UM CALL-TO-ACTION AOS PRINCIPAIS STAKEHOLDERS DO FUTEBOL PORTUGUÊS Como sabemos que plano de ação tomar para proteger os nossos jogadores? SÍNTESE O processo de tomada de decisão na Medicina Desportiva precisa urgentemente de ser otimizado. Vários experts vêm levantando a necessidade de recolha oficial e fidedigna de dados relativos à condição clínica dos atletas para fomentar a aplicação de medidas eficazes de redução do risco de lesão de forma consistente. É urgente que as entidades responsáveis facilitem, e responsabilizem, os clubes neste processo de salvaguarda da saúde dos atletas, elevando o patamar de excelência do trabalho feito pelos clubes e respetivos departamentos clínicos. João Noura Fisioterapeuta
26
Embed
Um call-to-action aos principais stakeholders do Futebol ...... · Um call-to action aos principais stakeholders do Futebol Português João Noura 2 Introdução Este documento pretende
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
UM CALL-TO-ACTION AOS
PRINCIPAIS STAKEHOLDERS
DO FUTEBOL PORTUGUÊS Como sabemos que plano de ação tomar para proteger os
nossos jogadores?
SÍNTESE O processo de tomada de
decisão na Medicina Desportiva
precisa urgentemente de ser
otimizado. Vários experts vêm
levantando a necessidade de
recolha oficial e fidedigna de
dados relativos à condição clínica
dos atletas para fomentar a
aplicação de medidas eficazes de
redução do risco de lesão de
forma consistente. É urgente que
as entidades responsáveis
facilitem, e responsabilizem, os
clubes neste processo de
salvaguarda da saúde dos
atletas, elevando o patamar de
excelência do trabalho feito pelos
clubes e respetivos
departamentos clínicos.
João Noura Fisioterapeuta
Um call-to-action aos principais stakeholders do Futebol Português
Figura 2 Perspetiva Socio-Ecológica do aparecimento de lesão (adaptada de Bolling
et al. [24]) ..................................................................................................................................... 8
Figura 3 Metodologia para adoção de estratégias de redução de lesão (adaptada de
Bolling et al. [24]) ........................................................................................................................ 9
Um call-to-action aos principais stakeholders do Futebol Português
João Noura 2
Introdução
Este documento pretende ser um mobilizador da massa crítica dentro da
Medicina Desportiva, de onde se podem contar profissionais de saúde com valências
académicas altas e a quem se deve exigir a melhor conduta técnica e deontológica,
dentro das quais estão o acompanhamento da melhor evidência disponível. Enquanto
profissionais de saúde, faz também parte dos nossos deveres, quando não existe
informação suficiente, criá-la: isto implica que sejamos pioneiros e empreendedores na
busca contínua da otimização do nosso trabalho.
Em último caso, o meu grande objetivo é sensibilizar Departamentos Clínicos e
todos os profissionais que estes envolvem (desde Médicos, Fisioterapeutas,
Enfermeiros, Psicólogos, Nutricionista, etc.) para a necessidade premente de obtermos
dados concretos sobre o que se anda, de facto, a passar com os nossos atletas em
termos de lesões desportivas; sensibilizar aqueles que já dispõem destes dados, para
que os partilhem numa tentativa de cooperação e sinergia; e que aqueles que podem
ajudar na sua obtenção, que tomem medidas executivas para que este processo seja
facilitado.
Os destinatários deste documento são, em primeira análise, todos os departamentos
clínicos e respetivos profissionais de clubes que militam na 1ª e 2ª Liga. Gostava
também de salientar para o facto de que pelo menos a adoção das medidas aqui
expostas pelos clubes pode, pelo menos, ajudar os próprios clubes. Assim, e porque a
tomada da dianteira pode ser feita por todos, convido também os departamentos clínicos
de clube mais pequenos a tentar sistematizar a sua recolha de dados.
Enquadramento
As lesões de futebol têm importantes consequências para todas as entidades
desportivas, e são um importante foco de atenção e tomada de decisão por todos os
intervenientes desportivos, tendo um forte impacto em várias dimensões, desde
desportivas a financeiras, passando por complicações de participação, comprometendo
sonhos e perspetivas de carreira e até a vida e saúde dos atletas.
➢ As direções pretendem ser o mais eficientes possível, conseguindo os melhores
resultados possíveis com os menores custos associados.
➢ As equipas técnicas pretendem contar com todos os jogadores do seu plantel
de forma a que as respetivas equipas sejam mais competitivas.
➢ Os departamentos clínicos pretendem preservar a saúde e participação dos
intervenientes.
Um call-to-action aos principais stakeholders do Futebol Português
João Noura 3
➢ Os jogadores pretendem estar disponíveis o maior tempo possível, de forma a
alcançar sucesso desportivo, pessoal e profissional sob a forma de títulos ou
progressão na carreira, sempre monitorizados e aconselhados de perto pelos
respetivos agentes desportivos.
➢ Os adeptos pagam bilhete para ver a sua equipa com os melhores jogadores no
campo, seja para ter a maior probabilidade possível de ganhar, seja pelo
espetáculo e emoções que estes têm maior tendência a proporcionar.
Quando estudamos o efeito que as lesões podem ter nestes pressupostos, é
possível estabelecer várias considerações.
É plausível haver uma forte influência da ausência de jogadores por lesão no
sucesso competitivo e classificação final das respetivas equipas [1] [2], dado que a priori
equipas que tenham os seus melhores jogadores mais vezes disponíveis, estarão mais
próximas de ganhar, mais vezes.
Em termos financeiros, há relatos de equipas de nível competitivo internacional que
gastam verbais mensais que podem chegar aos 500 mil euros com atletas lesionados
[3]. Em níveis competitivos mais próximos do comum para as equipas portuguesas,
estima-se que uma equipa profissional de 2ª Liga gaste em salários de atletas
lesionados aproximadamente 15 mil euros anuais (dados não-publicados) (ANEXO 2),
ao que acrescem ainda os custos associados à utilização de infraestruturas, ocupação
de staff, procedimentos efetuados, ativação dos seguros, entre outros.
Para os atletas, a lesão poderá ser uma barreira e um forte detrator na progressão
de carreira. Estima-se que um 1/3 dos atletas que sofrem uma lesão do Ligamento
Cruzado Anterior não conseguem permanecer no mesmo nível competitivo num follow-
up de 3 anos após a lesão [4].
No que concerne ao departamento clínico este é, por definição, o principal
departamento responsável por apresentar uma atitude de preservação da saúde, bem-
estar e participação dos atletas, começando pela adoção de medidas profiláticas mesmo
antes de ser responsável pela reabilitação e retorno à competição dos seus atletas. Isto
torna-nos, por excelência, os mediadores da influência que as lesões têm no jogo e em
todas as considerações que forma estabelecidas previamente.
Nas nossas funções podem contar-se não só a gestão das consequências a
curto/médio-prazo como a disponibilidade de todos os atletas para competição – e que
serão aquelas que são mais alvo desta reflexão – mas, e porque é importante ainda
mencionar essa questão frequentemente negligenciada, também as complicações de
Um call-to-action aos principais stakeholders do Futebol Português
João Noura 4
saúde a longo-prazo dos atletas, tanto a física [5] como a psicológica [6], que podem
ser resultantes da sua carreira desportiva.
No que diz respeito então à participação dos atletas na sua modalidade
desportiva, de forma a podermos corresponder e cumprir com os standards que lhes é
exigido, o departamento clínico tem ao encargo das suas obrigações e competências o
desenho de planos de redução do risco de lesão que sejam eficazes e, idealmente –
numa relação que abordaremos mais à frente – eficientes.
Mas será que existem premissas prévias que não estão cumpridas e que
impossibilitam os corpos clínicos de o fazer?
Um call-to-action aos principais stakeholders do Futebol Português
João Noura 5
Figura 1 Rede de influência do aparecimento de lesões na relação entre vários stakeholders
É frequente estarmos sensibilizados para as complicações que as lesões acarretam – e ainda bem - para os jogadores. Mas a verdade é que o momento da lesão, e não sendo possível preveni-lo a 100%, trará também complicações em muitas outras dinâmicas relacionais e institucionais. Quanto mais preparados estivermos então para 1) reduzir a sua incidência e 2) precaver as suas consequências, menos influência negativa elas terão.
Um call-to-action aos principais stakeholders do Futebol Português
João Noura 6
Eficiência Estratégica
De forma a podermos atuar como agentes ativos com uma atitude positiva e
profilática, cumprindo com as obrigações discutidas previamente, temos de nos munir
de direitos e autoridade, mas, e com isso, também de responsabilidade [7]. Temos a
obrigação deontológica de assumir um papel na linha na frente nos comités e painéis
decisores, interferindo quando necessário de forma a defender a saúde – em primeiro
lugar – e o acesso à melhor performance – em segundo lugar – dos nossos atletas.
Contudo, não poderemos fazer isto baseado em premissas assentes em opiniões, ou
na tradição. É sabido que no contexto do futebol profissional, a qualidade das tomadas
de decisões é baixa e pouco informada pela melhor evidência disponível,
providenciando aquilo a que chamamos de low-value care [8]. Isto leva a que muitas
vezes se gastem recursos económicos e tempo (talvez duas das barreiras mais
frequentemente citadas como barreiras para a tomada de decisão) com estratégias que
não apresentam valor acrescentado. Por exemplo, procuramos com a utilização de
ferramentas como o Functional Movement Screening (FMS) [9] [10] ou a avaliação por
dinamometria isocinética [11] predizer os jogadores mais em risco ou as lesões mais
prováveis, quando esse exercício parece ser logo a priori muito difícil de fazer [12].
Mudar o paradigma de um método de decisão baseado na opinião e tradição
para um método de decisão baseado em factos vai permitir-nos, entre outras coisas,
reduzir o número de erros de metodologia de treino, ponderar adequadamente os
riscos e benefícios das nossas intervenções e desafiar os nossos próprios viés,
permitindo a integração adequada das preferências dos atletas e da equipa técnica na
tomada de decisão [13]; por exemplo, conhecer o estado-da-arte vai permitir-nos ao
mesmo tempo retirar dos alongamentos o papel fulcral que muita gente acredita que
eles têm como uma ferramenta de redução do risco de lesão em atletas saudáveis [14]
– quando parece ser claro que não o é [15] [16] -, mas ao mesmo tempo compreender
que muito dificilmente estes são detrimentais para os atletas quando realizados num
contexto diário prático, uma vez que neste nunca o são feitos de forma isolada [17].
Noutro exemplo, utilizarmos uma prática baseada na melhor evidência vai permitir-nos
enquadrar a preferência de uma equipa técnica que compreende como preponderante
para o rendimento técnico-tática da equipa e dos jogadores a inclusão de espaços
curtos no microciclo de treinos, sensibilizando-a para o risco que isto acarreta pela
possível falta de exposição a estímulos de sprints longos de alta intensidade no
jogo. Assim, esta capacita-nos para promover - ou não - a utilização devida das
ferramentas à disposição dos diversos intervenientes de acordo com a
Um call-to-action aos principais stakeholders do Futebol Português
João Noura 7
preferência sua preferência, com vista à otimização do resultado e minimização
dos riscos consequentes.
No caso da lesão, esta é um fenómeno multifatorial que tem vários fatores
contribuintes [18], o que pode levar à reflexão de que é preciso ter uma abordagem mais
global, baseada em sistemas de tomada de decisão complexas, e não na simples
adoção de medidas isoladas [19]. Estudos recentes com a devida robustez que se exige
para tomar decisões com segurança apontam para o facto de não haver provas
conclusivas de que a implementação de planos de redução de lesão influencie o número
de lesões a que vimos testemunhando [20], o que acaba por confirmar o facto de, de
forma geral e a grande escala, a incidência e severidade não vir diminuindo [21] [22]
[23].
Mas será que o que isto quer dizer é que o que nos resta é observar
enquanto as lesões acontecem? Já estamos a fazer tudo e o melhor que sabemos
para reduzir a taxa de incidência de lesões? E se não estamos, o que temos de
fazer? E por onde começar?
Um call-to-action aos principais stakeholders do Futebol Português
João Noura 8
Justificação e Pertinência de um Estudo Epidemiológico
Assim, e apesar de serem logo à partida impossíveis de irradicar, as lesões
desportivas constituem um problema que deve ser intervencionado. Uma vez que este
é realmente um problema multifatorial, devem ser, conforme discutido antes, estudados
os fatores que podem predispôr a isto. No entanto, há várias questões que se colocam:
é possível extrapolar dados de lesões de outros desportos para o futebol? Todos os
países/regiões têm a mesma incidência das diversas lesões? Os fatores que contribuem
para a mesma lesão são os mesmo independentemente do país/ região em causa? O
contexto cultural, social e económico de determinado país/região é negligenciável como
contribuinte para o risco de lesão?
O primeiro passo para uma eficaz intervenção no número de lesões desportivas,
seja através de planos específicos, multimodais, ou outras estratégias como
regulamentares ou governamentais, passa pela identificação de quais as lesões cujo
aparecimento tem de ser intervencionado [24], para que de seguida possamos
explorar quais os contribuintes para o seu aparecimento, procedendo de seguida à sua
modulação.
Recorrentemente, os clubes “grandes” já têm registados os seus dados para os
estudos epidemiológicos da UEFA (ainda que os dados não sejam revelados). Contudo,
este não deve ser o (grande/único) problema para o qual estar sensibilizado - se
pretendemos de facto aumentar a igualdade de oportunidades de sucesso desportivo e
Figura 2 Perspetiva Socio-Ecológica do aparecimento de lesão (adaptada de Bolling et al. [24])
Um call-to-action aos principais stakeholders do Futebol Português
João Noura 9
portanto equalizar o nível competitivo pela excelência, é fulcral que a atenção esteja
também nos clubes mais pequenos, quer do primeiro escalão, quer, principalmente, de
escalões inferior, uma vez que é nestes que a falta de condições de infraestruturas,
acesso ou expertise do staff clínico irá implicar mais complicações [25], como o aumento
da taxa de recidiva, e consequentemente a perda de atletas do período competitivo. Daí
que haja por parte das instâncias superiores do Comité Médico da UEFA uma atitude
de sensibilização para a criação e operacionalização de estudos a nível nacional que
permitam estudar, registar, classificar e assim compreender os padrões de lesão
desportivos [26]. Outros dos benefícios propostos resultantes desta monitorização dos
registos clínicos são otimizar o contacto entre equipas e seleções nacionais,
desenvolver estratégias de redução do risco de lesão, e adoção de medidas
profiláticas nas regras do jogo e nas infrestruturas e modelos de atuação [27].
Transportando isto para a nossa realidade, é então absolutamente
necessário, de forma a desenhar convenientemente planos de redução do risco
de lesão baseando-os na incidência e fatores de risco que acometem a população
desportiva, específica, dos jogadores de futebol de elite a atuar em Portugal,
estudar primeiro em que medida estes são acometidos por lesões desportivas.
Figura 3 Metodologia para adoção de estratégias de redução de lesão (adaptada de Bolling et al. [24])
Um call-to-action aos principais stakeholders do Futebol Português
João Noura 10
Já em diversos outros países esta medida profilática de levantamento dos
registos clínicos foi realizada. Existem estudos globais, como já mencionados, como os
estudos da UEFA [23] [28], mas uma vez que as realidades globais não podem ser
diretamente extrapoladas para as realidades nacionais, já existem também estudos em
países como Holanda [29], Espanha [30] e Suécia [31] e Noruega [32] – dois dos países
de origem daqueles que mais contribuem para a realização de estudos epidemiológicos
no futebol – através de contactos aos clubes (e nos quais a larga maioria aceitou em
fornecer dados) e Itália através da consulta de uma plataforma online que dispunha dos
dados [33]. Até no Qatar (certamente propulsionado pelas perspetivas de atingir níveis
de excelência a médio-prazo e facilitado pelo cenário sócio-económico favorável e o
consequente largo investimento) isto é algo que já foi feito [34] e em Inglaterra não só
já foi feito [35] [36] como é uma prática regular e transparente, com os clubes a
reportarem aos próprios media, de forma quase indiscriminada e respeitando os seus
pressupostos éticos, as lesões que ocorrem e alguns dados com elas relacionados.
Caso disto é o site https://www.premierinjuries.com/, originalmente desenvolvido por
Ben Dinnery,
Seria plausível pedir responsabilidade aos clubes pela obtenção, registo e
tratamento destes dados. Contudo, é ingrato colocar a responsabilidade total da
obtenção destes dados exclusivamente nos clubes – não será errado assumir que o
contexto económico-financeiro vivido nos países antes mencionados promove que, com
o maior investimento, haja maior pedido de responsabilidades. Assim, e tal como
observado na Figura 2, as tomadas de decisão para reduzir o risco de lesão não podem
ter origem apenas nos clubes; outras medidas de entidades superiores têm de ser
promovidas, uma vez que estas são importantes mediadores das dinâmicas das
entidades por elas albergadas. Por exemplo, a alocação de verbas primordialmente
destinadas a este fim, ou a recompensa no caso de cumprimento exemplar de
planos de registos propostos podem ser medidas que encorajam os clubes, e respetivos
departamentos clínicos, a adotar e manter estas práticas [3]. Em última análise, estas
entidades estatais, estando ao serviço da população, têm de fazer valer-se de exemplo
e guiar-se pelas melhores práticas, para além do dever deontológico que têm de
assegurar algo tão básico como a saúde dos intervenientes numa prática tão
disseminada e tão seguida como o futebol.
A pergunta sobre como fazer este registo é extremamente pertinente e deve ser
colocada. É certo que não existe uma definição consensual sobre o que constitui uma