcher para analisar a história
da arquitetura hospitalar, pode-se entender como e porque, em cada período analisado,
surgiu e se consolidou uma solução arquitetônica de natureza geral, que veio a concretizar
um hospital característico do período – no sentido de representação sintética idealizada de
uma série de edifícios hospitalares concretos.
Observe-se que, em coerência com a abordagem historiográfica, uma coleção de hospitais
característicos, como acima definidos, está critica e biunivocamente relacionada a um
conjunto de contextos histórico-geográficos. O exame dessa estrutura de relações, portanto,
permite compreender como se articulam as diferenças contextuais e as transformações dos
edifícios hospitalares característicos.
4
1.2. História comparada da Arquitetura e análise tipológica
Nesses termos, o estudo da Arquitetura precedente e sua sistematização vinculada ao
contexto histórico-geográfico, nos moldes empregados por Fletcher, são assimiláveis à
técnica da análise tipológica. A análise tipológica arquitetônica se constitui em ferramenta
bastante utilizada quando se trata do estudo da produção arquitetônica, quer seja ela
contemporânea ou precedente, com vistas ao conhecimento sistematizado dessa produção
e/ou à adequação de soluções já testadas a novos projetos.
Essa assimilação da tipologia à história pode ser reafirmada pela reaproximação da teoria e
do projeto ao legado histórico arquitetônico, aproximadamente a partir da década de 1960,
meio século depois de o movimento moderno haver rompido com a tradição arquitetônica
precedente. O estudo tipológico foi um instrumento adequado para aquela reaproximação,
na medida em que conseguiria captar, para cada período histórico, a essência representativa
de sua Arquitetura.
É evidente que, enquanto instrumento, a análise tipológica adquire as feições do conceito
de tipo que é subjacente a sua formulação: distintos conceitos de tipo levam a distintas
ferramentas de análise tipológica. E, portanto, somente estudos tipológicos fundados em
conceitos de tipo que incorporem a referência ao contexto têm a possibilidade de alcançar
significação historiográfica.
Deste modo, a abordagem da arquitetura hospitalar com o fim de encaminhar respostas
àquelas questões acima colocadas impõe que se adote um conceito de tipo – e, por
conseguinte, uma matriz de análise tipológica – que seja coerente com a necessidade do
referenciamento histórico do objeto arquitetônico estudado. Por outro lado, requer que se
problematize, em uma perspectiva tipológica, a evolução do edifício hospitalar em face de
relevantes alterações no seu contexto histórico.
1.3. A análise tipológica
Em que pese a prevalência de algumas conceituações restritivas do tipo arquitetônico,
notadamente aquelas que associam a tipologia, de maneira simplista, ou à mera taxonomia
ou à idéia de tipificação, pode-se admitir que o conceito de tipo hoje mais disseminado está
vinculado à representação da essência da Arquitetura em conexão com o seu ambiente
sociocultural (FRANCESCATO, 1994).
5
As raízes intelectuais desse conceito de tipo podem ser rastreadas até a obra seminal de
Quatremère de Quincy (1985, 1998)1. Não obstante, uma importante polêmica em torno do
conceito de tipo teve lugar a partir do seu resgate, em 1962, por Argan (1996, 2001)2 e de
sua assimilação pelos teóricos e projetistas italianos da Tendenza, a partir da segunda
metade da década de 1960.
Nesse debate, foram se firmando distintas versões para o conceito de tipo – entre outros,
Rossi, 1995 (publicado originalmente em 1966); Vidler, 1977; Oeschlin, 1985 –, como
também se apresentavam discordâncias de peso quanto à validade ou à oportunidade do
conceito para o estudo ou para a projetação em arquitetura (ver, por exemplo, Pérez-
Gómez, 1991), até o ponto em que o tipo se firmou como um dos temas fundamentais da
agenda teórica do pós-modernismo (NESBITT, 1996a).
Situar-se na polêmica e definir-se por um conceito é, portanto, um ponto de partida para
uma abordagem analítica da evolução histórica dos edifícios hospitalares, um produto
arquitetônico complexo e, em função da natureza pública de sua utilização, extremamente
dependente de definições político-culturais da sociedade.
Por outra parte, essa abordagem não deve ser desenvolvida sem tomar em conta o objeto
arquitetônico hospital, de modo que uma visão resumida de uma história geral dos
hospitais pode ser útil para estabelecer as bases de uma compreensão tipológica de sua
linha evolutiva.
1.4. Uma leitura sintética da evolução dos hospitais ocidentais
No início, os hospitais foram exclusivamente associados à idéia de morte. Os enfermos
chegavam em busca de preparação espiritual, que lhes era dada em locais onde apenas se
amontoavam as pessoas doentes.
1 O texto fundamental de Quatremère de Quincy a respeito do seu conceito de tipo é o verbete correspondente que aparece em duas de suas obras: a Encyclopédie méthodique, originalmente publicada entre 1788 e 1825, e o Dictionnaire historique de l’architecture, de 1832. Neste trabalho, as citações do verbete tiveram por base duas fontes: a transcrição completa do texto de Quatremère, traduzida para a edição italiana de 1844 por Antonio Mainardi e reproduzida integralmente em Casabella, ano XLIX, n. 509/510, 1985 (ver Quatremère de Quincy, 1985); a tradução para o inglês (não creditada) do verbete type da Encyclopédie méthodiqueconforme publicada em Oppositions, n. 8, primavera de 1977, sob uma introdução de Anthony Vidler e reproduzida em Hays (1998) (ver Quatremère de Quincy, 1998). 2 O artigo de Argan que introduziu as idéias de Quatremère de Quincy no debate teórico contemporâneo foi originalmente publicado em 1962. Traduzido para o inglês por Joseph Rykwert, foi incluído em Architectural Digest, n. 33, de dezembro de 1963 (p. 564-565). Essa versão em idioma inglês, incluída em Nesbitt (1996b), e a versão em português incluída em Argan (2001) – traduzida por Marcos Bagno diretamente do texto em italiano publicado em Proggeto e destino – foram as consultadas no decorrer deste trabalho.
6
Risse (1999) mostra como, a partir dessa origem medieval, os hospitais foram,
gradualmente, adquirindo uma vinculação à vida. Em primeiro lugar, se tornaram espaços
de recuperação de enfermos; depois, em lugar de atuação preventiva em prol da saúde e de
melhoria da qualidade de vida. Tal evolução conceitual se refletiria nos espaços dedicados
a estas atividades, e os hospitais foram se transformando em edifícios de estrutura
arquitetônica complexa.
Na Idade Média, a finalidade do hospital era dar abrigo, sustento, assistência e consolo
espiritual aos desamparados pela sociedade – peregrinos, pobres, enfermos e insanos. Os
cidadãos minimamente abastados tinham atendimento domiciliar a seus problemas de
saúde, e isso se manteve até meados do século XIX (GOLDIN, 1984).
Hospitais medievais eram construídos por ordens religiosas, bispos, senhores feudais e reis
(ROSEN, 1994). Na verdade, não eram edifícios autônomos, pois se integravam às
estruturas físicas dos mosteiros e catedrais, reproduzindo os esquemas dos claustros ou das
basílicas de uma ou várias naves, com uma capela na cabeceira (GOLDIN, 1994). Esses
hospitais se multiplicaram durante os séculos V ao XIII, e estavam, quase sempre,
superlotados, sujos e insalubres.
No Renascimento, a Igreja e a Corte deixaram de ser as fontes principais de financiamento
da assistência aos pobres e enfermos. Ricos cidadãos burgueses tomaram a
responsabilidade de construir hospitais. Goldin (1984) enfatiza que é então que se dá o
crescimento de importância do conhecimento médico dentro do hospital: surgiram os
primeiros hospitais civis, os chamados hospitais palácios de arquitetura neoclássica, de
estrutura pavilhonar, como resultado de uma maior preocupação com ventilação e
insolação.
No período do Iluminismo, o avanço científico permitiu a compreensão dos processos de
infecção cruzada e propagação de infecções. A prática cirúrgica desenvolvida nos hospitais
militares foi incorporada aos hospitais civis, junto com o surgimento da anatomia
patológica, que permitiu o conhecimento médico dos órgãos humanos internos (RISSE,
1999).
O hospital tornou-se, então, um espaço importante para observação da evolução de
enfermidades através de seus pacientes, e passou a ser, além de um local de recuperação de
enfermos, um local de aprendizado da medicina.
7
Esses fatos produziram uma importante transformação no edifício hospitalar, onde, a partir
de então, a ciência penetrou, modificando espaços que, antes, refletiam somente a
influência religiosa (GOLDIN, 1994). O hospital começou a ser atrativo para os afluentes
da sociedade, vez que já oferecia uma possibilidade de cura mais alta que aquela que se
poderia conseguir com o atendimento domiciliar.
Mais ou menos em meados do século XX, implantou-se nos edifícios hospitalares a
sistematização projetual funcionalista: separação de funções, projeto modular, formas
simplificadas, adoção de dimensões mínimas. Buscava-se viabilizar financeiramente o
hospital pela via de sua racionalização e massificação, em um contexto em que eram
crescentes os custos com equipamentos, pessoal, fármacos e materiais (CARPMAN et al.,
1986). Várias soluções arquitetônicas foram exercitadas, todos refletindo uma preocupação
funcionalista que passará a ser criticada nos anos 1960 e 1970.
As críticas se intensificaram a partir dos anos 1980, com a emergência da pesquisa sobre a
influência do ambiente no bem-estar dos usuários (KUFFLNER, 1986). Esses críticos
reagiram contra o caráter estéril e impessoal dos hospitais, mais voltados para o seu
funcionamento eficiente que para o bem-estar do paciente. Passou-se a defender, segundo
Hosking e Haggard (1999), a aplicação das ciências do comportamento no planejamento e
desenho do ambiente hospitalar. Acreditava-se que os edifícios hospitalares do século XX
tinham feito pouco para satisfazer as necessidades humanas do dia a dia, e defendiam-se
hospitais “humanizados”, com foco nas expectativas do paciente e de seus familiares,
contando com ambientes apropriados para apoiar o processo de recuperação do enfermo.
Esses pensamentos e suas manifestações na forma do edifício dominariam o período desde
1980 até o final do Século XX. Verderber e Fine (2000) relatam como o hospital assimilou
soluções espaciais diferentes das anteriormente vigentes, buscando – sem perder de vista a
eficiência econômica – assumir uma natureza mais familiar para o visitante e para o
paciente.
1.5. Perguntas e hipóteses básicas de trabalho
Nesse processo evolutivo do edifício hospitalar, há que destacar a importância das
alterações na maneira como a sociedade vê o hospital e no que a sociedade espera dele.
Ademais, cabe um papel de destaque para o progresso científico nas áreas da biologia e da
medicina, bem como para o desenvolvimento tecnológico nesses setores. Tais fatores se
8
associam a uma demanda social crescente pela aplicação de novos conhecimentos médicos
ao campo da atenção à saúde. Por fim, cabe salientar também as naturais mudanças nos
materiais e métodos construtivos. Todos juntos, influenciando-se simultaneamente, esses
fatores podem ser considerados como motores das mudanças nas tipologias arquitetônicas
hospitalares que se registraram ao longo da história.
Na medida em que esses fatores são disseminados mundialmente, de alguma forma eles
devem ter sido assimilados por arquiteturas locais na projetação de novos edifícios
hospitalares, ou mesmo na reabilitação, recuperação ou expansão de edifícios hospitalares
já existentes. Como foram assimilados, com que ritmo? Ou seja, como uma arquitetura
hospitalar local responde à dinâmica transformadora daqueles fatores responsáveis pela
evolução tipológica dos edifícios hospitalares?
Evidentemente, as respostas a estas perguntas estão vinculadas intimamente ao caso que se
toma como local. Assim, ao recolocar a questão em termos mais concretos, faz-se
necessário explicitar que o interesse expresso neste trabalho se centra em uma análise do
caso de Natal.
Por outro lado, concentrar-se-ia a preocupação analítica no período que vai de princípios a
fins do século XX, quando a crítica ao modernismo e a busca de novas perspectivas
arquitetônicas puseram o edifício hospitalar em uma nova rota conceitual. Define-se então
como objeto de pesquisa a evolução tipológica do edifício hospitalar em Natal ao longo do
século XX.
Daí, as questões-chave da pesquisa podem ser formuladas nos seguintes termos:
de que forma se deu a evolução tipológica do edifício hospitalar em Natal em um dado
período histórico (o século XX)?
em que medida a evolução registrada nas tipologias hospitalares em Natal corresponde
àquela que se pode depreender da análise tipológica geral, explícita ou implicitamente
refletida na literatura especializada?
Nestes termos, pode-se formular como hipótese básica de trabalho a seguinte: a evolução
tipológica do hospital em Natal no século XX, seguiu em linhas gerais a trajetória
registrada no mundo ocidental, ressalvadas singularidades que podem ser explicadas pelo
estágio de desenvolvimento socioeconômico local.
9
1.6. Objetivo geral e objetivos específicos
O objetivo geral do trabalho consiste na descrição e análise do processo evolutivo das
tipologias arquitetônicas hospitalares em Natal, identificando os fatores indutores das
mudanças e das singularidades do processo com respeito à evolução tipológica dos
hospitais ocidentais, tomada como referência.
O desenvolvimento do trabalho de pesquisa requereu a realização de objetivos específicos,
de caráter instrumental, tanto no campo teórico-conceitual, quanto no terreno do empírico.
No que concerne ao quadro metodológico, dois eixos de discussão devem ser ressaltados.
Por um lado, foi preciso formular um conceito operativo de tipo, com base em uma
discussão das principais contribuições teóricas relativas ao tipo e à tipologia em
arquitetura. Por outro, enfocou-se a evolução histórica do conceito de hospital, no mundo
ocidental, com vistas a compreender esse processo pelo filtro da abordagem tipológica
associada ao conceito de tipo previamente formulado.
No que respeita a objetivos instrumentais de natureza empírica, foi necessário levantar o
processo histórico de implantação de hospitais na cidade de Natal, recuperando e
sistematizando as suas definições arquitetônicas, bem como a informação caracterizadora
do contexto socioeconômico urbano e da política pública nacional para o setor de saúde.
1.7. Relevância e justificativa da pesquisa
A importância deste trabalho resulta de sua própria abordagem. Considera-se que a análise
tipológica constitui um elemento importante no aprimoramento conceitual da projetação.
Na mesma medida da complexidade do edifício hospitalar, seu projeto arquitetônico requer
preocupação com definições conceituais que implicam em um conhecimento sistematizado
da forma como, historicamente, a arquitetura proveu soluções para problemas que se
apresentavam.
Por outro lado, o edifício hospitalar é um edifício de alto custo, que tem, portanto, a
vocação da permanência. Paradoxalmente, entretanto, a dinâmica tecnológica do setor
médico implica em uma necessidade quase permanente de mudanças e reformas
arquitetônicas.
Assim, no sentido em que permite compreender a essência da tomada de decisão projetual,
a análise tipológica consiste em instrumento de valia para orientar e direcionar
10
adequadamente as quase permanentes requalificações, ampliações e recuperações exigidas
pelo edifício hospitalar na contemporaneidade.
Por fim, julga-se também de importância o trabalho por seu caráter historiográfico, uma
vez que as suas intenções se direcionam para o entendimento do processo histórico de
desenvolvimento dos edifícios hospitalares implantados em Natal.
1.8. Procedimentos metodológicos
Tendo em vista a consecução dos objetivos fixados na seção anterior, os procedimentos
metodológicos foram projetados de forma a encadear o processo de investigação em uma
lógica consistente com as questões-chave e as hipóteses do trabalho.
A formulação de um conceito operativo de tipologia teve por base uma revisão
bibliográfica da literatura sobre o tema, projetada em dois níveis seqüenciais. Em primeiro
lugar, enfocou-se o debate tipológico contemporâneo (dos anos 1960 aos 1990),
confrontando-se interpretações e proposições dos autores mais significativos. Nesse
processo, identificaram-se as raízes intelectuais mais expressivas do debate nos aportes
teóricos de Quatremère de Quincy, Durand e Viollet-le-Duc. As suas contribuições foram
então examinadas, principalmente por meio de leitura indireta, mas sem excluir a consulta
e discussão de textos originais, em traduções contemporâneas.
Essa reflexão levou à elaboração de uma interpretação, não propriamente dos conceitos de
tipo e tipologia emanados das obras desses teóricos do século XIX, mas de suas
abordagens tipológicas. Ou seja, a matriz de análise tipológica construída e utilizada neste
trabalho, embora se informe da teoria tipológica dos 1800, se define a partir do vigoroso
debate acadêmico de que foram objetos o tipo e a tipologia a partir dos anos 1960.
A validação dessa matriz para o caso da análise tipológica da arquitetura hospitalar teve
lugar quando, após concentrar-se em extensa revisão bibliográfica da evolução histórica
dos hospitais e da arquitetura hospitalar ocidentais, construiu-se uma interpretação
tipológica dessa evolução histórica sob a mediação do conceito e do instrumental de
análise definidos na etapa anterior.
Também informada pela discussão e definição da abordagem tipológica, a atividade
empírica básica da pesquisa consistiu em levantar e sistematizar informações – de distintas
naturezas: bibliográficas, obtidas em entrevistas, fotográficas, arquitetônicas etc. – que
11
permitissem reconstituir o mais fielmente possível o processo histórico de implantação de
hospitais em Natal. A leitura desse processo histórico contextualizou os hospitais
natalenses com respeito à evolução da cidade e das políticas públicas relevantes no setor
saúde.
Para um subconjunto dos hospitais implantados, foi possível reconstituir satisfatoriamente
o projeto de arquitetura inicialmente implantado. Esses hospitais foram objetos de análise,
aplicando-se para tanto a matriz de análise tipológica previamente elaborada, permitindo
enfim avaliar suas afiliações aos diferentes tipos arquitetônicos hospitalares fixados pela
arquitetura ocidental.
1.9. Estrutura do documento
O presente documento está estruturado de formas a salientar o processo metodológico
seguido no trabalho de pesquisa. Além deste capítulo inicial, o documento apresenta outros
cinco capítulos e três anexos.
O capítulo 2 está dedicado a apresentar os resultados do estudo realizado sobre o conceito
de tipo e tipologia, culminando com a apresentação da matriz tipológica elaborada com
base na discussão conceitual sobre o tema. No capítulo 3, o enfoque se dirige para a
evolução tipológica da arquitetura hospitalar no mundo ocidental, apresentada sob a ótica
da matriz de análise apresentada no capítulo anterior.
O processo histórico de implantação de hospitais em Natal é analisado no capítulo 4, em
que o pano de fundo das políticas nacionais de saúde pública e a evolução urbana de Natal
marcam e conformam o cenário contextual que problematiza cada hospital implantado na
cidade. Esses hospitais são então analisados tipologicamente no capítulo 5, apresentando-
se os resultados já de forma a salientar suas afiliações aos tipos arquitetônicos que,
decantados da história dos hospitais no Ocidente, foram definidos no capítulo 3.
Por sua vez, o sexto e último capítulo apresenta de forma sintética todos os resultados
relevantes obtidos no curso do projeto de pesquisa conducente à elaboração dessa
dissertação.
Três anexos se integram ao documento: o primeiro apresenta um mapa de Natal com a
localização dos hospitais; o segundo traz quadros que sintetizam as informações do
capítulo 4; e, por fim, o terceiro apresenta os esquemas gráficos dos hospitais analisados.
Capítulo 2
Tipo , t ipologia , anál i se t ipológica:
d iscussão e def in ição conce i tual
13
2. Tipo, tipologia, análise tipológica: discussão e definição conceitual
Este capítulo tem por finalidade a construção de um marco teórico que sirva de referência
para o balizamento das etapas empíricas do trabalho de pesquisa. Assim, o objeto deste
capítulo é o desenvolvimento de um conceito operativo de análise tipológica, com vistas a
sua aplicação, no capítulo seguinte, ao estudo da evolução da arquitetura hospitalar no
mundo ocidental, da Idade Média até a contemporaneidade. Os tipos arquitetônicos
hospitalares decantados nesse estudo serão, posteriormente, adotados como referências
para o enquadramento e análise da evolução da arquitetura hospitalar em Natal, ao longo
do século XX.
Como resultado dos estudos que se apresentam neste capítulo, definem-se a configuração e
a especificação de um instrumental de análise tipológica, com base na discussão em torno
dos conceitos de tipo que, com mais relevância, estão disponíveis na literatura teórica
sobre o tema. A seleção dos conceitos de tipo que foram considerados para o
desenvolvimento do quadro analítico teve por base uma revisão bibliográfica extensiva, a
qual enfocou principalmente a produção intelectual sobre o tema que teve lugar a partir dos
anos 60 do passado século.
O exame dessa literatura apontou a relevância das proposições teóricas de Quatremère de
Quincy, Jean-Nicolas-Louis Durand e Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc, todas do século
XIX. Tal seleção não se orientou apenas pelo nível ou intensidade com que esses três
teóricos alimentaram o debate tipológico no século XX. Levou em conta também o fato de
que suas elaborações teóricas, entendidas como distintas abordagens conceituais que se
complementam – como se mostrará no corpo do capítulo –, podem ser integradas em um
quadro de análise tipológica.
Esse quadro, ao mesmo tempo mais complexo e objetivamente operacional, tem sua gênese
na compreensão – compartida com autores como Oeschlin (1985), Francescato (1994),
Madrazo (1995), entre outros – de que as abordagens de Quatremère, Durand e Viollet-le-
Duc podem ser articuladas no sentido de fornecer uma leitura mais ampliada do processo
criativo do projeto em arquitetura, bem como de seu produto – o edifício. Como se verá
nas seções seguintes, pode-se inferir essa possibilidade de conciliação entre as três
abordagens em alguns dos momentos mais significativos do debate tipológico
14
contemporâneo, bem como na utilização – implícita ou explícita – da abordagem tipológica
na atividade projetual.
Para atingir os seus objetivos instrumentais, este capítulo está estruturado em oito seções.
Na primeira delas, situa-se a emergência do debate tipológico nos anos 1960, em conexão
com a crise da Arquitetura Moderna. Os elementos e contribuições mais centrais desse
debate – que marcou significativamente a cena teórica da arquitetura por, pelo menos,
trinta anos – são escrutinados na segunda sessão. Na terceira, examinam-se as condições
objetivas em que surgiram, nos primeiros anos do século XIX, as primeiras manifestações
teóricas explicitamente concernentes à tipologia e ao tipo. As três seções seguintes estão
respectivamente dedicadas à exploração dos conceitos de tipo desenvolvidos por
Quatremère de Quincy, Durand e Viollet-le-Duc. Já a sétima seção se concentra no exame
da possibilidade de, à luz das contribuições surgidas no debate tipológico contemporâneo,
articular esses três conceitos relevantes de tipo em uma matriz de análise tipológica, a qual
será detalhada na oitava e última seção.
2.1. O conceito de tipo e a crise da Arquitetura Moderna
A partir dos primeiros anos da década de 1960, estendendo-se até quase o final do século
passado, o debate em torno dos conceitos de tipo e tipologia passou a desempenhar um
papel significativo na retomada da investigação teórica orientada pela busca de uma
essência para a Arquitetura (NESBITT, 1996a). Quase ao mesmo tempo, como observou
Moneo (1998), o conceito de tipo passou a ser explicitamente tratado no âmbito da teoria e
da prática projetual, destacadamente no caso dos neo-racionalistas italianos.
Analistas como Nesbitt (1996a) têm reivindicado para o tipo a capacidade de sintetizar os
elementos essenciais da arquitetura – significado, forma, função e tectônica –, o que alçaria
a tipologia à condição de elemento-chave da análise e/ou do processo projetual em
Arquitetura.
Por outra parte, Colquhoun (1996a) remarca que, na medida em que a tipologia tem o
caráter de instrumento de memória cultural, ela adquire uma condição de significado
arquitetônico e de mecanismo de retenção da significação cultural da arquitetura. Em
direção similar, Francescato (1994) considera que o conceito de tipo forja um vínculo entre
forma arquitetônica e precedente histórico, com tudo o que isso implica em termos do
significado social e cultural do objeto arquitetônico.
15
Nesse sentido, pode-se entender o interesse pela tipologia no âmbito da busca do
significado e da identidade arquitetônicas: o recurso ao tipológico oferece “continuidade
histórica, o que confere inteligibilidade a edificações e cidades em uma dada cultura”
(NESBITT, 1996a, p. 44). Isso esclarece porque o debate tipológico emergiu, nos anos
1960, como uma das respostas tentativas à crise então vivenciada pela Arquitetura
Moderna.
Afinal, uma característica fundamental do Modernismo na arquitetura foi a ruptura com a
tradição. Essa ruptura se deu segundo dois pólos articulados que garantiram unidade e
suporte ideológico-programático ao movimento em seus primeiros tempos: a negação
estilístico-projetual-construtiva do século XIX, em prol da adesão às novas possibilidades
tecnológico-formais da Era da Máquina; e a opção ética por um conteúdo social – utópico
e transformador – para a prática da Arquitetura (PORTOGHESI, 1981; LARA, 1999). A
desarticulação entre esses pólos minou a unidade política do Movimento, com a hegemonia
tendendo para as preocupações de ordem formal-construtiva e reduzindo-se gradualmente a
importância das questões sociais.
Enquanto Lara (1999) data essa guinada em torno da Segunda Guerra Mundial (ou no
período entre os CIAMs de 1937 e 1947), Vidler (1976) situa ainda no período entre as
duas guerras mundiais (1919-1938) o surgimento de uma progressiva proeminência do
processo tecnológico de produção industrial. Para ele, a tecnologia de produção em série
passaria, já nos anos 1930, a servir de base para a projetação arquitetônica, estabelecendo-
se a máquina como tipo generalizado (a coluna, a casa e a cidade vistas analogamente à
pirâmide de produção industrial) e como elemento de contorno, restritivo à investigação
formal.
Aqueles que optaram, no início do movimento, pela investigação formal e pelas questões
endógenas da arquitetura no inicio do movimento – aqueles que Lara (1999, p. 5-6)
designa por “estilistas” –, perderam o rumo e se dispersaram em subgrupos cada vez
menores, fragmentando o “transatlântico modernista” em “balsas de identidade
arquitetônica” e, depois, em “frágeis jangadas formais”, ancoradas em estilos pessoais. Por
outro lado, os “sociologistas” – que optaram por enfatizar as transformações sociais que
seriam propiciadas pela nova arquitetura – simplesmente desapareceram após a Segunda
Guerra. Frampton (1989, p. 274) afirma que o processo se deu a partir de 1933, quando as
16
“exigências políticas radicais do início do movimento tinham sido abandonadas”, até que
“o idealismo liberal triunfou completamente” no pós-guerra.
Dessa forma, a essência da arquitetura passaria a estruturar-se a partir de um elemento
externo – a tecnologia industrial da construção civil, com seus padrões inspirados pelo
objetivo da eficiência econômica3 –, ao mesmo tempo em que se deturpava ou se perdia de
vista a missão política transformadora que validaria socialmente a arquitetura dos tempos
modernos.
A esse quadro corresponde, como afirma Lara (1999, p.1), uma “profunda crise de valores,
tanto interna (referente à falta de um suporte teórico consistente), quanto externamente
(referente a seu papel nas esferas cultural e social)”. Em suma, uma crise de identidade e
autonomia, em que o elemento central é o cerne mesmo da arquitetura: o significado.
Em decorrência, o debate que se abre no âmbito dessa crise nos anos 1960 se nortearia pela
retomada de uma preocupação com a essência disciplinar da arquitetura, o que colocava a
questão de uma teoria inerente ao próprio objeto arquitetônico, mesmo quando essa teoria
se articule com o entorno social, cultural, econômico e histórico.
Colquhoun (2004, p. 92) assinala que, entre outras discussões, buscava-se então “redefinir
o racionalismo nos termos de uma tradição autônoma da arquitetura”, pois “o que é
‘racional’ em arquitetura é o que conserva a arquitetura como um discurso cultural que
perpassa toda a história”.
Assim, no âmbito da crise da arquitetura que culminou cinqüenta anos de permanência do
paradigma modernista, o esforço pela reconstrução de uma identidade e de uma autonomia
para a disciplina encontrou, entre outras alternativas, uma âncora legítima no debate
tipológico e no conceito de tipo.
2.2. O debate tipológico: uma breve reconstituição
O debate tipológico na contemporaneidade foi aberto por Giulio Carlo Argan, com seu
artigo Sobre o conceito de tipologia (ARGAN, 1996, 2001), em que sugeria a retomada
das proposições de Quatremère de Quincy, formuladas em princípios do século XIX.
3 Colquhoun (2004, p. 89-90) revela que “o progresso técnico alcançou um patamar em que era possível aproveitar o aspecto racional/construtivo do modernismo para as necessidades ideológicas do desenvolvimento imobiliário, solapando, dessa maneira, os fundamentos utópicos do modernismo”.
17
Naquele artigo, Argan não explorava a fundo, em verdade, a obra de Quatremère de
Quincy. Tão somente partia da diferenciação tipo-modelo proposta por Quatremère para
elaborar um entendimento do processo de formação tipológica e uma argumentação em
defesa do papel da abordagem tipológica do processo projetual em arquitetura.
Para os propósitos de Argan, o tipo arquitetônico é um esquema vago, um princípio ou
regra geral, cujo caráter meramente nocional não pode afetar diretamente o projeto do
edifício singular, muito menos suas qualidades formais. Trata-se de uma idéia-base, capaz
de produzir infinitas variantes formais. Já um modelo seria um objeto real, concreto, a ser
copiado perfeitamente, num processo eminentemente acrítico e não-criativo.
Para Argan, um tipo arquitetônico nasce em função da existência
de uma série de edifícios que têm entre si uma evidente analogia formal e funcional. Em outras palavras, quando um ‘tipo’ se forma na prática ou na teoria da arquitetura, ele já existe, como resposta a um complexo de demandas ideológicas, religiosas ou práticas, em uma dada condição histórica de alguma cultura (ARGAN, 1996, p. 243, tradução da autora4).
Logo, o processo tem uma dinâmica implícita, pois cada vez que uma série formal tem o
incremento de uma nova variante – um novo objeto arquitetônico –, o tipo deduzido poderá
ser mais ou menos alterado, em função do impacto mais ou menos intenso que o mais
recente elemento introduzido na série possa produzir no princípio geral dedutível dessa
série. Portanto, reflete Argan, a abordagem tipológica não inibe a inventividade do
processo de projetação: há um momento tipológico, de apropriação de uma regra geral que
se deduz da tradição, e há um momento criativo, inovador, em que essa regra geral,
cotejada pelas demandas e exigências da situação presente, é traduzida em um objeto
arquitetônico singular.
A retomada das idéias de Quatremère por meio do artigo seminal de Argan foi oportuna.
Naquele momento, como assinala Colquhoun (2004), se desenvolvia na Itália uma nova
visão racionalista (o neo-racionalismo) pela qual as características da arquitetura não se
vinculariam à tecnologia ou a formas especificamente contemporâneas das relações sociais
e do comportamento em sociedade. Os neo-racionalistas, ao contrário, propunham que as
características fundamentais da arquitetura persistem com as mudanças nos campos da
4 Todas as citações presentes neste trabalho, à exceção de referências cujo idioma original seja o português, foram traduzidas do texto original pela autora.
18
tecnologia e na sociedade, vinculando-se assim a uma imagem permanente do homem. Ou,
nas palavras do mesmo Argan,
os ‘tipos’ históricos [...] não pretendem satisfazer requerimentos práticos contingentes; eles se voltam a lidar com problemas mais profundos que – ao menos nos limites de uma dada sociedade – são entendidos como fundamentais e permanentes. Daí ser necessário aprender da experiência amadurecida no passado de modo a ser capaz de conceber formas que se apresentem como válidas no futuro (ARGAN, 1996, p. 244).
Assim, a interpretação arganiana do conceito de tipo em Quatremère assimilava a
preocupação de garantir uma continuidade autônoma para a arquitetura.
Entretanto, a formulação de Argan de um processo criativo em dois tempos – um
tipológico, outro de definição formal do novo objeto arquitetônico – restringia a
abordagem tipológica a exame da arquitetura precedente como informação do processo
projetual. Segundo Francescato (1994), coube a Ernesto Rogers ampliar a interpretação de
Argan e assimilar mais intensamente a proposta de Quatremère, ao entender que o processo
projetual não apenas se inicia com um momento tipológico, mas que também consiste de
operações tipológicas.
Na lógica projetual de Rogers, revela Francescato (1994), o ajuste forma-função não
poderia ser garantido por uma série de procedimentos técnicos sobre o programa de
necessidades, vez que resulta de um processo histórico em que edifícios reais são usados
por pessoas e grupos em uma cultura específica.
Por isso, questões de natureza tipológica teriam de ser conscientemente trabalhadas na fase
de definição da forma. Além disso, ressalte-se que a escolha do tipo é um processo ativo,
em que o arquiteto é levado a escolher, entre as referências tipológicas disponíveis, aquela
que ele mesmo julgue como a mais adequada para o problema projetual que tem em mãos.
Tal valoração do tipo, evidentemente, trazia implícita a necessidade de uma elaboração
sistemática para o processo de abordagem tipológica da arquitetura e do projeto. As
proposições de Rossi, tanto no campo acadêmico quanto na atividade projetual, vão nessa
direção (MONEO, 1998; BRAGHIERI, 1997).
Para Rossi (1995, p. 26-27), as idéias de Quatremère de Quincy seriam suficientes para
estabelecer que o tipo “é a regra, o modo constitutivo da arquitetura”, ou, mais
radicalmente, que o tipo “é a própria idéia da arquitetura, aquilo que está mais próximo de
19
sua essência”. E, se esse tipo for uma constante, então ele “poderá ser encontrado em todos
os fatos arquitetônicos”, constituindo-se como um “elemento cultural” que, embora
determinado, conflita e articula-se com “a técnica, com as funções, com o estilo, com o
caráter coletivo e o momento individual do fato arquitetônico”.
Sobre essas bases, Rossi propunha a tipologia “como o estudo dos tipos não ulteriormente
redutíveis dos elementos urbanos, tanto de uma cidade como de uma arquitetura”,
afirmando a necessidade de seu amplo tratamento sistemático, pois se “nenhum tipo se
identifica com uma forma”, “todas as formas arquitetônicas” são redutíveis a tipos, em um
processo lógico.
Quase vinte anos depois da primeira edição, em 1966, de A Arquitetura da Cidade (Rossi,
1995), Rossi (1985, p. 100) afirmaria entender “a tipologia de um edifício como uma
coleção de dados geométricos, técnicos e históricos que estão na base de todo projeto”,
abrangendo também um componente antropológico, e cuja relevância é indubitável, seja
para a teoria da arquitetura, seja para a prática profissional.
Para Colquhoun (1975, p. 368), essa utilização da tipologia na obra de Rossi partia da idéia
de tipo em um nível tão alto de generalização que ele se tornava quase invulnerável à
interferência tecnológica e social. Decorriam daí imagens subjetivas e poéticas, mas
fortemente vinculadas a utilizações de analogias ou contrastes, com resultados que,
freqüentemente, evocavam leituras tipológicas próprias do arquiteto, e não reveladas pela
cultura. Como sugeriu Moneo (1978, p. 36), os tipos parecem ter saído da imaginação de
Rossi, resgatados de “um passado que pode não ter existido”.
Francescato (1994) entende que a noção de tipo revelada por Rossi em sua atividade
projetual parece ser fortemente prescritiva e, ao mesmo tempo, nostálgica: uma espécie de
proposição visando à recuperação de binômios forma-função do passado, de maneira
crítica ou poética. Essas observações, entretanto, não se estendem a outros representantes
do neo-racionalismo italiano, como Aymonino, Gregotti e Grassi, entre outros, todos eles
com atividade teórico-acadêmica paralela a uma, se não intensa, pelo menos significativa
produção em arquitetura e urbanismo (COLQUHOUN, 2004). Agrupados no movimento
conhecido como Tendenza, eles foram responsáveis pela qualificação do debate tipológico
em seus princípios, tanto quanto pela posta em prática de estudos tipológicos e de projetos
imbuídos de suas visões sobre tipo e tipologia (FRAMPTON, 1989).
20
Oeschlin (1985, p. 67) situa o grupo mencionado como membros de um “círculo de
iniciados” que, a partir da Itália, conseguiu produzir nos anos 1960 e 1970 uma discussão
aprofundada e reveladora sobre a essência da arquitetura e sobre o processo criativo em
projetação arquitetônica.
Essa discussão, centrada na distinção tipo-modelo e nos modos de apropriação da análise
tipológica na atividade projetual, pôde estabelecer um contraponto inicial a uma
compreensão superficial do conceito de tipo. Oeschlin (1985, p. 66) identifica uma
primeira reação à valoração da abordagem tipológica, atribuindo a Bruno Zevi a afirmação
de que “a arte é anti-tipológica, toda criação arquitetônica é inevitavelmente uma
interpretação individual do artista”.
Nesse sentido, a tipologia veio a ser confundida com tipificação, e o conceito de tipo
arquitetônico aproximado ao conceito de tipo funcional de edifício, como no conhecido
trabalho de Pevsner (1976), ou ao de padrão volumétrico.
No primeiro caso, como enfatiza Lampugnani (1985), o caráter banalizante da
interpretação – tipologia assimilada a tipificação – está em sintonia com o conceito de
eficiência econômica da produção de edifícios, de que se imbuiu o processo de edificação
em massa da “casa mínima” a partir do CIAM de 1927. Aqui, o tipo não é derivado do
precedente arquitetônico, e sim definido a partir das possibilidades tecnológicas de
produção industrial de componentes padronizados.
No segundo caso, assinala Francescato (1994), a banalização do conceito de tipo se dá pelo
sentido meramente taxonômico que adquire. Um sentido que é capaz tão somente de
produzir catálogos que são, no máximo, um passo intermediário no processo de
estruturação do conhecimento, nunca um fim em si mesmo (UNGERS, 1985). Como
afirma um crítico do pensamento tipológico, essas “formulações simplistas são pouco mais
do que catálogos intermináveis e negligentes para os tímidos e os sem imaginação [...]
confundem tipo e pensamento tipológico com cenografia histórica” (BELL, 1991, p. 19).
Os muitos usos e maus usos da palavra tipo – que admite muitas acepções –, às vezes do
conceito – vago ou ambíguo –, produziram, a partir da retomada da discussão tipológica
nos anos 1960, uma certa falta de objetividade tanto nas críticas quanto nas apologias da
abordagem tipológica da arquitetura.
21
Talvez o mais reiterativo e contundente crítico da abordagem tipológica, Peréz-Gómez
(1991, p. 14-15) entende as formulações de Quatremère de Quincy como uma proposição
de tipo como modelo formal, o que assimilaria a tradição arquitetônica a uma “auto-
referenciada história dos edifícios” que elude “a dimensão invisível” da arquitetura.
Kahn (1991, p. 111) retruca que essa é uma compreensão univalente do tipo em
Quatremère: ao ressaltar a natureza convencional da tipologia, confunde-se tipo e modelo e
se omite “a tensão entre convenção e inovação” que é inerente ao ato arquitetônico de
confrontar a “dimensão invisível” do tipo ao edifício material concreto.
Por outro lado, Symes (1994) tenta extrair elementos para uma análise generalizada dos
usos do tipológico na prática arquitetônica, a partir de uma caracterização de Vidler (1989,
p. 147) pela qual “a idéia de tipo na teoria arquitetônica [...] tem um significado deveras
abrangente de concepção, forma essencial, e tipo edilício”, devido ao fato de que as
múltiplas acepções do termo tipo “fizeram com que se prestasse bem a representar uma
idéia ao mesmo tempo vaga e precisa”. Symes (p. 165) propõe, então, uma nomenclatura
em que o conceito de tipo é assimilado à palavra tipo para designar tipos de prática
arquitetônica, tipos de arranjo físico e tipos de uso: tudo isso para descrever como “os
arquitetos usam o pensamento tipológico em seu trabalho profissional”.
Diante dessa profusão de leituras distintas, cabe estabelecer alguns elementos de partida
com vistas a delimitar o entendimento do pensamento tipológico que guiará este trabalho.
Admite-se a avaliação de Reichlin (1985) que, discutindo a natureza taxonômica do tipo,
afirma que ele promove um censo do conhecimento e um reordenamento da experiência
histórica em torno da disciplina arquitetônica.
Mas, o remontar ao significado histórico não se dá somente pela permanência do tipo,
como enfatiza Corona Martínez (2000), mas também por meio de processos de analogia ou
mesmo de confrontação (SOLÁ-MORALES, 1996).
Nesse sentido, a crítica de Pérez-Gómez (1991, p. 16-18), para quem o tipo “pode ser
obviamente percebido na repetição de precedentes formais na história das edificações” e o
seu uso como “banal” estratégia analítica ou projetual “nega a nossa [do arquiteto] real
capacidade para a invenção e a imaginação” é contestada por Kahn. Os termos dessa
contestação são postos pela afirmação de que, corretamente interpretado, o conceito de tipo
“é um construto crítico operativo, igualmente relevante para o discurso arquitetônico em
22
geral quanto para temas específicos de originalidade e repetição relativos ao papel do
passado na produção arquitetônica de hoje” (KAHN, 1991, p. 113).
Em verdade, o tipo revela e consolida a norma e os valores estéticos acumulados, como
resultado de fatores socioculturais que condicionaram a formação desses valores e dessa
norma.
Mas, na mesma medida da permanente transformação dos fatores culturais da sociedade, o
tipo e a abordagem tipológica estão associados ao processo contínuo de mudanças na
norma e nos valores estéticos vigentes a cada momento (Colquhoun, 1996b).
É daí que Hinson (1991, p. 5) realça a natureza dialética do conceito de tipo, expressa na
relação conflituosa entre convenção e inovação, de modo que “o comum em arquitetura é o
atributo sem o qual o incomum não pode ser criado nem apreciado”.
A abordagem tipológica, então, traz implícita a necessidade de uma aproximação com a
história, sem deixar de revê-la criticamente, de modo que o tipo sirva de base, natural ou
social, para a constituição da forma e de referência de validação para a produção da
Arquitetura (Vidler, 1976), dê-se essa validação pela utilização criativa do tipo, pela
evolução ou pela revolução tipológica.
Nas palavras de Colquhoun, a adoção de abordagens tipológicas não equivale
a advogar uma reversão para uma arquitetura que aceite impensadamente a tradição. Isso implicaria acatar que formas e significado guardam uma relação fixa e imutável. A característica dos nossos tempos é a mudança, e é precisamente por isso que é necessário investigar o papel desempenhado por soluções-tipo com respeito a problemas e soluções que não têm precedente em qualquer tradição recebida (COLQUHOUN, 1996a, p. 257).
Munindo-se desses elementos, pode-se agora proceder a uma aproximação ao conceito de
tipo a partir de sua mesma gênese no século XIX. Tal procedimento tem o objetivo de
aportar ao trabalho a possibilidade de uma apropriação mais consistente do conceito,
revelando a essência das abordagens teóricas de Quatremère de Quincy, Durand e Viollet-
le-Duc a partir de uma compreensão contemporânea dos conceitos de tipo e tipologia, com
vistas a garantir relevância e coerência à matriz de instrumentos analíticos que é o objeto
final do trabalho apresentado neste capítulo.
23
2.3. Antecedentes dos teóricos do século XIX
As primeiras explicitações teóricas do tipo e da tipologia remontam a princípios do século
XIX, quando, de acordo com Lavin (1992) e Madrazo (1995), Quatremère de Quincy
introduzira por vez primeira o termo tipo na teoria da arquitetura. Entretanto, Madrazo
(1995) assinala que a noção teórica e, mais tarde, o conceito de tipo sempre estiveram
historicamente ligados a questões teóricas fundamentais na Arquitetura: a origem da forma
e seu significado, a sistematização do conhecimento prevalente e a compreensão do
processo criativo do projeto.
Mauro (1985) informa que na filosofia grega o vocábulo typos era associado à noção de
modelo, significando então um conjunto de características obrigatoriamente presentes em
um grupo de indivíduos concretos. Madrazo (1995) fixa no século XVIII a apropriação do
vocábulo tipo para designar o significado epistemológico da noção de forma, enquanto
anteriormente o termo idéia integrava o significado epistemológico aos significados
metafísico, ético e estético, como em Platão.
No âmbito da teoria da arquitetura, as raízes do conceito de tipo podem ser rastreadas até
os tempos de Vitrúvio (Madrazo, 1995). Para Vitruvio, as origens da arquitetura estavam
na Natureza, de onde as criações humanas foram imitadas antes que se tornassem criações
intelectuais ou artificiais. Na Renascença, Leonardo da Vinci e Palladio, com seus
desenhos de igrejas de planta central e suas villas, exercitaram sua criatividade e seu
talento, de origem divina, expondo variações sobre um mesmo tema.
Para Madrazo, é nos séculos XVII e XVIII que os teóricos da Arquitetura vão por vez
primeira separar os significados da idéia, dando origem à emergência de uma leitura
epistemológica da forma que leva ao conceito de tipo em princípios do século XIX.
Ressalve-se que o esforço conceitual de Quatremère de Quincy – e de Durand, seu
contemporâneo – teve lugar, nas primeiras décadas dos 1800, quando, como nos anos
1960, a disciplina da arquitetura vivia uma crise de identidade. Entretanto, a crise que
levou aos questionamentos de Quatremère e Durand tinha razões bem distintas daquela que
sucedeu o apogeu modernista. Em finais do século XVIII, a Arquitetura ainda se apoiava
nas virtudes da tradição neoclássica e em sua formulação vitruviana: o divino e a natureza
eram os alicerces em que se apoiava a criação arquitetônica.
24
O desenvolvimento científico-tecnológico ocorrido no século XVIII não havia sido
absorvido pela Arquitetura, enquanto que era rapidamente introduzido na formação
profissional seguida nas escolas politécnicas francesas (PICON, 2000). O novo profissional
egresso dessas escolas, o engenheiro, estava mais capacitado para absorver a dinâmica
científico-tecnológica de seu tempo e, em conseqüência, era mais requisitado para dar
conta das novas necessidades edilícias e urbanísticas surgidas no seio da Revolução
Industrial e intensificadas com a consolidação da burguesia.
Assim, a não-apropriação do progresso técnico vai desqualificar o arquiteto como cientista,
obrigando-o a rever os princípios teóricos de sua profissão, e fazendo a arquitetura
ingressar em uma crise que, segundo Marques (199-), só seria superada com o
Modernismo. Entretanto, ao longo do século XVIII, os paradigmas vitruvianos já vinham
sendo questionados por teóricos como o Abade Laugier, Boullée e Ledoux. Em seus
trabalhos, como mostra Vidler (1977), a noção de tipo já aparecia, embora sob distintas
óticas, como uma diretriz de reconstrução da disciplina arquitetônica que se opunha à
simples manipulação das ordens vitruvianas (MADRAZO, 1995).
A linha de investigação de Laugier nasceu como um degrau a mais na pesquisa sobre
percepção da forma arquitetônica, manifestada na distinção entre real e aparente
desenvolvida pelos escritores franceses e ingleses no inicio do século XVIII (VIDLER,
1977). Para Madrazo (1995), o Abade traduzia uma reação contrária ao excesso de
formalismo na arquitetura de seu tempo (o barroco e o rococó).
Para corrigir esses excessos, Laugier achou necessário retornar à origem da Arquitetura
para encontrar os seus princípios fundamentais, atribuindo então à “cabana primitiva” um
caráter normativo, e erigindo-a no modelo a partir do qual toda arquitetura poderia ser
criada (VIDLER, 1977). A cabana primitiva de Laugier é um construto conceitual, mais
que um protótipo físico. Trata-se de um padrão abstrato que é deixado na mente depois de
observações de similaridades entre objetos diferentes. Logo, revela um processo relacional
entre percepção e aquisição do conhecimento.
Contemporaneamente a Laugier, uma noção similar de padrão abstrato de que derivaria a
criação arquitetônica fazia parte dos trabalhos de Boullée e Ledoux (PICON, 2000).
Avessos à diretriz vitruviana, tentaram identificar componentes fundamentais da
Arquitetura, dirigindo sua investigação em duas direções: as sensações produzidas por
25
formas elementares e os aspectos funcionais do espaço arquitetônico. A ênfase de Boullée
nas formas geométricas mais puras partia do entendimento de serem elas mais facilmente
apreendidas pelos usuários. Os estudos de Boullée e Ledoux, entretanto, não chegaram a
sintetizar as duas dimensões (sensações e funcionalidade), de modo que seus conceitos
básicos não resultaram operacionais (VIDLER, 1977).
É a partir dessas duas matrizes de investigação – Laugier, de um lado; do outro, Boullée e
Ledoux – que o conceito de tipo se desenvolveria na virada do século XVIII para o XIX.
Os trabalhos do Abade Laugier seriam redimensionados por Quatremère de Quincy,
enquanto que as investigações de Boullée e Ledoux seriam retomadas por Durand.
2.4. Tipo na visão de Quatremère de Quincy
Quatremère explicitou pela primeira vez na teoria da arquitetura o termo tipo, em 1825.
Em sua obra, as idéias neoplatônicas de Laugier sobre o caráter original da cabana vão
encontrar uma tradução culturalista (LAVIN, 1992). Tanto Laugier como Quatremère
acreditavam que a arquitetura tinha de ser regenerada, depois do excesso cometido no
passado imediato. Eles estavam certos que depois do abandono do modelo clássico, a
arquitetura se sentiria sem direção (MADRAZO, 1995). A solução que eles defendiam era
a mesma: era necessário voltar ao principio. Para Laugier, esse princípio era a cabana; para
Quatremère, era o tipo.
Pesquisando diferentes culturas, Quatremère concluiu que a cabana não era a única fonte
de toda arquitetura. Havia três fontes básicas, das quais toda arquitetura teria sido derivada.
A essas fontes ou germes, Quatremère chamou tipos – a cabana, a tenda e a caverna –, cada
um deles correspondente a uma organização social: respectivamente, comunidades
agrícolas sedentárias, tribos nômades, e caçadores. Daí, Quatremère concluiu que o tipo
estabelece uma conexão entre Arquitetura e sociedade, entre o projeto e as forças sociais
subjacentes, indicando uma dinâmica tipológica correspondente à dinâmica social
(LAVIN, 1992).
Quatremère mantém a interpretação de que esses tipos originais informam todo o processo
criativo em Arquitetura. Logo, a doutrina da imitação esta no núcleo do conceito de tipo de
Quatremère. De acordo com ele, a arquitetura seria uma arte imitativa. Por esta razão,
segundo a nomenclatura proposta por Madrazo (1995), ele diferenciou duas formas de
imitação na arte: a primeira, uma imitação literal ou real, em que o objeto de imitação é
26
um modelo concreto (mimese direta); a segunda, uma imitação ilusória ou abstrata, na
qual o objeto de imitação é o tipo (mimese indireta).
Assim, para Quatremère (apud MADRAZO, 1995, p. 188), “... para tudo é necessário um
antecedente, nada sai do nada”. Para ele, o artista arquiteto compõe sua criação a partir da
apreensão e da compreensão de uma regra interna que estrutura a forma. Trata-se do tipo,
um elemento abstrato a partir do qual se produzem obras (modelos) diferentes. Tipo e
modelo são assim diferenciados por Quatremère:
A palavra tipo não representa tanto a imagem de uma coisa que tenha que se copiar e imitar-se perfeitamente, senão a idéia de um elemento que deve servir de regra ao modelo [...] O modelo, entendido segundo a execução prática da arte, é um objeto que deve se repetir tal qual é; o tipo, ao contrário, é um objeto de acordo com o qual cada um pode conceber obras que não se assemelham em absoluto entre si. Tudo está dado e é preciso no modelo; tudo é mais ou menos vago no tipo. Assim vemos que a imitação dos tipos não tem nada que o sentimento e o espírito não possam reconhecer (QUATREMÈRE DE QUINCY, 1985, p. 75).
Basicamente, Quatremère afirmou a necessidade de transcender a mera aparência dos
modelos e descobrir as regras e princípios a ele subjacentes, em uma atividade intelectual
criativa que captura o ponto de partida da criação a partir do modelo. As palavras de
Quatremère afirmam sua visão de que o modelo é uma forma para ser repetida, copiada e
imitada, e desta forma, é mais apropriada para o artesanato ou para tecnologias da
produção industrial do que para a arquitetura. A doutrina da imitação era válida tanto para
a arquitetura como para a pintura e a escultura. A diferença era que, em arquitetura, o
objeto de imitação – o tipo – é abstrato; nas artes figurativas, o modelo é um objeto
concreto.
Indo mais além, afirma Lavin (1992), o conceito de tipo foi a estrutura na qual Quatremère
ancorou seu entendimento da história da arquitetura. Para Quatremère, a relação entre as
arquiteturas primitiva e moderna pode ser entendida pelo estudo do processo de
transformação do tipo, uma metamorfose conceitual requerida cada vez que um edifício foi
projetado. Como resultado, o tipo arquitetônico do passado tornou-se chave para o tipo
futuro e, mais importante, para a sua legitimação pública e social.
Assim, Quatremère elaborou um argumento em que a evolução histórica da arquitetura
deixa de ser linear, em que tipos arquitetônicos oriundos de distintas culturas e momentos
históricos se cruzam, e em que o processo de imitação (mimese indireta) se caracteriza pela
27
atividade intelectual criativa de conceber e reconhecer um princípio ideal que estruture a
atuação criadora do arquiteto. Esse princípio, como assinala Oeschlin (1985), pressupõe
um enfoque sistemático, não apenas descritivo, do contexto histórico das regras,
permitindo que essas sejam transpostas para a metodologia projetual.
Oechslin (1985) conclui das reflexões de Quatremère a evidência de que o tipo não é um
modelo simplificador, um padrão reduzido da descoberta arquitetônica. Ao contrário,
Oeschlin considera o conceito de tipo como uma construção teórica inteligentemente
edificada, a partir da qual se pode estabelecer uma compreensão tanto do processo
evolutivo da Arquitetura quanto do processo criativo da projetação, nas suas recíprocas
interdependências.
Entretanto, não cabe dúvida de que a formulação conceitual de Quatremère é
extremamente abstrata, de forma vaga e de difícil operacionalização. Alguns, como Pérez
Gómez (1991), a consideram com uma noção bastante confusa e, de certa forma, inútil.
Essas críticas, entretanto, segundo Francescato (1994), estão muito ligadas à idéia de que o
enfoque tipológico aprisiona a mente criadora do arquiteto nos limites da convenção, o que
seria indesejável em um campo em que deve sobressair-se a invenção.
O próprio Quatremère já entendia o tipo como algo limitante, mas ao mesmo tempo
liberalizante das energias criadoras do arquiteto (FRANCESCATO, 1994). Afinal, a
dinâmica tipológica certamente supõe a progressiva alteração dos tipos, da mesma forma
que admite tanto a permanência do precedente quanto a sua negação pela geração de um
tipo novo.
O elemento central do debate sobre a validade das formulações de Quatremère passa pela
discussão dessa natureza supostamente conservadora, anticriativa, do conceito de tipo.
Francescato (1994) considera que parte da imprecisão do debate se deve à releitura de
Argan das idéias de Quatremère. Enquanto que este dava ao tipo uma orientação
neoplatônica, pensando o tipo como uma entidade a priori, Argan (1996, 2001) viu o tipo
como resultado de uma pesquisa de coisas em comum a trabalhos reais de arquitetos, ou
seja, como um exame a posteriori objetivando o descobrimento da “estrutura interna
formal” de uma série de trabalhos. Argan, como historiador, estava primariamente
interessado nas qualidades descritivas e taxonômicas do tipo e somente incidentalmente
naquelas que devem afetar a geração de formas.
28
Para Francescato (1994), há que se admitir que existe uma prática de utilização do conceito
de tipo, em arquitetura, meramente como um esquema taxonômico, geralmente associado a
categorias funcionais ou de construção. Mas, nesses casos de utilização do conceito, em
que se salienta o elemento funcional ou tecnológico, o atributo da forma não é central.
Para Quatremère, ao contrário, a geração da forma está no núcleo do conceito de tipo.
Portanto, essa visão meramente “classificadora” não pode ser assimilada a Quatremère.
Sua teoria tipológica, ao diferenciar claramente os conceitos de tipo e modelo e definir o
tipo como um núcleo abstrato capaz de gerar obras diferentes, ressalta o papel criativo do
arquiteto ao afirmar que a forma resulta de operações intelectuais criativas operando sobre
as idéias (o tipo) que estão por trás das formas precedentes.
2.5. O tipo na obra de Durand
Contemporâneo de Quatremère, Jean-Nicolas-Louis Durand retomou os estudos de Boullée
e Ledoux em busca de identificar fundamentos da arquitetura precedente. Boullée e
Ledoux haviam trabalhado, sem êxito, na direção de sintetizar duas vertentes da análise
dos espaços arquitetônicos: as sensações produzidas e os aspectos funcionais. Durand,
entretanto, se fixou apenas nos elementos formais da arquitetura pregressa (PICON, 2000),
com o objetivo de produzir um método operativo de análise e projetação que internalizasse
o conhecimento e a manipulação de soluções prevalentes.
Arquiteto, teórico pragmático e professor da Escola Politécnica de Paris, onde o ensino se
centrava em conhecimentos científicos e tecnológicos, Durand orientou seu esforço de
pesquisador para uma fazer arquitetônico que fosse, nas palavras de Picon (2000), tão
rigoroso quanto as ciências da observação e dedução, tão eficiente quanto a engenharia.
Durand rejeitava as teorias de Vitrúvio e de Laugier, que defendiam que o princípio
fundamental da arquitetura estava no corpo humano e na cabana, respectivamente. Para
ele, o verdadeiro princípio fundamental da arquitetura – ou seja, o tipo – devia ser buscado
na própria arquitetura. Por isso, Durand analisou os edifícios do passado, sintetizando-os
para revelar suas características comuns, representadas em formas geométricas básicas
(MADRAZO, 1995).
Seu trabalho teórico mais conhecido está recolhido em duas obras publicadas entre 1800 e
1805: o Recueil et parallèlle dês edifices de tout genre, anciens et modernes e o Précis des
29
leçons d’architecture données à l’École Polytechnique (DURAND, 2000). Este último, um
curso básico em arquitetura para futuros engenheiros, lançava mão do material
sistematizado no primeiro para orientar a aprendizagem da projetação de edifícios. Daí
pode-se depreender uma preocupação essencial na obra de Durand: o projeto.
O Recueil tinha o objetivo de apresentar, desenhados em uma mesma escala, edifícios
relevantes de todos os gêneros, novos ou antigos, e em vários países. Os edifícios eram
comparados entre si, sugerindo, segundo Villari (1990, p. 55), a idéia de investigação em
que a arquitetura – “concebida como um modelo de organização funcional para a atividade
humana” – seria uma representação das formas da vida social e do modo de vida. Nessa
direção, o trabalho de Durand no Recueil pode ser entendido como um levantamento
sistemático de exemplares precedentes, que podem ser usados de forma a constituir-se, na
mente do estudioso arquiteto, em fonte de conhecimento e cultura.
As intenções de Durand eram as de apresentar plantas e elevações dos edifícios analisados
na forma mais limpa possível. Para ele, o desenho era apenas um instrumento de
representação da arquitetura dos edifícios, uma transcrição tecnográfica (VILLARI, 1990).
Em suma, Durand buscava uma representação o mais fiel possível da anatomia do edifício,
descartando efeitos meramente decorativos e concentrando-se nas definições mais
puramente geométricas do projeto, para ele os princípios genéricos da Arquitetura
(MADRAZO, 1995).
Vê-se que o Durand do Recueil não desmerece o Durand do Précis. Neste livro, Durand
(2000) propunha um método de projeto baseado em três etapas. A primeira, cujo objeto são
os elementos da arquitetura, está concentrada em alvenarias, colunas, arcadas etc.,
analisadas dos pontos de vista da qualidade do material e de seu uso, ou seja, a tecnologia
construtiva (VILLARI, 1990).
A segunda etapa do método de Durand se dirige à composição, a qual ele mesmo definia
como um processo de agregação ou encaixe (assamblage) dos elementos e das partes da
arquitetura. Nas palavras de Durand:
em primeiro lugar, devemos ver como os elementos da arquitetura deveriam ser combinados entre si e como deveriam se encaixar no todo, tanto no plano horizontal quanto no vertical; em segundo lugar, devemos verificar como, por meio das combinações de elementos, as partes do edifício – como pórticos, átrios, vestíbulos, escadas interiores e exteriores, cômodos em geral, pátios, fontes – são obtidas. Se julgarmos
30
o resultado satisfatório, devemos então combinar as partes para compor o edifício (DURAND, 2000, p. 119).
Na terceira etapa do Précis, Durand examina diversos edifícios com respeito a suas
funções, como elas se combinam e como se traduzem espacialmente, para finalmente
estudar a articulação desses espaços (DURAND, 2000). Para Villari (1990), o resultado
desse processo é uma classificação tipológica que, entretanto, só tem sentido quando está
relacionada com as duas etapas anteriores. Assim, embora Vidler (1977) atribua a Durand
a paternidade do moderno conceito de tipologia, não parece ter sido a categoria do edifício,
assim definida pela função, o objeto central das preocupações de Durand.
Com efeito, Oeschlin (1985) ressalta em Durand o apego à geometria, a suas formas
básicas e à riqueza de possibilidades que se abrem mediante a articulação dessas formas
básicas em formas cada vez mais complexas. Se, lembra Oeschlin, o Précis mostra
precisamente como edifícios existentes podem ser reduzidos geometricamente até serem
“anatomicamente” dissecados em partes constituintes singelas, isso se deve a que Durand
estava realmente interessado em tornar legível na arquitetura pregressa a vinculação entre
categorias de edifícios e determinados arranjos compositivos, organizados a partir de
formas elementares da geometria plana. Ou seja, a partir das formas das figuras
geométricas, reconhecer o pensamento arquitetônico a elas subordinado.
Além disso, Picon (2000) acredita que o método proposto no Recueil representa para
Durand a formalização do material histórico através da redução para o essencial para uso
no processo projetual concreto. Assim, a relação entre a sistematização da geometria e da
história forma premissas fundamentais para uma introdução racional da tipologia.
É admissível, então, ressaltar na obra de Durand a catalogação extensiva de alternativas de
composição no plano dos elementos da arquitetura, em um primeiro nível, e de articulação
entre partes da arquitetura, no segundo. Daí pode-se depreender que o esforço tipológico
de Durand se concentra, não no edifício (ou seja, não na visão de tipo edilício de Pevsner,
1976), mas no método. Essa leitura pode ser reforçada com o uso de palavras do próprio
Durand no Précis:
Combinar diferentes elementos entre eles, e daí formar partes do edifício que, combinadas entre si, formam o todo – este é o caminho a seguir quando se deseja aprender a compor; quando se compõe, o caminho é ao contrário, começando do todo para as partes e daí para os detalhes(DURAND, 2000, p. 127).
31
A idéia subjacente é de que uma mesma via é seguida em sentidos diferentes, um para o
processo de análise, outro para o de síntese. O processo criativo do arquiteto, propõe
Durand, deve ser iluminado pelo conhecimento das soluções de composição (o catálogo de
soluções pregressas), mas não pressupõe nem uma atitude passiva de incorporação de
formas-tipo adequadas a funções, nem a rigidez de um processo pré-definido.
O trabalho teórico de Durand carrega a marca do novo contexto técnico-científico de seu
tempo. Em muitos aspectos, tanto na definição dos elementos de arquitetura ou teorizando
o uso de tipos arquitetônicos, ele retomou e completou o trabalho inacabado de Boullée e
Ledoux. Mas, segundo Picon (2000), houve um preço a ser pago: desaparecem os aspectos
mais “poéticos” e em seu lugar está um “método”. Pérez Gómez (1983), inclusive, chegou
a chamar Durand de arquiteto “enxuto”, um possível eufemismo para “limitado” ou
“redutor” da complexidade da arquitetura a um plano puramente racional.
Para De Fusco (1990, p. 72), entretanto, Durand “elabora uma tipologia morfológica com
flexibilidade e capacidade de adaptação a demandas e usos funcionais diversos do edifício
singular”, concebendo aí um mecanismo de análise ajustável a qualquer edifício. Dessa
forma, a abordagem tipológica de Durand – embora sua técnica de projetação possa
parecer hoje ingênua ou simplista – aponta significativamente na direção do entendimento
de como o ato arquitetônico de projetar opera com elementos geométricos estruturais,
articulando-os por meio de soluções combinatórias para propor espaços arquitetônicos
complexos (MADRAZO, 1995).
2.6. O tipo na visão de Viollet-le-Duc
Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc foi um dos mais proeminentes teóricos da Arquitetura
no século XIX. Como Quatremère e Durand, Viollet-le-Duc não aceitava o paradigma
vitruviano das ordens naturais como princípio fundamental da Arquitetura. Por outro lado,
como assinala Madrazo (1995), Viollet-le-Duc compartia com outros teóricos de seu
século o sentimento de que os anos 1800 eram anos sem “estilo”, ou seja, sem uma
arquitetura peculiar que o distinguisse, como ocorria com a arquitetura grega, egípcia,
romana ou medieval.
Para Viollet-le-Duc, a palavra estilo significava “em uma obra de arte, a manifestação de
um ideal estabelecido sobre um princípio” (apud MADRAZO, 1995, p. 259). Havia, para
Viollet-le-Duc, leis naturais antecedentes à idéia criativa e, nesse sentido, pode-se assimilar
32
o tipo de Quatremère ao estilo de Viollet-le-Duc. Ambos os conceitos invocam, segundo
Madrazo, um princípio genérico inerente à natureza que o arquiteto deve imitar (a mimese
indireta de Quatremère).
Mas, para Viollet-le-Duc, esse princípio que constitui a base da genuína criação na
Arquitetura não é necessariamente derivado da natureza. Para Viollet-le-Duc – um
racionalista e, portanto, um seguidor da idéia de que as razões do homem e da natureza são
equivalentes –, a arquitetura precedente que tinha estilo também podia ser objeto de
imitação, desde que o arquiteto não se limitasse a copiar a aparência dos estilos passados
(ou seja, suas formas aparentes), mas sim que buscasse entender os princípios essenciais
inerentes à formação desses estilos (VIOLLET-LE-DUC, 1990).
Em seu trabalho como restaurador, afirma Colquhoun (1996b), Viollet-le-Duc procurava a
essência da arquitetura gótica, reduzindo-a a um conjunto de princípios instrumentais, em
um método de trabalho que, implicitamente, revela uma tentativa de encontrar a base da
intervenção restauradora na idéia escondida dentro do edifício analisado.
Essa idéia, ou “forma oculta”, equivalente do princípio estruturador da forma visível em
Quatremère, estaria condicionada, na visão de Viollet-le-Duc, pela solução estrutural e pela
lógica ditada pelos materiais e técnica construtiva (GUBLER, 1985). Segundo Madrazo
(1995), isso significava um entendimento de que o suporte físico do edifício – a estrutura –
era inseparável do princípio interior que dá unidade à forma, o que inclui também o
desenvolvimento espacial do edifício.
Há, portanto, na teoria de Viollet-le-Duc, uma menção explícita a um trabalho de análise
que precede a elaboração criativa do projeto. Esse trabalho analítico, concretizado no
conhecimento e no estudo da arquitetura precedente, exigia, porém, uma valoração crítica,
um juízo de valor, sobre a qualidade (a existência ou não de estilo) da arquitetura estudada.
2.7. Integração dos conceitos de tipo
Para Lavin (1992), Quatremère abordou cientificamente o entorno sociocultural da
Arquitetura precedente com o objetivo de gerar um modelo operativo de projetar. Para
Picon (2000), Durand enfocou cientificamente o ato de projetar como forma de gerar
projetos adequados e convenientes para diferentes sociedades e usos. Para Madrazo (1995),
Viollet-le-Duc adotou o paradigma científico de seu tempo para defender projetos que
33
articulassem eficientemente a forma e os fatores de contexto (materiais, técnica, função,
clima).
Ou seja, todos eles pesquisando cientificamente o ato criativo do projeto, enfatizaram as
estreitas relações entre a Arquitetura e seu contexto humano, sociopolítico e tecnológico.
Por outro lado, todos eles construíram teorias e argumentos em que, necessariamente, o
processo de projetação inclui uma fase inicial de análise da arquitetura precedente. Na
visão tipológica de Francescato (1994), a abordagem tipológica também se insinua em todo
o decorrer do processo projetual, segundo algum modelo do processo de projetação que
absorve e operacionaliza o conhecimento tipológico.
Concretamente, os três teóricos analisados orientaram seus estudos pela busca da essência
da Arquitetura. Para Quatremére, essa essência era o tipo, termo que usou explicitamente, e
que definia como uma lei geratriz interna e abstrata com poder de estruturar o trabalho do
arquiteto. Para Durand, a essência estava nas figuras geométricas básicas que sintetizavam
o edifício e que serviam como elementos fundamentais para a atuação criativa do arquiteto.
Para Viollet-le-Duc, que chamou essa essência de estilo, ela era um princípio unificador da
estrutura e da forma arquitetônica, decorrente do material e da técnica construtiva.
Essas diferentes visões acerca do que constitui a essência da arquitetura não bastam para
caracterizar as posições de Quatremère, Durand e Viollet-le-Duc como conflitivas. Na
verdade, as leituras de Quatremère e Durand foram freqüentemente consideradas como em
conflito (STROHER, 2001), embora Oeschlin (1985) defende a sua utilização combinada
como forma de aprimorar teoricamente a análise e a projetação arquitetônica.
Com relação à concepção tipológica de Viollet-le-Duc, considera-se em geral que ela é
bastante próxima da de Quatremère (MADRAZO, 1995), muito embora a “idéia
estruturadora” deste seja abstrata e invisível, enquanto que a daquele é mais concreta,
consistindo de estrutura e tecnologia construtiva.
De outra perspectiva, Durand enfatiza a geometria da planta em sua abordagem do
processo projetual. Quatremère põe a ênfase no conceito subjacente à estruturação do
objeto arquitetônico, enquanto que Viollet-le-Duc ressalta a decisão em torno dos materiais
e técnicas construtivas do edifício, embora a situe no plano da concepção do projeto.
34
Em verdade, pode-se entender que essas três visões são complementares. Não há um claro
conflito entre elas e sua utilização simultânea pode fornecer uma compreensão mais
completa e integrada do edifício, de uma perspectiva mais contemporânea. Uma vez
definido um contexto, e considerada uma função, a integração destas visões permite
compreender, não só cada um dos elementos essenciais considerados pelos autores, mas
também as suas inter-relações e as suas relações com o contexto.
Por outro lado, essa solução responde de forma ampliada às afirmações de Francescato
(1994), para quem a vantagem principal do conceito de tipo e do pensamento tipológico,
seja na análise, seja na projetação de arquitetura, é a possibilidade de explorar os aspectos
relacionais forma-função. Nas suas próprias palavras:
Tipologias relacionais [...] são menos diretas. Relacional conota a idéia de que tipo condensa o relacionamento entre forma arquitetônica e utilidade. Essa conexão distingue a arquitetura e firma-se no núcleo do empreendimento arquitetônico, mas tem sido difícil identificar e descrever como o conceito de tipo incorpora essa conexão (FRANCESCATO, 1994, p. 255).
Pode ser conveniente também lembrar que Argan (2001, p. 69) enunciou que o seu
conceito de tipo e o conceito de tectônica podiam se aproximar mutuamente, enriquecendo
a tipologia até o ponto de ela representar o “fundamento ‘nocional’ sobre o qual se funda
necessariamente a elaboração formal do artista”.
O que se propõe aqui é considerar que o inter-relacionamento entre forma-base, função,
geometria constituinte e tectônica adquire para o instrumento tipológico uma característica
relacional que enriquece o processo analítico, bem como o de projetação orientado pela
abordagem tipológica.
Assim sendo, julga-se que o procedimento analítico que resulta da aplicação deste
instrumento tipológico composto tem consistência interna, é satisfatoriamente sustentado
pela literatura analisada e apresenta exeqüibilidade operacional com respeito tanto à
análise evolutiva da tipologia arquitetônica hospitalar no Ocidente (que se realiza com base
em informação secundária) quanto ao estudo da evolução tipológica do edifício hospitalar
em Natal, que trabalha com informação primária coletada em campo.
35
2.8. Descrição dos instrumentos de análise
A opção metodológica desse trabalho se insere na linha de argumentação reconciliadora
das três abordagens já mencionadas do tipo (Quatremère, Durand, Viollet-le-Duc) e de
seus papéis no processo analítico em Arquitetura.
Nesta seção, explicita-se o conjunto de instrumentos que serão adotados na análise que se
procederá adiante. Esses instrumentos se derivam dos conceitos de tipo estudados, sendo
definidos de forma a que adquiram um caráter operativo, visando a seu uso posterior.
Conforme se pode deduzir das seções antecedentes deste capítulo, são os seguintes os
instrumentos a serem adotados:
(a) princípio organizador do espaço
Decorrente do conceito de tipo presente na obra de Quatremère de Quincy, o princípio
organizador do espaço é um conjunto de regras que regem a organização do espaço, na
forma de uma convenção abstrata. O princípio organizador do espaço não deve ser
confundido com (ou tomado por) um esquema gráfico, seja de planta, seja volumétrico. Ele
se exprime por palavras, não por croquis ou desenhos.
Sendo um princípio estruturador do espaço, seu enunciado define como as atividades de
um edifício vão se articular em um todo e se relacionar umas com as outras. O completo
entendimento de como essa regra foi apropriada em um projeto específico requer o
conhecimento do repertório da arquitetura e do contexto à época de elaboração e
materialização do projeto.
Logo, esse entendimento só pode se realizar verificando como ele se concretizou
posteriormente em um dado edifício, ou seja, de como um princípio abstrato revelou-se
materialmente em uma específica, dentre tantas possíveis, solução de planta, volumetria,
sistemas estruturais e tecnologia construtiva.
Neste trabalho, a aplicação do instrumento se deu, a partir do arranjo espacial de
atividades, inferindo o princípio subjacente com que foi estruturado aquele arranjo, por
meio de observação de elementos caracterizadores como:
natureza das atividades (religiosas, terapêuticas, de apoio, cuidados aos pacientes,
técnico-científicas etc.);
36
nível de complexidade, observando a diversidade de áreas e arranjos para executar
cada atividade (quantidade de áreas e/ou compartimentos necessários para realizar
cada atividade);
relação de proximidade entre atividades (perto x longe, contínua x descontínua, acima
x abaixo etc.);
natureza da conexão entre atividades (direta ou indireta, de primeiro ou de segundo
nível hierárquico, condicionada ou independente, em série ou em paralelo etc.);
natureza da formação de grupos espaciais de atividades (inter-relações funcionais,
afinidade de uso, estética, ambiental etc.);
modo de distribuição dos grupos ou das atividades (funcional – processo racional,
principal material de construção era a pedra. Entre os nove, provavelmente os que gozavam
de maior prestigio no mundo religioso do monastério, estavam a Catedral – uma basílica
que se destacava do conjunto por suas dimensões – e, lançando mão do tipo claustral, a
clausura dos monges e a enfermaria, designação do edifício destinado aos cuidados dos
enfermos (IMBERT, 1982).
O tipo claustral era uma derivação do tipo átrio, utilizado na arquitetura romana residencial
clássica – um pátio interno descoberto para onde se voltavam as residências com suas
aberturas como janelas e portas. No clima mediterrâneo, funcionava como uma espécie de
proteção à hostilidade do clima seco. Nesse tipo, as relações entre os ambientes e entre as
edificações são estabelecidas a partir de um espaço interno comum. O vínculo com o
espaço interno é mais valorizado do que com o externo. Essa disposição favorece tanto a
integração das atividades, quanto as relações sociais interiores ao grupo de usuários, ao
mesmo tempo em que propicia um distanciamento com respeito ao ambiente externo e
proteção das hostilidades climáticas.
O esquema da clausura se diferenciava do átrio romano pelo acréscimo de uma circulação
arqueada em redor do pátio, por onde os monges caminhavam fazendo suas orações e
através do qual se faziam as comunicações dos aposentos dos monges com a capela e com
o refeitório. Era também através do pátio que se dava a comunicação com o exterior do
edifício, de modo que o pátio funcionava também como uma espécie de ante-sala. Para o
pátio, em cujo centro se destacava a fonte em meio aos jardins internos, se voltavam as
aberturas dos ambientes, pelas quais eles recebiam iluminação e ventilação. Em segundo
grau de importância, as instalações para cozinha e banhos se situavam no exterior do
edifício e se comunicavam aos aposentos através de circulações cobertas.
45
Figura 3 – Planta da enfermaria do Monastério de St. Gall. Legenda: (1) Pátio interno; (2) Claustro; (3) Enfermarias; (4) Latrinas; (5) Refeitório; (6) Capela.
O edifício da enfermaria de St. Gall era uma
reprodução do esquema da clausura (ver FIG. 3). Ao
redor de um pátio interno retangular, encontravam-se
quatro aposentos destinados à estadia dos enfermos, a
capela e um refeitório, que se ligavam uns aos outros
pelo interior do edifício, através de uma circulação com
arcadas. Esta organização dos espaços parece bem
adequada à vida de isolamento e meditação dos
monges. No entanto, não havia nenhuma relação direta
com as atividades de cuidados dos enfermos.Obs: adaptado de htpp://lib.utexas.edu
O perímetro retangular do pátio estava estruturado em colunas (ou pares de colunas)
igualmente espaçadas, erigidas em pedra, as quais apoiavam arcos e abóbadas
semicirculares que cobriam o claustro, com coberta em água única. As paredes em pedra
dos compartimentos garantiam a estrutura para a cobertura em duas águas e eventuais tetos
abobados. Essa estrutura dá forma a uma volumetria assimilada a um prisma de base
retangular – próxima do quadrado –, vazado no centro pelo pátio, com altura da ordem de
metade das dimensões da planta, destacando-se (ver FIG. 1) a capela por exibir linha de
cumeeira acima das outras alas, embora bem abaixo da altura da igreja. A simplicidade dos
materiais e da solução estrutural condiz com a natureza religiosa de recolhimento, inerente
ao tipo.
A adoção da tipologia claustral para as enfermarias nos monastérios se deve provavelmente
a dois motivos. O primeiro se liga ao fato de que cuidar dos enfermos ocupava uma
posição elevada na hierarquia das regras da vida monacal da época (BINET, 1996;
THOMPSON; GOLDIN, 1975): logo, tratava-se de uma atividade prestigiada e o edifício
em que se realizava deveria adotar um tipo mais sofisticado que aquele tipo vernacular
mais rudimentar. O segundo motivo deve derivar do fato de que o isolamento
proporcionado pelo tipo claustral era adequado à vida de orações, cânticos, missas e
comunhões à qual se obrigavam os enfermos ali internados (C. H. BOEHRINGER SOHN,
198-).
46
3.1.2. O tipo basilical
A partir do Século XII, quando as cruzadas e a abertura de novas rotas de comércio
contribuíram para o surgimento e enriquecimento das cidades, e para o florescimento da
classe dos mercadores, a Igreja passou a contar com novas fontes de doações muito mais
vultosas (GOMBRICH, 1979). A nobreza de origem feudal, reis e príncipes, mas também
os novos ricos comerciantes, aportavam recursos para a construção de novos hospitais,
motivados pela compra de indultos e indulgências (THOMPSON; GOLDIN, 1975).
Por outro lado, o crescimento das cidades ocasionou o aumento da demanda por leitos.
Com mais recursos, sob pressão pelo aumento de leitos, as entidades religiosas passaram a
expandir, adequar, e construir hospitais. Essa época de crescimento econômico se refletiu,
sobretudo, na arquitetura religiosa, o que se demonstra pela construção de monumentais
catedrais e monastérios, os verdadeiros representantes da arquitetura gótica (GOMBRICH,
1979).
Do ponto de vista da atenção ao enfermo pouca coisa mudara com respeito ao período da
Alta Idade Média: o aspecto mais importante dos cuidados aos enfermos ainda era o
consolo espiritual oferecido pela assistência dos monges e obtido nos rituais religiosos; os
enfermos eram desconectados da vida em sociedade e submetidos a um especial
Entretanto, mesmo que as facilidades hospitalares continuassem sendo disponibilizadas nos
mosteiros, o tipo claustral não mais se ajustava às novas necessidades da sociedade. De
fato, o retângulo fechado não satisfazia os novos requerimentos de expansão dos espaços
das enfermarias para colocação de mais leitos. Além disso, a grandiosidade institucional da
Igreja Católica na Baixa Idade Média havia de ser comunicada cotidianamente aos que a
ela se arrimavam em busca de guarida e apoio espiritual (GOMBRICH, 1979). Um tipo
adequado à suntuosidade e à grandiosidade parecia, então, mais adaptado ao novo contexto
do edifício hospitalar. E a solução buscada se originava em um tipo clássico da construção
religiosa: a basílica.
A idéia central que ancora a tipologia arquitetônica basilical é a de acolher, com um
sentido de coletividade (C. H. BOEHRINGER SOHN, 198-), todas as atividades
indispensáveis à vida dos enfermos sob o mesmo teto: alimentação, repouso, banhos e,
47
sobretudo, a ritualística religiosa. Com esse requerimento básico, e visando tornar mais
toleráveis as condições de vida, faz-se necessário um ambiente de grandes dimensões, não
só em planta, mas também em termos de pé direito, sem quaisquer divisões entre os leitos.
O representante mais significativo do hospital de tipo basilical é o que integrava o
Monastério de Cluny, na França. Desenhos encontrados e escavações propiciaram a
reconstituição do conjunto, inclusive das duas enfermarias, destacando-se a maior delas,
edificada ao redor de 1135 (THOMPSON; GOLDIN, 1975; C. H. BOEHRINGER SOHN,
198-). Tinha ela planta retangular, semelhante a de uma basílica de três naves (ver FIG. 4).
As naves laterais dessa enfermaria eram organizadas em dois pisos, de forma que os leitos
de internação se situavam em um mezanino, uns ao lado dos outros, perpendicularmente às
paredes laterais, sem divisões entre eles (CARLIN, 1989; THOMPSON; GOLDIN, 1975).
Os banhos e latrinas estavam no nível desse mezanino, em um anexo adjunto ao edifício
principal e a eles se acedia por meio de uma circulação. A capela estava situada em uma
extremidade, e podia ser vista de todos os leitos; na outra extremidade, a cozinha. Ou seja,
todas as atividades necessárias à vida dos enfermos estavam debaixo do mesmo teto. A
reconstituição feita por Kenneth Conant (THOMPSON; GOLDIN, 1975) não chegou a
definir qual seria o uso do pavimento inferior ao mezanino, mas levantou a possibilidade
de ser usado para atendimento ambulatorial e triagem de enfermos.
BA
Figura 4 – (A) Modelo tridimensional do Monastério de Cluny, com destaque para o edifício da grande enfermaria; (B) Planta esquemática da grande enfermaria do Cluny. Fonte: Thompson e Goldin, 1975
A magnificência do edifício requeria uma solução estrutural arrojada. Os doze pilares do
perímetro da nave central eram em pedra e ascendiam a cerca de 20 metros, com arcadas
ao nível do mezanino e na parte superior. O teto da nave central em abóbada semicircular,
em pedra, se elevava a 26,5 metros do nível do piso (C. H. BOEHRINGER SOHN, 198-).
48
As paredes laterais completavam a estrutura e eram dotadas de janelas em dois níveis: no
mais baixo, para ventilação ao nível dos leitos; no outro, para iluminação natural.
No extremo da nave central, a capela abobada recebia iluminação zenital, o que,
contrastado com a parca iluminação do interior, ampliava a sensação de grandeza religiosa
do edifício. A volumetria do edifício, com cobertura em duas águas, é assimilável do
exterior a um prisma de seção trapezoidal, discorrendo horizontalmente, em que a altura se
destaca com respeito à largura.
3.1.3. O tipo colônia
Vigente ao longo de toda a Idade Média, a estrutura hospitalar de tipo colônia vincula-se à
disseminação da lepra pelo Ocidente, a partir do século V, e à ameaça cotidiana que essa
enfermidade fez pairar sobre a sociedade medieval (MARKHAM, 1997). Para Rosen
(1994: p. 59), a lepra “representou a grande praga, a sombra sobre a vida diária da
humanidade medieval”, mais que qualquer outra doença ou peste.
Não sendo conhecida cura ou tratamento para a doença, e aceita a idéia de contágio por
contacto social, a indicação de isolamento dos leprosos foi a solução adotada na Europa
desde os primeiros registros significativos de sua presença. Na medida em que esse
fenômeno coincide historicamente com o crescimento do Cristianismo e com a difusão
entre os católicos das sete tarefas da caridade cristã, já mencionadas anteriormente, não é
de se estranhar que, também com respeito aos leprosos, a Igreja Católica tenha assumido
papel primordial no atendimento e guarida dos enfermos. E, de modo generalizado, o tipo
colônia foi o que serviu aos hospitais para leprosos, e de forma tão marcante que vigoraria
com essa função até meados do século XX.
O tipo colônia tem origens nas comunidades de cristãos ascetas que, antes da oficialização
do Cristianismo como religião de Estado – por Constantino, em 313 –, se rebelavam contra
a licenciosidade da vida na Roma pagã (THOMPSON; GOLDIN, 1975). Afastando-se do
convívio social, esses grupos passavam a viver como eremitas em aldeias nas florestas:
choupanas isoladas ou grupadas em blocos se distribuíam em torno a uma capela e,
eventualmente, a outro espaço de atividade comunitária, como cozinhas ou refeitórios.
C. H. Boehringer Sohn (198-) assinala como essa forma de pequena organização
comunitária rural foi adotada pelos leprosos e se designou à época com a expressão latina
49
“leprosi in campo”, tendo posteriormente evoluído, sob financiamento e tutela de
instituições da Igreja, para construções mais sólidas, embora mantendo a estruturação
espacial do conjunto. Destaque-se que, diferentemente dos tipos claustral e basilical,
formados sem a interveniência de razões de ordem médica e sim, apenas, religiosa, a
apropriação do tipo colônia para a arquitetura hospitalar medieval esteve diretamente
relacionada ao fato de que os enfermos de lepra deveriam ser isolados das pessoas sãs
(ROSEN, 1994). Assim, a colônia de leprosos deveria resumir as facilidades da vida das
cidades, instando os internos a resolverem, parcamente, suas necessidades no espaço da
instituição.
É certo que motivações religiosas influíram na estruturação e conformação dos espaços
desses hospitais-colônia, mas também é certo que há motivações práticas no fato de que os
leprosários se estabelecessem em áreas que dispusessem de fontes de água – para os
banhos, único procedimento terapêutico então adotado –, fossem atendidas por estrada,
seja para facilitar o acesso de novos internos, seja para possibilitar a coleta de esmolas dos
passantes (LABASSE, 1982; C. H. BOEHRINGER SOHN, 198-). O mesmo se pode dizer
do fato de que o isolamento fosse garantido por um muro de contorno e um ou dois portões
de acesso, controlados pela administração do leprosário (CARLIN, 1989; THOMPSON;
GOLDIN, 1975).
Assim, o tipo colônia se apresenta com uma idéia central que se pode resumir na
disponibilização, em um espaço fisicamente segregado, de condições de vida comunal, em
contato direto com a natureza – especialmente as fontes de água –, ao grupo de internos do
hospital. A organização interior do espaço, normalmente limitado por um muro construído
segundo um retângulo ou uma elipse, priorizava a liberação da área central, de modo que
as celas individuais ou as casas isoladas ocupavam os espaços mais exteriores
(THOMPSON; GOLDIN, 1975). No centro, ou num lado do perímetro não ocupado pelas
acomodações dos enfermos, erguia-se a capela ou igreja, ladeada ou confrontando com
galpões de atividades comunitárias e os aposentos de monges ou freiras.
A individualização dos aposentos, mesmo quando se tratasse de celas contíguas, permitia a
manutenção eventual da vida em família ou em pequenos grupos. Uma capela privativa do
leprosário, um cemitério, um espaço de administração e alguma outra construção para
abrigar atividades comuns – cozinha e refeitório, p.ex. – são também componentes da
50
definição tipológica, que se completa com a modesta tecnologia de edificação das casas
(inicialmente de madeira) em face de uma presença magnificente da igreja (em pedra).
Na FIG. 5, exibe-se um exemplo de conjunto
hospitalar do tipo colônia: a “Beguinage” de
Amsterdam, fundada no século XIII como
instituição de atendimento a enfermos,
amparada pela Igreja Católica. É possível
observar a prevalência do conceito espacial
de agrupamento de unidades – no exemplo,
casas contíguas – em torno da capela e do
bloco de atividades comuns. Na época de
construção, a Beguinage se situava no
“waterfront”, hoje já avançado pelas obras de
Figura 5 – Gravura da Beguinage de Amsterdam. Fonte: http://www.begijnhofamsterdam.nl
contenção hidráulica por barragens e aterros, tecnologia tão usada no desenvolvimento
territorial dos Países Baixos. O cemitério era interior à capela e o único acesso ao interior
do pátio também se dava pelo portão que a ela se dirigia.
É importante observar que o tipo colônia não teve sua utilização interrompida após o
Período Medieval. De um lado, a persistência da lepra como enfermidade preocupante em
várias partes do mundo, de outro, apropriações do tipo para outras funções (p.ex.: asilos,
prisões), puderam em conjunto manter a vigência desse tipo até o século XX.
3.2. O hospital renascentista
Depois de muitos séculos na Idade Média em que a Igreja hegemonizou a assistência
hospitalar, no Renascimento, ela deixaria de ser a principal entidade de assistência aos
pobres e enfermos. Segundo Binet (1996), é conseqüência direta do surgimento de outras
forças e organizações sociais o fato de que o hospital tenha começado a perder o vínculo de
exclusividade que lhe relacionava a monastérios e ordens religiosas.
Com a emergência, a partir do século XV, de uma burguesia laica de origem mercantil,
com presença política e influência social, a responsabilidade de construir hospitais –
outrora assumida totalmente pela Igreja – foi também assimilada por nobres e ricos
cidadãos. Em face do crescimento populacional e econômico das cidades, afirma Labasse
51
(1982), os novos hospitais passaram a ter uma implantação mais urbana e a se descolarem,
também no sentido físico, dos monastérios e das instituições religiosas.
As motivações religiosas iam, portanto, perdendo força ante as motivações corporativas.
Gombrich (1979) define as corporações como organizações criadas por artesãos e outras
categorias de trabalhadores com a finalidade de ampliar seus direitos e defender seu
mercado de trabalho. Eram organizações ricas, que possuíam voz e voto junto aos
governos locais e aos cidadãos, e que não só faziam proposições de atuação, como se
esforçavam por pô-las em prática, executando diretamente atividades de seu interesse. Se,
na época medieval, o serviço de atendimento aos enfermos e o aporte de recursos
financeiros para manter ou construir hospitais era feito em nome da salvação, no período
renascentista, é o caráter cívico do serviço à sociedade que, segundo Thompson e Goldin
(1975), vai mover a disposição de cidadãos para assumir o financiamento e garantir o
funcionamento dos hospitais. Assim, como sugere Rosen (1994), o que era tido no hospital
medieval como obrigação religiosa, foi pouco a pouco se convertendo em um dever cívico
de assistência aos membros desvalidos da sociedade.
Nesse contexto, Labasse (1982) e Imbert (1982) detectam o surgimento do hospital civil –
ou seja, da instituição hospitalar como entidade civil – e observam que, progressivamente,
a administração dos hospitais foi sendo assumida por instituições municipais que, para
assegurar a manutenção dos edifícios e dos serviços, contavam com doações das
comunidades (C. H. BOEHRINGER SOHN, 198-). Essas mudanças aconteceram de forma
gradual e, durante o período que vai do século XV ao XVIII, duas tipologias passariam a
marcar a arquitetura hospitalar.
O primeiro tipo, denominado aqui enfermaria cruzada, surgiu e se consolidou na Itália
renascentista, como uma manifestação definitiva da proeminência das grandes cidades. O
segundo, o tipo que, neste trabalho, se denomina casa de campo, surgiu na Inglaterra após
a dissolução dos mosteiros ordenada por Henrique VIII, no século XVI, sedimentando-se
até o final do Renascimento e avançando por todo o período iluminista (THOMPSON;
GOLDIN, 1975). Esses dois tipos hospitalares renascentistas, de acordo com Binet (1996),
consagraram o fim da influência da arquitetura religiosa sobre os hospitais.
52
3.2.1. A enfermaria cruzada
No período que se segue à Idade Média, mantêm-se os princípios fundamentais da missão
e os objetivos do hospital: apenas a Igreja cedeu lugar à nascente burguesia mercantil
(IMBERT, 1982). O princípio norteador do hospital continua sendo o consolo espiritual
dos enfermos e o posicionamento da capela em relação aos leitos continua sendo o ponto
de partida para a distribuição dos espaços. Com o crescimento da demanda por leitos nos
hospitais, a planta basilical, teoricamente sem limites de expansão, ocasionava um
problema: os pacientes mais ao fundo não escutavam e não viam a missa. Foi aí, segundo
C. H. Boehringer Sohn (198-), que surgiu o cruzamento das enfermarias a partir do altar.
O exame de plantas de hospitais baseados nesse tipo (ver FIG. 6) revela um outro aspecto
importante na organização dos espaços do edifício, qual seja a predominância da simetria e dos
traçados geométricos simples. Os serviços de apoio, instalados antes em anexos, agora se
posicionavam de maneira a compor o traçado geométrico induzido na planta a partir do
cruzamento de enfermarias. Cabia aos serviços, e às vezes a meras circulações, a função de
encerrar os oito pátios menores do edifício, dispostos de maneira a formar um grande pátio
central – em torno de cujos eixos se desenvolve o prédio simetricamente –, o qual é, por
sua vez, encerrado entre a logia de entrada e a igreja, no lado oposto.
Nesse primeiro momento do hospital do período renascentista, uma outra distinção com
respeito ao hospital medieval se nota no exterior do edifício. O retorno aos modelos gregos
conduz as fachadas a que se apresentem como simétricas, em estilo neoclássico. No
entanto, no interior do edifício, permanecem as enfermarias como grandes espaços abertos
dispostos em forma de cruz, com o posicionamento do altar no cruzamento dos pavilhões.
Tal solução espacial buscava principalmente possibilitar que mais enfermos pudessem ver
e ouvir a missa. No entanto, outras qualidades foram depois percebidas (THOMPSON;
GOLDIN, 1975). Por exemplo, o fato de que a forma cruzada ajuda a supervisão dos leitos
desde a capela central. Por outro lado, o tipo enfermaria cruzada apresentava a vantagem
de ajudar a ventilação do ambiente das enfermarias e propiciava atender a questão
colocada de separar enfermos de diferentes gêneros em diferentes alas. Esse tipo hospitalar
é o embrião do tipo “pavilhonar”, o qual se desenvolveria e se consolidaria posteriormente,
ao longo dos séculos XVIII a XIX.
53
Figura 6 – Elevação e planta do Ospedale Maggiore, Milão Legenda: (1) pátio central; (2) pátios laterais; (3) igreja; (4) capela; (5) enfermarias Fonte: C. H. BOEHRINGER SOHN, 198-.
Figura 7 – Vista aérea do Ospedale Maggiore. Fonte: http://vandyck.anu.edu.au
O grande exemplo do tipo enfermaria cruzada foi o Ospedale Maggiore, em Milão.
Projetado por Filarete, o Maggiore teve sua construção iniciada em 1456, demorando cerca
de 350 anos para ser considerado totalmente construído (C. H. BOEHRINGER SOHN,
198-). O conjunto edificado (ver FIG. 7) apresenta as inovações que seriam adotadas nos
hospitais da época: as enfermarias em forma de cruz, com a capela no cruzamento, estão
dispostas formando quatro pátios com claustros de cada lado, tipologia já adotada pelas
enfermarias dos hospitais medievais (HENDERSON, 1989).
No entanto, nos hospitais renascentistas, a presença do pátio é magnificada, como se sua
existência se devesse mais à necessidade de realçar as formas elegantes da arquitetura
neoclássica do que às exigências de intimidade e reclusão dos hospitais medievais. Para dar
uma idéia dessa questão, vale salientar que o pátio interior de um hospital de tipo claustral
– o St. Gall, por exemplo – tem cerca de metade da área de cada um dos oito pátios do
Maggiore.
A adoção de fachadas e de ambientes, que valorizavam as proporções em vez da escala
grandiloquente dos hospitais basilicais, reflete o caráter laico das instituições financiadoras
e mantenedoras – impondo, por certo, uma certa racionalidade na elaboração do projeto –
e, por outro, as tendências neoclássicas de substituir suntuosidade e grandiloqüência pela
simplicidade estética das harmonias geométricas gregas. Lembra Gombrich (1979) que a
beleza das proporções, no ideal renascentista, homenageia o homem e suas organizações;
54
no ideal medieval, o espaço espetacular da basílica reduz o homem e o leva ao culto
divino.
Tudo isso resultaria em uma solução estrutural mais simples. A estrutura repetitiva é
simétrica, com uso de pedra, tijolos e madeira. Os tetos nas enfermarias são planos, em
madeira, apoiados em terças horizontais. As alvenarias em tijolos ou pedra são estruturais
e, muitas vezes, arcos e abóbadas são usados por razões somente estéticas. A exceção é a
abóbada estrutural que serve de teto ao porão e de piso ao único pavimento das
enfermarias, um pavimento com duplo pé-direito, abrandado no pátio interior por um
anexo de arcos e abóbadas em dois níveis – o claustro.
A volumetria do conjunto é definida pela série de interseções de paralelogramos de baixa
altura relativa, com larga predominância das dimensões da planta e destaque para os
espaços abertos. Da perspectiva interior, entretanto, ainda se sente a presença da
religiosidade no cotidiano dos enfermos na ordenação do desenvolvimento da planta a
partir do altar no centro do edifício cruciforme, que ainda recebe iluminação zenital
enfatizadora por sua cúpula destacada da coberta, eventualmente em domo, única inovação
estrutural da Renascença (FLETCHER, 1987).
3.2.2. O tipo casa de campo
A outra tipologia hospitalar renascentista – a casa de campo – teve seus primeiros
desenvolvimentos a partir da Reforma luterana, no século XVI. Com o crescimento, na
Europa central e na Grã-Bretanha, de movimentos de independência dos cristãos com
respeito ao poder do Papa de Roma, a Igreja Católica diminuiu sua presença institucional,
inclusive na área de atenção aos enfermos. O financiamento dos hospitais passou a ser feito
efetivamente pela burguesia mercantil, de modo que se concentravam nas cidades. Para a
manutenção dos hospitais, passou-se a ter financiamento fiscal, na medida em que as
autoridades municipais cobravam taxas da comunidade com esse fim (THOMPSON;
GOLDIN, 1975).
Já havia uma certa pressão por privacidade dos leitos, o que descartava o sentido
coletivista da oração e do rito religioso. Daí que a idéia de colocar os enfermos em contato
direto com as dependências destinadas à atuação direta da Igreja foi sendo abandonada. Ao
contrário, essa idéia é substituída por uma separação bem nítida entre o hospital, agora
civil, e a hierarquia religiosa.
55
Os novos financiadores dos hospitais passarão a adotar, para os edifícios hospitalares, tipos
mais familiares para eles: os palacetes ou casas de campo, os quais propiciariam também a
adoção de uma maior privacidade na internação de pessoas. A solução espacial se libera do
andar único e o hospital do tipo casa de campo, em geral, se define em dois ou três
pavimentos, com plantas em formato H, C, U ou E. A repartição das enfermarias em
quartos com um menor número de leitos era também uma marca distintiva desses hospitais
dos fins da Renascença, o que reforça a origem residencial (casas de campo) do tipo.
Figura 8 – Elevação e plantas do térreo (abaixo, esquerda) e do primeiro piso do London Hospital Legenda: (1) enfermaria; (2) posto de enfermagem; (3) capela; (4) hall de entrada
Pode-se citar o London Hospital,
construído em 1752, como
representativo do período, (ver
FIG. 8). Tinha forma de U,
convexo para a fachada, com
planta perfeitamente simétrica.
Observa-se no exame da planta
que a distribuição dos ambientes
se orienta pelo formato da planta,
pela simetria e pela conveniência
de privacidade dos enfermos. Fonte: desenho próprio a partir de Thompson e Goldin, 1975
Os três pavimentos, articulados por uma circulação vertical central, têm o mesmo formato, e
a privacidade é crescente do primeiro piso para o terceiro: serviços de apoio no térreo,
enfermarias no segundo andar e quartos simples no terceiro. Também cabe destacar que, da
planta, se pode depreender um diálogo entre a visão de conjunto do edifício e a
concatenação das partes, objetivando a manutenção de uma rigorosa simetria e a singeleza
das formas geométricas. Por outro lado, ressalte-se que a hierarquização dos espaços, em
função da conveniência da privacidade, surge como fator de organização das partes do
edifício, o que vai demonstrar a entrada em cena de uma postura de racionalização e de
zoneamento dos espaços e atividades hospitalares.
Em conseqüência dessa associação entre simetria, singeleza geométrica e organização
espacial, os hospitais do tipo casa de campo possuem estrutura e sistema construtivo
bastante simples. As alvenarias autoportantes de pedra ou tijolos se sucedem verticalmente,
grandes vãos são vencidos com apoio de vigas planas de madeira; eventuais arcos e
abóbadas seqüenciais podem surgir com função estético-decorativa. Exceção é feita para o
56
hall de entrada, cujo destaque no conjunto responde ao caráter civil da instituição
hospitalar no período pela valorização do acesso. Nesse ponto, a estrutura e os volumes do
saguão são diferenciados, com o uso de colunas em pedra e de vãos abobados em pé-
direito duplo, sobre arcos de contorno.
Os hospitais do tipo casa de campo seguem a estratégia de distribuição espacial das
enfermarias em paralelo (uma ao lado da outra) ou em seqüência (uma após a outra). Tal
estratégia se materializa no projeto, notam Thompson e Goldin (1975), na forma de
“enfermaria-corredor”, uma vez que se incorpora ao espaço da enfermaria o espaço de
circulação que permite o acesso à enfermaria seguinte. Além do mais, a disposição em
paralelo das enfermarias dificulta a ventilação cruzada (ver FIG. 9).
Figura 9 – Planta de uma enfermaria do London Hospital Legenda: (1) enfermaria; (2) posto de enfermagem; (3) banhos Fonte: desenho próprio baseado em Goldin, 1994
3.3. O hospital iluminista
Segundo Thompson e Goldin (1975: p. 35), o ambiente hospitalar prevalente a princípios
do século XVIII podia ser descrito pela frase seguinte: “... leitos com enfermos que não se
limpavam, colchões úmidos serviam como viveiros de bactérias, pisos mal limpos, água
transportada em baldes desde o pátio, fumaça de óleo das lâmpadas, odores da cozinha
combatidos a salpique de água perfumada”. Às baixas condições de higiene, somava-se a
superlotação, alcançada pela prática generalizada de exceder a capacidade das enfermarias
pela simples instalação de mais leitos (C. H. BOEHRINGER SOHN, 198-).
No entanto, nas últimas décadas do período renascentista, a difusão dos avanços graduais
das ciências médicas, como a Anatomia e a Fisiologia, permitiu que esses hospitais
57
congestionados fossem incorporando elementos técnicos novos e até o ensino “ao pé do
leito” (ROSEN, 1994). A prática cirúrgica desenvolvida principalmente nos hospitais
militares foi definitivamente incorporada aos hospitais civis, junto com o surgimento da
Anatomia Patológica, que embasou o conhecimento médico dos órgãos humanos internos.
Por outra parte, na segunda metade do século XVIII, com Lavoisier, e depois com Pasteur
no século seguinte, o progresso científico na química e na microbiologia possibilitou a
compreensão dos processos de infecção cruzada e de propagação de infecções por
Para Foucault (1998: p. 39), “... até finais do século XVIII, a medicina referiu-se muito
mais à saúde do que à normalidade”, no sentido em que o indivíduo enfermo era
identificado por contraposição à pessoa sã. No século XIX, continua Foucault, a medicina
“... regula-se mais (...) pela normalidade do que pela saúde”, ou seja, a enfermidade passa a
ser entendida como um desvio com respeito a uma condição “normal” da estrutura e do
funcionamento do organismo humano, conhecida em seus detalhes anatômico-fisiológicos.
Assim, a doença pode ser diagnosticada no plano do órgão com funcionamento imperfeito
e a esse órgão se dirigem as prescrições restauradoras. O exercício dessa intervenção
clínica, diz Foucault (1998: p. 226), requereu “uma reorganização do campo hospitalar
(...); foi preciso situar o doente em um espaço coletivo e homogêneo”.
Esse novo espaço hospitalar requer tratamento urbanístico e arquitetônico. Será estudada
cautelosamente a inserção do edifício hospitalar no espaço urbano (FOUCAULT, 2002), a
partir de uma lógica sanitária. Passa-se a avaliar disposições alternativas para a
implantação do edifício no terreno, para a organização dos fluxos e espaços internos e para
a distribuição dos leitos (LABASSE, 1982: p. 132), tendo em vista assegurar “... a
renovação do ar, a destruição dos miasmas, a circulação das pessoas e a manutenção da
ordem”. Estabelecem-se regras de registro e cadastro, códigos de conduta e rotinas,
destinadas a ordenar os comportamentos e obter informações sobre os enfermos e suas
enfermidades. Enfim, institui-se, sobre o quadro do hospital confuso e desorganizado de
princípios do século XVIII, a disciplina e o espírito de supervisão que vai garantir a
“medicalização” do hospital (FOUCAULT, 2002).
Nesse processo, o hospital tornou-se um espaço sob o poder do médico, o profissional
preparado para intervir sobre os enfermos, dirigir o pessoal e decidir sobre as instalações
hospitalares. Sob o poder do médico, crescem de significado a supervisão incisiva, o
58
controle e o monitoramento dos internos e dos fatos hospitalares. Para atender a essas
proposições, surgiram esquemas especiais de caráter panótico, seguindo as idéias de
Jeremy Bentham (THOMPSON; GOLDIN, 1975), para quem a essência da definição
espacial do edifício (prisões, escolas, asilos, hospitais, indústrias) residia na capacidade de
observação direta feita a partir de uma posição central.
Embora as idéias de ordenamento espacial de Bentham não tenham tido influência direta
nas tipologias relevantes do edifício hospitalar do Iluminismo, o certo é que o princípio
básico de que o espaço hospitalar fosse tratado de forma a permitir a supervisão de cada
paciente foi fundamental para a transformação que atingiria o hospital no século XVIII.
Para tanto, tratava-se de enfocar o espaço e as atividades hospitalares, suas dinâmicas e
interrelações, com o objetivo de traçar um “diagnóstico” e estabelecer uma “terapêutica”
(SILVA, 2001): a essência dessa abordagem é a classificação e a observação atenta e
estruturada.
Não se trata apenas de uma descrição, mas sim de observação sistemática, destinada a
produzir material para a análise detalhada que permitirá as sínteses propositivas de atuação
reformadora no hospital. Foucault (2002) ressalta o fato de que o estudo mais significativo
sobre a reorganização dos hospitais no século XVIII teve como responsável o médico
francês Jacques Tenon, estudo que resultou em um conjunto de normas e recomendações
para orientar na concepção e organização dos espaços hospitalares. Dirigidas tanto a
arquitetos como a engenheiros e administradores, as recomendações de Tenon foram
publicadas numa obra intitulada Mémoires sur lês hôpitaux de Paris, que obteve grande
repercussão em vários paises (THOMPSON; GOLDIN, 1975; C. H. BOEHRINGER
SOHN, 198-; SILVA, 2001; IMBERT, 1982).
Tenon, a pretexto de realizar trabalhos vinculados à reconstrução do Hotel-Dieu de Paris,
destruído em um incêndio, deteve-se em analisar e estudar vários hospitais franceses e
estrangeiros. Surgiam, nos trabalhos de Tenon, as primeiras idéias funcionalistas na
arquitetura hospitalar (SILVA, 2001). Em suas pesquisas feitas através de observação
direta, Tenon tentou explicar o hospital pelo viés da utilidade, colocando as relações entre
o desenvolvimento das atividades e o uso do espaço, do ponto de vista simultâneo de todos
usuários, ou seja, o staff e o paciente. A estruturação dos serviços e dos espaços
hospitalares, segundo a orientação de Tenon, seria feita através de pequenas unidades
59
funcionais organizadas a partir de eixos de circulação, tendo como base as relações entre
fluxos e usos (SILVA, 2001).
A partir do estudo detalhado dos gestos e dos movimentos, do mobiliário e dos
equipamentos relacionados a todo usuário do hospital, Tenon, segundo Silva (2001)
estabeleceu uma quantidade máxima de leitos por enfermaria, uma disposição modelar do
mobiliário e dos equipamentos, as dimensões e a volumetria dos ambientes a fim de
proporcionar eficiência e boas condições sanitárias (controle de temperatura, renovação do
ar e iluminação natural) ao edifício. Sobre a obra de Tenon, Foucault é incisivo:
O que Tenon projeta é um espaço hospitalar diferenciado. E diferenciado segundo dois princípios: o da ‘formação’, que destinaria cada hospital a uma categoria de doentes ou a uma família de doenças; e o da ‘distribuição’, que define, no interior de um mesmo hospital, a ordem a seguir, ‘para nele dispor as espécies de doentes que se tiver achado oportuno receber” (FOUCAULT, 1998: p. 46).
Para Silva (2001), Thompson e Goldin (1975) e C. H. Boehringer Sohn (198-), o resultado
das pesquisas de Tenon e suas recomendações levariam à adoção do tipo pavilhonar, em
certa medida antecipado pelos tipos renascentistas (enfermaria cruzada, casa de campo),
para edifícios hospitalares.
Já no século XIX, trabalhando sobre sua própria experiência como enfermeira na Guerra da
Criméia, Florence Nightingale se dedicou a visitar importantes hospitais no mundo e a
analisá-los do ponto de vista de suas preocupações em torno do funcionamento hospitalar,
especialmente das enfermarias. Os apontamentos de Nightingale sobre o projeto
arquitetônico de hospitais foram publicados em dois livros, lançados em 1858 e 1859, com
os títulos de, respectivamente, Notes on Hospitals e Notes on Nursing. Esses livros,
segundo James e Tatton-Brown (1986), exerceram significativa influência no que restava
de século XIX e em boa parte, ainda, do século XX, gerando novas soluções espaciais para
o projeto das enfermarias.
3.3.1. O tipo pavilhonar
A estruturação do espaço do tipo pavilhonar surgido no século XVIII era baseada nas
exigências de salubridade ambiental (ou seja, espaços naturalmente bem ventilados e
iluminados), nas necessidades funcionais de suas atividades (ou seja, de fluxos, dimensões,
e supervisão dos enfermos) e na articulação desses espaços por meio de uma circulação ou
“sistema” de circulações.
60
O hospital pavilhonar foi o tipo consagrado como aquele que se ajusta bem a esses
requisitos, na medida em que o pavilhão, como edifício independente e de laterais livres,
permite obter ventilação cruzada e iluminação natural. Assim, resolve-se o que era tido
como maior produtor de insalubridade hospitalar: a estagnação do ar e a umidade. Além
disso, há que considerar a flexibilidade de posicionar convenientemente os pavilhões, uns
em relação a outros, estruturando os serviços e os compartimentos através dos eixos de
circulação.
Em que pese o fato de os estudos de Tenon terem sido orientados para a reconstrução do
Hotel Dieu, tal projeto nunca foi edificado. No entanto, ele influenciou toda a arquitetura
hospitalar do século XIX. O Hospital Lariboisière, construído no centro de Paris em 1854,
é considerado como sendo um dos principais exemplos de aplicação das idéias de Tenon
(THOMPSON; GOLDIN, 1975; SILVA, 2001). A planta (ver FIG. 10) é formada por um
conjunto de pavilhões, ligados por uma grande circulação e dispostos em volta de um
jardim retangular. O conjunto foi organizado a partir de eixos principais: um longitudinal e
cinco transversais. Esses eixos costuram o “sistema de circulação” de todo edifício
comunicando os pavilhões entre si e com todo o conjunto. Também foi levado em
consideração na distribuição dos pavilhões, a própria organização interna de cada um deles
assim como sua hierarquia funcional.
Figura 10 – Planta do Hospital Lariboisiére, Paris Legenda: (1) enfermarias; (2) refeitórios; (3) escritórios; (4) capela; (5) aposentos das religiosas; (6) cirurgias; (7) posto de enfermagem; (8) cozinha; (9) farmácia; (10) pátio Fonte: desenho próprio a partir de C. H. Boehringer Sohn, 198-
61
Cada pavilhão tinha três pavimentos e sua altura foi calculada a partir da relação com a
largura do pátio entre dois pavilhões, de modo que se garantia o recebimento de insolação
em todos eles e se evitava umidade tanto nos pátios como no interior dos pavilhões. As
enfermarias, por sua vez, eram grandes halls abertos dentro de blocos independentes
retangulares, podendo haver mais de uma por pavilhão. Os serviços de apoio estavam
distribuídos nos diversos pavilhões, construídos em alvenarias externas autoportantes de
pedra e tijolo, as quais davam suporte aos pisos e tetos planos em madeira.
A organização estrutural é repetida em todos os pavilhões, de modo que a disposição de
alvenarias de fechamento no interior do pavilhão depende de que a mesma disposição
ocorra nos pavimentos inferiores. Assim, a volumetria do conjunto é hegemonizada pelas
dimensões da planta do conjunto e pelo arranjo das sucessivas interseções entre pavilhões
prismáticos, mais altos que largos, e o corredor de circulação.
3.3.2. A influência de Florence Nightingale
A vivência como enfermeira em hospitais de campanha, certamente, trouxe a Florence
Nightingale um grande conjunto de conhecimentos sobre o funcionamento de enfermarias.
Suas viagens de estudos em hospitais de toda a Europa, na primeira metade do século XIX,
dariam origem à análise de elementos sanitários do edifício hospitalar, sempre com ênfase
no posicionamento relativo e na qualidade funcional das enfermarias (JAMES; TATTON-
BROWN, 1985). Seu trabalho analisava problemas relativos à higiene, aeração, altura e
orientação dos edifícios hospitalares (PANUNZIO, 1983). Também valorizou o trabalho de
supervisão dos pacientes pela enfermagem, com reflexos na organização espacial das
unidades de internação, mas também com resultados em termos da profissionalização das
enfermeiras.
O espaço da enfermaria proposta por Nightingale era retangular, como no tipo pavilhão
(ver FIG. 11). Na entrada, deveriam estar localizados o posto de enfermagem e uma copa.
Em seguida, estava um grande espaço aberto para disposição dos leitos e, no lado contrário
ao posto de supervisão, por trás de uma parede e com ventilação independente, estavam os
lavatórios e banhos. O posto de enfermagem teria um visor para supervisionar os leitos. Os
leitos seriam posicionados lado a lado, perpendiculares a janelas colocadas de ambos os
lados das paredes, uma a cada dois leitos, e com altura de 90 centímetros do piso, para
possibilitar a ventilação cruzada.
62
As novas idéias de
Nightingale acerca do
ambiente sanitarizado e de
fácil supervisão pela
enfermagem significavam a
rejeição, em base técnico-
científica, da “enfermaria-
corredor” (ver FIG. 9) do
século XVIII. O principal
fator de rejeição era
exatamente o fato de que as
paredes colocadas lado a lado
impediam a ventilação
cruzada, além de reduzirem o
campo visual de supervisão a
partir do posto de enfermagem
(GOLDIN, 1994).
Figura 11 – Enfermaria Nightingale Legenda: (1) posto de enfermagem; (2) área dos leitos; (3) BWCs; (4) material sujo; (5) copa; (6) escada Fonte: James e Tatton-Brown. 1986
3.3.3. O legado do Iluminismo para a arquitetura hospitalar
Do exposto acima, pode-se concluir que, no período iluminista, a arquitetura hospitalar
deixará de trabalhar com plantas derivadas de outros usos – tipos advindos da arquitetura
religiosa ou palaciana – para, por vez primeira, trabalhar com plantas projetadas a partir de
estudos feitos sobre as atividades e necessidades hospitalares. Se as plantas derivadas dos
hospitais medievais e renascentistas se apropriavam de tipos disponíveis, e assim faziam
mais por motivos simbólicos que funcionais, as plantas projetadas dos hospitais iluministas
adotavam uma tipologia nova. Esse tipo pavilhonar se formava em função das novas
atividades hospitalares que, naquele momento, eram já muito mais voltadas à supervisão e
ao cuidado médico dos pacientes de que ao consolo espiritual dos enfermos ou ao
sentimento cívico de comunidade.
Por outro lado, ao contrário do que aconteceu na Idade Média, quando os tipos
arquitetônicos dos hospitais permaneceram quase imutáveis, a tipologia arquitetônica
pavilhonar se desenvolveu e se diversificou fortemente a partir do século XVIII. A
63
preocupação com a ventilação e higiene, respaldada cientificamente por Lavoisier; a
descentralização impulsionada pelas descobertas de Pasteur; a segregação dos trajetos de
enfermos e de pessoal, sugeridas por Tenon; e, a vigilância acentuada proposta por
Nightingale, todas essas contribuições técnico-científicas deram origem a sucessivas
mudanças e a diferentes alternativas na maneira de dispor os pavilhões.
No período iluminista, os pavilhões se liberaram do edifício e seu posicionamento relativo
passou a constituir uma variável do projeto: primeiramente, a solução foi a de dispor os
pavilhões um ao lado do outro; mais tarde, assumiram-se várias soluções, unicamente
restringidas pela necessidade de interligar os pavilhões por meio de um sistema de
circulação. A arquitetura hospitalar tentava colocar em prática as novas idéias e os
descobrimentos científicos, na busca de uma organização espacial adequada a uma
atividade hospitalar que, pouco a pouco, ganhava contornos técnicos e bases científicas,
afastando-se do caráter eclesiástico ou cívico anteriormente dominante. Formava-se o
conceito de hospital “terapêutico”.
Em paralelo, principalmente na segunda metade do século XIX, fatores técnico-científicos
(o conhecimento do processo de contaminação por microorganismos, principalmente) e
socioeconômicos (a busca do hospital terapêutico pelas classes médias e abastadas)
trouxeram à tona a discussão entre supervisão coletiva e privacidade do enfermo, no
âmbito das enfermarias (GOLDIN, 1994).
Assim, o hospital que chega ao século XX, está fortemente marcado pela ênfase na boa
ventilação e na boa insolação, no isolamento de doenças infecto-contagiosas, na higiene
das enfermarias e dos procedimentos, nos sistemas de abastecimento de água potável, de
coleta e tratamento de esgotos, nos laboratórios de análises clínicas, na medicina legal, nas
enfermarias cada vez menores, tendentes à privacidade, e nos postos de enfermagem. Sua
planta é estruturada em zonas funcionais, segundo seus diversos departamentos ou
unidades, comunicadas por um sistema de circulação cuja definição se orienta pelos fluxos
de pessoal, enfermos e materiais.
3.4. O hospital modernista
Os avanços ocorridos na medicina nos séculos XVIII e XIX tinham transformado o perfil
da atenção hospitalar, no sentido de estabelecer progressivamente o hospital como o lugar
da prática médica, do tratamento de enfermos e do restabelecimento da saúde. James e
64
Tatton-Brown (1986: p. 3) descrevem como, na segunda metade do século XIX, foi se
consolidando a “idéia de que os hospitais tinham mais relação com a vida do que com a
morte”. Para tanto, diversas razões se acumularam: o desenvolvimento da anestesia, o
surgimento das técnicas e práticas de assepsia, a formação médica “ao pé do leito” e o
desenvolvimento da profissão da enfermeira laica. Esse processo seria intensificado no
século XX, com o maior acesso a novas tecnologias de apoio ao diagnóstico e o
desenvolvimento da industria farmacêutica.
Em conjunto, tantas razões compõem a força motriz do movimento na direção do hospital
moderno, que oferecia a perspectiva real de recuperação, propunha um certo nível de
privacidade – com as pequenas enfermarias e os apartamentos individuais – e garantia um
grau aceitável de segurança, com a redução das taxas de mortalidade por infecção intra-
hospitalar. Em decorrência, assinala Vogel (1989), a instituição hospitalar passa a ser
gerida mais profissionalmente e a revelar alguma atratividade, inclusive para as camadas
mais abastadas da população, pelo fato de que superava o conforto e a perspectiva de cura
disponíveis em casa.
Entretanto, do ponto de vista arquitetônico, o edifício hospitalar no século XX tardou em
apresentar novidades. As soluções iluministas, já incorporando certa lógica funcionalista,
puderam absorver sem maiores problemas as tendências de valorização do apoio ao
diagnóstico e do procedimento médico. Daí que, embora o Movimento Modernista na
arquitetura possa ser datado com início nas primeiras décadas do século XX, não foi antes
dos anos 1950 que ele se firmou na Arquitetura Hospitalar. Stone (1980: p. 1) afirma que
somente no final dos anos 1950 é que novos conceitos de projetação arquitetônica
hospitalar iriam se materializar em novos edifícios que, uma vez concluídos na década
seguinte, fariam com que a sociedade percebesse que “suas necessidades de saúde
poderiam ser cuidadas em um ambiente moderno”.
O fato é que, depois da Segunda Guerra Mundial, havia uma demanda social e política por
mais leitos hospitalares, tanto na Europa em reconstrução, quanto nos Estados Unidos.
Assim, os serviços de atenção à saúde entrariam em expansão, se ajustando às pressões
políticas e às novas dimensões das políticas de Estado para a saúde (MILLER;
SWENSSON, 2002; JAMES; TATTON-BROWN, 1986). O hospital era então projetado e
construído de modo que a área dedicada a leitos de internação crescia mais que
proporcionalmente às demais áreas. Quando passíveis de reconstrução com ampliação,
65
hospitais já existentes ganhavam ampliação de número de leitos. Esse crescimento do
hospital foi tornando progressivamente mais complexa sua organização e administração,
complexidade agravada na medida em que o avanço da tecnologia médica foi permitindo, e
mais que isso, incentivando um aumento da especialização médica (VERDERBER; FINE,
2000).
O crescimento do hospital se deu de forma mais especializada, contendo novas agrupações
departamentais ou “zonas”, cada uma planejada com requerimentos baseados nas suas
funções precípuas e nas inter-relações com as demais “zonas”. Eram três as principais
“zonas” em que estava então organizado o hospital (JAMES; TATTON-BROWN, 1986):
a zona de internação, onde estavam os pacientes durante a sua estadia no hospital
recebendo cuidados médicos, alimentação e higiene;
a zona clínica, em geral ventilada artificialmente, estava constituída por serviços de
diagnóstico e tratamento, logo associada com equipamentos de alta tecnologia
requeridos para procedimentos em pacientes;
a zona de suporte, que compreende os serviços de administração, nutrição e dietética,
lavanderia, estoque de material, farmácia, esterilização de materiais, áreas de
instalações especiais (gases medicinais, subestação de energia, central de ar
condicionado etc.), tratamento e descarte de resíduos, e todos outros serviços de apoio
necessários para colocar em funcionamento o hospital.
A chave do planejamento hospitalar era a manipulação dessas zonas e suas inter-relações
para produzir um hospital integrado e funcional, em um contexto em que as zonas iam
crescendo em tamanho e complexidade (JAMES; TATTON-BROWN, 1986). Para fazer
frente a esse novo desafio, planejadores e administradores copiaram modelos
organizacionais do mundo dos negócios (MILLER; SWENSSON, 2002): para a
organização e administração do hospital modernista, “eficiência, racionalidade,
produtividade e conformidade tornaram-se conceitos chaves” (DILANI, 2000, p. 20).
Para Dilani (2000), o hospital tornou-se um exemplo ilustrativo da eficiência industrial, de
acordo com as condições e formas de pensar nos anos 1950, caracterizado por uma
racionalização firmemente dirigida e uma conseqüente centralização das funções. O
hospital, concentrado e especializado, passou a ser visto como uma unidade fabril; e a
arquitetura hospitalar refletiu a evolução dos cuidados de saúde na direção da tecnocracia e
da despersonalização. Verderber e Fine (2000: p. 13) apontam como a convergência entre a
66
rigidez dos programas, fluxos e prescrições, de um lado, e os princípios funcionalistas e as
soluções universais, de outro, serviu para consagrar o hospital modernista como a “perfeita
expressão arquitetônica nesse período da medicina de alta tecnologia”, o “contêiner da
volumétrica máquina de curar”.
A partir de então, e por algum tempo, o hospital será alterado somente em sua volumetria,
com base na discussão das vantagens e desvantagens de produzir grandes superfícies
predominantemente horizontais ou verticais, sob o impacto da necessidade de procurar
soluções para abrigar a crescente intensidade de equipamentos no edifício, prever
expansões e aumentos de complexidade e prevenir a obsolescência dos espaços edificados.
Como afirmou Lindheim (1979: p. 71),
Na medida em que os hospitais e a tecnologia médica do pós-Guerra cresceram, o tema arquitetônico mais relevante não era a forma mais cuidadosa de acomodar as necessidades do enfermo mas como construir formas flexíveis para hospedar a constantemente cambiante tecnologia médica (...) Em todo o mundo, o trabalho dos arquitetos foi o de desenvolver sistemas para planejar esses hospitais.
Três tipos podem ser decantados desse esforço de adaptação do edifício hospitalar ao
contexto da segunda metade do século XX, marcada por necessidade de expansão,
aumento de complexidade e risco de obsolescência: torre sobre pódio, rua hospitalar e
sanduíche.
3.4.1. O tipo torre sobre pódio
Com ênfase nas questões da concentração e da eficiência, uma maneira de organizá-las no
edifício hospitalar foi expressa no tipo torre sobre pódio, um T invertido, ou seja, uma torre
de pavimentos que crescia desde uma base. A volumetria do conjunto destaca o
paralelogramo vertical da torre interceptando o horizontal que forma o pódio. Essa
diferenciação correspondia a uma distinção de uso: como regra (JAMES; TATTON-
BROWN, 1986), a zona de internação situava-se na torre, em cuja periferia estavam as
enfermarias; a base, que em geral tinha um ou dois pavimentos, abrigava a zona clínica –
com acesso fácil desde a rua – e a zona de suporte, esta normalmente em andar inferior.
Concentrado e de grandes dimensões, o edifício dependia quase totalmente de
equipamentos mecânicos: utilizavam-se sofisticados sistemas de ventilação e ar
condicionado; elevadores e monta-cargas respondiam pela circulação vertical.
67
A incorporação de uma dimensão vertical importante criava novas possibilidades de
zoneamento e de segmentação funcional dos espaços hospitalares, possibilitada em última
análise pelos progressos no campo dos materiais de construção para estruturas. Se as
paredes autoportantes exigiam, para ganhar altura, consumir grandes áreas nas plantas dos
pavimentos, as estruturas de esqueleto metálico (surgidas com o desenvolvimento
siderúrgico do século XIX) ou de concreto armado (já no século XX) permitiam acúmulo
vertical de pavimentos com poucas repercussões horizontais produzidas por estruturas
relativamente esbeltas. Por outro lado, os novos materiais de vedação, revestimento ou
pavimentação reduziam na mesma velocidade as cargas verticais das edificações,
diminuindo os esforços solicitantes da estrutura e das fundações.
Um bom exemplo do tipo torre sobre pódio é o Hospital Geral Etobicoke, em Toronto,
Canadá (ver FIG. 12). Concluído em 1972, o edifício continha 500 leitos e possuía 38.000
m2 de área construída. A torre abrigava (REDSTONE, 1978) a zona de internação,
enquanto o pódio hospedava, em seus dois andares, as zonas de suporte (no andar mais
baixo) e clínica. Verticalmente, os leitos de internação eram distribuídos nos pavimentos,
separados por especialidade médica. A interseção entre torre e pódio abrigava a
administração e os arquivos médicos.
Todo o hospital era servido por sistemas automatizados de transporte de bens, documentos,
imagens. A zona de suporte centralizava o sistema mecânico de distribuição de materiais e
alimentos em carrinhos que se deslocavam horizontalmente (em monotrilhos) e
verticalmente (em montacargas), segundo um sistema automático de roteamento. Um
sistema pneumático de correio interconectava todos os departamentos e andares. Todos os
pacientes eram acompanhados em seus leitos por um sistema de imagens centralizado, que
coordenava a atividade de enfermagem estruturada em quatro áreas para cada pavimento
de internação. Por fim, o contato entre enfermagem e paciente era minimizado pelo uso de
um armário de porta dupla e compartimentos específicos para entrada e saída de materiais.
A estrutura da torre foi projetada em concreto armado, enquanto que no pódio foi usada
uma trama de vigas metálicas, capaz de prover maiores vãos livres. Destacam-se nos
materiais de vedação e acabamento o alumínio anodizado e o vidro fumê. Todo o edifício
depende de ventilação, acondicionamento de ar e calefação, garantidas mecanicamente,
sendo as instalações distribuídas através de colunas verticais (shafts).
68
Figura 12 –Hospital Etobicoke, no alto; abaixo, plantas esquemáticas do pavimento do pódio (direita) e da torre (esquerda). Fonte: REDSTONE, 1987; JAMES; TATTON-BROWN, 1986.
Observadas conjuntamente, as soluções de estrutura e instalações foram capazes de possibilitar
uma grande concentração de espaços, com uma flexibilidade no uso em face dos grandes
vãos.A verticalização permitiu separar funções, o que favoreceu um tratamento adequado
das relações entre zonas e departamentos. Em contrapartida, essa solução estipulava sérias
restrições a mudanças ou ampliações nas zonas de internação e clínica, enrijecendo o
hospital em face de mudanças tecnológicas nos campos da atenção ao enfermo e do apoio
ao diagnóstico e ameaçando-lhe com forte rico de obsolescência.
3.4.2. O tipo “rua hospitalar”.
O tipo torre sobre pódio não respondia a questões colocadas pelas necessidades de
contínuo crescimento, transformação de funções e incorporação de mudanças tecnológicas
cada vez mais aceleradas. Se as diferentes zonas cresciam a diferentes taxas, alterando-se
suas participações relativas na área total de construção (MILLER; SWENSSON, 2000), a
disposição das zonas em camadas verticais sucessivas, sendo impossível a expansão das
69
áreas de cada pavimento, estabelecia limites claros para a ampliação dos hospitais com
essa tipologia.
Para equacionar essas questões, com ênfase
na possibilidade de expansão para absorver
novas tecnológicas, desenvolver-se-ia um
outro tipo arquitetônico de hospital: a rua
hospitalar. Em fins dos anos 1940, um
projeto (nunca executado) para um hospital
em Hertfordshire, Reino Unido (ver FIG.
13), firmou as bases da estruturação
espacial segundo o princípio de uma coluna
de circulação que vertebrasse blocos
independentes, contendo diferentes
atividades (COX; GROVES, 1981).
Figura 13 – Modelo esquemático em 3D de hospital com base no tipo rua hospitalar Fonte: COX; GROVES, 1981
Esse tipo rua hospitalar, por conseguinte, se adequaria bem a uma época em que, como
afirmou Weeks (1973, p. 464),
funções mudam tão rapidamente que os projetistas não deveriam mais buscar um ótimo ajuste entre edifício e função. O que é realmente requerido é que se projete o edifício que iniba minimamente as mudanças de função, e não que se ajuste melhor a uma função específica.
Nesse sentido, esse tipo era bastante vantajoso. Tanto cada bloco do conjunto já edificado
poderia ser transformado ou expandido, sem que isso provocasse grandes transtornos à
utilização dos demais blocos, como a conexão de novos blocos poderia ser feita segundo
um curso de desenvolvimento reprogramável a cada momento (MONK, 2004). Assim, o
potencial de crescimento da quantidade de leitos, ou do número de espaços clínicos, ou
ainda a introdução de novos espaços com novas funções, e a minimização dos riscos de
obsolescência constituíam os pontos fortes do tipo rua hospitalar.
Toda essa flexibilidade e adaptabilidade provinha, não só do modo de estruturação do
espaço, mas também do uso de um sistema estrutural modulado em grandes vãos, que
aportava – no plano de cada edifício adicionado ao conjunto – a possibilidade de adotar os
arranjos físicos mais condizentes com a futura ocupação. A disponibilidade de novos
materiais para as estruturas, como o concreto armado e o aço, também se ajustavam bem
70
ao tipo “rua hospitalar”. No caso, não é a associação entre leveza e alta resistência o que
importa, dado que os edifícios deste tipo não são necessariamente altos; a característica
importante aqui é a flexibilidade e a possibilidade de projetos modulados, com o uso de
pórticos ou peças pré-usinadas, que se possam edificar por etapas.
Um exemplo paradigmático do tipo
rua hospitalar é encontrado no
hospital geral do Parque Northwick,
em Londres (REDSTONE, 1978;
ver FIG. 14). Ali, foram plenamente
especificados, como primeira fase
do empreendimento concluída em
1969, os projetos da espinha dorsal
– ou seja, da rua hospitalar, eixo de
Figura 14 – Vista geral da 1ª fase do Northwick General Hospital, Londres. Fonte: COX; GROVES, 1982
concentração de circulação e comunicação – e de dois conjuntos de blocos correspondentes
ao extremo leste da “rua” e à área central, em que se situavam instalações hospitalares para
300 leitos.
Figura 15 – 2ª e 3ª etapas previstas para o Northwick General Hospital. Fonte: REDSTONE, 1982
Figura 16 – Vista do interior do Northwick General Hospital.Fonte: REDSTONE, 1982
Segundo Stone (1980), a implantação progressiva do empreendimento foi prevista para
acontecer em três etapas (ver FIG. 15), configurando-se ao final um conjunto de edifícios
de distintas dimensões, implantados de forma ordenada, mas sem excessivo rigor previsto
71
com respeito à exata realização do que se projetou inicialmente. Um detalhe fotográfico do
edifício, na FIG. 16, mostra à direita a rua hospitalar, no nível destinado para a circulação
de pedestres e paciente. Abaixo deste nível há uma rua similar para o tráfego de materiais e
a rede de serviços, que poderiam ser verticalmente separados em determinados trechos,
gerando então três pavimentos. Ao fundo e à esquerda, podem ser vistas fachadas de
edifícios independentes em que se destaca o sistema modular da estrutura de concreto do
exterior, formado por elementos verticais cujo espaçamento se amplia na medida em que se
alcançam andares mais elevados.
No interior de cada edifício, colunas estruturais de concreto moldadas in situ poderiam ser
dispostas mais ou menos livremente, apoiando em pontos estratégicos a laje pré-moldada
em grelha. De modo similar que o estrutural, o projeto de instalações foi desenvolvido em
módulos, usando-se um dos níveis da rua hospitalar para sua distribuição. Assim, no
projeto do Parque Northwick, a modulação estrutural contribuía para a padronização
construtiva e a conseqüente pré-fabricação. Por outro lado, apoiava as intenções do
projetista de obter grandes vãos interiores que permitissem a variabilidade de definição de
usos e espaços internos.
O tipo rua hospitalar apresentava alguns problemas. Os mais evidentes deles prendem-se à
limitação do tamanho dos terrenos e aos longos percursos a serem seguidos por pessoas e
por materiais. Mas também se apresentavam questões ligadas ao alto custo relativo de criar
condições para expansões e adaptações que talvez nem venham a ser necessárias ou
realizadas. Diante desses problemas, esses empreendimentos passaram a ser considerados
caros para construir e manter. A crise econômica dos anos 1970 impulsionou a busca de
alternativas para reduzir custos, mantendo algumas vantagens dessa tipologia.
Novas formas de organização da
planta, utilizadas até os anos 1990,
reduziriam os graus de liberdade
das futuras expansões. Essas seriam
planejadas como módulos prediais
articulados em torno de espinhas
dorsais não mais lineares. É o caso
da solução em malha ou em cruzes
sucessivas (ver FIG. 17).
Figura 17 – Esquema em 3D de solução derivada do tipo rua hospitalar. Fonte: JAMES; TATTON-BROWN, 1986
72
Nessas soluções, portanto, radicaliza-se a repetição e a padronização, favorecendo um uso
mais intenso da pré-usinagem redutora de custos, mas ocasionando menor flexibilidade e
mais regularidade ao desenvolvimento do hospital.
3.4.3. O tipo “sanduíche”
No século XX, o hospital esteve sempre crescendo e mudando. Os diferenciais de
crescimento entre as zonas foram aumentando na medida em que, a partir dos anos 1970, a
pressão por mais leitos diminuiu (MILLER; SWENSSON, 2002). Naquela década, a maior
taxa de crescimento era a da zona clínica, ou seja, a que abrigava a tecnologia médica. Para
suportar mais equipamentos, os espaços requeridos para dutos de ar condicionado e outras
instalações especiais também cresciam. Esses avanços aconteciam com tamanha rapidez
que novas unidades construídas tornavam-se obsoletas antes mesmo de começar a
funcionar. Planejadores e arquitetos eram pressionados a adotar uma posição proativa para
o dilema da rápida obsolescência das unidades. Para Verderber e Fine (2000: p. 118), por
causa dessas rápidas mudanças no campo da medicina, “o hospital máquina (...) tinha se
tornado o mais complexo e imprevisível de todas as categorias de edifícios”.
Uma resposta a esses problemas foi proposta na forma do que se chamou de “espaço
intersticial”, solução que está na base do desenvolvimento do tipo sanduíche. Trata-se de
uma espécie de pavimento técnico, com até 2 metros de pé-direito, intercalado entre dois
pavimentos dedicados às outras funções do edifício. A existência desse semipavimento
dedicado ao caminhamento horizontal das instalações, funcionando como suporte dos
demais andares, viria a possibilitar que os pavimentos normais fossem indiferenciados.
Com o uso de estruturas modulares,
metálicas ou em concreto pré-
fabricado, era possível alcançar
grandes vãos, de maneira que
facilmente se poderiam adaptar os
mesmos espaços a novas
utilizações. Assim (ver FIG. 18), se
distribuíam os dutos e instalações
especiais horizontalmente, e se
poderia caminhar para realizar os
Figura 18 – Esquema do pavimento intersticial. Fonte: VERDERBER; FINE, 2000
73
serviços de manutenção sem interferir no funcionamento do hospital. A conexão vertical
entre os pavimentos se daria através de poços ou “shafts”, pelos quais os dutos das
instalações passavam de um pavimento a outro.
Este novo sistema produzia um aumento no custo do edifício, compensado pela
flexibilidade que o sistema construtivo proporcionava, como também pela vantagem que
aportava à manutenção das instalações. Estas, localizadas entre pavimentos,
completamente separadas do resto do edifício, poderiam ser consertadas ou mantidas sem
interferir nas atividades do hospital. Outra vantagem obtida pela adoção dessa tipologia era
a facilidade com que se podiam reagrupar horizontalmente os diferentes departamentos,
alterar as relações função-espaço, alternar verticalmente localizações: daí a designação de
“espaço universal” que acompanha essa tipologia (REDSTONE, 1978).
O objetivo principal do “espaço universal” era que o hospital não ficasse obsoleto frente
aos avanços das Ciências Medicas, tão rápidos que o tempo da construção do hospital, em
alguns casos, era suficiente para produzir a perda da atualidade do projeto. A adoção do
tipo sanduíche permitia que se construísse o “esqueleto” do edifício, bem como as
instalações dos principais serviços na interplanta de instalações. O espaço resultante
poderia depois ser adaptado a futuras demandas. Paralelamente, eram escolhidos os
equipamentos, dando-se oportunidade de instalar os modelos de tecnologia mais recentes
disponíveis no mercado. Como as perspectivas buscadas eram as de integrar e condensar, a
volumetria resultante para o tipo “sanduíche” é a do bloco, um paralelogramo em que as
dimensões de planta são comparáveis entre si e superiores à altura.
Um bom exemplo deste tipo é o
Hospital Distrital de Greenwich, em
Londres, concluído em 1969. Trata-
se de um edifício que abrigava 800
leitos de internação. Possuía quatro
andares, com pé direito médio de 2,7
metros, um deles subterrâneo (ver
FIG. 19). Acima e abaixo de cada um
dos três pisos superiores, o edifício
tem pavimentos intersticiais para
serviços e instalações mecânicas, com
instalações
Figura 19 – Fachada principal do Hospital Distrital de Greenwich (destaque para os pavimentos intersticiais) Fonte: STONE,1980.
74
1,2 a 1,8 metros de pé direito, interconectados por quatro colunas (shafts) verticais que
também incluem escadas e elevadores. A zona de suporte se completa pela existência de
departamentos de serviços no andar subterrâneo, enquanto que as zonas clínica e de
internação se distribuem entre os demais andares.
A estrutura em concreto pré-
fabricado, mais peças metálicas
servindo de tirantes para suportar o
piso dos pavimentos intersticiais,
apresenta largos vãos livres,
conforme se pode observar na FIG.
20. Todo o edifício é servido por ar-
condicionado e é possível dotar de
acesso, a qualquer tipo de
instalação, qualquer espaço de um Figura 20 – Construção do Hospital Greenwich. Fonte: STONE, 1980.
pavimento. Também não se diferenciam quanto a isto os diferentes pavimentos, de modo
que há, no Greenwich, uma total flexibilidade quanto à distribuição do espaço
arquitetônico para distintas atividades. Tão somente se restringe essa possibilidade com
respeito ao fato de que atividades com forte inter-relacionamento devessem localizar-se em
um mesmo pavimento, evitando-se o transporte vertical nesses casos.
Como se vê, essa tipologia se endereça principalmente para equacionar os problemas da
complexidade e da obsolescência do edifício em face de avanços tecnológicos. Em geral, a
expansão de uma zona em detrimento da outra é possível, mas não há facilidades de
expansão absoluta da área construída total.
3.5. O hospital do período pós-modernista
As soluções modernistas para lidar com os problemas de eficiência, crescimento,
complexidade e rápidas mudanças que se apresentavam no projeto de hospitais foram as
regras adotadas nos anos 1950 e 1960, um período de grandes investimentos em infra-
estrutura de saúde. No entanto, já naquele momento, essas soluções passaram a ser
fortemente criticadas. Adicionalmente à questão dos altos custos, o hospital do período
modernista era então visto como excessivamente concentrado e padronizado (LINDHEIM,
1979). Para Verderber e Fine (2000), a crítica aos hospitais modernos também realçava o
distanciamento entre o hospital e as efetivas necessidades dos seus usuários, na mesma
75
medida do tratamento privilegiado conferido à tecnologia e aos procedimentos médicos nas
decisões arquitetônicas.
Essa afirmação podia ser decomposta em dois planos de análise. No plano mais individual
e familiar do usuário, o hospital moderno podia ser criticado em face da despersonalização
do atendimento ao paciente e da pouca consideração às suas necessidades individuais
(CARPMAN et al., 1986). Já no plano das relações entre o edifício hospitalar e a
comunidade urbana que o abrigava, Verderber e Fine (2000) ressaltam o fato de que,
concebidos para a atenção à saúde em larga escala populacional, os grandes edifícios ou
complexos hospitalares produziam impactos significativos – tráfego, ruído, perda do
caráter de vizinhança por intrusão de edifícios e fluxos não integrados ao bairro,
dificuldades de acesso, entre outros –, sobre a área urbana mais imediata, desproporcionais
aos benefícios diretos e indiretos que para ela produziam.
Por outro lado, a primeira crise do petróleo nos anos 1970, acelerando a inflação e trazendo
recessão econômica, influenciou nos aumentos dos custos da construção hospitalar, quase
provocando sua paralisação. Para Monk (2004), o acirramento e a generalização da crise
fiscal nos países ocidentais também apontava claros limites para a continuidade das
políticas de investimento público e, em todas as áreas de infra-estrutura técnica e social,
viria a fomentar uma tendência mundial à participação de investidores privados na
provisão de serviços hospitalares.
Naquele momento, por todas essas razões, a palavra chave passaria a ser a redução de
custos. O custo dos serviços também se tornara insustentável: a alta tecnologia utilizada
nos serviços de apoio ao diagnóstico e tratamento tornava excessivamente dispendiosa a
atenção à saúde para os seguros, para os institutos públicos e para a sociedade. Foi nesse
sentido que mudaram as políticas governamentais para a saúde. Para Valins et al. (1996), a
nova política enfatizava a prevenção e procedimentos menos sofisticados ou invasivos. A
intenção era, sem redução da qualidade de atendimento, evitar o recurso desnecessário à
alta tecnologia e a intervenções que redundassem em longas estadias do paciente no
hospital.
No caso da arquitetura hospitalar, analogamente, várias propostas surgiam no sentido de
tornar os hospitais mais apropriados à escala humana, ao mesmo tempo em que se
reduzissem os custos de construção e manutenção. As experiências com a planificação e o
76
projeto de hospitais com essas novas idéias só começaram a aparecer a partir dos anos 80,
e vieram essencialmente de dois distintos grupos (VERDERBER; FINE, 2000).
O primeiro – composto por profissionais militando na área da saúde e acadêmicos –
defendia a atenção à saúde centrada no paciente; o segundo, composto principalmente por
provedores públicos ou privados de serviços, se preocupava com os aspectos econômicos
do atendimento hospitalar. Convergiam ambos, a despeito de seus distintos interesses e
objetivos, em que um edifício hospitalar atrativo e convidativo teria um impacto positivo
sobre os clientes. Para os primeiros, em função do bem-estar propiciado aos pacientes e
familiares; para os demais, em função do que aquilo representava para o negócio do
hospital (VERDERBER; FINE, 2000).
A convergência dessas opiniões influiu sobremaneira no hospital a partir dos anos 1980.
As mudanças, no princípio, foram essencialmente de natureza organizacional. Mais tarde,
entretanto, foram imbuídas de imperativo arquitetônico (VERDERBER; FINE, 2000). Em
fins daquela década, foram surgindo resultados de pesquisas que identificavam o ambiente
hospitalar como causa de stress ambiental (MALKIN, 1992). Por outro lado, estudos sobre
os efeitos do ambiente do hospital moderno no usuário obtiveram resultados que
mostravam relações de causa-efeito entre ambiente e stress ou redução de bem-estar dos
pacientes (CARPMAN et al., 1986).
Embora de porte limitado, essas pesquisas iniciais sobre a percepção do usuário do
ambiente do hospital moderno tiveram algum impacto sobre os projetistas e
empreendedores. Tratava-se de um impacto discreto, se comparado com aquele produzido
pelas análises de mercado as quais, em um contexto de competição entre hospitais,
apontavam a necessidade de reformulação dos ambientes hospitalares como diferencial
competitivo no negócio. Produziu-se, então, a necessidade de soluções arquitetônicas
distintas das modernas, principalmente por serem centradas no paciente e não nos
procedimentos e na tecnologia. De acordo com Miller e Swensson (2002), o conceito de
familiaridade surgiu como chave para atender os requisitos desse hospital pós-moderno, ou
seja, para tornar atrativo, humanizar e diminuir o stress nos edifícios hospitalares. Essa
idéia de familiaridade foi formulada segundo duas vertentes.
Na primeira, tratou-se a complexidade hospitalar e a possibilidade de sua expansão como
uma questão de implantação territorial, não mais – como no caso modernista –
77
concentrando-se todos os serviços em um mesmo edifício ou complexo de edifícios
contíguos (VALINS et al., 1996). Assim, a instituição hospitalar passava a se implantar
segundo a lógica de serviços hierarquizados, com unidades articuladas que eram
distribuídas no território, integrando-se de forma mais adequada à comunidade, na qual se
posicionavam de forma menos impactante.
Na segunda vertente, mantinha-se um hospital de referência para os serviços de maior
complexidade, mas esse edifício seria relativamente menos concentrado e menos oneroso
que seus análogos da fase modernista. Ademais, passaria a ser concebido de modo a evitar
a padronização, a rigidez das prescrições e a presença ostensiva da tecnologia médica,
buscando-se espaços mais humanizados, mais atrativos e que viessem a colaborar com o
processo de recuperação dos pacientes (HOSKING; HAGGARD, 1999).
3.5.1. O tipo “shopping / hotel / residência”
Para fazer frente aos novos conceitos e paradigmas diretrizes do ambiente hospitalar, os
arquitetos, nas últimas duas décadas, lançaram mão de três tipos básicos que se
encaixavam em seus objetivos de transformar o hospital em um espaço familiar para
pacientes e para visitantes. Esses tipos foram o shopping center, o hotel e a casa.
O shopping center tornou-se familiar na cultura ocidental como lugar de compras, de lazer
e interação social (MONK, 2004). De acordo com Miller e Swensson (2002), a origem da
idéia de apropriar o conceito do shopping mall em edifícios hospitalares pode ser rastreada
até os longos corredores interligando os edifícios de consultórios aos hospitais em
complexos de serviços médicos. Esses corredores, devido ao grande volume de tráfego de
pessoas neles circulando, passaram a ser usados para abrigar pequenos locais: farmácias,
lanchonetes, floristas, lojas de presentes, entre outros.
À parte o fato de que essa solução agrega valor ao empreendimento hospitalar, é
importante ressaltar que ela possui características outras que são úteis para a organização
do hospital. Por um lado, oferece conforto e segurança a pacientes e visitantes. Por outro,
organiza e facilita a distribuição das circulações e dá flexibilidade aos serviços de
pacientes internos e externos.
Associando esta tipologia contemporânea do shopping center – com significação de lazer e
consumo – às tipologias hoteleiras, o hospital do período pós-moderno visa atingir dois
78
objetivos ao mesmo tempo (VERDERBER; FINE, 2000): por um lado, consolidar-se como
estrutura agradável ao paciente e a visitantes; por outro, oferecer ao paciente interno,
tratado como hóspede, uma atenção mais personalizada.
As repercussões mais propriamente arquitetônicas dessa tendência aparecem de forma
direta, por certo, nas áreas de internação. Mas vão além disso, como lembram Miller e
Swensson (2002), influenciando na oferta de espaços internos desfrutáveis e humanizados
(jardins, áreas de espera, descanso e convivência), mas também nas áreas de lobbies, átrios
e balcões de check-in, estruturas de cozinha e lavanderia. No caso dos apartamentos de
internação, é possível observar que a arquitetura hospitalar tem primado pelo
residencialismo, seja na projetação de quartos com caráter mais pessoal, flexíveis, de
decoração mais próxima àquela que o tipo de cliente tem em seu próprio lar, seja na
possibilidade de que os clientes possam internar-se com bens pessoais (MALKIN, 1992).
Esse tipo de hospital quer se desvencilhar da imagem institucional do hospital impessoal,
associado a doenças, stress, ansiedade. Por isso, segundo Miller e Swensson (2002),
partem da convicção de que ambientes familiares ao paciente e a sua família podem
promover, mais que ambientes não-familiares, a sua recuperação. Daí que, em interiores,
esse tipo de hospital se caracterize pelo uso de texturas, cores, iluminação, mobiliário,
vegetação, todos eles manipulados com conhecimentos oriundos de estudos relativos ao
papel do ambiente no comportamento humano (HOSKING; HAGGARD, 1999). O intuito
é o de conseguir um ambiente confortável, seguro e acolhedor para o usuário dos serviços,
inclusive por interesse de mercado: esses são valores apreciados pelos clientes, e atender
essas expectativas pode ser um diferencial do negócio, em um ambiente competitivo.
Em síntese, as idéias de escala humana e os conceitos de humanização que foram
introduzidos na arquitetura hospitalar mais recente deram origem a um novo tipo
arquitetônico. Embora a consolidação desse tipo seja muito recente, pode-se afirmar que as
diretrizes que ele aponta para a estruturação de forma e as definições espaciais e tectônicas
do edifício hospitalar têm sido seguidas em todo o mundo ocidental (MONK, 2004).
Um exemplo que bem ilustra esse novo tipo arquitetônico pode ser apreciado no caso do
Pine Lake Medical Center, em Mayfield, Kentucky (FIG. 21). O edifício, concluído em
1993, foi concebido para substituir um antigo hospital, de princípios dos anos 1950. O
Centro Médico dispõe de 107 leitos de internação, em 21.000 m2 de área construída. Os
79
serviços da instituição são dirigidos para uma comunidade específica. Para ela, foram
planejados consultórios médicos, serviços de apoio ao diagnóstico, serviço de emergência,
cirurgias de média e baixa complexidade, além de serviços de atendimento a pacientes
externos.
Figura 21 – Reprodução fotográfica, fachada do Pine Lake Medical Center. Fonte: MILLER; SWENSSON, 2002
Esses serviços foram distribuídos em um
pavimento térreo. Acima desse pavimento
foram erguidos dois volumes. O primeiro,
em forma de cruz, com três pavimentos,
onde estão localizados os leitos de
internação. O segundo, retangular, de quatro
pavimentos, onde estão os consultórios
médicos.
No pavimento térreo (ver FIG. 22),
há um lobby circular – na entrada
principal do edifício – que se
interliga a um pátio interno, ao qual
se tem acesso também pela entrada
da torre de consultórios médicos.
Desse contínuo formado pelo lobby,
pátio e acessos parte todo o sistema
de circulação horizontal e vertical
do complexo.
Figura 22 – Planta do térreo do Pine Lake Medical Center.Fonte: MILLER; SWENSSON, 2002
O pátio interno tem um pé direito equivalente a quatro pavimentos, com um teto
envidraçado que cria um fluxo de luz natural que, juntamente com alguma vegetação e
revestimentos, dá ao pátio o aspecto de um átrio utilizado em shopping centers ou hotéis. É
em torno do lobby e do átrio que estão dispostos os serviços administrativos – para todos
os pacientes –, os serviços de atenção e suporte aos pacientes externos, bem como as
unidades comerciais, como a farmácia, um restaurante e a loja de presentes. O centro
cirúrgico e os serviços de apoio, que necessitam de privacidade ou acesso restrito aos
pacientes, são ligados com o átrio através de circulações. Ou seja, o átrio assume um peso
importante na organização dos espaços. É através dele que o usuário entra no edifício e tem
80
acesso aos seus serviços. É valorizado pelo aspecto estético, com grande pé direito,
iluminação zenital, vegetação e outras amenidades ambientais.
No centro do bloco de internação (ver
FIG. 23) em forma de cruz se localiza
o posto de enfermagem, de onde é
mais fácil supervisionar os leitos
distribuídos nas quatro alas. O espaço
de interseção das alas coincide com o
lobby circular do pavimento térreo,
onde estão situados os elevadores que
lhe dão acesso. Como a tendência é
que esse tipo de unidade hospitalar
seja cada vez mais dedicado a
pacientes agudos, a forma de cruz que
se deu ao bloco da internação
também se justifica pela adaptação
Figura 23 – Planta do pavimento tipo da torre de internação, Pine Lake Medical Center.Fonte: MILLER; SWENSSON, 2002
fácil do espaço a uma unidade de terapia intensiva. O outro volume retangular de quatro
pavimentos está acima dos serviços de apoio ao diagnóstico do térreo e complementa esse
serviço. Seu acesso é através de elevadores que estão no átrio.
As instalações estão concentradas em um único pavimento técnico e são distribuídas
através de shafts e forros falsos, não interferindo de forma significativa na configuração
final da edificação. A estrutura de concreto e metal proporciona grandes vãos facilitando
flexibilidade ao layout. Embora seja modulada, a marcação dos pilares ou módulos não é
percebida nas fachadas. Os blocos que se conectam ao átrio não formam volumes
padronizados pela modulação da estrutura, como acontecia no hospital tipo rua. Nem se
pode saber, através do volume externo, onde está cada zona funcional do hospital, como no
tipo torre sobre pódio. Mesmo as fachadas do bloco da internação não têm o mesmo
tratamento externo, como não quisesse ser identificada cada ala da cruz como tendo o
mesmo uso.
No entanto, o átrio assume funções dentro da organização dos espaços semelhantes ao
pátio interno do tipo claustral. Os espaços são organizados a partir dele, são voltados para
ele, dele recebem luz natural e é a ele que recorrem para comunicar-se. Entretanto, sua
81
função é de facilitar o acesso desde o exterior, comunicar, fomentar convívio, ao contrário
do claustro medieval, voltado para o interior, propiciador de isolamento. Assim, o átrio
assume uma preponderância significativa para os hospitais pós-modernos.
Apesar de não haver ainda muitos estudos para avaliar esses projetos, eles já recebem
algumas críticas. Miller e Swensson (2002: p. 74 e 75) dão espaço às palavras do arquiteto
Henry Stolzman, para quem é um equívoco disfarçar um hospital como um “lugar que
associemos a conforto”. Para Stolzman, no pior caso, a tendência tem sido “produzir
hospitais tão estéreis e confusos como sempre, com um pouco de acessórios cosméticos”.
Mas, no melhor caso, os novos hospitais, bem ambientados e planejados com inteligência,
seriam vítimas de um erro de princípio: seguir os protótipos errados. Para Stolzman, um
hospital não pode ser como uma casa; eles têm de ser espaços que reflitam um
conhecimento tecnológico. Da mesma forma, não é um shopping center, no sentido de que
este é um ambiente impessoal, incapaz de dotar os cuidados médicos de dignidade e calor
humano.
Em que pese o fato de este debate conceitual ainda não estar suficientemente amadurecido;
e apesar de que as experiências e suas avaliações é que deverão fazer emergir mais
claramente uma tendência tipológica, o momento da produção arquitetônica no campo da
atenção à saúde indica firmemente neste início de século a consolidação de um tipo
arquitetônico híbrido, com raízes no shopping center, no hotel e na residência.
3.6. Um quadro-síntese da evolução tipológica do hospital ocidental
Neste capítulo, buscou-se estudar a evolução da arquitetura hospitalar no Ocidente,
abarcando-se um período que vai da Idade Média até a contemporaneidade, com a
finalidade de construir uma matriz de referência para a análise da evolução tipológica de
arquiteturas hospitalares locais, ou regionais.
Tendo em vista sintetizar os elementos mais essenciais da análise realizada, esta seção
apresenta um quadro-resumo das conclusões obtidas no capítulo (Quadro 1A a 1J, a
seguir).
82
Quadro 1A – Síntese da evolução tipológica da arquitetura hospitalar no Ocidente
MedievalPeríodo
Tipo ClaustralIn
stru
men
to 1
Espaços organizados a partir de um pátio interno, por meio do qual são estabelecidas as
inter-relações entre os compartimentos e as relações destes com o exterior da edificação.
Através do pátio, os espaços interiores recebem iluminação, servindo ele também para
preservar a intimidade do edifício com respeito à área externa. O consolo espiritual é
exercido a semelhança dos ritos religiosos dos monges, privilegiando a relação dos
enfermos com a religião. A disposição dos espaços segue uma hierarquia em que o
conjunto pátio-claustro é o elemento mais valorizado, seguido pelas quatro enfermarias,
o refeitório e a capela, e por fim, as latrinas e a cozinha.
3 Estrutura em concreto armado, com lajes colméia ou protendidas, com o fim de garantir
grandes vãos livres, pisos e tetos planos em todos os pavimentos, mesmo os intersticiais.
O contorno do edifício é marcado pela presença de colunas e vigas periféricas de grande
porte.
Palavras-chave: grandes vãos, estrutura aparente, estrutura modular independente
Con
figu
raçõ
es c
orre
spon
dent
es
91
Quadro 1J – Síntese da evolução tipológica da arquitetura hospitalar no Ocidente
Pós-modernismo Período
Tipo Shopping center/hotel/residência In
stru
men
to 1
Os espaços são organizados em torno de um pátio interno, considerando a idéia de
familiaridade, atendimento menos impessoal e humanizado. As atividades são agrupadas
por função e seu posicionamento relativo leva em conta, além das rotinas médicas e das
necessidades de fluxo e tecnologia, as necessidades dos pacientes internos. O pátio
interno ou átrio é o espaço mais valorizado da edificação, responsável por consolidar um
ambiente agradável para pacientes e visitantes, ambiente esse reforçado pelo caráter
residencial das acomodações de quartos e enfermarias.
Palavras-chave: foco no paciente, humanização, familiaridade
Inst
rum
ento
2 A planta se desenvolve a partir do átrio, ao qual se conectam compartimentos ou grupos
de compartimentos, seja diretamente ou por meio de circulações. O átrio tem altura de
mais de um pé direito, encerrado em teto que permite iluminação zenital. Os grupos de
compartimentos formam volumes diferentes entre si, não havendo um volume
predominante no conjunto, exceção feita ao destaque do átrio.
Palavras-chave: diferenciação interior, átrio,
Inst
rum
ento
3
As soluções estruturais são diversificadas mesmo no âmbito de cada projeto, com uso de
concreto, madeira ou metal segundo indique a situação. Salienta-se a solução usual para
átrios e lobbies, estruturados mediante vigas e pilares de contorno e panos de coberta em
treliçados metálicos tridimensionais. Nas áreas de internação, a estrutura é menos
evidenciada, embutindo-se pilares e vigas em alvenarias e disfarçando-se as lajes colméia
ou planas por forros falsos em pvc, madeira ou gesso.
Palavras-chave: diversificação, flexibilidade
Con
figu
raçõ
es c
orre
spon
dent
es
Capítulo 4
Implantação de hospi ta is em Natal
ao longo do século XX
93
4. Implantação de hospitais em Natal ao longo do século XX
Este capítulo visa a caracterizar o conjunto de edificações hospitalares implantadas em
Natal desde fins do século XIX, conjunto que constitui o objeto empírico da dissertação.
Por certo, a caracterização dos hospitais de Natal requer a elaboração de um pano de
fundo, definido, para os fins desse trabalho, com base nas políticas de saúde adotadas no
país e nas demandas sociais advindas do desenvolvimento da cidade, no período enfocado.
A periodização adotada na análise se impõe, ante outras opções, em face de dois
elementos: a evolução das políticas de saúde no Brasil, segundo indicam análises históricas
do tema; por outro, os recortes temporais correntes na literatura dedicada ao
desenvolvimento urbano de Natal no século XX. Desses fatores, resultou uma proposta de
tratamento do tema em cinco períodos consecutivos, a saber:
a Primeira República (1889 – 1930);
dos anos 1930 até o imediato pós-Guerra (1930 – 1945);
da redemocratização ao golpe militar de 1964 (1945 – 1964);
a ditadura militar (1964 –1985);
de 1985 ao presente (1985 – 2004).
Os limites desses períodos não devem ser entendidos como rígidos, pois é usual que
políticas públicas revelem uma certa inércia em momentos de transição, além de que a
elaboração, a maturação e a execução de projetos de edifícios hospitalares têm prazos
médios a longos, em função de seu porte e de sua complexidade técnica e financeira.
A estrutura do texto segue a periodização adotada, de modo que cada período da
enumeração acima é analisado em uma das cinco seções centrais (da 4.2 até a 4.6) do
capítulo. Esse núcleo central é antecedido por uma seção (4.1) que caracteriza a situação
hospitalar de Natal na época pré-republicana, e sucedido por uma seção conclusiva (4.7),
em que se apresenta uma síntese das conclusões mais relevantes do capítulo.
Cabe mencionar também que uma síntese das informações apresentadas neste capítulo
sobre cada hospital é incluída no Anexo II, segundo os períodos de análise, para os quais se
destacam os elementos mais relevantes do contexto.
94
4.1. Política de saúde pública e a situação do hospital em Natal no Brasil Imperial
Até já avançado o século XIX, embora fossem preocupantes as altas taxas de mortalidade,
o Brasil ainda não contava com uma política de saúde pública identificável como tal
(IYDA, 1993). O processo de urbanização brasileira ainda era incipiente em meados do
século XIX e só ganharia feição mais significativa já em fins dos anos 1800 (COSTA,
1986). Por outra parte, o Estado brasileiro era então fragilizado pela presença de instâncias
subnacionais que embargavam seu funcionamento efetivo (FAUSTO, 2000). Portanto, nem
o problema urbano se alçava a alturas preocupantes, nem a contrapartida pública de
organização de serviços de saúde era fornecida por um Estado-nação ainda se formando.
Nesse quadro, Costa (1986) assinala que as autoridades locais atuavam apenas com uma
abordagem urbano-higienista da saúde pública, tomando medidas de limpeza pública e de
aterramento de corpos d’água estagnada. Scliar (1987) assinala a presença de hospitais
filantrópicos e beneficentes, implantados por personalidades da vida social e econômica ou
pela Igreja Católica, contando com trabalho voluntário e com a presença de membros de
ordens religiosas. Pequenos auxílios financeiros das autoridades provinciais, entretanto,
não tinham a necessária continuidade e sua efetiva consecução era dependente do esforço
de lideranças políticas ou do prestígio de associações comunitárias. Saliente-se o caráter
segregacionista desses primeiros hospitais, mais assemelhados a “depósitos” para isolar da
sociedade os enfermos, com o objetivo de barrar eventuais processos de contágio em larga
escala. O caso típico é o das “Misericórdias”, cujo primeiro exemplar no Brasil é o
Hospital da Santa Cruz da Misericórdia de Santos, de 1543. Esse tipo de instituição, de
origem ibérica, se estenderia pelo Brasil afora em capitais provinciais e até por cidades do
interior (CAMPOS, 1952), constituindo-se em uma rede de instituições autônomas entre si,
mas guardando sempre o modelo básico de espaço para guarida a enfermos desvalidos.
A situação de Natal repete o quadro com maior ênfase. Fundada em 1599, a cidade teve um
crescimento irrelevante até a segunda metade do século XIX. Segundo Oliveira (2000), por
essa época, a ocupação do território natalense concentrava-se nos bairros da Cidade Alta e
da Ribeira, expandindo-se até o bairro das Rocas de forma rarefeita5. Nas últimas décadas
do século XIX, principalmente com a inauguração do porto em 1872, o bairro da Ribeira
destacou-se como localização preferencial de atividades econômicas comerciais ligadas ou
5 Todas as menções feitas neste capítulo à localização dos hospitais e a bairros de Natal podem ser vistas em sua representação cartográfica no Mapa 1, em anexo.
95
não à exportação (CASCUDO, 1999). A atividade industrial era então incipiente, pouco
mais que pequenas fábricas de tecido, óleo comestível e sabão. Com essa base econômica,
não é de estranhar que as estimativas de população registrem pouco mais de 16.000
habitantes em Natal, no ano de 1900 (CLEMENTINO, 1995).
Até 1856, a pequena população da cidade não contava com atenção hospitalar: não há, até
então, qualquer registro de hospital em Natal. Os relatos dos Governadores de Província ao
Governo Imperial (FUNDAÇÃO VINGT-UN ROSADO, 2001) apontam para epidemias
de varíola, sarampo e febres, histerias e epilepsia. No entanto, não havia médico residente
na Província nem qualquer forma de tratamento ou atenção especializada aos enfermos. Na
ausência de uma política nacional de saúde, e face aos parcos recursos provinciais, a única
medida que se registra na vida da Província até meados do século XIX, na área da infra-
estrutura edificada da saúde pública, é a aquisição de uma palhoça “acanhada (...), tão
arruinada que pouco poderá durar” (FUNDAÇÃO VINGT-UN ROSADO, 2001, p. ), em
que o Governo da Província depositava as pessoas pobres vítimas de moléstias.
Em face desta situação, entre 1822 e 1856, os relatórios anuais da província solicitavam
recursos ao Imperador para a construção de uma Casa de Caridade. Em meados da década
de 1850, uma forte epidemia de cólera e sarampo obrigou o governador provincial a
adquirir, ampliar e reformar uma casa para abrigar os enfermos indigentes, à qual
denominou de Hospital da Caridade, implantado em 1856 (OLIVEIRA, 2000).
Localizado na Rua da Salgadeira, na encosta da Cidade Alta em direção ao Rio Potengi, no
que era então o limite Noroeste da área urbanizada da cidade, o Hospital da Caridade era
mantido pelo Governo provincial e por doações de instituições de caridade, com recursos
insuficientes para dotá-lo de pessoal especializado. Tratava-se, de fato, de um galpão
anexado a uma
casa de oitões, aonde deviam ser recolhidos doentes escravos, presos e pobres [...] 176 palmos e 53 de largura, sem forração, em que foram acomodados os repartimentos necessários ao hospital (FUNDAÇÃO VINGT-UN ROSADO, 2001, p. 634).
A próxima implantação hospitalar em Natal, de acordo com Araújo (197-) foi o Lazareto
da Piedade, depois Hospital de Alienados, inaugurado em 1882. Repetia-se o mesmo
esquema de financiamento do Hospital da Caridade, tanto para construção quanto para
manutenção. Tratava-se de uma simples casa reformada, destinada a abrigar loucos e
96
furiosos – até 1911, quando foi renomeado Asilo de Alienados, também recebia vítimas de
epidemias – sem recursos para receber atenção particular. Informa Silva (1989) que a
entidade localizava-se além dos limites construídos da cidade, em terreno onde hoje se
situa o Centro de Saúde do Alecrim. Até 1916, não havia atuação médica na instituição, o
que confere ao Lazareto um caráter exclusivo de segregação de enfermos.
Por fim, já nos primeiros anos da República, em 1892, o governo estadual implantava o
Hospital São João de Deus, a ser mantido por verbas provinciais e doações de filantropos,
dedicado a receber tuberculosos pobres, incapazes de custear tratamentos da doença em
suas residências. Localizado no bairro das Quintas, era uma casa simples, bastante apartada
dos limites urbanizados de Natal (ARAÚJO, 197-).
Assim, chega Natal ao século XX com uma precária infra-estrutura física de saúde pública.
Observe-se que as instituições hospitalares implantadas na segunda metade do século XIX
têm alguns pontos em comum, a saber: o governo provincial arca com o investimento
inicial e reparte com a caridade, associada ou particular, os encargos de custeio; têm
caráter de guarida a enfermos e desvalidos que não podem ser atendidos em seu lar; por
fim, são instituições segregacionistas, sendo seu objetivo principal o de proteger a
sociedade de enfermidades contagiosas ou mentais. Além disso, a estrutura física é um
galpão ou casa, adaptada ao acolhimento de enfermos, sem preocupações de ordem
sanitária, situada nos limites da cidade ou além deles.
4.2. A Primeira República: a construção das políticas públicas de saúde e suas
repercussões nos hospitais de Natal
Durante a Primeira República (1889-1930), os fatores inibidores da posta em prática de
políticas públicas de saúde — fragilidade do Estado nacional e urbanização incipiente —
foram sendo superados (FAUSTO, 2000). Com o crescimento da população urbana e das
cidades, foi se problematizando a saúde pública em bases técnicas. Era um processo de
construção que, antecipando-se e depois se deixando moldar, absorvia idéias do
movimento sanitarista da década de 1910 (a Liga Pró-Saneamento do Brasil), ressaltando-
se aí a conscientização acerca da interdependência sanitária, ou seja, da ineficiência de
circunscrever espacial ou socialmente enfermidades transmissíveis (HOCHMAN, 1998).
Outro elemento de convencimento coletivo, de interesse para a compreensão do
comportamento das elites regionais, é apontado por Scliar (1987): as epidemias nas cidades
97
portuárias inibiam o comércio exterior, que era vital para a acumulação do capital
mercantil naquele momento do desenvolvimento nacional. Nesse sentido, o papel de
Oswaldo Cruz na chefia da Direção Geral de Saúde Pública (DGSP, repartição do Governo
Federal para a Capital do país) foi vital para o período por seu efeito demonstrativo.
Encarregado de sanear a Capital do país, Cruz obteve êxitos no combate às epidemias,
evidenciados pela expansão de suas medidas a outras sedes portuárias importantes. Mas, a
generalização dessas políticas encontrava resistência no modelo federativo então vigente, e
seriam necessários esforços substanciais para que as elites locais abrissem mão de suas
atribuições em prol de uma atuação centralizada (HOCHMAN, 1998).
Concretamente, uma investida na direção de uma política nacional de saúde pública pôde
ser contemplada (PERES, s/d) com a criação da Justiça Sanitária, a obrigatoriedade da
vacinação antivaríola e da notificação de certas doenças, o estabelecimento dos serviços de
saneamento e profilaxia rural — na década de 1910 —, atingindo-se o clímax com a
criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) em 1920, ainda subordinado
à Pasta da Justiça e Negócios Interiores.
O DNSP, inspirado no DGSP de Oswaldo Cruz e dirigido por Carlos Chagas, nascia para
coordenar as ações de saúde pública no país (SANGLARD; COSTA, 2004, p. 109), “de
forma mais direta no Distrito Federal e, por meio de convênios, nos estados”. Hochman
(1998, p. 84) informa que o decreto de criação do DNSP estabelecia “ [...] uma inspetoria
específica vinculada diretamente à Diretoria Geral” dedicada ao combate à hanseníase e as
doenças venéreas. Para Rocha e Veiga (2004), esse fato – associado à compreensão de
que o tratamento e isolamento dos hansenianos era atribuição estatal e não uma questão de
caridade pública – revela como o Estado brasileiro de princípios do século XX assumia a
implantação de políticas sanitaristas, à revelia das críticas e até de revoltas sociais, como a
Revolta da Vacina.
Uma outra inovação importante surgida na Primeira República são as CAPs – Caixas de
Aposentadorias e Pensões, instituídas em 1923 com o objetivo de criar, nas empresas
ferroviárias, uma entidade previdenciária para os empregados, a ser administrada por estes
e pela empresa, sem interveniência estatal direta. Sobre o modelo CAP, que dominaria a
cena até 1931, Oliveira e Teixeira (1989) informam que as Caixas asseguravam a prestação
de serviços médicos de duas distintas formas: no princípio, as CAPs contratavam a
98
assistência junto a profissionais médicos; em 1926, foram autorizadas a organizar seus
próprios serviços médico-hospitalares.
No campo das edificações hospitalares, cabe mencionar os projetos de Luiz de Morais
Júnior para o DGSP e para o Instituto Soroterápico de Manguinhos, ambos dirigidos por
Nota: Para o caso do Hospital Infantil, o enquadramento no grupo tipológico pavilhonar é preliminar. Como se verá adiante, a análise desse hospital irá entendê-lo como um exemplar isolado, por suas características tipológicas inovadoras.
Observe-se que o exemplar que fixa a presença do tipo colônia entre os hospitais de Natal,
o Hospital Colônia São Francisco, é o primeiro dos dezoito hospitais analisados a ser
implantado, em 1929. Nesse período da Primeira República, a ação consorciada dos
Governos federal e estadual tinha entre seus principais objetivos o financiamento de
políticas de combate à hanseníase. Tal combate era feito principalmente por meio da
segregação dos enfermos com respeito à vida social urbana, com implantação e
166
custeamento (este também apoiado por organizações de caridade e filantrópicas) de infra-
estrutura hospitalar.
A localização do Hospital Colônia São Francisco corresponde a esse modelo
segregacionista que é uma marca importante do tipo colônia. Mas o São Francisco não foi
financiado ou gerido pela Igreja Católica, presença que está na base da formação do tipo na
Idade Média, conforme se pode ver no capítulo 3.
Ressalte-se que, de acordo com os dados e informações levantados neste trabalho, a
presença da Igreja Católica na implantação ou apoio a hospitais em Natal não é tão
significativa quanto pode ser em outras cidades, o que pode explicar a inexistência na
cidade de hospitais afiliados aos tipos claustral, basilical e enfermaria cruzada, de todos os
que mais intensamente registram a presença da religião. Além disso, é importante salientar
que Natal nunca contou com uma Casa de Misericórdia, uma instituição que se espalhou
pelo Brasil desde o século XVI, em geral vinculada à Igreja Católica.
Por sua parte, entretanto, a sociedade civil local destaca-se nas primeiras décadas do século
XX por sua organização e por iniciativas vinculadas ao processo de modernização da
cidade. A Maternidade Escola Januário Cicco foi, como se detalhou no capítulo 4,
resultado de uma ação da sociedade civil organizada. A Maternidade representa, dentre os
hospitais de Natal, o tipo casa de campo, cuja formação remonta ao período renascentista.
Como o projeto de arquitetura pode ser datado no período entre 1928, ano em que se
divulgou a intenção do empreendimento, e 1932, quando tiveram início as obras de
construção civil (ver capítulo 4), pode-se considerar que a Maternidade – finalmente aberta
ao público em 1950 – é um exemplar que reflete as condições contextuais da década de
1920.
Essas condições, em que a sociedade civil desempenhava um papel importante na
modernização da cidade, podem estabelecer um nexo com o tipo casa de campo. Embora
fosse sendo suplantada ao longo dos séculos XVIII e XIX pela pavilhonar, a solução
tipológica da casa de campo ainda continuou a se fazer presente em muitos edifícios
hospitalares no mundo ocidental até próximo do século XX.
Assim, a apropriação ao projeto arquitetônico da Maternidade Escola do tipo casa de
campo pode ser entendida como simples resultado da permanência e da fixação deste tipo,
167
mas, não se pode deixar de levantar a possibilidade de que a decisão arquitetônica tenha se
dado em conexão com a natureza cívica do empreendimento que levou à implantação do
hospital.
Em que pese o fato de a configuração geométrica do projeto da Maternidade Escola
vincular-se claramente à casa de campo, a análise tipológica revelou a presença, na
organização dos espaços, de princípios funcionalistas que compõem o tipo pavilhonar em
sua vertente de final do século XIX.
Isso demonstra que o projeto, embora tenha lançado mão de uma forma do passado, pôde
incorporar soluções funcionais dele contemporâneas, em uma clara demonstração de que o
projetista fez a opção de adotar o tipo casa de campo – talvez por seu valor simbólico para
a iniciativa cívica – ante a possibilidade de usar o tipo pavilhonar, mais ajustado ao modo
de organização interior dos espaços em um hospital com as características da Maternidade.
Esse exercício da opção do arquiteto, revelador de um determinado grau de conhecimento
tipológico, pode ser mais bem apreciada no caso do Hospital Infantil. Inaugurado em 1936,
o Hospital Infantil teve suas obras iniciadas em 1923, o que situa o seu projeto
arquitetônico ao redor do início daquela década. A natureza do empreendimento, como no
caso da Maternidade, era de uma entidade civil da sociedade, igualmente liderada por um
médico.
A análise tipológica do projeto mostrou que o Hospital Infantil pode, a princípio, ser
afiliado ao tipo pavilhonar, mas constitui de fato um caso de hospital em que o arquiteto
se aprofundou nas possibilidades tipológicas do edifício. Para diferentes grupos funcionais
de atividades, o projetista adotou distintas configurações geométricas e princípios
organizadores dos espaços da arquitetura hospitalar precedente, buscando apropriar e
mesclar, de forma racional, soluções tipológicas de diferentes períodos do passado.
Os demais exemplares locais que testemunham a presença em Natal do tipo pavilhonar
aparecem entre princípios da década de 1940 e meados da década de 1960, praticamente
coincidindo com o período posterior à Segunda Guerra (1945-1964).
Suas implantações derivam de duas diferentes iniciativas. De um lado, os hospitais
públicos que se constroem no âmbito de programas do Governo federal na área da saúde
pública, voltados para o combate às enfermidades infecto-contagiosas e para o tratamento
168
de doenças mentais. Na primeira linha estão o Evandro Chagas – de 1943, especializado
em doenças tropicais – e o Getúlio Vargas – de 1966, especializado em tuberculose. No
caso das doenças mentais, tem-se o João Machado, 1958.
De outra parte, estão as iniciativas conducentes à Policlínica, de 1944, e à Casa de Saúde
São Lucas, de 1952. Nestes casos, o empreendimento era dirigido por grupos de médicos
locais que financiavam com recursos próprios a construção do hospital, cuja clientela-alvo
era a população beneficiária dos IAPs. Observa-se que esses hospitais estão direcionados a
serviços de cirurgia geral e clínica médica, diferentemente dos hospitais públicos
especializados do mesmo período.
Nesses hospitais privados, de caráter terapêutico, está presente o conhecimento técnico-
científico e o médico é a principal autoridade. Como se pode ver na análise deles realizada,
as atividades terapêuticas já apresentam um certo nível de estruturação, organizando-se em
vários espaços de acordo com rotinas e procedimentos. Também está presente a tecnologia
de diagnóstico, por meio dos exames de raios-x e laboratório de analises clínicas.
Distinguem-se claramente os hospitais privados dos públicos pelo que revelam de interesse
por privacidade na internação. Os hospitais pavilhonares públicos vão do grande hall
aberto de enfermaria do Evandro Chagas até o Getúlio Vargas, em que os leitos são
distribuídos por enfermarias menores. Enquanto isso, nos hospitais privados do período
pavilhonar (Policlínica e São Lucas) já se nota a presença mais significativa de
apartamentos individuais e de dois leitos. Em que pese essa distinção, vale salientar que a
opção pelo tipo pavilhonar é consistente no setor privado e no setor público, em todo o
período que vai de final dos anos 1920 até os anos 1960.
Em geral, os hospitais pavilhonares de Natal se informam tipologicamente das variantes
mais recentes do tipo, normalmente com uma organização espacial que remonta aos
princípios funcionalistas de fins do século XIX. Essa persistência do tipo pavilhonar em
Natal está provavelmente vinculada ao fato de que esses hospitais do período, tanto os
privados como os públicos, eram ainda de pequeno porte, de baixo nível de resolutividade
e com incorporação de um pequeno grau de tecnologia nos equipamentos de diagnóstico. É
só final do período 1945-1964 que, no Getúlio Vargas, vão se aplicar princípios
funcionalistas mais abrangentes na organização espacial, embora ainda se adote a solução
pavilhonar.
169
Uma mudança tipológica só vai ocorrer no fim dos anos 1960, quando do projeto do
Walfredo Gurgel, hospital público inaugurado em 1971, na onda do financiamento pelo
Governo Federal de hospitais de grande porte de natureza curativa. O Walfredo é, em
Natal, o primeiro hospital de grande porte (150 leitos), de grande resolutividade e com seus
serviços estruturados de acordo com as primeiras normas para planejamento e construção
de hospitais, estabelecidas pelo Ministério da Saúde, normas que ainda não refletiam
totalmente os princípios da organização espacial pertencentes aos tipos do período
modernista.
Como hospital de grande porte, o Walfredo é uma resposta hospitalar ao crescimento
urbano experimentado por Natal nos anos que sucederam à Segunda Guerra. A solução
tipológica adotada é a do hospital concentrado, com uso intensivo de pavimentos
empilhados, configurando a torre sobre pódio.
Também afiliados a essa mesma tipologia, vieram na seqüência do Walfredo, o Santa
Helena e o PAPI, ainda no período 1964-1985, e o Memorial, no ano de 1990. Todos eles
eram de iniciativa privada, financiados com recursos bancários intermediados pelo FAS, e
se dirigiam a uma clientela de classe média emergente na cidade, pagante com recursos
próprios ou dos primeiros planos ou seguros de saúde, bem como a prestar serviços
contratados pelo INPS.
Todos eles seguem parcialmente as normas e os princípios de funcionalidade vigentes na
época foram, também parcialmente, incorporados. Em função de seu pequeno porte e de
terem média resolutividade, com serviços não totalmente estruturados, sua afiliação ao tipo
torre sobre pódio não é integral.
Como último componente desse grupo tipológico, tem-se o Natal Center, inaugurado em
2002. Esse hospital é, dentre todos os analisados, o que mais bem se enquadra nas
definições tipológicas. A iniciativa privada de um grupo de médicos, com financiamento
bancário, tocou o empreendimento com objetivos de lucratividade. A clientela-alvo é
constituída de portadores de seguro ou plano de saúde privado. Construído, como os
demais desse grupo tipológico, em áreas urbanas de alto adensamento, a verticalização é
necessária para abrigar uma grande quantidade de leitos, o alto nível de resolutividade e os
serviços complexos e bem estruturados.
170
O projeto do Natal Center adotou princípios funcionalistas dos tipos hospitalares do
período modernista, embora trabalhando com as normas vigentes, mais flexíveis, da RDC-
50. Trata-se de caso que chama a atenção, uma vez que apropria uma solução tipológica
que não guarda coerência com o contexto do período recente de sua implantação,
estendendo a vigência do tipo torre sobre pódio em Natal.
Um outro tipo modernista presente entre os hospitais analisados é o rua hospitalar, ou
hospital rua. Dois exemplares de hospitais públicos edificados em áreas periféricas na
Zona Norte de Natal, que à época de suas implantações registravam, como ainda hoje, um
processo acelerado de crescimento populacional, são nitidamente afiliados a essa tipologia.
Trata-se de hospitais – o Santa Catarina, de 1986, e o Maria Alice Fernandes, de 1998 mas
com obras iniciadas dez anos antes – que foram planejados para integrar-se a uma rede de
serviços hierarquizada, com a necessidade de guardar possibilidades de expansão e
diversificação de serviços. Seus princípios de organização espacial são absolutamente
funcionalistas, ressaltando o caráter sistêmico do hospital, com foco principal na eficiência
de rotinas e procedimentos. Também correspondiam a um período ainda marcado pela
rigidez das normas ministeriais (Portaria 400) e respondem a preocupações construtivas de
redução de custo, pela via da modulação e da padronização de componentes.
É essa rigidez que vai ser quebrada pela presença de exemplares afiliados parcialmente ao
tipo shopping/hotel/residência, um grupo tipológico cuja implantação se concentra no
período entre 1995 e o presente. Dele constam três hospitais – Promater, Femina e do
Coração –, todos eles construídos por grupos de médicos, organizados economicamente de
maneira empresarial, e irrompem no cenário de uma saúde pública marcada pelo
crescimento dos planos e seguros de saúde, em que a competição pelo cliente é uma
preocupação do empreendimento hospitalar.
Os três hospitais têm em comum a presença de um átrio ou pátio, cuja função é receber e
dar conforto aos pacientes, além de distribuir os fluxos que se originam fora do edifício.
Como já se comentou, esses hospitais seguem, nas outras áreas interiores do edifício, os
princípios funcionalistas de organização do espaço, de modo que a apropriação dessa nova
tipologia – que se caracteriza por transferir ao cliente e ao paciente a sensação de
familiaridade e exclusividade de atendimento –, se atém àqueles elementos vinculados ao
171
entorno do átrio, o que pode ser explicado em função da expressividade desses espaços no
aspecto comercial.
Observa-se que os resultados da análise tipológica, em síntese, apontam que, em geral, os
agrupamentos dos hospitais analisados pelos diferentes tipos revelam coerência com as
condições contextuais estudadas no capítulo 4. Há que reiterar a ausência dos tipos mais
ligados às origens católicas do hospital (o claustral, o basilical e o enfermaria cruzada), ao
mesmo tempo em que salientar que a ausência do tipo sanduíche pode ser explicada pelo
fato de que Natal não apresentava, à época da sua vigência, as condições de grande
demanda por serviços de altíssima tecnologia que se impõem como necessárias à
implantações de hospitais deste tipo.
No que concerne à sucessão dos grupos tipológicos identificados na arquitetura hospitalar
de Natal, cabe verificar em que medida ela reflete ou se distingue da evolução verificada
no capítulo 3 para a arquitetura hospitalar ocidental.
Recolocando os tipos ocidentais, pode-se estabelecer que eles evoluíram dos tipos
medievais identificados como claustral e basilical, mais ligados à noção católica do
hospital, para os tipos renascentistas da enfermaria cruzada e, posteriormente, da casa de
campo. A exceção a esse processo de substituição tipológica diz respeito ao tipo colônia, o
mais longevo dos tipos hospitalares, que foi largamente usado em todo o mundo até o
século XX.
Os tipos renascentistas foram suplantados, no Iluminismo, pelo tipo pavilhonar, cuja
vigência por cerca de dois séculos possibilitou que fosse sendo adaptado para exibir
distintas vertentes – umas referidas a variações nos princípios de organização espacial
(diminuição progressiva da quantidade de leitos por enfermaria, incorporação progressiva
de elementos funcionalistas, por exemplo), outras a novas disposições relativas entre
pavilhões e circulação, outras ainda para incorporar soluções tectônicas surgidas no século
XIX.
Só ao redor da metade do século XX é que os tipos modernistas ganharam proeminência,
para serem logo contestados nos anos 1980 pelo tipo híbrido de shopping, hotel e
residência que se qualifica hoje como dominante.
172
Ao comparar essa evolução com o caso de Natal, pode-se verificar que os tipos claustral e
basilical não marcaram presença hospitalar em Natal, pelas razões já expostas
anteriormente. A análise feita em dezoito hospitais constatou, tão somente, que o Hospital
Infantil e a Femina fazem referência ao claustro, mas redefinindo-o e requalificando-o,
tanto espacialmente quanto funcionalmente. Por sua vez, o tipo colônia esteve presente já
em princípios do século XX, através do Hospital Colônia São Francisco.
Já mencionada e discutida em detalhe a experiência do Hospital Infantil, o próximo
apontamento tipológico em Natal é a casa de campo, representado na Maternidade. Já se
expôs anteriormente uma série de razões pelas quais pode-se considerar que a Maternidade
é tipologicamente assimilável à casa de campo, mas que isso se deveu a uma decisão
projetual, uma vez que a solução pavilhonar já era reconhecida e disponível. De toda a
forma, pode-se registrar aqui um desvio do sequenciamento tipológico natalense com
relação ao ocidental.
Feitos esses comentários sobre os primeiros hospitais da cidade, há que salientar que, em
verdade, a primeira onda mais sistemática de construção de hospitais em Natal já nasce
com a vinculação ao tipo pavilhonar, que se fez presente na arquitetura hospitalar da
cidade por cerca de quarenta anos, a partir de finais da década de 1920.
Da mesma forma que no processo evolutivo geral o pavilhonar foi sendo desenvolvido
tipologicamente ao longo de sua vigência, em Natal o uso desse tipo vai se aperfeiçoando
do início (Evandro Chagas) para o fim (Getúlio Vargas) do período de sua vigência. Esses
desenvolvimentos também são similares aos que se verifica em termos ocidentais:
enfermarias menores, maior abrangência da noção de funcionalismo, soluções de planta
geometricamente mais elaboradas, passagem progressiva da alvenaria portante para o
concreto armado.
Da mesma forma que no caso geral, em Natal o tipo pavilhonar é substituído pelos tipos
modernistas, que depois dão lugar ao tipo contemporâneo, híbrido de shopping center,
hotel e residência. O intervalo modernista dos anos 1960 a 1980, em que os tipos torre
sobre pódio e hospital rua fizeram presença em Natal, é bastante próximo, historicamente
falando, do intervalo de vigência desses tipos – e mais o tipo sanduíche – em todo o
mundo.
173
O único elemento discordante é a ausência, pelos motivos já mencionados anteriormente,
do tipo sanduíche em Natal. Pode-se observar também que a introdução do tipo rua
hospitalar em Natal é posterior à do tipo torre sobre pódio, da mesma maneira que no
quadro ocidental estudado. Enfatize-se outra vez o fato de que um exemplar do tipo torre
sobre pódio é implantado em Natal já neste século XXI, constituindo isso um elemento de
desconformidade entre os sequenciamentos tipológicos ora comparados.
Por fim, a substituição dos hospitais modernistas pelos pós-modernistas também reflete
uma tendência mundial. A diferença no caso de Natal é que essa substituição aparenta ser,
hoje, apenas um movimento de transição, na medida em que resulta de apropriar elementos
tipológicos dos hospitais modernistas no âmbito de uma visão humanizada e, ao mesmo
tempo, comercial do hospital. Assim, ainda não se verifica em Natal a presença de um
hospital que haja absorvido totalmente as características do tipo shopping
center/hotel/residência.
Uma vez verificado esse sequenciamento, cabe discutir os fatores que, em Natal, induzem
a suplantação ou substituição de um tipo por outro. Nessa discussão, há que definir a priori
os momentos em que se procede a evolução de um para outro tipo, bem como estabelecer
previamente uma sistematização dos fatores relevantes para a indução de mudanças.
Examinando o quadro, já exposto e discutido, dos movimentos tipológicos no itinerário da
arquitetura hospitalar de Natal, pode-se por em destaque cinco grandes momentos, a saber:
a entrada em cena do tipo pavilhonar, em finais da década de 1920;
a incorporação progressiva de vertentes mais desenvolvidas do tipo pavilhonar, ao
longo do período 1945-1964;
a substituição do tipo pavilhonar pelo tipo torre sobre pódio, na década de 1960;
a introdução do tipo rua hospitalar, na década de 1980;
a emergência, nos anos 1990, do tipo shopping/hotel/residência.
Por outro lado, com base na análise realizada no capítulo 3, é possível elencar os potenciais
fatores indutores de mudança para verificar seu papel em cada um dos movimentos acima
detalhados, quais sejam:
natureza e intensidade das necessidades e demandas sociais;
políticas públicas de saúde;
174
natureza e objetivos da iniciativa do empreendimento;
conhecimento científico e padrão tecnológico;
tecnologia construtiva.
A emergência do tipo pavilhonar na arquitetura hospitalar em Natal se dá de forma a
refletir a atuação conjugada desses fatores. Nas décadas de 1910 e 1920, como já se expôs
no capítulo 4, a cidade registrara a duplicação de sua população, ao mesmo tempo em que
um processo modernizador se implantava, com base em ações públicas e da sociedade civil
no campo do planejamento urbano, da construção de infra-estruturas, da implantação de
serviços públicos etc.
Um elemento central desse processo era a questão da higiene e da saúde pública e, nesse
âmbito, o problema da carência de infra-estrutura hospitalar na cidade. Ao mesmo tempo,
forjavam-se no Governo Federal as primeiras políticas nacionais de combate a
enfermidades infecto-contagiosas e a doenças mentais, cujo escopo incluía a implantação
de hospitais especializados nas principais cidades do país.
Nesse quadro, a demanda da sociedade local vai se articular com uma ação federal
organizada, com base técnico-científica, em que o projeto do edifício hospitalar se dá de
modo a incorporar conhecimento médico e a buscar um certo padrão de eficiência
funcional (higienização e sanitarização ambiental, organização das tarefas na enfermaria,
entre outras). O tipo pavilhonar havia sido desenvolvido na Europa, e continuava ainda
sendo adotado em princípios do século XX em todo o mundo, porque dava respostas de
caráter médico a essas necessidades, respostas mais precisas e eficazes que os tipos
anteriores, uns mais ligados ao caráter religioso do hospital, outros ao seu caráter cívico-
institucional.
Assim, tanto se prestava o tipo pavilhonar para materializar-se em edifícios hospitalares
públicos, vinculados a políticas federais tecnicamente definidas, quanto permitia sua
apropriação ao projeto de hospitais de iniciativa privada de grupos de médicos, uma vez
que incorpora a noção de autoridade científica do profissional de medicina e realça a sua
importância na sociedade (a “medicalização” do hospital terapêutico, instituição
responsável pela cura das enfermidades).
Entretanto, ao longo do período de cerca de 40 anos em que dominou o cenário tipológico
do edifício hospitalar em Natal, a análise realizada pode detectar que o tipo pavilhonar
175
apropriado nos projetos foi progressivamente incorporando novidades e avanços, o que se
denominou neste trabalho por vertentes tipológicas.
Esse segundo movimento na evolução tipológica dos hospitais de Natal vai se processar na
medida em que crescem as exigências quanto ao padrão tecnológico dos serviços prestados
pelo hospital e quanto a sua organização, mas também pelo crescimento de demandas
sociais por maior privacidade na internação. Tal mudança, entretanto, vai requerer a
incorporação em larga escala da tecnologia construtiva do concreto armado, liberando a
organização dos espaços da rigidez das alvenarias portantes e flexibilizando o uso de vãos
mais livres para o posicionamento de atividades.
O domínio local das possibilidades do concreto armado e das vedações cerâmicas leves é
um fator imprescindível para viabilizar o seguinte movimento tipológico, de superação do
tipo pavilhonar pela torre sobre pódio, na década de 1960. O cenário para essa substituição
de tipos, entretanto, é multifacetado.
A cidade havia crescido, em população e em território urbanizado, e se desenvolvido
economicamente no período posterior à Segunda Guerra, requerendo um número bem
maior de leitos de hospital geral para atenção à saúde. A política pública nacional de saúde
estava centrada no edifício hospitalar, disponibilizando-se recursos públicos – recursos do
FAS a partir de 1974 – para sua construção, tanto por iniciativa pública, quanto pela
iniciativa privada.
Ademais, enfatizava-se o caráter curativo do hospital por meio de incorporação ao edifício
hospitalar de maior tecnologia de apoio ao diagnóstico, o que requeria um edifício mais
vertical, mais concentrado, projetado segundo estritas normas técnicas, para garantir maior
número de leitos de internação, maiores espaços técnicos e de suporte, além de maior
eficiência nas rotinas e procedimentos.
Paralelamente à vigência do tipo torre sobre pódio, na primeira metade dos anos 1980 vai
se agregar ao cenário tipológico do hospital natalense um outro tipo modernista: a rua
hospitalar. O hospital rua surge como opção em Natal em face do crescimento periférico
urbano das duas décadas anteriores. Na medida em que a cidade adquiria uma dinâmica de
crescimento na Zona Norte, havia que, em consonância com a política nacional de
hierarquização da rede de saúde pública, implantar hospitais flexíveis, aptos a serem
176
posteriormente expandidos, o inverso do hospital concentrado e acabado do tipo torre
sobre pódio.
Um último movimento tipológico registrado é a emergência nos anos 1990 de uma vertente
de apropriação do tipo hospitalar pós-modernista, um tipo híbrido de shopping center, hotel
e residência. Como já se demonstrou na análise dos três hospitais de Natal afiliados a esse
tipo, essa apropriação do tipo não tem sido integral, mantendo-se elementos tipológicos
dos tipos modernistas (principalmente do torre sobre pódio) e absorvendo elementos do
novo tipo.
Os fatores intervenientes nesse movimento são principalmente derivados das necessidades
e demandas interpostas aos hospitais por uma sociedade, e Natal não é uma exceção, que
nas últimas décadas passou a ter uma abordagem comercial da atenção à saúde. Nesse
processo, em muito alimentado pela falência da atenção pública à saúde da população,
originou-se uma demanda de mercado por serviços hospitalares, ancorada nos planos e
seguros de saúde, pelas quais os hospitais passam a competir. Nesse sentido, a política
pública tem sido orientada à flexibilização das normas técnicas de projeto, orientando-se o
financiamento ao setor privado para as linhas de atuação do BNDES.
Mas, em Natal, essa competição ainda não amadureceu a ponto de os novos conceitos de
foco no cliente, foco no paciente, humanização, personalização, entre outros terem sido
completamente assimilados na concepção de empreendimentos hospitalares, menos ainda
na dos edifícios hospitalares correspondentes.
Capítulo 6
Conclusões
178
6. Conclusões
A origem dos questionamentos que motivaram o trabalho de pesquisa que redundou nesta
dissertação remonta aos anos 1980. Ante as prescrições rígidas da normativa então vigente
no Brasil para o projeto e construção de unidades de atenção à saúde (a Portaria n. 400, do
Ministério da Saúde), em especial ante a definição prévia de configurações gerais para o
edifício hospitalar, cabia questionar-se em que medida tal definição era correta, desde
quando era assim e até quando seria.
No caminho buscado para responder àquelas indagações, pôde-se vislumbrar que a base
para entendê-las melhor guardava uma relação com a História da Arquitetura. Não uma
história dos edifícios – em que, como diz Pérez-Gómez (1991, p. 15), a história da
arquitetura é sintetizada em algo parecido com uma “coleção de borboletas” –, mas uma
história interpretativa da arquitetura como produto de um diálogo entre o ato criativo do
projeto, o precedente arquitetônico e o contexto físico-social, com suas necessidades e
demandas socioeconômicas e políticas, mas também com sua cultura, seu conhecimento e
sua tecnologia.
Essa ampla interpretação da história da arquitetura foi sistematizada por Sir Banister
Fletcher (1987) em fins do século XIX e, como afirma Newton (1991, p. 47), “oferece uma
compreensiva análise tipológica” ao entender que cada solução arquitetônica surgiu em
resposta a exigências formuladas por um contexto específico, fixou-se e depois foi
suplantada por outras soluções que mais bem respondiam a contextos novos, surgidos de
transformações da sociedade.
O trabalho de investigação cujo resultado material concreto é esta dissertação fundou sua
plataforma teórico-conceitual naquela “história tipológica” de Fletcher, que também
forneceu as raízes mais fundamentais da estrutura metodológica aqui adotada. Entretanto,
há duas considerações relevantes a serem feitas neste capítulo conclusivo.
Em primeiro lugar, na medida em que o foco do trabalho de pesquisa se dirigia para uma
arquitetura setorial específica e singular como a arquitetura de hospitais, houve que
promover adaptações significativas no conceito de contexto. Enquanto no procedimento
historiográfico de Fletcher o contexto é um entorno geoeconômico e político geral, aqui o
179
conceito de contexto foi redefinido de forma menos geral e mais precisa (ver capítulos 3 e
4, respectivamente para os casos dos contextos referentes às evoluções tipológicas do
hospital ocidental e do hospital em Natal). Enfatizaram-se principalmente os aspectos
culturais, socioeconômicos e políticos mais diretamente ligados à saúde pública e aos
hospitais, na intenção de abarcar um contexto capaz de influir mais diretamente nas
configurações arquitetônicas, seja para fixá-las, seja para transformá-las.
Em segundo lugar, tendo em vista todo o debate acumulado nos últimos quarenta anos em
torno da noção e do conceito de tipo, não havia sentido em fixar-se nas definições
tipológicas que Fletcher, implicitamente, adotou para descrever as arquiteturas dos seus
distintos contextos histórico-geográficos. Buscou-se então internalizar ao trabalho de
investigação a construção conceitual requerida para constituir uma matriz de análise
tipológica operativa com vistas a sua aplicação à arquitetura hospitalar.
A pesquisa referida à construção do conceito operativo de tipo, e de sua correspondente
matriz de análise, teve como resultado o capítulo 2 desta dissertação. Ali, pode-se observar
que a compreensão do debate pós-moderno em torno do tipo e da tipologia resultou no
entendimento de que haveria que buscar as raízes teóricas do conceito em sua formulação
inicial, no século XIX.
A razão para tanto consiste em que o uso do conceito de tipo trabalhado por seus
estudiosos contemporâneos está contaminado por entendimentos e interpretações
divergentes e conflituosas, na mesma medida em que esses estudiosos reiteram a
importância de Quatremère de Quincy, Durand e Viollet-le-Duc para a formulação do
conceito e remetem às suas obras para lastrear apologias ou restrições ao tipo e à tipologia.
Resolveu-se, então, na impossibilidade de uma leitura crítica de toda a obra desses
teóricos, centrar o foco da pesquisa naqueles autores contemporâneos que se dedicaram à
interpretação do conjunto de suas obras – Lavin (1992), para Quatremère; Picon (2000) e
Villari (1990), para Durand; os comentários de Hearn em Viollet-le-Duc (1990), para o
mesmo –, independentemente da valoração relativa que esses intérpretes deram ao papel do
conceito de tipo nas respectivas produções daqueles teóricos.
Sem embargo, foram incluídos na revisão bibliográfica os textos mais nucleares das obras
dos três teóricos com respeito aos conceitos de tipo e tipologia, conforme indicaram as
listas de referências da literatura que, neste trabalho, representou a parte mais relevante da