TUR ISMO ESTADO DE MINAS ● T E R Ç A - F E I R A , 2 8 D E J A N E I R O D E 2 0 1 4 5 4 ❚ REPORTAGEM DE CAPA Cadeirante testa pontos turísticos na Pampulha, pano de fundo para os jogos da Copa. Mineirão agrada, mas Igreja de São Francisco de Assis é reprovada. Sobrinho e tia cega saboreiam a Disney CONTRIBUIÇÃO SINDICAL 2014 - LIGUE 3271-7198 FIQUE ATENTO E RECOLHA A SUA GUIA ATÉ SINDETUR MG Sindicato das Empresas de Turismo no Estado de Minas Gerais TRATADO SOBRE A CEGUEIRA JOÃO LUCAS SÁ* Especial para o EM Viajar para os Estados Unidos. Conhecer os parques da Disney. Ver o famosíssimo castelo do Magic Kingdom bem próximo, com suas tradicionais torres. A expectativa de conhecer a parte “potteriana” do parque, confesso, era demais. Há muito queria ver com meus próprios olhos tudo aquilo. E minha tia Elizabet Dias de Sá, cega, também estava em êxtase. Fomos juntos conhecer o fantástico mundo da Disney. A proposta de viajarmos jun- tos já fora feita antes pela tia e prontamente aceita: fomos ao Sul do Brasil – em Gramado – e até saímos do país num cruzeiro para a Argentina e o Uruguai. Mas nunca fizemos uma viagem tão repleta de expectativas como essa. As pessoas costumam estra- nhar nossa dupla porque tia Be- bet não enxerga nada e eu tenho apenas 15 anos. Mas, honesta- mente, nunca vi nada de idios- sincrático nisso. Sempre passamos muito tem- po juntos; quando criança, eu fi- cava dias na casa dela. Pedíamos pizza. E nunca passou pela mi- nha cabeça a ideia de a cegueira ser um tipo de invalidez, algo que a limitasse, separasse de algumas coisas. Tia Bebet é simplesmente fantástica! Com as experiências de viagens anteriores, não é sur- presa a ansiedade que sobreveio com a possibilidade iminente de ir conhecer a terra do Tio Sam. Passei o dia anterior na casa dela. Não dormimos. Conversamos, ambos animados, sobre a viagem que estávamos prestes a fazer. Já no aeroporto de Confins, as bancadas de atendimento da operadora estavam fechadas. Ao voltarmos aos guichês, a fila de atendimento estava enorme. Procurei uma de atendimento especial. Perguntei a um aten- dente da empresa que estava no local, e ela não soube me infor- mar onde havia atendimento preferencial. Resultado: ficamos cerca de uma hora e meia na fi- la, tempo gasto desnecessaria- mente. Quando o guichê prefe- rencial foi aberto, já estávamos sendo atendidos. Daí em diante, tivemos a bu- rocracia natural dos aeroportos, filas e filas e tempo de espera. Até que, finalmente, conseguimos embarcar. Sentamo-nos num dos primeiros assentos – eles são reservados preferencialmente para deficientes, grávidas e ido- sos, como ocorre nos assentos de ônibus – e tivemos uma viagem tranquila. Se bem que o aparelho para assistir aos filmes no assen- to da minha tia não funcionava direito, e esse foi um problema. Mas nada de muito alarme. Uma viagem longa, de muita demora, mas findou. E, finalmen- te, desembarcamos nos Estados Unidos. Não recordo o nome do aeroporto, mas lembro-me da magnitude. Era enorme, e de tempos em tempos eu lia uma placa com algum símbolo de acessibilidade. Banheiros acessí- veis havia em todos os lugares. E a locomoção era facilitada graças a rampas e carrinhos. Tudo mui- to diferente... Pra melhor. Os guias foram sempre muito le- gais; nos trataram muito bem. Saímos do aeroporto com muita rapidez, e de lá fomos direto para o hotel, que ficava dentro do complexo da Disney. O lugar é enorme. Somente para conhecer o hotel precisaría- mos de vários dias. As constru- ções eram temáticas, os quartos também. Salões decorados com personagens da música famosos, assentos retrô com pinta de refei- tório, piso acarpetado com temas musicais. Um detalhe importan- te e interessante: os ATMs, que são os caixas eletrônicos, são acessíveis, com recurso de audio- descrição, além dos números do teclado em braille. Havia um no salão, com entrada para fones de ouvido e os seguintes dizeres (em inglês e braille): “This ATM offers audio assistance for the visually impaired” (Este caixa eletrônico oferece áudio para os deficientes visuais). A tia inclusive o utilizou uma vez, e não houve problemas com a máquina. No dia seguinte, ao sairmos do hotel e nos direcionar ao pri- meiro parque, duas coisas im- pressionaram: a quantidade de pessoas e o tamanho dos luga- res. Cada brinquedo e cada atra- ção tem o tamanho de uma ca- sa muito grande, no mínimo. Os desfiles percorrem ruas in- teiras dentro do parque e as vias são apinhadas de veículos e pessoas. Cada parque é uma cidade, literalmente. Uma cida- de cheia de crianças. No primeiro parque (Magic Kingdom), notei rampas nas vias e placas de acessibilidade nas en- tradas dos locais, o que facilita muito a locomoção no mar de pessoas que o local de fato é. Lo- comoção que foi extremamente exigida de todos nós para conhe- cer boa parte do local. Como dis- se, é imenso, e o caminho todo é percorrido a pé. Andamos várias horas, passando o dia inteiro nu- ma caminhada contínua. Uma boa dica para quem for é levar tê- nis de caminhada, boné ou cha- péu, óculos de sol e beber muita, muita água. No mais, foi tudo tranquilo e correu bem. Fomos a todos os brinquedos desse parque que faziam parte do cronograma e nos divertimos bastante. Aliás, há acesso prefe- rencial a todos os brinquedos e o serviço funciona perfeitamente bem. Chegamos ao hotel cansa- dos, e fui dormir após um banho quente. No outro dia, fomos ao Epcot. Nesse parque, tivemos al- gumas simulações, inclusive uma sobre corridas de carros e outra que tem por tema uma viagem a Marte. Para um cego, poderia parecer estranho, mas as sensações, segunda a tia, fo- ram incríveis. Começamos a ma- ratona cedo, e paramos para al- moçar (um almoço que se resu- miu a sanduíches e batatas fritas com refrigerante). *João Lucas Sá é estudante do Cefet e autor do livro Versos de um menino velho, lançado pela Chromos Editora Já um episódio que nos sur- preendeu bastante: estávamos no quarto e nos preparávamos para sair – iríamos ao mercado –, quando resolvemos conhecer a loja de suvenires do hotel. Fica- va bem próximo à saída, onde pegaríamos um táxi mais tarde, junto a duas companhias me- moráveis que encontramos du- rante a viagem (uma colega de trabalho da tia Bebet, Mara, e sua filha, Beatriz). Ao chegar na loja, fomos lo- go ver os produtos que eram deixados em exposição, para a tia conhecer os objetos à venda. Pensando em trazer lembranci- nhas para cá, ela já havia com- prado bichinhos de pelúcia no Sea World e no Magic Kingdom; mas simplesmente se apaixo- nou por uma pequena bolsa com tema de Mickey Mouse pa- ra portar pequenos objetos e re- solveu levar junto com um glo- bo para decoração. No momento em que leva- mos os objetos até o caixa, uma atendente, muito impressiona- da com a tia, nos abordou, per- guntando se éramos parentes, se ela era minha mãe. Respondi ex- plicando o parentesco. Mas após isso sua fala marcou a impres- são que temos em quase todos os lugares: “God will give you lots of blessings for taking care of her” (Deus te dará muitas bênçãos por tomar conta dela). Fervi de raiva, mas compreendi que nem todas as pessoas ainda estão preparadas para lidar com o diferente do convencional. O que é natural para mim – afinal, tenho mais quatro tios ce- gos além da tia Bebet – é estra- nho para a maioria. E pude perce- ber isso durante toda a nossa es- tada na Disney. Apesar dos inú- meros informes e placas de aces- sibilidade e guias para orientação de dificientes, a maioria das pes- soas está despreparada. Após pa- BÊNÇÃOS DE DEUS? gar as compras, quis sair de lá o mais rápido possível. Já a tia teve uma atitude mais madura, demonstrando sua ex- periência. Concordou, claro, que foi um enorme equívoco da mo- ça achar que eu a estar acompa- nhando significaria “tomar con- ta dela”, mas disse também, muito sabiamente, que é muito comum esse tipo de pensamen- to existir. Que ela já viu muito disso. E que era preciso relevar. Depois rimos do episódio. Pude- ra. A concepção da moça inver- tera as posições, colocando a tia numa condição de acompanha- da, quando na verdade o menor acompanhado era eu. Mais tarde, fomos ao merca- do comprar várias coisas, entre elas algumas roupas e muito chocolate. Experiência interes- sante dar conta da lista de com- pras em outro idioma. Ao final do dia seguinte, a prova final de que a Disney é realmente um lugar mágico: o tempo passou rápido demais e já estava na hora de arrumar as malas. Aprontamos-nos para a saída, que seria logo após o café da manhã, e dormimos. O check- out foi realizado com certa tranquilidade, os guias nos le- varam ao ônibus e de lá fomos direto ao aeroporto. Ao chegar, nos direcionamos à alfândega e ao escrutínio cos- tumeiro dos scanners de bolsa de mão. Depois de despachadas as malas, esperamos. Desta vez foi relativamente fácil e rápido o atendimento, os caixas prefe- renciais estavam abertos desde que chegamos. Embarcamos nos lugares preferenciais costu- meiros e enfrentamos as horas de voo até voltar à terrinha. Um voo relativamente tranquilo; vi- mos filmes e dormimos. Desem- barcamos, recuperamos nossas malas, demos o último até logo à Mara e à Bia, e nos encontra- mos com minha mãe, que leva- ria a tia pra casa. (JLS) Recurso de audiodescrição e números do teclado em braille facilitaram a vida da turista mineira no caixa eletrônico Tia Bebet, “simplesmente fantástica”, no Magic Kingdom. No detalhe, ela e João Lucas no parque temático O mundo de Harry Porter FOTOS: JOÃO LUCAS SÁ/DIVULGAÇÃO ESSA TAL ACESSIBILIDADE ALFREDO DURÃES Gilberto Porta, o Gil, entrou deter- minado no Mineirão. Na direção de seu Honda Fit adaptado, vinha com um jeitão de Jérome Valcke, também conhecido como “JV, o Inclemente”, aquele francês, palpiteiro-geral da Fi- fa, encarregado de fiscalizar os está- dios que vão sediar os jogos da Copa. Porém, vinha educado e comedido, numa sexta-feira com manhã de mui- to sol, pouco antes das 10h. Era o pon- tapé inicial de um périplo pelo con- junto arquitetônico da Pampulha. A missão: testar as condições oferecidas às pessoas portadoras de deficiência para fazerem turismo num dos prin- cipais cartões-postais da capital. No comando da operação, Gil, de 51 anos, “mestre especialista” em detec- tar falhas ou, em muitos casos, obser- var que não há o que criticar, pelo fato puro e simples de não haver instala- ção alguma para deficientes. O que, por si só, constitui motivo de protes- to, em se tratando de bens públicos ou a serviço de um público. Cadeirante há mais de 25 anos, por- tanto experiente sabedor da rotina de um deficiente físico para a missão, Gil era “o cara” para a missão proposta pe- lo EM. A esposa Telma, igualmente de- ficiente, tem um site dirigido para o público de deficientes, o BH Legal (bh- legal.net). O casal é viajante contumaz, portanto useiro e vezeiro de instala- ções para turistas como eles (confira uma lista de blogs voltados para este público na página 7). O destino a ser conferido se justifi- ca: a proximidade da Copa do Mundo de Futebol Fifa, que tem Belo Horizon- te como uma das sedes e o Mineirão e a Pampulha como pano de fundo. To- cante também o fato de que em feve- reiro, o Ministério do Turismo (MTur) lança mais uma etapa do programa Turismo Acessível (veja nesta maté- ria). Que, como o nome aponta, pre- tende tornar a vida do viajante com deficiência física mais suave, menos laboriosa, dotando as atrações de equi- pamentos de acessibilidade. ANÁLISE DETALHADA Diferentemente de JV, o Inclemente, Gil manteve a fleuma ao entrar no hall principal do Mineirão. De-se por satisfeito com as instalações do estacionamento – são 52 vagas para deficientes e 73 para idosos, num universo de 2.169 abertas para o público –, as indicações por placas e a carreira de piso podotátil (aquele que tem ranhuras e relevos para que, com o toque da bengala, o deficiente visual se oriente) e a catraca própria. Dispa- rou, porém: “Este carpete que coloca- ram no chão faz a cadeira de rodas agarrar. Se fosse liso, seria melhor.” Por questões de segurança, de acor- do com a assessoria de imprensa da Minas Arena (que administra o Mi- neirão), as instalações para deficien- tes são oferecidas somente no anel inferior do estádio. O local na arqui- bancada para a colocação da cadeira de rodas, bem como rampas de aces- so e corrimãos mereceram a aprova- ção do cadeirante. No banheiro espe- cial (38 ao todo), a colocação de peças como pia, espelho, corrimãos e o vaso sanitário foram também aprovados. Somente o modelo do vaso sanitário, aquele com uma abertura na ponta, foi reprovado, “porque é desconfortá- vel e pouco prático.” E os espaços dos camarotes não oferecem instalações para deficientes, fato que, obviamente, não passou despercebido. De acordo com a Minas Arena, o estádio tem, além de espaços para cadeiras de rodas, 622 assentos especiais para idosos, grávidas, obesos e crianças de colo. E aí, Gil? Numa escala de um a 10, qual a nota do Mineirão? “Eu daria um 10. Se bem que os camarotes deixam a desejar. Talvez um nove. Bom acho que oito tá bom. Isso é igual hotel, você nunca pode dar 10 que eles param no tempo. Mas dá para dizer que o Minei- rão está aprovado”, afirmou. Então, “bo- ra lá” para a Igrejinha da Pampulha. FOTOS: BETO NOVAES/EM/D.A PRESS Em matéria de acessibilidade, a Igreja de São Francisco, que também atende pe- lo nome de Igrejinha da Pampulha, está a anos-luz de qualquer avanço. Nem mes- mo uma simples rampa para cadeira de rodas existe no entorno do templo. Corri- mãos, pisos podáteis e placas em braile en- tão, nem pensar. Para piorar a situação, por exemplo, dos cadeirantes, parte da pista em frente à igreja foi transformada em ciclovia, o que impede o estaciona- mento de carros. Resta ao cadeirante esta- cionar nas proximidades do Parque Gua- nabara e se deslocar por cerca de 200 me- tros até lá. Mesmo esse deslocamento é so- frível, já que o piso é totalmente irregular. Nota zero para a igrejinha, que tam- bém não anda muito bem em matéria de conservação, necessitando urgente de re- formas, conforme noticiou o EM semana passada. Inclusive para acabar com gotei- ras no teto, que se transformam num in- ferno (com perdão do sacrilégio), quando chove mais forte. A assessoria da Arquidio- cese de Belo Horizonte, responsável pela igrejinha, informou que um projeto de re- cuperação do templo e a instalação de equipamentos de acessibilidade está a car- go da Prefeitura de Belo Horizonte, porém não há previsão para execução das obras. O Museu de Arte da Pampulha está em bom estado de conservação, mas segue os passos da igrejinha e não oferece nenhum equipamento de acessibilidade. FUNDAÇÃO ZOOBOTÂNICA O aquário, dentro do zoológico de BH, foi outro ponto testado. No estacionamento não há pista para cadeiras de rodas e o piso é de casca- lho. Mas há rampas para acesso e dentro do espaço. No mais, as instalações foram par- cialmente aprovadas: há pisos podotáteis, informações em braile, os bebedouros es- tão na altura ideal, etc., etc. Porém, Gil avalia que o banheiro tem algumas falhas, como papeleira e toalheira mal colocadas e falta de puxador interno nas portas. O Aquário tirou nota quatro. Há um projeto da Prefei- tura de Belo Horizonte em plena execução a fim de melhorar a acessibilidade para de- ficientes dentro de todo o zoológico. Em que pese o fato de que muitas das instalações para deficientes no Brasil, tu- ristas ou não, caminham a passos lentos – isso quando existem –, Gil considera que muito coisa melhorou. E Belo Hori- zonte é exemplo. “É uma cidade de relevo acentuado, o que dificulta a locomoção. Mas desde que me mudei para cá, em 2000 (quando veio morar com Telma, vin- do de São Paulo), tenho visto que muita coisa melhorou. Mas ainda tem que me- lhorar muito”, afirma. Para ele e Telma, uma cidade mode- lo no Brasil é Socorro (SP), a 138 quilô- metros da capital paulista, e polo de es- portes de aventura. “Socorro é nota 10. A cidade é toda preparada, fruto de par- ceria do poder público com os empresá- rios. O deficiente pode praticar inclusi- ve esportes de aventura, pois há adap- tações para tudo”, afirmou. VALEI-ME, SÃO FRANCISCO! Dentro do templo, considerado um dos principais pontos turísticos de Belo Horizonte, a mobilidade é claramente reduzida. Falta de estacionamento também dificulta Com rampas e facilidade para deslocamento, aquário foi parcialmente aprovado Estádio que vai sediar seis partidas no campeonato mundial tirou um oito (numa escala de 0 a 10) na avaliação do cadeirante Gilberto Porta