Em Cada Esquina
um … Teatro!
Coimbra é neste momento dona e senhora
de uma das cenas teatrais mais
fervilhantes do país, que se tem afirmado
cada vez mais como uma alternativa real e
de qualidade aos serões do “costume”:
séries e/ou copos. A este crescendo de
actividade não é de todo alheia a
quantidade de salas de espectáculo,
centrais e periféricas, que servem a dita
“Cidade do Conhecimento” nos dias que
correm. No entanto, e porque não é só
nestes equipamentos que a arte teatral se
manifesta, pedimos ao Ricardo Correia que
nos contasse como é isto de fazer teatro
sem um teatro, e que partilhasse connosco
o percurso da Casa da Esquina, estrutura
profissional da qual é director e que
desenvolve a sua actividade… na casa que
faz a esquina da rua Aires de Campos com
a Rua Fernando Melo.
T4520: Como vem a ideia de fazer teatro
fora de um teatro?
Ricardo Correia: Pois… isto começou
porque estava a trabalhar há demasiado
tempo na mesma companhia de Teatro e a
precisar de novos desafios e mais urgentes,
portanto começou com a minha saída de lá.
Apetecia experimentar trabalho teatral
mais colaborativo, menos hierárquico.
Mudar de vida, não viver contrafeito como
cantava o Variações. Nasceu da vontade
de experimentar outro tipo de formato
que saísse do edifício teatral, que nascesse
da rua, da vida das pessoas, que partisse
de outro material que não um texto escrito
100 anos antes (apesar de continuar a
amar a literatura… a sério que sim), estar
nas tintas para o kronos e Mestres,
apetecia-me viver o agora e aprender por
mim próprio e os meus pares.
T4520: Sobre os primeiros trabalhos:
Chambres Rooms Zimmers – um áudio-
walk na cidade de Coimbra - W.T.F?
RC: Começamos a trabalhar, meio a medo,
sem saber como fazer, a testar, a
transformar o formato da Janet Cardiff,
que pilhámos sem pudor. Criámos um
espetáculo onde cada pessoa do público ia
sozinha e munida de um mp3 com uma
faixa sonora gravada, tendo por missão
procurar um quarto em Coimbra. Tinham
um mapa e passavam anónimos pela rua
interagindo com a arquitetura, as pessoas
da cidade e com instalações em vários
pontos (café santa cruz, elevador, livraria
XM - infelizmente já fechou portas, e o
coreto do jardim verde frente ao
Mondego). Queria trabalhar com as
impressões que Coimbra deixa para além
das que são exportadas para o mundo
como o fado, a cidade do conhecimento,
da saudade, e dos quadros versão Pollock
nascida das bebedeiras dos estudantes
gravadas no asfalto da minha rua. Para isso
reunimos pessoas com garra (Filipa Alves,
Jorge Louraço, Helder Wasterlain, Andrea
Inocêncio, Luís Pedro Madeira, Carolina
Santos, Carlos Marques, e muitos outras
vozes). Dá-me saudades porque muitos
deles foram deixando Coimbra e Portugal,
graças à ausência de apoio cultural para
fixar estas pessoas que traziam cor e
criatividade, a uma cidade que queria ser
uma Cidade Criativa, mas que era e é
apenas saudosa, bolorenta, alienada, e
sem sotaque nem palavrões, o que me dá
comichão.
Em 2011 repusemos o áudio walk e pouco
mudou talvez só mesmo os grafitis das
Repúblicas e da rua da matemática deram
lugares a outros, e pouco mais.
T4520: E os Exercícios de Botânica – uma
visita guiada ao coração da cidade?
RC: Foi mais ousado, acho. Porque lançou
os alicerces da Casa da Esquina, com o
primeiro projeto com apoio pontual da
Da esquerda para a
direita: Miguel Lança,
Ricardo Correia e
Adiana Silva em
Occupy – Teatro Sem
Cortes © Filipa Alves
Em baixo, uma das imagens de Chambres Rooms Zimmers, nas ruas de Coimbra ©Ricardo Correia
Dgartes. Decidimos trabalhar no jardim
botânico, recolher narrativas, mitos sobre
aquele espaço da cidade, recolher
experiências científicas, plantas e
medicamentos, conhecer o quotidiano dos
jardineiros, e pensar aquele espaço dentro
desta cidade. O formato escolhido foi uma
visita nocturna guiada por 5
guias/performers que contavam a sua
história sobre o seu jardim botânico. Estas
eram histórias reais outras eram de ficção.
Mentíamos com quantos dentes tínhamos
ao público, e as vezes não. Foi
monumental. A Filipa (produtora) torceu o
pé uma semana antes da estreia e nunca
viu o espetáculo. A Mónica tinha medo
real de andar na mata, suava cada vez que
levava o público através da intricada e
obscura mata. Foi difícil gerir num espaço
tão grande como o jardim botânico
questões como: comunicação entre os
atores (usávamos walkie-talkies muitas
vezes com interferências da rádio-táxi uma
espécie de dramaturgia interferente);
espaço sonoro (comprámos rádios
portáteis que estavam espalhados por
todo o jardim botânico); luz (usávamos
lanternas e às vezes o fogo de artificio da
festa da Rainha Santa); e o público – os
que se cansavam a meio e os que iam ao
engano; apareciam-nos sempre umas
velhinhas adoráveis que iam ao espetáculo
achando que era uma visita à séria do
Instituto de Botânica - iam mesmo
preparadas com lanternas de dínamos,
resmungavam com os performers,
paravam para descansar, apelidaram-nos
até de mentirosos e outras coisas quando
ouviam as nossas histórias a fingir de reais.
Trememos, mas deixou-nos mais fortes.
T4520: Ao mesmo tempo a casa da Casa da
Esquina começava a ganhar forma,
programação… como foi este desafio?
RC: Depois do Botânico a Casa começou a
crescer. Todos nós eramos uma espécie de
artistas/trolhas; foi assim que a Casa se fez.
Eu, a Sara Seabra, e a Filipa e Sandra Alves
tivemos uns 3 meses de trincha na mão a
pintar paredes, tetos, a refazer janelas,
matar o bicho da madeira, eu sei lá!
Enquanto isso íamos ocupando a Casa com
workshops, exposições, clubes de crochet
e tricot, residências artísticas, mercados de
trocas, fomos fazendo outros espetáculos
como o Cidades Secretas – The Refuge
entre a cidade de Coimbra e um balneário
e uma igreja protestante em Newcastle
com a companhia Skimstone. Tivemos dois
anos sem apoios culturais e em 2011
tivemos um apoio anual da DGARTES e
depois em 2012 ficamos sem apoio,
simplesmente não abriram.
A primeira vez que decidimos ocupar a
casa com um espetáculo foi com o
espetáculo “Senti um vazio”. Partimos de
um texto contemporâneo de uma autora
Britânica- Lucy Kirkwood, que refletia
sobre a temática do tráfico humano.
Deambulávamos por vários espaços da
Casa: uma sala era um quarto de uma
rapariga vítima de tráfico sexual, o
corredor com acesso à nossa casa de
banho era o centro de detenção, e por fim
um quarto era dividido em dois para ser
uma discoteca e o seu quarto de sonhos.
Ensaiar começou por ser um sarilho e um
prazer, como a casa tem outras atividades
e grupos de pessoas que a frequentam
dávamos por nós a ter que parar a cena
para que as pessoas fossem ao único W.C
da Casa.
“Aqui tudo era cru e bruto mas
penso que conseguimos criar uma
poética no espetáculo que nos
levava dali, daquele mundo sujo”
Quisemos usar os espaços tal como eram
sem grandes transformações, a luz
noturna da rua entrava pelas janelas e
iluminava as atrizes, o público estava a
menos de 1 metro das atrizes, o som era
espalhado por colunas ligadas a um velho
amplificador com cd`s e acionado por um
comando, e as luzes eram ativados com
tomadas com comandos em cada divisão,
tudo tinha de ser reinventado nada era
como num teatro, um espaço de ilusão.
Aqui tudo era cru e bruto mas penso que
conseguimos criar uma poética no
espetáculo que nos levava dali, daquele
mundo sujo da Djana a personagem
principal vítima de tráfico que foi
interpretada pela Helena Freitas e depois
pela Cláudia Carvalho em 2012.
Helena Freitas em Senti um Vazio, de Lucy Kirkwood
© Pedro Medeiros
Helena Freitas em Senti um Vazio, de Lucy Kirkwood
© Pedro Medeiros
Casa da Esquina, Coimbra © Bruno Pires
“Estamos em digressão e já
fomos a escolas, festivais de
Teatro, outras casas e ocupado
salas muito diferentes
reinventando sempre a nossa
relação com o espaço e com o
público. O verbo é OKUPAR .”
O último espetáculo que fizemos na Casa
foi o “Occupy – Teatro Sem Cortes”, onde
ocupávamos uma sala como se fosse uma
reunião clandestina com mesas dispostas
em plenário onde se sentava o público.
Este projeto teatral foi constituído por
várias peças curtas de autores
contemporâneos: Helena Tornero
(Espanha), Anders Lustgarden (Inglaterra),
Marco Canale (Argentina), Cristian Sóto
(Chile) e Lena Kitsopolou (Grécia) que as
escreveram em resposta à crise financeira
europeia, ao estado do capitalismo e ao
movimento Occupy.
Estamos em digressão e já fomos a escolas,
festivais de Teatro, outras casas e ocupado
salas muito diferentes reinventando
sempre a nossa relação com o espaço e
com o público. O verbo é OKUPAR .
O próximo espetáculo vai se chamar O
MEU PAÍS É O QUE O MAR NÃO QUER, e
será uma performance autobiográfica
onde conto os testemunhos recolhidos por
mim da nova vaga de emigração que
conheci em Londres enquanto bolseiro da
Fundação Calouste Gulbenkian em 2013. É
um retrato da minha geração, que ficou
sem espaço no nosso País.
“E assim vamos caminhando.
Fora de Teatros, dentro de
quartos, em ruas esconsas e
próximos do público.
Temos 5 anos, e já deixámos as
fraldas. É isso.”
Ricardo Correia, Casa da Esquina
CONTACTOS CASA DA ESQUINA
www.facebook.com/casadaesquina
nacasadaesquina.blogspot.pt
Em cima, à esquerda: Miguel Lança, Ricardo Correia e Adiana Silva em Occupy – Teatro Sem Cortes; Em cima à direita, cena do mesmo espectáculo © Filipa Alves
Filipa Alves e Ricardo Correia, Casa da Esquina, Coimbra © Bruno Pires