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Revista Eletrônica do Programa de Pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero Volume 2, número I - Junho 2010 * Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) E-mail: [email protected] Palavras-chave Palavras-chave Jornalismo. Correspondentes internacionais. Fronteiras. Tradução. Gêneros. Resumo Resumo A análise de textos de correspondentes internacionais estrangeiros no Brasil aponta processos de seleção e adaptação de conceitos para culturas que não partilham os mesmos contextos de significação. Seguindo o conceito de semiosferas de Lot- man, correspondentes internacionais ocupam locais fronteiriços entre diferentes espaços de significação, filtrando e traduz- indo signos brasileiros para enviá-los, depois de uma estratégia de adaptação e re-contextualização, para seus países de ori- gem, de forma que seus públicos possam compreender, por aproximação, o sentido dos eventos que pretendem retratar. Ivan Paganotti* Traduções e trans-gêneros Adaptação de termos e estruturas nos textos de correspondentes estrangeiros http://www.revistas.univerciencia.org/index.php/comtempo Keywords Keywords Journalism. Foreign correspondents. Borders. Translation. Genre. Abstract Abstract This paper analyzes the production of foreign correspondents in Brazil, and focuses the processes of selection and adapta- tion of concepts to cultures that don’t share the same contexts. According to Lotman’s semiosphere concept, foreign cor- respondents are placed in the borders between different spaces of meaning. Hence, these journalists filter and translate signs from Brazil in order to send them to their home-countries, after a process of adaptation and re-contextualization that is necessary so that their publics can understand the meaning of the events they are portraying through approximation.. Artigo
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Traduções e trans-gêneros: adaptação de termos e estruturas nos textos de correspondentes estrangeiros

Jan 24, 2023

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Revista Eletrônica do Programa de Pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero

Volume 2, número I - Junho 2010

* Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da

Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP)

E-mail: [email protected]

Palavras-chavePalavras-chaveJornalismo. Correspondentes internacionais. Fronteiras. Tradução. Gêneros.

ResumoResumoA análise de textos de correspondentes internacionais estrangeiros no Brasil aponta processos de seleção e adaptação de

conceitos para culturas que não partilham os mesmos contextos de significação. Seguindo o conceito de semiosferas de Lot-

man, correspondentes internacionais ocupam locais fronteiriços entre diferentes espaços de significação, filtrando e traduz-

indo signos brasileiros para enviá-los, depois de uma estratégia de adaptação e re-contextualização, para seus países de ori-

gem, de forma que seus públicos possam compreender, por aproximação, o sentido dos eventos que pretendem retratar.

Ivan Paganotti*

Traduções e trans-gênerosAdaptação de termos e estruturas nos textos de correspondentes estrangeiros

http://www.revistas.univerciencia.org/index.php/comtempo

KeywordsKeywordsJournalism. Foreign correspondents. Borders. Translation. Genre.

AbstractAbstractThis paper analyzes the production of foreign correspondents in Brazil, and focuses the processes of selection and adapta-

tion of concepts to cultures that don’t share the same contexts. According to Lotman’s semiosphere concept, foreign cor-

respondents are placed in the borders between different spaces of meaning. Hence, these journalists filter and translate

signs from Brazil in order to send them to their home-countries, after a process of adaptation and re-contextualization that

is necessary so that their publics can understand the meaning of the events they are portraying through approximation..

Artigo

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1. Correspondentes internacionais nas fronteiras entre semiosferasRecentemente, a produção dos correspondentes internacionais no Brasil passou a ser foco de

grande atenção da mídia, especialmente desde a ameaça de expulsão do jornalista Larry Rohter, do

diário norte-americano The New York Times, como resultado de reportagens sobre a preocupação

nacional com os exageros etílicos do presidente Luís Inácio Lula da Silva (ROHTER, 2008: 238-241).

Apesar desse interesse, poucas pesquisas acadêmicas 1 levaram em consideração a produção textual

desses jornalistas e suas estratégias discursivas na tradução de conceitos e histórias entre realidades

distintas – como as que dividem o local de onde enviam seus relatos e os públicos de seus jornais.

Alguns dos próprios correspondentes já perceberam a importância de considerar essa cons-

trução de pontes entre diferentes culturas na avaliação de suas produções. Rohter relembra as suas

experiências pessoais que o levaram ao jornalismo; quando ainda trabalhava em Chicago numa

fábrica de lâmpadas, ele já construía pontes entre culturas diferentes ao atuar como intérprete in-

formal dos trabalhadores latinos, pois dominava o espanhol:

No almoço, eles [latinos] me convidavam para dividir os pratos que traziam de casa, e

me faziam perguntas sobre a melhor maneira de se adaptar aos desafios da vida nos

Estados Unidos: como lidar com a burocracia, como evitar problemas com a polícia, como

se comportar de forma apropriada e não causar constrangimento ou chamar atenção

desnecessária sobre eles, explicar por que os americanos agiam de certas maneiras em

situações em que eles, latino-americanos, agiriam de maneira diferente (ROHTER, 2008: 12).

No trecho, Rohter não somente define o que o impulsionou a aproximar-se das populações

que viviam na periferia do sonho americano. Ele também constrói um bom exemplo de como atua

o mecanismo de controle da fronteira numa semiosfera, ou espaço semiótico. Em primeiro lugar,

é constituído um sistema de signos num espaço e num tempo determinado (“explicar por que

os americanos agiam de certas maneiras”), delimitando, filtrando e traduzindo o espaço externo

em relação ao interno (“situações em que eles, latino-americanos, agiriam de maneira diferente”).

Em segundo, é necessário mostrar uma norma de conduta que determine limites e significados

para gestos aceitáveis (“como se comportar de forma apropriada”), necessários (“lidar com a buro-

cracia”), inadequados (“causar constrangimento ou chamar atenção desnecessária”) ou proibidos

(“evitar problemas com a polícia”).

Como representantes do seu público na busca por informações, todos os jornalistas atuam

na fronteira entre semiosferas e no contato entre seu centro e periferia. Ao se posicionar como um

observador externo, filtrando e traduzindo temas que procuram retratar para seu público, os re-

pórteres agem como representantes do olhar do leitor. Este artigo 2 pretende refletir sobre o papel

específico dos correspondentes internacionais na tradução de conceitos definidores de semiosferas

nas periferias e fronteiras desses espaços semióticos. Para isso, exemplos foram retirados de repor-

1 Lima (2008) mostra a importância da re-tradu-ção desses textos para o português por veículos brasileiros, mas perma-necia a necessidade de refletir sobre os processos dos próprios correspon-dentes estrangeiros.

2 Este artigo é resultado de pesquisa apresentada no VII Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo da SBPJor (Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo), realizado na USP (Universidade de São Paulo), em novembro de 2009.

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tagens publicadas com o Brasil como tema, entre 2002 e 2005, pelos correspondentes Emilio Lacave,

do espanhol El Mundo (18 textos no período), Gareth Chetwind, do inglês The Guardian (18 textos),

e Larry Rohter, do norte-americano The New York Times (228 textos).

2. Traduções entre semiosferasLotman define semiosfera como um continuum semiótico delimitado, um espaço de semio-

se, ou o local em que os signos habitam – são criados, reproduzidos e significam (LOTMAN, 1996:

22-4). Delimitando as semiosferas, Lotman situa as fronteiras, que inicialmente determinam até

qual ponto os signos que lhe são próprios podem ser trocados. Esses espaços de fronteira, por

estarem no limite entre o próprio e o alheio, possuem o conhecimento de múltiplas linguagens e

podem selecionar e traduzir signos de uma semiosfera para outra (Idem, ibidem: 24).

Entre o que é próprio e o que é alheio, entre o interno e o externo, as fronteiras das semio-

sferas separam espaços diferentes, mas também os unificam. Isso ocorre porque a fronteira não

deve segregar totalmente os espaços, mas filtrar os textos que atravessam esses pontos de contato.

Observadores externos que operam nas fronteiras entre semiosferas diferentes (como os corres-

pondentes internacionais, o objeto deste estudo) também podem formular descrições que sinteti-

zem outras culturas – e, para isso, eles usam categorias do seu próprio sistema (Idem, 1996: 31).

Esses jornalistas podem traçar paralelos entre contextos distantes partindo de conhecimentos e

avaliações compartilhadas com seu público doméstico, pois os correspondentes são originários ou

ao menos conhecem profundamente o público dos veículos para os quais escrevem. Como não é

possível simplesmente adotar as convenções que aproximam termos semelhantes entre linguagens

diferentes (LOTMAN, 1996: 68), é necessário traduzir culturalmente – ou seja, de forma “trans-

semiosférica” – personagens, ações, valores, eventos e fenômenos sociais.

Um exemplo típico da tradução trans-semiosférica de personagens que precisam ser apresen-

tados e contextualizados culturalmente pode ser encontrado no perfil sobre o cantor Roberto Car-

los, escrito pelo correspondente Larry Rohter, do diário norte-americano The New York Times. Ro-

berto Carlos é classificado como um “Elvis Presley” brasileiro, um “rei” da música assim como Pelé

reina no futebol (ROHTER, 2003a). Para traçar paralelos entre contextos diferentes (Brasil e EUA), o

correspondente adota uma estratégia peculiar: cita avaliações de outros brasileiros (músicos e crí-

ticos) para construir imagens que traduzem para os americanos o que o cantor significa no Brasil.

A imagem de Roberto Carlos como o Elvis brasileiro é do cantor Caetano Veloso, assim como o crí-

tico Jotabê Medeiros afirma que “‘para brasileiros, Roberto Carlos é parte do Natal tanto quanto o

peru é para vocês’ nos EUA” (idem, ibidem) 3. Essa analogia marca o personagem como muito mais

do que um ator social no Brasil: ele é parte de um ritual demarcado pelo seu programa especial de

Natal e a conseqüente troca de presentes entre seus fãs – assim como o peru na ceia norte-america-

na. Ao mesmo tempo, o correspondente dá espaço para que um brasileiro ajude-o a construir uma

3 Todas as traduções de reportagens em inglês, espanhol e francês neste artigo foram feitas pelo autor.

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ponte (uma “correspondência”) entre as culturas dos dois países, o que mostra que o paralelo cons-

truído não é fruto da mente do repórter, mas da avaliação criteriosa de especialistas brasileiros.

Para contextualizar o valor simbólico de ações, os correspondentes também adotam estra-

tégias similares. O trecho abaixo tenta explicar a ousadia e o risco do plano do cineasta Fernando

Meirelles em filmar numa das maiores favelas cariocas. Para isso, Rohter cria uma comparação

sócio-geográfica entre a favela da Cidade de Deus e os bairros negros de Los Angeles:

Como um branco criado em bairros de classe média de São Paulo, Meirelles encontrou

um problema adicional: credibilidade. O equivalente norte-americano da situação que

ele confrontou seria se um nativo do Upper West Side de Nova York decidisse ir ao

South Central de Los Angeles para fazer um filme sobre gangues negras e esperasse ser

recebido de braços abertos (idem, 2003b).

A importância e o significado de eventos também precisam ser explicados e traduzidos entre

culturas diferentes. Durante a cobertura sobre o “mensalão”, que envolveu o suposto pagamento

para parlamentares que apoiassem o governo Lula, o escândalo foi sistematicamente classificado

como o Watergate de Nixon (idem, 2005) – a invasão da sede do partido democrata por agentes

financiados por republicanos ligados ao presidente norte-americano Richard Nixon. Obviamente,

esse paralelo também indica uma avaliação sobre a responsabilidade do ocorrido e as suas conse-

qüências– assim como Nixon renunciou ante a ameaça de um impeachment, Lula poderia/deveria

fazer o mesmo, na insinuação de Rohter.

Valores e outras formas de juízo também podem ser alvo de correspondências, como, por exem-

plo, a visão preconceituosa que os brasileiros do sul e sudeste têm em relação ao sotaque nordestino.

Na representação de Rohter, esse é o mesmo preconceito sofrido pelos sulistas nos EUA (idem, 2003c).

Por último, fenômenos sociais complexos como a migração de nordestinos para o sudeste

podem ser explicados por seus pontos de semelhança, segundo Rohter, ao fluxo dos negros que

saíam do Mississipi em direção a Chicago em busca de trabalho na indústria (idem, 2002). A esco-

lha do paralelo com os trabalhadores negros do sul dos EUA pode ter uma motivação ainda mais

complexa e pessoal: Rohter viveu e trabalhou em Chicago, lado a lado com esses migrantes numa

fábrica de lâmpadas, como dito anteriormente.

Entre as estratégias utilizadas nas correspondências analisadas acima, é bastante freqüente

o uso de comparações (Roberto Carlos é um “rei” no Brasil como Elvis o é nos EUA, cada um com

gênero e súditos próprios) e metáforas (Roberto Carlos é “peru de Natal”). Os temas envolvem a

história e a sociologia norte-americana (como a migração dos negros para o norte dos EUA no

passado), ou seja, são conceitos acessíveis para o público relativamente bem instruído do jornal,

ou tratam de figuras da cultura pop (Elvis).

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3. Trans-Gêneros: influência, adaptação e integraçãoAlém de criar traduções trans-semiosféricas como as vistas acima, é também comum que os

correspondentes internacionais busquem adaptar, traduzir ou integrar gêneros narrativos diferen-

tes para simplificar as histórias que pretendem contar – ou aproximar seus leitores de temas muito

distantes de sua realidade. O apelo a estratégias narrativas consolidadas, como o conflito demar-

cado entre bem e mal, suspense e marcas de afetividade também colaboram para atrair e manter

a atenção do público. A construção de tensão e o retorno ao equilíbrio, pano de fundo das funções

narrativas identificadas por Propp (2006), também está presente em diversos relatos jornalísticos

(MOTTA, 2005) que se apóiam nas estruturas de narrativas orais, que precedem em muito a im-

prensa.

Ao avaliar o trabalho de correspondentes internacionais, Hannerz (2004: 145) demonstrou

que alguns enredos predominam em determinadas regiões e determinam as formas como as histó-

rias de certas localidades podem ou devem ser narradas, tanto no seu formato quanto na sua temá-

tica. Para Lotman, há uma influência mútua entre representações míticas e os registros cotidianos,

como os textos jornalísticos (LOTMAN, 1996: 195; 2000: 153). Mitos são textos antigos e pertencem

ao centro auto-explicativo da semiosfera, pois contam histórias sobre identidades próprias do gru-

po social local e procuram normatizar os sentidos e condutas com leis, reforçando rituais. Já os

comunicados cotidianos, como as crônicas e as notícias, registram eventos anômalos, o excesso e o

incorreto, as histórias que fogem às regras sociais de que tratam os mitos (idem, 2000: 152-153) –

ainda que os textos integrem estruturas narrativas e míticas, como será analisado a seguir:

3.1. Contos de fada e fábulasUm dos gêneros mais próximos da construção mítica central das semiosferas são os contos

de fadas e as fábulas. Elas são centrais na definição da semiosfera porque constroem narrativas

atemporais, que explicam as origens e os valores (que deveriam ser) compartilhados pelos grupos

sociais dominantes. Sua estrutura narrativa também apresenta uma receita básica de sequências

de eventos e posicionamento de personagens que influencia todas as demais formas de contar his-

tórias (PROPP, 2006). Esses gêneros literários definem, por meio de uma lição moral, códigos de

conduta a ser seguidos (dos heróis) ou condenados (dos vilões). Em um exemplo da influência dos

contos de fada na narrativa jornalística, o correspondente Emilio Lacave, do diário espanhol El

Mundo, conta uma fantástica história de jovens separados por diferenças sociais, uma conspiração

familiar, um “temido padrasto” e até uma tentativa de aborto que surpreendentemente chega a um

final feliz. Numa reportagem sobre jovens mães que tentam conciliar os estudos com a maternida-

de, a história é relatada por um professor da adolescente envolvida:

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“Aline, uma jovem muito humilde que engravidou aos 16 anos (…) temia que seu padrasto

a expulsasse de casa e que a família de classe média alta do jovem que a deixou nesse

estado se oporia ao nascimento do bebê (...). Para interromper a gestação, deram uma

injeção em Aline para provocar o aborto. Mas ela não perdeu seu filho, e nós conseguimos

convencê-la de que deveria contar tudo ao seu padrasto e a sua mãe. Falamos com os dois

e a surpresa foi que o temido padrasto lhe deu seu apoio. Foi falar com os pais do jovem

e apresentou uma denúncia contra eles pela tentativa de aborto. Hoje, Aline e Jorge

estão casados e a criança já tem dois anos. De vez em quando, Aline, que já terminou

seus estudos, e seu filho aparecem por aqui para nos dar um abraço” (LACAVE, 2002).

3.2. TragédiasAssim como os milagres são próprios dos contos de fadas, os escândalos e a ruína – a outra

saída para os eventos inesperados nos romances de Dostoievski (Idem, ibidem) – são próprios da

tragédia. Apesar de a temática ser próxima entre os contos de fada, nas tragédias só há a fatalidade

do encontro com o destino inevitável.

O objetivo desse gênero literário e teatral é suscitar horror e piedade: essas histórias funcio-

nam como catarse de sentimentos negativos, para valorizar, por meio da narrativa, aqueles que já

caíram em desgraça. Os “heróis derrotados” encontram-se divididos entre as forças de seu próprio

caráter (ethos) e o invencível destino (dáimon). Esse herói “se movimenta em um mundo também

trágico, no qual se encontram em tensão a organização social e jurídica, caracterizadora da época,

e a tradição mítica e heróica” (SOARES, 1989: 61). Mais uma vez, o correspondente espanhol Emilio

Lacave apresenta um relato comovente, mas dessa vez não há saídas milagrosas e a realidade apre-

senta sua face mais trágica:

Ninguém quer trabalhar no hospital dos bandidos. Nem médicos, nem enfermeiras,

nem diretores. Salários baixos, escassez de médicos, ameaças de pacientes considerados

perigosos pela polícia... (...) “Aqui só se morre” (...) assegura o doutor Vicente, um dos

quatro diretores do centro nos últimos seis meses (LACAVE, 2003).

O relato sobre um hospital que atende os feridos nos conflitos entre traficantes mostra a

impossibilidade dos heróis (médicos) em superar as adversidades do destino (falta de medicamen-

tos, ameaças) e evitar seu infortúnio. “Ninguém quer trabalhar lá”, mas a organização social exige

esse sacrifício heróico – o que reafirma o imaginário mítico dos médicos como salvadores, mesmo

quando falham nesse intento.

3.3. DramasTanto a tragédia quanto a comédia são gêneros dramáticos no sentido teatral, mas o drama

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é também um gênero específico. Os dramas apresentam uma “fusão entre o grotesco e o sublime,

o terrível e a bufonaria, a tragédia e a comédia”, tratando solenemente de tensões sociais ou indi-

viduais (SOARES, 1989: 63). Ao contrário do conto de fadas ou da tragédia, a saída para a narrativa

dramática não é o acaso do milagre, nem a condenação à ruína é sua única alternativa. Seu foco nas

tensões ainda possibilita a transformação da situação inicial – mas não há fórmula mágica para

isso. O correspondente Gareth Chetwynd, do diário inglês The Guardian, apresenta um relato sobre

o cotidiano do segurança particular Sérgio Martins, que trabalha na rica Zona Sul carioca e vive na

periferia de Duque de Caxias, na favela Pantanal:

Os residentes do Leblon ficariam surpresos pelo amargor que Sérgio sente sobre o abismo

social que ele enfrenta todo dia. “A moeda dos ricos no Brasil é a indiferença e humilhação.

Eles desejam um bom dia, mas eles pagam para manter você e seu serviço a uma distância

segura”, ele diz, reclamando que os residentes nunca lhe ofereceram nem mesmo um

copo d’água. (...) O vertiginoso abismo de renda no Brasil há muito é apontado como

uma das menos atraentes qualidades dessa diversificada e rica nação (CHETWYND, 2005).

Ao contrário dos textos trágicos, a origem das tensões sociais que levaram ao conflito nar-

rativo é foco de crítica do próprio personagem principal da matéria. Ele não reclama somente de

sua pobreza (um mal de difícil responsabilização), mas a relaciona com o egoísmo e com a con-

centração de renda da parte mais rica a que serve. Apesar disso, sua vida não é somente amargor e

tragédia, pois o drama mescla também um pouco de felicidade às dificuldades da vida:

A maioria dos amigos de Sérgio cruzam a divisão social para ganhar seus salários, mas

poucos dos seus ricos empregadores se importam com a forma como eles passam seus

finais de semana. O pequeno pedaço de terra nua que é cenário de uma vitória épica de

6 a 1 para os Amarelos, a sombra da mangueira, o churrasco e a cerveja estupidamente

gelada são tudo o que Sérgio e seus amigos podem pedir nessa quente manhã de

Sábado (idem, ibidem).

Apesar de ser um texto mais próximo dos relatos cotidianos do que dos valores mitológicos

como discutidos por Lotman anteriormente, há espaço ainda para valorizar imagens míticas como

a tríade sagrada do futebol, cerveja e churrasco – que representam, no trecho, a felicidade que é

possível aos que “cruzam a divisão social para ganhar seus salários”, ou seja, batalham para não

cair na ruína trágica e não esperam uma solução milagrosa para seus problemas.

3.4. Cartas e CrônicasComo definido por Lotman (1996: 195), as crônicas e os relatos cotidianos como as cartas

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apresentam-se no pólo oposto à construção mítica, mas também é possível encontrar nesses rela-

tos um nível fundamental da narrativa que constrói valores sociais (MOTTA, 2005) como no texto

abaixo, sobre um parque turístico na Ilha de Marajó:

Marajó abunda em animais selvagens e exóticos, florestas, praias, lagoas, mangues,

pântanos e planícies inundadas. (...) a ilha está repleta de animais selvagens dos

trópicos de um jeito que é difícil de imaginar, indo desde jacarés e grandes bagres nos

rios até as graciosas garças e os barulhentos tucanos no ar. (...) Nós também podíamos

perceber animais rugindo pelas redondezas (...). A maioria dos membros do meu grupo

era composta de turistas franceses e recém-chegados à Amazônia, e os superlativos

floresciam deles: “C’est magnifique! Fantastique! Incroyable! Vraiment, c’est le top!” [É

magnífico! Fantástico! Inacreditável! Verdadeiramente é o máximo] é o que eu ouvia

repetidamente enquanto suas câmeras clicavam (ROHTER, 2004).

O texto valoriza a imagem do Brasil como um paraíso tropical exótico e cheio de belezas

naturais exuberantes. Ao mesmo tempo que reforça essa imagem mítica, permite o relato em pri-

meira pessoa de experiências pessoais – é um dos poucos textos em que um dos correspondentes

analisados se posicionam durante a reportagem, escrevendo uma reportagem turística como se

escrevesse uma carta para um amigo relatando suas férias – e o diálogo (dos turistas franceses, que

corroboram a estupefação do narrador). Além disso, a própria escolha temática da narrativa mos-

tra uma aproximação com o cotidiano: o “conto de fadas” analisado anteriormente tratava de um

milagre que salvou uma jovem grávida da pobreza e das ameaças familiares; a “tragédia” mostrava

a ruína de um hospital abandonado; e o “drama” representava a luta contra as diferenças sociais.

Já esta “carta-crônica” relata uma visita turística a um parque amazônico, algo corriqueiro e mais

próximo do cotidiano (ou mais desejável) do seu público leitor.

4. ConclusõesAs estratégias de tradução trans-semiosféricas são inerentes ao trabalho jornalístico, mas são

ainda mais acentuadas nos trabalhos dos correspondentes internacionais. Novas investigações po-

dem apresentar outras estratégias para aproximar e contextualizar elementos, eventos e situações

entre culturas diferentes. O fato de somente um dos correspondentes analisados – Rohter – utilizar

as estratégias de tradução de temas brasileiros, construindo paralelos metafóricos ou comparati-

vos, sinaliza que os correspondentes fazem usos de diferentes níveis de estratégias para aproximar

seu público de seu tema. Enquanto somente Rohter apresentou a estratégia mais elaborada de cons-

truir “paralelos temáticos” (comparando eventos, personagens, ações, valores e fenômenos sociais

brasileiros e norte-americanos), todos os correspondentes analisados fizeram uso de estratégias

narrativas que aproximam textos jornalísticos das estruturas de gêneros literários como contos de

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fada, tragédias, dramas, e crônicas, como uma forma de simplificação dos enredos para facilitar

sua produção (pelos correspondentes) e compreensão (pelo seu público estrangeiro).

ReferênciasCHETWYND, Gareth. Email. The Guardian. 14/3/2005.

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Revista Eletrônica do Programa de Pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero

CoMtempoRevista Eletrônica do Programa de Pós-graduação da Faculdade Cásper LíberoSão Paulo, volume 2, número 1, jun.2010/nov.2010

A revista CoMtempo é uma publicação científica semestral em formato eletrônico do Programa de Pós-graduação em Comuni-cação Social da Faculdade Cásper Líbero. Lançada em novembro de 2009, tem como principal finalidade divulgar a produção acadêmica inédita dos mestrandos e recém mestres de todos os Programas de Pós-graduação em Comunicação do Brasil.

Presidente da Fundação Cásper Líbero Paulo Camarda

Diretora da Faculdade Cásper Líbero Tereza Cristina Vitali

Vice-Diretor da Faculdade Cásper Líbero Welington Andrade

Coordenador da Pós-Graduação Dimas Antônio Künsch

EditorWalter Teixeira Lima Junior

Comissão EditorialÂngela Cristina Salgueiro Marques (Faculdade Cásper Líbero) * Carlos Costa (Faculdade Cásper Líbero)Luis Mauro de Sá Martino (Faculdade Cásper Líbero) * Maria Goreti Frizzarini (Faculdade Cásper Líbero)Liráucio Girardi Junior (Faculdade Cásper Líbero) * Walter Teixeira Lima Júnior (Faculdade Cásper Líbero)

Conselho EditorialAngela Cristina Salgueiro Marques (Faculdade Cásper Líbero) * Antonio Roberto Chiachiri (Faculdade Cásper Líbero) * Carlos Gerbase (Pontíficia Universidade Católica/RS) * Carlos Roberto da Costa (Faculdade Cásper Líbero) * Dimas Antônio Künsch (Faculdade Cásper Líbero) * Dulcilia Helena Schroeder Buitoni (Faculdade Cásper Líbero) *Gilson Schwartz (Universidade de São Paulo) * Heloiza Helena Gomes de Matos (Faculdade Cásper Líbero) *José Augusto Dias Júnior (Faculdade Cásper Líbero) * José Eugenio de Oliveira Menezes (Faculdade Cásper Líbero) * Liráucio Girardi Jr.(Faculdade Cásper Líbero) * Luis Mauro Sá Martino (Faculdade Cásper Líbero) * Maria Goreti Juvencio Sobrinho Frizzarini (Faculdade Cásper Líbero) * Patrícia Bandeira de Melo (Fundação Joaquim Nabuco) * Roberto Reis de Oliveira (Unimar) * Sílvio Henrique Vieira Barbosa (Faculdade Cásper Líbero) * Sonia Castino (Faculdade Cásper Líbero) * Walter Teixeira Lima Junior (Faculdade Cásper Líbero)

Assistente EditorialPaulo Lutero * Tel. (11) 3170-5969 | 3170-5841 * [email protected]

Projeto Gráfico e LogotipoDanilo Braga * Marcelo Rodrigues

Revisão de textosÂngela Cristina Salgueiro Marques * Walter Teixeira Lima Junior

Editoração eletrônicaWalter Teixeira Lima Junior

CorrespondênciaFaculdade Cásper Líbero – Pós-graduaçãoAv. Paulista, 900 – 5º andar01310-940 – São Paulo (SP) – BrasilTel.: (11) 3170.5969 – 3170.5875

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