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UM DESAFIO FILOSOFIA SARTREANA
NA PAIXO DE OS QUE BEBEM COMO OS CES
Maria Cludia Araujo1
RESUMO
Neste artigo, problematizamos as premissas de Sartre sobre a
paixo humana, por intermdio da filosofia
sartreana e do Cristianismo, ambos presentes nas entrelinhas de
Os que bebem como os ces. Nosso objetivo evidenciar o arranjo
estrutural do romance, em dilogo com a historicidade; apresentar a
praxe crist e o
utilitarismo como polaridades que apontam para o nvel religioso
da obra; alm de suas antinomias
discursivas, como a violncia e a ascese, no plano literrio e
social. Palavras-chave: Sartre; Assis Brasil; Filosofia;
Literatura; Paixo de Cristo.
ABSTRACT
In this paper, we question the assumptions of Sartre on human
passion, through Sartre and Christianity, both
present between the lines of Those who drink like dogs. Our goal
is to highlight the structural arrangement of the novel, in
dialogue with the historicity; present the Christian praxis and
utilitarianism as polarities
pointing to the religious level of the work, in addition to
their discursive social antinomies, such as violence
and asceticism in the social and literary areas.
Keywords: Sartre; Assis Brazil, Philosophy, Literature, Passion
of Christ.
RESUMEN
En este trabajo, nos cuestionamos los hiptesis de Sartre sobre
la pasin humana, a travs de Sartre y el
cristianismo, ambos presentes entre las lneas de Los que beben
como perros. Nuestro objetivo es destacar la disposicin estructural
de la novela, en dilogo con la historicidad; presentar la praxis
cristiana y el
utilitarismo como polaridades sealando el nivel religioso de la
obra; adems de sus antinomias sociales
discursivas, como la violencia y el ascetismo en la esfera
literaria y social.
Palabras clave: Sartre; Assis Brasil, Filosofa, Literatura,
Pasin de Cristo.
1 Pesquisadora pela CAPES; doutoranda em Cincias da Religio,
mestre em Literatura e Crtica Literria e especialista
em Literatura, pela PUC-SP. membro do grupo de estudos
Categorias da Narrativa, no qual foi realizada esta pesquisa.
[email protected]
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INTRODUO
Toda realidade humana uma paixo.
Sartre (1997, p. 750)
Sartre conclui O ser e o nada (1997, p. 750), obra cannica
publicada em 1943, com a
seguinte premissa: a paixo do homem inversa de Cristo, pois o
homem se perde enquanto
homem para que Deus nasa. Mas a idia de Deus contraditria, e nos
perdemos em vo; o homem
uma paixo intil. Existencialista ateu com pendores niilistas,
intrigou muitos escritores e crticos
do sculo XX, visto que foi tambm um renomado romancista. Um
deles o jornalista Francisco de
Assis Almeida Brasil (1975), que bebe da obra do filsofo, mas ao
mesmo tempo confronta suas
teorias comunistas no romance Os que bebem como os ces,
publicado em 1975. vlido considerar
que para Sartre (1967, p. 248-249): Um anti-comunista um co.
A temtica de superfcie da obra sempre um fragmento do real para
um esteta, pois, como
afirma Barthes (2003, p. 33), o real lhe serve apenas de
pretexto para falar de algo mais relevante
como os dramas interiores do ser humano. Desse modo, o narrador
em terceira pessoa, com foco na
primeira, aparenta descrever o que a ditadura, tema explcito em
questo, quando sua verdadeira
inteno intensificar a ambiguidade da narrativa, como se no
houvesse em tais divagaes
nenhuma resposta predominante para o conflito um recurso
evidente para promover a reflexo
dialgica acerca das demais temticas que vo surgindo no decorrer
do discurso.
O protagonista um homem sem memria, encarcerado em uma cela,
tentando
compreender o que o teria levado quela circunstncia. Nas mediaes
do crcere, circulam soldados
cruis que vigiam sua conduta. Os outros homens que habitam celas
paralelas, em condies
idnticas sua misria, tambm so hostilizados pelos tiranos ao seu
redor e representam a
conscincia sofredora (p. 27) da personagem. Esses homens so
ainda uma metfora do amor ao
prximo como a si mesmo, pregado por Jesus (Mt 22, 39), na medida
em que o protagonista
aprendeu a am-los e a acat-los como se fossem o seu espelho. (p.
11) Finalmente, de um
buraco (p. 121), surge um casal de ratos que passa a frequentar
o espao onde habita o prisioneiro,
com o propsito de roubar o seu alimento.
A situao de agonia, o corpo, as vestes e os caracteres
psicolgicos que vo sendo
delineados na personagem e nos seus semelhantes apontam para a
Figura e a Paixo de Cristo, o
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horizonte ali era o muro caiado (p. 33), contexto esse que ser
analisado, a seguir, mediante uma
comparao da estrutura do romance com as quatroze estaes da Via
Crucis trajeto seguido por
Jesus Cristo, do Pretrio de Pilatos at o Calvrio , alm de
correspondncias com filosofemas,
imagens evanglicas, fragmentos bblicos e literrios.
O romance2 de Assis Brasil dialoga com o conto O muro e o
romance A nusea, ambos da
autoria de Sartre, e a afinidade se d pela via dos
existencialismos cristo e ateu, abordados tambm
pelo filsofo (1987, p. 5), cada qual com a sua caracterstica. O
romance apresenta ainda um
paralelismo com Mathilde, personagem de Stendhal (1998), que um
polo oposto da Matilde de
Assis Brasil.
As filosofias sartreana e crist no so as nicas abordagens do
romance, visto que o autor
tambm traz para a discusso os valores utilitaristas da sociedade
do sculo XIX, ainda presentes na
ps-modernidade, em contraposio aos valores tradicionais, cristos
e idealistas da famlia,
evidentes nas descries do protagonista. E embora o papel da
literatura no seja se submeter ao real,
mas recri-lo, a arte tambm no deve fugir ao real (p. 164),
justifica-se o narrador.
O nvel metalingustico e semitico do discurso reflete, portanto,
a dinmica de criao do
esteta, de modo que o texto, segundo Barthes (2004, p. 273),
quando concebido como um espao
polissmico, pode entrecruzar vrios sentidos possveis. O sentido
para Barthes (2008, p. 68),
porm, s pode nascer de uma articulao, a qual, na obra de Assis
Brasil, uma crtica filosfica
e social que tem por objetivo enaltecer a ascese crist,
discutida nos tpicos finais desse artigo.
O nvel estrutural da narrativa e a Via Crucis de Cristo
A atividade estruturalista comporta duas operaes tpicas:
desmontagem e arranjo. Barthes (2003, p. 52)
O romance Os que bebem como ces apresenta em sua estrutura
arranjos paradigmticos e
sintagmticos, em eixo estrutural linear e horizontal, bem como
vertical, e sua combinao de signos
forma quatorze ciclos; do mesmo modo como a estrutura da Via
Crucis apresenta quatorze estaes.
O exerccio da Via Sacra, proposto pelo Cristianismo, um convite
piedade, atravs da meditao
sobre a Paixo de Cristo. Nos ciclos do romance, por sua vez, h
uma desmontagem e uma
2 O romance, para Barthes (2004, p. 262-266) , um texto: a
mensagem escrita est articulada como signo [...] O texto
pode coincidir com uma frase tanto quanto com um livro
inteiro.
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reconstruo do evento histrico, com o objetivo de materializar
essa Paixo.
Barthes (2003, p. 51) afirma que o objetivo de toda atividade
estruturalista, seja ela
reflexiva ou potica, reconstruir um objeto, de modo a manifestar
nessa reconstituio as regras
de funcionamento (as funes) desse objeto. (p. 51) Para Barthes
(2003, p. 33), no apenas o
discurso estrutural como tambm a prpria palavra, que ainda uma
matria.
O discurso metalingustico do narrador do romance se funde,
portanto, com as aes
catalticas da personagem e deixa entrever que a escolha do lxico
no ocasional: Ia construindo o
seu vocabulrio e j de posse dessa trilogia sensvel, disps-se a
tecer a teia de sua vida ali. (p.
39) Para Barthes (2004, p. 276), todo texto um tecido novo de
citaes passadas. Logo, a cela do
romance remete ao crcere de Jesus; o ptio, ao patbulo (p. 117);
e o grito, sua ao derradeira
na cruz.
Os captulos esto interligados e propem linearidade narrativa,
por outro lado, h tambm
uma circularidade que ocorre atravs da rotina do homem que vive
entre a cela, onde come, e o ptio,
onde lava suas roupas, e sempre no final da etapa de cada ciclo
h o episdio do grito, que intensifica
a situao de desamparo e abandono, tanto por parte do
protagonista, que a princpio no gritava,
como por parte dos homens das outras celas que passam a motiv-lo
atravs dos gritos. A estrutura
da narrativa ritualiza, portanto, a Via Sacra, a considerar que
todo ritual opera pela lgica da
repetio ou da reatualizao de um evento primordial.
A caminhada ou o trajeto de Cristo, representados na Via Sacra
crist, so concretizados
pelo caminhar do protagonista no romance, que aponta tanto para
o cansao do Salvador quanto para
a sincronia e a diacronia da prpria obra: E caminhou, caminhou,
em linha reta ou em crculos, at
sentir que todo o seu corpo palpitava, e um leve suor comeava a
aparecer em seu pescoo, em sua
fronte. (p. 80)
A pessoa do Cristo e a crucificao, porm, no so dadas no enredo e
devem ser captadas
nas entrelinhas do discurso sincrnico, bem como nos caracteres
das personagens, que so bastante
evidentes. O homem tinha a barba comprida e estava nu, as
costelas mostra (p. 17), as cicatrizes
dos pulsos haviam sarado. (p. 33).
Segundo o arquelogo Gibson (2009, p. 129), no tempo de Jesus, a
pessoa era crucificada
nua, aumentando a humilhao geral diante de outras pessoas. E, de
acordo com exames feitos no
Sudrio, uma das hipteses aceitas pelos cientistas a de que Jesus
possa ter sido pregado nos pulsos
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e no nas mos; o que justifica os pulsos feridos que aparecem no
decorrer do romance inteiro,
enfatizados ainda mais no final, onde a morte entra em cena com
total imponncia.
Na primeira estao da Via Crucis, Jesus condenado morte. O
primeiro ciclo do romance
marca esse episdio atravs de um paralelismo potico que
materializa o luto, com um verso na
primeira linha do primeiro captulo: A escurido ampla e
envolvente. (p. 7), o qual repetido na
ltima linha do primeiro ciclo: A escurido ampla e envolvente.
(p. 14).
Na segunda estao, Jesus carrega a cruz s costas. No segundo
ciclo do romance, o
narrador vai mostrando os movimentos da personagem: A princpio
ficou de p [...] Mas tinha que
voltar ao cho, de qualquer maneira, ou suas ltimas foras se
desvaneceriam. (p. 14) Os
movimentos da personagem vo mostrando, portanto, a dificuldade
do percurso: experimentou ficar
de joelhos (p. 14). A atmosfera do ambiente do segundo ciclo
denota ainda a presena farisaica,
atravs da parede caiada (p. 20) do cenrio que vai sendo composto
pelo narrador.
Na terceira estao, Jesus cai pela primeira vez. Nesse ciclo, o
narrador vai materializando o
conceito da Paixo ao mostrar o peso da cruz e o esforo que Jesus
teve de fazer para tentar ajeit-la
em seus ombros: Agora j sabia como se sentar primeiro, para
depois se debruar lentamente sobre
um dos ombros. (p. 21). O estado de letargia da personagem marca
o cansao de Jesus, o semi-sono
no o levava ao descanso. (p. 21)
Na quarta estao, Jesus encontra sua me. No quarto ciclo,
pergunta o protagonista: --
onde ter ficado a mulher que minha me? (p. 30) E ele questiona o
fato de no ter podido gritar
por ela ou por nenhum nome querido: Por qu? (p. 30) Nesse quarto
cliclo, a personagem se
depara com sua me, de fato, e tanto consegue v-la que o narrador
lhe d uma voz para expressar
esse encontro, como se ambos estivessem de frente um ao outro:
Me! E ele lana ento o
seguinte nome prprio, que tambm um adjetivo: Dulce! (p. 34).
Na quinta estao, Simo Cirineu ajuda a Jesus. No quinto ciclo do
romance, Jesus
delineado no protagonista com esses caracteres: domesticado e
cordeiro (p. 38). E o modo que o
narrador decide mostrar que Jesus no conseguia mais carregar a
cruz, atravs da descrena
materializada nas descries cticas que permeiam o discurso: A
abboda azul no passava de uma
cpula de mentira (p. 41-42) A luz do sol no existia, o cu era
artificial (p. 42). Aquele azul
profundo doa nos olhos, no havia estrelas, no havia nuvens, e a
luz no vinha de um determinado
ponto. (p. 43) Definitivamente, o narrador trata de mostrar que
no houve um cu verdadeiro na
mente de Jesus, no momento em que ele tibubeou ao carregar a
cruz.
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O ceticismo instaurado no discurso tende a promover uma reflexo
crist, pois quem no
cr, no consegue suportar o peso de uma cruz. A descrena
enfatiza, portanto, no a fraqueza fsica
de Jesus, que evidente na personagem desde o primeiro ciclo, mas
sim a sua perturbao mental,
pois na condio de humano Jesus tambm se sentiu abandonado, a
ponto de desacreditar que Deus
estivesse ao seu lado, conforme seu ltimo suspiro na cruz, tambm
materializado nesse quinto ciclo
da narrativa: Deus, meus Deus. (p. 45) Mas ao invs de clamar por
que me abandonaste? (Mt 27,
46), a expresso soa aqui como um blsamo, visto que no romance o
grito que representa a
esperana (p. 45) no teria vindo do homem, mas sim das pessoas
que o ajudaram, motivando-o a
seguir em frente. Aqui, podemos inferir a ajuda que Jesus teria
recebido de Simo Cirineu no seu
percurso.
Que fique claro, porm, que um esteta no quer apenas materializar
conceitos, mas tambm
abstrai-los. Afinal, j havia explicado o narrador, logo na
segunda pgina do romance, em uma
mensagem subliminarmente metalingustica, que os dados
substanciais e concretos tambm podem
formar uma abstrao, um enigma. (p. 8) Simo Cirineu est,
portanto, abstrado nesse quinto
ciclo, mas ao mesmo tempo seu gesto motivador est presente, com
muita fora, nos gritos dos
homens que tinham esperana. (p. 42) At porqu: S aqueles nomes
gritados eram concretos.
(p. 46)
Na sexta estao, Vernica limpa o rosto de Jesus. No sexto ciclo,
a imagem feminina se
intensifica na mente do narrador, como numa espcie de devaneio,
ento a imagem confortante de
sua me (p. 47) e a sensao de ternura que envolve o nome Dulce
(p. 47) vo formando a
imagem de uma menina de tranas correndo em sua direo. [...]
Sorria para aquela meninazinha de
tranas, o vestidinho pobre, a voz cristalina. Dulce, olhe o
vento derruba as rvores. No faz
mal, Deus conserta. (p. 47). A menina que surge nessa instncia
da narrativa representa a imagem
de Vernica. Ela era o seu apelo, o seu grito de amor. [...] Ele
encontrara algum que era parte da
unidade que agora o equilibrava. (p. 47) O rosto de Jesus,
proposto por essa sexta estao da Via
Sacra tambm materializado no sexto ciclo, que muito enfatiza a
imagem da figura feminina e a
compreenso da palavra Deus:
E levantou o rosto, para o alto, no para aquele cu azul e
inatingvel do ptio
aquele cu artificial levantou o rosto para o alto muito mais
alm, muito mais distante daquela escurido que o envolvia, e pensou
na palavra que h pouco o enlaara e dera certa significao ao grito
dos homens, aos seus
apelos: Deus. (p. 51)
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Na stima estao, Jesus cai pela segunda vez. No stimo ciclo do
romance, a personagem
est de joelhos (p. 62), no de p, e o narrador salienta a sua
condio de animal domstico, feito
um co. S lhe faltava a coleira e o rabo. (p. 62) A queda
marcada, neste stimo ciclo, pelo sono
plpebras pesadas (p. 66) pela queda da memria, ausncia de
lembranas, e o declnio da
noo de tempo (p. 63). A personagem no consegue compreender,
nesse ponto de sua vida, por
que se encontra em tal condio e sem foras para se levantar: De
p, seu cachorro. E outra voz:
Co leproso. (p. 66) Definitivamente, o rosto da personagem no
agora o mesmo do ciclo
anterior: Recebeu um tapa no rosto (p. 67)
Na oitava estao da Via Sacra, Jesus encontra as mulheres de
Jerusalm. No oitavo ciclo
do romance, a personagem tenta compreender os hiatos de sua
memria (p. 70) para fugir da
escurido em que se encontra, de modo que o momento de equilbrio
que havia sido atingido na
sexta estao, pela figura concreta da mulher, aparece agora
apenas pela tentativa de resgatar a
prpria memria: tentava encontrar o equilbrio, a harmonia (p. 71)
Sua esperana assume ento
um novo significado. Uma nova palavra e um novo conceito para o
ressurgimento, a ressurreio, a
passividade. (p. 71)
Na nona estao, ocorre a terceira queda de Jesus. No nono ciclo
do romance, os
movimentos de Cristo vo sendo intensificados na personagem:
Ficou de p (p. 77) e depois se
sentou no cho. (p. 77) Nota-se que o caminho nunca termina, pois
a personagem est sempre em
contnuo movimento: Caminhou lentamente em linha reta (p. 77),
aqui, o narrador procura mostrar
seu estado de esgotamento total: No podia dormir. [...] No posso
dormir agora (p. 77). A nona
estao da Via Crucis enfatizada, sobretudo, pelo movimento da
repetio, j que no a primeira
nem a segunda vez que Jesus cai, mas a terceira: Tudo se
repetia, e era a esta repetio que tinha
que se apegar, para poder melhor arrumar os pensamentos (p. 77)
A personagem, exausta, vai
seguindo ento conforme reza a cartilha do narrador: E assim foi
caminhando (p. 78), sem parar.
E caminhou, caminhou [...] e depois caminharia e caminharia (p.
80) [...] Caminhou e ajoelhou-
se. (p. 81) Mas poderia esperar sem dormir, sem se abstrair, por
tanto tempo? (p. 83) O narrador
insiste na caminhada: Tentaria mais uma vez caminhar (p. 83).
Nesse nono ciclo do romance, a
personagem j est em estado de completa embriaguez. E explica o
narrador: A embriaguez
tambm uma tortura. (p. 84)
A embriaguez da personagem tanta que no pode ser descrita em
poucas palavras, de
modo que, em uma perspectiva literria voltada para a esttica da
recepo, a prpria narrativa do
nono ciclo desdobrada em extensas pginas que ampliam as reflexes
do captulo referente ao
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estado de aprisionamento da personagem, para expressar o
sacrifcio que ocorre na nona estao da
Via Crucis. Essa intensidade de descries da misria e da escassez
de foras do protagonista, que
nos impe o narrador, no uma verborragia e sim a materializao da
conscincia instaurada na
obra; no a da personagem, mas a do prprio autor-implcito,
preocupado em oferecer ao leitor, por
intermdio do narrador, a oportunidade de refletir,
dialogicamente, sobre as diversas quedas do
homem em sua prpria condio humana.
Na dcima estao, Jesus despojado de suas vestes. No dcimo ciclo
do romance, a
personagem continua caminhando: Caminhou em linha reta [...]
teve uma reao de desnimo. (p.
89). O autor vai ento semeando ndices no discurso, que
representam a caminhada: O caminho
poderia ser dolorido e mortal. (p. 90) O despojar das vestes da
personagem vai acontecendo aos
poucos: Onde est o meu passado? (p. 93) O caminho rduo e o fardo
sobre os seus ombros
evidente: Arrastava-se de lado, sobre o ombro direito no tivera
vontade ou fora para caminhar.
Ou estaria mais fraco ou mais sem esperana? (p. 94) Os
movimentos da personagem explicitam o
seu incmodo: Ajeitou-se e sentou. E foi engatinhando (p. 94).
Mais adiante, o autor materializa,
nitidamente, a dcima estao: Hoje tero roupa nova. - Ningum pode
gritar. Os farrapos
foram arrancados de seu corpo. (p. 98)
No satisfeito com a imagem que j expressa com preciso absoluta a
dcima estao da
Via Crucis, o autor se empenha um pouco mais para mostrar que no
era apenas do traje que a
personagem ia sendo despojada, mas tambm do prprio corpo, a
caminho da morte. Surge ento a
imagem do barbeiro. O barbeiro e o carrasco (p. 99), que tratam
de lhe desfigurar as feies. Os
cabelos foram caindo nos ombros (p. 99), na inteno de que a
personagem perdesse tambm a sua
identidade, tal como os carrascos trataram de fazer com Jesus,
dando a ele uma aparncia que no
correspondia sua verdadeira personalidade: uma coroa de espinhos
e um manto escarlate, que
deturpavam a sua imagem real e em nada condiziam com a nobreza e
a imagem de um verdadeiro
rei. O manto, ao contrrio, era um signo de humilhao para as
vtimas da poca, um rtulo de
condenao. Os guardas foram jogando sobre seus ombros a roupa
nova [...] um bluso de pano
mais fino. (p. 99)
Na dcima primeira estao da Via Crucis, Jesus pregado na cruz. No
dcimo primeiro
ciclo do romance, a personagem podia sentir o corpo em sua
unidade frgil (p. 108). A imagem da
pregao de Cristo na cruz to evidente e torturante, nesse ciclo,
que o autor decidiu mant-la de
olhos fechados para o impacto ser menor (p. 114) possvel,
inclusive, ouvir as marteladas dos
pregos: um, dois, um, dois, um dois (p. 114) Podemos pensar
ainda no vinagre oferecido a Jesus,
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no alto da cruz, nesse dcimo primeiro ciclo que materializa o
seu algoz na personagem do romance:
agora no bebia quando os guardas mandavam. (p. 115) Nesse bloco,
surge ainda a imagem de um
homem sangrando nos pulsos (p. 116). A cena da crucificao vai se
tornando ento ainda mais
ntida, o narrador mostra uma me em sua angstia (p. 113). Haviam
feito um crculo em torno do
homem que se imolava. (p. 116) E, finalmente, o autor trata de
materializar o grito de Jesus, na
personagem, no final desse ciclo: seu grito de sacrifcio ficara
sem resposta, perdido no ar, em meio
aquela luz sem vida. (p. 117) Imagem essa que vai criando a
atmosfera da prxima estao.
Na dcima segunda estao, Jesus morre na cruz. No dcimo ciclo do
romance, o autor-
implcito est preocupado em materializar o temporal que cai aps a
morte de Cristo: E ento
pensou que se no chovesse nas prximas horas ou nos prximos dias,
a sua fonte secaria (p. 121).
O narrador est convicto de que um temporal necessrio: Deve
voltar a chover, deve voltar. Uma
enxurrada boa e sem limite. (p. 121) Os pingos de chuva comeam
ento a descer em forma de
lgrimas, at trovejarem os rudos do pranto pela perda dolorosa: A
princpio as lgrimas desceram
suavemente pelas faces. Mas em seguida se entregou aos soluos.
(p. 124) A imagem da morte se
concretiza: O sangue que redime. O esvair dos pulsos. O fim. (p.
125)
Na dcima terceira estao, Jesus est morto nos braos de sua me. No
dcimo terceiro
ciclo, o narrador diz que a palavra Deus, assim como a palavra
Me ambos expressos em itlico
j se apresentavam personagem em moldura mais definida, mais
ntida. O homem acreditava
nelas como um apoio maior, um consolo benfazejo para o que no
compreendia em sua priso. (p.
132) Nesse ciclo, a vida de Jesus aparece redimida nas guas, na
prpria fonte de inspirao do
autor-implcito:
Est chovendo, est chovendo, sinto nos ossos a natureza est
alegre e verdejante, os pssaros voltam aos ninhos, o milho ficar
maduro, os rios correro com mais fora, a vida estar redimida de seu
mistrio. Minha fonte
dgua. (p. 137)
Na dcima quarta estao, Jesus enterrado. O ptio est limpo, sem
sangue, sem tortura
(p. 165) e um grande lenol manchado (p.180) alude ao Santo
Sudrio. No dcimo ciclo do
romance, o protagonista se imola, voluntariamente, tal qual o
Cristo. E, ao contrrio de todos os
outros ciclos anteriores, que contam com a cela, o ptio e o
grito, essa ltima instncia da obra
materializa a mudez, sem a etapa do grito, como se o prprio
autor-implcito estivesse prestando sua
ltima homenagem personagem, atravs de seu silncio absoluto. Mas
o silncio em literatura
nunca uma mudez sem voz, e sim a expresso da poesia. Para
Barthes (2003, p. 15) escrever
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implica calar-se, escrever , de certo modo, fazer-se silencioso
como um morto.
Na esfera da metalinguagem, o autor-implcito parece ter
compreendido o gesto do prprio
Cristo, ao fundir sua voz com a do narrador e da personagem:
olhe, estou aqui e sou um homem.
Passei por aqui e esta a minha marca, o meu trao, a minha
palavra, a mensagem do meu ser. (p.
156) E a solidariedade mensagem crist tanta que a trilogia se
torna mais explcita: autor,
narrador e protagonista se fundem no seguinte tributo ao Cristo:
estava ali para provar alguma coisa
que o homem no uma paixo intil, por exemplo. (p. 168)
Os ratos no prisma da fico e da realidade
A um rato estruturalista, nada impossvel.
Jean-Franois Revel
Jean-Franois Revel, filsofo marxista, ironizou os esforos da
semiologia mediante o
seguinte silogismo, observado por Franois Dosse (2007, p. 290):
o rato ri o queijo, ora, rato um
disslabo, logo, o disslabo ri o queijo. Se a ironia nos faz rir,
pior o sarcasmo de Sartre (1999, p.
24), em sua obra Que a literatura?, publicada em 1947. Pondera o
filsofo: preciso lembrar que
a maioria dos crticos so homens que no tiveram muita sorte na
vida, e que quando j estavam
beira do desespero, encontraram um lugarzinho tranquilo como
guardas de cemitrio.
O humor de Sartre, a princpio, poderia ser um honroso elogio aos
imortais que persistiram
no caminho da literatura, mas quem conhece seus desafetos com a
semitica sabe que o rano contra
o estruturalismo e/ou o formalismo tambm permeiam as entrelinhas
de seus discursos e at mesmo
de sua literatura. Em seu conto O muro, por exemplo - com o qual
Assis Brasil estabelece um
dilogo , Sartre (1987) banaliza no apenas a profisso dos
coveiros, como a prpria morte, para
mostrar o quo intil a vida, fugaz, irnica e sem sentido.
Sem dvida, Assis Brasil tambm rebaixa a condio existencial em
sua obra Os que bebem
como os ces, porm, no com o intuito de futiliz-la, ao contrrio,
pois sua finalidade especfica
despertar no leitor a conscincia sobre a brevidade da vida,
inerente condio de todos os seres
humanos, indefinidamente. De modo que essa conscincia o leve ao
desapego do mundo e
valorizao da ascese.
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No conto O muro, tambm h um prisioneiro, Pablo Ibbieta,
entretanto, ele est em uma
sala branca e no na escurido, como est Jeremias, o protagonista
do romance Os que bebem como
os ces. A cela de Ibbieta um poro de hospital, onde os oficiais
gritam, s vezes, durante uma
hora (p. 11). Na cela de Jeremias s existe o silncio total (p.
7) da omisso dos guardas, bem
como o de sua prpria ascese. Na cela de Ibbieta, a luz do dia
entrava por um buraco redondo que
tinham aberto no teto, esquerda, por onde se via o cu. (p. 12)
Nesse buraco, chegava inclusive a
chover, do mesmo modo como Jeremias tambm se depara com uma
fonte (p. 127) artificial,
esttica, a partir de sua cela. Entretanto, essa imagem criada
por Sartre nada ostenta em termos
metafsicos, apenas sociais esquerda (p. 12) , ou cientficos,
pois, de acordo com Cohen
(2004), o movimento naturalista-cientificista do final do sculo
XIX foi refletido at no teatro, uma
das paixes de Sartre. Este teatro:
se propunha a observar e interpretar o mundo a partir da viso
dos telescpios e microscpios. A idia, para o teatro, que o
espectador observe a cena como
se estivesse acompanhando, por um buraco de fechadura, um
instante da vida. a proposio, em ltima anlise, de um teatro voyeur.
(COHEN, 2004, p. 124)
Podemos inferir, portanto, que a especulao que aparece no conto
de Sartre ,
deverasmente, um louvor ao cientificismo. O cu estava lindo.
Nenhuma luz se insinuava nesse
canto sombrio, e bastava levantar a cabea para avistar a Ursa
Maior. (p. 18). A luz qual se refere
Sartre a mesma que foi projetada no teto, por Pedro, que o
iluminou com um lampio de luz fraca.
A ironia do filsofo ao cu cristo remete luz da caverna de Plato,
alegoria que retomaremos mais
adiante. E esse belo cu sem luz, descrito por Ibbieta, rechaado,
intertextualmente, pelo narrador
do romance Os que bebem como os ces: falso ar de liberdade, um
cu sem estrelas e sem pssaros
(p. 63), pequenas estrelas longnquas [...] aquelas estrelas eram
mentira, a vida ali no passava de
uma farsa (p. 75), pois, na ascese de Jeremias, a verdade tem
uma conotao epifnica que
ultrapassa as lentes objetivas de um telescpio.
Outro fato interessante, no conto O muro, a chacota que o
narrador faz com um rato que
aparece na cela: Um rato correu perto de nossos ps, o que me
divertiu. (p. 31) Pergunta: Viu o
rato? (p. 31) O narrador ento se esbalda: Eu tinha vontade de
rir e me controlava porque se
comeasse no pararia mais. (p. 31) Esse rato no ,
necessariamente, o mesmo do silogismo de
Revel, mas se considerarmos o desprezo que Sartre d ao
estruturalismo da semitica, o rato poderia
ser o mesmo, haja visto que at Barthes observou a falta de
afinidade de Sartre com a arte, em sua
obra Que Literatura? Barthes (2003, p. 28) afirma que o filsofo
responde questo no plano
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externo, o que no lhe permite uma exatido acerca do conceito. De
fato, nesta obra, o olhar de
Sartre muito mais historicista do que formalista, com algumas
ressalvas, no que diz respeito
esttica da recepo.
Assis Brasil, que um notvel discpulo do Concretismo, em
contrapartida, trata de
estruturar o rato de poro de Sartre, fazendo com que no seu
romance ele ganhe uma dimenso
dialgica muito mais ampla do que as articulaes do filsofo. O
rato de Os que bebem como os ces
um disslabo que no ri o queijo, mas , por certo, um rato
estruturalista, tanto que at ri uma
parede de concreto para provar que nada lhe impossvel,
inclusive, beber veneno e continuar vivo.
A praxe da famlia crist em oposio ao utilitarismo dos ratos
Entrai pela porta estreita.
Jesus (Mt 7, 13)
Na estrutura do romance Os que bebem como os ces, existem duas
famlias em planos
opostos: a utpica3 e a utilitarista
4; a divina e a humana; a libertadora e a opressora; a idealista
e a
materialista; a cooperativista e a capitalista; a verdadeira e a
falsa. Pode-se dizer, que a famlia uma
clula da sociedade, essencial literatura. Barthes (2004b), que
recusou o ttulo de marxista e deixou
de ser o sartreano que havia sido no ps-guerra, para melhor se
engajar na estrutura, afirma:
A literatura est impregnada de socialidade. Seus materiais lhe
vm
essencialmente da sociedade, da histria da sociedade.
inconcebvel escrever
o menor texto sem que, de certo modo, a histria no passe para
esse texto e,
evidentemente, a sociedade com suas divises, seus conflitos,
seus problemas.
Mas sempre se tem a mediao da forma, fazendo com que a obra
literria
nunca seja um reflexo puro e simples da sociedade. [...] o
estudo dessa
espcie de ambiguidade, de presena-ausncia da sociedade na
literatura, que
constitui o campo por excelncia da atividade literria. (2004b,
p. 214)
Podemos afirmar, com Barthes (2004b, p. 214), que no se pode
analisar uma obra literria
em termos puros de reflexo, pois a obra tambm visa criar a sua
prpria beleza e no apenas
espelhar o belo. Nesse sentido, a arte utpica, deseja o
impossvel, pois se sabe que o escritor nada
3 Segundo Berrine (1987, p. 11), a palavra utopia perdeu o seu
significado original, pautado em Thomas More, e passou a
ser um termo comum, de uso corrente, entendido como a denominao
dada comunidade ideal, na qual as pessoas vivem em harmonia e em
condies perfeitas. 4 O utilitarismo pode ser entendido aqui como
uma vertente hedonista.
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cria e a ele resta somente uma atividade de variao e de
combinao: nunca h criadores, apenas
combinadores (BARTHES, 2003, p. 20). Por outro lado, a
literatura sempre um reflexo sobre a
sociedade. Uma reflexo muitas vezes crtica (BARTHES, 2004b, p.
215), o que abre, portanto,
uma lacuna para que o esteta expresse sua criao como viso de
mundo.
Para enfatizar duas faces da figura feminina, que podem existir
em uma sociedade, Jeremias
pronuncia o nome Matilde, em dois versos poticos: Matilde! [...]
Matilde! (p. 57) A
figura feminina tem aqui dois desdobramentos, o primeiro
expressa a imagem de uma me terna e
genorosa, criada pelo prprio poeta; a segunda reflete sua
anttese: uma personagem feminina de
Stendhal (1998, p. 266) que se chama Mathilde, com H, e tem um
ar rspido, altivo e quase
masculino. Um me ftil e burguesa da sociedade francesa,
equiparada por Julien, protagonista de
Stendhal, a uma: boneca loira (p. 352), biotipo clssico do
romantismo do sculo XIX, a mesma
que elogiada pela feminista5 Simone de Beauvoir (1987, p. 299) o
Castor roedor de Sartre ,
por desprezar a sociedade que a cerca e querer distinguir-se
dela.
Os valores dessa sociedade aristocrtica de Stenthal (1998)
merecem, de fato, ser criticados
sobretudo, pelos padres de riqueza que favorecem a poucos. Por
outro lado, o desprezo
religiosidade crist, atravs dos caracteres de padres jesutas
rebaixados tolice (p. 530), ou de
personagens femininas crists desvalorizadas como religiosamente
hipcritas ou ignorantes - haja
visto os caracteres vulgares dados Madame Rnal , fazem com que a
religiosidade de O
Vermelho e o Negro se torne, de certo modo, uma reles caricatura
que tende a destruir a dignidade do
signo cristo, desembocando-se, por fim, no cinismo. Crtica essa
com a qual Assis Brasil procura
romper no romance Os que bebem como os ces, pois ainda que esse
esteta abra, igualmente, um
espao para esgarar a inconsistncia das mscaras (p. 140) da
sociedade do sculo XX, presa aos
esteretipos de poder e ostentao social do sculo XIX, a
religiosidade crist de Os que bebem
como ces slida, concreta, e sincronicamente latente, desde as
primeiras at a ltima pgina do
romance.
Conforme Jeremias vai resgatando sua memria, gradativamente, tem
sua me equiparada
esperana (p. 129). Mas, ao contrrio da Mathilde de Stendhal, a
Matilde de Assis Brasil no
despreza os valores tradicionais da famlia. Tanto no os despreza
que o narrador procura resgat-los
e devolve a identidade do protagonista, justamente, na mesma
instncia em que ele consegue gritar
5 Simone de Beauvoir, de codinome Castor, quem Sartre devotou
muitas obras, teve uma viso de mundo que
contribuiu para melhorar a condio da mulher no sculo XX, em
alguns aspectos. Contudo, o fato de ter tolerado a
prtica poligmico-sexista de Sartre coloca, hoje, o seu feminismo
na berlinda.
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pela me: Mame! [...] e sua me se chamava Matilde, seu nome...
seu prprio nome era
Jeremias (p. 129) um nome proftico que analisaremos mais
adiante. O narrador insiste na
importncia do resgate da memria: Pensou em sua me [...] se
lembrara dela com maior nitidez, se
lembrara de sua mulher. (p. 135) Assim, imediatamente, ao
recolher seu passado, ele passa a
lembrar de si mesmo: Meu nome Jeremias (p. 135).
O filsofo Bobbio (apud BRANDO, 2008, p. 12), na obra O tempo da
memria, afirma
que: somos aquilo que pensamos, amamos, realizamos, [...] somos
aquilo que lembramos. A
lembrana de Jeremias, portanto, materializada no ba de sua me,
contm toda a histria da
famlia (p. 157), uma histria que ele no descarta e revive pela
nostalgia: queria ver l dentro, nos
guardados as relquias, as coisas velhas e novas, as fotografias,
as geraes que se sucediam (p.
157). Esse ba remonta ao Reino dos Cus do Cristianismo (cf. MT
13, 52), isto : todo escriba
instrudo nas coisas do Reino dos Cus comparado a um pai de
famlia que tira de seu tesouro
coisas novas e velhas.
Jeremias se lamenta, estimulado pela memria, pondera o narrador:
onde estava a sua
menina de tranas? [...] Onde estava o rosto bom de sua me?
Queria tanto voltar a v-la. (p. 173)
Mas o seu lamento no um choramingo masculino e sim a mais
singela homenagem figura
feminina: tenho uma mulher e uma filha, minha me ainda est viva
(p. 173) A menina de tranas,
alm de remeter inocncia de Rapunzel, personagem dos contos de
fadas dos irmos Grimm,
representa tambm Santa Cacilda (p. 165), uma princesa Moura que,
segundo a tradio, teria
renegado a luxuosidade dos castelos ao se converter ao
Cristianismo, e sua principal caracterstica
so as visitas s cadeias, para levar alimento aos prisioneiros.
Essas imagens femininas vo sendo
ento equiparadas s flores, e ele vai tecendo, simultaneamente, a
beleza que existe na simplicidade e
na rotina do lar, concretizadas na prpria narrativa, pois
Jeremias repete vrias vezes as histrias da
famlia, agora, mais vivas em sua lembrana: todo dia saio de casa
pela manh e vou para a escola
[...] no tenho carro, pego o nibus [...] a casa em que moramos
alugada, tem um jardim onde
cultivo flores, hortncias, margaridas (p. 173), finalmente surge
a imagem da fartura, materializada
nas rvores: tem um quintal cheio de mangueiras (p. 173).
As flores de Assis Brasil so tambm uma anttese ao jardim do
Palcio de La Mole, de
Stendhal (1998), e de sua sdica rainha Margarida, que ousou
pedir ao carrasco a cabea de seu
amante (p. 323); tal qual a aristocrtica Mathilde-Marguerite
detm a cabea decapitada de Julien, o
filho de carpinteiro, como vingana.
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Em uma lgica poundiana de condensao potica, todas as mulheres
queridas da lembrana
de Jeremias se tornam uma s na figura de Tudinha: a criana, a
filha que est crescendo e que gosta
de fazer bolo para mostrar que j uma mocinha; a me Matilde,
costureira, Tide, para os amigos,
para o fillho (p. 107); e tambm a esposa. Tudinha, minha mulher,
minha me, estou escrevendo
um livro (p. 174). Jeremias resgata, por fim, toda a sua memria:
sou um professor de literatura
(p. 173).
A imagem singela do lar que o narrador cria junto de Jeremias,
expressa a tradicionalidade
de uma famlia de classe mdia da era contempornea. Contudo, essa
famlia no perfeita, pois
dentro do ba da me de Jeremias existem signos que denunciam a
imperfeio, mas a famlia, que
um signo cristo por excelncia, no corrompida, visto que os
indcios de imprecauo que h no
ba cheiro de pequeninos ratos (p. 157) so insignificantes diante
da riqueza e da pureza que
existem na tradicionalidade de um lar repleto de amor e ternura,
um lar que rico em sabedoria e que
no precisa carregar nenhum cifro da burguesia para ostentar a
sua fartura. Ao contrrio, pois o
cenrio que compe as lembranas de Jeremias no conta nem mesmo com
a propriedade privada, a
qual foi to questionada por Simone de Beauvoir (1987, p. 80): A
propriedade privada aparece: [...]
o homem torna-se proprietrio da mulher. Nisso consiste a grande
derrota do sexo feminino. O que
no equivale a dizer que haja aqui um protesto contra a
propriedade privada, mas uma outra face da
vida crist: o desapego, aquele pouco que com Deus muito.
A boneca de Sthendal tambm surge no ba da famlia de Jeremias:
uma boneca de loua e
de olhos muito azuis (p. 157), entretanto, ela no representa,
exclusivamente, as diversas mulheres
de suas lembranas, visto que essas so simples, meigas, de certo
modo pobrezinhas delineadas
pelo signo do estudo ou do trabalho e no ostentam o luxo ou a
futilidade da Mathilde da
sociedade francesa. Ao contrrio, elas so ativas e no ficam
descansando em uma velha rede (p.
158), conforme o signo de alienao do sculo XIX, que aparece no
ba da famlia. A rede pode
significar tambm um instrumento de pesca que representa o prprio
Cristianismo e o ato de ensinar
e captar discpulos, a exemplo da atividade de Jeremias, que tem
a autonomia de um mestre. Tudinha
tambm gosta de agir por si mesma e o autor at a retrata brigando
na escola, para espelhar a
personalidade forte do pai, um pensador inteligente que vive a
agitar os aprendizes: o homem no
uma paixo intil (p. 168). Tudinha ostenta ainda um carisma pela
tradio de seus antepassados.
Assim, as mais ternas lembranas vo povoando a narrativa e a
memria de Jeremias, com
objetos, vozes e imagens familiares de pessoas queridas e
inocentes, do passado e do presente, como
se fosse uma tentativa de resgatar os bons valores e a beleza da
tradio de todas as geraes
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anteriores.
A boneca da vov esta quebrada, minha filha, eu quero mesmo
assim, pai. [...]
Olhou mais fundo no ba: roupas velhas, rendas, o cheiro antigo
[...] Traga a
boneca, pai. [...] Ela est quebrada, filha. [...] bonita como a
vov. [...] A boneca da vov, pai. (p. 158-159)
possvel at que esses valores j tenham sido resgatados, uma vez
que os signos que
poderiam representar a corrupo no aparecem no ba em sua
plenitude, mas quebrados,
desvigorados para romper com as imagens clssicas que a relembram
, bem como esto
fundidos nas imagens de pessoas queridas. Os cabelos da mame (p.
158), cortados pelo pai,
podem tanto representar um gesto de carinho, de um esposo que at
corta os cabelos da amada e os
guarda como lembrana, num ba; como podem representar ainda um
gesto oposto violncia de
Nero, para com as mulheres de seu tempo, contexto que
discutiremos mais adiante.
Assim, o esteta vai tecendo a beleza da escritura, com a ajuda
dos discursos e dos caracteres
das personagens sem esquecer da mquina de costura (p.107) da
querida me Matilde, que
detm o tecido6, o passado que vinha em retalhos (p. 163), ou a
tecitura de uma obra em
fragmentos. Uma me que tem tambm a face crist de Maria, me de
Jesus, conforme analisaremos
na parte final deste artigo.
Neste ba, porm, o tradicionalismo no monolgico, pois nele no
consta apenas a
memria da famlia do protagonita, mas a de muitas geraes
passadas. H, inclusive, um signo do
prprio livro de Stendhal - a cor vermelha (p. 158) , um vermelho
que pode ser tanto um
elogio ao escritor, por sua engenhosidade acadmica e socialista
em dar cassetadas na
superficialidade dos valores ditatoriais, como tambm uma crtica
ferrenha sua violncia contra o
signo cristo, rebaixado em O Vermelho e o Negro, pois o ba
contava com uma cor vermelha sem
Vida:
um cartucho de papel desenrolou o que poderia ser um diploma
lembrava-se: eu me formei ou ganhei alguma coisa [...] as palavras
embaralhadas desenrolou o cartucho, um canudo comprido como um
cassetete as palavras embaralhadas, mas lhes podia sentir a cor
vermelha, j um vermelho que perdera o ardor da vida. [...] Um
simples diploma, antigo como os guardados do ba, no era o bastante
para saciar a procura, o sentido
da busca. (p. 158)
A cor negra resplandece ento no ba, em um lbum que espelha a
famlia, para contradizer
6 Tecido, para Barthes (2004, p. 261), quer dizer,
etmologicamente texto, logo, ele , na obra, o que suscita a
garantia
da coisa escrita.
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a escurido do Negro de Stendhal. A imagem potica descrita por
Jeremias remete marchinha
Mscara Negra7: Quanto riso! Oh! quanta alegria! [...] Eu sou
aquele Pierr / Que te abraou e te
beijou, meu amor. / Na mesma mscara negra / Que esconde o teu
rosto / Eu quero matar a saudade.
O protagonista se senta, e nas lembranas do seu caminhar aparece
o signo da cruz: cruzou as
pernas (p. 160). Perplexo em sua nostalgia, como um Arlequim que
chora pelo amor da Colombina,
alegrou-se ao ver as primeiras fotos (p. 160) e at babou sobre
elas: Deixou cair um pouco de
saliva no queixo, para que as pginas do lbum aderissem melhor.
(p. 160) Ocorre ento o resgate
do romantismo, sob a imagem de um casal imaculado:
Duas crianas, um menino de calas curtas, a menina de tranas que
j
conhecia nos braos a boneca de olhos azuis: as duas como dois
anjos de um sonho. O menino estava fantasiado, qualquer coisa
parecida com pierr ou
palhao seu rostinho lhe era familiar, como se fosse o seu prprio
rosto. (p. 160)
O palhao um signo recorrente ao romantismo8, mas lanado tambm
para causar
confuso e intensificar a ambiguidade, pois a nostalgia da
personagem no se refere ao palhao como
tolo ou bobo da corte, e sim a uma beleza pueril que flui para a
ternura do lar: a outra pgina, a
outra pgina: ali estava sua me, sua mulher Dulce, a mulher de
voz serena. (p. 160) E, logo em
seguida, surge a imagem da Mathilde de Stendhal, para
complexificar e destruir o belo cenrio, pelo
vis do erro e do engano: Matilde, o doce corao de me, os olhos
aflitos, com um brilho de terror.
Quem disse que corao de me no se engana? (p. 160)
Esse contexto confuso e ambguo foi criado, propositalmente, para
que nesse espao catico
a literatura possa afirmar a literariedade e o esteta instaure a
a sua crtica contra a lgica do erro, do
engano ou do utilitarismo, que tendem a corromper as famlias e a
sociedade. Eis a importncia do
cheiro de rato num ba de famlia, a representar a criao
metalingustica do autor: o ratinho
seria a sua cobaia (p. 69).
Por que o esteta teria escolhido um rato para denunciar a
corrupo das famlias? A sua
inteno poderia ser apenas concretizar o abstrato, o subjetivo
(p. 96), mas o autor fez essa e
muitas outras estranhas (p. 112) escolhas formais, que remetem
ao prprio conceito de
estranhamento dos formalistas russos, sobretudo, porque alm de
irracional esse roedor fede e destri
7 http://www.letras.com.br/ze-keti/mascara-negra 8 Z Kti,
compositor da Mscara Negra, tambm autor da marchinha Amor de
Carnaval, que remete a uma lua no cu
smbolo do romantismo , entretanto, ela artificial como o cu
artificial lamentado por Jeremias, pois ambos eu-lricos reconhecem
a brevidade do romantismo dos sales.
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quase tudo o que v pela frente, caractersticas essas que
materializam a pequenez desse bicho
escroto, que aparece at entre as pernas (p. 110) de Jeremias
paralelisticamente relacionado a
um bolo de fezes (p. 39) e no para desvalorizar a sexualidade de
um casal, mas para mostrar
como a sensualidade do prazer9 pode ser uma alegria ilusria se
comparada ao utilitarismo dos ratos,
que se cheiravam um ao outro, se catavam (p. 122).
O cheiro dos ratos tambm aparece no ba da famlia, porque a
liberdade um tema
evidente na obra, questiona o narrador: o que era um pssaro? (p.
70). E ele procura sempre trazer
luz a discusso sobre o que a capacidade de escolha. Um rato no
plano do realismo, por sua vez,
no escolhe sua prpria natureza, mas dela vtima, como se o mau e
a vida imunda fossem o seu
fado (p. 105). Ao contrrio, porm, de um ser humano racional e
autoconsciente que tem a opo de
lutar por sua dignidade, determinando o que quer, o que ou o que
deixar de ser; escolhendo,
enfim, o seu prprio destino de homem, de pai de famlia, de
eremita, de asceta, de professor, de
pensador celibatrio ou de poeta livre arbtrio esse que seria
impossvel a um mamfero do esgoto
ou da selva.
A primeira caracterstica que o narrador d ao rato que surge na
cela e que vive
espreitando Jeremias a de um ser vivo (p. 64) pequeno que
provavelmente mora em algum
buraco escuro (p. 65), procurando as migalhas de seu alimento
para sobreviver. (p. 65). O
narrador associa a imagem do rato luta, como uma inferncia
prpria luta de classes, de Marx, ou
da luta pela sobrevivncia, que aparece na Origem das Espcies, de
Darwin. vlido ponderar que
a esperteza que caracteriza os ratos, no a inteligncia, e nesse
ponto preciso que so caracterizados
como sbios. Sua sabedoria vem tambm pelo faro: Pelo olfato, sim
os bichos tm a natureza
mais sbia do que o homem. (p. 95), afirma o narrador, sempre a
refletir sobre a natureza de rato
(p. 74), atrelada a um buraco, dentro de outro buraco. (p.
74)
A figura da natureza, fortemente associada ao rato, surge nas
descries do narrador com
certo tom de ironia ao cientificismo: a natureza sbia. sbia e
cruel. (p. 10) Mas a natureza
tambm associada figura da me: a me natureza, cruel e sbia. (p.
22) Essa associao se d,
pelo fato de que num momento de distrao o prisioneiro ficou
confuso, tentando nomear o rato:
Como chamar o ratinho? Me ou Deus? (p. 85) A princpio chamou-o
de Deus, e at ficava
9 O rato observado por Jeremias, que parece at usar pequenas
botas (p. 161), um correlato ao rato de Barthes (2004, p. 260):
experincias isolaram o centro de prazer do rato; pem-lhe l um
eletrodo ligado a um pedal, e o rato pedala, pedala at o
esgotamento, at morrer de prazer. A diferena entre os ratos de
Assis Brasil e de Barhtes que os do primeiro, por serem
utillitaristas ao extremo, nunca sentem arrependimento, o de
Barthes, porm, tem no crebro um
espao para a punio.
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esperando suas visitas: Deus j ter voltado? (p. 89) De repente,
ele se d conta de que o seu
Deus, ali na cela, tambm era falso, irreal (p. 96), pois esse
ratinho tinha uma companheira cuja
natureza de rato tambm era: sem pretenses, sem ideais, sem
apelos (p. 96) Assim, mediante a
falta de idealismo nas personalidades dos ratos, o narrador
resolve renome-los da seguinte maneira:
Csar e Julieta (p. 96)
Na concepo de Barhes:
Ningum pode escrever sem tomar apaixonadamente partido [...]
sobre tudo o
que vai bem ou vai mal no mundo; as infelicidades e as
felicidades humanas, o que elas despertam em ns, indignaes,
julgamentos, aceitaes, sonhos,
desejos, angstias, tudo isso a matria nica dos signos, mas esse
poder que
nos parece primeiramente inexprimvel [...] imediatamente apenas
o nomeado. [...] a matria-prima da literatura no o inominvel, mas
pelo
contrrio o nomeado [...], toda tarefa da arte [...] retirar da
lngua do mundo,
que a pobre e poderosa lngua das paixes, uma outra fala, uma
fala exata.
(BARTHES, 2003, p. 22)
O narrador explica porque os nomeou assim: O pequeno Csar talvez
fosse um pequeno
poderoso, um diminuto guerreiro em seu mundo, lder e senhor da
guerra. (p. 97) Evidentemente
que o guerreiro Csar da descrio tambm pode ser uma aluso ao
imperador dos tempos de Jesus.
Csar aparece ento como uma anttese de Cristo, pois ele apenas um
mortal que carrega um cetro
e uma coroa (p. 97), e no um homem utpico ou idealista. Julieta,
por sua vez, uma anttese da
menina que analisamos no sexto ciclo do romance, a considerar
que a ratinha caracterizada como
o suave equilbrio para os mpetos de Csar, tal como Vernica teria
equilibrado Cristo em uma
breve instncia de seu caminhar.
Finalmente, o narrador acaba por repudiar a prpria comparao,
pois tem conscincia de
que no vale a pena correlacionar Deus com Csar ou Julieta, visto
que no possvel equiparar
coisas to nobres com coisas to mesquinhas (p. 97) Coisas, porque
para um concretista tudo
coisa, at mesmo a beleza e ou o mais sublime amor.
Definitivamente, o termo Deus to sagrado
para o narrador que no poderia ser aplicado qualquer coisa, sem
que ele sasse diminudo. (p.
106) Eis a insistente utopia da poesia, presente no discurso
metalingustico do autor, que tem
tambm o seu sacro papel de demiurgo.
Csar e Julieta, em sua concepo histrica e literria, so
personagens que podem
representar uma anttese ao prprio amor de Cristo que doou sua
vida humanidade em nome de
uma causa salvacionista. O primeiro porque matava em nome do
poder; a segunda, porque matou a si
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mesma em nome de uma paixo mundana, egocntrica, sem nenhum
propsito idealista ou altrusta
como o apelo de Cristo.
O modo de agir do casal de ratos tambm uma anttese s exortaes de
Jesus: Entrai
pela porta estreita (Mt 7, 13) visto que esses ratos seguiam na
direo da porta grande (p. 97),
sempre no mesmo rumo da porta grande (p. 112), de seu pequeno
buraco redondo, bem-feito (p.
121). A moradia dos ratos apresenta uma polaridade de Jeremias,
cuja cela est atrelada a uma
portinhola (p. 73). A vida utilitarista dos ratos evidente,
visto que apesar de terem sua
propriedade (p. 122) privada, eles roem tambm a parede (p. 122)
alheia.
Alm dessas caractersticas avarentas, aos ratos no interessava
quem havia colocado o
prato na cela ou se ele continha algum elemento venenoso que
pudesse ser prejudicial integridade
de suas vidas, at porque, a poro txica era para um homem e no
para um rato (p. 81)
irracional. Talvez o ratinho fosse imune (p. 82). Jeremias, ao
contrrio, angustiava-se at por ver o
prato dentro da cela: mentira, mentira, eu no estou vendo o
prato. [...] mentira, mentira (p.
123). Angustiava-se tanto, a ponto de acreditar at que o
alimento estivesse envenenado.
Aps ter projetado nos ratos a irracionalidade, em oposio ao
homem, o narrador cai por si
e reconhece que os ratos no eram simples autmatos irracionais,
programados para a
sobrevivncia, para a procriao (p. 162), pois voltariam cela de
Jeremias, sempre e sempre, no
apenas pela comida como pensara antes, mas voltariam pelo
sentimento de liberdade. (p. 162).
Afinal, os ratos tambm eram equiparados aos guardas Os pequenos
soldados de chumbo (p.
173) que escolheram impor sua presena, como um smbolo de poder,
independentemente da
opinio do prisioneiro, haja vista que at pulavam em sua sopa, e
a presena deles era sempre
marcada com a presena do prato (p. 133). O narrador questiona a
postura utilitarista dos ratos e a
falta de idealismo de suas famlias:
Estavam dormindo em seu lar de ratos, assim como ele dormia na
cela de um homem. Estariam sonhando? Como seria o sonho de um rato?
(p. 173) os ratinhos davam pequenos pulos de alegria, integrados em
seu universo.
Sentiriam mesmo alegria? Talvez algo parecido com a alegria dos
homens quando conseguem mais dinheiro, mais posio social, um nome
maior
pregado num letreiro. E todos numa cela gigante (p. 155) Quantos
anos vive um rato? [...] Quantos anos vive um rato que se alimenta?
(p. 179) Quais os
seus problemas? Os problemas de um rato na cela? Comida, gua,
ar, para sustentar sua pequenina natureza (p. 152) Estavam fartos e
no pensavam em
seu tmulo (p. 167)
Jeremias atravessa o romance tentando compreender a natureza dos
ratos:
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olhou o cho de terra suja e se lembrou dos ratinhos [...]: agora
eram dois os
pequeninos animais. Um casal, que iria procriar e repetir a sua
faina de ratos. Os filhotes nasceriam ali naquela cela ou em algum
buraco mais escondido.
(p.105) Os ratinhos haviam sumido. Eles tambm descansavam,
dormiam, e
deviam estar agora bem aconchegados sua famlia. Por que temos
que ficar juntos, pai? Porque assim seremos mais fortes, seremos
menos atingidos. (p. 169)
As vozes das personagens se misturam com a autoconscincia do
narrador, formando um
discurso indireto livre. A polifonia transmite ento a idia de
que os ratos so uma famlia unida.
Entretanto, o que denuncia a falsidade dessa hiptese o
esconderijo dos ratos, pois ali no h
espao para a comunho, a unio em comunidade requisito bsico de
toda famlia crist e o
lugar no acessvel, mas uma caverna (p. 161) privada.
Na alegoria de Plato, um grupo de prisioneiros tambm vive na
escurido de uma caverna,
em torno de uma fogueira imaginria (p. 112), no entanto, essa
fogueira no uma iluso, pois
projeta na parede uma luz com sombras que transmitem uma falsa
idia de realidade. E como esses
prisioneiros no tm conscincia para discernir, acabam procedendo
como os ratos, pois no
pensavam no sol nem nas flores que estavam l fora (p. 167). A
fogueira um smbolo ambguo,
mas se associa diretamente ao Inferno, no contexto do romance,
pois os soldados equiparado aos
ratos (p. 173) so equiparados tambm aos homens que de l
vieram.
As vozes soltas, no identificadas, junto das descries dos ratos,
transmitem a idia de que
eles so abertos ao dilogo, mas essa no a realidade de um roedor,
pois seu habitat natural a
selva e no a convivncia harmnica com seres humanos. Jeremias at
se esforou para tentar um
dilogo: De onde voc vem? [...] Como sabia que o prato estava
aqui? (p. 95) Mas os ratos nada
responderam, afinal, eram ratos. E ratos que podiam dar
rasteira: Acordou e sentiu os ratinhos lhe
puxando a parte da cala perto de seu p esquerdo. (p. 132) Os
ratos no pensavam, apesar disso, ou
precisamente por essa razo, viam Jeremias como um monstro (p.82)
ou um concorrente desleal
na refeio que recebiam (p. 132). Diria Darwin (2009, p.49): Por
monstruosidade suponho que se
entende alguma considervel anomalia de conformao, geralmente
prejudicial ou intil para a
espcie.
Jeremias, alm de tentar compreend-los, via-os como companheiros
de cela: uma prova de
que o homem no vive sozinho, no pensa apenas em funo de si
mesmo. (p. 84) A coletividade ,
portanto, um signo de fraternidade crist que se ope ao
individualismo. Um eco da voz
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metalingustica do autor, tentando mostrar que a recluso do
poeta, no silncio, no um ato
utilitrio, individualista ou egosta, mas um gesto concreto de
doao humanidade: O meu
compromisso com o homem o canudo desdobrado e em exposio, assim
como aquele mural
talhado em sangue. O mural, tinha que termin-lo, ou avanar o
trabalho coletivo. Estava ali para
isso (p. 161), junto dos demais prisioneiros , como se
estivessem todos de mos dadas
trabalhando pela mesma causa: um imenso desenho (p. 182) no
muro. Ou tentavam desenhar em
sangue o rosto da prpria me, ou da mulher amada. (p. 153). O
sangue , sobretudo, nesse contexto
do romance, um signo do martrio cristo.
Violncia e ascese como antinomias discursivas
Aos cristos [...] inflingiram-se suplcios.
(SUETNIO, 2009, p. 82)
Claro est que o muro o objetivo do esteta que compe o livro,
como um tributo s
mulheres que tambm sangram para dar luz um filho. Sangue de um
universo feminino que nem
mesmo o narrador consegue compreender. Sangue de um ciclo: Uma
vez por ms (p. 123). Um
ms para a volta. Trinta dias. (p. 56). E muito sangue derramado
nesse muro polissmico, que
representa as cercanias de uma gruta onde nasce um Rei; a morte
de um Filho em Jerusalm; a
lamentao dos aflitos; a fronteira entre a vida e a morte; a
ditadura e o fuzilamento; o mural de um
artista ou a parede de isolamento que delimita o espao do
poeta.
E de sua cela metalingustica, povoada de signos, o narrador
tambm vai desenhando com
sangue a meta do protagonista, um mensageiro na cela, que
resolve escolher o prprio destino (p.
183) e segue em marcha feito um soldado rumo ao muro branco,
onde gravaria, como os outros
homens, a sua mensagem na pedra (p. 156), como um sinal de
glria, atravs de sua tarefa
inglria (p. 171) que na perspectiva dos cticos morrer para o
mundo. A pedra representa a
Igreja de Cristo, na pessoa de Cefas, nome advindo do aramaico,
traduzido para o grego como
Petros. [...] Pedro (que quer dizer rocha, pedra). (SABBAG,
2008, p. 339)
Essa cela de Jeremias tampouco monolgica e apresenta trs
vertentes: a da opresso do
prisioneiro; a da libertao do filsofo ou do esteta; e a da
santidade do asceta cristo a considerar
que todos eles esto encerrados em seu reduto. O que os
diferencia o livre-arbtrio, visto que os
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ltimos esto encarcerados no mundo das idias, da racionalidade
e/ou da religiosidade, ao contrrio
do primeiro, que nem sabe o motivo de sua priso. E a sua ausncia
de conscincia , justamente, a
causa de sua opresso, pois pela recolha da memria acerca de si e
de seu passado que o prisioneiro
vai resgatando a prpria identidade como homem.
No primeiro nvel, a opresso materializada entre quatro paredes,
em uma aluso ao
universo sem sentido de Sartre , isto , sem um objetivo
concreto. Sentia as paredes, mesmo sem
v-las na escurido. (p. 7) E de sua cela suportava a opresso
cometida pelos homens srdidos ao
seu redor vindos do inferno (p. 177) e que o encarceraram em uma
cela, a fim de que ele se
rebaixasse ao nvel de um animal rastejante. Haviam lhe dado uma
natureza de rato e ele
sobrevivia. (p. 69) As sujeiras, fezes, urinas e excrementos de
seu corpo intensificam o estado de
escravido.
A libertao do filsofo e/ou esteta materializada pela conscincia
que o diferencia dos
ratinhos: homens pequeninos, correndo entre os quatro cantos de
seu mundo, sem mais nada a
esperar (p. 142). E materializa-se ainda num banho de guas
lmpidas em aluso ao batismo em
Cristo, para si e sua famlia. E alm de prisioneiro, Jeremias
tambm um poeta, condio que
implica renncias e desprendimento do conforto para alcanar os
fatos concretos (p. 138); no
como uma pessoa irresponsvel que abandona os entes queridos, mas
como algum que comete um
suicdio social voluntrio e morre para o mundo profano10
, a fim de tornar substancialmente potica a
sacralidade que h em seu idealismo: E se lembrou de um suicida,
onde quer que fosse, que
arrumou a casa, deu de comer aos filhos, banhou-os, tomou tambm
o seu banho, e saltou no
abismo. (p. 177) O abismo ao qual o narrador se refere o da
escurido ampla e envolvente (p.
7), de um poeta que comea a escrever suas primeiras letras, tal
qual o primeiro verso do romance.
vlido considerar que o filsofo tambm pode ser comparado ao
asceta; pois ambos
renunciam a ostentao dos ricos: cada propriedade, cada riqueza,
por maiores que sejam, parecem
pequenas para quem est acostumado a olhar para toda a terra.
(LIMA, 2004, p. 39) E eles se
recolhem no para pensar na justia ou nas injustias da esfera
judiciria da sociedade; mas para
refletir sobre a justia ou a injustia em si, o que so e no que
se diferenciam de todo o resto.
(LIMA, 2004, p. 40) O asceta, entretanto, ultrapassa os ideais
do filsofo, pois impe a si mesmo a
moral e a tica que h em sua racionalidade. E o asceta supera
ainda as intenes do mestre, do pai
de famlia e at mesmo do esteta, no apenas pela renncia ao mundo
profano, mas por sua
10 Para Mircea Eliade, a categoria profana se refere, entre
outras coisas, ao utilitarismo dos atos fisiolgicos;
desprovidos
de sua intrnseca sacralidade e/ou religiosidade. (ELIADE, 2008,
p. 20)
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inclinao transcendncia o que legitima a sua condio de mstico,
conferindo-lhe a santidade
em seu estado de potncia.
A santidade, porm, do ponto de vista cristo, no est somente na
dignidade dos que se
redimem do mundo em busca de redeno filosfica, espiritual ou
religiosa, mas tambm no
sofrimento das pessoas martirizadas, abandonadas e excludas
socialmente, por motivos de doenas,
drogas, opresso, pobreza ou condenaes injustas uma vez que essas
representam o Cristo e seu
rebanho (Mt 25, 35-37). E quem nos d os signos para tal
inferncia humanitria o prprio
narrador, que projeta nas personagens e no cenrio essa condio
social e humana. Homens que
urinavam e defecavam na prpria cala (p. 113). Homens sujos (p.
16), que gritam e sentem
dores fsicas ou emocionais. Seres de roupa encardida (p. 32)
que:
bebem como bebem os ces (p. 94) nos hospitais de campanha, nas
casernas
[...] nas prises (p. 59) filas de homens amordaados (p. 11)
homens que
sofriam em qualquer parte. Homens sem liberdade (p. 27) os
guardas tapavam
as bocas (p. 20), mordaas, para que nenhum dos homens dissesse
coisa alguma (p. 26), migalhas para sobreviver (p. 65), carreiras
de homens
esfarrapados (p. 67) As algemas eram a cadeia menor do
confinamento elas ditavam a imobilidade (p. 78) drogas nas magras
refeies (p. 81) sobreviventes da selva e do deserto (p. 95)
mantidos ali como um rebanho (p.
71)
A princpio, Jeremias no gritava, apenas escutava os berros das
pessoas amordaadas. Os
gritos despertavam para a unidade, a harmonia e a coeso (p. 72).
Gritos de liberdade, esperana e
amor. Os homens gritavam pela me. Mame. Minha me. (p. 15) Diziam
nomes divinos ou de
santas: Um deles chamou por Maria, minha Maria. (p. 19). Outro
por Joana, Conceio. (p. 15)
Minha me. Mezinha. Minha me. (p. 16) Um nome de flor: Margarida.
(p. 19), e tambm
nomes de musas: Ldia, Inez, Beatriz. (p. 153) Nomes que haviam
libertado no ar. (p. 15)
Jeremias pensou no grito de esperana e gritou: Me! (p. 34), e
deu um segundo grito,
antes de ser amordaado: Dulce! (p. 34) Gritou simplesmente
porque os homens no gritaram, e
porque o autor implcito achou necessrio completar o tempo no
ptio (p. 35). Posteriormente,
gritou: Deus. Meus Deus. [...] Oh, Deus (p. 45), at que sentiu
por si mesmo, o grito de esperana,
o ptio da liberdade fugidia, o nome do amor e a paz, a grande
paz interior. (p. 45) E atravs dos
apelos em seus gritos, que eram representaes familiares,
religiosas ou de mulheres queridas: Os
homens reconstruam, aos poucos, o seu passado. (p. 46)
Os gritos, entretanto, eram coibidos pelos guardas, os vermes
fardados que tinham o
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poder (p. 54) e eram representados por borres amarelos (p. 87),
como uma intertextualidade
farda amarela (p. 44) do soldado de Vidas Secas, de Graciliano
Ramos. Esses guardas tinham o
andar frreo (p. 87), passos de ferro (p. 177) e a voz metlica
(p. 24). Aqui, possvel fazer
ainda uma recorrncia genealogia de Nero, em oposio ao
Cristianismo, visto que Licnio Crasso
(apud SUETNIO, 2009, p. 70) a associou ao ferro ou ao metal,
para expressar a crueldade antiga,
presente j no bisavo do imperador: No espanta que tenha uma
barba de cobre, pois tem uma boca
de ferro e um corao de chumbo.
Assim, a fogueira primordial (p. 155), mencionada pelo narrador
de Os que bebem como
os ces, pode ser explicada por uma correspondncia com o incndio
que Nero teria provocado em
Roma. Ele tinha atitudes similares s dos soldados do romance e,
segundo Suetnio (2009, p. 92),
tambm surrava pessoas, se resistiam, as feria e as afogava nos
esgotos. Ele mandava envenen-las
assim como Jeremias inferiu que os guardas estivessem
envenenando seu alimento , provocou o
suicdio do filsofo Sneca (p. 104) e no gostava de mulheres, no,
necessariamente, porque ele
prprio mantinha relaes sexuais com homens (p. 93), mas pelo fato
de sua psicopatia apresentar
tambm indcios de misoginia. Nero no respeitava nem mesmo a
prpria me, privou-a de todo
tipo de honras (p. 100) e era cruel com as figuras femininas, a
ponto de mandar cortar os cabelos
das concumbinas, que levava em sua companhia, moda dos homens
(p. 114) , uma anttese
feminilidade que existe no romantismo, bem como ao carisma de
Jesus pela me e pelas mulheres de
sua poca. Esse corte de cabelos tambm relembrado no ba de
Jeremias, como um gesto oposto
atitude do imperador, haja visto que um corte de cabelos pode
modificar uma pessoa, tanto
enaltecendo sua beleza quanto privando-a de sua identidade,
dependendo do contexto em que se
analisa. Os soldados torturadores do romance, portanto,
personificam o mal no apenas pelas
correlaes que o narrador faz com o inferno, mas, sobretudo, nas
imagens recorrentes a Nero.
O sofrimento fsico e a tortura mental que sofriam os homens
hostilizados pelos soldados
intensificou-se tanto, ao ponto de comearem a desistir dos
gritos de amor e de esperana,
concretizados pelos nomes de Maria e das mulheres que amavam e
respeitavam. Quando Jeremias
percebeu que eles estavam desistindo das prprias vidas, tomou
partido, na tentativa de salv-los:
Vivam, homens. (p. 75) E ele estava convicto em sua misso, pois
salvando-os salvaria tambm
os gritos de esperana e de amor, to necessrios na escurido
daquelas celas. Mas eles eram punidos
pelos guardas e o castigo era a morte. Jeremias no desistia e
mesmo diante de cada maca
ensanguentada (p. 76), insistia em seu clamor, abenoando-os:
Vivam, homens, pelo amor de
Deus! (p. 88), e motivando-os:
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De posse de sua esperana, de seu amor, da paz que deveria
renascer no ntimo
de cada um, eles tinham que viver, que lutar pela vida, sem
medo. (p. 76) Vivam, homens. (p. 78) Vivam, homens! (p. 87) Antes
que lhe tapassem a boca e o virassem de costas, sentiu o alvoroo ou
a esperana nos outros
seres silenciosos, preocupados em sua tarefa de pequenos
cordeiros. (p. 88)
Vivam, homens. (p. 91)
Jeremias no se conformava com o esmorecimento da esperana: por
que no falavam
entre si, naqueles instantes sem a mordaa? (p. 92) Mas os homens
no apenas desistiam de suas
vidas como alguns se matavam: Era a desistncia maior: o suicdio.
Talvez a nica maneira de sair
dali, mas no a maneira de salvar a sua prpria dignidade. (p. 91)
O narrador no concebe o suicdio
como uma soluo, do mesmo modo como repudia a atitude de Julieta.
Jeremias, por sua vez, no
desiste:
Vivam, homens, no se matem. Lutem pela vida, o seu maior bem,
mesmo que tenham que suportar a incompreenso e a injustia. [...] O
amor, a esperana, a
paz, as mulheres amadas, o nome de Deus o que teria significado
para eles no comeo, agora que se matavam? Por que haviam desistido
da luta? (p. 92)
Entretanto, a morte dos homens poderia significar tambm uma
reao, uma revolta mais
firme, com a cor do sangue e do sacrifcio (p. 92), que passaram
a deixar no muro, prximo s filas
de espera. Eles corriam e esfregavam os pulsos ainda no
algemados na parede spera: haviam
acordado de sua letargia os pulsos sangrando no muro de pedra, o
vivo vermelho passado ali
como um pincel de carne. (p. 129). Uma revolta pacfica, para
representar a cor vermelha.
Segundo Scouarnec (2004, p. 40), na simbologia crist, o vermelho
lembra o sangue de
Cristo e dos mrtires, assim como o fogo do Esprito; e a cor
branca do muro os tempos
felizes da Pscoa e do Natal (p. 40), a redeno em Cristo.
Jeremias, que outrora no se conformara com a morte de todos
esses homens, encontrou
ento a soluo em um gesto mimtico de irmandade: Eles no sabem que
somos irmos, somos
iguais. (p. 118). E passou a ser mais compreensivo:
O homem que sangra a sua lucidez, o seu bem-estar na dor. O
equilbrio das emoes, um alvo a atingir, uma fuga honrosa, digna no
a desistncia, a renncia eles deixavam a sua marca com sangue, eles
atingiam o muro de pedra. (p. 134)
O narrador comea ento a apoiar o suicdio dos homens, mas esse
apoio apenas revolta
velada (p. 149) que representada pelo prprio discurso artstico,
no plano literrio, em seus limites
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entre a fico e a realidade. Caso contrrio, a literatura perderia
a sua proposta humanitria em
defesa da vida. Assim, Jeremias converte o seu grito de vida
para um grito em homenagem morte:
Viva o muro. [...] Companheiros, viva o muro. (p. 149) Agora
eles lhe apontavam o
caminho para desistir e morrer (p. 151) Tinha certeza agora,
rasgaria os pulsos na pedra e
continuaria o sacrifcio dos companheiros, embora ainda no
soubesse, claramente, o que eles
faziam (p. 153). Surge ento a voz do autor-implcito, honrando os
escritores imortais: talvez
alguma coisa perptua, um nome ou uma idia. (p. 153)
Um desafio a Sartre: A imolao no muro, por uma idia de liberdade
era isso. E daria a
contribuio de seu sangue. [...] Por que no viver num claustro,
numa cela ou num sto? (p. 160)
Virou-se para o guarda mais prximo: seu queixo quadrado tinha um
vinco ptreo (p. 182),
como uma clara oposio pedra angular que o prprio Cristo, para os
catlicos. Ele ento
pergunta: O homem uma paixo intil? (p. 182) Encosta os pulsos
nas salincias mais
cortantes: lembra-se de casa, do sorriso de sua me [...] Esfrega
com certo fervor os pulsos no
muro (p. 182), a cor vemelha aparece no cenrio e o narrador a
codifica: a cor rubra est ali (p.
183), para os leitores que sabero v-la e senti-la. [...] Tragam
a maca. (p. 183)
A epifania nos planos denotativo e sincrnico do discurso
Vi que o meu corpo estava sem vida,
numa maca da Universidade.
Glria Polo (2008, p. 18)
Se mencionamos com Barthes, anteriormente, que a literatura
indissocivel da sociedade;
e com Assis Brasil, que a arte no se submete ao real e tampouco
dele pode fugir; afirmamos
tambm que o movimento retrico e ordenado da escrita denotativa,
no que diz respeito converso
do ser humano a uma ideologia, sempre inverso ao movimento
ambguo da literatura, em direo
ao leitor.
evidente que o papel da literatura no pregar utopias, e sim
edificar o seu prprio
idealismo, por outro lado, no existem fronteiras a um esteta. A
diferena entre um pregador e um
escritor, porm, que esse ltimo no visa converter o leitor a um
partido, nem mesmo tem a
inteno de lhe impor uma religiosidade. E se o misticismo existir
no discurso, o modo de revel-lo
ser sempre pela via do ocultamento.
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O narrador de Os que bebem como os ces expressa uma verdade
literria, pelo vis da
ambiguidade e da condensao potica, mas vale observar que seu
propsito prioritrio atingir a
verdade histrica, conforme a epgrafe do romance: A verdade
histrica est muito mais na
novelstica do que o prprio relato dos fatos que constituem a
histria reconhecvel como tal.
(Ernesto Sbato).
A odontloga colombiana, Glria Polo (2008), que foi atingida por
um raio e ficou entre a
vida e a morte, em 1995, deu seu depoimento em um livro, a fim
de relatar como esteve entre as
portas do cu e do inferno; do mesmo modo como Jeremias trata de
expressar sua experincia. O
testemunho da narradora, no entanto, apenas uma tentativa de
prosa potica, pois sua linguagem
objetiva, direta e referencial:
o raio entrou no meu brao, queimou-me espantosamente todo o
corpo por fora
e por dentro (p. 15) nesse instante, encontrava-me dentro de um
formosssimo tnel branco, uma luz lindssima, [...] paz, felicidade
[...] Foi um enorme
xtase. [...] Sem sentir o meu corpo, nem a dimenso de tempo
[...] vi todas as
pessoas da minha vida num mesmo instante [...] os vivos e os
mortos (p. 16) sentia que ia desfrutando de uma viso bela [...]
rvores [...] flores belssimas
[...] naquele jardim (p. 22)
Posteriormente, ela apresenta a polaridade do bem, ao narrar os
gritos de Deus para alert-la
sobre o mal e a perdio dos homens, e descreve Sua imagem na
cruz: Vi tambm Jesus na cruz a
gritar, a sofrer [...] O senhor grita na cruz, com tanta dor (p.
60). Segundo Glria, sua prpria viso
inexprimvel:
sim, h demnios [...] Dirigi-me para dentro de uma quantidade de
tneis [...]
como um favo de abelha onde havia muitssima gente [...] escurido
espantosa
[...] cheira horrivelmente mal [...] debaixo de mim um abismo
[...] no se sentia nem um pouco do Amor de DEUS (p. 23) nem uma
gotinha de esperana [...]
aqueles seres horrveis eram como larvas, como sanguessugas para
tapar a luz.
[...] Irmos, so trevas vivas, um dio que queima [...] No h
palavras para
descrever aquele horror. (p. 24) NOSSO SENHOR dizia-me, quase
gritando: [...] os meus ungidos?! So de carne, e a santidade -lhes
dada pela comunidade onde Eu coloquei esse Dom [...] O demnio
detesta-nos, a ns catlicos, porque temos a Eucaristia (p. 37) odeia
terrivelmente a Igreja Catlica e os sacerdotes (p. 39) O demnio
acostuma-nos dor dos outros, a
ver o sofrimento dos outros e a pensar que no nosso. (p. 86)
Nota-se que a experincia mstica da mulher tem muitos dos
elementos da descrio e os
mesmos propsitos da narrativa de Os que bebem como os ces,
exceto pelo fato de que o Deus da
primeira apenas O Logos que odiado pelos demnios, contra os
quais Ele Cristo, o Logos
est em luta. (BOEHNER; GILSON, 2007, p. 30). O narrador de Os
que bebem como os ces,
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porm, expressa o sangue de Cristo, materialmente, em todo o
romance, bem como um Logos
semelhante ao Verbo divino, o qual, segundo So Joo (1, 1-4),
fez-se carne e habitou entre ns, em
matria concreta ou corpo substancial materializado tanto no
protagonista quanto nos demais
cordeiros imolados do discurso proftico.
E a narrativa proftica porque o protagonista se chama Jeremias e
dialoga com o profeta
(p. 135) da Bblia, que faz reflexes sobre a Palestina: Olho para
a terra: tudo catico e deserto;
para o cu: dele desapareceu toda a luz (Jer 4, 23) Farei de
Jerusalm um amontoado de pedras
(Jer 9, 10), perversos [...] caadores de pssaros, armando laos
para apanhar os homens.
semelhana de uma gaiola cheia de pssaros. (Jer 5 26, 27). E ele
antev acontecimentos que o
autor-implcito traz para o romance: destruamos a rvore em seu
vigor (Jer 11, 19). Mas o profeta
bblico tambm lana premissas que o autor-implcito complexifica:
Bem sei, Senhor, que no o
homem dono de seu destino (Jer 10, 23); concretiza: a terra
cobriu-se de luto. (Jer 4 28); bem
como contradiz tal como o prprio Cristo rompeu com muitas
ideologias do povo hebraico ,
pois se o profeta amaldioa o dia de seu nascimento (Jer 20, 14),
o poeta Jeremias ir enaltec-lo em
dia de festa, com bolo (p. 174), para celebrar, metodicamente,
sua fatia de vida (p. 24), ao lado
das pessoas que ama.
Alm da contradio, o romance tambm traz signos falsos que tendem
a tornar as
informaes aparentemente ilgicas e sem unicidade, a fim de
promover a literariedade, pois h uma
linha imaginria na narrativa que oferece um encadeamento de
idias concisas. Um exemplo de
signo falso, em Os que bebem com ces, so as imagens que remetem
a ascese da obra ao budismo:
Voltou a sentar-se sobre as pernas, assim como um indiano ou
budista (p. 164). Mas o prprio
autor sinaliza que essa religio est atrelada a uma letargia que
no corresponde ao despertar em
Cristo, proposto pelo autor-implcito: Sentiu que as pernas
estavam dormentes pela posio
prolongada. Endireitou-se. (p. 167) E o budismo proferido s
claras pelo narrador, que no toca
nem mesmo uma s vez no nome de Jesus. No entanto, o que ele faz,
subliminarmente, concretizar
a invisibilidade do Cristo na narrativa, e no para escond-Lo,
mas para oferec-Lo pela via da
poeticidade e dos sentidos. Ao contrrio do budismo, que tende a
abstrai-los:
Toda a ascese do zen precisamente dirigida para uma espcie de
esvaziamento, de vacuidade de sentido; e os tericos do zen
entenderam muito
bem que a tarefa mais difcil do mundo no dar sentido (fazemos
isso
naturalmente), mas, ao contrrio, retirar sentido. (BARTHES,
2004, p. 118-119)
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A crtica ao esvaziamento zen, no romance, tem por objetivo
mostrar que Jeremias quer o
sentido para da prpria vida, desafiando no apenas o
existencialismo ateu de Sartre, que inspirou
Camus e que, segundo Barthes (2004, p. 33) tende a rarefaz-lo,
atravs da significao , como
acaba por desembocar na temtica do livre-arbtrio, inerente ao
autor-implcito. Esse, escolhe um
enredo e o oferece s personagens, as quais tero a opo de
escolh-lo ou neg-lo, tal qual o Cristo
fez sua escolha, dando sentido ao seu sacrifcio. O sentido da
vida e da liberdade, para o cristo, no
entanto, no uma fico como possivelmente podem ser as lendas
budistas11 e sim um
reflexo do prprio real na pessoa do Jesus Histrico, implcito
logo na epgrafe do romance.
Jeremias aceitou o destino que o autor lhe ofereceu, mas antes
de aceit-lo, teve de viver a
ambiguidade de suas incertezas, concretizadas no alimento que
sustenta tanto o seu corpo material
quanto a sua psiqu, na medida em que esse alimento que consome
no apenas uma metfora do
veneno oferecido pelos homens vindos do inferno, mas tambm do
alimento descido do cu,
epifanicamente, por intermdio da figura de Maria, que espelha a
me de Jeremias. Desse modo, o
prato pode representar ainda a palavra, como alimento, e apontar
para o discernimento que Jesus
requer dos cristos: Sabeis distinguir os aspectos (Lc
12,56).
A epifania que acontece, portanto, atravs do prato, cujo
alimento tanto pode vivificar o
corpo quanto o jejum vivifica a alma, visto que a personagem
tambm se absteve do alimento,
algumas vezes. Entretanto, o que a plenifica no a sua dieta
(p