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1 Transdisciplinaridade como fonte de conhecimento e resposta ao complexo Docente: Prof.ª Dulce Cabral Aluno: Pedro Miguel Morgado Amaro "Eu acredito muito fortemente que, enquanto o conhecimento é universal, os agentes para desenvolver conhecimento devem refletir a natureza das perguntas que são elaboradas e impulsionados pelas diferentes disciplinas sobre a saúde e o bem- estar de indivíduos e populações " (Meleis, 2007) A forma como uma área é considerada uma ciência é algo que tem sido objeto de discussão ao longo do tempo, principalmente na forma como surge, como olha a realidade e na forma como garante a verdade do conhecimento que produz. Perante a complexidade do Ser Humano cada disciplina por si só será sempre insuficiente para dar resposta às necessidades deste “Ser” que tem entre outras dimensões de vida; as suas expectativas, necessidades, potencialidades, valores pessoais, rede social, nível de literacia em saúde. Terei como objetivo enquadrar a transdisciplinaridade como forma de resposta ao complexo e como a enfermagem se enquadra também como meio de resposta a fenómenos que exigem uma resposta baseada em vários tipos de conhecimento. Esta reflexão divide-se em três áreas percorrendo um caminho que vai do conhecimentoà multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridadeao papel da enfermagem. Tentarei fazer um percurso por alguns parâmetros de natureza epistemológica de forma explorar a questão da complexidade humana e como tal a complexidade das respostas que é necessário dar e a forma como a enfermagem as consegue dar. Começarei por esclarecer a forma como surge o conhecimento (teoria das revoluções científicas, a teoria da evolução e por
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Transdisciplinaridade como resposta ao complexo

Mar 12, 2023

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Transdisciplinaridade como fonte de

conhecimento e resposta ao complexo Docente: Prof.ª Dulce Cabral

Aluno: Pedro Miguel Morgado Amaro

"Eu acredito muito fortemente que, enquanto o

conhecimento é universal, os agentes para

desenvolver conhecimento devem refletir a natureza

das perguntas que são elaboradas e impulsionados

pelas diferentes disciplinas sobre a saúde e o bem-

estar de indivíduos e populações "

(Meleis, 2007)

A forma como uma área é considerada uma ciência é algo que tem sido objeto de discussão

ao longo do tempo, principalmente na forma como surge, como olha a realidade e na forma

como garante a verdade do conhecimento que produz. Perante a complexidade do Ser Humano

cada disciplina por si só será sempre insuficiente para dar resposta às necessidades deste “Ser”

que tem entre outras dimensões de vida; as suas expectativas, necessidades, potencialidades,

valores pessoais, rede social, nível de literacia em saúde. Terei como objetivo enquadrar a

transdisciplinaridade como forma de resposta ao complexo e como a enfermagem se enquadra

também como meio de resposta a fenómenos que exigem uma resposta baseada em vários tipos

de conhecimento. Esta reflexão divide-se em três áreas percorrendo um caminho que vai do

conhecimento… à multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade… ao

papel da enfermagem.

Tentarei fazer um percurso por alguns parâmetros de natureza epistemológica de forma

explorar a questão da complexidade humana e como tal a complexidade das respostas que é

necessário dar e a forma como a enfermagem as consegue dar. Começarei por esclarecer a

forma como surge o conhecimento (teoria das revoluções científicas, a teoria da evolução e por

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fim a teoria da integração) tentando esclarecer na qual se enquadra a Enfermagem e a forma

como vê o seu objeto de estudo. São elas que explicam a forma como o conhecimento se gera

criando a disciplina e a forma como esta se “comporta” perante o seu objeto de estudo.

Do Conhecimento…

Meleis cit. por Lopes (2006) refere que há 3 teorias explicativas para o desenvolvimento de

uma ciencia; teoria da revolução, teoria da evolução e teoria da integração. Elas acabam por dar

diferentes perspetivas da realidade.

Thomas S. Kuhn, em A Estrutura das Revoluções Científicas, defende que a ciencia se

desenvolve num ambiente em que as várias teorias competem umas entre as outras, até que há

a prevalencia de uma. Assim Kuhn não considera a evolução das teorias como algo que se vai

formando ao longo do tempo mas sim “explosões” de conhecimento que surgem e se impoem

perante as teorias já existentes. Esta forma de explicar o surgimento das teorias, assenta em

alguns conceitos como paradigma, ciência normal, anomalias e revolução.

O paradigma é uma estrutura comceptual que é assumida. O paradigma representa um

trabalho que foi completado de uma vez por todas… um paradigma representa um trabalho que

foi completado de uma vez por todas” (Kuhn, 1998).

A ciência normal é considerada o periodo em que os paradigmas são aceites pela

comunidade cientifica. No entanto, surge um periodo em que esses paradigmas começam a não

responder ou a não se aplicar à realidade, surgem assim as anomalias.

Kuhn refere que as anomalias surgem quando alguma “peça de equipamento, projetada e

construída para fins de pesquisa normal, não funciona segundo a maneira antecipada, revelando

uma anomalia que não pode ser ajustada às expetativas profissionais, não obstante esforços

repetidos. Desta e de outras maneiras, a ciência normal desorienta-se seguidamente.” (Kuhn,

1998)

Deste questionamento dos paradigmas existentes surgem então novas investições. A este

respeito Kuhn refere que “quando os membros da profissão não podem mais esquivar-se das

anomalias que subvertem a tradição existente da prática científica – então começas as

investigações extraordinárias que finalmente conduzem a profissão a um novo conjunto de

compromissos, a uma nova base para a prática da ciência” . A esta mudança Kuhn chama

revolução cientifica.

Vemos assim que o surgimento de um novo paradigma implica o abandonar do anterior.

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Fig. 1 – Conceitos Teoria da Revolução

Toulmin (1970), sugere uma teoria para explicação da criação de uma ciência que contrapõe

a teoria da revolução de Kuhn. Surge assim a Teoria Evolucionista. Baseia-se nas teorias da

Evolução de Darwin.

Defende que sempre existem em quantidade suficiente pessoas criativas e curiosas para

manter um contínuo de inovações ou variantes conceituais que entram em competição

intelectual com outras já estabelecidas e aceites. Algumas são aceites outras são descartadas.

Há uma mudança gradual do conhecimento. Baseia-se em 4 princípios:

(1) Cada disciplina tem um corpo de conhecimentos que se vai complexificando. Enquanto

na teoria da revolução há uma substituição dos conceitos anteriores pelos atuais, na teoria da

evolução os conceitos vão evoluindo, havendo uma “maturação” destes e assim tornando-se

mais complexos.

(2) Há uma constante discussão acerca dos conceitos e metodologias, permanecendo assim

aquelas que melhor se ajustam. Tal como há a seleção natural para as espécies, em que os

descendentes que manifestam características mais aptas à sobrevivência e à reprodução viável

são aqueles que permanecem, também o há para o conhecimento segundo a teoria da evolução.

Os conceitos e metodologias que melhor se adaptam à realidade na satisfação das suas

necessidades/problemas, são aqueles que permanecem e se vão complexificando e

desenvolvendo.(3) Tem que haver condições (pessoas qualificadas) para haver mudança. Sem

pessoas o conhecimento não se gera, este é característico do ser humano. É necessária a

interpretação e reflexão da realidade. Sendo assim, devem haver agentes que o façam de forma

Paradigma

Ciência Normal

Anomalias

Revolução Científica

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organizada, com método que lhe garanta confiabilidade e reprodutibilidade, criando condições

de divulgação e discussão sobre o conhecimento.(4) A escolha das teorias é feita de acordo com

as necessidades e problemas da altura, sendo este o objetivo das disciplinas. Implica que haja

uma análise construtiva do conhecimento existente e a forma como este responde aos

problemas.

Toulmin (1977) citado por (Ariza & Harres, 1999) refere que

“na história intelectual como na história natural, o velho ideal filosófico das entidades permanentes, que conservam uma identidade essencial através de uma contínua sequência de mudanças históricas acidentais, pode agora ser superado por uma noção mais vital e menos misteriosa, quer dizer, a das entidades históricas que, se bem não possuem nenhuma caraterística absolutamente imutável, conservam suficiente unidade e continuidade como para permanecer distintas e reconhecíveis de uma época a outra”.

Vemos aqui a rutura que houve com a teoria da revolução, em que o conhecimento vai

evoluindo do simples para o complexo tendo assim em conta o que se tinha anteriormente.

A teoria da evolução do conhecimento pressupõe acordo quanto às áreas problemáticas e

aos critérios de verdade, e ainda quanto à existência de indicadores de que a disciplina se está

a desenvolver cumulativamente. (Lopes, 2006)

Meleis (1991) citada por Lopes (2006) com base nesta teoria refere que as ciências sociais e

humanas, onde a enfermagem se pode incluir, terão dificuldade em ser consideradas disciplinas,

sendo antes tidas como “pretendentes a disciplinas”. Tendo em consideração as características

específicas da enfermagem e da sua evolução, poder-se-á afirmar que ela não obedece aos

critérios enunciados nas teorias atrás referidas porque está marcada, por um lado, pelo fato de

ter evoluido a partir de um ofício, e pelo outro, por ter estado à margem da academia durante

tempos consideráveis. (Lopes, 2006)

Parece criar-se aqui um obstáculo à consideração da enfermagem como área de

conhecimento válida. No entanto a enfermagem tal como outras ciências naturais têm um

objecto de estudo que exige a sua natureza prática e tem necessidade deste tipo de abordagem.

Lopes (2006) citando Meleis (1991,1997) refere que na disciplina de enfermagem não

podemos falar de uma progressão linear do conhecimento,

porque esta progride através de “cumes, vales, retrocessos caminhos circulares

e crises. Destaca neste percurso:

O desenvolvimento de uma teoria não está necessariamente baseado na

investigação, nem esta leva necessariamente a uma teoria.

Sempre existiram e existem áreas de acordo a par com áreas de competição e

de desacordo.

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Numa disciplina que lida com a complexidade do ser humano é pouco credível

que esta o explique com uma única teoria.

A enfermagem age num sistema aberto e é influenciada e reage à sociedade em

todo o momento.

Não se pode dizer que existam na enfermagem comunidades organizadas que

suportem uma teoria em competição com outras.

Há um compromisso entre os antigos e os novos conceitos de enfermagem.

Em situações de mudança os antigos paradigmas são redefinidos, mais do que

rejeitados.

Verifica-se a existência de debate de ideias, quer à volta de conceitos já

estabelecidos, quer na procura de novos caminhos.

Assim a enfermagem pela sua natureza faz uso de várias teorias, de forma a dar resposta às

necessidades e problemas das pessoas, no seu mundo complexo. Há uma multiplicidade de

ambientes, relacionamento interpessoal, interações múltiplas que afastam a enfermagem de

algo simples transformando-a numa abordagem de extrema complexidade que exige perícia.

Medina-Moya (2006) citado por Queirós (2014) refere que os cuidados de enfermagem

representam tal complexidade que toda a aproximação matemática e analítica, toda a intensão

de formalização, supõe uma hipersimplificação representacional que dificulta sobremaneira a

compreensão de tais entidades. Deve haver assim uma visão multiparadigmática.

Meleis (2012), propõe assim uma abordagem que tem em consideração toda a complexidade

do conhecimento de enfermagem que advém do seu objeto de estudo. A teoria da integração,

segundo Lopes, (2006) trata-se de uma teoria que não tem subjacente o padrão tradicional de

progresso por convergência para um paradigma, o que não quer dizer que esta teoria advogue

a ausência de um padrão ou um padrão negativo. Há a consideração das realizações de

enfermagem e a sua base teórica sólida. Define termos como a acomodação (adaptação à

realidade) refinamento (melhoramento progressivo) e coordenação entre as várias ideias,

pensamentos e individuos.

Medina-Moya (2008) citado por Queirós (2014) refere que "O saber de enfermagem

caracteriza-se epistemologicamente como um conhecimento prático que, por sua própria

natureza é pessoal e tácito (...). Este saber prático reflexivo existe na ação profissional de

maneira implícita e pessoal, desenvolvendo-se numa realidade complexa."

O conhecimento em enfermagem forma-se na relação que o enfermeiro tem com o real, o

seu objecto de estudo e a forma como se envolve com este num contexto complexo de relações,

valores, experiências, interpretação e reflexão desta, havendo também algo de pessoal nos

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cuidados (uma apropriação do conhecimento). Kim (2010) citado por Queirós (2014), refere que

o saber de enfermagem faz-se de conhecimento público e privado. O conhecimento público vem

das evidências científicas baseadas na investigação e sistematização. Há uma apropriação e

desenvolvimento de metodologias e teorias emprestadas de outras áreas do conhecimento. No

entanto também na prática do cuidar também vai havendo uma apropriação do conhecimento,

uma interpretação da realidade e uma aplicação desse conhecimento pessoal, intuitivo e que

vem também da sensibilidade do enfermeiro – Conhecimento privado. Há partes deste

conhecimento que são comuns quer aos individuos, quer à disciplina. Assim esta parte comum

do conhecimento torna-se público.

Há uma progressão no conhecimento em que a compreensão que temos agora é diferente

da que tinhamos anteriormente havendo uma progressão constante que envolve a

compreensão, interpretação e aplicação. Desta aplicação surge a resolução dos problemas que

se colocam como alvo de cuidado, e assim revolver os problemas que se colocam no cuidar.

Queirós (2014) diz a este respeito que é nesta espiral hermenêutica que se vai tecendo as

soluções para os problemas de enfermagem, com recurso ao conhecimento empírico, mas num

contexto específico e em função da sagacidade e experiência pessoal, do modo de ser, de se dar

e de fazer.

Há uma interação entre o cuidador e a pessoa que é cuidada, sendo esta complexa e como

tal tem necessidades de resposta complexas que vão para além do que uma área do

conhecimento pode dar. Deverá assim haver uma conjugação de forças de forma a criar soluções

efetivas, com valor para a pessoa assistida. Esta conjugação de forças surge na relação que existe

entre as várias disciplinas, relações estas que têm características muito próprias. Há liderança,

relações de poder, proximidade aos problemas que se colocam, sobreposição de conceitos e

principalmente são feitas de pessoas. Assim coloca-se a questão da forma como estas disciplinas

se cruzam ou não e como podem gerar conhecimento e os princípios que os seus membros

devem ter em conta para que haja uma relação saudável.

… à multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade…

Samaja (1986) e Maturana (2001) citados por Almeida Filho (2005) referem que desde o final

do século passado cresce no campo cientifico a consciência de que a ciência se configura cada

vez mais como uma prática de construção de modelos, de formulação e solução de problemas

mundo em constante mutação.

Começa-se a considerar que a visão cartesiana da realidade (designado como paradigma da

explicação) leva a uma visão redutora do complexo que é o ser humano, em todo o seu campo

de atuação quer interior quer exterior. Há necessidade de deixar uma visão que é redutora para

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ter uma visão conjugada e também ela mais complexa, que com uma visão percebida explica o

“emaranhado” que é a realidade e o ser humano como objecto de estudo. Surgem assim novas

modalidades de disciplinaridade, há uma organização dos campos da ciência que são autónomos

mas que se ligam entre si para responder ao complexo. Surgem aqui os conceitos de multi, pluri,

meta, inter e transdisciplinaridade, que são referidos por Almeida Filho (2005)

Multidisciplinaridade, define-se como um conjunto de disciplinas que abordam um tema ou

uma questão, no entanto os profissionais não estabelecem relação efetiva não havendo uma

cooperação sistemática entre as várias áreas do conhecimento. Cada área desenvolve os seus

objetivos.

Pluridisciplinaridade, há um conjunto de disciplinas que tratam uma temática unificada, que

efetivamente desenvolvem relação entre si, havendo objetivos comuns, havendo algum grau de

cooperação entre elas. No entanto apesar da perspetiva de complementaridade, não existe

coordenação de ações entre as várias áreas do conhecimento.

Interdisciplinaridade auxiliar, há a dominação de uma disciplina perante as outras sendo esta

campo integrador e coordenador. Há uma disciplina que se usa de outras tomando-as de

empréstimo para seu proveito enquanto disciplina mestra.

Metadisciplinaridade, a interação entre disciplinas em redor de um tema é feita num sistema

em que há uma que se situa num nível epistemológico superior. Esta serve de moderadora entre

as várias disciplinas e não como coordenadora.

Interdisciplinaridade, há uma relação entre as várias disciplinas relação esta que é definida

apartir de um nível superior em que esta é determinada pela sua proximidade ao tema em estudo.

Funciona para além de integradora e mediadora como coordenadora do campo disciplinar.

Transdisciplinaridade, há uma integração de disciplinas de um campo particular que

compartilha pontos comuns de visão sobre o problema. Há vários níveis e com objectivos

diversificados, em que a coordenação é assegurada por uma finalidade comum. Há a criação de

um campo novo que idealmente vai desenvolver uma metodologia e autonomia teórica .

Coloca-se aqui um conceito que considero importante neste processo transdisciplinar, e que

é a comunicação que se establece entre as várias disciplinas. Elas não são feitas só de conceitos,

metodologias, ou outras entidades abstratas são feitas de agentes que fazem uso dessas

entidades, que as incorporam na prática do seu dia a dia. Coloco aqui mais uma vez a questão

do conhecimento privado, ou seja, a forma como vamos caminhando na espiral hermenêutica.

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Assim a forma como colocamos a disciplina de enfermagem deve ser inteligivel para os outros

ultrapassando as barreiras que se têm colocado entre as várias áreas do conhecimento. Há um

esbatimento destas fronteiras havendo uma partilha de linguagem e um entendimento comum.

Outro conceito que surge é o trabalho de equipa, onde deve haver liderança, respeito,

aceitação, assertividade e confiança.Cria-se assim uma relação entre as várias áreas do

conhecimento que vai para além do que é a área de atuação de cada um, havendo um fluxo de

atividades, práticas e saberes que transitam entre os vários ramos do saber.

Mas como se coloca a enfermagem neste campo?

… ao papel da enfermagem.

A enfermagem como disciplina tem-se vindo a desenvolver ao longo do tempo, desde a fase

do conhecimento silencioso, criando o seu campo de acção adquirindo um campo conceptual e

metodologias próprias. Assenta num conjunto de saberes que os enfermeiros usam na prática.

Carper (1978) identificou 4 tipos de saberes; empírico (a ciência da enfermagem), estético (a

arte de enfermagem), pessoal, ético (a moral).

Saber empírico, visto como a vertente mais tradicional da ciência. O saber empirico forma-

se da prática do dia a dia com a resolução dos problemas que se colocam de forma competente.

A realidade pode ser vista como algo que pode ser conhecido pela observação e verificado por

outros observadores (Lopes, 2006).

Saber estético, o saber estético parte da enfermagem como algo que é pessoal e pela forma

de resolução dos problemas. Pela individualidade de cada individuo é possivel surgirem

acções/criações de valor estético e que são aceites pela comunidade cientifica. Também existe

a dimensão da complexidade de respostas que é necessário dar e como tal a constante

adequação das técnicas de enfermagem às necessidades específicas de cada pessoa. Estas

respostas nunca são iguais porque as necessidades e os contextos também o não são.

Saber pessoal, o saber pessoal implica capacidade do profissional se apropriar dos conceitos,

de interpretar a realidade e de refletir sobre si e sobre ela. Implica que sejamos “detentores de

um auto-conhecimento elevado e de possuirmos uma noção de integração do Eu. (Lopes, 2006)

Há a envolvência do profissional no contexto de cuidados, com toda a experiência que tem.

Saber ético, surge da forma como os cuidados de enfermagem são prestados, da forma como

entramos no “mundo” da outra pessoa e a informação que recolhemos e a forma como a

devemos usar para o processo terapeutico. Toda a nossa atuação é conduzida por principios

éticos que deverão estar em primeira linha. É também um comprometimento com a sociedade

que nos reconhece valor e nos reconhece um conjunto de competências efectivas.

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É também com este conjunto de saberes que a enfermagem entra no campo da

transdisciplinaridade, com a sua história, com as suas teorias, com a sua percepção da realidade

estando dentro desta. Isto é a transdisciplinaridade não implica a perda de identidade das áreas

do conhecimento que intervêm para formar outro campo do conhecimento. Como Teixeira

(2011) refere a transdisciplinaridade não constitui uma linha teórica, nem um conjunto de

saberes polissemicos e antagónicos, nem uma mistura de conceitos, mas uma atitude diante o

conhecimento, da vida e das produções. Acrescenta ainda que esta posição não exclui a

disciplina, mas considera que pelo estudo da mesma, pode-se chegar à compreensão

transdisciplinar. Sendo assim, através da transdisciplinaridade conseguimos com a união do

conhecimento compreender o mundo e os seus fenómenos e a forma como o ser humano os

vive, percebendo a dinâmica dos vários niveis da realidade.

A transdisciplinaridade surge em oposição ao reducionismo. Morin (2001) citado por Feriotti

(2009) define reducionismo como a área da ciência que limita o conhecimento do todo ao

conhecimento das suas partes. Acenta na crença que se consegue retirar a parte do todo sem

alterar a as suas características. Não considera o princípio sistémico das relações entre as partes,

contexto e como tal não considera e não valoriza a integralização. Tenta simplificar o complexo.

O mesmo autor defende a importância da interação entre as disciplinas na construção da

ciência, porque com a diminuição da clivagem entre elas, consegue-se transferência de

conhecimentos, diálogos, sobreposições, gerando assim novo conhecimento. A realidade é vista

como única.Mais uma vez aqui se coloca a questão da atitude que se tem perante o

conhecimento. A transdisciplinaridade implica a capacidade de dialogar entre os vários

especialistas, flexibilidade de pensamento e atuação. Tem que haver o que Morin chamou ética

da compreensão.

Morin refere como facilitadores desta:

Bem-pensar, pensamento que busca compreender o complexo.

Introspeção, é o que permite reconhecer as nossas potencialidades e as nossas

fraquezas, descentralizado-nos de nós mesmos.

Consciência da complexidade humana, não reduzir o todo às suas partes.

Abertura subjetiva em relação ao outro, aceitar as ideias dos outros

Interiorização da tolerância, implica convicção mas ao mesmo tempo aceitação

das ideias dos outros apesar de contrárias às nossas. É escutar o outro, valorizando-o.

Cultura planetária, é a comunicação efetiva entre as diferentes culturas.

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O principal desafio que se coloca nos dias de hoje é a forma como nos posicionamos na nossa

disciplina e como dialogamos com os membros das outras disciplinas de forma a perceber a

complexidade da realidade, resolvendo problemas de forma transdisciplinar contribuindo assim

para construção do conhecimento.

Na saúde mental e psiquiatria, cada vez mais é necessário uma abordagem transdisciplinar

pelas necessidades emergentes que surgem e as exigências que se colocam. Dou o exemplo da

intervenção comunitária em que se pretende que os utentes sejam tratados nos seus contextos

pessoais. Quer as equipas de apoio domiciliário, quer as de unidades socio-ocupacionais ou

residenciais, previstas na rede de cuidados continuados integrados de saúde mental, devem

trabalhar segundo esta perspetiva de transdisciplinaridade com tudo o que isso implica. Só assim

se conseguirá dar resposta à complexidade de se coloca às equipas de apoio.

Concluindo

O conhecimento e a sua criação tem tido um percurso de aprendizagem que nos permitiu

chegar ao ponto atual. Estamos numa altura em que nos confrontamos com uma realidade que

é complexa e como tal necessitam abordagens complexas. Esta complexidade surge em várias

dimensões que vão desde o individual até ao contexto em que a pessoa se move e ainda mais

amplamente ao contexto social geral. Individualmente o Ser Humano tem uma história de vida,

uma personalidade, um conjunto de valores, necessidades, potencialidades, mecanismos de

coping, perspetiva da sua qualidade de vida, literacia, entre outros. Estas vão influenciar a forma

como se posiciona no mundo e como o vive e ainda como o sente, interferindo também na sua

saúde e bem-estar. Num contexto social mais restrito há um meio onde o individuo se move,

uma rede de relações que estabelece, um conjunto de serviços a que tem na comunidade e os

quais é necessário saber usar. Em termos mais amplos há contextos sociais/económicos que

condicionam a pessoa. Por exemplo, a crise económica que actualmente vivemos e a forma

como esta interfere com a saúde mental das pessoas, com a sua saúde física. Vemos por esta

reduzida descrição de elementos a complexidade de respostas necessárias ao ser humano que

estão relacionadas com várias áreas do conhecimento, em que o uso de uma única disciplina

seria redutora.

Chega-se à conclusão que abordagens simplistas e reducionistas têm dificuldade em explicar

o todo, ao tentarem separar as partes do seu contexto. Fica a ideia de que as disciplinas não são

feitas só de conceitos, metodologias ou outras entidades abstratas, são feitas também de

agentes que interagem entre si e como tal são estes que também criam conhecimento

apropriando-se do existente.

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Perante todo este contexto a abordagem transdisciplinar parece ser a resposta ao complexo.

Nela há esbatimento de fronteiras entre as várias disciplinas, diálogo entre os seus agentes,

sobreposição de conceitos levando a uma polissemia dos cuidados, em que este adquirem um

novo significado. Esta atitude implica que nos posicionemos de forma diferente perante o nosso

conhecimento e perante o dos outros, sendo necessária uma atitude de respeito, diálogo e

principalmente ter presentes princípios facilitadores da ética da compreensão.

Com a transdisciplinaridade criam-se condições para uma abordagem ao complexo e como

tal criação de novo conhecimento numa visão percebida da realidade. É este o caminho que me

parece mais adequado para que se possa, como Meleis 2007) sugere, “refletir a natureza das

perguntas que são elaboradas e impulsionados pelas diferentes disciplinas sobre a saúde e o

bem-estar de indivíduos e populações”

Obras Citadas

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