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Apresentação Documento E-278 – Ordens Régias 1681-1809. Um códice do Arquivo da Cúria Me- tropolitana do Rio de Janeiro Royal Decrees 1681-1809 (Ms. E-278): A Codex from the Archives of the Rio de Janeiro Metropolitan Curia Beatriz Catão Cruz Santos Artigos O “romance contemporâneo” na recristianização do estado brasilei- ro: NÃO DESANIMAR! de Pedro Sinzig e “Contemporary Novel” in the Re-Christianization of the Brazilian State: Pedro Sinzig’s Não desanimar! Claudio Aguiar Almeida A legitimidade da graça: os impactos da tentativa de reforço da políti- ca sesmarial sobre as terras da Casa da Torre na capitania da Paraíba (século XVIII) e Legitimacy of Grace: the Impact of the Attempt at Reinforcement of Sesmaria Policies on the Casa da Torre’s Lands in the Captaincy of Paraíba (Eighteenth Century) Carmen Margarida Oliveira Alveal Kleyson Bruno Chaves Barbosa Migrações negras no pós-abolição do sudeste cafeeiro (1888-1940) Black Migration in Post-Emancipation Coffee-Producing Southeast (1888-1940) Carlos Eduardo Coutinho da Costa Topoi. Revista de História Volume 16, Número 30 | Janeiro – Junho 2015 06 08 55 78 101
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Apresentação

Documento

E-278 – Ordens Régias 1681-1809. Um códice do Arquivo da Cúria Me-tropolitana do Rio de JaneiroRoyal Decrees 1681-1809 (Ms. E-278): A Codex from the Archives of the Rio de Janeiro Metropolitan Curia

Beatriz Catão Cruz Santos

Artigos

O “romance contemporâneo” na recristianização do estado brasilei-ro: Não desaNimar! de Pedro SinzigThe “Contemporary Novel” in the Re-Christianization of the Brazilian State: Pedro Sinzig’s Não desanimar!

Claudio Aguiar Almeida

A legitimidade da graça: os impactos da tentativa de reforço da políti-ca sesmarial sobre as terras da Casa da Torre na capitania da Paraíba (século XVIII)The Legitimacy of Grace: the Impact of the Attempt at Reinforcement of Sesmaria Policies on the Casa da Torre’s Lands in the Captaincy of Paraíba (Eighteenth Century)

Carmen Margarida Oliveira AlvealKleyson Bruno Chaves Barbosa

Migrações negras no pós-abolição do sudeste cafeeiro (1888-1940)Black Migration in Post-Emancipation Coffee-Producing Southeast (1888-1940)

Carlos Eduardo Coutinho da Costa

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O urbanismo humanista e a “polícia espanhola” no Novo Reino de Gra-nada, século XVI The Humanistic Urbanism and the “Spanish Police” in the New Kingdom of Granada, 16th Century El urbanismo humanista y la “policía española” en el Nuevo Reino de Granada, siglo XVI

Carlos José Suárez García

“O celeiro da Amazônia”: agricultura e natureza no Pará na virada do século XIX para o XX“The Breadbasket of the Amazon”: Agriculture and Nature in Pará (Turn of the Nineteenth to the Twentieth Centuries)

Franciane Gama LacerdaElis Regina Corrêa Vieira

Ingratas e pérfidas Medeias! Infanticídio e normatização da sexuali-dade feminina na literatura de rua francesa dos séculos XVI e XVIIUngrateful and Treacherous Medeas! Infanticide and Normalization of Female S exuality in French Sixteenth- and Seventeenth-Century Street Literature

Silvia Liebel

Companhia Estrada de Ferro Dom Pedro II: a grande escola prática da nascente Engenharia Civil no Brasil OitocentistaDom Pedro II Railroad Company: The Great Practical School of the Early Civil Engineering in Nineteenth-Century Brazil

Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro Marinho

A terra dos coronéis no Oeste do Brasil: A Cattle frontier, violência e dominação fundiária no Cerrado goiano The ranchers s territory in the Midwest of Brazil: The cattle frontier, violence and grassland domination within the savannas of Goiás

Sandro Dutra e SilvaTalliton Tulio Rocha Leonel de MouraFrancisco Itami Campos

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Das catacumbas para as últimas fronteiras: violência, sentido e repre-sentação nas marchas do martírio

From Catacombs to the Last Frontiers: Violence, Meaning, and Representation within Martyrdom JourneysDe las catacumbas a los últimos confines: violencia, sentido y representación en los periplos del martirio

Carlos Arturo Salamanca Villamizar

Tradução

O queijo e os vermes: o cosmo de um historiador do século XXThe Cheese and the Worms: the Cosmos of a Twentieth-Century Historian

Dominick LaCapra

Entrevista

Por uma história política do culturalFor a Political History of the Cultural

Fernando Bouza

Resenhas

Edificar territórios, governar o sagrado: história da espacialização eclesiástica medieval a partir de um caso (supostamente) controversoBuilding Territories, Governing the Sacred: History of the Medieval Ecclesiastical Spatialization from the Perspective of a (Supposedly) Controversial Case

Gabriel da Carvalho Godoy CastanhoResenha de LUNVEN, Anne. Du diocèse à la paroisse. Évêchés de Rennes, Dol et Alet/Saint-Malo (Ve-XIIIe siècle). Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2014.

Assim na Terra como no CéuOn Earth as in Heaven

Maria Filomena Pinto da Costa CoelhoResenha de BASTOS, Mário Jorge da Motta. Assim na Terra como no Céu... Paganismo, cristianismo, senhores e camponeses na Alta Idade Média ibérica (séculos IV-VIII). São Paulo: EdUSP, 2013.

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Os desafios profissionais do historiadorThe Professional Challenges of a HistorianLos desafíos profesionales del historiador

Flavia Renata Machado PaianiResenha de BANNER JR., James M. Being a Historian. An Introduction to the Professional World of History. Nova York: Cambridge University Press, 2012.

O Partido dos Panteras NegrasThe Black Panther PartyEl Partido de los Panteras Negras

Wanderson da Silva ChavesResenha de BLOOM, Joshua and MARTIN, Jr., Waldo E. Blacks against Empire: The History and Politics of the Black Panther Party. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 2013.

Sintaxe do futuro: o projeto de uma América do Sul real, possível e imaginadaSintax of the Future: the Project of a Real, Possible, and Imagined South America. Sintaxis del futuro: el proyecto de una Sudamérica real, posible e imaginada

Karina VasquezResenha de CASTRO, Fernando Vale. Pensando um continente. A Revista Ame-ricana e a criação de um projeto cultural para a América do Sul. Rio de Janeiro: Editora Mauad, 2012.

Para além do paradigma da representação: o passado-feito-presente por meio de obras literáriasBeyond the Paradigm of Representation: the Past-Made-Present by Literary Works

Thaís Leão VieiraResenha de GUMBRECHT, Hans Ulrich. Atmosfera, ambiência, stimmung: so-bre o potencial oculto da literatura. Tradução Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC Rio, 2014.

Opinião e Comentário

Resposta a Paul LovejoyReply to Paul Lovejoy

João José ReisRéplica ao artigo Jihad na África Ocidental durante a “Era das Revoluções”: em direção a um diálogo com Eric Hobsbawm e Eugene Genovese, de Paul E. Lovejoy

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Jihad, “Era das Revoluções” e história atlântica: desafiando a inter-pretação de Reis da história brasileiraJihad, “the Age of Revolution”, and Atlantic History: Challenging Reis’ Interpretation of Brazilian History

Paul E. Lovejoy

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Universidade Federal do Rio de JaneiroReitor: Carlos Antônio Levi da Conceição

Instituto de HistóriaDiretor: Fábio de Souza Lessa

Programa de Pós-graduação em História SocialCoordenadora: Monica Grin

Vice-coordenador: Marcos Bretas

Topoi. Revista de HistóriaISSN 2237-101X

Revista semestral do Programa dePós-graduação em História Social da UFRJ

Comitê EditorialLise Fernanda Sedrez (Editora chefe) — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de História (IH), Rio de Janeiro (RJ), Brasil.Antonio Carlos Jucá de Sampaio (Editor executivo) — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de História (IH), Rio de Janeiro (RJ), Brasil.João Luís Fragoso — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de História (IH), Rio de Janeiro (RJ), Brasil.José Murilo de Carvalho — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de História (IH), Rio de Janeiro (RJ), Brasil.Luiza Larangeira da Silva Mello — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de História (IH), Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

Editor de ResenhasMurilo Sebe Bon Meihy — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de História (IH), Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

Secretários de RedaçãoIsabel Cristina LeitePedro Krause Ribeiro

Preparação: Clarisse CintraRevisão: Marco Antonio CorrêaRevisão em inglês: Leda BeckPaginação: Luciana Inhan

Conselho EditorialAlberto da Costa e Silva — Academia Brasileira de Letras (ABL); Ministério das Relações Exte-riores/Itamaraty, Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

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Andrea Daher — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de História (IH), Rio de Janeiro (RJ), Brasil.Caio Boschi — Pontifícia Universidade Católica (PUC-Minas), Departamento de História, Belo Horizonte (MG), Brasil.Eduardo Viveiros de Castro — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Programa de Pós-graduação em Antropologia Social (PPGAS), Rio de Janeiro (RJ), Brasil.Evaldo Cabral de Mello — Ministério das Relações Exteriores/Itamaraty, Rio de Janeiro (RJ), Brasil.Francisco Bethencourt — King’s College London, Department of History, Londres, Inglaterra.Francisco José Calazans Falcon — Universidade Salgado de Oliveira (Universo), Programa de Pós-graduação em História, São Gonçalo (RJ), Brasil.Ilmar Rohloff de Mattos — Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), Departamento de História, Rio de Janeiro (RJ), Brasil.Jacques Revel — École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS)/Centre de Recherches Historiques (CRH), Paris, França.João Adolfo Hansen — Universidade de São Paulo (USP), Departamento de Letras, São Paulo (SP), Brasil.João José Reis — Universidade Federal da Bahia (UFBA), Departamento de História, Salvador (BA), Brasil.José Carlos Chiaramonte — Universidad de Buenos Aires (UBA)/Instituto Ravignani, Buenos Aires, Argentina.Maria Helena Pereira Toledo Machado — Universidade de São Paulo (USP), Departamento de História, São Paulo (SP), Brasil.Maria Stella Martins Bresciani — Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Departamento de História, Campinas (SP), Brasil.Peter Burke — University of Cambridge, Emmanuel College, Cambridge, Inglaterra.Renato Janine Ribeiro — Universidade de São Paulo (USP), Departamento de Filosofia, São Paulo (SP), Brasil.Ronaldo Vainfas — Universidade Federal Fluminense (UFF), Departamento de História, Niterói (RJ), Brasil.Silvia Hunold Lara — Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Departamento de História, Campinas (SP), Brasil.Silvia Regina Ferraz Petersen — Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Departa-mento de História, Porto Alegre (RS), Brasil.Stuart B. Schwartz — Yale University, Department of History, New Haven, Connecticut, Estados Unidos da América.

Topoi. Revista de História agradece aos membros do Conselho Editorial, aos nossos pareceristas ad hoc que colaboraram com o presente número e, em especial, aos professores Diego Galeano (PUC--RIO) e Andrea Daher (UFRJ).

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E-278 – ORDENS RÉGIAS 1681-1809. Um códice do Arquivo da Cúria Metropolitana

do Rio de Janeiro

Beatriz Catão Cruz Santos*

RESUMOEste trabalho é um instrumento de pesquisa que apresenta o livro ou códice E-278 — Or-dens Régias 1681-1809, localizado no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Contém um índice de ordens, alvarás e cartas reunidas sob a rubrica “ordens régias”, expe-didas em nome do soberano e transmitidas ao bispado do Rio de Janeiro entre 1681 e 1809. Acompanha o índice uma introdução sobre a documentação e um panorama dos assuntos tratados. O trabalho é um dos resultados da pesquisa Irmandades, Capelas e Rituais no Rio de Janeiro do século XVIII, desenvolvida na Universidade Federal do Rio de Janeiro. A pu-blicação do referido códice, entre três que a pesquisa selecionou, é importante para a história do Rio de Janeiro no Antigo Regime e sua inserção no império português.Palavras-chave: ordens régias; códice; bispado, Antigo Regime, império português.

ABSTRACTThis paper is a research instrument presenting the codex E-278 — Ordens Régias 1681-1809, from the archives of the Rio de Janeiro Metropolitan Curia. Preceded by an introduction about the documentation, and an overview of the contents, the core of the work consists in an index of decrees, charters, and letters sent on behalf of the King of Portugal to the Bishop of Rio de Janeiro between 1681 and 1809. It is part of a larger research project of the Federal University of Rio de Janeiro – Brotherhoods, Chapels and Rituals in Eighteenth-Century Rio de Janeiro – that selected three codices for publication and further historical research on the role of Rio in the Portuguese Empire during the Ancient Regime.Keywords: royal decree; codex; bishop; Old Regime; Portuguese Empire.

Documento aprovado para publicação em 7 de abril de 2015.* Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected].

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E-278 – ORDENS RÉGIAS 1681-1809. Um códice do Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro

Beatriz Catão Cruz Santos

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Em 2010 decidi elaborar alguns índices relativos a três códices existentes no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro (E-278 — Ordens Régias 1681-1809; E-236 — Pas-torais e Editais. Livro 1. 1742-1838; Códice E-279 — Ordens Régias. Livro 2. 1809-1862). A decisão adveio de uma identificação anterior de documentos relativos à festa de Corpus Christi no códice 236,1 que não consultei na época de doutorado2 e, sobretudo, porque es-tava contando com o método que costumamos chamar “agulha no palheiro”. Ou seja, na ausência de catálogos detalhados, geralmente contamos só com a experiência dos funcioná-rios dos arquivos. Consequentemente, localizar um documento adequado depende muito da sorte. Nesse caso, sou grata a Silvia Regina de A. Souza, Marcia Regina de Mello Freire e Paulo Lavandeira Fernandes, que me informaram sobre o potencial dos referidos códices para o estudo do culto católico no bispado do Rio de Janeiro. Portanto, além do trabalho de transcrição de alguns documentos que interessavam especificamente à pesquisa Irmandades, Capelas e Rituais no Rio de Janeiro do século XVIII, que coordeno na Universidade Federal do Rio de Janeiro, comecei a elaborar listas dos documentos que constavam dos códices, seguindo a ordem dos mesmos.

De acordo com Silvia Souza, esses livros (236, 278 e 279) estiveram desde sempre na Cúria, advindo da antiga Câmara Eclesiástica. Não há informações sobre o momento de confecção da brochura, que reúne documentos avulsos de natureza variada.

A relevância desses documentos para a história do bispado do Rio de Janeiro, assim como do império português é inegável. Isto é perceptível não somente pelo recuo no tem-po, que dá acesso à regulamentação da vida religiosa até o século XVII, como na extensão geográfica, porque transcende os limites do que fora o bispado do Rio de Janeiro no século XVIII.3 Em 1745, o bispado do Rio de Janeiro compreendia o que hoje constitui os estados do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Minas Gerais, de Goiás, do Mato Grosso, do Paraná, de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul e ainda incluía a Colônia do Sacramento.4

1 Passarei a denominar os códices ou livros do Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro (ACMRJ) apenas pelo número para simplificar a referência.2 Na época do doutorado o Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro estava fechado. Dele resultou o livro SANTOS, Beatriz Catão Cruz. O Corpo de Deus na América; a procissão de Corpus Christi nas cidades da América portuguesa — século XVIII. São Paulo: Annablume, 2005.3 Em 1575 foi criada a prelazia do Rio de Janeiro. Um século depois, por intermédio da bula Romani Pontificis pastoralis sollicitudo (1676), a prelazia foi elevada a bispado de São Sebastião do Rio de Janeiro, sufragâneo da Bahia, que no mesmo ano torna-se arquidiocese. O bispado do Rio de Janeiro só se tornaria arquidiocese em 1892. HOLANDA, Sérgio Buarque de Holanda (Dir.). História geral da civilização brasileira. t. I (A época Colonial). São Paulo: Difel, 1985. p. 51-87; Para mais informações ver: <http://arqrio.org/a-arquidiocese/nossa-historia>. Acesso em: 26 mar. 2015. Sobre os bispos, uma boa obra de referência: PAIVA, José Pedro. Os bispos de Portugal e do Império. 1495-1777. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2006.4 É possível consultar o mapa “Os bispados do Brasil na época de criação de novas dioceses” (1745) em: RUBERT, Arlindo. A Igreja no Brasil. Expansão territorial e absolutismo estatal (1700-1822). V. III. Santa Maria: Palotti, 1988. Veja o documento que inclui na jurisdição do bispado a área desde o sul do Rio São Francisco até a Colônia do Sacramento: doc. 417, f. 187.

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E-278 – ORDENS RÉGIAS 1681-1809. Um códice do Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro

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Além disso, é sabido da dificuldade, hoje relativa, do acesso à documentação no período do Antigo Regime. É com satisfação que torno pública — com o auxílio dos bolsistas que tive até agora, sem os quais seria inviável tornar público aos pesquisadores — a listagem do 278.5 Até o momento a lista só circulava entre meus alunos e no arquivo, acompanhando os novos investigadores que se aventurassem a consultar os códices. A expectativa é que num futuro próximo possamos publicar as listas relativas aos outros códices. A escolha do 278 como o primeiro a ser publicado foi, sob certos aspectos, circunstancial, advinda do movi-mento do trabalho, das idas e vindas do restauro, entre outros aspectos, que marcam o dia a dia de um arquivo.

Pode-se ter uma indicação da variedade temática destes códices e, em particular, do 278, através de uma seleção entre as chamadas “Ordens Régias”, rubrica que reúne ordens régias, alvarás, cartas, petições, certidões etc. As “Ordens Régias” são expedidas em nome do soberano e dirigidas, em primeira instância, ao bispado.6 Foram selecionados apenas alguns temas, a partir de uma leitura geral. Portanto, o levantamento não é completo e sugere-se ao pesquisador que faça uma leitura transversal da lista pinçando os documentos que mais despertem seu interesse.

No códice 278 destacam-se os ritos que envolvem os sacramentos — como o batismo, a eucaristia, a penitência, o matrimônio e a ordem — e as celebrações régias — nascimento e morte.7 No campo dos ritos, há temas específicos, como a ordem que regulamenta as cadei-ras a serem alocadas nas missas em Angola, que deveriam seguir o ritual romano.8 É interes-sante observar que os ritos referidos dizem respeito a diferentes localidades do império: Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Maranhão e, como indicado, Angola. Com relação aos sacramentos, é interessante observar a sua administração a diferentes grupos sociais, como é o caso dos escravos e dos soldados das fortalezas.9

A documentação desse códice também contribui para a história administrativa do bis-pado. Ela informa sobre novas circunscrições eclesiásticas, a exemplo da divisão Sé e da Candelária em quatro paróquias ocorrida em 1749, a criação da Freguesia de São João, que desanexa as povoações de Botafogo, Praia Vermelha e Tijuca da antiga Freguesia de São José, e a criação de vigararias coladas como a Igreja de São Sebastião de Itaipu, do bispado

5 Sou grata a vários alunos que trabalharam neste projeto, em particular a Anna Beatriz Meireles Tomaz Sarcedo Dias, Mayara Novaes Valverde e Laís Morgado Marcoje.6 Algumas referências para pensar as “Ordens Régias” foram extraídas de BELLOTO, Heloísa Liberalli. Como fazer análise diplomática e análise tipológica. Como fazer. Arquivo do Estado e Imprensa Oficial do Estado, São Paulo, v. 8, p. 79, 2002. Disponível em: <http://www.arqsp.org.br/arquivos/oficinas_colecao_como_fazer/cf8.pdf>. Acesso em: 26 mar. 2015.7 Para consultar os títulos dos documentos, seguem sua numeração e página respectiva do livro. V indica o verso da página. doc. 48, f. 23-23v; doc. 48, f. 23-23v, doc. 60, f. 29; doc. 73, f. 33v; doc. 95, f. 42v.8 Doc. 453, f. 198v.9 Doc. 406, f. 181v.

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do Rio de Janeiro.10 Também é possível ter acesso às côngruas e emolumentos pagos aos funcionários dos bispados, assim como à circulação de riquezas no império por diversos motivos, incluindo religiosos.11 A documentação contribui para uma história administrativa renovada pela ação governativa dos bispos, que se expressa nas visitas paroquiais, no recense-amento das igrejas do Recôncavo da Guanabara, das Minas e do conjunto do bispado.12 Há também várias ordens régias que solicitam aos bispos informações populacionais. Um censo demográfico, que classifica a população em brancos/escravos; homens/mulheres; casados/solteiros; adultos/crianças.13 O primeiro critério sinaliza para a particularidade da escravi-dão moderna, de africanos e seus descendentes. A história da Sé também ganha com vários documentos, que informam sobre o tempo em que ela esteve interina (1707-1808) após a saída da Igreja de São Sebastião no Morro do Castelo em direção à várzea.14 Interessante será relembrar os critérios diversos, incluindo a limpeza de sangue necessária às dignidades e cônegos da Sé que vigoravam no século XVII.15

No códice 278 também é possível encontrar várias informações sobre o regime escravis-ta: ordens acerca do tratamento dos escravos16 e, sobretudo, a respeito da administração dos sacramentos a esta parcela representativa do bispado.17

Destacam-se também os documentos que informam sobre diferentes modalidades de conflitos ocorridos na circunscrição: entre vigário e seus fregueses, entre membros das câ-maras municipais e párocos, entre regulares e o bispo e entre vigário da Vara e juiz ordinário acerca de clérigos que tinham tavernas.18

Há que se mencionar a presença de vários documentos sobre as missões indígenas,19 a Junta Geral das Missões20 e a extinção da Companhia de Jesus.21 Por fim, não se pode deixar de sublinhar a forte presença da região das Minas neste códice, que atravessa temas arrola-

10 Doc. 411, f. 184v; doc. 544, f. 263v-263; doc. 467, f. 203v-205. No caso de novas vigararias coladas há os documentos sequenciais de 468 a 479. 11 Transferências de esmolas do bispado e, particularmente, das Minas, para instituições religiosas de Lisboa, do Porto e de Goa (doc. 213, f. 98; doc. 233, f. 105v-106; doc. 241, f. 108v; doc. 394, f. 177-177v), assim como contribuições para celebrações régias extraordinárias (doc. 276, f. 123v).12 Doc. 7, f. 4-4v; doc. 430, f. 189; doc. 346, f. 156v-157; doc. 72, f. 33-33v e doc. 340, f. 153v.13 Doc. 111, f. 50v-51; doc. 123, f. 56v-57; doc. 216, f. 99. Nesta documentação, crianças são as que não recebem sacramentos.14 Doc. 352, f. 159v-160, entre outros.15 Doc. 6, f. 3v-416 Doc. 10, f. 5v-6.17 Doc. 119, f. 54v-55 e doc. 130, f. 60v-61v. 18 Doc. 533, f. 257-258 ; doc. 183, f. 85.19 Doc. 289, f. 128v; doc. 332, f. 148v-149.20 Doc. 25, f. 13v-14; doc. 31, f. 16v; doc. 32, f. 16v-17; doc. 447, f. 197. Na documentação é referida como Junta das missões. Sobre o organismo, criado em cerca de 1655, também denominado Junta dos Missionários ou Junta para a propagação da fé: MELLO, Marcia Eliane A. Souza e. Entre Conselhos e Tribunais Régios: a Junta Geral das Missões no Antigo Regime português. Portuguese Studies Review, v. 17, p. 61-91, 2012.21 Doc. 513, f. 228v-229, doc. 514, f. 229-231, doc. 515, f. 231v-245.

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dos nesta introdução. Como já foi observado, os assuntos são diversos, incluem ainda mal comportamento de religiosos22 e o controle para evitar a evasão de mulheres para Portugal.23

Aspectos formais

É importante observar certos aspectos formais dos títulos dos documentos que constam do 278. Como é costumeiro na época, há uma enorme variedade de grafias no interior do códice, que mantivemos como no original. Por isso, selecionamos os exemplos, localizados nos respectivos documentos. São eles: conhecença (doc. 116), conhecencias (doc. 117) e conhecens-saz (doc. 223); Vagante (doc. 3) e vacante (docs. 16, 184, 376, 511 e 537); Pernagua (doc. 14) e Pernaguá (doc. 37); asougue (doc. 26) aSouge (doc. 437); Gurgel (doc. 71) e Grugel (doc. 82); dimisoriaz (doc. 154) e Dimisurias (doc. 164); aljubi (doc. 167) e aljube (docs. 377, 390 e 522), emolumentos (doc. 211) e emuLimentos (doc. 333); Paracis (doc. 332) e o plural Paracizes (doc. 334), cleregos (doc. 354) e clerigos (docs. 286, 306, 359 e 436), Conssiencia (doc. 407) e Consciencia (docs. 230, 314, 496, 497, 539); Eucesos (doc. 494) e excessos (docs. 10 e 336); Deião (doc. 501) e deão (docs. 1, 17, 162, 318, 321, 408 e 480). Há também grafias singulares, que não se pode assegurar serem erros, omissões, costume ou decorrência de um letramento falho. São os casos de Nomer (doc. 173), copor (doc. 198), aRematação (doc. 375), falssas (doc. 432). Em todos os casos, mantivemos o repeito ao documento.

Além disso, há que mencionar outras características do códice que afetam a paginação: há duas folhas 163. A numeração das páginas está fora de ordem, pois a folha 188 antecede a 187, depois da folha 187 há a 184, depois da folha 202 há a 204, depois da folha 204 há a 203, depois da folha 222 há a 224, não há a folha 230 e a folha 263 é repetida.

Por fim, é importante mencionar que, na elaboração desse instrumento de pesquisa, foram usadas as Normas técnicas para transcrição e edição de documentos manuscritos24 de acordo com a Comissão de Sistematização e Redação do I Encontro Nacional de Norma-tização Paleográfica (São Paulo: 28 e 29 de novembro de 1990) e do II Encontro Nacional de Normatização Paleográfica (São Paulo: 16 e 17 de setembro de 1993). A partir daquelas normas, que visam unificar as edições paleográficas, usamos as seguintes:

Respeito total ao documento.O S caudado duplo será transcrito como SS e o simples como S.O R e S maiúsculos, com som de rr e ss serão transcritos R e S maiúsculos, respectiva-

mente.

22 Doc. 85, f. 38-38v; doc. 115, f. 52-52v; doc. 124, f. 57-57v; doc. 126, f. 58.23 Doc. 340, f. 153v; doc. 351; f. 158v-159v.24 Para ter acesso a essas normas pode-se consultar: <http://www.arquivonacional.gov.br/Media/Transcreve.pdf>. Acesso em: 22 mar. 2015.

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As letras ramistas b, v, u, i, j serão mantidas como no manuscrito.Aos enganos, omissões, repetições e truncamentos que comprometam a compreensão do

texto recomenda-se o uso da palavra latina [sic] entre colchetes e grifada.Todas as abreviaturas serão desdobradas.Os sinais especiais de origem latina e os símbolos e palavras monogramáticas serão des-

dobrados, por exemplo, &rª = etc.; IHR = Christus.Os sinais de restos de taquigrafia e notas tironianas serão vertidos para a forma que re-

presentam, grifados. O sinal de nasalização ou til, quando com valor de m ou n, será desdobrado. Quando a leitura paleográfica de uma palavra for duvidosa, colocar-se-á uma interroga-

ção entre colchetes depois da mesma: [?]. As maiúsculas e minúsculas serão mantidas. A ortografia será mantida na íntegra, não se efetuando nenhuma correção gramatical. As palavras que se apresentam parcial ou totalmente ilegíveis, mas cujo sentido textual

permita a sua reconstituição, serão impressas entre colchetes. As palavras ilegíveis para o transcritor serão indicadas com a palavra ilegível entre col-

chetes e grifada: [ilegível].

A seguir, os documentos que constam do Códice 278:

1) Lixboa 18 de Novembro de 1681 Ordem em que Se manda pagar do Contrato das Baleias as Congruas ao Senhor Bispo de 800 mil réis para esmollas 800 mil réis e para Seus officiaes 120 mil réis ao Reverendo Deão 100 mil réis, a cada huma das quatro dignidades 80 mil réis, e a cada hum dos Seis Conegos 60 mil réis e cada hum dos douz mayor Conegos 30 mil réis a cada hum dos quatro Capelaes 25 mil réis: a hum cura que Se há de prover an-nual 7309.20 réis, a hum Coadjutor 25 mil réis a cada hum dos quatro mossos do Couro 12 mil réis ao Mestre da Capella: 40 mil réis ao Tangedor do orgam 25 mil réis ao Subechantre 20 mil réis ao Porteiro da Mesma 10 mil réis, e da ordinaria da fabrica 120 mil réis a hum Sachristão 25 mil réis [f. 1-1v]

2) Lixboa 16 de Janeiro de 1682 Ordem em que Se manda que oz prezos Eccleziasticos Se Recolhão a Cadea publica desta Cidade [f. 1v-2]

3) Lixboa 11 de Agosto de 1682 Ordem em que Se manda que as côngruas dos Bispos durante a Sé Vagante Se Repartão em trez partes, huma para o gasto das Bullas e ajudas de custo do Bispado futuro, outra para as obras da Igreja, e a outra para o Bispado futuro compor Sua vara com o dever [tendo] que a primeira parte Se retirará do monte mayor e da que Restar Se fação as duaz [f. 2-2v]

4) Lixboa 27 de Janeiro de 1687 Ordem em que Sua Magestade não [corroído 25mm x 10mm] ao Requerimento do Senhor Bispo, Sobre apagarsse a Congrua aos Respeitoz pro-

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vidor em Providor [sic] em Dignidadez e Conesias da Se desde o tempo em que chegarão a esta Cidade e Senão Collarão por andar o Senhor Bispo em Vezita porque os podia mandar Collar pellos Seus Ministroz. [f. 2v-3]

5) Lixboa 1º de Março de 1687 Ordem em que Sua Magestade ordena que o Prelado de qualquer Convento que tiver dos Sacerdotes Mande todos os annos dous a doutrinar e administrar-lhe os Sacramentos: sem prejuízo dos direitos Parochiais [f. 3-3v]

6) Lixboa 15 de Junho de 1687 Ordem que por Rezolução de Sua Alteza em que ordena aos officiaes da Camera da Capitânia do Rio de Janeiro para Serem os naturaes [corroído 10mm x 10mm] [ilegível] nos Provimentos que Se fizerem de dignidades e Conegos da nova Sé não Se offerecendo ou por Sugeitos de mayores merecimentos e tendo elles a Limpeza de Sangue e mais circunstancias necessárias [f. 3v-4]

7) Lixboa 4 de Novembro de 1687 Ordem porque Sua Magestade houve por bem que o Senhor Bispo Dom Jozé de Barros Alarção Se desse embarcação todas as vezes que houvesse de hir vizitar as Igrejas de Seu Bispado, ou ao Vigário Geral, ou a outras quaes quer pessoas que elle enviar, e os mantimentos necessarios para a viagem assim como Se dão aos Bispadoz do Brazil [f. 4-4v]

8) Lixboa 15 de Novembro de 1687 Ordem em que Sua Magestade manda Se pague ao [Priorte] da Sé a quantia de 360.800 réis para a Semana Santa [f. 4v-5]

9) Lixboa 30 de Dezembro de 1687 Ordem em que Sua Magestade Recomenda ao Se-nhor Bispo lhe de conta do Progresso da Cristandade nestas Conquistas, e applique todos o cuidado a dito Progresso e os Religiozos [f. 5-5v]

10) Lixboa 23 de Março de 1688 Ordem em que Sua Magestade manda moderar os excessos dos castigos aos escravos [f. 5v-6]

11) 27 de Março de 1688 Ordem em que Sua Magestade manda que não Sahão deste Porto Navios Sem Capelaens e que o Senhor Bispo ajustem o que lhe devem pagar os Mes-tres e que por Sua conta fique o persuadir os Capelaens a hirem, e [pela] do Senhor Gover-nador de obrigar os Mesmos lhe paguem, e que os navios que primeiro partirem deste Porto para Angola Sejão obrigados a levarem os Capelaens que tiverem de Lá vindo, dandosse lhe a passagem livre, e mantimentos por conta dos mesmos mestres [f. 6-6v]

12) Lixboa 8 de Janeiro de 1689 Ordem em que Sua Magestade manda informar o Senhor Bispo sobre huma queixa que fes a Camera de o dito Prelado impidir Se fizesse a Procissão do Corpo de Deus por falta de sera [f. 6v-7v] -

13) Lixboa 17 de Março de 1693 Ordem Sobre os Escravos de Se lhe não administrarem oz Sacramentos por quererem de conhesenssa mais do que hé devido, em que Elrey enco-menda Se tire o excesso, e Se castiguem os Senhores que forem culpados doz ditos escravos não Receberem os Sacramentoz. [f. 7v-8]

14) Lixboa 19 de Novembro de 1700 Sobre a Igreja de Pernagua Se por em Concursso - Copia - [f. 8]

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15) Lixboa 7 de Dezembro de 1701 Ordem em que Sua Magestade ordena o Senhor Bispo para que os Seus Vizitadores Senão entrometão a tomar Conta das Capellas que forem instituidas por leigos e aos Juizes ordinarioz que Se abstenhão dos procedimentos de que cezão [f. 8v]

16) Lixboa 21 de Dezembro de 1701 Ordem em que Sua Magestade manda ao Provedor da Fasenda Real do Rio de Janeiro que na forma da que passou em 11 de Agosto de 682, fassa entregar ao Senhor Bispo Dom Francisco de São Jeronimo a parte que lhe [ilegível] da Congrua do Bispado daquella Capitania vencida no passado próximo passado [sic] da Sé Vacante [f. 8v-9]

17) Lixboa 26 de Janeiro de 1702 Alvará que Sua Majestade houve por bem de Conceder faculdade ao Senhor Bispo do Rio de Janeiro para poder nomear as dignidades Conesias Vigarios e mais benefícios e cargos ecclesiasticoz daquelle Bispado, depois de nelle Residir e vagarem depois de sua Residencia nas pesoas que lhe parecer excepto a de Deão [f. 9-10]

18) Lixboa 07 de Janeiro de 1702 Ordem que Sua Majestade manda que ao Senhor Bispo se dem os mesmos Cento e vinte mil réis cada anno para a aposentadoria de casas que se derão ao Bispo pelo seu antecessor [f. 10v-11]

19) Lixboa 17 de Fevereiro de 1702 Ordem em que Sua Majestade manda que ao Senhor Bispo Se fassa pagamento de seu ordenado e mantimento de hum Conto de Reiz cada anno [f. 11-11v]

20) Lixboa 10 de Março de 1702 Ordem em que Sua Majestade manda por a Con-cursso a Igreja de São Salvador deste Bispado por dezistencia do padre Thomás da Fonseca [f. 11v-12]

21) Lixboa 17 de Marco de 1702 Ordem Sobre Se unirem as duas Provincias do Carmo de Brazil a de Portugal. [f. 12-12v]

22) Lixboa 22 de Março de 1702 Ordem em que Sua Majestade manda informar Sobre oporemsse a concursso as Igrejas nas Capitanias do Sul perante o Vigário da vara [f. 12v-13]

23) Lixboa 22 de Março de 1702 Ordem em que Se Recomendão as missõens [f. 13]24) Lixboa 21 de Abril de 1702 Ordem Sobre os Índios pedidos do Maranhão mandada

ao Senhor Bispo [f. 13-13v] 25) Lixboa 21 de Abril de 1702. Ordem Sobre os índios pedidos pelo Maranhão manda-

da a junta das Missõens [f. 13v-14]26) Lixboa 10 de Fevereiro de 1703 Carta de Sua Majestade Escrita ao Governador So-

bre o asougue do Eclesiastico [f. 14-14v]27) Lixboa 16 de Fevereiro de 1703 Ordem em Resposta da carta do Senhor Bispo em

que Reprezentava a Sua Majestade o escândalo da desnudez Com que Saltavão os escravoz dos Navios [f. 14v]

28) Lixboa 22 de Fevereiro de 1703 Ordem em que Sua Magestade manda approvar a opinião do Senhor Bispo de não hirem Religiosos as missoenz das Minaz [f. 15]

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29) Lixboa 27 de Abril de 1703 Ordem em que Sua Magestade Sobre Se dar Capelão para a Fortaleza de Santa Crús na Barra [f. 15-15v]

30) Lixboa 13 de Fevereiro de 1703 Ordem que Sua Magestade em Resposta da queixa que fes a Camera Sobre os escravoz em que manda informar ao Senhor Bispo [f. 15v-16]

31) Lixboa 4 de Mayo de 1703 Ordem em que Sua Magestade manda agradecer o Se-nhor Bispo o cuidado e zello da junta das Missoens pelo fim que se [dejara] [f. 16v]

32) Lixboa 4 de Mayo de 1703 Copia da carta que escreveo Sua Magestade ao Governa-dor Sobre o lugar nas juntas [f. 16v-17]

33) Lixboa 8 de Fevereiro de 1704 Ordem em que Sua Magestade manda ao Senhor Bispo Sobre o Parocho de Aguasu e de São Paulo [f. 17v]

34) Lixboa 14 de Marco de 1704 Ordem que Sua Magestade mandou Sobre a vesita da Misericordia [f. 17v-18]

35) Lixboa 27 de Janeiro de 1705 Ordem que Sua Magestade mandou Sobre os destrit-toz deste Bispado e Acerbispado da Bahia [f. 18]

36) Lixboa 16 de Fevereiro de 1705 Ordem para Se mudar a Sé para a Igreja de São José [f. 18-18v]

37) Lixboa 21 de Fevereiro de 1704 Sobre Se Conceder aos moradores da vila de Perna-guá fazer hum Colegio de Padres da Companhia para Sua doutrina [f. 18v-19]

38) Lixboa 4 de Setembro de 1705 Ordem Sobre a Igreja da Crus da queixa do Mestre de campo [f. 19]

39) Lixboa 8 de Junho de 1706 Ordem Sobre a Igreja de Paratý [f. 19-19v]40) Lixboa 21 de Junho de 1706 Ordem Sobre a Rezolução da Igreja da Se [f. 19v-21]41) Carta que mandou o Senhor Bispo [f. 21-21v]42) Lixboa 23 de Setembro de 1706 Ordem Sobre as duvidas do Juizo Eclesiastico

apellar para a Coroa [f. 21v-22]43) Lixboa 5 de Outubro de 1706 Ordem que Sua Magestade mandou para Se Retira-

rem os muitos Religiosoz que se achavão nas Minas [f. 22]44) Lixboa a 12 de Outubro de 1706 Carta a favor do Padre Felipe Marques [f. 22-22v]45) Lixboa 26 de Fevereiro de 1707 Ordem que Sua Magestade manda pagar oyto mil

Cruzadoz para as obras da Igreja da Conceição [f. 22v]46) Lixboa 26 de Fevereiro de 1707 Ordem que Sua Magestade mandou ao Governador

para dar os oyto mil Cruzadoz para a obra das casas no Hospicio da Conceiçam [f. 22v-23]47) Lixboa 29 de Março de 1707 Ordem Sobre Se fazerem os Sufragios pela morte del

Rey [f. 23-23v] 48) Carta que Escreveo o Senhor Bispo a Sua Magestade Sobre o Colégio da vila de

Pernaguá em 24 de Janeiro de 1708 [f. 23-24]49) Lixboa 18 de Dezembro de 1710 Ordem que Sua Magestade mandou ao Ouvidor

desta Capitania Sobre a mulher de Theodoro Mónz. e Se proceder Contra a dita [f. 24]

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50) Lixboa 20 de Março de 1707 Ordem em que Sua Magestade d não hirem os Negroz Minaz para as minaz e São Paulo Sem primeiro Se bautizarem e Cathequizarem. [f. 24v]

51) Lixboa 20 de Março de 1711 Asento que Se tomou no Consselho geral do Santo officio sobre a jurisdição que hão de Exercitar os ouvidores Geraez Ultramarinoz, assim a Respeito dos familiares Como sobre as materiaz do Fisco em virtude do Alvará de Sua Ma-gestade que Seu Rejistro de 3 de Janeiro de 1711, e Sobre o que mais pertence a esta Materia [f. 24v-26]

52) Lixboa 9 de Junho de 1711 Ordem em que Sua Magestade estranha do Senhor Bispo o não Executtar as ordens que Se lhe tinhão mandado Sobre o não dar Licenssa a clerigos para irem as Minas e nem Se encarregarem a fradez os curatoz e isto Se lhe Recomenda outra vez [f. 26]

53) Lixboa 22 de Julho de 1711 Ordem que Sua Magestade mandou que todo o Clerigo ou frade que viesse de Portugal para o Rio de Janeiro Sem Licenssa que o Remetesse prezo para Portugal [f. 26v]

54) Lixboa 4 de Dezembro de 1711 Sobre o nascimento de huma Princeza de Portugal para se faserem as festas [f. 26v-27]

55) Lixboa 16 de Dezembro de 1711 Ordem em que se recomenda ao Senhor Bispo informe Sobre a queixa que os Paulistas fizerão do Padre Bento Curvelo Maciel e que não torne para a dita Igreja sendo certo a queixa e que busque Parocho que os Governe com Sussego [f. 27]

56) Conta que o Senhor Bispo Dom Frei Francisco de São Jeronymo Sobre el Rey lhe estranhar Consentir que os Religiosoz fossem Parochoz nas Minas em 18 de Mayo de 1712 [f. 27v-28]

57) Lixboa 14 de Abril de 1712 Ordem em que Sua Magestade ordena ao Senhor Bispo mande notificar ao Prior Duarte Teixeira para hir para o Reino e quando duvida o faça embarcar [f. 28-28v]

58) Lixboa 29 de Abril de 1712 Ordem Sobre a queixa que Segunda ves fizerão os mora-dorez de São Paulo do Padre Bento Curvelo Maciel [f. 28v]

59) Lixboa 19 de Outubro de 1712 Ordem para o Senhor Bispo festejar o nascimento de hum Principe [f. 29]

60) Lixboa 7 de Novembro de 1712 Ordem em que Sua Magestade manda ao Senhor Bispo informar Sobre haver de Se fundar na vila de Pernaguá hum Colegio de Padres da companhia [f. 29-29v]

61) Lixboa 8 de Novembro de 1712 Ordem sobre se mandarem tres Religiosoz de São Francisco que havião ficado para o Reyno [f. 29v]

62) Lixboa 9 de Novembro de 1712 Ordem em que Sua Magestade dá parte ao Senhor Bispo em que Se manda primeiro informar Sobre o Requerimento que o dito Prelado fés Sobre não se poderem Sustentar os Parochoz das Minas. [f. 30]

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63) Lixboa 15 de Novembro de 1712 Sobre a queixa que fizerão al Rey os moradores do ouro preto do Padre Claudio Grugel de Amaral Vigário da vara [f. 30-30v]

64) Lixboa 16 de Novembro de 1712 Sobre Se fundarem Hospicioz de Capuchoz de Santo Antônio no Ribeirão do Carmo vila Real e Rio das Mortes [f. 30v-31].

65) Lixboa 26 de Fevereiro de 1713 Sobre o Senhor Bispo fazer a diligência por hum fra-de de São Francisco que tinha fogido da cadea de Pernambuco para o Remeter Se aparecesse nesta Cidade do Rio de Janeiro [f. 31]

66) Lixboa 26 de Janeiro de 1714 Carta em que Se manda Estranhar ao Senhor Bispo de não embarcar o Prior de chaves [f. 31v]

67) Lixboa 26 de Janeiro de 1714 Sobre a Igreja de Nossa Senhora da Conceição estar Sem Parocho e Só ter um clerigo [f. 31v-32]

68) Lixboa 11 de Fevereiro de 1714 Sobre a Igreja da Conceição e de Se dar todos os annos Sem mil réis para ao obra da Capela Mor [f. 32-32v]

69) Lixboa 2 de Março de 1714 Sobre a Igreja de Inhomerim estar Sem Parocho. [f. 32v]70) Lixboa 11 de Abril de 1714 Ordem Sobre o Padre Claudio Gurgel do Amaral para

Se Proceder Contra elle [f. 33]71) Lixboa 30 de Abril de 1714 Ordem Sobre que o Senhor Bispo informe quantos Paro-

chos Se achão nas Minas e os que São necessarios para as novaz Povoaçoens e a necessidade que há dellez. [f. 33-33v]

72) Lixboa 6 de Junho de 1714 Sobre Se festejar o nascimento de hum Infante.[f. 33v] 73) Lixboa 14 de Julho de 1714 Sobre Se fazerem outros hozpícioz No Ribeirão do Car-

mo Vila Real e Rio das Mortes, e Com a informação do Senhor Bispo Se havião a Se ter noz ditos Hospicioz Padres da Companhia [f. 34]

74) Lixboa 14 de Novembro de 1714 Sobre não Se embarcar logo o Prior de Chaves e extranhar ao Senhor Bispo o ter tanto tempo Sem observar as Suas ordens [f. 34v]

75) Lixboa 28 de Dezembro de 1714 Sobre não Serem obrigadas as propriedadez dos Ec-clesiasticoz ao Resgaste e [corroído 15mm x 10mm] Serem [ilegível] por Ministroz Secularez oz Seuz [bens] quando não Pagassem Logo com brevidade Contribuicão [f. 34v-35]

76) Lixboa 28 de Dezembro de 1714 Sobre os Requisitorias que alcanssarão as Mulheres de Seus Maridos que Se achavão nesta Cidade feitoz Soldados por não trazerem passaporte e por Se Remetterem para o Reyno. [f. 35]

77) Lixboa 6 de Janeiro de 1715 Para o Senhor Bispo passar a Corte para tratar da Saúde por molestias que Padesse pelo tempo que Se exprime no Breve de Sua Santidade [f. 35v-36]

78) Lixboa 25 de Janeiro de 1715 Ordem para o Senhor Bispo informar Sobre os Paro-chos que pedeão a Camera de Villa Rica para as duas freguezias [f. 36]

79) Lixboa 27 de Janeiro de 1714 Lixboa 27 de Janeiro de 1715 Ordem Sobre a queixa, que Se fizerão dos Religiozoz que andão nas Minas e Sua Magestade Recomenda ao Senhor Bispo para os fazer hir para oz Seus Conventos [f. 36-36v]

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80) Lixboa 28 de Janeiro de 1715 Para o Senhor Bispo hir para o Reyno tratar da Saude e voltar outra vez para o seu Bispado, ou Renunciar delle [f. 36v-37]

81) Lixboa 31 de Janeiro de 1715 Sobre o Padre Claudio Grugel do Amaral em que Sua Magestade Recomenda ao Senhor Bispo Se proceda Contra elle [f. 37]

82) Lixboa o 1º de Fevereiro de 1715 Em que Se Recomenda muito ao Senhor Bispo tres Religiozoz de São Francisco que andão pedindo esmollas para oz Santos Lugares para se lhe dar todo o favor e ajuda [f. 37v]

83) Lixboa 25 de Mayo de 1715 Sobre clerigo e frades que exercitão jurisdição Sem li-censsa do Nuncio ou de Sua Magestade para os remeter para Lixboa [f. 37v-38]

84) Lixboa 11 de Novembro de 1715 Ordem que mandou Sua Magestade ao Governa-dor Dom Brás estranhando lhe o não ter expulsado os Religiozoz que andavão pellas Minas com escândalo do Povo e occupandosse em Menisterioz [f. 38-38v]

85) Lixboa 14 de Novembro de 1715 Sobre o Senhor Bispo hir para o Reyno quando Se achasse melhor dos Seus achaques pela mesma Licenssa [f. 38v]

86) Lixboa 25 de Novembro de 1715 Sobre não fazer Parochoz aos Religiozoz e Só Sim a clerigos, e Se prover a Igreja de Goratingueta em hum [ilegível] chamado Carlos de Figueiroa Monteiro [f. 39]

87) Lixboa 29 de Novembro de 1715 Sobre dar a Provedoria desta Capitania Sem mil réis por tempo de três annos para a Reedificacão da Igreja da Conceição e da Ilha Grande e oz Reys Magos visto não ter a provedoria da Vila de Santoz [f. 39v]

88) Lixboa 29 de Novembro de 1715Sobre Se ter posto em Concursso a Matriz da Villa da Conceição por varias vezes e ninguem Se oppôz a dita Igreja. [f. 39v-40]

89) Lixboa 16 de Dezembro de 1715 Sobre Se Remeter hum Religiozo Carmelita des-calsso de Santa Tereza que andava nas Minaz prezo E Se quer trarem [ilegível] Seuz bem. [f. 40-41]

90) Lixboa 24 de Janeiro de 1716 Sobre os Parochos de Villa Rica [f. 41]91) Lixboa 27 de Janeiro de 1716 Sobre hirem para as minas todos os annos Religio-

zoz de todas as Religioens desta Cidade e da Bahia pela falta de Parochos para missoens [f. 41-41v]

92) Lixboa 31 de Janeiro de 1716 Sobre oz officiaes da Camera da Villa de Nossa Senhora da Lár dos Pinhaez do Curitiba Sobre não terem quem lhes administrem oz Sacramentos [f. 41v-42]

93) Lixboa 3 de Fevereiro de 1716 Sobre Se pagarem as Congruas pontualmente que lhas não quis pagar o Governador por não lhe querer por o Cumprasse [f. 42-42v]

94) Lixboa 2 de Mayo de 1716 Sobre Se festejar mais o nascimento de hum Infante de Portugal [f. 42v]

95) Lixboa 10 de Mayo de 1716 Sobre que informe o Senhor Bispo dos clerigos ou Re-ligiozos que Se achão nas terras da Sua jurisdição que exercitam jurisdição por ordem do Nuncio e Sem aprovacão de Sua Magestade [f. 43]

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96) Lixboa 28 de Mayo de 1716 Sobre não deffirir Sua Magestade a que se fundam hum Convento de Carmelitas descalçoz Como querião os moradores desta Cidade [f. 43-43v]

97) Lixboa 30 de Septembro de 1716 Sobre o Senhor Bispo nomear Parocho para a Nova Colonia estando Estabelecida pelos moradores [f. 43v]

98) Lixboa 26 de Janeiro de 1717 Sobre o Requerimento do Vigario da freguesia do Pillar de Aguasú Jagaré e Mirabahy em que Sua Magestade manda dar quatro mil cruzadoz para a obra da Capella Mor da Igreja [f. 44]

99) Lixboa 27 de Janeiro de 1717 Sobre o Senhor Bispo não querer uzar da Licenssa que Se Reconcedeo para hir para o Reino e de que tinha Cobrado melhoras Se deixava ficar de que Sua Magestade lhe mandou agradecer o zello [f. 44v]

100) Lixboa 29 de Janeiro de 1717 Sobre Se dar duzentos mil réis por anno por [?] taxa [?] de trez para a obra da Matris dos Reys Magos da Ilha grande, e Sua Magestade manda dar pela fasenda Real [f. 45]

101) Lixboa 29 de Janeiro de 1717 Sobre Sua Magestade mandar dar esmola para a Igreja de Santoz de duzentos mil réis cada anno pp.o de três annos [f. 45v]

102) Lixboa 8 de Fevereiro de 1717 Sobre o Recolhimento de freiras da Cidade de São Paulo; em que Se fundara Com ordem do Senhor Bispo Dom Jose de Barroz de Alarcão e que fugião mulherez de Seus maridoz para se Recolherem nelle em que Sua Magestade ordena ao Senhor Bispo o informe neste parecer [f. 45v-46]

103) Lixboa 8 de Fevereiro de 1717 Sobre o Vigario da Igreja Matris da cidade de São Paulo Bento Curvelo e queicha, que [corroído 20mm x 10mm] fazião do dito Vigario em que Sua Magestade Recomenda ao Senhor Bispo ponha tudo em boa paz e Soccego [f. 46-46v]

104) Lixboa 8 de Fevereiro de 1717 Sobre não impedir o Senhor Bispo aos clerigos das Minas que São Naturaes dellas a que venhão abaixo e para tornarem a ellas, e Só Sim aos clerigos de mar em fora [f. 46v-47]

105) Lixboa 11 de Fevereiro de 1717 Sobre huma excomunhão que Se botarão para se saber de huma joya que se furtou do Pescosso de huma Imagem de Nossa Senhora do Cole-gio desta cidade e se acham na meza de hum clérigo [f. 47-48v]

106) Lixboa 17 de Fevereiro de 1717 Sobre Requerimento que fizerão os officiaes da Camera da Villa de Nossa Senhora das Lus dos Pinhaes da Curutiba em que não tinhão os moradorez quem lhes administrar os Sacramentos e que morriao muitos sem ellez. [f. 48v-49]

107) Lixboa 2 de Março de 1717 Sobre o Requerimento da Madre Senhora Izabel de Santo Antonio para Se tirar humas Esmolas para se dotar huma freira Inglesinha [f. 49-49v]

108) Lixboa o 1º de Abril de 1717 Sobre a ordem em que Sua Magestade mandou decla-rar ao Senhor Bispo a forma que Se devia Seguir para Senão faltar com o [pasto] Espiritual aos moradores das Minas em hir todos os annos em missão dous Religiosos das Religioens que aqui hão [f. 49v-50]

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109) Lixboa 12 de Abril de 1717 Em que as Religiosas descalças de Santa Thereza pedi-rão a Sua Magestade lhes mandasse tirar Suas esmolas nas Minas [f. 50-50v]

110) Lixboa 20 de Mayo de 1717 Sobre Sua Magestade pedir ao Senhor Bispo o número dos moradores que há no Seu Bispado tanto Brancos como escravos tanto da cidade como das outras Povoaçoens [f. 50v-51]

111) Lixboa a 2 de Septembro de 1717 Sobre que Sua Magestade Recomenda que Senão ouver missionarios bastante, nesta cidade para as Minas os mande pedir a outro bispo da Bahia [f. 51]

112) Lixboa 31 de Janeiro de 1717 Sobre a queixa que fes Theresa Maria e acima do que Seu marido Filippe dos Santoz Freire para Se Remeter para o Registo [f. 51-51v]

113) Lixboa 5 de Julho de 1717 Sobre o nascimento de hum Infante para se festejar [f. 51] 114) Lixboa 6 de Novembro de 1717 Sobre uma queixa que fes do vigário da vara Se-

bastiam Ferreira de Sá que o dito vigário e seu Escrivão lhe furtara [huma] Sua mulata e a metera em caza. [f. 52-52v]

115) Lixboa 16 de Fevereiro de 1718 Sobre a taxa certa que Se por aos Parochos das Minas e que hão de levar de conhecenssa e não pelo excessivo presso que elles poem a Seu arbítrio [f. 52v-53]

116) Lixboa 16 de Fevereiro de 1718 Ordem que Sua Magestade mandou ao Governador de São Paulo sobre as conhecencias dos vigarios e Se publicou nas Minas [f. 53-54]

117) Lixboa 23 de Agosto de 1718 Sobre o Parocho de São Paulo Bento Curvello Maciel sobre as queixas que Se fizerão delle [f. 54-54v]

118) Lixboa 23 de Agosto de 1718 Recomendação que fes Sua Magestade ao Senhor Bis-po para que não consinta que os escravos que vem de Angola e da Costa da Mina vão para as Minas Sem Se bautizarem e que asim ficão na cidade mesmo tempo Sem Serem Bautizadoz [f. 54v-55]

119) Lixboa 26 de Agosto de 1718 Sobre em que Sua Magestade Recomenda ao Vigario o Doutor Pedro Frei [?] da Inoja Valasco que o Senhor Bispo o consserve na mesma Igreja pelo Seu bom procedimento [f. 55]

120) Lixboa 5 de Dezembro de 1718 Sobre o Requerimento que fes a Sua Magestade Padre João Reverendo [ilegível] de Angola em que os negros de Angola, Costa da Mina e Congo asim que chegavam logo os faziam Remeter para as minas sem se bautizarem e nem serem cathequizadoz [f. 55-56]

121) Lixboa 26 de Dezembro de 1718 Em que Sua Magestade Recomenda ao Senhor Bis-po que a parte aquellaz mulherez que vivem deshonestamente que estão no Recolhimento ou Convento da Cidade de São Paulo e se conserve em mesma não Ser o dito Convento [f. 56-56v]

122) Lixboa 20 de Janeiro de 1719 Sobre em que Sua Magestade Recomenda ao Senhor Bispo Segunda ves lhe mande huma Lista dos moradorez brancoz e escravoz homens e mulherez de toda a Cidade e villas pelos Roez das fortificaçoes de cada freguesia [f. 56v-57]

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123) Lixboa 24 de Janeiro de 1719 Sobre as contendaz que teve o vigario da vara com o Ouvidor da Comarca do Reverendo das Mortes sobre a prizão de hum clerigo que furtara huma joya de Nossa Senhora da Igreja dos Padres da Companhia desta Cidade [f. 57-57v]

124) Lixboa 27 de Janeiro de 1719 Sobre Se darem ao Parocho das minas a Sua Congrua certa de 200 réis por taixação certa que Se pos; para não levarem conhecenças exorbitantes [f. 57v]

125) Lixboa 8 de Fevereiro de 1719 Sobre o excesso que fes hum clerigo em São Paulo em tirar hum negro que hia para as Gales da prizão [f. 58]

126) Petição que Se fes em Lixboa a Sua Magestade o requerimento do Senhor Bispo por seu procurador Sobre a mudança da Sé para outra parte [f. 58-58v]

127) Lixboa 16 de Fevereiro de 1719 Carta que de Lixboa escreveo o procurador do Se-nhor Bispo aserca do Requerimento da Igreja da Candelaria para Ser Sé [f. 58v-60]

128) Lixboa 15 de Março de 1719 Sobre o Requerimento da Prioreza do Convento de Santo Alberto da Cidade de Lixboa freiras, carmelitas descalcas pedirem Licenssa a Sua Ma-gestade para mandarem tirar Suas esmolas no Rio de Janeiro e Seus destritos [f. 60v]

129) Lixboa 27 de Abril de 1719 Sobre os escravos que vem de Angola e dos mui portoz que Se desembarcão e vão para as Minas Sem Serem Bautizados e os que vem doentes que Se acuda Logo com o Sacramento do Bautismo [F. 60v-61v]

130) Lixboa 30 de Outubro de 1719 Sobre as esmolas que tirou o Senhor Bispo para a religioza do Convento de Ilha Vissoza para uma ingllezinha tomar o habito em que Se tinha tirado 2.248 folhas e Remetidas para o Consselho Ultramarino [f. 61v-62]

131) Lixboa 28 de Novembro de 1719 Sobre que informe o Senhor Bispo a Sua Magestade do pedido dos oficiaes da Camera da vara de Jundiahy quererem Parocho confirmado. [f. 62]

132) Lixboa 10 de Janeiro de 1720 Sobre a queixa que fizerão os officiaes da Camera a Sua Magestade do vigário da vara não querer dar Licenssa para em dia de São João Saer por Sacramento na freguesia de São João Del Rey e o do que mais procedeo [f. 62-62v]

133) Copia da Reprezentação que fizerão os terceiroz de Nossa Senhora do Monte do Carmo da vara de Surucaba para Sua Magestade lhe conceder Licenssa para Se fazer hum Hospicio em que asistão nelle religiozoz para Se fazer o culto Divino e observancia da dita ordem terceira [f. 63]

134) Copia da Reprezentação que fizerão a Sua Magestade os officiaes da Camera da Vara da Sorocaba para lhe conceder Licenssa de Se fazer hum Hospicio de Nossa Senhora do Carmo e ordem terceira e ter nelles Religiaoz para Se fazer o Culto divino [f. 63-63v]

135) Copia da Reprezentação que fizerão a Sua Magestade os officiaes da camera da Vara de Itú pedindo Licenssa para Se fazer um Hospicio para Religiozoz de Nossa Senhora do Carmo e Servir de ordem terceira [f. 63v-64]

136) Copia da queixa que fizerão a Sua Magestade os officiaes da Camera da vara de São João del Rey do vigário da vara da desattenção que lhe fizera na Caza na Camera [f. 64]

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137) Copia da Reprezentação que fes a Sua Magestade o Juis ordinario da vara de São João del Rey Sobre o Vigário da vara da dita Manuel Cabral Camello [f. 64v]

138) Lixboa 16 de Agosto de 1720 Ordem em que Sua Magestade Recomenda ao Se-nhor Bispo que oz Parochoz das Igrejas das Minas Sejão Colladoz [f. 64v-65]

139) Lixboa 6 de Septembro de 1720 Sobre haverem dois Bispos hum em São Paulo e outro nas Minas por Se atalharem mais os prejuizos [f. 65]

140) Lixboa 5 de Dezembro de 1720 Sobre que Sua Magestade ordena ao Senhor Bispo informe Se hé conveniente fundarsse hum Hospicio de Nossa Senhora do Carmo na vila de Sorocaba de Nossa Senhora da Candelaria e Seus moradorez correm com a despeza [f. 65v]

141) Lixboa 12 de Dezembro de 1720 Sobre o Requerimento que fizerão os moradores de Campo grande para Se fazer freguezia da Capella de Nossa Senhora do Desterro em que Sua Magestade manda ao Senhor Bispo que informe Com Seu parecer e o procurador mor da fazenda do Lugar e cítio e da despeza que fará [f. 65v-66]

142) Lixboa 5 de Dezembro de 172025 143) Lixboa 19 de Dezembro de 1720 Sobre a queixa que fes a Camera da Vila de São

João del Rey do vigário da vara Padre Manoel Cabral Camello [f. 66v]144) Lixboa 4 de Janeiro de 1721 Sobre o vigario da vila de Nossa Senhora do Carmo o

Padre Doutor Pedro Frz.de Inojosa em que Sua Magestade o Recomenda ao Senhor Bispo o provar em huma das melhores Igrejas das minas tendo bom procedimento [f. 66v-67]

145) Lixboa 2 de Fevereiro de 1721 Carta escrita ao Senhor Bispo em que Se Recomenda para Se tirarem pelos Frades da Caza Santa esmolas para a mesma em que Se Recomenda ao Senhor Bispo dê toda ajuda e favor [f. 67-67v]

146) Lixboa 18 de Março de 1721 Em que Sua Magestade Recomenda ao Senhor Bispo para que mande tirar humaz esmollaz para o dote de uma freyra Dona Anna de [ilegível] Payva [f. 67v]

147) Lixboa 31 de Março de 1721 Sobre a Igreja da Sé de Se mudar para a Igreja da Crus e das esmollas que Se tirarão para ajuda da obra [f. 68]

148) Lixboa 2 de Abril de 1721 Sobre a mudanssa da Sé para a Candelaria e não para a Igreja da Crus em que Sua Magestade ordena Se dê vinte mil cruzadoz para a dita obra [f. 68v]

149) Certidão do Presidente do clero da Santa Caza da Mizericordia da cidade de Lixboa em que ensinua o modo ou estilo que Se observa no hospital com os que Se Sepultão e das vizitas que Se fazem e dos Irmaoz da dita [f. 68v-69v]

150) Lixboa 27 de Mayo de 1722 Sobre não haverem mazcaradoz pela festa daz virgénz pelas desordens que há e inquietaçoens [f. 69v]

151) Lixboa 9 de Junho de 1722 Sobre dous Religiozos Missionários Capuchos em que aribarão a esta Cidade em que Sua Magestade Recomenda os fação hir para a Sua missão para São Thomé pela Bahia [f. 70]

25 Não há título, é sequência do documento da página anterior.

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152) Lixboa 7 de julho de 1722 Sobre oz Irmaos da Mizericordia das duvidaz que tinhão como Parochos das frequesia ao enterrar doz defuntoz e ha vezita da dita Caza e dos mais que Se observa [f. 70-70v]

153) Lixboa 10 de Mayo de 1723 Sobre que Sua Magestade Recomenda ao Cabbido para não passar dimisoriaz a pessoa alguma por não Serem dignas de Serem Sacerdotez [f. 71]

154) Lixboa 17 de Mayo de 1723 Sobre os frades e clerigos que andao espalhados pellaz Minaz em que Sua Magestade Recomenda que os façao Sahir dellas e que So fiquem aquelles clérigos que forem [ilegível] [f. 71-71v]

155) Lixboa 19 de Mayo de 1723 Sobre o Requerimento que fes a Camera ao Bispo Dom Francisco e o Marques de Angeja para Se fundar hum Convento de carmelitas descalçaz a que Sua Magestade não quer defirir [f. 71v-72]

156) Lixboa 22 de Mayo de 1723 Sobre a Contenda que teve o Vigário da vila de Santoz Com o Juis de fora e mais officiaez da Camera Sobre os asentos que havião de ter nas Igrejas em dia da festa de São Sebastiam [f. 72-72v]

157) Lixboa 25 de Janeiro de 1724 Sobre quererem os officiaes da Camera calsar as Ruas por Razão das agoas que Se empossavao nellas e prejudicavao a Saude dos moradorez e Ca-zas [f. 72v-73]

158) Lixboa 14 de Junho de 1724 Sobre o Requerimento a Sua Magestade dos officiaes da Camera da Cidade de Cabo frio para fazersse huma Igreja nova para Se colocar huma Imagem de Nossa Senhora da Conceição que Se achou na praya entre hunz penedoz. [f. 73-73v]

159) Copia da carta que Escreverão a Sua Magestade os officiaes da Camera da villa de Paraty para que a Igreja Matris de Nossa Senhora dos Remedioz fosse collada pelas faltas que havião [f. 73v-74]

160) Copia da petição que fizerão a Sua Magestade os moradorez da vila de Paraty Sobre terem Vigario Collado na dita freguezia [f. 74-74v]

161) Lixboa 15 de Novembro de 1724 Sobre em que Sua Magestade Recomenda ao Deão Gaspar Gonsalvez de [ilegível] para Remeter as esmolas que Se tirarão nas minas para o dote da Inglesinha do Convento de Villa visosa [f. 74v-75]

162) Lixboa 6 de Março de 1725 Ordem em que Sua Magestade ordena ao Cabbido informe Sobre o Requerimento dos officiaes da Camera e moradorez da Vila de Paraty Sobre terem vigário collado na dita freguesia [f. 75-75v]

163) Lixboa 24 de Março de 1725 Ordem Sobre as pessoas que Se quizessem opor a co-nezias e beneficios do Bispado Ecclesiastico haviao de aprezentar Dimisurias e folha Corrida Com mais papeis pertencentes com informação do Cabbido [f. 75v]

164) Lixboa 23 de Abril de 1725 Sobre Se mandar Vigario Geral para a Cidade de São Paulo em que Sua Magestade ordena ao Cabbido eleja um dos Vigarios da Vara de mais Suficiencia [f. 76]

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165) Lixboa 28 de Abril de 1725 Provizão em que Sua Magestade Concede ao Senhor Bispo para o Seu Meirinho Geral poder andar Com vara branca [f. 76-76v]

166) Lixboa 28 de Abril de 1725 Provizão para que as pessoas que forem Sentenciadaz pela Jurisdição Eccleziastica e clerigos Sejão prezas na cadea publica por não haver aljubi do Eccleziastico [f. 77-77v]

167) Lixboa 2 de Mayo de 1725 Ordem em que Sua Magestade Recomenda ao cabbido não deyche hir as minas os Religiozoz Capuchoz, e que Se Se achar Lá algum os fação Logo vir para o Seu Convento [f. 77v-78]

168) Lixboa 13 de Mayo de 1725 Ordem que Sua Magestade manda dar ao Senhor Bispo 120 000 réis todos os annoz para appozentadoria das Cazas em que vive [f. 78-78v]

169) Lixboa 19 de Mayo de 1725 Sobre que no Colegio da Companhia haja mais tres claces do Estudo de filozofia Theologia e moral e das pessoas que se houverem de ordenar mostrarem certidão de dous annoz della de Seus Mestrez [f. 78v-79]

170) Lixboa 19 de Mayo de 1725 Sobre os Religiozos Capuchoz desta Cidade Se levan-tarem com os Seuz Superiorez em que Sua Magestade Recomenda a pas delles [f. 79-79v]

171) Resposta da Carta acima que mandou o Senhor Bispo a Sua Magestade da Provizão que veyo Sobre a pás dos Capuchoz [f. 79v-80v]

172) Lixboa 1º de Junho de 1725 Alvará em que Concede Sua Magestade ao Senhor Bispo para poder nomer [sic] Conesias e meyas Conesias beneficios Igrejas no Seu Bispado depois da Sua Residencia Excepto a dignidade de Deam que hé Reservada ao dito Senhor [f. 80v-81v]

173) Lixboa 6 de Junho de 1725 Em que Recomenda Sua Magestade ao Senhor Bispo as esmollas para o dote da Inglezinha do Convento de villa Vissoza. [f. 81v-82]

174) Resposta da carta acima e ordem de Sua Magestade escrita pelo Senhor Bispo a Respeito das esmollas para a Inglesinha [f. 82]

175) Lixboa 14 de Junho de 1725 Sobre o requerimento que fizerão a Sua Magestade os officiais da Camera da Cidade de Cabo Frio para Se fazer huma Igreja nova e pedião huma ajuda de Custo [f. 82v]

176) Resposta da Ordem em [fronte] de 14 de Junho que escreveo o Senhor Bispo infor-mando sobre o Requerimento da Cidade de Cabo Frio [f. 83]

177) Lixboa 20 de Junho de 1725 Em que Sua Magestade Recomenda ao Senhor Bispo de tomar Conhecimento de humaz esmollas que derão os freguezes da freguezia da Capita-nia do Espirito Santo para Se fazer nova Matriz e entregarão ao vigario [f. 83-83v]

178) Resposta da ordem acima do Requerimento do Capitam mor da Capitania do Es-pirito Santo das esmollas que Se tirarão para Se fazer a Igreja nova. [f. 83v-84]

179) Lixboa 20 de Junho de 1725 Sobre o [queixara] do Padre Vigario João Francisco de Lira do Povo da Capitania de Espirito Santo de não dar expedição as partes e Reter as Cauzas [muitos] annoz [f. 84]

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180) Reposta da ordem acima das queixas do Senhor Vigario da Vara da Vitória João Francoso de Lira [f. 84-84v]

181) Lixboa 11 de Junho de 1725 Sobre Arquivoz que fizerão a Sua Magestade a Camera da Vila do Principe do Serro do frio do Padre Antonio da Silva Bravo vizitador que foy a ella [f. 84v]

182) Lixboa 22 de Junho de 1725 Sobre as contendas que houve entre os Juis ordinario da Vila do Carmo com o Vigario da Vara aserca de dous clérigos que tinhão suas tavernaz e Se [prohibirao] [f. 85]

183) Lixboa 6 de Julho de 1725 Sobre que o Cabbido Sé de vacante mandara Retirar os clerigos que estavão em Vila Real nas minaz de que a Camera se queixara a Sua Magestade [f. 85-85v]

184) Lixboa 19 de Julho de 1725 Sobre Sua Magestade ordenar ao Senhor Bispo para castigar o Padre José Nogueira Ferraz vigario da Igreja de São José por soltar todos os prezos da cadea que estavão para hir para o Monte [Vidio] [f. 85v-86]

185) Resposta da carta e ordem acima da queixa do Vigário o Padre José Nogueira Ferraz Vigário da Igreja de São Jose [f. 86-86v]

186) Lixboa 4 de Septembro de 1725 Em que Sua Magestade recomenda ao Senhor Bispo Se proceda Contra o Conego João Dias Ferreyra sobre a devassa que delle Se tirou nas Minas sendo Vigário [f. 86v-87]

187) Reposta da ordem acima que deu o Senhor Bispo da devassa do Conego João Dias Ferreira [f. 87]

188) Lixboa 10 de Septembro de 1725 Sobre a queixa do Povo das Minas a Sua Mages-tade dos Vezitadorez de levarem exorbitancias no tempo da vesita na condemnação e tributo que poem os ditos Vizitadores [f. 87-87v]

189) Resposta da carta acordem [sic] acima das condenaçoens da vizita [f. 87v-88]190) Lixboa 10 de Septembro de 1725 Sobre a queixa que fes acima da Vila do Carmo

dos Parochos quererem levar Conheccenças Exorbitantez [f. 88-88v]191) Resposta a Sua Magestade da ordem acima das benezes e conhecensias que devião

Levar os Parochoz [f. 88v-89]192) Lixboa 11 de Septembro de 1725 Sobre Se fazer do Recolhimento da Cidade de

São Paulo se fazer Convento de Freiras professaz em que Sua Magestade manda informe o Senhor Bispo Com Seu parecer. [f. 89v-90]

193) Resposta da ordem acima aserca do Convento de Freiras da Cidade de São Paulo [f. 90]194) Lixboa 14 de Septembro de 1725 Em que Sua Magestade Recomenda ao Senhor

Bispo mande tirar humas esmollaz pelas Minaz para dote de huma Inglesa Religioza do Convento de São Bento [f. 90-90v]

195) Lixboa 19 de Septembro de 1725 Sobre a Representação que fes a Sua Magestade a Camera da Vila do Rio de São Francisco sobre a falta que padessem de Parocho que lhes administrem os Sacramentoz [f. 90v-91]

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196) Resposta da ordem acima do Requerimento da Camera da Vila de São Francisco Xavier sobre pedirem Parocho Pago por Sua Magestade [f. 91]

197) Lixboa 21 de Septembro de 1725 Sobre Levarem as Merces das Capellas das Minas pela Licenssa que dao de Se cantar huma exorbitancia, e na mesma forma os Vigários das varaz em dar Licenssa para Se copor [sic] o titulo em alguma festa [f. 91v]

198) Resposta da ordem acima aserca das Merces das Muzicaz das Minaz e vigario da vara [f. 91-92]

199) Lixboa 26 de Septembro de 1725 Sobre as contendaz que tiverão os vigarioz da vara e da Igreja da villa de Santoz: Com os Irmaoz da Mizericordia [f. 92]

200) Resposta da ordem acima aserca doz Vigários da Prasa de Santoz Com os Irmaoz da Misericordia [f. 92-92v]

201) Lixboa 14 de Outubro de 1725 Sobre o Conego João [Dias] Ferreira do procedi-mento da Sua devassa <esta ordem de 14 de outubro pertensse ao anno de 1726 que por erro Se Lanssou no anno de 17[corroído 5mm x 10mm] com as outras de [corroído 3mmx 10mm] = e tão bem a [corroído 5mm x 10mm]> [f. 92v-93]

202) Lixboa 20 de Outubro de 1725 Sobre o Conego João Dias Ferreyra Vigario da Villa de Nossa Senhora do Carmo em andar Sempre com os Seuz freguezes em Contendaz [f. 93-94]

203) Resposta da ordem acima aserca do Conego João Diaz Ferreira quando foy Parocho e vizitador nas Minas [f. 94-94v]

204) Lixboa 12 de Novembro de 1725 Sobre em que Sua Magestade Recomenda ao Senhor Bispo a esmolla da Inglezinha do Convento de Villa Vissoza [f. 94v-95]

205) Lixboa 5 de Fevereiro de 1726 Carta que Se escreveo ao Senhor Bispo de que na Cidade havião Varioz Religiozoz que Recebaão muitas fasendas furtadaz [f. 95-95v]

206) Reprezentação que fizerão os oficiaes da Camera da villa de Paraty queixandosse contra o Padre Manoel Bras Cordeiro Vigario da mesma Igreja de Paraty. [f. 95v-96]

207) Lixboa 9 de Agosto de 1726 Sobre Se tirarem humaz esmollaz para as freiras do Convento de Nossa Senhora da Conceição dos Cardaez e carmelitas descalçaz [f. 96-96v]

208) Lixboa a 2 de Setembro de 1726 Sobre que Sua Magestade ordena ao Senhor Bispo ponha a Igreja de Nossa Senhora da Lus dos Pinharez da Curitiba em Concursso [f. 96v]

209) Lixboa 9 de Outubro de 1726 Sobre o Mestre das Musicaz das Minas e vigario das [corroído 15mm x 10mm] Sobre Levarem exorbitancias [corroído 5mm x 10mm] Licençaz que davão [f. 97]

210) Lixboa 9 de Outubro de 1726 Sobre os emolumentos e Salarioz [ilegível] [ilegível] [ilegível] que Se levão no juizo Ecclesiastico dos Vigarioz da vara das Minaz. [f. 97-97v]

211) Lixboa 9 de Outubro de 1726 Ordem em que Recomenda Sua Magestade ao Se-nhor Bispo o Castigar ao Padre Jose Nogueira Ferraz por Soltar os prezoz da Cadea da vila se São Joze Sendo Vigário [f. 97v]

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212) Lixboa 10 de Outubro de 1726 Sobre Se tirarem humas esmollaz nas Minas para o Convento das Religiozaz e freyras de Santo Alberto da Cidade de Lixboa [f. 98]

213) Lixboa 14 de Outubro de 1726 Sobre as queixas do Padre João Francozo de Lira Vigario da Igreja da Vitoria da Vila da Cappitania do Espírito Santo para o Senhor Bispo dar a providencia para Se evitarem [f. 98-98v]

214) Lixboa 26 de Outubro de 1726 Em que Sua Magestade Recomenda ao Senhor Bispo as esmollas para a Inglesinha do Convento de Nossa Senhora da Conceição de Villa Vissoza [f. 98v-99]

215) Lixboa 6 de novembro de 1726 Em que Sua Magestade Recomenda ao Senhor Bispo que na vezita das Minaz mande fazer huma Lista do número, das pessoaz que há em cada freguesia Brancoz e pretoz homens e mulheres Casadoz e Solteiros e Crianças que não Recebem o Sacramento [f. 99]

216) Lixboa 15 de Novembro de 1726 Sobre que Sua Magestade ordena ao Senhor Bispo declare o meyo para Se aquietarem as desordenz e perturbaçoenz dos Religiozoz Capuchoz de Nossa Senhora da Conceição desta Cidade [f. 99v]

217) Lixboa 18 de Novembro de 1726 Sobre os Visitadorez principalmente os de Per-nagua não Se entrometerem a tomar Conta das Confradias Leigas por Ser da jurisdiçao Secular olhar [f. 99v-100]

218) Lixboa 19 de Novembro de 1726 Sobre o Requerimento que fizerão os officiaez da Ca-mera de São Paulo a Sua Magestade para Se fazer hum Convento de Freyras professaz. [f. 100]

219) Lixboa 22 de Novembro de 1726 Sobre huns clerigos e hum Religiozo de Jérusalem que vierao para esta Cidade Sem licenssa da Sua Magestasde e o Governador os mandou prender para hirem para Lixboa [f. 100-100v]

220) Lixboa 10 de Dezembro de 1726 Sobre Se fazer hum convento na Vila de Itú da Cidade de São Paulo de Religiozoz de Nossa Senhora do Carmo [f. 100v-101]

221) Patrimonio dos Religiozoz de Nossa Senhora do Carmo da Villa de Itú de dos Re-ligiozoz para cima [f. 101-101v]

222) Lixboa 10 de Dezembro de 1726 Sobre Se taixar o estependio certo das conhecens-saz e Salarioz dos vigarioz das varas e das Igrejas das Minaz <Ver folha 11, Ver folha 119 verso> [f. 101v]

223) Lixboa 17 de Septembro de 1726 Sobre haver Parocho na Igreja da Povoação de São Matheuz [f. 102]

224) Lixboa 19 de Dezembro de 1726 Sobre se acomodarem douz Religiozos Capuchoz Italianoz que o cabbido deixou [ilegível] para fazerem Missoenz [f. 102-102v]

225) Lixboa 13 de Mayo de 1725 Ordem em que Sua Magestade manda dar ao Senhor Bispo de sua Congrua hum Conto de Reiz para elle e pagamentos dos Seuz officiaez e para esmollaz cada anno e foy Remitida ao Vice Rey da Bahia < esta ordem pertence ao anno de 1725 que por descuido Se Lançou no anno de 1727> [f. 102v-103]

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226) Copia de huma Ordem que Sua Magestade mandou ao Senhor Bispo Sobre o Re-querimento do Provedor dar Fasenda Real das Minaz Antonio Berco delRio para Se fazer em Vila Rica huma Igreja que possa servir de Cathedral [f. 103v]

227) Resposta da Ordem acima que mandou o Senhor Bispo da Igreja em villa Rica [f. 103v-104]

228) Petição que fes o Senhor Bispo ao Vice Rey da Bahia para lhe mandar pagar a Con-grua de hum conto de réis pela Provizão que veyo de Sua Magestade [f. 104]

229) Lixboa 28 de Janeiro de 1727 Sobre se por a Igreja Matris do Bom Jhesus da vila do Iguape em Concursso por estar vaga por falecimentó do Vigario Collado e Remetersse os Examez dos oppositorez a Mesa da Consciencia [f. 104v-105]

230) Lixboa 2 de Fevereyro de 1727 Sobre as queixaz que fes a Camera da villa de Paraty a Sua Magestade do Padre Vigario Manoel Bráz Cordeiro Pedindo outro Parocho [f. 105]

231) Lixboa 4 de Fevereiro de 1727 Em que pedio o Governador da Cidade de São Paulo a Sua Magestade Vigario geral para a dita para Exercer em falta de Bispo por evitar muitas Ruinaz dos clérigos [f. 105-105v]

232) Lixboa 4 de Fevereiro de 1727 Sobre Se tirarem humaz Esmollaz para Se fazer humaz obraz no Convento das Religiozaz de Nossa Senhora da Piedade da Esperanssa da Cidade de Lixboa [f. 105v-106]

233) Lixboa 14 de Marco de 1727 Sobre Se fazer huma Igreja em Villa Rica para Ser Cathedral, e que informe o Senhor Bispo Com Seu parecer [f. 106-106v]

234) Resposta da Ordem acima aserca de Se fazer Igreja em Vila Rica para Ser Cathedral [f. 106v]

235) Lixboa 14 de Março de 1727 Sobre as Contendaz dos Religiozos Capuchoz dessa Cidade e Se Suspender o dereito da Sagrada Congregação [f. 106v-107]

236) Lixboa 15 de Março de 1727 Carta que mandou o Secretário ao Senhor Bispo So-bre deixar pedirem esmollaz huns Religiozoz para Terra Santa [f. 107]

237) Lixboa 16 de Março de 1727 Ordem ao Senhor Bispo para fazer observar o privi-legio que tem os Religiozos do Convento da Santissima Trindade para terem pedidores para esmollaz para o Seo Convento [f. 107v]

238) Lixboa 21 de Março de 1727 Copia da Carta e ordem que mandou Sua Magestade ao Provincial do Convento de Nossa Senhora da Conceyção dos Capuchos desta cidade Sobre fazer hum Hospicio Sem Sua Licenssa [f. 107v-108]

239) Lixboa 23 de Março de 1727 Carta do Secretario ao Senhor Bispo em que lhe aviza da Carta que foy ao Provincial dos Capuchoz aserca do hospicio que se fés Sem sua Licenssa [f. 108]

240) Lixboa 23 de Mayo de 1727 Sobre Se tirarem humas esmollaz pellas Minas para as Religiosaz do Convento de Corpus Christi de São Domingos de Vila Nova de Gaya do Porto [f. 108v]

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241) Mandado que o Vice Rey da Cidade da Bahia mandou para Se pagar ao Senhor Bispo hum Conto de Reiz Cada ano do Contrato das Baleas de Sua Congrua [f. 108v-109]

242) Lixboa 15 de Janeiro de 1728 Sobre Se festejarem os Cazamentoz dos Principes de Portugal com os de Castella [f. 109-109v]

243) Lixboa 17 de Janeiro de 1728 Sobre as esmollaz para a Inglesinhaz que está no Convento da Conceição de Villa Vissoza [f. 109v-110]

244) Lixboa 27 de Janeiro de 1728 Sobre haver Parocho da Igreja de Nossa Senhora do Desterro da Ilha de Santa Catherina para administrar os Sacramentoz aquelloz moradores [f. 110-110v]

245) Lixboa 29 de Janeiro de 1728 Sobre o Requerimento que fizerão a Sua Magestade as Recolhidas do Recolhimento das Mocaúbaz do Rio das velhas, para se lhe confirmarem humas terraz que lhes forão dadas [f. 110v]

246) Lixboa 24 de Marco de 1728 Sobre que Sua Magestade Recomenda ao Senhor Bispo para que acomode ao Padre Frei Agostinho na Igreja da Ilha de Santa Catherina por Ser Conveniente [f. 110v-111]

247) Lixboa 8 de Julho de 1728 Sobre Se tirarem humas Esmollas para as Recolhidas do Recolhimento de Nossa Senhora da Natividade Caza Pia das Convertidas [f. 111-111v]

248) Resposta de huma ordem que veyo ao Senhor Bispo Sobre as contendaz Com os Irmãos da Mizericordia desta Cidade <Esta resposta pertence ao ano de 1729 que Se Segue adiante que por descuido se lanssou aqui> [f. 111v-112]

249) Lixboa 26 de Outubro de 1728 Sobre a queixa que fizerão a Sua Magestade os Ir-mãos da Misericordia do Provizor e do Senhor Bispo [f. 112-112v]

250) Lixboa 26 de Novembro de 1728 Sobre os Parochos fazerem aSento nos Livros das Parochia dos defuntos e dos Seus ttestamentoz Com toda a Clareza para Se Saber os que morrem abintestado < ver folha 125// e folha 135> [f. 112v-113]

251) Lixboa 11 de Dezembro de 1728 Sobre que Sua Magestade agradesse o dinheiro que Remeteo o Senhor Bispo das esmollaz para o dote da Inglesinha [f. 113-113v]

252) Lixboa 21 de Janeiro de 1729 Sobre as contendaz dos Menistroz Secularez Com os Vigarioz das varas das Comarcaz em Se Rever as cauzaz [f. 113v]

253) Lixboa 26 de Janeiro de 1729 Sobre os Parochoz e Ecclesiasticoz das Minas Levão por tomar contas das Igrejas tres oytavaz de ouro [f. 113v-114]

254) Lixboa 26 de Janeiro de 1729 Sobre o Vigario da Vara da Cidade da Cidade [sic] de São Paulo Com o Carcereyro por deixar fugir hum clerigo e prender o dito em huma Corrente em sua Caza [f. 114-114v]

255) Lixboa 31 de Janeiro de 1729 Sobre o Meirinho do Campo da Cidade de São Paulo tirar hum preco que Se tinha metido na Igreja e Se abraçara com huma Imagem de Santo Christo e o dito Meyrinho o tirava e quebrara a Imagem. [f. 114v-115]

256) Lixboa 21 de Fevereiro de 1729 Sobre a queixa que fes a Sua Magestade o Thezou-reiro dos Auzentez da comarca do ouro preto do Vigario da vara por morte de hum clerigo

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Sem testamento e querer o Vigario tirar huma negra, que era de letuoza [sic] para o Senhor Bispo [f. 115-115v]

257) Copia de huma petição que mandou o Vigário da Candelaria para que Sua Mages-tade nomeasse ou fizesse hum fabriqueiro e Segundo Coadjutor para dita Igreja para guardar os benz da dita fabrica da Igreja [f. 115v]

258) Lixboa o 1º de Abril de 1729 Sobre que Sua Magestade manda ao Senhor Bispo informe sobre a petição do Vigário da Candelaria e que remeta a informação [f. 115v-116]

259) Lixboa 12 de Abril de 1729 Em que Sua Magestade encomenda ao Senhor Bispo para se tirarem humas esmollaz para huma Ermida dos Religiozoz Alemães de São João Nipomoceno [f. 116-116v]

260) Lixboa 21 de Mayo de 1729 Sobre Se por em Concursso a Igreja de Santa Anna da Villa de Nossa Senhora da Conceiçao de Itanhaem pela desistencia e deixação que della fes o Padre Manoel Gonçalves Soutto. [f. 116v-117]

261) Lixboa 22 de Mayo de 1729 Sobre Se tirarem humas Esmollaz para as obraz do Convento das Religiozaz Agostinhas descalssas nas Minaz [f. 117-117v]

262) Lixboa 22 de Septembro de 1729 Sobre os Exorbitantez selarioz que se levão no juizo Ecclesiástico por tomarem Conta as Comfrarias [f. 117v]

263) Informação que deu o Senhor Bispo a Sua Magetade Sobre as Conhecenssaz e petição que fizerão o Vigário da Candelaria Cura da Se em Julho de 1729 <ver folha 119 e folha 101> [f. 117v-118]

264) Lixboa 26 de Janeiro de 1730 Sobre o Vigario da Matris de Mogi Gervasio de Abrunhoza Se entrometer na Junta que fés o Sennado da Camera Sobre Se ajustar o donati-vo que Se quis oppor as promessaz da quantia que Se havião de offerecer. [f. 118-119]

265) Lixboa 4 de Fevereiro de 1730 Ordem que mandou Sua Magestade ao Provedor dos defuntoz E auzentes Sobre a duvida que teve na provizão para que Servisse o Provedor da Repartição em Sua ausência [f. 119-119v]

266) Lixboa 4 de Março de 1730 Sobre o Requerimento que fes a Camera da Vila de Itu a Sua Magestade de que querem os Parochos que Se lhe pagem Conhecenssias em que o dito Senhor ordena ao Senhor Bispo o Informe neste <ver folha 117> [f. 119v-120]

267) Lixboa 23 de Março de 1730 Sobre o Senhor Bispo não por na Igreja da Ilha de Santa Catherina por Parocho o Padre Frei Agostinho, e fazer vigario ao Padre Francisco Justo Santiago [f. 120-120v]

268) Lixboa 24 de Março de 1730 Sobre a Igreja do Bom Jhesus do Iguape e Nossa Se-nhora da Lús dos Pinhaez do Curitiba que o Senhor Bispo pos em Concursso [f. 120-121]

269) Lixboa 28 de Abril de 1730 Sobre os Sacerdotez Secularez e Regullares que Se intromentem em Solicitar causas e demandas adquirindo por empenhos os despachoz dos Menistroz [f. 121]

270) Conta que deo o Senhor Bispo a Sua Magestade do vezitador que mandava para a Colonia e morreo antes de embarcar [f. 121-121v]

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271) Conta que deu o Senhor Bispo a Sua Magestade Sobre rezarem os Conegos em outra Igreja pella mudanssa da Sé [f. 121v-122]

272) Lixboa 8 de Agosto de 1730 Sobre a conta que derão os oficiaes da Camera da Cidade de São Paulo a Sua Magestade das desordenz que ocasionou nas Minaz do Cuybá o Padre Francisco Justo natural de Pernambuco [f. 122-122v]

273) Lixboa 18 de Agosto de 1730 Sobre os Menistroz e Oficaes da justissa Ecclesiástica Levarem mayorez Salarioz do que pela Ley estão taixadoz [f. 122v-123]

274) Lixboa 20 de Novembro de 1730 Sobre a desordem que houve na Igreja Matriz da Cidade de São Paulo o vigário da Igreja e da Vara não quererem que a Camara tomasse asento junto do arco da Capela Mor em dia de Corpo de Deos [f. 123]

275) Lixboa 31 de Janeiro de 1731 Sobre a quantidade de Donativo que Se havia de dar nesta Cidade por occasião dos Reaes Cazamentoz em varioz generoz [f. 123v]

276) Carta do Secretário do estado escrita ao Senhor Bispo avizando o Sobre um negro que Se prendeo de noyte que andava armado Escravo do Vizitador Manoel Ferreira Batalha e o vigário da Igreja Jose Nogueira o tirara das maoz da justissa [f. 123v-124]

277) Carta que escreveo o Secretario de Estado ao Senhor Bispo dando-lhe parte das pertubaçoenz e desturbios que tem cauzado Manoel Ferreira Batalha vizitador na Comarca do Rio das Mortez ao povo [f. 124-124v]

278) Resposta do Senhor Bispo ao Secretario de Estado Sobre as queixaz do Vizitador Manoel Ferreira Batalha e do Vigário Jose Nogueira Ferraz [f. 124v-125]

279) Lixboa 20 de Fevereiro de 1731 Sobre os Parochoz fazerem aSentos nos Livros das Parochias dos defuntos e dos testamentoz e <dos Bautismoz> para o Juizo dos auzentes Recadarem os benz dos que morrem abintestadoz <ver folha 112 folha 135> [f. 125-125v]

280) Carta do Secretário de Estado ao Senhor Bispo em que lhe aviza que o Vigário da Vara do Rio das Mortes mandara Excomungar ou Com pena de Excomunhão notificar as Mezas das Confrariaz [f. 126]

281) Lixboa 9 de Junho de 1731 Sobre os ornamentoz para as Igrejas que Serão obrigadas os Parochos fazerem Requerimento a Sua magestade [f. 126]

282) Lixboa 7 de Julho de 1731 Sobre haver na freguesia da Villa da Laguna hum Viga-rio Collado [f. 126v]

283) Lixboa 11 de Janeiro de 1732 Sobre os Parochos Levarem pelos escravos que mor-rem tres e quatro oitavos e a vella por cada hum [f. 126v]

284) Lixboa 15 de Fevereiro de 1732 Sobre o Vigario dos Goyasez Pedro Ferreira Bran-dão levar des oytavas de cada pessoa que morre abintestados e das inquietaçoens que cauza naquellas Minaz [f. 127]

285) Lixboa 16 de Fevereiro de 1732 Em que Sua magestade ordena ao Senhor Bispo lhe mande huma Lista dos Clerigos que hé necessario para as Igrejas das minaz pela grande pertubação que fazem nellas pella mesma quantidade que Se achão nellas [f. 127-127v]

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286) Lixboa 18 de Fevereiro de 1732 Sobre o Vigario da Matris do Cuyabá Levar de conhecimento pella desogriga da Quaresma de cada huma pessoa o oytavo de ouro Sendo de Comunhão, e não Sendo meya [f. 127v-128]

287) Lixboa 5 de Março de 1732 Alvará para Se pagar ao Padre Estevão Simoenz Manço Vigário da Ilha de Santa Catherina em mil reis da Congrua cada anno [f. 128-128v]

288) Lixboa 11 de Marco de 1732 Sobre Se Proverem as Missõens do Gentio Paracis por Serem Pacíficos [f. 128v]

289) Lixboa 21 de Março de 1732 Ordem que Sua Magestade mandou ao Senhor Bispo a Respeito da Representação que lhes fes o Thesoureiro dos defuntos e ausentes e da huma petição que lhe fes Maria Martinz para que os Menistroz Ecclesiasticos não [offendam] a jurisdição Secullar [f. 129]

290) Copia da Representação que fes o Thesoureiro dos defuntos e ausentes Constantino de Souza Costa Sobre huma herança de Maria Martins e Remessa que queria fazer e o impe-dio o Padre Antonio de Almeida e Vasconcelos trestamenteiro [sic] [f. 129-129v]

291) Copia da Resposta do Thesoureiro Geral da Corte aserca do acima Referido na Representação do Thesoureiro doz defuntoz E ausentez das Minas [f. 129v-130]

292) Copia da Resposta do Promottor [Procurador] geral ao mesmo propozito acima Referido [f. 130]

293) Copia da Petição que fis Maria Martinz Sobre a Sua heranssa [f. 130-130v]294) Lixboa 22 de Março de 1732 Ordem que Sua Magestade mandou ao Thesoureiro

dos ausentez Sobre Requerimento da heranssa de Maria Martinz [f. 130v-131]295) Lixboa 22 de março de 1732 Sobre a ordem que veyo para o Senhor Bispo mandar

observar e excutar na Comarca do Rio das Mortez Sobre o Juizo dos ausentes [f. 131]296) Lixboa 23 de Março de 1732 Sobre o Requerimento que fes a Sua Magestade Du-

arte Teixeira [Chavez] para o Padre Manoel João [ilegível] [corroído 40mm x 10mm] Seu Pro-curador em humas [ilegível] [corroído 55mm x 10mm] nesta Cidade e que não fosse [corroído 57mm x 10mm] procurasse as ditaz causas [corroído 75mm x 10mm] [f. 131-131v]

297) Lixboa 8 de Abril de 1732 Sobre o Requerimento do Escrivão proprietário Gabriel [Francisco] Aleixo aserca de varios dinheiroz e dos ausentes [f. 131v-132v]

298) Lixboa 2 de Mayo de 1732 Sobre pedir o Caminho da Villa de Santa Catherina a Sua Magestade por Seu Vigário o Padre [Frei] Agostinho da Trindade em que ordena ao Senhor Bispo o informe [f. 132v]

299) Resposta e Informação que deu o Senhor Bispo do Padre [Frei] Agostinho da Trin-dade da ordem acima [f. 132v-133]

300) Lixboa 8 de Mayo de 1732 Sobre huns Religiozos que Sua Magestade mandou para a Colonia e para Se fundar hum Hospicio para elles administrarem oz Sacramentoz [f. 133-133v]

301) Lixboa 17[?] de Julho de 1732 Sobre que Sua Magestade ordena ao Senhor Bispo mande hum Parocho para a freguesia da Vila de Guarapary [f. 133v]

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302) Lixboa 18 de Julho de 1732 Sobre huma Representação que fes a Sua Magestade o Arcebispado [corroído 35mm x 10mm] que varioz [corroído 53mm x 10mm] hospícios e [cor-roído 60mm x 10mm] obediência [corroído 55mm x 10mm] [f. 133v-134]

303) Informação que deu o Senhor Bispo a Sua Magestade Sobre o Requerimento que fizerão os officiaes da Camera de Villa Rica de quererem os Parochos tivessem [corroído 5mm x 10mm] cada escravo que morresse duas oitavaz e huma vela de quarta [f. 134v]

304) Lixboa 29 de Abril de 1733 Sobre a Publicação da Provizão de Sua Magestade aos Pa-rohos para a Recadação dos bens dos defuntos e ausentez <Ver folha 112; e folha 125> [f. 135]

305) Lixboa 23 de Mayo de 1733 Sobre Se mandar vir das minaz os Clerigos que não forem necessários e Senão Consentir que vão a Maz pela mesma quantidade que nellas Se achão [f. 135-135v]

306) Lixboa 8 de Junho de 1733 Sobre pedir a Camera da Vila de Itú a Sua Magestade quem lhes administrasse os Sacramentoz aos moradores delas [f. 135v]

307) Copia da Reprezentação que fizerão a Sua Magestade os officiaes da Camera da Vila de Itú Sobre a grande necessidade que tinhão de quem lhes administre os Sacramentos aos ditos moradores [f. 136]

308) Lixboa 18 de junho de 1733 Sobre Levarem os Parochos muitos pellas esmollas das missas dos escravoz que morrem nas Minas e de o enterrarem [f. 136-136v]

309) Lixboa 8 de Julho de 1733 Sobre que Recomenda Sua Magestade ao Senhor Bispo fassa Sahir Logo do Seu Bispado ao Padre José Ribeiro Diaz pella grande desinquietação e disturbio que faz nelle [f. 136v-137]

310) Lixboa 17 de Julho de 1733 Sobre Se dar ao Vizitador que fosse para a Collonia oytenta mil reis para a ajuda de Custo por esta ves Somentes [f. 137]

311) Lixboa 24 de Julho de 1733 Sobre hum Parocho para a villa da Laguna pella Repre-zentação que fes o Capitam Mor da dita Villa a Sua Magestade [f. 137-137v]

312) Carta que escreveo ao Senhor Bispo Sobre a vesita que fes em São Paulo Frei Luis de Santa Rosa Religiozo de Santo Antonio [f. 137v-138]

313) Copia da carta que foy para a Meza da Consciencia Sobre as Religoens e Missoenz e de lle darem obediência os Religiozoz dellas [f. 138-138v]

314) Copia da ordem que ElRey Dom Felippe mandou passar E ordenar para as Con-gruas das Sés e freguezias deste [ilegível] Brasil de 23 [corroído 10mm x 10mm] de [corroído 50mm x 10mm] [f. 138v-139v]

315) Lixboa 30 de Setembro de 1733 Alvará Sobre a Licenssa da mudanssa da Sé para a Igreja da Crus que dá Sua Magestade [f. 139v-140v]

316) Alvará porque Sua Magestade foi Servido de erigir na Sé de São Sebastiam desta Cidade mais quatro [Predios] das trés com o titulo de Conesias Magistral Doutoral e Peni-tenciaria e a quarta de Se dividir em dous meyos cônegos <Registro e Provizão porque foi [corroído 15mm x 10mm] lhe Servido confirmar a Remissão do foro de dezesseis tostoins que

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Se achava [ilegível] posto nos chãos que [ilegível] o Ilustríssimo Bispo o Ignacio [corroído 10mm x 10mm] hum titulo [corroído 15mmx 10mm] vai a folha [ilegível]> [f. 141-142]

317) Alvará em que Sua Magestade accrescenta a Congrua ao deão e mais dignidadez da Sé desta Cidade de São Sebastiam [f. 142-143]

318) Alvará em que Sua Magestade ha por bem accrescentar em dobro os ordenadoz ao Provizor e vigario geral deste Bispado [f. 143-143v]

319) Alvará Sobre o accrescentamento em dobro da Congrua da ordinaria da Sachristia da Sé deste Bispado para despesa de vinho hostiaz e o mais necessário [f. 143v-144]

320) Lixboa 20 de Outubro de 1733 Em que Sua Magestade aviza ao Senhor Bispo dos novoz accrescentamentos que fes em dobro as Congruaz do Cabido Deão Conegos e mais Menistroz e da Sachristia [f. 144-144v]

321) Lixboa 20 de Outubro de 1733 Sobre que Sua Magestade Recomenda ao Senhor Bispo que ponha ao Padre José Mathiaz de Gouvea por Vigario de huma das quatro Igrejas de mais Rendimento das Minaz por elle ter Collado em huma dellaz [f. 144v-145]

322) Lixboa 27 de Outubro de 1733 Sobre a mudanssa da Sé para a Igreja da Cruz de que [Corta] do Alvara que ja Se passou ficando Sempre hum Capellão na outra Sé para diser missas [f. 145-145v]

323) Lixboa 21 de Março de 1734 Sobre a capitação dos Escravos das Minaz que Sua Magestade mandou por nas Minaz e pedio ao Senhor Bispo huma lista de todoz oz Paro-choz e vigarios da vara que Se achão nas minaz [f. 145v-146]

324) Copia da Carta que o Senhor Bispo escreveo a Sua Magestade aserca do Capelão para a Sé velha e de Se arbitrar congrua para a fabrica della [f. 146-146v]

325) Copia da Reprezentação que fes o Senhor Bispo a Sua Magestade Sobre a grande necessidade que havia nesta Cidade de hum Seminario para Se faser no Convento da Igreja de Nossa Senhora da Ajuda e do breve da Sagrada Congregação para o dito [f. 146v-147]

326) Lixboa 22 de Maio de 1734 Sobre a queixa que fes a Sua Magestade a Camera da Cidade de São Paulo do vigário Matheus Lourenço em dia das festas Reaes lhe não dar agoa benta com Sobrepelis e estolla como era [ilegível] [f. 147]

327) Lixboa 22 de Novembro de 1734 Sobre a nomeação que o Senhor Bispo fes das duaz Conezias pagas Magistral e Penitenciaria em o Padre Manoel de Pinho Candido e no Padre Domingos Lopes Antunez [f. 147v]

328) Lixboa 14 de Dezembro de 1734 Sobre o modo Com que foy tirada a Imagem de São Sebastiam da Sé velha para a Igreja da Crus e tão bem Pyas e Pulpito. [f. 148]

329) Lixboa 14 de Janeiro de 1735 Sobre a Licenssa que pedio a Sua Magestade Manoel Mendez de Almeida para mandar duas filhas para o Reino para Serem Religiozas, e que Informe o Senhor Bispo Sobre esta matéria [f. 148-148v]

330) Copia da petição que fes a Sua Magestade Manoel Mendes de Almeida para Licens-sa de meter suas filhas freiraz em Portugal [f. 148v]

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331) Lixboa 17 de Janeiro de 1735 Sobre a Redução do gentio Paracis e da Congrua de Secenta mil réis para o Vigário do Cuyabá e da ordem ao Provedor da Companhia para dar Religiozoz para a Missão do gentio <ver folha 149> [f. 148v-149]

332) Lixboa 18 de Janeiro de 1735 Sobre a Reforma geral que Sua Magestade mandou fazer nas Minaz Sobre os emuLimentos e Salarioz dos Parochoz e Vigários da Vara e mais Justissas [f. 149-149v]

333) Lixboa 13 de Agosto de 1735 Sobre oz Indioz Paracizez em que Sua Magestade Recomenda ao Senhor Bispo informe o melhor modo que parecer para Conservação de Suaz aldeas <ver folha 148> [f. 149v]

334) Lixboa 27 de Outubro de 1735 Sobre a merce que Sua Magestade fes ao Senhor Bispo da licenssa de Se fazer o Seminario nesta Cidade e juntamente a Capella que lhe pedio para elle [f. 150-150v]

335) Lixboa 24 de Novembro de 1735 Sobre a queixa que fes a Sua Magestade o Juis de Fora que foy da villa do Carmo do vigario da dita Villa dos Seuz Excessos José Simoez [f. 150v]

336) Copia de queixa que fes a Sua Magestade o Juis de Fora da vila do Carmo do Vi-gário José Simoenz [f. 150v-151]

337) Lixboa 22 de Dezembro de 1735 Sobre a desistencia que fes o Padre Pedro Pereira de San Payo da Igreja de Nossa Senhora da Conceição do Sabará donde era vigário Collado e ordena Sua Magestade ao Senhor Bispo ponha a dita freguesia em Concursso [f. 151v]

338) Copia do termo da Junta que Se fes no Palacio do Excelentíssimo Senhor Governa-dor e Capitam General Gomes Freire de Andrada, para effeito de Se Regularem os Emolu-mentos dos Parochoz e Salarioz dos officiaez de Justissa. [f. 152-153]

339) Lixboa 2 de Janeiro de 1736 Em que Sua Magestade Recomenda ao Senhor Bispo lhe mande uma Lista de todas as Igrejas que tem Parochoz no Seu Bispado, e das Congruaz que cada hum tem para a fabrica dellaz. [f. 153v]

340) Lixboa 17 de Janeiro de 1736 Sobre o Conego e Padre Manoel de Bastoz da Fons-seca hir para Rezidir na Sua Sé de Angolla ou dezistir da Conezia em que Sua Magestade encomenda ao Senhor Bispo o manda notificar para hir Residir na dita Sé ou fazer dezisten-cia da dita Conezia [f. 153v-154]

341) Lixboa 10 de Fevereiro de 1736 Sobre as Capellaz Curadaz e outraz [corroído 50mm x 10mm] lhe dem os ornamentos [corroído 40mm x 10mm] necessarios para o Servisso [cor-roído 40mm x 10mm] os Parochoz e Capellaenz Serão obrigados a ensinar [corroído 15mm x 10mm] christãa aos meninoz e [corroído 20mm x 10mm] Escravoz Como Livres E os Pays de familiaz e o mais que nella Se Conthem [f. 154-155]

342) Lixboa 17 de Fevereiro de 1736 Sobre a queixa que fés a Camera de Vila Rica dos Parochoz Levarem huma grande Exorbitancia pelos escravoz que morem e pellas Conhe-censsaz [f. 155-155v]

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343) Lixboa 19 de Abril de 1736 Sobre que Sua Magestade Recomenda ao Senhor Bispo Castigue ao Padre Jose da Costa pelas insolenciaz que tem feito nas minaz e ter feito Mortez e tirar um prezo das maoz da Justissa [f. 155v]

344) Resposta que mandou o Senhor Bispo a Sua Magestade aSerca da nomeação que fés das duaz Conesiaz vagas Magistral e Penitenciaria em o Padre Manoel de Pinho [Cardi-do] e Domingos Lopes Antunes [f. 156]

345) Conta que deu o Senhor Bispo a Sua Magestade das Capellaz que ha pelo Reconca-vo de Seu Bispado das que São Curadaz ou não da necessidade que ha nellaz de ornamentos e para as fregueziaz por huma Lista que lhe Remeteo <Ver a folha 165 e folha 154V> [f. 156v-157]

346) Sobre a conta, que deu o Senhor Bispo a Sua Magestade do Padre Frei Agostinho da Trindade Religiozo da ordem de Nossa Senhora do Carmo da Provincia desta Cidade [f. 157v]

347) Lixboa 7 de Outubro de 1736 Sobre Se festejar hum Nascimento de huma netta de Sua Magestade filha de Nosso Principe [f. 158]

348) Lixboa 3 de Desembro de 1736 Sobre a informação que deu o Senhor Bispo a Sua Magestade de não quererem os Irmaos da Irmandade de Santa Crúz dos Militarez que Se trasladasse a Sé para a dita Igreja [f. 158-158v]

349) Lixboa 14 de Abril de 1732 Sobre em que Sua Magestade ordena ao Senhor Bispo não deixe passar para Portugal mulher alguma Sem ordem Sua <esta ordem pertensse ao anno de 1732, junto Com hum alvará que por descuido se lanssou em este anno de 1736> [f. 158v]

350) Lixboa 10 de Março de 1732 Alvará que Sua Magestade ordena ao Senhor Bispo não deixe hir <Este Alvara pertensse a ordem asima e ao anno de 1732 que por descuido Se lanssa em a era de 1736> Alvará em que Sua Magestade ordena em que não vão mulherez para o Reino Sem primeiro Se averiguar as que vão para Religiosaz Se tem vontade de tomar outro estado e Sem ordem Sua [f. 158v-159v]

351) Conta que Seu o Senhor Bispo a Sua Magestade da mudanssa dos Conegos da Igreja da Cruz para o Rozario para Rezarem por estar a Igreja da Crus aRuinada e De Se procurar Lugar Suficiente para Se fazer nova Cathedral [f. 159v-160]

352) Lixboa 27 de Janeiro de 1738 Sobre o Requerimento que fes a Sua Magestade a Maria da Cruz natural de Santoz em que pedia Licenssa para Ser Religioza em Portugal e Sua Magestade ordena ao Senhor Bispo informe Com Seu parecer [f. 160]

353) Lixboa 21 de Fevereiro de 1738 Sobre Se prenderem os cleregos e Fradez que anda-rem pelos destritoz das minaz Sem terem ocupação em que Sua Magestade ordena tao bem ao Governador que por Comissão do Senhor Bispo o fassa [f. 160v]

354) Lixboa 22 de Fevereiro de 1738 Sobre a queixa que fes a Sua Magestade a Camera da Cidade de São Paulo do Vigário Matheus Lourenço em lhe não darem agoa benta com Sobrepelis e estolla na Igreja nas festas Reaez Como hé estyllo [f. 160v-161]

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355) Copia da queixa que fizerão a Sua Magestade os officiaes da Camera de São Paulo do vigário Matheus Lourenco de Carvalho Sobre não dar agoa benta a Camera [f. 161]

356) Lixboa 20 de Março de 1738 Em que Sua Magestade ordena ao Senhor Bispo por Em Concursso a Igreja Matris da Vila [corroído 35mm x 10mm] São Salvador da Ubatuba [corroído 50mm x 10mm] [f. 161-161v]

357) Lixboa 20 de Março de 1738 Sobre que Sua Magestade ordena ao Senhor Bispo ponha a Igreja Matriz da Vila do Sorocaba da Cidade de São Paulo em Concursso para Ser Collada com Congrua de quarenta mil réis [f. 161v-162]

358) Lixboa 9 de Abril de 1738 Sobre em que Recomenda Sua Magestade ao Senhor Bispo mande prender ao Vigário Antônio Mendez de Santiago por Ser entrado no levante do Arrayal de São Romão das Minaz e que proceda Contra elle e juntamente fassa Sahir todoz os clerigos que não tiverem ocupaçoens nas ditas Minaz [f. 162-162v]

359) Lixboa 16 de Abril de 1738 Sobre as Conezias que vagarem fazer o Senhor Bispo as nomeaçoenz em pessoas graduadaz e em falta destaz nas mais Capases que achar, Sem Se faserem Editaes para Coimbra nem Evora [f. 162v-163]

360) Lixboa 17 de Abril de 1738 Sobre a Recomendação que fes Sua Magestade ao Senhor Bispo para examinar Se Se embarcou o Padre Manoel de Bastoz da Fonsseca para Angola, e não tendo embarcado o fassa Logo embarcar para hir Residir na Sua Conesia [f. 163-163v]

361) Lixboa 17 de Abril de 1738 Em que Sua Magestade Recomenda ao Senhor Bispo mande noteficar ao Padre Antonio Cardoso Gomes para que Se embarque Logo para a [Ilha] terceira a Residir na Sua Vigairia onde hé Collado, ou que desista della [f. 163v-163]

362) Lixboa 6 de Agosto de 1738 Sobre a Provizão que Sua Magestade mandou passar em que fazia mercê dar a Capella de Nossa Senhora do Desterro e mais benz pertencentez para Rendimento do Seminario que o Senhor Bispo quer fazer para Seminaristaz Ecclesiás-ticos [f. 163-163v]

363) Lixboa 11 de Agosto de 1738 Sobre que Recomenda ao Senhor Bispo Sua Mages-tade o Conferir Com o Governador e Brigadeiro para Lugar ou Citio Capas onde Se possa fazer nova Sé [f. 163v-164]

364) Copia da Conferencia que fisera o Senhor Bispo e o General e o Brigadeiro José da Silva Paes Sobre o lugar ou Sitio para Se fazer a nova Se Cathedral [f. 164]

365) Lixboa 15 de Dezembro de 1738 Sobre o Requerimento e petição que fes a Sua Ma-gestade o Padre Jose Carlloz da Silva Vigário do Rio grande para Se lhe dar Congrua [f. 164v]

366) Copia da petição que fes a Sua Magestade o Padre Jose Carllos da Silva pedindo Congrua por Ser Vigário da Povoação do Rio Grande [f. 164v-165]

367) Copia da ordem que Sua Magestade mandou ao Provedor da fasenda deste Reino para dar direito para as Congruaz das Capellaz Curadaz e para ornamentoz para as Igrejas que necessitassem <Ver a folha 126 / Ver a folha 156, e 154> [f. 165]

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368) Lixboa 22 de Abril de 1739 Sobre o arbitrio que fizerão os vitadorez [sic] das Con-gruas das Capellas Curadaz, e dos ornamentos para as ditas em que Sua Magestade avise ao Senhor Bispo mande ordem ao Provedor para pagar ou mandar fazer os ornamentos [f. 165v]

369) Lixboa 3 de Outubro de 1739 Sobre ordenar Sua Magestade que os Conegos e Ca-bbido Se Conserve na Igreja do Rozario dos Pretos athe Se fazer nova Sé, e não impedindo que os pretoz fassão nella as Suaz funssoenz, para Se evitar as queixaz que os ditoz tem feito [f. 166-166v]

370) Lixboa 18 de Fevereiro de 1740 Sobre a Recomendação que fes Sua Magestade ao Senhor Bispo para não exceder muito do numero dos Seus ordinandoz pelo prejuizo que pode haver [f. 166v]

371) Lixboa 23 de Fevereiro de 1740 Em que Sua Magestade Recomenda ao Senhor Bispo ponha em Concursso as Igrejas que Se achão Vagas para Se proverem em Vigários Collados [f. 166v-167]

372) Lixboa 24 de Mayo de 1740 Copias de varias Provizoenz e ordens que Mandou Sua Magestade ao Provedor e Intendentez e Governador do Maranhão para Senão Entromete-rem nos descobrimentoz das Minaz dos Goyases por pertencerem a jurisdição do Governa-dor de São Paulo [f. 167v]

373) Copia da Rezolução Real que foy para o Governador do Maranhão pelos Novos descobrimentos das minas [f. 167v-168]

374) Copia da ordem que Sua Magestade mandou ao Intendente das minas Sebastiam Men-dez de Carvalho Sobre aRematação que fés dos dizimos das Minas dos Goyases [f. 168-168v]

375) Capitullo de huma Carta mandada ao Reverendo Vigario da vara Domingos Vas Mourão pelo Reverendo Doutor Henrique Moreira de Carvalho Como vigário Capitullar Sede vacante [f. 169]

376) Lixboa 14 de Fevereiro de 1741 Sobre as pessoas que meresserem e forem julgadas pelo Juizo Ecclesiástico Serem presas Na Cadea publica desta Cidade por não haver Aljube [f. 169-169v]

377) Lixboa 14 de Fevereiro de 1741 Em que Sua Magestade ordenou ao Governador e Provedor da fasenda Real Se desse ao Senhor Bispo todos os annoz Sento e vinte mil réis de ajuda de custo para appozentadoria [f. 169v-170]

378) Alvará de 15 de Fevereiro de 1741 em que Sua Magestade fés mercê dar a faculdade de poder nomear as conesias e vigairariaz E mais benefícioz Ecclesiásticos que vagarem no Seu Bispado [ilegível] por da Sua Residencia ao Senhor Bispo Dom Frei João [f. 170-170v]

379) Lixboa 2 de Março de 1741 Em que Sua Magestade Recomenda ao Senhor Bispo mande tirar humaz esmollaz para a Provincia ou Convento de São Francisco da India [f. 171]

380) Lixboa 7 de Março de 1741 Sobre Se porem em Concursso as Igrejas da Vila da Soro-caba, e a da Vila da Ubatuba E as mais que estivessem vagas para Serem Collativas [f. 171-172]

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381) Lixboa 4 de Abril de 1743 Carta do Secretário de estado da Corte que escreveo ao Senhor Bispo em Resposta da Representação que fés a Sua Magestade da desattenção que lhe fizerão os Cavalheiros das ordens Millitarez em dia da Procissão do Corpo de Deus Sendo o causador o Provedor da fasenda [f. 172-172v]

382) Copia da carta e ordem que Sua Magestade escreveo ao Governador para Re-prehender ao Provedor da fasenda e o mandar prender pela desattenção que fés ao Senhor Bispo na Procissão de Corpo de Deus [f. 172v-173]

383) Lixboa 7 de Mayo de 1744 Sobre a queixa que fizerão a Sua Magestade os officiais da Camera de São Paulo pelos Exorbitantez Salarioz que Levão o Vigário da vara e mais officiaes do Ecclesiástico [f. 173]

384) Copia da Reprezentação que fizerão a Sua Magestade os officiaes da Camera da Cidade de São Paulo queixandosse dos grandes Salarioz que Levão o Vigário da vara e mais officiaes do Ecclesiástico [f. 173-173v]

385) Lixboa 8 de Mayo de 1744 Sobre a queixa que fizerão a Sua Magestade os officiaes da Camera de Pernagua dos Exorbitantez Salarios que Levão o Vigario da vara e Seus offi-ciaez [f. 174]

386) Copia da Representação e queixa que fizerão a Sua Magestade os officiaes da Ca-mera de Pernagua do vigário da vara Levar exorbitantez Salarios [f. 174-174v]

387) Lixboa 11 de Mayo de 1744 Sobre os officiaes de justissa fazerem Citaçoenz aos domingos e dia Santos e nas Igrejas as pessoaz estando a ouvir Missa [f. 174v]

388) Lixboa 11 de Mayo de 1744 Sobre a Representação que fes a Sua Magestade a Camera desta Cidade em que os Cabbidos em dia da procissão de Corpo de Deus não hião Com capas de asperges como Era Costume [f. 175]

389) Copia da Ordem que veyo ao Governador para não impedir a que Se metao na Cadea os prezoz, Reos que forem julgadoz pelo Juizo Ecclesiástico pela falta de não haver aljube [f. 175v]

390) Copia da ordem que mandou Sua Magestade ao Senhor Governador Sobre as con-tendaz que tivera o Ouvidor de Vila Rica Com o Vigário da vara Sobre as Respostas de hum Recursso [f. 175v-176]

391) Lixboa 12 de Mayo de 1744 Sobre as Contendaz que teve o Ouvidor de Vila Rica Com o Vigário geral Sobre hum Recursso [f. 176-176v]

392) Lixboa 12 de Mayo de 1744 Sobre as Contendas do Ouvidor de Vila Rica Com o Vigário geral Sobre hum Recursso em que Sua Magestade mandou prender o dito Ouvidor [f. 176v-177]

393) Lixboa 18 de Mayo de 1744 Em que Sua Magestade Recomenda ao Senhor Bispo as esmollaz para o Convento de São Francisco da India [f. 177-177v]

394) Lixboa 21 de Mayo de 1744 Sobre os Ouvidorez e Juizes da Coroa não Responde-rem aos aggravos dos procedimentoz da Justissa Ecclesiástica com demoraloz [f. 177v]

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395) Copia da Carta do Secretário de estado Escrita ao Governador para prender o ouvi-dor pela desatenção que fés ao Senhor Bispo e outros desturbios maiz do Povo [f. 177v-178]

396) Lixboa 30 de Novembro de 1744 Em que Sua Magestade manda ao Senhor Bispo o informe Sobre o Requerimento da Petição do Padre Dom Ignacio Bercainho Monteiro de querer Ser Vigário Collado da Igreja de Santa Anna da Vila Boa dos Goyazes [f. 178-178v]

397) Copia da petição do Padre Dom Ignacio Biscainho Monteiro para Ser Vigário Collado na Igreja de Santa Anna dos Goyasez [f. 178v]

398) Lixboa 29 de Abril de 1746 Sobre os Exorbitantez que levao nesta Cidade no Juizo Ecclesiástico por custoz e mais asignaturas de que Se queixou a Camera [f. 179]

399) Lixboa 6 de Mayo de 1746 Sobre a nomeação que fes Sua Magestade de Bispo para a Cidade de São Paulo e dividido deste Bispado <alias sobre Se carregarem os papeis da Ca-mera pertencentes a São Paulo> [f. 179-179v]

400) Lixboa 7 de Mayo de 1746 Em que Sua Magestade manda que informe o Senhor Bispo Se na Sua Diocese São precizaz mais Igrejas para Se administrarem os Sacramentos [f. 179v]

401) Lixboa o 1º de Mayo de 1747 Em que Sua Magestade ordena ao Senhor Bispo man-de entregar oz papeis e documentos pertencerem ao Bispo da Cidade [f. 179v-180]

402) Lixboa 6 de Mayo de 1747 Provizão para Se pagar a Congrua do Senhor Bispo desde o tempo e o dia em que Sua Magestade o Confirmou de um Conto de réis cada anno oitocentos réis para elle oitenta réis para esmollaz e cento e vinte réis para Congruas de Seus officiaez [f. 180-180v]

403) Lixboa 7 de Mayo de 1747 Provizão em que Sua Magestade ordena Se pagou ao Senhor Bispo todoz annos enquanto não mandar o Contrario dous mil Crusadoz cada hum anno [f. 180v-181]

404) Lixboa 7 de Mayo de 1747 Provizão em que Sua Magestade manda Se de todoz annos Sento e vinte mil réis para ajuda de custo e para a aposentadoria das Cazas em que vive o Senhor Bispo [f. 181-181v]

405) Carta do Secretario de Estado escrita ao Senhor Bispo para mandar Capelaens para as fortalezas da Ilha de Santa Catherina e para algunz Presidioz para administrarem oz Sacramentos aos Soldados e mais moradores pelo Requerimento do Brigadeiro José da Santa Sª 26 Paes. [f. 181v]

406) Lixboa 26 de Agosto de 1747 Em que Sua Magestade ordena ao Senhor Bispo lhe Remeta todos os Concurssos que fizer das Igrejas que estiverem vagas, e juntamente lhe dê Conta de todos os beneficios e Conezias da Sé que vagarem pelo Tribunal da Mesa da Conssiencia [f. 182]

407) Lixboa 9 de julho de 1747 Ordem em que Se concede ao Senhor Bispo faculdade para poder nomear as dignidades e conesiaz e vigairariaz benefícios, e mais Cargos Eccle-

26 Essa abreviatura pode ser Santa, Souza ou Silva.

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siasticos do Bispado estando nelle Residente Excepto a dignidade de Deão que hé Reservada ao dito Senhor [f. 182v-183]

408) Copia da Carta que escreveo o Cabido da Sé desta Cidade pedindo a Sua Mages-tade ornamentos para a dita Sé de 8 de Agosto de 1746 [f. 183-183v]

409) Ordem que Mandou Sua Magestade ao Senhor Bispo e pelas mais Comarcas das Minas para Se fazer junta de Menistros e Letrados nos Recursos da Coroa de 4 de Septem-bro de 1748 <A ordem pertence a esta informação acima não se Registar por não ser neces-sária.> [f. 183v]

410) Lixboa 9 de novembro de 1749 Ordem que Sua Magestade mandou para Se dividir as Igrejas de Sé e Candelaria em quatro Parochias pelos limites que asignar o Senhor Bispo [f. 184v]

411) Lixboa 9 de novembro de 1749 Ordem que Sua Magestade mandou para Serem acrescentadas as Congruas das Igrejas deste Bispado que São Coladas em mais Sento e Sin-coenta mil para Com Sincoenta que tem ficarem em duzentos mil reis [f. 185]

412) Requerimento que Se fes por petição Sobre os Parochos das freguesias desta Cidade a Sua Magestade para que Se [Collem] com a Congrua de duzentos mil reis [f. 185v]

413) Ordem que Sua Magestade mandou para o Senhor Bispo informar com o Seu parecer Sobre o Requerimento dos Parochos das freguezias deste Reconcavo Sobre Serem Colladas as Suas Igrejas Com o acrescentamento da Congrua de duzentos mil réis de 11 de novembro de 1749 [f. 185v]

414) Ordem em que Sua Magestade ordena ao Senhor Bispo para o informar Sobre o Cittio que eleger para Se erigirem duas Igrejas proprias para Servirem de freguesia da divisão da Candelaria e Sé, e o Custo farão e da fabrica que necessitarem e quem deve Concorrer para huma e outra despesa [f. 186]

415) Ordem em que Sua Magestade ordena ao Senhor Bispo para por em Concursso a Igreja de Cabo Frio Com o acrescentamento da Congrua de dusentos mil réis [f. 186-186v]

416) Ordem Sobre a conta que deu o Senhor Bispo das Minas a Sua Magestade a Respei-to das Cauçõens Chancelarias e mais emolumentos que o Senhor Bispo deste Bispado tinha e que lhe pertenssão e que Rezolvesse o dito Senhor Bispo a quem pertencião por escuzar de mandar e do que Sua Magestade ordena [f. 186v]

417) Copia da carta e queixa que fes a Sua Magestade o Padre vigário da Igreja de São João da Praya Pedro Marques Durão Sobre o Padre missionario Angelo de Siqueira em que tirava esmolas com violência [f. 188v-187]

418) Ordem em que Sua Magestade fás merce ao Senhor Bispo de lhe dar todo o destrito do Sul desde o Rio de São Francisco athé a Colonia do Sacramento e ficar Sugeyto ao Seu Bispado [f. 187]

419) Copia da Reprezentação ou Carta que fes a Sua Magestade a Camera desta Cidade Sobre hirem todas as Religioens acompanharem a procissão do Corpo de Deus e assim mais todas as Confrarias e Irmandadez [f. 187-187v]

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420) Ordem em que Sua Magestade ordena ao Senhor Bispo informe Com Seu parecer Sobre o Requerimento que fizerão os oficiaes da Camera desta Cidade a Respeyto de acom-panharem todas as Religioens e Confrarias a procissão do Corpo de Deus [f. 187v]

421) Copia da carta e queixa que fes o vigario o Padre Pedro Marques [Durão] da fre-guesia de São João da Praya Sobre o Padre Missionario Angelo de Siqueira cuja Copia veyo de Lixboa com ordem de Sua Magestade a Vossa Excelência Reverendíssima. [f. 187v-184]

422) Ordem em que Sua Magestade ordena ao Senhor Bispo lhe informe com Seu pare-cer na petição e Requerimento do Padre Pedro Marques Durão vigario da freguesia de São João da Praya de Campos dos Goytacazes [f. 184]

423) Lixboa 4 de dezembro de 1749 Ordem e Provizão que Sua Magestade mandou ao Senhor Bispo Sobre o acrescentamento das Congruas dos Parochos das Igrejas que São Co-ladas para se lhe Satisfazer pela fazenda Real e fazer asento na Provedoria [f. 184v]

424) Alvará que Sua Magestade foy Servido accrescentar as Congruas as quatro dignida-des e maiz Conegos e meyos Conegos da Sé deste Bispado do Rio de Janeiro na forma que nelle Se conthem de 14 de Dezembro de 1749 [f. 185-185v]

425) Provizão em que Sua Magestade ordena para Se pagarem as Congruas acrescenta-das as Dignidades do Cabbido da Sé deste Bispado pela fazenda Real e para Se fazer asento na Provedoria da fazenda Como nella Se conthem [f. 185v-186]

426) Provizão por que Sua Magestade há por bem fazer Merce ao Bispo do Rio de Janei-ro de que se possa juntar Naquella Cidade hum Mosteiro de Trinta e tres Religiozas, com o Statucto e Observancia [corroído 5mm x 10mm] da Madre de Deoz desta Cidade de Lisboa <e como assima se declara> [f. 186-187]

427) Carta em que Sua Magestade mandou ao Senhor Bispo avizando do falecimento Del Rey Nosso Senhor Dom João quinto e para Se fazerem os funeraes de 5 de Agosto de 1750 [f. 187]

428) Alvara que Sua Magestade foy Sirvido Conceder Mais três Capelãens para o Coro da Sé desta Cidade para Com os nove que já tem fazerem o numero de doze Capelãens [f. 187-187v]

429) Ordem que Sua Magestade mandou ao Senhor Bispo em que lhe ordena que todas as dependencias como São queixas de Parochos provimento de Igrejas paramentos para dias fabricas Reedificaçõens Congruas novas Oraçoens Sejão Remettidas pela Meza da Consien-cia e não para ultramarino. [f. 187v-188]

430) Treslado de huma ordem que Sua Magestade mandou aos oficiaes da Camera desta Cidade em que ordena que o Cabbido da Sé deste Cidade dem Duttos aos officiaes da Ca-mera quando asistirem emcorporados nas festas Reaiz vinda em 19 de Fevereiro de 1719 [f. 188v]

431) Traslado da Ordem e Carta que Sua Magestade Mandou ao Provedor E maiz Ir-mãos da Meza da Mizericordia desta Cidade Sobre os Senhores Bispo Vizitarem a Igreja

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Altares e maiz pertencente ao culto Divino de 17 de Março de 1704 e 7 de Julho de 1722 [f. 189]

432) Traslado da Ordem que Sua Magestade mandou ao Senhor Bispo de São Paulo Sobre por [huns] Parochos na Ilha de Santa Catherina para administrar o pasto Espiritual aos novos povoadores della [f. 189v]

433) Copia do Alvará que Sua Magestade mandou passar para Serem Expulssados fora de Seus Reynos todos os que Se forem ordenar com Reverendas falssas e ficarem desnatu-ralizadoz de todas as honras privilegioz E maiz izencõens em 26 de Março de 1746 [f. 190]

434) Copia da Provizão Sobre os Dizimos que Se achao Registrado digo que Se acha Registrada em Vila Boa de goyas na ouvidoria geral [f. 190-191]

435) Copia da ordem de Sua Magestade Sobre os Salarioz dos oficiaes Seculares do Jui-zo Ecclesiástico da Cidade de Pernambuco, que Se acha Registada no livro do Registo das ordens Reaes que Serve na ouvidoria do Crime e Civel de Pernambuco cuja ordem Se acha no dito Livro a folha 27 verso e folha 28 [f. 191-191v]

436) Copia de huma ordem de Sua Magestade per donde Se manda que na devasa geral Se perguntem pelos excessoz doz Salarioz e Custas que Levão os Leygos que Servem no Juizo Ecclesiastico a qual ordem Se acha Registada no livro dos Registoz, das ordens Reaes com o número Sinco da ouvidoria e Correyção desta Cidade _ a folha 20 [f. 191v-192]

437) Copia da Carta de Sua Magestade mandada e escrita ao Procurador da Coroa da Cidade da Bahia Sobre a queixa que havia feyto ao mesmo Senhor o Ouvidor geral e Prove-dor da dita Comarca do Senhor Arcebispo da dita Cidade Levar Lutuoza a todoz os clerigos ainda aquelles que não erão Parochoz ou Beneficiadoz e tambem aos clerigos Simples e de prohibir de Se poder uzar nas festas das Igrejas doz Santoz Sem Provizão Sua e Levar a penção 2500 réis como também Sobre os Selarioz exorbitantes ao Juízo Ecclesiástico Cuja Carta Se acha Registada no livro verde tomo primeiro que veyo da Relação da Bahia para esta desta Cidade e Se acha Registada no dito Livro a folha 148 verso [f. 192-192v]

438) Copia da ordem de Sua Magestade mandada ao Senhor Arcebispo da Bahia Sobre a carta que o dito Senhor Arcebispo lhe tinha escrito de o quererem privar do privilegio que tinha de ter aSouge Separado do do [sic] Secular e de querer Levar Luttuozas dos clérigos Simples e que nenhum cantase em festas particulares Sem Licensa do Mestre da Capela e que todos estes [pontos] Se dividirem pelo Juiz competente a quem pertencia que era o Sum-mo Pontifice e não pelos Menistros Seculares e que queria Recorrer a Suma Cabeça da Igreja para Se findar o dito pleyto, cuja ordem e Provizão Se acha Registada no livro verde tomo primeiro que veyo da Relação da Bahia para a dicta Cidade a folha 199 verso [f. 192v-193]

439) Alvará porque Sua Magestade houve por bem crear e Erigir de novo em vigairaria Colada a Igreja de Santa Ritta desta Cidade do Rio com o Territorio e destrito que Se desmem-brou por ordem do mesmo Senhor da freguesia da Candelaria desta Cidade com a Congrua de duzentoz mil réis annualmente e pagos pela fazenda Real desta Cidade [f. 193-193v]

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440) Alvará porque Vossa Magestade há por bem Criar e Erigir de novo o curato da Sé do Bispado do Rio de Janeiro de natureza Collativa Com a Congrua de duzentos mil réis annualmente pagos pela Real Fasenda [f. 193v-194]

441) Alvará porque Sua Magestade houve por bem Crear e erigir de novo em vigayraria Colada a Igreja de São Jozé desta Cidade com o territorio e destrito que Se desmembrou per ordem do mesmo Senhor da freguesia da Sé da mesma Cidade do Rio de Janeyro com a con-grua de duzentoz mil réis annualmente pagos pela fazenda Real desta Cidade [f. 194-194v]

442) Ordem de Sua Magestade na qual ordena ao Senhor Bispo ponha a Concurso as Igrejas de Campo grande da Ilha do Governador Capitania do Espírito Santo Porto Seguro Rio das Caravellas e as maiz do Reconcavo desta Cidade as que São amoviveiz - [f. 195]

443) Copia da ordem que Sua Magestade mandou ao Senhor Bispo em que lhe ordenava puzese as Igrejas o Concurso as do Campo Grande Ilha do Governador Capitania do Espí-rito Santo Porto Seguro e todas as maiz do Reconcavo que São amoviveiz pasada em 23 de março de 1751 [f. 195-195v]

444) Copia da ordem de Sua Magestade pela qual insinua a forma que Se ha de observar nos Concursoz das Igrejas que Se puzerem vagas deste Bispado por falecimento dos Seus ultimos posuidorez como nella Se declara [f. 196-196v]

445) Copia de huma carta que escreveo o Illustríssimo Secretário de Estado da Cidade de Lixboa ao Senhor Governador do Rio de Janeyro em 10 de Setembro de 1725 [f. 197]

446) Copia da ordem digo da Copia da ordem que Sua Magestade mandou para o Senhor Governador e Capitam geral do estado do Maranhão do 1º de Junho 1724 Sobre o tratamento que se havia dar ao Senhor Bispo daquelle estado [f. 197]

447) Copia da copia [sic] da ordem que Sua Magestade Mandou ao Governador do es-tado do Maranhão Sobre quando asistise em alguma Igreja daquelle Bispado fose em algum Lugar totalmente o culto Sem destinção tendo algum impedimento de doença [f. 197]

448) Copia para o Governador do estado do Maranhão que Sua Magestade foy Servido Rezolver Sobre o Lugar que Se havia dar ao Senhor Bispo na junta das Miçoens [f. 197]

449) Copia da Carta do Secretário do estado para o Governador e Capitam geral do Maranhão [f. 197v]

450) Copia da Carta do Secretário do estado para o Governador do Maranhão [f. 197v]451) Copia da Carta do Secretário do estado para o Governador do estado do Maranhão

- Sobre o lugar que Se deve dar ao Senhor Bispo - [f. 198]452) Copia <da Copia> da ordem que Sua Magestade mandou ao Sennado [sic] da Ca-

mera da Cidade de Belem do Gram Pará Sobre quando forem asistir a alguma festa que não haja Cadeira e So hum banco coberto [f. 198]

453) Copia <da Copia> da ordem de Sua Magestade que foy para o Ouvidor da Capita-nia do Gram Pará Sobre a Reverencia que Se deve ter ao Senhor Bispo daquelle Bispado [f. 198-198v]

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454) Traslado de huma ordem que Sua Magestade mandou ao Senhor Bispo de Angola Sobre não Se porem Cadeyras de espaldas nas Igrejas e observarse o ceremonial Romano Cuja ordem Se tirou por Certidão da propria que esta em Angola [f. 198v]

455) Ordem que Sua Magestade mandou ao Senhor Bispo Sobre [corroído 5mm x 10mm] Requerimento que féz o Padre Pedro Marque Durão vigario da Igreja de São João da Praya [f. 199]

456) Copia da ordem Sobre a desestencia que féz o Padre Pedro Marques Durão da Igreja em que era vigário Colado de São João da Praya e para o Senhor Bispo a nomear em algum Sugeyto que lhe parecese mais digno para Ser colado na dita Igreja [f. 199]

457) Alvará porque Sua Magestade há por bem criar e erigir em nova vigairaria Colada a Igreja de Maricá do Reconcavo deste Bispado do Rio de Janeyro com a congrua de duzen-tos mil réis annualmente paga pella Real fazenda da mesma Capitania do Rio de Janeiro [f. 199v]

458) Alvara porque Sua Magestade houve por bem criar e Erigir em nova vigairaria Colada a Igreja de Sacorema deste Bispado do Rio de Janeiro com a congrua de duzentos mil réis annualmente paga pela Real fazenda, da mesma Capitania na forma que nelle Se conthem- [f. 199v-200]

459) Alvara porque Sua Magestade houve por bem crear e Erigir em nova vigairaria Collada a Igreja de Guaraparim deste Bispado do Rio de Janeiro com a côngrua de dusentos mil réis annualmente paga pela Real da Fasenda da mesma Capitania da forma Seguinte [f. 200-200v]

460) Alvara por Sua Magestade ouve por bem criar e Erigir em nova vigairaria Collada a Igreja de São Nicolao de Suruhy deste Bispado do Rio de Janeiro com a Congrua de du-zentos mil Reis annualmente paga pella Real fasenda da mesma Cappitania na forma que nelle Se contem [f. 200v-201]

461) Alvara porque Sua magestade ouve por bem crear e erigir em nova vigairaria collada a Igreja de São João Montes [?] deste Bispado do Rio de Janeiro com a Congrua de Sua Ma-gestade digo a congrua de dusentos mil réis annualmente pago pela Real Fasenda da mesma Cappitania o Seguinte [f. 201v]

462) Alvara porque Sua Magestade ouve por bem crear e erigir em nova vigairaria colla-da a Igreja de São João Montes [?] deste Bispado do Rio de Janeiro Com a Congrua de dusentos mil réis digo a Igreja de Campo grande do Bispado Rio de Janeiro com a congrua de dusentos mil réis annualmente paga pela Real Fazenda de mesma Capitania o Seguinte. [f. 202]

463) Alvara porque Sua Magestade ouve por bem Criar Erigir em nova vigairaria Colla-da a Igreja do Pilar no Sitio dos [ilegível] deste Bispado do Rio de Janeiro Com a Congrua a duzentos mil [corroído 5mm x 10mm] annualmente paga pella Real Fasenda daquela Ca-pitania o Seguinte [f. 202-202v]

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464) Alvara porque Sua Magestade houve por bem Criar e Erigir em nova Vigairaria Collada a Igreja de Santa Crus do Reconcavo do Rio de Janeiro digo Reconcavo do Bispado do Rio de Janeiro com a Congrua de duzentos mil reis annualmente paga pella Real fazenda daquela Cappitania o Seguinte [f. 202v-204]

465) Alvara porque Sua Magestade houve por bem Crear e erigir Em nova Vigairaria Collada a Igreja de Nossa Senhora da Conceição do e Alferes do Reconcavo do Bispado do Rio de Janeiro com a Congrua de duzentos mil reis annualmente paga pella Real fasenda da mesma Cappitania [f. 204-204v]

466) Alvará porque Sua Magestade há por bem Crear e erigir em nova Vigairaria Colla-da a Igreja de São João de Tocantins no Citio de goyazes do Bispado do Rio de Janeiro Com a Congrua de duzentos mil reis annualmente paga pella Real fazenda da mesma Cappitania [f. 204v-203]

467) Alvará porque [corroído 3mm x 10mm] houve por bem Crear e erigir em nova vigairaria Collada a Igreja da Ilha do Governador do Reconcavo do Bispado do Rio de Ja-neiro Com a Congrua de duzentos mil reis annualmente paga pella Real fazenda da mesma Cappitania [f. 203-203v]

468) Treslado do Alvará porque Sua Magestade houve por bem Crear e Erigir em nova Vigairaria Collada a Igreja de São Sebastiam de Taipú do Bispado do Rio de Janeiro Com a Congrua de duzentos mil réis annualmente paga pella Real fazenda da mesma Cappitania [f. 203v-205]

469) Alvará porque Sua Magestade há por bem Criar e erigir em nova Vigairaria Collada a Igreja Collada digo Collada a Igreja de [corroído 70mm x 7mm] do Reconcavo do Bispado do Rio de Janeiro [corroído 80mm x 10mm] annualmente paga pella Real fazenda [corroído 60mm x 10mm] [f. 205-205v]

470) Alvara porque Sua Magestade há por bem Crear e eregir em nova [ilegível] Colada a Igreja de São Salvador do mundo de Guarati digo de Capivari do Bispado do Rio de Ja-neiro Com a Congrua de [ilegível] mil reis annualmente paga pella Real fazenda da mesma Cappitania [f. 205v-206]

471) Alvara porque Sua Magestade há por bem Crear e erigir em nova Vigairaria Collada a Igreja da Santissima Trindade do Bispado do Rio de Janeiro Com a Congrua de dusentos mil réis annualmente paga pella Real fazenda da mesma Cappitania [f. 206-206v]

472) Alvara porque Sua Magestade há por bem Crear e erigir em nova vigairaria Collada a Igreja de São Salvador do Mundo [ilegível] Com a Congrua de duzentos mil reis annual-mente paga pella Real fasenda da mesma Cappitania [f. 206v-207]

473) Alvará porque Sua Magestade há por bem Crear e erigir em nova Vigairaria Colla-da a Igreja de Nossa Senhora da piedade Inhomerim do Bispado do Rio de Janeiro Com a Congrua de duzentos mil Reis anualmente paga pella Real fazenda da mesma Cappitania [f. 207-207v]

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474) Alvará porque Sua Magestade há por bem crear e Erigir em nova vigairaria collada a Igreja de Nossa Senhora da Concepção de Corixas comarca de goyases Com a Congrua de ducentos mil réis annualmente pagos pela Fasenda Real [f. 207v-208]

475) Alvará porque Sua Magestade ha por bem crear E erigir em nova vigairaria collada a Igreja de Nossa Senhora do Desterro de Tamby Com a congrua de Sua Magestade, digo Com a Congrua de duzentos mil réis annualmente pagos pela Fazenda Real [f. 208-208v]

476) Alvará pelo qual houve Sua Magestade por bem crear e erigir em nova Vigairaria Colada a Igreja de Danta [?] comarca de Goyás deste Bispado do Rio de Janeyro com a con-grua de duzentos mil réis cada anno pagos pela Sua Real Fazenda [f. 208v-209]

477) Alvará porque Sua Magestade houve por bem crear e erigir a Igreja de Nossa Se-nhora da Pina de Porto Seguro em nova Vigairaria Colada com a congrua de dusentoz mil réis annualmente pagos pela Sua Real Fazenda [f. 209]

478) Alvará porque Sua Magestade houve por bem crear e erigir em nova Vigairaria Co-lada a Igreja de Nossa Senhora da Guia de Pacobaiba com a Congrua de duzentos mil réis cada anno paga pela fasenda Real desta Cidade do Rio de Janeiro [f. 209v]

479) Alvará porque Sua Magestade houve por [bem] de crear e Erigir em Nova Vigayra-ria Collada a Igreja de Nossa Senhora da Piedade do Aguasú deste Bispado com a congrua de duzentos mil réis paga pela Sua Real fazenda desta Capitania [f. 210]

480) Alvará porque Sua Magestade houve por bem crear e erigir em nova Vigairaria Co-lada a Igreja da Paraiba do Reconcavo deste Bispado do Rio de Janeiro com a congrua de du-sentoz mil réis annualmente pagos pela Sua Real faSenda desta mesma Cidade [f. 210-210v]

481) Ordem de Sua Magestade porque determina que o Reverendo Deão e Cabido da Se desta Cidade venção depois de fallecidos mais hum anno de Suas cóngruas. [f. 210v-211]

482) Registo de huma Provizão de Sua Magestade pela qual concede que o Reverendo Deão Cabido e Conego da Se desta Cidade despois de fallecidos venção hum anno de Suaz côngruas [f. 211-212]

483) Alvará porque Sua Magestade há por bem erigir e crear em nova vigararia a Igreja de Marapicu do Reconcavo desta Cidade com a Congrua de dusentoz mil reis- [f. 212-212v]

484) Alvará Em que Sua Magestade hé servidó crear de Novo na Sé desta cidade huma nova Conezia aque onde Annexo O curato da mesma Sé [f. 212v-213]

485) Ordem de Sua Magestade pela qual Se Recomenda a Sua Excelência Reverendís-sima que Remetta presos para a Cidade de Lisboa a todos os Religosos transitados que Se acharem neste Bispado [f. 213-213v]

486) Alvará porque sua Magestade há por bem Crear e erigir Em nova Vigairaria Colla-da a Igreja de Santa Cruz, da Comarca de Goyaz com a congrua de duzentos mil reiz [f. 213v-214]

487) Carta de Sua Magestade, participando a Sua Excelência Reverendíssima a noticia do casamento da Sereníssima Senhora Princeza do Brazil com o Infante Dom Pedro [f. 214-214v]

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488) Ordem que fez ao Senhor Bispo de Angola Sobre o Senado da Camera ter Cadeira de Ezpalda na Sé; os Capitaenz Morez Nas Igrejaz da Suaz Capitaniaz na Capella Mor e dar Se lhê o Livro dos Evangelhos o baixar pello Diácono, e este na ocasião de incensar Sahir de Altar a incensalos Sem Trez ductoz; E em que ElRey Mando fazer observar o Ceremonial Romano. [f. 214v-215]

489) Registro da Ordem de Sua Magestade em que manda que todas as I [sic] digo em que manda que as Igrejaz que Sua Excelência Reverendíssima declarava Se podião Cullar [sic] quando Se passasse dellas Provimento Seria com a clauzulla de que Se poderia devedir Sendo necessário [f. 215-215v]

490) Ordem de Sua Magestade Fidelíssima Sobre As conhecenças e dezobrigas dos mo-radores de Minnas [sic] na vila de huma Conta que deu a Camera de Villa Rica. <esta ordem esta > [f. 215v]

491) 1747. Ordem porque Sua Magestade Ordena a Sua Excelência Reverendíssima não Concinta na Sua Diocese Sacerdotes alguns naturaes do Reyno, que a [elle] passem Sem emprego Eclesiastico ou Ordena [ilegível] e mesmos que forem por Cappellaens de navios fazelos transportar. [f. 216-216v]

492) 1757 Ordem pela qual Ordena Sua Magestade a Sua Excelência Reverendíssima lhe informe com o Seu parecer sobre o Requerimento do Reverendo Padre Provincial dos Religiozos Capuchos desta Cidade Sobre Suspender Se a Execução do Breve que alcançarão oz Irmãos, [Beneditinos] da dita Ordem, para terem na Sua Capella Sacrarios, e Torres Com Sinos [f. 216v-217]

493) Ordem [corroído 15mm x 10mm] Excelência Reverendíssima Remetter a Copia da Resolucao que teve Sendo Bispo de Angola Sobre não Se darem [ductos] á Camera pelo Diacono da Missa Solene. [f. 217]

494) Ordem para Se por em Concurso a Igreja de São João de [ilegível] pela desistência do Padre Jerônimo Luis Vas e provedor [corroído 30mm x 10mm], cujo provimento [ilegível] Mesa da Consciência [f. 217]

495) Ordem para Sua Excelência Reverendíssima proceder contra os Eucesos que fize-rem cartas de jogar [f. 218]

496) Carta do Secretário de Estado Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Escripta a Sua Excelência Reverendíssima por Ordem de Sua Magestade Fidelíssima de 7 de Outubro de 1767 [f. 218-218v]

497) Ordem de Sua Magestade pela Meza da Consciencia Com a datta de 30 de Dezem-bro de 1767 [f. 218v-219]

498) Carta de Sua Magestade digo Carta da Meza da Consciencia, Escripta por Ordem de Sua Magestade, a Sua Excelência Reverendíssima com a data de 6 de Junho de 1769 [f. 219-219v]

499) Carta de Sua Magestade escrita a Sua Excelência Reverendíssima pella qual foi servida declarar quais São os Brevez, e rescriptoz e emanados da Curia de Roma que Se com-

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prehendem na Lei de 6 de Maio do anno de 1765, e quais são os que não Se comprehendem, com a data de 23 de Agosto de 1770 [f. 220]

500) Provizão pela Mesa da Conciencia, e Ordenz a Sua Excelência Reverendíssima a fa-vor do Padre Nicolau Teixeira de Carvalho Soutto Maior, e Castro Vigário Colado da Igreja Matris do Senhor Bom Jesus de Anta da Capitania de Goiás, Com data de 21 de Agosto de 1770 anos [f. 220v-221]

501) Carta do Secretario do Estado Martinho de Mello, e Castro escrita a Sua Excelên-cia Reverendíssima por ordem de Sua Magestade a Respeito do Padre Nicolau Teixeira de Carvalho Sotto Maior, e Castro Vigário Collado de Anta, com data de 18 de Dezembro de 1770. [f. 221]

502) Provisão pela Mesa da Consciência, e ordens, pela qual foi Sua Magestade Servido ordenar a Sua Excelência Reverendíssima que o Reverendo Deião da Sé do Rio de Janeiro e Jozé Joaquim Mascarenhas Castello Branco fosse contado nas destribuiçoenz quotidianas, officios etc Na mesma forma que as maiz dignidades e Cônegos da mesma Sé como abai-xo Se declara. <[ilegível] nela qual Sua Magestade Reverendíssima manda pagar ao Padre Alberto Caetano [ilegível] [ilegível] Vigario Colado na Igreja de Nossa Senhora do Pilar do Iguassu Bispado do Rio de Janeiro da [ilegível] da Congrua desde o dia que [Vagou] Igreja do Seu Antecessor the o dia da posse do Suplicante qual ordem a Previzão vai Registada neste [livro] a folha 256> [f. 221-222]

503) Provizão Regia pella Mesa da Consciência e Ordens para Serem os Reverendos Pa-rochoz deste Bispado obrigadoz, á porem Capellaenz nas Capellas Filiaes das Suas Fregue-sias, que Sua Excelência Reverendíssima lhes designar com a côngrua, que o mesmo Senhor consignar paga pelloz ditoz Reverendos Parochoz. [f. 222-222v]

504) Provizão Regia para Se pôr novamente á Concurso a Igreja de Nossa Senhora do Desterro de Tamby. [f. 222v-224]

505) Provizão Regia para Se pôr novamente a Concurso a Igreja de Nossa Senhora do Pilar de Agoassú. [f. 224-224v]

506) Ordem Regia pelo Tribunal da Meza da Consciência e Ordens para Sua Excelência Reverendíssima Suspender do exercício de Parocho encomendado da Freguesia de Meia Pon-te de Goyás ao Padre Manoel da Sylva Campelo na forma, que nella se conthem. [f. 224v]

507) Ordem Regia do Tribunal da Meza da Consciência, e Ordens para Sua Excelên-cia Reverendíssima não Só continuar a Suspensão, que foi posta ao Padre Manoel da Silva Campelo, mas tambem para não consentir que o mesmo Padre Seja Oppositor, ou provido em beneficio algum, ainda por encomendação. [f. 225]

508) Provizão Regia pelo Tribunal da Meza da Consciência, e Ordens em Resposta da Reprezentação, que Sua Excelência Reverendíssima fes para valer a primeira nomeação da Igreja do Pilar do Aguaçú na pessoa do Padre Antonio Jozé Victorino de Souza ordenando Sua Magestade que aos Concursos dos Beneficios deste Bispado só se [corroído 30mm x

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15mm] os naturaes do Ultramar, e só na falta destes os não naturaes na forma abaixo. [f. 225v-226]

509) Provizão Regia pelo Tribunal da Meza da Consciência, e Ordens em Resposta da Reprezentação, que Sua Excelência Reverendíssima fes para valer a primeira nomeação da Igreja de Nossa Senhora do Desterro de Tambi27 na pessoa do Padre João Caetano da Fonceca, ordenando Sua Magestade, que aos Concursos dos Beneficios deste Bispado só se adimittão os naturaes do Ultramar, e só na falta destes os não naturaes na forma abaixo. [f. 226-226v]

510) Provizão Regia pelo Tribunal da Meza da Consciência, e Ordens em Rezolução da Conta que Sua Excelência Reverendíssima deo da Sentença proferida contra o Padre Anto-nio José Malheiro Conselheiro Cura da Sé deste Bispado de privação do dito Beneficio; or-denando Sua Magestade, que Se verifique a dita Sentença na Igreja de São Jozé de Tocantis, que lhe ficou pertencendo pela permuta, que fes com o Padre Roberto Carvalho Ribeiro de Bustamante, julgando-se vaga a dita Igreja e pondo-se a Concurso na forma abaixo. [f. 226v-227]

511) Provizam [corroído 20mm x 5mm] Sua Magestade há por bem, que os Capitularez da Sé dezta Cidade do Ryo de Janeiro, prezentez, venção peloz auzentez os Ordenadoz, e benezez que que lhes tocão heztocão, e que as Congruaz de todoz os Beneficioz della Se entreguem a Seu Priozte assim os que Se vencerem, como os que eztiverem vencidoz, desde que dezde que houve Corpo Corpo [sic] de Cabido na mesma Sé = 20 de Outubro de 1688 [f. 227v]

512) Provizam porque Sua Magestade há por bem Conceder ao Cabido dezta Capitania do Ryo de Janeiro [corroído 40mm x 10mm] Vacante, que o seu Meyrinho possa usar de = Vara branca = de 26 de Novembro de 1700 [f. 228]

513) Provizam porque Sua Magestade há por bem mandar, que os 120 réis que Se dão ao Prelado para os Ordenadoz do Seu Vigário Geral, e Provizor 60 réis a Cada hum oz faça entregar aoz taez Officiaez, havendo oz, e que oz 80 réis dos pobrez oz mande entregar a pessoa que o Cabido eleger para [remetter] [f. 228-228v]

514) Registo da Carta Regia, em que Sua Magestade, que Deus Guarde remeteo ao Ex-celentíssimo e Reverendíssimo Senhor Bispo deste Bispado os Exemplares da Bulla porque o Ilustríssimo Padre Clemente XIV Supprimio, e extinguio a Companhia chamada de Jezus. E da Real Ley, porque Sua Magestade foi Servido acordar o Seu Real Beneplacito para a exe-cução da mesma Bulla recomendando e ordenando o dito Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor Bispo o que Se mostra da mesma carta. [f. 228v-229]

515) Registo da Real Ley, porque Sua Magestade foi Servido acordar o Seu Real Bene-placito para a execução da mesma Bulla. [f. 229-231]

516) Copia do Breve do Ilustríssimo Padre Clemente XIV, pelo qual a Sociedade chama-da de Jezus Se extingue, e suprime em todo o Orbe [f. 231v-245]

27 É comum o uso Nossa Senhora do Desterro de Tambi para a localidade Itambi.

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517) Registo da Ordem de Sua Magestade Fidelíssima pela Sua Secretaria de Estado para Sua Excelência Reverendíssima fazer guardar em cofre de tres chaves a Colleção authentica dos Breves Pontificiaz, Leys Regiaz, Instruçoenz na forma abaixo. [f. 245-245v]

518) Registo da Ordem Regia pela Secretaria de Estado para Sua Excelência Reverendís-sima fazer guardar em Cofre de Tres Chaves o Supplemento, e Appendix, que abaixo se vé na mesma Ordem. [f. 245v]

519) Ordem Regia pela Secretaria de Estado para Sua Excelência Reverendíssima man-dar guardar no Cofre de Tres Chaves a colleção [presta] e authentica; e o maiz, que da mes-ma [corroído 15mm x 10mm] se mostra. [f. 246]

520) Ordem Regia pela Secretaria de Estado para Sua Excelência Reverendíssima man-dar guardar em Cofre de Tres Chaves a Dedução Chronologica, e Analytica, e o mais, que da mesma ordem Se mostra. [f. 246v]

521) Ordem pela Secretaria de Estado para Sua Excelência Reverendíssima fazer Reco-lher no Cofre de Tres Chaves a segunda parte da Dedução Chronologica. [f. 247]

522) Lembrança, que veio dentro da Ordem acima, ou atraz; digo, da Ordem acima. [f. 247]523) Registo de Provisão porque foi Sua Magestade que Deos guarde Servido Confirmar

a Remisão do foro de dezeseis tostoenz, que Se achava imposto nos chãos que Comprou o Ilustrissimo Bispo a Inacio Alvares para fundar hum Aljube; Com declaração que só terá Lugar em quanto aquela Caza servir de Aljube, porque Reduzindo-se a outro uzo pagará o foro que lhe foi imposto. [f. 247v-248]

524) Faculdade, que Magestade Fidelíssima foi servido conceder maiz hum ano ao Reve-rendo Conego Antonio de Gouvea Pinto para poder eztar na Corte, afim de usar dos banhos das Caldaz pelas queixas que tem, na forma abaixo. [f. 248v]

525) Carta do Illustríssimo Senhor José de Seabra da Sylva para Sua Excelência Reveren-díssima poder ordenar a José Joaquim de Azevedo Coutinho [f. 249]

526) Carta do Ilustríssimo Senhor Jozé de Seabra da Sylva para Sua Excelência Reveren-díssima poder ordenar a Francisco Dias Pereira. [f. 249-249v]

527) Carta do Ilustríssimo Senhor José de Seabra da Sylva para Sua Excelência Reveren-díssima poder Ordenar a Manoel Ferreira de Oliveira [f. 249v]

528) Carta do Ilustríssimo Senhor José de Seabra da Sylva para Sua Excelência Reveren-díssima poder ordenar a João Damasceno Ferreira [f. 250]

529) Carta do Ilustríssimo Senhor Martinho de Mello, e Castro para Sua Excelência poder Ordenar a Julião Francisco Xavier. [f. 250]

530) Carta do Ilustríssimo Senhor Jozé de Seabra e Sylva para Sua Excelência poder Ordenar a Lourenço Ferraz Santiago. [f. 250v]

531) Avizo de 15 de Janeiro de 1788 em que Sua Magestade Ordena ao Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor Bispo mande conservar no Recolhimento de Nossa Senhora do Parto a Maria Francisca Capistrana mulher de João Antunes de Andrade [f. 250v-256]

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532) Avizo da Secretaria de Estado de 28 de Julho de 1790 para ser conservada no Re-colhemento [sic] de Nossa Senhora do Parto Dona Francizca Thereza da Costa mulher do Capitam João Gomes Aranha. [f. 256-256v]

533) Provisam pela qual Sua Magestade Fidelíssima mandar pagar ao Padre Alberto Caetano Alvez de Barroz Vigário Colado na Igreja de Nossa Senhora do Pillar do Aguassú Bispado do Ryo de Janeiro, duas partes da Congrua dezde o dia que vagou a Igreja do Seu antecessor the [o dia] a posse do mesmo [f. 256v-257]

534) Alvará de Sua Magestade Fidelíssima pelo qual ha por bem tomar a final e deci-ziva determinação sobre as contendas de Jurisdição entre os Regulares e Senhores Bispoz Ultramarinos, a qual participa ao Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor Bispo do Rio de Janeiro [f. 257-258]

535) Copia de huma petição e Certidão da Provisão Regia, pela qual se desanexou da freguezia de Guapymerim a Fazenda de Joze Roiz de Avelar, e ficou anexada a Freguezia de Magé [f. 258v-259]

536) Ordem de Sua Alteza Real pela qual ordena [corroído 39mm x 15mm] hum só Can-didato para Cada Igreja Parochial [f. 259]

537) Copia do Avizo da Secretaria de Estado pelo qual Se concedeo licença ao Capitam Joze Joaquim Pereira residente na Vila de Sam Salvador dos Campos para [edificar] a Ca-pella de Santa Rita que tem na sua Fazenda denominada Santa Cruz [f. 259v]

538) Copia de hum officio do Illustríssimo e Reverendíssimo Senhor Conde dos Arcos Vice Rey [corroído 10mm x 10mm] Estado do Brazil dirigido ao Illustríssimo e Reveren-díssimo Senhor Cabbido, Sede Vacante com huma Supplica feita a Sua Alteza Real pelo Excelentíssimo Reverendíssimo Prelado de Goyáz para cessar toda a Jurisdição naquelle Território de Goyáz logo que della tomasse posse o Ilustríssimo Reverendíssimo Prelado; tudo na forma seguinte [f. 259v-260]

539) Licença Regia concedida ao Senhor Gregorio Francisco de Miranda residente nos [corroído 30mm x 15mm] para erigir huma Capella na sua Fazenda com a Invocação Nossa Senhora d’Abadia [f. 260-260v]

540) Ordem de Sua Alteza Real pela Meza da Consciencia e Ordens com data de 23 de Janeiro de 1807 anos pela qual na falta, ou ausencia dos Excelentíssimos e Reverendíssimos Prelados desta Dioceze fica pertecendo ao Illustríssimo Cabbido a, Faculdade de fazer Con-cursos, e Propostas das Dignidades, Conezias, ou outros quaesquer Benificios Ecclesiasticos com Cura, ou sem cura de almas [f. 260v-261]

541) Ordem de Sual Alteza Real pelo Conselho Ultramarino com data de 3 de Abril de 1807, pela qual manda, que se profane, e devasse o Cemiterio da Capella de São Domingos nesta Cidade [f. 261-261v]

542) Decreto <Carta Régia> por que Sua Alteza Real permitte, que o Reverendo Manoel da Cunha de Carvalho, Vigario da Vara da Villa de Ilha Grande uze das Insígnias, e dos Privilegios de Conego, com data de 18 de Julho de 1808 anos [f. 262]

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543) Decreto <Carta [ilegível]> , porque Sua Alteza Real permitte o uzo de annel e So-lideo aos Reverendos Capellães dos Regimentos da Linha da [corroído 55mm x 7mm] desta Corte do Rio de Janeiro [f. 262]

544) Alvara, porque Sua Alteza Real condecora a Sé Cathedral desta Cidade do Rio de Janeiro com o Titulo e Dignidade de Capella Real. Transferindo-a para a Igreja contigua ao seo Real Palacio, e dá outras providencias, na forma seguinte [f. 262-263v]

545) Alvara porque Sua Alteza Real Ha por bem desannexar da Freguezia de São Joze desta Cidade as Povoaçoens do Botafogo, Praia vermelha, e Tejuca creando dellas a nova Freguesia de São João [f. 263v-263]

546) Carta Regia, pela qual Sual Alteza Real o Princepe Regente Nosso Senhor Ha por bem nomear seo Capellão Mor ao Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor Bispo desta Diocese Dom Joze Caetano da Silva Coutinho [f. 263v-264v]

547) Alvará porque Sua Alteza Real ha por bem desannexar da Freguezia de Nossa Senhora do Desterro em a Ilha de Santa Catharina o Território denominado Ribeirao, Cre-ando nelle a nova Freguesia de Nossa Senhora da Lapa, como nelle se declara [f. 264v-266]

548) Traslado da Escriptura da Devizão, e Limites da nova Freguesia mencionada no Alvará acima. [f. 266v-267]

549) Provisam Regia dirigida pelo Conselho Ultramarino para que so conservem as Or-dens Terceiras de Nossa Senhora do Carmo e de São Francisco estabelecidas na Vila de São Salvador dos Campos pro interim na fruição de fazerem as Funções, Officios, e Exercícios Espirituaes da sua Regra, e Estatutos sem intervenção alguma do Parocho local, na forma abaixo declarada. [f. 267v-268]

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O “romance contemporâneo” na recristianização do estado brasileiro: Não desanimar! de Pedro Sinzig

Claudio Aguiar Almeida*

RESUMOBuscando mobilizar os católicos na luta pela recristianização do estado brasileiro, Pedro Sinzig destacou-se na arena da imprensa exercendo papel fundamental na organização de Vozes de Petrópolis e do Centro da Boa Imprensa. Na tentativa de dialogar com um público impermeável à leitura de textos ensaísticos, o franciscano engajou-se na produção de tex-tos ficcionais escrevendo, em 1911, o seu primeiro “romance contemporâneo”: textos que, entremeando fatos verídicos à ficção, pretendiam conquistar novos leitores para a literatura católica. A partir da discussão do romance Não desanimar!, o artigo analisa como, nos pri-meiros anos da República, a literatura também foi utilizada como um agente promotor da recristianização do estado brasileiro. Palavras-chave: Pedro Sinzig; literatura católica; recristianização da República.

ABSTRACTSeeking to mobilize Catholics in the struggle for a re-Christianization of the Brazilian state, Pedro Sinzig stood out in the professional press by playing a key role in organizing Vozes de Petrópolis (Petrópolis’ Voices) and the Centro da Boa Imprensa (Good Press Center). In an attempt to dialogue with readers impervious to essays, the Franciscan engaged in the production of fictional texts, writing his first “contemporary romance” in 1911. Such texts interwove facts and fiction, and intended to win new readers for Catholic literature. Based on the discussion of the novel Não desanimar!, this article analyzes the use of literature as a tool for the re-Christianization of the Brazilian State in the beginning of the Republican regime.Keywords: Pedro Sinzig; Catholic literature; re-Christianization of the Republic.

Artigo recebido em 5 de agosto de 2014 e aprovado para publicação em 3 de setembro de 2014.* Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor do Centro Universitário FIEO (UNIFIEO) entre 1994 a 2013. São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected].

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Na expressão de Sérgio Lobo de Moura e José Maria Gouvêa de Almeida, a separação entre Estado e Igreja instituída pela República foi interpretada pelo clero “como uma salva-ção e uma ameaça” para a Igreja Católica no Brasil. Liderados por D. Antônio de Macedo Costa, num trabalho que foi acompanhado de perto pela Santa Sé, os bispos brasileiros mobilizaram-se em negociações que visavam preservar, pelo menos em parte, os direitos e privilégios que a Igreja usufruíra durante o Império. Como resultado dessas negociações, a Constituição de 1891 ia contra postulados da Igreja Católica legitimando o casamento civil, laicizando o ensino e secularizando os cemitérios, ao mesmo tempo que assegurava direitos fundamentais à Instituição: desaprovação do divórcio, reconhecimento das ordens e congre-gações católicas, manutenção do patrimônio e, sobretudo, concessão de autonomia para que a Igreja pudesse reorganizar-se sem a interferência do Estado.1 Contando com o apoio do Va-ticano, o clero brasileiro ganhou liberdade para criar novas dioceses e arquidioceses; fundar seminários e escolas; reabrir conventos, mosteiros e congregações; editar revistas e jornais.2 Essa mobilização visava objetivos muito bem determinados: uma vez reestruturada, a Igreja estaria apta a buscar um novo pacto com o Estado, recuperando os direitos e privilégios que ela havia perdido sob o regime republicano.

Dentre os diversos seminaristas e padres estrangeiros enviados para auxiliar o clero bra-sileiro na reestruturação da Igreja, destacou-se Pedro Sinzig. Nascido na cidade alemã de Linz, em 1876, Pedro Sinzig transferiu-se para o Brasil, em 1893, dando continuidade aos seus estudos seráficos no Convento de São Francisco, em Salvador. Ordenado sacerdote, em 1898, foi transferido para Santa Catarina onde, em janeiro de 1902, assumiu o cargo de Guardião do Convento de Lages. Na cidade serrana, Sinzig esforçou-se em combater os inimigos da Igreja no campo da imprensa, fundando o jornal católico O Cruzeiro do Sul. O encerramento das atividades do periódico não diminuiu o ímpeto editorial e jornalístico do franciscano que, transferido para Petrópolis em fins de 1907, assumiu a direção da Tipogra-fia da Escola Gratuita São José e da recém-criada revista Vozes de Petrópolis.3 Em 1909, Pedro Sinzig assumiu um papel de liderança na criação das duas instituições que se encarregariam de promover a imprensa católica e combater a influência da “má imprensa” no Brasil: a Liga e o Centro da Boa Imprensa.

Inspirado em organizações católicas existentes na Alemanha, o Centro da Boa Imprensa deveria, dentre outras atribuições, “promover edições de bons romances, obras apologéticas

1 MOURA, Sérgio Lobo de; ALMEIDA, José Maria Gouvêa de Almeida. A Igreja na Primeira República. In: FAUSTO, Bóris (Org.). O Brasil republicano: sociedade e instituições (1889/1930). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, t. III, v. 2 (Coleção HGCB). p. 323-329. 2 Sobre essa expansão no período 1890/1930 consultar MICELI, Sérgio. A elite eclesiástica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.3 Sobre a Liga e o Centro da Boa Imprensa consultar: ALMEIDA, Claudio Aguiar. Meios de comunicação católicos na construção de uma ordem autoritária: 1907/1937. Tese (Doutorado em História) — FFLCH- USP, São Paulo, 2002.

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e outros livros de sã literatura, originais e traduções”.4 No presente artigo analisaremos o romance Não desanimar!, cuja primeira edição, pelas Vozes de Petrópolis, data de 1911. Como veremos a seguir, na ausência de escritores que pudessem levar a cabo a missão de produzir uma “sã literatura” no Brasil, Pedro Sinzig engajou-se, ele próprio, na produção de “roman-ces contemporâneos” que deveriam, ao lado das revistas e dos jornais, contribuir para o processo de recristianização da sociedade brasileira.

Nascido na Alemanha, Pedro Sinzig tinha estreito contato com instituições católicas do país que lhe forneciam modelos, quando não os recursos, para estruturar a imprensa católica no Brasil. Como no caso da imprensa, os esforços de Pedro Sinzig em utilizar a literatura como um instrumento de recristianização da sociedade brasileira devem ser analisados numa perspectiva que contemple projetos congêneres desenvolvidos na Alemanha. Considerando que ela possuía um grande “poder de mudar normas”, podendo contaminar os bons católi-cos com o “negativo pensamento relativístico moderno” e até mesmo “levar à revolução”, os católicos alemães dedicavam um grande interesse à literatura, que ocupava um lugar de des-taque na pauta de publicações como Stimmen der Zeit, Hochland, Der Graal e outros títulos de menor expressão.5 Essa preocupação manifestou-se também na edição de livros como Konfessionelle Brunnenvergiftung: Die wahre Schmach des Jarhunderts, de Heinrich Keiter, para quem as novelas de ficção mereciam uma atenção muito maior do que a atribuída aos ensaios, uma vez que elas formavam a “opinião pública”, definiam “as tendências e a cultura de uma época” e determinavam “o relacionamento dos homens com a religião”. Na opinião do autor os “livros mais perigosos não são os de Strauss ou Renan, Nietzsche ou Haeckel, mas as novelas, que despertam em todos os homens uma febre duradoura, as ditas ‘obras de arte’ que inoculam nas profundezas das almas o que existe de mais baixo e mais hostil”.6

A criação de uma “literatura católica” que, ao lado de organismos de censura e biblio-tecas que disponibilizassem “livros adequados” ao povo, se encarregasse de combater a “má literatura” foi objeto de grande polêmica entre os intelectuais alemães. Apresentadas de for-ma embrionária no panfleto Wenn gehört die Zukunft? Ein literaturbild der Gegenwart (1893) e depois desenvolvidas no livro Steht die Katholische Belletrist auf der Höhe der Zeit (1898) e nas páginas de Hochland, as propostas de Karl Muth se destacaram nesse debate.

Na perspectiva de Karl Muth, a reflexão sobre o desenvolvimento de uma literatura cató-lica na Alemanha deveria partir do diagnóstico de que a produção então existente não reunia condições de competir com a literatura “laica”. Caracterizada pelo “puritanismo” excessivo,

4 SINZIG, Pedro. Passo decisivo. In: Vozes de Petrópolis, p. 439 a 445, jul. 1909 a jun. 1910.5 Fundado por jesuítas na década de 1860, o jornal Stimmen aus Maria-Laach foi obrigado a transferir sua redação para Bélgica, Luxemburgo e Holanda durante a Kulturkampf, retornando à Alemanha em 1914, momento em que adotou o nome, Stimmen der Zeit, e o perfil que se tornaram referência para a criação da revista Vozes de Petrópolis. O jornal Hochland foi fundado em 1903 e o Der Graal em 1906. Consultar a res-peito DALTON, Margareth Stieg. Catholicism, Popular Culture, and the Arts in Germany: 1880-1933. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2004, p. 63-64.6 Apud DALTON, Margareth Stieg, op. cit., p. 58.

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ausência de virtudes literárias e humor, a literatura católica alemã não conseguia agradar se-quer aos adeptos da religião: os católicos dotados de uma educação mais refinada preferiam consumir obras de qualidade literária superior, enquanto os “menos educados” revelavam uma preferência cada vez mais acentuada pela Unterhaltungsliteratur (“ficção leve”), Schund e Shmutzliteratur (literatura “barata” ou “pornográfica”) e meios de diversão, como o cinema e o rádio, que requeriam um menor esforço intelectual. Contrapondo-se a intelectuais ultra-montanos que o acusavam de ser um defensor da “arte pela arte”,7 Karl Muth propugnava o aprimoramento artístico e a busca de uma maior sintonia com as questões do presente como condições fundamentais para o desenvolvimento da literatura católica alemã. Só assim ela conseguiria concorrer com a “má literatura”, rompendo as limitadas fronteiras em que per-manecia restrita e contribuindo efetivamente para a propagação do catolicismo. Cabe des-tacar, no entanto, que esse aprimoramento da literatura católica esbarrava em dificuldades. Se a falta de qualidades artísticas da literatura católica criava barreiras para a expansão do número de seus leitores, a insignificância do público católico também criava barreiras para o seu aprimoramento artístico. Ainda que tivessem suas rendas complementadas por doações de fiéis ou do episcopado, e se orgulhassem de afirmar que seu trabalho visava à glória de Deus e não ao lucro material, escrever e publicar para os católicos implicava, quase sempre, prejuízos que afastavam editores e escritores profissionais do gênero.

Acompanhando com grande interesse os debates travados pelos católicos alemães, Pedro Sinzig empenhou-se no combate à “má literatura” e no incentivo à produção e propagação da literatura católica no Brasil. Publicado em 1915, o livro Através dos romances: Guia para as consciências nos permite analisar não só as estratégias de censura e orientação do público, mas também traços característicos da produção literária que Pedro Sinzig vinha desenvol-vendo desde 1911. O autor introduz a segunda edição da obra narrando a estória de uma menina morta em decorrência da ingestão de maçãs que, “para terem as faces vermelhas”, haviam recebido uma forte injeção de veneno. O mesmo se dava com relação aos livros que, qual “maçãs de faces rosadas”, exerciam “irresistível fascinação” sobre “mocinhas” que, inad-vertidamente, acabavam elas também envenenadas por leituras inadequadas. Se a venda de maçãs envenenadas exigia providências das autoridades policiais, o consumo de “romances envenenados”8 deveria ser também objeto de fiscalização e cerceamento. Esse era o principal objetivo do Através dos romances: Guia para as consciências: indicar, a partir da análise de uma extensa lista de autores e títulos, as leituras que eram ou não adequadas às diversas faixas do público católico.

7 Nas críticas a Karl Muth vão se destacar os redatores do Der Graal cujos membros se caracterizavam pelo “culto ao passado [...], lealdade aos ideais da Idade Média” e produção de uma “literatura fora de moda”. DALTON, Margareth Stieg, op. cit., p. 67.8 SINZIG, Pedro. Através dos romances: Guia para as consciências. Petrópolis: Vozes de Petrópolis, 1923. p. 3-4.

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Não nos cabe analisar mais a fundo os critérios utilizados por Pedro Sinzig na avalia-ção dos escritores e livros de Através dos romances.9 No que se refere ao caso específico da “literatura católica”, no entanto, é necessário destacar que, como Karl Muth, Pedro Sinzig apontava o excesso de “puritanismo” como um dos seus principais problemas. Na introdu-ção do seu Guia para as consciências, Pedro Sinzig transcreve um texto do padre e escritor Luiz Coloma em que esse excesso de moralismo é combatido:

Eu deixei correr a minha pena com inteira indiferença, repelindo horrorizado da minha pintura essa teoria perversa que corrompe o critério da moralidade [...]; porém igualmente te confesso que se não foi com espanto, foi ao menos com grande fastio e até com certa ira literária (grifo do autor), que repeli também o outro extremo contrário, próprio de algumas consciências timoratas, que se empenham em achar perigo onde quer que apareça algo de deleitável. Se erram os primeiros, não vendo abismos onde se encontram flores, também me parece que erram os segundos por excesso de medo, não concebendo uma flor sem que oculte um precipício. E assim, partindo uns de um princípio falso e outros de uma verdade santa, passam todos da exageração ao engano, e logo depois à demência, parecendo aquelas que as cruezas de Zola podem servir de guia à mocidade, e julgando estes que não convém ensinar às crianças o Credo e os Artigos da Fé, sem introduzir primeiro certas prudentes modificações, de que te poderia citar algum ridículo exemplo.10

Como Karl Muth e Luiz Coloma, Pedro Sinzig tinha consciência da necessidade de se dotar a literatura católica da “ira literária”, das “flores” e do “algo deleitável” que se faziam presentes em outros gêneros. A necessidade de combater o mal disseminado pelos romances, pelo teatro e pelo cinema impunha novos desafios aos romancistas católicos, exigindo-lhes ousadia e inteligência na escolha e tratamento de temas que, embora polêmicos, não pode-riam ser ignorados por obras que pretendessem dialogar com um público mais amplo. O atendimento dessas exigências estaria na origem do impulso alcançado pela literatura católi-ca alemã que, finalmente, reunia condições de se impor “a amigos e inimigos”. Resenhando Filho de Agar, de Paulo Keller, Pedro Sinzig exalta as qualidades que o credenciavam como um paradigma para o desenvolvimento do romance católico na Alemanha e no Brasil:

9 Essa tarefa já foi realizada por outros autores, como: PAIVA, Aparecida Paiva. A voz do veto: a censura cató-lica de romances. Belo Horizonte: Autêntica, 1997 e SANTOS, Maria Margarete dos. Os jardins abençoados de um franciscano, discurso sobre a leitura de Frei Pedro Sinzig: 1915-1923. Dissertação (Mestrado em História) — USP, São Paulo, 2005.10 SINZIG, Pedro, op. cit., p. 4. Esse texto já havia sido anteriormente transcrito pelo autor na revista Vo-zes de Petrópolis. Ver SINZIG, Pedro. Os romances das Vozes de Petrópolis. Vozes de Petrópolis, Petrópolis, p. 1095-1098, jul./dez. 1912.

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O autor não escolheu por assunto o adultério, a infidelidade [...] que está na moda, e do qual tanto se queixam todos os elementos sérios da sociedade.Trata de outro problema: mostra as tristes consequências duma falta cometida na mocidade. O Filho de Agar é o Filho que não tem pai.Salta aos olhos a enorme diferença entre o romance de Paulo Keller e os que por aqui geralmente se entendem sob o nome de “romance francês”.Keller, por mais realista que seja, não dá nunca ao vício o brilho da fascinação que tão prejudiciais torna outros romances. Nem mesmo descreve a falta cometida, dando-a apenas como fato real do passado....................................................................................Quanto ao assunto em si e o modo sério com que é tratado, convém (ainda) lembrar o seguinte:A virtude da pureza não consiste na ignorância do mal, e sim na resistência a tudo que rebaixa. Os perigos que ameaçam a virtude, hoje em dia, são tão grandes que ninguém lhes pode fugir, nem mesmo que se encerre dentro das paredes de um lar honesto. O perigo ameaça nos jornais que entram em casa, nos postais ilustrados, nas gravuras e imagens, nos cinemas e teatros, em muitas vitrinas, nos cartazes nas paredes nos ditos proferidos na rua. É indispensável, pois, a resistência interna: detestar o mal, apresente-se ele onde e como for.11

Malgrado seus esforços, a Igreja não havia conseguido impedir a propagação do pecado pela literatura, jornal, teatro, cinema e outros meios de comunicação. Ciente dos limites de suas iniciativas no campo da censura, Pedro Sinzig defendia o desenvolvimento de uma literatura católica que, buscando uma maior sintonia com as questões do seu tempo, comba-tesse o mal em vez de ignorá-lo. Num contexto em que até mesmo as almas mais virtuosas estavam expostas aos “perigos que ameaçam a virtude”, cabia ao romancista católico enfren-tar a tarefa de combatê-los, expondo as “tristes consequências” da opção pelo mal.

Definido o perfil da nova literatura católica, fazia-se necessário recrutar os escritores que poderiam desenvolvê-la no Brasil. Em 1911, procurando revelar novos talentos no campo da literatura voltada ao público feminino, Vozes de Petrópolis abriu um concurso que pre-miaria a “melhor peça dramática sobre o tema Só a prática da religião torna a mulher feliz”.12 Os resultados, segundo Pedro Sinzig, não foram muito animadores: julgando que nenhum dos trabalhos tinha “condições de ganhar o primeiro ou o segundo prêmio”, a comissão julgadora do concurso concedeu ao texto de Ancilla Domini, pseudônimo de Hilda Leite Guimarães, apenas o terceiro.13 Pedro Sinzig voltaria a apostar na possibilidade de consoli-

11 SINZIG, Pedro. Notas sobre O Filho de Agar. In: Vozes de Petrópolis, p. 1027-1028, jul./dez. 1912.12 Ver Concurso Literário. Vozes de Petrópolis, Petrópolis, p. 131, jul./dez. 1911. 13 Incentivada por Pedro Sinzig, no entanto, Ancilla Domini procurou superar suas deficiências assumindo um papel de relativo destaque no campo da literatura católica, até o seu falecimento em fins de 1916. Ver SINZIG, Pedro. Ancilla Domini. In: Os nossos escritores. Rio de Janeiro: Centro da Boa Imprensa, 1917. p. 23-34.

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dar um nome de destaque na literatura católica, incentivando, em 1923,14 a escritora baiana Amélia Rodrigues a transferir-se para Niterói. Também nesse caso, os resultados da iniciati-va estiveram aquém dos esperados: sem encontrar os recursos que lhe permitiriam dedicar--se exclusivamente à literatura, Amélia Rodrigues foi forçada a retornar à Bahia no ano de 1925.15 Com uma intensa atividade no campo jornalístico, político e paroquial Pedro Sinzig talvez preferisse restringir suas atividades literárias à orientação e edição de bons livros. No entanto, muito provavelmente em função da inexistência de leigos que pudessem escrevê-los, Pedro Sinzig viu-se forçado a aventurar-se, ele próprio, na produção de romances. Na apre-sentação da terceira edição do seu primeiro romance, Não desanimar!, Pedro Sinzig reflete sobre sua investida num campo que ele havia sido “obrigado” a explorar:

Até pouco antes de pegar na pena para escrever o Não desanimar! nunca me havia passado pela cabeça que, um dia, escreveria eu algum conto mais desenvolvido, ou até um romance. Muito pelo contrário, tinha tal admiração pelos autores de romances, que julgava demasiadamente despida de recursos a minha fantasia, para pensar em segui-los nesse terreno.Uma longa viagem ferroviária, porém, de Curitiba a São Paulo, fez-me ler com atenção e interesse o belo romance de Ansgar Albing (Monsenhor Paulo, Barão Von Mathies): Moribus Paternis [...]. Achei tudo quanto dizia esse privilegiado escritor tão natural, tão simples, tão espontâneo, tão tirado da vida de cada dia, que, pela primeira vez, me surgiu a ideia: E se tentasse outro tanto?...Pus-me a recordar fatos reais, a concatená-los e, terminando mais ou menos o quadro na imaginação, fui fixá-lo com a pena, dentro de um mês, mais ou menos: Não desanimar!.16

Com Não desanimar! Pedro Sinzig deu início à produção de um gênero literário que ele veio conceituar como “romance contemporâneo”:17 obras que, entremeando fatos verídicos à ficção, edulcoravam a análise de temas da atualidade, tornando-a acessível a um público que não nutria maior interesse por obras de cunho ensaístico. Embora reconhecesse o papel dos romancistas para a formatação do “romance contemporâneo”, Pedro Sinzig fazia questão de destacar como o gênero não era estranho aos clérigos que, ainda que inconscientemente, recorriam com frequência à “fantasia”:

14 Cabe ainda destacar que, no segundo semestre de 1913, Vozes de Petrópolis promoveu um novo concurso literário com o tema “A Imprensa”. Ver Vozes de Petrópolis, p. 943, jul./dez. 1913.15 Amélia Rodrigues faleceu em Salvador no ano de 1926. Ver PAIVA, Aparecida, op. cit., p. 127-153.16 SINZIG, Pedro. Não desanimar!. 3. ed. Petrópolis: Vozes de Petrópolis, 1925. p. 3. Todas as indicações de página referem-se a essa edição da obra.17 O termo parece ter sido cunhado pelo próprio Sinzig. Em sua terceira edição Não desanimar! carrega o subtítulo Romance contemporâneo brasileiro, que também é aplicado a Pela mão de uma menina. Tratando de eventos ocorridos fora do Brasil, Ai! Meu Portugal e Tempestades são apresentados como “Romances Con-temporâneos”, enquanto Guerra!!! é classificado como um “Quadro da Atualidade”.

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Já leste, meu amigo, ‘O Filho do Homem, episódios da vida de Christo’ por Anna, Baronesa Von Krane? [...]Anna Von Krane, — e o mesmo fizeram outros distintos escritores como Monlaur, Pfannmüller, Jörgensen, Hoehler, etc. — baseando-se em dados positivos e tomando em consideração os costumes do país e as condições da época, completa o quadro que das mãos dos historiadores recebeu somente em contornos, criando então algo de palpável, com vida própria, a fim de despertar mais interesse no comum dos leitores, do que o fazem páginas pesadas e por isso talvez pouco atraentes.Não abandona jamais o fundamento histórico, mas onde este apresenta falhas, recorre à imaginação que, frutificada pelo estudo, logra completar a cena.É novo o método? Não é. Não há pregador nem catequista que não o siga, por mais averso (sic) que se diga a ‘fantasias’; apenas, nem todos para isso dispõem dos recursos d’uma Monlaur ou d’uma Von Krane. Os próprios biógrafos, que parecem cingir-se rigorosamente a fontes históricas, dão algo da sua fantasia, para completar episódios por demais resumidos. Assim, Chérancé, contando a chegada de S. Antonio à África, escreve:‘Quando S. Antônio viu, pela primeira vez, a costa africana, sentiu uma impressão indescritível de gozo’.D’onde colheu o biógrafo essa informação? A não ser por uma revelação, não é possível que tenha tido ciência dos sentimentos de S. Antonio, o que, entretanto, não o impede de o atribuir ao Santo e de analisar determinados pensamentos, que o teriam invadido a quando de sua chegada à África.Facílimo é citar casos análogos das biografias mais em voga.Sigo, pois, consciente e alegremente este caminho, por grande que seja a distância que vai da minha pena, de pobreza franciscana, aos fulgores da de Anna Von Krane e outros cultores desse simpatizado gênero.18

Embora se referindo a outro gênero, as observações de Pedro Sinzig a respeito de sua hagiografia de Santo Antônio nos ajudam a compreender a forma e as funções que o fran-ciscano atribuía ao “romance contemporâneo”. Sem abandonar o “fundamento histórico” o biógrafo — tal qual o romancista, pregador ou catequista — podia utilizar a “imaginação” e a “fantasia” para completar as lacunas e corrigir as “falhas” presentes em textos históricos, jornalísticos ou hagiográficos. Além de conferir uma maior legibilidade a narrativas carac-terizadas pelo seu caráter lacunar, a estratégia aproximava os leitores de fatos e ambientes que lhes eram espacial ou temporalmente distantes. Os eventos do passado, e também os do presente, tornavam-se mais “palpáveis” e ganhavam “vida própria” despertando maior interesse no “comum dos leitores”.

18 SINZIG, Pedro. Para orientar o leitor. In: O thaumaturgo Santo Antonio. Petrópolis: Centro da Boa Im-prensa, 1922. p. 5.

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Em Não desanimar! fatos, conflitos e personagens da história brasileira e mundial, in-cluindo-se aqui o próprio Pedro Sinzig,19 se entrecruzam numa narrativa que, como já foi dito, pretendia ampliar o público consumidor da literatura católica, oferecendo diversão e encantamento a leitores que não tinham disposição para enfrentar a aridez dos livros e arti-gos ensaísticos.20 Num dos intervalos da ópera Oberon, encenada no teatro real de Wiesba-den, o advogado Antônio da Costa Barros encontra um casal de brasileiros: o comendador Marcos de Castro Moreira e sua filha Judith. O prazer proporcionado pelo encontro aciden-tal de brasileiros em terras estrangeiras resulta num animado bate-papo em que Antônio da Costa Barros revela estar se dirigindo à Oberammergau. Animada com a possibilidade de também assistir à célebre Paixão ali encenada, Judith convence seu pai a unir-se ao programa sugerido pelo novo amigo.

A breve descrição do primeiro capítulo de Não desanimar! nos permite apontar um traço recorrente dos “romances contemporâneos” de Pedro Sinzig: a eleição de membros da elite brasileira como seus personagens principais. A resistência de Marcos de Castro em assistir à Paixão de Oberammergau, por sua vez, aponta para tensões inerentes a essa elite que Pedro Sinzig pretendia, com o auxílio de seus romances, modificar. Membro da maçonaria, o co-mendador não manifesta maior interesse em assistir ao espetáculo da Paixão, só concordan-do em fazê-lo por insistência da filha Judith: jovem que, sem ter sucumbido às tentações que pontuavam o cotidiano das mulheres de mesmo status social, permanecera fiel aos ideais do catolicismo. Antônio da Costa Barros, por sua vez, não tinha um perfil muito diferente de Marcos de Castro revelando-se, ele também, um descrente. Ao assistir à Paixão de Oberam-mergau e verificar o efeito que tal espetáculo exercia sobre Judith, no entanto, o personagem tem sua incredulidade abalada por um breve momento:

Antônio, contemplou [...] sua gentil vizinha (Judith), invejando-lhe o ardor da fé sincera:— E se Cristo fosse realmente Deus!... Se os padres tivessem razão!... Mas, não pode ser. Cristo sugestionou as massas por sua bondade inexcedível, por perdoar sempre, e a tudo e a todos, por não ofender jamais a ninguém, por não pronunciar nunca uma palavra áspera... eis tudo!... (p. 21)

19 Na apresentação da primeira edição do livro, Pedro Sinzig adverte seus leitores para a estreita ligação da obra com o momento histórico em que ela fora produzida: “Embora me tenha servido da licença concedida aos romancistas, a maioria de todos os episódios narrados nestas folhas baseia-se em fatos reais. Nas cenas his-tóricas preferi servir-me das próprias palavras que constam de atos oficiais ou da imprensa”. SINZIG, Pedro. Não desanimar!, p. 5. Essa introdução à primeira edição do livro é datada de “7, XIII (sic). 1911”.20 Referindo-se à “grata impressão” que a leitura de Não desanimar! e Pela mão de uma menina teriam cau-sado em sua “adolescência”, Brito Broca sugere que os objetivos perseguidos por Pedro Sinzig teriam sido alcançados: “Vi-os (os romances de Frei Pedro), como verdadeiros romances de aventuras. Outras aventuras, diferentes daquelas de Júlio Verne, nem por isso menos sedutoras, eis o que o bom frade me contava em seus livros. E para que eu os sentisse e os visse sob esse aspecto, era preciso que estivesse em estado de graça... Não se admirem, pois, que nos livros de um frade eu aprendesse a ler romances”. Brito Broca, apud BEUT-TENMÜLLER, Leonila Linhares. Frei Pedro Sinzig O.F.M. Petrópolis: Vozes, 1955.

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Descrevendo cenas da Paixão, e os efeitos que elas causavam sobre seus espectadores, Pedro Sinzig coloca em evidência o poder de conversão de narrativas dramáticas capazes de falar às emoções e aos sentimentos. Nem mesmo Antônio e o comendador Marcos de Castro conseguiriam resistir à torrente de emoções que, dissolvendo as fronteiras entre “ficção” e “realidade”, contaminava os espectadores da encenação.

Agora...Judith, em todo seu ser sensível e vibrátil, estremece, até as pálpebras, onde tremulam límpidas gotas do orvalho celeste que são as lágrimas por amor de Jesus e de Maria... O próprio cético e crítico Dr. Antonio, como o comendador, sentem-se tocados de irreprimível comoção... A Mãe de Jesus veio despedir-se do Filho, sobre tudo amado e sobre todos...Em revistas ilustradas, em cartões postais, em fotografias, Antonio já muitas vezes vira reproduzidas as feições de Ottilia Zwink, que, em 1910, figuraria Maria Santíssima, e — não lhe agradara. Aquela... representar a Virgem Mãe?...Mas, hoje... agora... seria aquela a mesma que ele de antes conhecia?... Impossível!... O que ali, diante de seus olhos maravilhados, se passava, não lhe parecia ficção, mas sim perfeita realidade. Os espectadores, aos milhares, nem ousavam respirar. Silêncio absoluto pesava em toda a amplíssima plateia, estendia-se ao cenário... e apenas de tempo a tempo, o ruído seco do virar das páginas do libretto, ou, cada vez menos abafado, um soluço, outro, mais outro, ali, mais longe, contido a princípio este, aquele quase se desabotoando em pranto... (Grifo nosso, p. 22-23)

Sintonizado com a Paixão, Antônio não a encara mais como uma “ficção”, reconhecen-do-a agora como a “perfeita realidade”. Essa mudança de perspectiva do personagem nos ajuda a compreender os objetivos que Pedro Sinzig procurava atingir com sua narrativa: mesclando fatos verídicos com ficção, obras como Não desanimar! deveriam provocar em seus leitores efeitos semelhantes aos produzidos em Antônio, Marcos de Castro e Judith pela Paixão de Oberammergau. Com um poder de sedução muito superior ao ensaio, os “roman-ces contemporâneos” atuavam diretamente nas emoções dos seus leitores, tornando-os mais permeáveis à assimilação da doutrina católica. Embora, em seu isolamento, não pudessem se contaminar com a torrente de emoções que, em espetáculos de fruição coletiva como a Pai-xão, se irradiavam por toda a plateia, os leitores dos “romances contemporâneos” poderiam ter suas convicções e comportamento modificados por textos dotados de forte intensidade dramática.

Voltemos aos nossos personagens. Após a experiência proporcionada por Oberammergau, Marcos de Castro, Judith e Antônio iniciam seu retorno ao Brasil embarcando no paquete Cap Arcona: mesmo navio utilizado por Pedro Sinzig quando de sua viagem à Europa no ano de 1910. Como veremos a seguir, essa “coincidência” não era acidental. Utilizando estratégias tí-picas dos “romances contemporâneos”, Pedro Sinzig trabalhará, num estilo ficcional, fatos que

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ele havia vivenciado numa rápida passagem por Lisboa durante a “Revolução Republicana”. Descrita no livro Reminiscências dum frade, a citada passagem teria se resumido a um tenso passeio pelas ruas da cidade.21 Complementadas por depoimentos e notícias posteriormente publicadas em jornais, as impressões de Pedro Sinzig sobre a “Novel República Portuguesa” assumiriam em Não desanimar! um tom mais dramático e aventuresco.

Marcos de Castro e Antônio desembarcam em Lisboa, observando, consternados, a de-sordem e a falta de “entusiasmo espontâneo da massa, do verdadeiro povo, pelo advento das novas instituições democráticas” que só encontravam manifestações de apoio entre “bandos de soldados ou grupos armados [...] formados por indivíduos de caras patibulares e ameaça-doras”. Impedidos de visitar os Jerônimos pela ausência de transporte, Marcos de Castro e Antônio resolvem visitar uma Igreja, constatando que a mesma estava sendo depredada por “carbonários”:

O tabernáculo, aberto, fora evidentemente profanado. O cibório de ouro, despojado das sagradas Hóstias, fora miseravelmente injuriado a servir de... vaso noturno!...O comendador, presa de irresistível acesso de cólera, exclamou:— Eu sou republicano e maçom, mas isto é diabólico!— Canalhas! — gritou o doutor em voz forte. (p. 41)

Os “carbonários avançam contra os brasileiros”, mas Antônio consegue desarmá-los, ordenando ao comendador que retornasse ao porto. Vencido em uma luta desigual, Antonio estava prestes a ser executado quando foi salvo pelo tenente Alfredo Mourão, que se encar-regou de conduzi-lo, ferido, até o Cap Arcona:

— O senhor teve sorte! — disse-lhe (o médico de bordo); — estes republicanos... raios os partam!... felizmente não sabem atirar... Foi agredido na rua?— Não; tive de defender-me quando, indignado, pela inaudita profanação de uma igreja, apostrofei-os, como canalhas que efetivamente são.— Apoiado! Então, o senhor é católico... como se diz... crente?— Nasci no catolicismo, Sr. doutor; mas os estudos fizeram-me abandonar as práticas religiosas e tornar-me um livre pensador.— Mas, como então o revoltou tanto a profanação de um lugar que deixou de lhe ser sagrado?— Ah! Para isso não é preciso ser crente! Basta ser-se homem de bem e respeitar as crenças alheias. De mais a mais, o catolicismo sempre me merecerá alguma simpatia, por ser a religião de minha mãe, que a pratica, que por ela vive, que por ela daria a própria vida...— Muito bem, meu amigo. Vejo que é homem que se preza e é bom filho. Não conheço o Brasil, mas se todos os brasileiros são como o senhor, não posso deixar de lhes querer bem. (p. 51)

21 Ver SINZIG, Pedro. Reminiscências dum frade. Petrópolis: Vozes de Petrópolis, 1925. p. 420-426.

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Formado na tradição do catolicismo, Antônio havia se afastado da doutrina que assimi-lara em seu berço tornando-se um “livre pensador”. Sob o influxo da mãe, de Judith e de experiências como as de Oberammergau e Lisboa, no entanto, esse catolicismo expungido por uma educação laica poderia voltar a florescer, fazendo com que não apenas Antônio, mas também os leitores de Não desanimar!, se reencontrassem com a fé católica. Ao lado do comendador Marcos de Castro, Antônio da Costa Barros personifica as elites da sociedade brasileira que Pedro Sinzig pretendia recristianizar utilizando, dentre outras armas, o “ro-mance contemporâneo”.

No convés do Cap Arcona, os passageiros do navio se divertem com a possibilidade de participar de uma “corrida” contra o Aragon: navio da marinha real inglesa que, mesmo tendo partido dez horas antes do Cap Arcona, estava sendo ultrapassado pelo navio alemão. Em busca de entretenimento, alguns passageiros incentivam Judith a falar sobre a Paixão de Oberammergau: espetáculo que, segundo ela, tivera “uma das cenas [...] reproduzida, não no palco, mas na vida real”. Procurando elucidar a afirmação da filha, o comendador Marcos de Castro narra a “cena” por ele presenciada na Lisboa Republicana: “à passagem dolorosa de pobres frades presos e insultados e apedrejados pelos carbonários, com um furor análogo ao dos judeus contra Cristo”.

A menção às perseguições dos jesuítas pela República Portuguesa leva os passageiros a se indagarem sobre frei Estevam: padre franciscano embarcado no Cap Arcona. Ao procurar, a pedido de Judith, informações sobre o horário da realização das missas no navio, Antônio tem a oportunidade de debater questões religiosas com o clérigo:

— A filha do meu amigo desejaria saber a hora da missa amanhã.— Começará às 9 ½ em ponto, no salão.— Agradecido, reverendo. Ela ficará satisfeita de assim cumprir uma obrigação própria do seu sexo.— Ah! Uma novidade para mim, senhor... se me permite, com quem tenho a honra de falar?— Antonio da Costa Barros, doutor em direito.— E eu, Frei Estevam, da Ordem de São Francisco... Pois, o doutor realmente me traz uma novidade que me interessa...— De que a moça é piedosa?— Não; isso absolutamente não me surpreende; mas de que a prática da religião é obrigação só para o sexo feminino.— Modos de ver, Sr. Padre. Eu não desconheço a conveniência do sentimento religioso na mulher; mas o homem, de organização física tão diferente, talhado e aparelhado para as grandes lutas da vida e das conquistas científicas, é chamado a outro... como dizer? Tem outra vocação, deve mesmo libertar-se de... perdoe a franqueza!... de preconceitos religiosos. (p. 58-59)

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“Vítima” da educação laica e das “más leituras”, Antônio havia sido condicionado a acreditar em “inverdades” que frei Estevam, com seu discurso habilidoso, procura com-bater. Ganhando maior visibilidade no século XVIII com o advento do Iluminismo e da Revolução,22 a crença na incompatibilidade entre Fé e Razão estaria na origem da pretensa inadaptabilidade dos homens ao catolicismo: “talhados” para as “conquistas científicas”, os homens eram impermeáveis à assimilação de doutrinas que não houvessem sido construídas pelo saber racional enquanto as mulheres, governadas mais pelo sentimento que pela razão, eram muito mais propensas a aderir, como “uma obrigação própria do seu sexo”, aos dogmas que lhe eram ditados pela Igreja Católica.

Antônio e frei Estevam continuam seu debate, enquanto a aproximação do Cap Arco-na do Aragon agita os outros passageiros e a tripulação. Acompanhada pela execução do Deustshcland über alles, a ultrapassagem do navio inglês pelo alemão ofereceu aos passageiros a oportunidade de conhecer uma nova faceta do franciscano, que juntou sua voz ao coro que entoava o hino nacional alemão: embora fosse agora “brasileiro”, explicou frei Estevam aos passageiros que estranharam seu comportamento, ele havia nascido na Alemanha, terra amada onde deixara os que lhe eram “mais caros [...] no mundo”.

Navegando em alta velocidade, o Cap Arcona chega ao Rio de Janeiro no mesmo mo-mento em que, no largo de São Francisco, o senador Coelho realizava um “meeting anticle-rical”. Comparado aos espetáculos realizados “nos circos de cavalinhos, nos teatros de burla e arte barata, e nas casas de schops e cançonetas de ínfima classe, onde a falta de pudor só é igualada pela ausência de qualquer resquício de arte”, o comício mobiliza as emoções das “massas populares” que obedecem à palavra de ordem lançada pelos organizadores do even-to: atacar as freiras do Convento da Ajuda:

— Morram as freiras! — berravam alguns mais loucos, desfechando valentemente seus revólveres contra as grossas muralhas silenciosas do mosteiro. Com pesados cacetes e bengalas martelavam fragorosamente nas portas largas da entrada, enchendo de terror as míseras religiosas ali recolhidas em recato e oração, e que se sentiam ameaçadas por todo aquele grande grupo desvairado de anticlericais em delírio. (p. 67)

Em meio à confusão, que do centro da cidade se estendera ao porto, os passageiros do Cap Arcona assistem, ainda no cais, à chegada da “escolta” que se encarregaria de conduzir frei Estevam em segurança ao convento de Santo Antônio.

Convidado a hospedar-se na residência dos Castro Moreira, Antônio tem a oportunida-de de conhecer os outros membros da família do comendador: sua esposa Sinhá, sua filha

22 Além de merecer destaque nas páginas de Vozes de Petrópolis, o tema da incompatibilidade entre Fé e Razão foi objeto de um livro publicado no mesmo período: DESCHAND, Desidério. Os grandes sábios e a fé na época contemporânea. Tournai: Sociedade de S. João Evangelista/Desclée e Cia, s/d.

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Dulce e seu filho Carlinhos. Inquirido pelos Castro Moreira, Antônio fala sobre um pouco sobre a mãe e irmã que o aguardavam ansiosamente em Santa Catarina.

A partir da referência à família de Antônio, Não desanimar! se desloca para o planalto catarinense. Entrelaçando, mais uma vez, realidade e ficção, Pedro Sinzig recupera fatos marcantes de sua passagem pelo Convento de Lages através do personagem frei José: fran-ciscano que, regressando de uma longa e desconfortável jornada, não hesita em se dirigir à fazenda São Januário para prestar socorro à família do Dr. Antônio de Barros. As bruscas mudanças de temperatura e o inverno rigoroso, típicos da região, haviam contribuído para a deterioração da saúde de Helena e de sua filha Trudinha23 que administravam a fazenda da família desde que Antônio de Barros viajara para a Europa. Embora a saúde de Trudinha estivesse também abalada, o agravamento no estado geral de D. Helena é que havia motiva-do o chamado de urgência a frei José. Reanimando-se depois de ter se confessado e assistido uma missa celebrada pelo franciscano, a matriarca expõe alguns dos seus temores a frei José:

— Eu agora estou preparada para tudo, Sr. Padre. A única coisa que ainda me preocupa, e muito, se bem que Deus me haja perdoado todo pecado, desleixo e fraqueza, é a incredulidade de meu filho. Ele era tão piedoso, quando pequeno! Ainda hoje é bom filho e bom irmão. Mas o colégio onde foi educado, e, mais tarde, a Faculdade de Direito, juntamente com os perigos do mundo, fizeram-lhe perder a fé. Apego-me a Nossa Senhora pra que não mo deixe perecer. Todas as minhas orações, no purgatório e no próprio céu, serão por sua conversão. E o Sr. Padre me ajudará... (p. 96-97)

Sem que Dona Helena sequer imaginasse, ela possuía outra aliada na missão de recon-verter Antônio ao catolicismo: Dulce, a filha mais velha de Marcos de Castro, que trava um acalorado debate sobre religião com o hóspede da família. Um tanto acuado pelos argumen-tos da jovem católica, Antônio recebe o providencial auxílio do comendador, que intervém no debate:

— Mas que conversas são essas, minha filha! Você está aborrecendo o nosso bom amigo! — interrompeu de súbito o comendador, que chegava.— Ora, papai, então a gente se deve sempre preocupar de coisas fúteis?!— Em nada me importuna, meu amigo — disse Antônio — Pelo contrário, eu desejaria conseguir obter sempre destas palestras, embora me visse vencido.— Ah! O senhor também vencido? A minha filha meteu-se-lhe na cabeça converter o mundo inteiro — disse, gracejando, o Sr. Castro.— Oxalá pudesse eu consegui-lo papai!— E começarias certamente por casa, não é?

23 Derivado de Gertrudes, “Trudinha” era a forma carinhosa pela qual Pedro Sinzig referia-se à própria irmã.

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— Ora, papai, isso não é para gracejos...— Então, eu sou mesmo assim tão mau?— Tu és meu bem, meu querido paizinho que eu amo de todo o coração. Mas se tu praticasses a religião, se nos acompanhasses à mesa da sagrada Comunhão, oh! Então tu serias o melhor dos melhores de todos os pais do mundo!— Olha, filhinha, a mesma panaceia não é útil para toda gente. A religião, para o povo baixo, para as classes inferiores, como freio a contê-las, vá lá eu admito; mas para gente instruída...— Que atenção às tuas filhas! — disse Dulce, meio gracejando, para continuar, séria: — Não são os muito instruídos que menos dela precisam. Sem religião, eles só podem tornar-se perversos e perniciosos, e é das suas fileiras que saem os defraudadores dos dinheiros públicos, os caudilhos e chefes revolucionários sem um ideal nobre; os ridículos, mas daninhos tiranetes das repúblicas novéis... e depois, papai, onde é que começa a instrução que dispensa a prática religiosa? No terceiro de engenharia de máquinas ou no segundo ano de direito? No burguês, que arrebenta e apodrece de rico e assina O Malho, ou no caixeiro da esquina, que lê Emile Zola?... (p. 105-106)

O diálogo dos três personagens retoma a clássica interpretação do processo de estabe-lecimento da República no Brasil, em que se destaca o fosso entre as lideranças do movi-mento e o povo que “assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava”. Descrito com perspicácia na célebre carta de Aristides Lobo, esse divórcio era também perceptível no campo religioso,24 marcado pelo contraste entre o catolicismo das classes populares e a apostasia das elites que identificavam a Igreja Católica ora como uma adversária, ora como uma “auxiliar” no controle das massas. Recusando os papéis que lhe eram atribuídos pelos detentores do poder, a Igreja exigia a recristianização do estado: única maneira de livrar o país da iniquidade geradora dos motins e revoltas que recrudesciam des-de a proclamação da República.

Denunciada por Dulce, a apostasia das elites como um elemento desestabilizador da sociedade brasileira seria confirmada por acontecimentos que, respeitando os parâmetros dos “romances contemporâneos”, envolveram personagens históricos e ficcionais: convocados por uma nota publicada no Jornal do Brasil, um grupo de maçons ser reúne na loja Silêncio Noturno com o objetivo de estabelecer as ações futuras da “seita”.

— Torna-se urgente dar um passo decisivo — disse o Ir.’. 2º Vigilante ao Ir.’. Orador. — As circunstancias tornam a ocasião favorável, como jamais se nos apresentou antes. O Nilo é nosso. Depois daquele carola que era o Afonso Pena, não poderíamos encontrar quem melhor nos conviesse a favorecer-nos na tarefa de promover o bem da humanidade. (p. 119)

24 Dentre os autores católicos que, no mesmo período, retomaram a expressão de Aristides Lobo destaca-se Desidério Deschand. Ver A situação atual da religião no Brasil. Rio de Janeiro/Paris: Garnier, 1910. p. 27-28.

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Sem esquecer detalhes relativos às vestimentas, peças decorativas e objetos ritualísticos, Pedro Sinzig descreve minuciosamente a reunião. Depois de discorrer sobre as teses aprova-das no Primeiro Congresso Nacional da Maçonaria e a expulsão dos jesuítas pela República portuguesa, o Venerável Mestre destaca o combate a admissão dos membros da Companhia de Jesus no território brasileiro como prioridade da irmandade:

É mister que de todos os lados chovam os protestos contra o livre desembarque dos jesuítas e frades expulsos da Europa, para que o nosso DD.’. Ir.’. que, felizmente, se acha no Catete, esperança do Gr.’. Or.’., marque, com pulso de ferro, nova época nos fatos da história do Brasil. Proponho, pois a nomeação de uma comissão que se vá entender com o ilustríssimo Sr. Dr. Nilo Peçanha, dd. Presidente da República, a respeito das providências a tomar-se contra o perigo iminente da invasão fradesca que nos ameaça. (p. 122)

As entusiásticas manifestações de apoio à proposta são interrompidas por uma voz disso-nante. Tomando a palavra o 1o Vigilante, comendador Marcos de Castro, manifesta posição contrária a do Venerável Mestre destacando, dentre outros argumentos, que ela entrava em contradição com os princípios da Grande Oriente e com a Constituição do país. Acusado por seus pares de haver, “talvez por influência de alguma pessoa de família”, sucumbido ao “guante do jesuitismo”, Marcos de Castro abandona a reunião.

No mesmo momento em que se realizava a reunião na loja Silêncio Noturno, Judith e Dulce trocavam confidências, manifestando sua preocupação com o pai que tinha ido se encontrar “com aqueles tais amigos que lhe fazem tanto mal”. Os problemas de Judith e Dulce, no entanto, não se comparavam aos que eram enfrentados por D. Helena e Trudi-nha: a última quase fora estuprada pelo filho de um fazendeiro da região, numa experiência traumática que contribuiu para agravar o estado de saúde das duas.

A segunda parte de Não desanimar! se inicia com uma recepção na casa dos Castro Moreira. Antonio, Dulce, Judith e seu noivo, o oficial da marinha Alfredo Rosa de Sales, dialogam a respeito da implantação da república portuguesa: tema que abre a possibilidade para que Alfredo faça um longo discurso contra as multidões que se “agitavam em febre” sem tempo para “cuidar dos interesses da alma”; “os cavalheiros distintos, da nossa melhor sociedade” que só se ocupavam de seus “próprios interesses materiais”; as massas que se re-cusavam a comparecer às igrejas, mas lotavam os cinemas que apresentavam “insultos à fé como o filme Xisto V”; os leitores ávidos de “brochuras, revistas, (e) jornais ilustrados” de conteúdo imoral; “o Medeiros de Albuquerque, o Constantino Alves, e outros” que, nas pá-ginas dos jornais, repetiam “o realejo de suas verrinas contra a religião revelada”. Buscando reafirmar sua condição de “livre pensador”, Antônio tenta rebater o discurso de Alfredo, mas é facilmente vencido pelos argumentos dos católicos presentes. Terminada a recepção, antes

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de deitar-se sobre o “duro assoalho” em que dormia, “cumprindo [...] promessa heroica”, Dulce relembra o episódio em suas orações:

— Seja hoje em ação de graças a Ti, meu doce Jesus, que eu me deite nesta cama. Deste-me um auxiliar no combate pela salvação da alma de papai... de papai... e também ele ouviu tão bem! Agradeço-te, meu doce Jesus... Ah! Sim, como, como te agradeço!... (p. 159)

Em sua residência, o comendador Marcos de Castro lê os protestos contra a proibição da entrada dos jesuítas em território brasileiro publicados pelos diários. Conversando com Alfredo, que havia sido transferido para o dreadnought São Paulo, Marcos de Castro ma-nifesta-se contra a proibição que, imposta pelos maçons, prejudicaria a imagem do país no exterior. Encorajado pela indignação do “sogro”, Alfredo sugere ao mesmo que se desligue da maçonaria: proposta que é prontamente recusada. Esse insucesso não diminui o ímpeto de Alfredo, que estimula Judith e Dulce a organizarem um grupo de repúdio à proibição do ingresso dos jesuítas “portugueses” no Brasil.

Preocupado com sua família, Antônio de Barros decide retornar ao planalto catarinense. Durante a viagem, o advogado tem oportunidade de refletir sobre o amor que sentia por Dulce lamentando que ela, adepta do catolicismo, jamais viesse se unir a “um homem sem religião”. Recusando a hipótese de uma conversão oportunista, só lhe restava como alterna-tiva “estudar bem a religião, convencer-se de sua verdade, praticá-la, enfim, mas praticá-la por convicção e não por interesse”. Depois de cumprir um longo e penoso trajeto, Antônio chega à fazenda São Januário deparando-se com uma tragédia: Trudinha havia falecido e mãe estava à beira da morte.

Ignorando o drama vivido por seu amado, Dulce se mobiliza no recolhimento de assi-naturas contra a proibição do ingresso de jesuítas no território brasileiro. Dirigindo-se à casa de Julinha Rodrigues, Dulce a surpreende durante a leitura de O Malho: revista que Julinha concorda em lançar ao fogo, depois de ser duramente censurada pela amiga. Obtida a as-sinatura de Julinha, que também se comprometera a nunca mais ler publicações infames e imorais, Dulce se junta ao grupo de mulheres encarregado de levar o documento com mais de 10 mil assinaturas a Nilo Peçanha. Recebidas no Palácio do Catete, as mulheres passam uma descompostura no “presidente da República” que, “em posição penosa”, é obrigado a “ouvir, com o sorriso nos lábios, a acusação tremenda que lhe fazia a parte mais distinta da sociedade da capital do país”. Poucas horas depois do encontro o grupo de senhoras católicas colhe os primeiros resultados de sua mobilização: acenando uma mudança de conduta, o governo brasileiro permitira o desembarque de dois jesuítas que haviam chegado ao Brasil no navio Orissa.

No planalto catarinense, Antônio de Barros tenta superar a morte da irmã e o agrava-mento da doença da mãe, lamentando não possuir a “mesma fé robusta” de seus amigos

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católicos. Encorajado pelo médico da mãe, que destaca como “uma radical mudança de ares” poderia beneficiar Helena, Antonio começa a avaliar a possibilidade de mudar-se para o Rio de Janeiro.

A pedido da mãe, Antônio de Barros se dirige ao Convento de Lages para solicitar que um frade rezasse uma missa na São Januário. Retornando à fazenda, ao lado de frei José, An-tônio expõe suas angústias ao sacerdote encarregado de oficiar o ritual. Realizada no quarto de Trudinha, a missa leva o personagem a experimentar sensações semelhantes às que havia vivenciado na Paixão de Oberammergau e, tomado por forte emoção, Antônio clama pela conversão que poderia ajudá-lo a suportar seus sofrimentos:

— Meu Deus e meu Senhor!... Creio... creio em Ti!... Não, eu não creio ainda, não quero nem posso mentir-te... Mas, ah! Como desejaria crer! Crer em tua presença real, crer firmemente que aqui estás, em minha fazenda, diante de mim!... Cristo, se de fato aqui estás, se me vês e me ouves, escuta-me! Olha com olhos misericordiosos para minha fraqueza e meu orgulho! Se aqui estás diante de mim, oh! Tu, Senhor do céu e da terra, faze com que te conheça, que te saiba e possa servir!... Cristo, Jesus! Socorre-me e salva-me! ... (p. 209)

Se Antônio ainda hesitava em abraçar o catolicismo, uma conversão era apressada por eventos trágicos na capital do país. Em 23 de novembro de 1910, convocado a cumprir uma missão no Minas Gerais, Alfredo de Salles ouve uma “forte algazarra” e tiros ao aproximar-se do navio. Subindo ao convés do dreadnought, Alfredo se une a um grupo que tenta, inu-tilmente, conter os amotinados da Revolta da Chibata e salvar o comandante Baptista das Neves, que é abatido por um tiro e por um “golpe de machadinha”. Arremessado por sobre a amurada do navio, Alfredo consegue chegar até o cais. Dirigindo-se ao Arsenal da Marinha, Alfredo relata os acontecimentos ao ministro da Guerra, acompanhando-o a uma reunião de emergência com o “novo presidente da República, poucos dias antes empossado”. Hermes da Fonseca ouve atentamente o relato de Alfredo que é interrompido pela chegada de informes ainda mais estarrecedores: o dreadnought São Paulo, o scout Bahia, os couraçados Floriano e Deodoro, os cruzadores República e Tiradentes e os navios-escola Benjamin Constant e Primei-ro de Março haviam se unido à rebelião contra o governo, que só podia contar com o apoio dos navios Rio Grande do Sul, Barroso, Tamoyo e Tymbira.

Misturadas a boatos, as más notícias espalhavam-se pelo Rio de Janeiro provocando pâ-nico na população. Em sua residência, Marcos de Castro e Dulce conversam sobre a revolta, interpretando-a como desdobramento de uma crise mais profunda:

— Não me surpreende nada, papai. Um homem religioso jamais recorre à violência, jamais se torna revolucionário, não trai jamais seus superiores. Religioso e revoltoso são coisas que realmente se repelem.

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— Nisso tens razão, minha filha. Oxalá os oficiais também tratassem melhor os pobres marinheiros! Por que não observam a disposição da lei, que proíbe o uso da chibata aviltante?— Tu bem sabes, papai, como toda a crueldade me indigna e repugna. Mas, dize-me, que poderão os oficiais fazer, afinal de contas, se não são obedecidos?— Deveriam castigar, mas não tão cruelmente.— Sim, mas o homem que não obedece, em respeito à legítima autoridade, isto é, a Deus, forçosamente se rebelará contra qualquer castigo. Se não há Deus, ou se não se ensina obedecer a ele, ninguém pode nos forçar a obedecer a quem quer que seja, neste mundo...— Mas a ordem social, minha filha...— Que ordem social, papai! Cada qual a compreende e interpreta de maneira diferente. Os anarquistas esforçam-se por destruí-la a ferro e fogo; os socialistas tentam transformá-la em uma utopia irrealizável; os partidos políticos visam apenas os próprios interesses, e os dos seus amigos, e não os do país e do bem público...— A própria razão obriga à observância rigorosa de certas leis.— Sim?... Então o ladrão, que entende injusta a distribuição desigual dos bens deste mundo; então o devasso, que afronta a moral, cobiçando o que lhe não é devido; o usurário, que armazena tesouros à custa alheia; todos esses seguem os ditames de sua razão pessoal... Sem crença absoluta em Deus, e sem obediência completa a ele, a vida social será uma balbúrdia, uma verdadeira revolução de todos contra todos... (p. 218-219)

Insistindo na separação entre Igreja e Estado e recusando submeter-se à autoridade de Deus, a república destruíra os pilares que sustentavam a sociedade brasileira expondo-a à anarquia, à violência e à revolução. Servindo-se da “licença concedida aos romancistas” e completando as lacunas do “quadro” construído pelos jornalistas e historiadores, Pedro Sinzig reafirma em seu “romance contemporâneo” os argumentos expostos em Vozes de Pe-trópolis e em outros de seus ensaios. No discurso da personagem Dulce repercutem os ecos da Quanta Cura: “E, quando na sociedade civil é desterrada a religião e ainda repudiada a doutrina e autoridade da mesma revelação, também se obscurece e até se perde a verdadeira ideia da justiça e do direito, em lugar da qual triunfam a força e a violência”.25 Sugerida por Pedro Sinzig, essa relação é percebida de forma mais clara se, recorrendo a Roberto Romano, lembrarmos que:

[...] o arrazoado de Pio IX não se distancia demasiado das posturas antiburguesas e autoritárias de Bonald, De Maistre e Donoso Cortés. Desde que não há mais legitimidade e Deus não é reconhecido, só resta aos homens a ditadura e a força física. Nessa visão, a humanidade, deixada aos seus próprios cuidados, solitária, sem o Outro transcendente, só poderia ser

25 Pio X, Quanta Cura. Disponível em: <http://www.paroquias.org/documentos/index.php?vsec=ENC& vid=27>. Acesso em: 8 dez. 2010.

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perfeitamente descrita pelas palavras de Donoso Cortés: uma “nave sem meta, cheia de gente sediciosa, vulgar e recrutada pela força, que canta e dança até que o raio divino fulmine a plebe rebelde e torne a reinar o Silêncio”.26

Depois de semear ventos, a república descristianizada, versão abrasileirada da Stultifera Navis, colhia a tempestade de projéteis disparados pelos amotinados da Revolta da Chibata. A queda de um obus em local próximo à residência dos Castro Moreira interrompe o diálogo entre pai e filha, que decidem dormir. No meio da noite, os dois são acordados por um mor-teiro que atinge sua casa. Correndo para o quarto da filha, o comendador a surpreende dei-tada no chão nu, compreendendo imediatamente o significado do ato: uma penitência em prol de sua conversão ao catolicismo. Emocionado, Marcos de Castro vai até seu escritório, arranca da escrivaninha os documentos que atestavam sua afiliação à maçonaria e os entrega a Dulce para destruí-los. Na manhã seguinte pai e filha se dirigem à capela do Colégio Santo Inácio, onde se confessam e recebem os santíssimos sacramentos.

Na Câmara dos Deputados, o tenente Alfredo de Salles assiste aos debates sobre a pro-posta de concessão de “anistia aos revoltosos, que se achavam ainda de posse dos poderosos dreadnoughts, cujos canhões, ameaçadoramente, dirigiam suas enormes bocas de fogo para a cidade, e não pouco amedrontavam os próprios legisladores”.27 Decepcionados com o re-sultado da votação, 119 votos a favor e 19 contra a anistia, Alfredo de Salles e outros oficiais agendam uma reunião no Clube Naval, mas são impedidos de realizá-la por seus superiores que ordenam a retenção de “todos os oficiais da Armada, no Arsenal de Marinha”: depois de se vergar-se aos “marinheiros rebeldes armados”, o governo tentava demonstrar autoridade e coragem reprimindo “oficiais disciplinados e sem armas!”.

Instalado no Rio de Janeiro, Antônio da Costa Barros recebe a visita de Dulce, que o auxiliava a cuidar de sua mãe que, desde a morte de Trudinha, ficara muda. Quando Dulce sugere que D. Helena apelasse a Nossa Senhora Aparecida para reconquistar sua saúde e sua fala, Antônio é invadido por pensamentos revelados ao leitor pelo narrador do romance:

Antônio já não era o mesmo homem que fora incrédulo à Europa. O que vira em Oberammergau, em Lisboa, o que ouvira dos lábios de Frei Estevam, o exemplo do tenente, e, principalmente, além do exemplo de Dulce, tudo aquilo se passara em sua volta à terra natal, a morte da irmã, a doença da mãe, a conversa que teve com Frei José, a Missa a que assistira na fazenda, e, last not least, as sérias reflexões que, ao lado da mãe privada da fala fizera durante a longa viagem, tudo isso lhe modificara o antigo modo de pensar e de ver as coisas, e, se bem que não houvesse ainda resolvido a mudar praticamente de opinião, começara a encarar com outros olhos a prática da religião. (p. 236)

26 ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado. São Paulo: Kairós, 1979. p. 86.27 SINZIG, Pedro, op. cit., p. 227.

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Antônio concorda com a viagem a Nossa Senhora Aparecida e, entusiasmada pela acei-tação de sua proposta, Dulce lhe sugere realizar um ato que traria benefícios a ele e a mãe: confessar e comungar na Basílica de Aparecida.

No curto trajeto que separava sua casa da de Antônio, Dulce é abordada por um garoto maltrapilho cuja mãe, acamada depois de haver recebido uma surra do marido, desejava falar-lhe. Admirando Dulce pela sua caridade e devoção aos humildes, a pobre mulher de-sejava preveni-la contra um perigo que ameaçava o tenente Alfredo de Salles: o marido, marujo que se tornava extremamente mau após o consumo de álcool, havia lhe contado que “os soldados do batalhão naval e os marinheiros dos navios de guerra” iriam “revoltar-se [...] e matar os oficiais todos”.

Alertado por Dulce, o general Menna Barreto não consegue evitar o levante, que só é contido com o bombardeio da Ilha das Cobras. Analisando o episódio num diálogo com a esposa, Marcos de Castro demonstra haver assimilado as lições de Dulce, reafirmando sua conversão ao catolicismo:

É um verdadeiro horror essa história de revoltas [...]. Afinal de contas, já hoje, no entanto, não me admiram muito. A chibata revolta, e têm razão os que se revoltam contra ela. Mas que meio encontra o oficial para fazer-se obedecido? O capelão, no exército ou na armada, usaria de meios suasórios e, mesmo quando ofendido, perdoaria o agravo e prosseguiria em sua missão salvadora. Mas um oficial não pode nem deve deixar-se desfeitear impunemente.— São coisas essas bem tristes — respondeu D. Sinhá. — Não podiam então os pobres homens viver em paz?— Os interesses se chocam, e daí se originam as lutas. Estou mesmo convencido de que sem a religião não poderá subsistir o estado. A polícia é praticamente impotente para repelir as audácias dos perversos. (p. 248)

Acompanhados por Dulce, Judith e Alfredo, Antônio e sua mãe chegam à Basílica de Aparecida. No interior do templo, Dulce clama não apenas pela cura de Helena, mas tam-bém pela conversão de Antônio a quem, desde algum tempo, amava. Absorta em suas ora-ções, Dulce é interrompida por Judith, que chama sua atenção para Antônio, que se ajoelha no confessionário:

Começou então a santa missa. Pela altura do Ofertório, o doutor (Antônio) deixou o confessionário. Parecia que não tinha mais olhos para coisa alguma, e foi ajoelhar-se em um ponto um tanto afastado de todos... Parecia rezar como o capitão do Evangelho: Eu não sou digno, Senhor!...Ao tríplice sinal da campainha para a Comunhão, pela primeira vez, Antônio acompanhou sua Mãe à Mesa Eucarística, ajoelhou-se bem ao lado, tendo Dulce à esquerda, depois Judith, depois Alfredo...

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E os anjos do céu se alegraram pela volta de uma ovelha perdida ao aprisco do Divino Pastor... (p. 257-258)

Descendo a íngreme ladeira que dava acesso à Basílica, Dulce e Helena sofrem um acidente com uma das precárias “carroças” que transportavam os romeiros na cidade. Recompondo-se do choque, Dulce se dirige a Helena que, em alto e bom som, atribui o salvamento das duas à intervenção de Nossa Senhora de Aparecida. Um duplo milagre havia se operado: as mulheres haviam escapado ilesas e Helena recuperara a fala. Emocionados, Dulce, Helena, Antônio, Judith e Alfredo retornam à Basílica para agradecer à Nossa Senhora pelas graças recebidas:

Entre aclamações quase convulsas de uma alegria infinita, de uma surpresa sem limites, dirigiram-se todos de novo ao templo. O povo, embora já acostumado aos frequentes milagres de Nossa Senhora, saía correndo, curioso, das casas, e muitos acompanharam a família até ao Santuário, a unirem suas orações em ação de graças às dos felizes romeiros...........................................................................................................— Como lhe hei de agradecer, D. Dulce? — disse o doutor, ao saírem novamente da Basílica, e tomando a mão da donzela, que beijou respeitosa e carinhosamente.— Agradecer-me a mim?... Mas a mim não tem nada que agradecer!...— Sim, a senhora merece... merece...Não ousou continuar, a concluir a frase. Novo rubor tingiu as faces da jovem... A sua mãozinha mimosa tremia nas dele... e quando, num impetuoso movimento, ele lha apertou com força, ela retribuiu-lhe, embora levemente a carícia...— Dulce!... posso então esperar... Posso crer que... Oh! Como sou feliz!Ela então lhe sorriu deliciosamente.— Dulce!... Minha Dulce!... Minha querida Dulce! — exclamou o doutor, apertando a moça ao peito, em plena praça pública, e apesar dos olhares admirados dos populares, que os contemplavam...— Amas-me muito, Dulce?— Sim... eu te amo... e desde há muito tempo, Antonio!...E um beijo, um grande e casto beijo, selou as juras dos noivos, em plena rua, diante da milagrosa Basílica... (p. 260/261)

Com a formalização da união entre Antônio e Dulce, Não desanimar! chega ao seu final. Trocado “em plena praça pública”, no meio do “povo” que “havia acompanhado a família até ao Santuário”, o beijo do casal expressa uma das metas que Pedro Sinzig buscava atingir com seus “romances contemporâneos”: a recristianização das elites republicanas que, reintegradas ao “rebanho” pelo influxo decisivo das mulheres, podiam novamente entrar em comunhão com o “povo”.

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O “romance contemporâneo” na recristianização do estado brasileiro: Não desaNimar! de Pedro Sinzig

Claudio Aguiar Almeida

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Referências bibliográficas

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A legitimidade da graça: os impactos da tentativa de reforço da política sesmarial sobre as terras da Casa da Torre na

capitania da Paraíba (século XVIII)

Carmen Margarida Oliveira Alveal*Kleyson Bruno Chaves Barbosa**

RESUMOCom o intuito de encontrar riquezas no vasto e desconhecido sertão, a Coroa concedeu grandes extensões de terras àqueles que se empenharam nessa missão. Foi nesse contexto que a Casa da Torre formou seu patrimônio, entre os séculos XVI e XVII. Mais tarde, entretanto, essa medida resultou em um grande entrave para a Coroa, que desembocou em conflitos por posses de terra durante o século XVIII. De um lado, observa-se a Coroa ten-tando legalizar o sistema sesmarial, por meio da expedição de várias ordens complementares. Do outro lado, observam-se os membros da Casa da Torre, entendendo-se como possuidores da terra de forma inquestionável, e os compradores das terras vendidas pela Casa da Torre, percebendo-se como verdadeiros proprietários da sesmaria. Portanto, este trabalho tem por objetivo demonstrar o processo de venda de sesmarias da Casa da Torre para colonos no ser-tão do Piancó e os conflitos que os envolvem no tocante à posse e ao domínio de terras, por meio de cartas de sesmarias concedidas entre 1757-1765, documentos régios e outras fontes.Palavras-chave: Casa da Torre; sesmarias; capitania da Paraíba; América portuguesa, Ávila.

ABSTRACTAiming at finding riches in the vast and unknown backlands, the Portuguese Crown granted large portions of land to those who fulfilled this mission. It was in this context that the Casa da Torre amassed its assets between the 16th and 17th centuries. Later, though, the land grants became a problem for the Crown, resulting in many conflicts over land possession throughout the eighteenth century. On the one hand, the Crown was trying to regulate the sesmaria system, by issuing many complementary royal orders. On the other, members of

Artigo recebido em 18 de dezembro de 2013 e aprovado para publicação em 23 de fevereiro de 2014.* Doutora em História pela Johns Hopkins University (JHU), professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Natal, RN, Brasil. E-mail: [email protected].** Bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Bolsista de Iniciação Científica – PROPESQ/UFRN. Natal, RN, Brasil. E-mail: [email protected].

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A legitimidade da graça: os impactos da tentativa de reforço da política sesmarial sobre as terras da Casa da Torre na capitania da Paraíba (século XVIII)

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the Casa da Torre saw themselves as unquestionable owners of such land previously granted by the Crown. By the same token, those who purchased land from the Casa da Torre in the region also believed that they were valid holders of sesmarias. Through the registers of sesmarias granted between 1757-1765, official records and other primary sources, this essay intends to describe the process of land sales by the Casa da Torre to colonists in the Piancó backlands. It also reveals the involvement of this family in conflicts related to the possession and control of land.Keywords: Casa da Torre; sesmarias; Captaincy of Paraíba; Portuguese America; Ávilas.

***

Introdução

Este artigo analisa a estratégia utilizada pela Casa da Torre em desfazer-se de parte de seu patrimônio à medida que aumentou o controle régio da Coroa portuguesa sobre as terras na sua possessão americana, especificamente na segunda metade do século XVIII, com base na análise das “sesmarias” possuídas pela Casa da Torre no sertão do Piancó, capitania da Pa-raíba. Procurar-se-á compreender como a Casa da Torre conseguiu um suposto patrimônio nessa região, e, principalmente, a consequente diminuição de terras nessa mesma localidade, verificada entre os anos de 1757 e 1776, decorrentes de conflitos com moradores da área ci-tada. Para isso, é preciso que se entenda a dinâmica do sistema sesmarial, e as estratégias de utilização deste sistema pelos moradores e pelos membros da Casa da Torre, observáveis por meio de cartas de sesmarias e ordens régias expedidas referentes à legislação de sesmarias. Ao analisar esses conflitos ocorridos, espera-se demonstrar as relações de poder perceptíveis envolvendo os dois lados no conflito, e como o ordenamento jurídico sobre o sistema ses-marial, ao longo dos tempos, na América portuguesa, passou a amparar os moradores1 em detrimento dos grandes sesmeiros,2 que possuíam extensas terras, como era o caso da Casa da Torre. Isto era resultado de uma tentativa de controle régio mais efetivo por parte da Co-roa, e representava uma busca da diminuição de poder desses grandes senhores de terra, que formaram seu patrimônio no início da colonização no Brasil.

Por meio de fontes como cartas de concessão de sesmarias, observa-se que há uma maior concentração de pedidos das mesmas na região mais afastada do litoral na capitania da Paraí ba, durante o século XVIII. Este foi um século de consolidação, por parte daqueles ho-mens que estavam envolvidos com o projeto de povoamento liderado pelos portugueses, do

1 O termo refere-se àquelas pessoas que estavam fixadas na América portuguesa, por meio da relação que possuíam com a terra.2 O termo refere-se àqueles homens ou famílias que por meio do recebimento de sesmarias possuíam uma quantidade extensa de terras (mais de 10 léguas) se comparado aos outros sesmeiros no período colonial, destacando-se, por exemplo, os Ávila e os Guedes de Brito.

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seu domínio nos sertões das capitanias do Norte, que vinha sendo realizado desde o século anterior, na luta contra o gentio e na integração do mesmo à sociedade colonial. Entre os anos de 1757 a 1776, por exemplo, foram concedidas pelo menos 279 sesmarias na capitania da Paraíba.3 Deste total, destaca-se um conjunto de 31 sesmarias, a maioria delas locali-zadas na região do Piancó. A atenção volta-se para a constante referência que o conteúdo dessas cartas fazia à Casa da Torre.4 Os requerentes dessas sesmarias concedidas alegavam que a área em que solicitavam suas sesmarias havia sido da Casa da Torre, ou, então, que haviam comprado dessa família as tais terras, sem ter recebido um título de sesmaria que comprovasse a sua efetiva posse, a não ser “uma simples escritura, sem mais outro título”.5 Outros declaravam ser rendeiros/posseiros da mesma Casa da Torre, e, alguns mais ousados, denunciavam a Casa da Torre como possuidora indevida das tais terras, que se sentia senhora intrusamente de extensas terras, nas palavras dos próprios suplicantes.

Aliás, a presença da Casa da Torre nos territórios da capitania da Paraíba é algo notório nas próprias cartas de doação de sesmaria em períodos anteriores. Em carta concedida, por exemplo, ao comissário Teodósio Alves de Figueiredo, no ano de 1739, o requerente infor-mou que nos pontos cardeais leste e oeste da sesmaria solicitada as confrontações correspon-diam a terras da Casa da Torre.6 Já a sesmaria concedida ao capitão-mor Francisco de Olivei-ra Ledo e ao licenciado João dos Santos, no ano de 1752, citou a mesma Casa da Torre como confrontação dessa sesmaria nos pontos cardeais norte e oeste.7 Outras cartas, em períodos anteriores ou posteriores, comprovam a presença da Casa da Torre na capitania da Paraíba, ora citando a própria Casa da Torre como confrontante das sesmarias solicitadas, ora algum membro da família Ávila.8 Além dessas cartas, as próprias cartas exploradas neste artigo correspondem a concessões de sesmarias nas tais terras ditas pertencentes da Casa da Torre.

Márcia Motta argumentou que “a história do patrimônio dos Garcia do século XVIII parece anunciar um crescente questionamento sobre os limites territoriais da família e sobre

3 Informação obtida na Plataforma SILB. A Plataforma SILB (Sesmarias do Império Luso-Brasileiro) é uma base de dados que pretende disponibilizar on-line as informações das sesmarias concedidas pela Coroa por-tuguesa no mundo atlântico. Acesso em: 4 set. 2013. Disponível em: <http://www.silb.cchla.ufrn.br>. Das 1.146 sesmarias concedidas na capitania da Paraíba, registradas na Plataforma SILB, 1.019 foram concedidas no século XVIII, correspondendo a 88,9% das concessões realizadas.4 A Casa da Torre pertencia à família dos Ávila, oriundos da Bahia. Possuía um dos maiores patrimônios no período colonial, com extensas terras na atual região do Nordeste brasileiro.5 Expressão que aparece nos textos das cartas.6 CARTA de sesmaria doada a Teodósio Alves de Figueiredo, em 1o de outubro de 1739. Plataforma SILB — PB 0267.7 CARTA de sesmaria doada a Francisco de Oliveira Ledo e Joao dos Santos, em 4 de outubro de 1752. Pla-taforma SILB — PB 0407.8 Outras cartas de sesmaria que atestam, por exemplo, a presença da Casa da Torre na capitania da Paraíba, como confrontações das próprias sesmarias: PB 0326, PB 0409, PB 0461 e PB 0508. Para consultar mais cartas, acesse <http://www.silb.cchla.ufrn.br>. Plataforma SILB.

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as distintas percepções a respeito do direito à terra”,9 e isto ficará evidente no decorrer deste trabalho. Percebe-se que, na segunda metade do século XVIII, ocorreu um movimento que atesta a diminuição de terras da Casa da Torre na capitania da Paraíba. Esse processo confunde-se com a própria dinâmica do sistema sesmarial e a sua transformação/adaptação na América portuguesa durante os três séculos de seu funcionamento. O entendimento desse processo de perda de terras é possibilitado também pela própria mentalidade dos ses-meiros que receberam terras consideradas, antes da concessão, como pertencentes da Casa da Torre, utilizando a legislação sesmarial a seu favor, ou seja, compraram terras por meio de escrituras, de suposta titularidade da Casa da Torre, antes da Ordem Régia de 1753, e pos-teriormente solicitaram as cartas de sesmarias referentes a essas terras.10 Portanto, apesar de estarem de posse de escrituras de compra das terras, havia o medo dos moradores diante do risco eminente da perda de terras ditas por eles como suas. Essa ideia era baseada na prática do cultivo e no costume, associado à própria crença deles sobre a propriedade no período colonial, e contribui para clarificar o processo aqui discutido.

A Casa da Torre e a ocupação do sertão da capitania da Paraíba

O primeiro Ávila, Garcia d’Ávila, chegou ao Estado do Brasil em 1549, acompanhando a missão de Tomé de Sousa.11 Apesar do desconhecimento de sua origem, especula-se que Garcia d’Ávila possuísse alguma relação de parentesco com este governante. Sabe-se que a família dos Ávila formou um grande patrimônio, que, segundo Ângelo Pessoa, correspondia a terras que compreendiam os seguintes estados da atual região Nordeste: Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Ceará e Piauí.12 Conforme Moniz Bandeira, a Casa da Tor-re, em três gerações, após a morte de Garcia d’Ávila em 1609, aumentara seu domínio de tal forma que era senhora de grande parte dos sertões da Bahia e de Sergipe, e, em fins do século XVII, estendera esse domínio a quase todo vale do rio São Francisco, ocupando terras em Pernambuco, Piauí e Paraíba, e inclusive, no Rio Grande do Norte.13

9 MOTTA, Márcia Maria Menendes. Tierra, Poder y Privilegio. Los mayorazgos coloniales y el ejemplo de la Casa da Torre (siglo XVIII). In: ÁLVAREZ, Maria José Pérez; GARCÍA, Alfredo Martín (Org.). Campos y campesinos en la España Moderna. 1. ed., v. 1. León: Fundación Espanõla de História Moderna, 2012. p. 1.422.10 Conforme Paolo Grossi, a ideia de propriedade é plural. Embora os moradores tivessem o título de escritura de compra e venda, e ainda cultivassem a área, havia o receio por não terem o título de sesmaria. GROSSI, Paolo. A propriedade e as propriedades na oficina do historiador. In: História da propriedade e outros ensaios. Rio de Janeiro: Renovar, 200611 PESSOA, Ângelo Emílio da Silva. As ruínas da tradição: a Casa da Torre de Garcia D’Ávila — família e propriedade no Nordeste colonial. Tese (Doutorado em História) — Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. p. 74.12 Ibid., p. 76.13 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O feudo — A Casa da Torre de Garcia d’Ávila: da conquista dos sertões à independência do Brasil. 2. ed. revista e ampliada. cap. VI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 236.

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Importantes famílias criaram seus patrimônios nos séculos XVI e XVII devido ao fato de terem sido realizadas grandes concessões de terras pela Coroa àqueles que desbravassem o sertão em busca de riquezas. Em meados do século XVII, com pequena introdução ao interior, grandes extensões de terras eram concedidas sem maiores problemas, visto as pos-sibilidades econômicas de sua exploração.14 Dessa forma, a Casa da Torre formou seu patri-mônio por meio da concessão de sesmarias, obtidas pelos serviços prestados por membros da família à Coroa na contribuição para o desbravamento do sertão, travando lutas contra indí-genas, o que lhes renderam também a conquista de cargos políticos e militares, tornando-se uma das famílias mais poderosas.

A conquista dos sertões liga-se com a própria trajetória da Casa da Torre. A ocupação do sertão da capitania da Paraíba teria primeiramente a presença dos Ávila. Moniz Bandeira afirmou que, entre 1662 e 1663, os sertões do atual Piauí e a região extrema ocidental da Paraíba haviam sidos penetrados pela Casa da Torre.15 Bandeira baseou-se em afirmação realizada por Basílio de Magalhães, que, por sua vez, baseou-se em uma carta de sesmaria descoberta por Pereira da Costa e reproduzida no seu livro Chronologia histórica do Estado do Piauhy.16 Essa carta havia sido concedida pelo governador de Pernambuco, Francisco de Castro Moraes, em 03 de janeiro de 1705, para 14 pessoas, incluindo Dona Jeronyma Car-dim Fróes, viúva de Domingos Jorge Velho. Segundo a mesma carta, a sesmaria iniciava-se na nascente do rio “Poty” (ou Potengi) ao rio “Parnahyba”, no Piauí, correspondendo a uma extensa data de sesmaria. Os requerentes alegaram que conjuntamente com Domingos Jorge Velho haviam povoado o rio “Potingh” e o rio “Parnahyba”, enfrentando os tapuias bravos, e tendo diversas criações há cerca de 24 ou 25 anos. Informaram ainda que povoaram “todo o Piauhy e Canindé em companhia da Casa da Torre de Garcia d’Ávila” além das fronteiras do Maranhão, quando Domingos Jorge Velho foi chamado para combater os negros rebelados dos Palmares, por volta do ano de 1687. Portanto, para Pereira da Costa, seria nos anos de 1662 ou 1663 que Domingos Jorge Velho teria começado a desbravar o sertão do Piauí, con-siderando a literalidade do texto da carta de sesmaria de 1705, pois se em 1687 os requeren-tes habitavam há 24 ou 25 anos, lutando contra índios e povoando o Piauí, conjuntamente com a Casa da Torre, tais explorações datariam por volta de 1662 ou 1663.

Baseando-se no historiador paraibano Wilson Seixas, Bandeira enfatizou que a Casa da Torre foi “a primeira a ocupar as terras de Piancó, Piranhas e rio do Peixe, a partir de 1664, quando transpôs o rio S. Francisco, subiu o Pajeú e daí se comunicou com a bacia

14 ALVEAL, Carmen Margarida Oliveira. Converting land into property in the Portuguese Atlantic World, 16th-18th century. 2007. 366 f. Dissertação (Doutorado em Filosofia) — Johns Hopkins University, Baltimore, 2007. p. 276.15 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz, op. cit., cap. V. p. 194-195.16 O autor informou que a carta de sesmaria foi extraída integralmente do livro de registro existente no ar-quivo da Secretaria do Governo de Pernambuco. COSTA, F. A. Pereira da. Chronologia histórica do Estado do Piauí. 1. ed. Recife: Typographia do Jornal do Recife, 1909. p. 6-7, 21-23.

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do Piranhas”.17 Celso Mariz, jornalista paraibano, ao abordar a expansão territorial na ca-pitania da Paraíba, informou que, primeiramente, a ocupação ocorreu no litoral, e após a retirada dos holandeses da capitania da Paraíba, as explorações no interior recomeçaram. Teria sido nesse período, pós-retirada holandesa, que, segundo Mariz, os baianos e paulis-tas18 apareceram nos sertões da região. O autor, portanto, citou Domingos Jorge Velho, por parte dos paulistas, e a Casa da Torre, por parte dos baianos, que teriam estado nos sertões da capitania da Paraíba.19 Rodrigo Ceballos também confirmou a presença de Domingos Jorge Velho, por volta de 1660, a serviço do governador de Pernambuco, em compreensões do Piauí, Ceará e Paraíba, onde teria fundado o arraial de Piranhas, antes mesmo da chega-da de Oliveira Ledo, outra família vinda da Bahia. Ceballos fez referência à Casa da Torre como responsável pela conquista do sertão da atual região Nordeste. Aliás, ressaltou que essas conquistas da Casa da Torre teriam sido realizadas em parceria com Domingos Jorge Velho e Domingos Afonso Sertão. As terras de Piranhas, na capitania da Paraíba, teriam sido ocupadas para si pelos Ávila, juntamente com outros sertanistas, após intensas lutas contra indígenas.20

A geógrafa Emília de Rodat Fernandes Moreira, abordando o processo de ocupação do espaço agrário atual paraibano, ressaltou a importância da pecuária, tanto bovina quanto equina, como propulsora para a conquista do sertão, não somente na capitania da Paraí-ba, mas no território da América portuguesa.21 Esta era uma atividade econômica de vital importância para o patrimônio da Casa da Torre, e que será exemplificado posteriormente neste trabalho. Segundo Moreira, foi da capitania da Bahia que a criação de gado teria sido irradiada em direção ao norte, seguindo o curso do rio São Francisco, passando por Per-nambuco e alcançando Piauí e Maranhão.22 A Casa da Torre, que possuía uma das maiores terras do período colonial, participaria diretamente dessa conquista e interiorização do gado bovino e equino nos sertões, travando lutas com indígenas, colaborando para a expansão portuguesa no Novo Mundo. Explica-se, assim, a importância e o acúmulo do seu cabedal

17 Moniz Bandeira baseou-se em: Wilson Seixas. Pesquisas para a história do sertão da Paraíba. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, João Pessoa, no 21, 1975, p. 65. Este, por sua vez, não citou fonte documental que confirme a sua argumentação. Wilson Seixas ainda ressaltou, sendo citado por Moniz Ban-deira, que foi nesse período que a Casa da Torre devassou os campos de várias tribos indígenas, estabelecendo uma rede de integração territorial. In: BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz, op. cit., cap. 5. p. 195-196.18 Os termos paulista e baiano referenciados pelo próprio autor são no sentido de localizar a procedência geo-gráfica dos grupos que ocuparam o sertão do Piancó, e não com o intuito de constatar algum pertencimento e identidade a esses mesmos locais.19 MARIZ, Celso. Expansão territorial — I Primeiras aldeias mestiças — Os paulistas e baianos no interior. In: MARIZ, Celso. Apanhados Históricos da Paraíba. 2. ed. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 1980.20 CEBALLOS, Rodrigo. Veredas sertanejas da Parahiba do Norte: a formação das redes sociais, políticas e econômicas no arraial de Piranhas (século XVIII). Anais do XXVI Simpósio Nacional de História — ANPUH, São Paulo, julho 2011. p. 2.21 MOREIRA, Emília de Rodat Fernandes. Processo de ocupação do espaço agrário paraibano. Textos UFPB/ NDIHR no 24 set./1990. p. 6.22 Idem.

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A legitimidade da graça: os impactos da tentativa de reforço da política sesmarial sobre as terras da Casa da Torre na capitania da Paraíba (século XVIII)

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durante os dois primeiros séculos da colônia e a sua pretensão de se considerar senhora de terras de quase toda atual região do Nordeste, contrariando a Coroa e o próprio sistema sesmarial que se tornou restritivo em fins do século XVII.

Portanto, a parte mais ocidental da Paraíba teria sido visitada, primeiramente, por estes sertanistas, na ocupação em nome da Coroa portuguesa. O controle efetivo dessa região, entretanto, deveu-se a outra família, os Oliveira Ledo. Provavelmente, alianças entre os Oli-veira Ledo, Ávila e outros sertanistas teriam contribuído para o tal período de sossego, que Mariz descreveu ao abordar o século XVIII na capitania da Paraíba. Segundo Mariz, em 1685 foi organizada a bandeira de Teodósio de Oliveira Ledo, fundamental para o povo-amento e a conquista do sertão paraibano, marcando o início da busca dos sertões além Borborema, chegando às águas do Piancó e Piranhas.23 Todavia, o autor não apresentou documentação comprovando a bandeira organizada por Teodósio de Oliveira Ledo. Mariz supôs que, naquela região, os chamados paulistas e baianos já se encontravam, embora tenha ressaltado que os parentes de Teodósio dominaram-na.

Acredita-se haver alguma ligação entre a família Oliveira Ledo e os Ávila. Em trabalho defendido em 2012 por Renata Costa, a autora levantou a hipótese de que a família dos Oli-veira Ledo era, provavelmente, proveniente de Portugal, da região do Douro e do Minho.24 Já na tese de Ângelo Pessoa, ao formular a possível relação de parentesco do primeiro Garcia d’Ávila com Tomé de Sousa, o autor informou que este último era de São Pedro de Rates, no Minho, e provavelmente seria a terra natal também de Garcia d’Ávila.25 Observa-se, assim, uma hipotética ligação entre as duas famílias, consideradas pioneiras na conquista do sertão da Paraíba.

Outros pontos reforçam essa provável ligação entre essas famílias na conquista e domí-nio dessa região. Pedro Calmon, no capítulo “Os Procuradores”, incorporado na segunda edição do seu trabalho sobre a Casa da Torre, apresentou um dos meios pelos quais a família Ávila conseguia impor e controlar o seu domínio em territórios tão vastos. Segun-do Calmon, “para governar tão largas terras usaram os senhores da Torre o sistema de se associarem aos régulos ou capitães que nomeavam procuradores, dando-lhes autoridade, apoio e força. Em troca, davam-lhes sujeição, tributo e homenagem”.26 Este autor baseou--se nos escritos de João da Maia da Gama, governador da Paraíba entre 1708 e 1717, e go-vernador do Maranhão, entre 1722 e 1728, que em seus diários de viagens pelo sertão, em

23 MARIZ, Celso. Expansão territorial — II A bandeira de Teodósio — Confederação e Guerra dos Tapuias — Conquista do Piancó — Fundações do interior — Últimas entradas, op. cit.24 A autora baseou-se na carta do ouvidor geral da Paraíba, Manuel da Fonseca e Silva, ao rei, D. João V, 03.11.1724. AHU-PB, PA, Cx. 5, Doc. 426. In: COSTA, Renata Assunção da. Uma nova conquista: A famí-lia Oliveira Ledo e o processo de ocupação espacial do sertão do Piancó (1663-1730). Monografia (Graduação em História) — Departamento de História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2012.25 PESSOA, Ângelo Emílio da Silva, op. cit., p. 53.26 CALMON, Pedro. Os Procuradores. In: História da Casa da Torre — Uma dinastia de pioneiros. 2. ed. aumentada. cap. VIII. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1958. p. 127.

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1728, escreveu que havia sido obrigado a “notificar o Capitão mor Theodosio de Oliveira Ledo e o coronel Manuel de Araújo de Carvalho e Sargento mor João de Miranda todos Procuradores da Caza da Torre...”.27 Ainda segundo João da Maia da Gama, referindo-se aos procuradores da Casa da Torre, descrevia-os como “os mais poderosos, mais facino-ros, e mais temidos que athé hoje em dia uzarão e uzão destas violências com a maior vexação forssa, violência, e injustissa feita aos vaçallos de V. Magestade...”.28 Para Renata Costa, “a figura de Teodósio de Oliveira Ledo [...] era bastante respeitada. Teodósio era visto como um sujeito de grande valor, dotado de práticas militares e com experiência em realizar guerra contra os ‘bárbaros’”.29 O título de capitão-mor das Piranhas e Piancó foi concedido pela Coroa portuguesa à família Oliveira Ledo, ficando sob seu domínio por muitos anos. Assim, percebe-se como a Casa da Torre, por meio de alianças com pessoas influentes localmente, conseguia preservar o seu domínio, criando redes que contribuíam para fortalecer ainda mais sua presença no sertão da capitania da Paraíba. A Casa da Torre ligou-se, portanto, a uma família que possuía prestígio e poder, práticas militares e experi-ência em guerra contra o gentio, que era a família Oliveira Ledo. A presença da violência é algo que não se descarta, ainda mais caso se pense em regiões tão afastadas do controle da Coroa. Este era um dos meios utilizados para que o poder desses senhores fosse legitimado e respeitado pelos moradores localizados nessas regiões sertanejas.

Segundo Renata Costa, a família Oliveira Ledo foi fundamental para a conquista do oci-dente da capitania da Paraíba, mesmo sem saber quem teria chegado primeiro nessa região (a Casa da Torre ou os próprios Oliveira Ledo). Sua afirmação baseou-se no argumento que os Oliveira Ledo souberam relacionar-se com o poder central, por meio de subsídios para a ocupação territorial, como também teriam estabelecido alianças com grupos indígenas, possibilitando sua instalação no sertão.30 Ainda segundo a autora, baseando-se em Irineu Pinto, a família Oliveira Ledo, de Portugal, teria vindo inicialmente à Bahia, proporcionan-do uma relação direta dos membros da família com o governador geral do Brasil, e, assim, estreitando laços com a Coroa portuguesa.31 Sabe-se que a Casa da Torre possuía a sua sede na Bahia, em Tatuapara, sendo influente também e ocupando cargos políticos e militares na administração colonial. Portanto, podemos formular uma hipótese na qual a conquista do sertão em análise teria ocorrido por meio de alianças realizadas entre a família dos Ávila e dos Oliveira Ledo, além da presença de Domingos Jorge Velho. Teriam sido criadas redes que beneficiavam ambos os envolvidos na ocupação das regiões sertanejas. Precisa-se, toda-

27 MARTINS, F. A. de Oliveira. Um herói esquecido: João da Maia da Gama. Vol. II. Lisboa: Coleção Pelo Império, 1944. p. 26.28 Ibid., p. 27.29 COSTA, Renata Assunção da, op. cit., cap. 3. Baseia-se em trechos de Wilson Seixas, transcrita no sítio eletrônico do Instituto Histórico Geográfico da Paraíba. Disponível em: <http://www.ihgp.net/pb500.htm>.30 Ibid., cap. 1, p. 21-23. 31 Ibid., cap. 1. Baseia-se em PINTO, Irineu Ferreira. Datas e notas para a História da Paraíba. v. 1. João Pessoa: Editora Universitária, UFPB, 1977.

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via, de um estudo mais apurado que venha comprovar como essas relações ocorriam entre as tais famílias.

Para Ângelo Pessoa, os procuradores da Casa da Torre eram grandes sócios da Casa. O lucro que obtinham nessas relações era a possibilidade de partilharem de grandes sesmarias, o que, em troca, possibilitava para a Casa da Torre que os foros cobrados por pequenos posseiros em terras consideradas suas fossem arrecadadas nos remotos sertões, utilizando a violência como costume.32 A notável influência da Casa da Torre, por meio das suas exten-sas sesmarias concedidas no século XVI, pode ser sentida, portanto, quando observamos a família Oliveira Ledo agindo em seu favor no sertão da capitania da Paraíba.

Distantes, os membros da Casa da Torre mantinham o seu controle sobre a região do Piancó, Piranhas e rio do Peixe, na parte mais ocidental da capitania da Paraíba, por meio dos sítios que arrendava, tendo como representantes a família Oliveira Ledo, que, segundo trabalho já mencionado de Renata Costa, na conquista de territórios, obteve, além de um enorme patrimônio com extensas sesmarias, um prestígio local.33 Entretanto, essa ligação inicial apresentou ruptura posteriormente, e a própria dinâmica do sistema sesmarial co-meçou a ser modificada no avançar dos séculos no período colonial. Observa-se uma dimi-nuição das terras por parte da Casa da Torre na capitania da Paraíba, a partir da segunda metade do século XVIII.

Sistema sesmarial e diminuição do patrimônio da Casa da Torre

Conforme já explicitado na introdução deste trabalho, entre o período de 1757 a 1776, foram concedidas pelo menos 31 sesmarias,34 que, se sabe, pertenciam anteriormente ao pa-trimônio da Casa da Torre no sertão da capitania da Paraíba. Considerando a dimensão da sesmaria mais usual concedida na época estudada, de três léguas de comprimento por uma légua de largura, chega-se ao cálculo de 93 léguas quadradas35 subtraídas do patrimônio da Casa da Torre, em um período curto e sucessivo, como se pode constatar no quadro 1. Em menos de vinte anos, o patrimônio da Casa da Torre foi reduzido consideravelmente.

32 PESSOA, Ângelo Emílio da Silva, op. cit., p. 173.33 COSTA, Renata Assunção da, op. cit., cap. 1, p. 23. A autora no momento é mestranda, e procura enten-der as relações entre os Ávilas e os Oliveira Ledo na capitania da Paraíba, durante o século XVIII, podendo, portanto, contribuir para um maior esclarecimento sobre as questões aqui elucidadas e discutidas.34 Plataforma SILB — PB 0451, PB 0452, PB 0463, PB 0469, PB 0491, PB 0493, PB 0494, PB 0495, PB 0497, PB 0502, PB 0504, PB 0505, PB 0513, PB 0514, PB 0515, PB 0518, PB 0525, PB 0528, PB 0537, PB 0548, PB 0554, PB 0559, PB 0583, PB 0585, PB 0614, PB 0622, PB 0624, PB 0626, PB 0653, PB 0715 e PB 0716.35 Costa Porto ressaltou a dificuldade de definir o que seria a légua, possuindo modalidades como ordinárias, quadradas, em quadro, “conceitos nem sempre muito bem claros”. In: PORTO, Costa. Estudo sobre o sistema sesmarial. Recife: Imprensa Universitária, 1965. p. 92.

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Entretanto, uma perda de extensas áreas como essas não seria percebida passivamente pelos membros da Casa da Torre, que obtinham recursos, principalmente, por meio das suas fa-zendas de currais. Todavia, passar-se-á, inicialmente, a observar o que há no conteúdo dessas 31 cartas, e o que os requerentes argumentaram em seu favor para conseguir os títulos.

Quadro 1Sesmarias concedidas em terras ditas pertencentes à Casa da Torre na capitania da Paraíba

entre os anos de 1757-1776

Fonte: Elaborado pelos próprios autores, baseando-se nas cartas de sesmarias contidas na Plataforma SILB.

Deste total de concessões, 26 requerentes de 26 sesmarias alegaram que haviam compra-do as terras da Casa da Torre; dois alegaram que haviam pago rendas a essa mesma Casa; um informou que possuía as terras pagando foro; um havia arrematado; e outro não informou o meio pelo qual havia obtido as terras requeridas, mas assinalou que as terras eram pertencen-tes à Casa da Torre. Joanna Maia Martins alegou, por exemplo, que, “o seu defunto marido comprou à casa da Torre um sitio de terras de crear gados no sertão do Piancó, do qual não tinham os vendedores títulos mais do que a sua antiga e quasi immemorial posse”, o qual recebeu a requerente por sesmaria em 28 de abril de 1757.36 As justificativas por parte dos requerentes tornam-se constantes, enfatizando-se a questão de eles terem, em sua maioria, recebidos apenas uma simples escritura de venda da Casa da Torre, sem qualquer outro títu-lo que comprovasse o domínio e posse das terras requeridas por sesmaria. Percebe-se, então, a importância atribuída ao título de sesmaria para assegurar a posse desses cultivadores, mes-mo apesar de terem recebido uma escritura de venda de uma família considerada poderosa. Para se sentirem seguros, esses povoadores requereram a sesmaria, a fim de estarem de posse do “justo” título. O objetivo, com isso, era estarem legalizados com a própria ordem emana-

36 CARTA de sesmaria doada a Joanna Maia Martins, em 28 de abril de 1757. Plataforma SILB — PB 0452. De acordo com a escritura de venda, o marido de Joanna, Pedro Velho Barreto, havia comprado por 500 mil réis, em 1740, do procurador da Casa da Torre, João de Miranda, as terras que a requerente iria requerer em 1757, enquanto viúva. LIVRO de Notas de Pombal (século XVIII). Doc. 39, liv. 1738-1740, fl. 45 a fl. 46v. In: CEBALLOS, Rodrigo; LÔBO, Isamarc Gonçalves. Procurações, líbelos e escrivães — fontes manuscritas setecentistas do sertão paraibano. Cajazeiras: EDUFCG, 2012. 1 CD-ROM. Encontrou-se ainda outra escri-tura de venda de uma terra solicitada por Severina Vieira, que também corresponde a uma das 31 sesmarias trabalhadas neste artigo: PB 04447, doada em 20 de março de 1757. A requerente era viúva do capitão Luiz Mendes de Sá, que havia comprado o Sítio Várzea do Ovo no ano de 1742, por meio do capitão-mor João de Miranda, procurador dos membros da Casa da Torre. Consta na escritura de venda que o procurador e vendedor, capitão-mor João de Miranda, “em nome dos ditos seos constituintes [membros da Casa da Torre] vendia como de facto logo vendeo ao dito comprador Luis Mendes de Sá por presso e quantia de oitocentos e sincoenta mil reis que do dito comprador tem recebido” o sítio denominado de Varzea do Ovo. In: LIVRO de Notas de Pombal — século XVIII. Doc. 84, liv. 1740-1742, fl. numeração ilegível a fl. 84v.

Sesmarias 1757 1758 1759 1760 1761 1762 1764 1765 1768 1776 TotalQuantidade 3 1 12 3 3 2 1 3 1 2 31

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da do reino. Por outro lado, percebe-se, no discurso dos requerentes, a denúncia indireta de que aqueles que venderam tais terras, a Casa da Torre, encontravam-se sem o tal título, por não terem entregado a esses compradores.

Alguns eram mais diretos no texto de suas justificativas, denunciando que a Casa da Torre assenhoreava-se de terras sem estarem legalizadas de acordo com o sistema sesma-rial.37 Por conseguinte, o alferes Bartolomeu Pereira Dantas recebeu uma sesmaria, no ano de 1760, o qual relatou que havia pagado renda à Casa da Torre, cultivando a terra há mais de 30 anos, quando no ano de 1753 foi lançado fora pelo capitão-mor Francisco de Oliveira Ledo, sem autoridade judicial, a não ser com uma carta de sesmaria,38 conseguida de forma ilícita.39 Mais uma vez, observa-se a família Oliveira Ledo, influente na região, e, que deve ter utilizado da violência, para impor seus interesses. O mesmo requerente chegou a acusar o governante da capitania da Paraíba, Antônio Borges da Fonseca,40 de ter concedido ilicitamente a tal sesmaria para Ledo. Portanto, o requerente acusou o capitão-mor Francisco de Oliveira Ledo de ocupar as terras indevidamente, assim como argumentou que as terras solicitadas por ele “menos seria da casa da Torre por esta não ter titulo algum de sesmaria mais que uma intrusa posse nesta ribeira do rio do Peixe”.41 Inte-ressante é que, apesar de todos esses argumentos e da concessão realizada, um ano e meio depois, outra carta de concessão foi deferida, na qual o requerente, Timóteo Gonçalves da Silva, argumentou que possuía terras na mesma localidade do requerente da carta apre-sentada anteriormente, de Bartolomeu Pereira Dantas, as quais teriam sido compradas do capitão-mor Francisco de Oliveira Ledo, há mais de quatro anos, recebendo uma escritura da venda. Timóteo Gonçalves da Silva argumentou que as terras eram de posse imemorial do tal capitão-mor, desde os seus antepassados, e que Bartolomeu Pereira Dantas havia agido maliciosamente ao requerer tais terras.42

Bartolomeu Pereira Dantas alegou que as terras eram consideradas da Casa da Torre, e Timóteo Gonçalves da Silva alegou que eram dos antepassados dos Oliveira Ledo, refor-çando a ligação entre tais famílias, na qual a última, como representante, administrava o “patrimônio” da primeira na capitania. Eram terras com áreas imensas, que por não serem

37 Pode-se fazer um paralelo, com um caso específico de conflito entre a família dos Guedes de Brito e de moradores, no qual estes últimos acreditavam que as terras compradas ou arrendadas por eles aos Guedes de Brito eram terras legalizadas, mas ao serem informados da lei, passaram a justificar-se dizendo que eram os verdadeiros possuidores e cultivadores. Deve-se lembrar que o cultivo era um fator legitimador para a conces-são da sesmaria. ALVEAL, Carmen, op. cit., p. 288. 38 Provavelmente, alguma das três cartas registradas na Plataforma SILB, concedidas no ano de 1752, pelo governante Antônio Borges da Fonseca para o capitão-mor Francisco de Oliveira Ledo: Plataforma SILB — PB 0407, PB 0408 ou PB 0409.39 Na carta aparece o termo sub-repticiamente, que tem o significado de algo ilícito.40 Antônio Borges da Fonseca foi governador da capitania da Paraíba entre 1745-1753.41 CARTA de sesmaria doada a Bartolomeu Pereira Dantas, em 11 de fevereiro de 1760. Plataforma SILB — PB 052542 CARTA de sesmaria doada a Timóteo Gonçalves da Silva, em 17 de julho de 1761. Plataforma SILB — PB 0559.

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cultivadas totalmente, fazia com que pedaços de terras ficassem sem aproveitamento, le-vando outros a cultivarem-nos, como fez Bartolomeu Dantas, que, segundo ele, cultivou por mais de 30 anos, desde 1730, pelo menos. Em 1753, baseando-se no discurso das duas cartas citadas, o capitão-mor Francisco de Oliveira Ledo teria obtido uma data, conforme a lei, nas terras cultivadas por Bartolomeu Pereira Dantas, o que fez com que este último fi-casse impossibilitado de cultivar. Demonstrando o conhecimento da lei, Bartolomeu Pereira Dantas alegou a seu favor, apelando para o princípio do cultivo como forma de concessão de sesmaria, o qual lhe foi concedida no ano de 1760. Entretanto, nestes setes anos (entre 1753 e 1760), o capitão-mor, com a posse garantida na lei, ou mesmo no uso da violência, havia vendido as terras a Timóteo Gonçalves da Silva, que, por sua vez, sentindo-se ameaçado pela concessão realizada a Bartolomeu Pereira Dantas, em 1760, requereu para si o título de sesmaria, sugerindo ser mais seguro do que o título de venda. Amparado pelo próprio capitão-mor, que lhe havia vendido as terras e que intercedeu junto às autoridades, Timóteo Gonçalves da Silva conseguiu obter seu “justo” título. Mesmo com a escritura de venda em suas mãos, percebe-se a importância que o título de sesmaria representava. Entretanto, Bartolomeu Pereira Dantas, que alegou cultivar a terra há mais tempo, parece ter perdido a causa, talvez pela influência que Francisco de Oliveira Ledo possuía na Paraíba.

As acusações contra a Casa da Torre recaíam, portanto, na falta do “justo” título, e os pontos utilizados a favor dos suplicantes eram que eles eram os reais cultivadores. Para en-tender, destarte, a concessão realizada a esses povoadores em detrimento dos poderosos da Casa da Torre, e as próprias justificativas utilizadas pelos requerentes nas cartas de sesmaria, é preciso entender o que era o sistema sesmarial e como se processou na América portuguesa.

O sesmarialismo, nas palavras de Costa Porto, permite entender a “história de nossa evo-lução fundiária”.43 Este sistema teria sido implantado em Portugal, em 1375, por D. Fernan-do, a fim de promover o aproveitamento do solo, devido a uma crise de abastecimento que afetava Portugal. Costa Porto ressaltou que a legislação de 1375 tinha a cultura do solo como obrigatória, tendo em vista o interesse coletivo de abastecimento.44 Transposto para o Brasil, o objetivo principal inicial do sistema de sesmarias era facilitar o povoamento em um territó-rio tão vasto e recém-descoberto, além da própria produção, que se iniciaria decorrente deste povoamento. Mais uma vez, entende-se o porquê das concessões de extensas sesmarias nos dois primeiros séculos de colonização. Com a iniciativa de particulares, a Coroa concedia amplas regalias àqueles que se empenhassem na descoberta de novas terras, na conquista e no povoamento. Como afirmou Costa Porto, com poucas pessoas e muitas terras, não havia motivo para restringir o tamanho das datas de sesmarias.45

43 PORTO, Costa, op. cit., p. 30.44 Ibid., p. 31-35.45 Ibid., p. 58-60.

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Autores como Costa Porto (1965), Laura Beck Varela (2005), Carmen Alveal (2007) e Márcia Motta (2009) ressaltaram o caráter condicional do sistema sesmarial. Aqueles que recebiam sesmarias, denominados sesmeiros, na América portuguesa, diferentemente de Portugal, que correspondiam àqueles que fiscalizavam as sesmarias, recebiam terras e pre-cisavam cumprir certas condições, para que estas permanecessem em posse deles. Virgínia Rau, por exemplo, em relação à lei de sesmarias, ressaltou o seu caráter coercivo (RAU, 1982, p. 42) para aquele que recebesse a sesmaria a cultivasse.46 A terra era pertencente à Coroa, que poderia requerer para si terras já concedidas, caso não fossem cumpridas certas determinações, de acordo com a lei. Laura Beck Varela afirmou, por exemplo, em relação ao sistema sesmarial, que se tratava “de uma forma de apropriação, que aqui denominamos ‘propriedade’ não absoluta, condicionada por inúmeros deveres, e que se aproxima de uma concessão ou privilégio — por oposição ao direito de propriedade da doutrina jurídica libe-ral clássica”.47 Essa apropriação amparava-se em uma das condições consideradas essenciais no sistema de sesmarias, o cultivo. Solo inculto era motivo para que fosse concedida àqueles que tivessem vontade de aproveitá-lo, tornando-o útil.

Por ser um sistema condicional, esperava-se que certas cláusulas fossem cumpridas por parte daqueles que recebiam a sesmaria. O que se esperava, portanto, era que as cláusulas fossem cumpridas, o que tornava o sistema sesmarial, conforme já exposto, um sistema con-dicional. E quais seriam essas cláusulas? Costa Porto apresentou as seguintes: tornar a sesma-ria produtiva no prazo de cinco anos; registrar nos livros da Provedoria; e nos últimos anos do século XVII foi estabelecida a obrigatoriedade de pedir confirmação régia.48 Em relação ao número de confirmações régias efetivadas, observa-se que, comparado ao número de con-cessões de sesmarias realizadas em território da América portuguesa, foi ínfimo, resultando em uma grande parte de sesmarias que não atendiam às cláusulas do sistema de sesmarias.49

Todas essas exigências foram sendo elaboradas ao longo do tempo, com a experiência do sistema sesmarial na colônia. Nos dois primeiros séculos de administração portuguesa na América, observa-se certa liberalidade em relação à concessão de sesmarias. Na última década do século XVII, ordens régias complementares às Ordenações do Reino começaram a restringir seriamente o acesso à terra na colônia, afetando os grandes senhores de terras. Não havia uma legislação específica quanto à dimensão das sesmarias, visto que o texto das Ordenações Filipinas era genérico em relação ao assunto, sendo dadas terras que estivessem ao alcance do sesmeiro aproveitá-las. Uma legislação mais específica surgiu apenas em finais da década de 1690; assim como a obrigatoriedade da confirmação régia para as sesmarias concedidas na América portuguesa, e a introdução do foro sobre as sesmarias doadas.50

46 RAU, Virgínia. Sesmarias medievais portuguesas. 2. ed. Lisboa: Presença, 1982.47 VARELA, Laura Beck. Das sesmarias à propriedade moderna: Um estudo de História do Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 86.48 PORTO, Costa, op. cit., p. 62.49 ALVEAL, Carmen, op. cit.50 Ibid., p. 276-277.

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Adentrando o século XVIII, as restrições continuaram, demonstrando diversas situações conflituosas, reflexo dos conflitos entre grandes senhores de terras e os cultivadores efetiva-mente do solo. Conforme já citado, a Casa da Torre possuía um patrimônio enorme, além de poder e influência.51 Moniz Bandeira, baseado nas anotações do padre João Antônio Andre-oni em Cultura e opulência do Brasil, argumentou que o sertão da Bahia, embora tivesse uma dimensão territorial extensa, pertencia “quase todo a duas das principais famílias da mesma cidade, que são a da Torre e a do defunto mestre-de-campo Antônio Guedes de Brito”.52 Segundo Pedro Calmon, a região do Piauí permanecera despovoada e desconhecida53 até meados do século XVII. O seu devassamento teria ocorrido pela pecuária, vinda da Bahia, com sertanistas como Domingos Jorge Velho, os irmãos Sertão, Garcia d’Ávila da Casa da Torre, e os Guedes de Brito. Quando conquistavam as terras, pediam sesmarias infinitas, possuindo muitas léguas.54 Além das já citadas terras na capitania da Paraíba, vistas nas car-tas de concessão de sesmaria deste artigo, a mesma Casa da Torre dominava “uma extensão de 260 léguas de testada na capitania de Pernambuco, à margem do rio São Francisco, entre o qual e o Parnaíba apossou-se de mais de 80 léguas”.55 Ao tratar das sesmarias gigantes, nas quais algumas estavam com terras ainda a descobrir, Ângelo Pessoa argumentou que tal ati-tude tinha o objetivo de “apropriar-se, previamente, por via jurídica, dos potenciais recursos existentes em uma determinada região”.56 Então, com a liberalidade dos dois primeiros sécu-los na América portuguesa, a Casa da Torre obteve suas extensas sesmarias. Essas sesmarias, que tinham limites imprecisos, davam margem à Casa da Torre de arrogar para si o direito de infinitas terras. Percorrendo o rio São Francisco, instalando fazendas, mantendo alianças com famílias poderosas, exigindo foros ou rendas àqueles que se instalassem em terras ditas suas, não tardou para que os conflitos com aqueles que não aceitavam essa opressão viessem à tona. Aliás, era mesmo interesse da Coroa limitar esse poder, demonstrada na posição do Conselho Ultramarino nos conflitos que se seguiram no século XVIII.

Mais uma vez, João da Maia da Gama, ferrenho opositor da Casa da Torre, em suas anotações de viagem, registrou a sua indignação contra esta família. Ao escrever sobre as sesmarias concedidas nos séculos XVI e XVII, o governante registrou o seguinte:

Gracia de Avilla [...] da Caza da Torre que tendo no tempo dos Fillipes huã conceção de 50 legoas de terra e não se asentando ainda hoje com serteza qual seja a dita cerra principio desta

51 Patrimônio entendido na perspectiva de PESSOA, Ângelo Emílio da Silva, op. cit., p. 153-154.52 BANDEIRA, Moniz, op. cit., p. 236.53 Atentar que esta afirmação despovoada representa a falta da presença de ocupação portuguesa, pois indí-genas lá existiam.54 CALMON, Pedro, op. cit., p. 87.55 BANDEIRA, Moniz, op. cit., p. 236. Na Plataforma SILB há o registro de seis extensas sesmarias concedi-das pelo governo de Pernambuco a Francisco Dias D’Ávila, entre 1681 e 1684. Plataforma SILB — PE 0353, PE 0375, PE 0377, PE 0379, PE 0380 e PE 0381.56 PESSOA, Ângelo Emílio da Silva, op. cit., p. 118.

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data, e não tendo nunca havido medição destas terras, sequer, Gracia de Avilla com esta data e com outra que ouve de 20 legoas se hir senhorear de todos os certões por mais de trezentas legoas porque quer ser S. das terras do certao da Par.ª, nos careris, Pinhançô e Peranhos e Rio do Peixe, e quer ser S. das terras de Jaguaribe aonde entre elle, ou seus collonos, e Procuradores e athe gados.57

Neste pequeno trecho, observa-se a imprecisão do tamanho das sesmarias concedidas, o que fazia com que famílias poderosas arrogassem para si o domínio de terras além do que podiam cultivar ou do que, na verdade, estavam na extensão das sesmarias concedidas. Com um maior centralismo da Coroa e uma maior determinação de leis no tocante ao sistema ses-marial, entretanto, começaram a ser impostas novas exigências que se mostraram inviáveis para aqueles que possuíam extensas terras, como a demarcação, medição e o aproveitamento efetivo da área da sesmaria. Evidentemente, outras pessoas desbravavam terras que “perten-ciam” a esses grandes senhores e que nem haviam sido descobertas, e cultivavam-nas. Isto pode ser percebido, novamente, nas palavras de João da Maia da Gama:

e estando todos estas terras povoadas de gentio, e não penetradas nem povoadas, e hindo vários descobridores com despesas de suas fazendas e com evidente prigo de vida morrendo muitos e matando-lhe o gentio e outros parentes e escravos descobrirão sítios, e povoaram-nos e defenderam-nos do gentio com perigo [...] e depoês de estabelecidos vinhão os Procuradores da Casa da Torre, e por forma, ou os fazião despejar, ou os faziam paçar escritos de arrendamento.58

Não se deve descartar o uso da violência utilizada, como o próprio João da Maia da Gama relatou, por meio dos procuradores da Casa da Torre. Segundo o alferes Bartolomeu Pereira Dantas, já mencionado, ele afirmou que havia pagado rendas à Casa da Torre, mas que as terras que solicitava por sesmaria não eram dela “por esta não ter titulo algum de sesmaria mais que uma intrusa posse” na ribeira do rio do Peixe.59 Segundo o dicionário de Raphael Bluteau, de 1728, intruso significa “que se metteo de [posse?] de hum officio, ou dignidade violentamente, & por meyos illegitimos... Intruso por força, com violencia. In-truso com o favor, & com a authoridade de alguem...”. Portanto, mais uma vez, observa-se o discurso da ilegalidade, o que demonstra o conhecimento da legislação de sesmarias por parte desses requerentes, e ainda há neste discurso o apontamento do uso da violência, da força, para possuir algo.60

57 MARTINS, F. A. de Oliveira, op. cit., p. 25-26.58 Ibid., p. 27.59 CARTA de sesmaria doada a Bartolomeu Pereira Dantas.60 BLUTEAU, Raphael. Brasiliana USP — Dicionário on-line Raphael Bluteau, Vocabulário Portuguez & Lati-no. v. 4, 1728. p. 179. Acesso em: 19 mar. 2013. Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/>.

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A legitimidade da graça: os impactos da tentativa de reforço da política sesmarial sobre as terras da Casa da Torre na capitania da Paraíba (século XVIII)

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O cultivo, como aproveitamento do solo, era requisito elementar no sistema sesmarial, e foi o fundamento que amparou esses cultivadores, encontrando seu apoio legal por meio da carta régia de 20 de outubro de 1753. Esta carta influenciou diretamente a venda de terras na capitania da Paraíba e possibilitou a concessão das sesmarias aos cultivadores. Visto um pouco o sistema sesmarial, e rapidamente como a Casa da Torre conquistou seu patrimônio e como o administrava, poder-se-á deter novamente nas 31 cartas de sesmarias, e tentar-se-á elucidar uma hipótese para este fenômeno que ocorreu no sertão da capitania da Paraíba, relacionando-as com a carta régia de 1753.

A carta régia de 20 de outubro de 1753: contrariando a Casa da Torre

A carta régia de 20 de outubro de 1753, enviada por D. Jose a Luis Correa de Sá, gover-nador de Pernambuco, surgiu como forma de solucionar problemas de posseiros e sesmeiros. Resultante de contendas e litígios entre herdeiros de Francisco Dias de Ávila, Francisco Bar-bosa Leam, Bernardo Pereira Gago, Domingos Afonso Sertao, Francisco de Sousa Fagun-dez, Antonio Guedes de Brito e Bernardo Vieira Ravasco contra moradores do Piauí, sertão da Bahia e Pernambuco, certamente, do fato de cultivadores e posseiros terem recusado-se a pagarem as rendas cobradas pelos herdeiros por meio de seus procuradores. Anteriormente, João da Maia da Gama, já atestava essa situação, e propunha uma solução:

Tão bem entendo e me paresse que de justiça deve V. Magestade mandar excluir a Gracia de Avilla todas as datas de terras o obrigallo merdisse e sitados... e povoadores mostrar os que por si povoou para que estivessem fora da sua medição e as que elle não povoou por si se deem de novo aos povoadores61.

João da Maia da Gama aconselhou ainda que a vossa majestade agradar-se-ia muito de 10 mil réis por ano de cada fazenda, os quais os moradores não negariam em oferecer, por se livrarem de continuadas violências cometidas pela Casa da Torre. Bandeira, quando citou Antonil, relatou que os senhores da Casa da Torre possuíam currais próprios e outros arren-dados em sítio, geralmente de uma légua, no qual cobravam 10 mil réis de foro cada ano.62 A resolução de 11 de abril e 02 de agosto de 1753, porém, decidiu anular todas as datas, ordens e sentenças da narrativa que culminaria na carta régia de 20 de outubro de 1753,63 além de limitar a extensão das sesmarias em três léguas de comprimento por uma légua de largura, devendo haver uma separação de uma légua entre duas sesmarias, para todo o território.64

61 MARTINS, F. A. de Oliveira, op. cit., p. 27.62 BANDEIRA. Moniz, op. cit., p., 236.63 Anulava apenas a partir daquelas datas, mas as 31 sesmarias foram solicitadas uns 15 anos antes.64 Ordens régias complementares — Plataforma SILB. In: AHU-PA, PA, cx. 165, doc.11754; AHU-PA, PA, cx. 75, doc. 6283; AHU-PA, PA, cx. 5, doc. 321.

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Segundo Costa Porto, a carta régia de 20 de outubro de 1753 criou a necessidade de uma reavaliação das sesmarias concedidas, e entendia que as terras haviam sido doadas para que fossem cultivadas e não para repartirem, ou arrendarem e aforarem.65 Para Costa Porto, depois de 1753, o posseiro obteve vantagem, pois a preferência era para quem efetivamente cultivava os sítios.66 Logo, o apoio ao posseiro contra o grande senhor de terras estava legal-mente nas ordens régias complementares, desde fins do século XVII até a resolução de 1753 em diante. “Em tese, tudo perfeito: mas na prática, nenhuma esperança de que funcionasse, naquelas distâncias, o disciplinamento baixado”, argumentou Costa Porto.67 Apesar dessa afirmação, o que se observa na capitania da Paraíba foi que o disciplinamento baixado resul-tou em efeito positivo para os cultivadores. Após 1753, o número de doações de sesmarias na Paraíba em terras ditas pertencentes à Casa da Torre cresceu significativamente, conforme demonstrado no quadro 1. Entre 1757 e 1776, foram 31 sesmarias concedidas em favor dos posseiros, em detrimento do grande senhor de terras. Pode-se pensar, portanto, conforme argumentou Márcia Motta, que a provisão de 1753 teria sido “uma tentativa de intervir e controlar o processo de ocupação territorial e talvez tenha sido promulgada para solucionar os conflitos oriundos da dinâmica de formação do patrimônio da Casa da Torre”.68 Os pró-prios requerentes das tais cartas de doação utilizavam os princípios contidos na ordem régia de 1753 nas justificativas para concessão das sesmarias, compreendendo a ilegitimidade das terras da Casa da Torre e, consequentemente, compreendendo a ilegalidade que eles mesmos estavam. Portanto, esses cultivadores requeriam as sesmarias, a fim de obter a terra na forma da lei. Isto se comprova, por exemplo, por meio de carta de sesmaria concedida em 6 de março de 1760, na qual o requerente doutor Manoel de Araujo de Carvalho, que era cônego da Catedral de Olinda,

...diz que como legitimo herdeiro de seus paes Coronel Manoel de Araujo Carvalho e D. Anna da Fonseca Gondim, possue a mais de 60 annos um sitio de crear gados, chamado Olho d’Agua, na ribeira do rio do Peixe, povoado por seu pae, e não obstante pagar foro á casa da Torre que se achava indevidamente senhora de todas as terras que outros descobriram e povoaram, e porque S. M. pela ordem de 20 de Outubro de 1753 annulou aquellas doações e dominios que tinha a casa da Torre e outras, mandando dar por nova graça aos cultivadores...69

65 PORTO, Costa, op. cit., p. 90.66 Ibid., p. 122.67 Ibid., p. 90.68 MOTTA, Márcia Maria Menendes. Direito à terra no Brasil: a gestação do conflito, 1795-1824. São Paulo: Alameda, 2009. p. 134.69 CARTA de sesmaria doada a Manoel de Araujo de Carvalho, em 6 de março de 1760. Plataforma SILB — PB 0528.

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Anteriormente, em 4 de novembro de 1756, Francisco de Oliveira Ledo, capitão-mor do Piancó, pedia ao Conselho Ultramarino que a ordem de 1753 contra os Ávila, que queriam ser senhores de infinitas terras, fosse executada, a fim de que fossem resolvidas as injustiças que sofriam os povoadores.70 Observando o nome da pessoa que fez o requerimento (Fran-cisco de Oliveira Ledo) e o conflito resultante entre ele e os membros da Casa da Torre, uma pergunta é formulada: e a relação entre os Oliveira Ledo e os Ávila? O tempo pode ser a resposta para essa questão. A possível aliança, com Teodósio de Oliveira Ledo, como procurador da Casa da Torre na capitania da Paraíba, em fins do século XVII e início do século XVIII, não teria mais sido reafirmada na geração seguinte, com seus descendentes, na segunda metade do século XVIII. Uma informação interessante apresenta-se no livro O feu-do, de Moniz Bandeira, sobre a Casa da Torre: “As terras da Casa da Torre situadas naqueles sertões tão distantes de Tatuapara estavam naturalmente entregues ao mando e desmando de procuradores, homens rudes e violentos que pouco a pouco assumiram, de fato, o seu senhorio”.71 Moniz continuou argumentando que os procuradores agiam por conta própria, e não necessitavam de ordens dos senhores da Torre, assim, a família de Teodósio de Oliveira Ledo teria passado a ocupar 2/3 do agreste e da parte ocidental do Cariri.72

A Casa da Torre não ficou passiva diante de tais atos que a prejudicavam diretamente. D. Inácia de Araújo Pereira e seu neto, Garcia d’Ávila Pereira de Aragão, pediram que não tivessem efeito as concessões realizadas pelo governador da Paraíba em terras já povoadas e possuídas pela Casa da Torre,73 resultando na carta régia de 26 de setembro de 1757,74 na qual D. José ordenou que fossem revogadas as sesmarias concedidas pelo governador da Pa-raíba em terras que fossem, por “justo” título, de D. Inácia de Araujo Pereira. Apesar disto, nos anos seguintes, conforme demonstrado, as concessões na capitania da Paraíba em terras pertencentes à Casa da Torre, na verdade, intensificaram-se entre 1757 a 1776, reconhecen-do os requerentes que a Casa da Torre não possuía título das terras.

Segundo a petição realizada pelos Ávila em 1757, em finais dos anos de 1756, o gover-nador da Paraíba, Luís Antônio de Lemos Brito, por meio de editais, ordenou que quem possuísse terras nos sertões do Piancó e rio do Peixe teria o prazo de três meses para solicitar a concessão da sesmaria, com o risco de que elas poderiam ser concedidas a quem as pedisse. Portanto, isto justifica também, conforme mostrado no quadro 1, o porquê de que entre 1757 e 1776 foram concedidas pelo menos 31 sesmarias em terras supostamente pertencen-tes à Casa da Torre. Somente no ano de 1759 concederam-se 12 sesmarias nesta situação, mostrando que apesar do requerimento de Inácia de Araújo Pereira e seu neto, Garcia d’Ávila Pereira de Aragão, em 1757, as concessões de terras da Casa da Torre foram inevitáveis.

70 AHU-PB, PA, cx. 19, doc. 1507.71 BANDEIRA, Moniz, op. cit., p. 328.72 Para maior compreensão, ver COSTA, Renata Assunção da, op. cit.73 AHU-BA, PA, cx. 140, doc. 44.74 Ver Ordens Régias Complementares — Plataforma SILB.

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Com o requerimento enviado por Inácia de Araújo Pereira, no ano de 1757, o rei D. José solicitou o parecer do governador de Pernambuco, por provisão de 26 de setembro de 1757, respondida em carta no dia 16 de fevereiro de 1759 por Luís Diogo Lobo da Silva ao próprio rei. O governador de Pernambuco informou que, para atender a ordem do rei, fora preciso procurar notícias a respeito do assunto que envolvia a disputa de terras em questão na pro-vedoria da Paraíba. Entretanto, o governador foi informado por resposta do sargento-mor governador interino, do provedor, do procurador, e do escrivão, todos da capitania da Paraí-ba, que não havia registro que indicasse posse dos senhores da Casa da Torre naquela região ou “jus adquirido sobre as ditas terras”. Luís Diogo Lobo da Silva, todavia, ressaltou que os senhores da Casa da Torre apresentavam uma certidão, na qual constava que André Vidal de Negreiros, que havia sido governador da capitania de Pernambuco, havia passado, em 22 de julho de 1658, sesmarias ao capitão Francisco Dias de Ávila e Bernardo Pereira, que, por sua vez, haviam estabelecido-se acima do rio São Francisco, indo das regiões povoadas até a última aldeia do gentio Moipura, e para a parte do norte até a Serra do Araripe.75 Portanto, uma área extensa, e sem limites precisos. Luís Diogo Lobo da Silva ainda informou que essa sesmaria não havia sido confirmada pelo rei, e que a mesma era entendida pelos senhores da Casa da Torre de acordo com as localidades referenciadas na carta concedida por André Vidal de Negreiros, sendo, consequentemente, o fundamento deles para persuadirem a posse de uma terra tão extensa.76 O parecer do governador de Pernambuco era de que a data con-cedida foi realizada “contra a forma de direito e ordens de Vossa Magestade”.

Apesar do parecer do governador de Pernambuco, que apresentava em seus argumentos ser contrário à manutenção dessa extensa sesmaria de terra, em 18 de janeiro de 1760, consta uma consulta do Conselho Ultramarino, referente à capitania da Bahia, na qual foi ordena-do por este mesmo órgão que as sesmarias concedidas pelo governador da Paraíba nas terras dos Ávilas fossem revogadas.77 No jogo de relações estabelecidas entre os diversos agentes na colônia e no Reino, a influente família Ávila pode ter trabalhado para que o parecer do rei fosse favorável para si.

Novamente, contudo, acredita-se que este documento não surtiu nenhum efeito sobre as concessões que continuaram ocorrendo em terras do sertão da capitania da Paraíba. Em-bora se possa pensar que tais terras, por serem em sua maioria vendidas aos cultivadores, pudessem não corresponder àquelas que a D. Inácia de Araújo Pereira pedia a revogação de sesmarias concedidas pelo governador da Paraíba, entende-se que as cartas aqui trabalhadas correspondessem realmente às tais reclamadas pela herdeira da Casa da Torre. Esta supo-sição baseia-se no período próximo entre as concessões das 31 sesmarias (1757-1776), e do requerimento de revogação de D. Inácia de Araújo Pereira e do parecer do Conselho Ultra-

75 AHU-Pernambuco, Papéis Avulsos, cx. 88, Doc. 7174.76 AHU-Pernambuco, Papéis Avulsos, cx. 88, Doc. 7174.77 AHU-Baía, cx. 143, Doc. 11005.

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marino (1757 e 1760); além da análise das cartas de sesmarias disponíveis em Lyra Tavares, que apresentam um considerável número de cartas de concessão na capitania da Paraíba.78 O que se verificou foi que a Casa da Torre perdeu aos poucos seu domínio sobre as terras da capitania da Paraíba, e, inclusive, em outras capitanias.79 Em fins do século XVIII e início do século XIX, a influência da Casa da Torre continuaria grande, embora concentrada na capitania da Bahia.80

Esse movimento de concessões comprova-se também por meio da alegação feita pelo requerente Francisco de Santa Cruz de Jesus, que recebeu uma sesmaria no ano de 1764. O requerente afirmou que possuía um sítio na ribeira do Piancó, o qual havia comprado da Casa, “e porque ouve dizer que as muitas terras que a mesma casa possui se julgão devolutas, por não haver tirado data dellas”, pretendendo o mesmo suplicante obter com “justo” título o tal sítio por sesmaria.81 Os suplicantes teriam utilizado a ordem régia de 20 de outubro de 1753 para requerer o título de sesmaria, garantindo a sua posse na forma da lei. A simples escritura de venda recebida da Casa da Torre não seria suficiente para que estes cultivadores se sentissem seguros, e a clara tendência da Coroa em apoiá-los possibilitou que estes legali-zassem o seu domínio sobre as terras que haviam ocupado e cultivado.

Considerações finais

Com tudo que foi até aqui observado, questiona-se o porquê de a Casa da Torre ter ven-dido tais terras, e, quando para aqueles que ela vendeu as terras solicitavam uma sesmaria, por que a mesma Casa requereu a anulação das concessões, se ela mesma as tinha vendido?

Segundo Moniz Bandeira “todo o gado nas Minas Gerais, antes da abertura em 1727 do caminho para o Rio Grande de São Pedro, no sul da América portuguesa, provinha dos campos do Piauí, bem como da Paraíba, de onde percorriam uma distância de 400 léguas até os centros de consumo”.82 Sabe-se que a base fundamental da economia da Casa da Torre era a pecuária, possuindo currais nas ribeiras dos sertões, exploradas, principalmente, pelos foreiros ou arrendatários, cobrando, geralmente, a razão de uma légua 10 mil réis por ano.83 Para Ângelo Pessoa, poder-se-ia pensar na participação dos Ávila no comércio de carnes (ver-

78 TAVARES, Joao de Lyra. Apontamentos para a Historia Territorial da Parahyba. 2. ed. Mossoró: Escola Superior de Agricultura de Mossoró, 1989.79 BANDEIRA, Moniz, op. cit., p. 415.80 Ibid., p. 416.81 CARTA de sesmaria doada a Francisco de Santa Cruz de Jesus, em 31 de julho de 1764. Plataforma SILB — PB 0614.82 BANDEIRA, Moniz, op. cit., p. 241. Baseia-se em CALMON, Pedro. História social do Brasil. t. I, 4. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, Coleção Brasiliana, s/d. p. 172.; PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. 17. ed. São Paulo: Brasiliense, 1974. p. 66.83 BANDEIRA, Moniz, op. cit., p. 241.

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des e secas), desde a etapa da criação, passando pelo transporte das boiadas e revenda na feira de Capuame e outras feiras, na Bahia, até o abate e venda em açougues ao público, em Sal-vador; criando, assim, uma rede tentacular que envolvia boa parte das capitanias.84 Portanto, a superação da pecuária do Rio Grande do Sul, durante a segunda metade do século XVIII, em detrimento da pecuária desenvolvida no sertão nordestino pode ser uma das chaves para a explicação do porquê tais terras terem sido vendidas ao longo do século XVIII.85

Outro fator decisivo que modificou a configuração do patrimônio da Casa da Torre foi a união dos Ávila com os Pires de Carvalho. Com esta união, o morgado da Casa da Torre uniu-se a outra família rica e poderosa86 e pode ter redirecionado o foco para os interesses dos membros da Casa da Torre, talvez até mesmo devido ao fato de a pecuária desenvolvida na região estar perdendo espaço para a sulista. Portanto, percebendo isto, os membros da Casa da Torre, talvez, foram desfazendo-se das suas terras, por meio de vendas. Segundo Calmon, Francisco Dias d’Ávila 3o “possuía engenhos de açúcar e duas fábricas de farinha”.87 Já Ângelo Pessoa relatou que a Casa da Torre fazia outros negócios, envolvendo-se decisiva-mente com a produção do açúcar em fins do século XVIII, quando a pecuária do norte foi superada pela do sul no início do século XIX, e quando ocorreu a passagem do morgado da Casa da Torre para o controle dos Pires de Carvalho.88

Aliado a tudo isto, aponta-se a causa que se considera principal para a perda das terras da Casa da Torre na capitania da Paraíba: o próprio sistema sesmarial, com suas mudan-ças, decorrentes de um maior centralismo da Coroa portuguesa durante o século XVIII. Segundo Márcia Motta, “o esforço de disciplinar a ocupação, presente no estabelecimento de um limite máximo de concessão revela o reconhecimento de uma história pretérita de ocupação ‘sem limites’”.89 Conforme visto, o sistema sesmarial foi tornando-se complexo e restritivo por parte da Coroa, por meios das diversas ordens régias expedidas por ela ao longo dos anos do período colonial. Imposições mais limitativas vistas em fins do século XVII foram expedidas, e possibilitaram, como a ordem régia de 20 de outubro de 1753, por meio do princípio do cultivo, assegurar aos cultivadores diretos da terra a sua posse sobre ela. Talvez, percebendo que perderiam tais terras, visto a impossibilidade de cumprir todas as exigências que foram sendo impostas pela Coroa, em territórios tão extensos, e com todo o amparo dado aos cultivadores da terra, a Casa da Torre vendeu suas terras, conseguindo obter alguma vantagem sobre estas vendas, pois o sistema de sesmarias não proibia a venda, arrendamento ou aforamento de terras concedidas em sesmarias. Entretanto, o aumento de

84 PESSOA, Ângelo Emílio da Silva, op. cit., p. 158.85 Ibid., p. 180.86 BANDEIRA, Moniz, op. cit., p. 329-336.87 CALMON, Pedro, op. cit., p. 159. Baseia-se em Doc. In: BORGES DE BARROS, Francisco. Bandeirantes e sertanistas baianos, p. 110.88 PESSOA, Ângelo Emílio da Silva, op. cit., p. 180.89 MOTTA, Márcia Maria Menendes, op. cit., 134-135.

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denúncias contra essas práticas, que feriam a noção de cultivo como legitimador da posse da terra, fez com que a Coroa revisasse sua posição. Por conseguinte, aqueles que possuíam apenas a escritura de venda solicitaram o título de sesmaria das terras ocupadas, para assim, estarem legalizados com as novas ordens régias, e, portanto, ficarem mais seguros.

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Migrações negras no pós-abolição do sudeste cafeeiro (1888-1940)

Carlos Eduardo Coutinho da Costa*

RESUMOO presente artigo tem por objetivo analisar o processo de migração de negros — ex-escravos e seus descendentes diretos ou indiretos — do Vale do Paraíba para a Região Metropolitana do Rio de Janeiro, e seus desdobramentos, no período após a promulgação da Lei Áurea. Trata-se de avaliar esse processo para além do sistema dual de explicação das migrações: atração versus expulsão. Busca-se, nesse sentido, incorporar análises qualitativas, quantita-tivas e demográficas dessa experiência. Para atingir tais objetivos utilizou-se o cruzamento de fontes variadas, a saber, os registros civis de nascimento e óbito, censos, entrevistas e bibliografia secundária.Palavras-chave: pós-abolição; migração; Vale do Paraíba; Baixada Fluminense.

ABSTRACTThis article focuses on the migration of Blacks – former slaves and their descendants – from the Paraíba Valley to the metropolitan area of Rio de Janeiro, and its consequences, in the post-emancipation period. The goal is to evaluate the process beyond the dual system for explanation of migration: attraction vs. expulsion. We try to incorporate qualitative and demographic analysis of this experience through the intersection of different sources: civil records, census, oral interviews, and secondary literature.Keywords: post-emancipation; migration; Vale do Paraíba; Baixada Fluminense.

Artigo recebido em 11 de abril de 2014 e aprovado para publicação em 27 de dezembro de 2014.A elaboração deste artigo contou com os financiamentos do Projeto Humanidades do CNPq e da Faperj, através da Bolsa Faperj Nota 10.* Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor ad-junto C1 da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected].

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Durante muitos anos a migração no pós-abolição foi compreendida como um processo de “perda” por parte dos ex-cativos. Ainda se explicava a formação de favelas, guetos e da pe-riferia na cidade do Rio de Janeiro em decorrência da migração de libertados pela Lei Áurea, provenientes do Vale do Paraíba.1 Parte da historiografia, da primeira metade do século XX, baseada nas mazelas da “herança da escravidão” e da “anomia social” dos ex-cativos e de seus descendentes, foi a responsável pela construção de uma imagem negativa dessas trajetórias no período do pós-abolição — perpetuadas até os dias de hoje.2 Ao contrário dessa afirma-ção, destaco a importância a ser dada à agência de ex-cativos e de seus descendentes nesse processo. Eles tomaram a migração como um ato consciente e com significado próprio e não apenas como uma consequência da perda material. Desse modo, a proposta deste artigo é analisar os migrantes como agentes desse processo, dando destaque para os aspectos quan-titativos — demográficos — e qualitativos — tais como: os medos, a violência, as esperanças e objetivos — que explicam a migração e a redesenham nesse novo contexto.3

Através da análise de registros civis de nascimento e óbito do município de Nova Iguaçu, entrevistas, trajetórias individuais e bibliografia secundária, este artigo investigará, no perí-odo do pós-abolição, compreendido entre os anos de 1888 e 1940, parte da experiência de migração de ex-escravos e seus descendentes, diretos ou indiretos, que percorreram o trajeto do Vale do Paraíba para as periferias da cidade do Rio de Janeiro e Região Metropolitana.

A experiência estrangeira

Para os pesquisadores da Jamaica, Cuba e Estados Unidos, após o fim da escravidão, li-bertos e seus descendentes migraram no intuito de experimentar a liberdade.4 Em certas lo-calidades, como no Alabama, por exemplo, nos primeiros anos de pós-abolição, boa parte

1 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 37.2 Para uma melhor discussão sobre esses olhares historiográficos ver introdução: RIOS, Ana Lugão; MAT-TOS, Hebe. Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. Em experiência na correção do vestibular da Unicamp, o professor Álvaro Nascimento encontrou respostas dos vestibulandos que reproduziam esse pensamento. Diante desse problema, alinhavou um artigo explicitando os problemas na formação dos alunos do ensino médio sobre a experiência do negro no pos-abolição. Ver: NASCIMENTO, Álvaro. Qual a condição social dos negros no Brasil depois do fim da escravidão? O Pós-abolição no ensino de história. In: SALGUEIRO, Maria Aparecida Andrade (Org.). A República e a questão do negro no Brasil. Rio de Janeiro: Museu da República, 2005. p. 11-26.; INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censos de 1872, 1890 e 1920.3 Para uma crítica ao olhar dual das migrações, ver: GROSSMAN, James R. Land of hope: Chicago, blacksoutherners, and the great migration. Chicago, IL: University of Chicago Press, 1989. p. 18.4 Entre outros: SCOTT, Rebecca. Defining the boundaries of freedom in the world of cane: Cuba, Brazil, and Louisiana after emancipation. The American Historical Review, v. 99, n. 1, p. 70-102, Feb. 1994.; FONER, Eric. O significado da liberdade. Revista Brasileira de História, v. 8, p. 14, 1988; GROSSMAN, James R. Land of hope: Chicago, black southerners, and the great migration, op. cit., p. 21.

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dos ex-escravos abandonou as fazendas e utilizou seu direito de ir e vir, viajando inicialmente entre diversas localidades, sem destino aparente. Nos primeiros meses, após 1865, no sul dos Estados Unidos, muitos jornais noticiaram uma movimentação populacional aparentemente desordenada e não apenas para o norte, como era esperado. De acordo com cronistas da época, “parecia que eles queriam chegar mais perto da liberdade, para então saber o que era isso”.5 Afinal, ter o direito de viajar para onde bem quisesse, durante certo período, foi tido como “fonte de orgulho e excitação para os ex-escravos”.6 Porém nada parece ter influenciado mais a migração do que a busca pelo reencontro dos parentes separados, pela venda, na escravidão.7

Além do exercício de sua liberdade, muitos buscaram maior independência diante do po-der dos proprietários através da conquista da terra e do controle do ritmo e da forma do tra-balho. No caso da Jamaica, por exemplo, acreditava-se que os libertos tenderiam a comprar terras baratas e improdutivas para subsistência, distantes das grandes propriedades. Contudo, o que se pôde perceber foi um movimento contrário: de acordo com Holt, eles conseguiram comprar pequenas propriedades, migrando para áreas próximas aos centros urbanos e às áreas agroexportadoras. Desse modo, em suas roças, buscavam aliar uma produção de subsistência com excedentes para a venda em mercados locais, assim como almejavam vender sua força de trabalho nas fazendas de grande porte. Ou seja, dessa estratégia de sobrevivência conseguiam obter três fontes de sobrevivência distintas, ampliando sua independência.8

No caso cubano, o lado oriental da ilha atraiu os possíveis migrantes. De acordo com os dados analisados por Rebecca Scott, entre os censos de 1862 e 1899 pôde-se distinguir um novo padrão da distribuição populacional dos negros, localizados agora no Leste. Essa região oferecia um maior acesso à terra, em virtude dos seguintes fatores: uma parte era uma região montanhosa e não propícia à produção açucareira em larga escala, assim como, após a Guerra dos Dez Anos, essas terras foram distribuídas pelo governo para serem ocupadas e revitalizadas.9 Nesse sentido, a migração para as cidades foi limitada, pois, segundo Scott,“a proporção da população negra da ilha residente na Província de Havana, por exemplo, não aumentou acentuadamente durante o período de emancipação”.10 Da mesma forma, após uma análise de dados estatísticos, a autora afirma que os números “não parecem retra-tar uma migração em massa para as cidades”,11 ou seja, as pessoas encontradas, em 1899, nos censos das cidades, eram provavelmente descendentes de população negra urbana residente, e não migrados das antigas fazendas de açúcar.

5 FONER, Eric. O significado da liberdade, op. cit., p. 14.6 Ibid.7 Ibid.8 HOLT, Thomas. The problem of freedom: race, labor, and politics in Jamaica and Britain, 1832-1938. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1992, principalmente capítulo 5.9 SCOTT, Rebecca. Emancipação escrava em Cuba: a transição para o trabalho livre, 1860-1889. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Campinas: Unicamp, 1991. p. 250.10 Ibid., p. 252.11 Ibid.

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Nos Estados Unidos parte da migração para os centros urbanos ocorreu pela busca de instituições sociais negras, tais como igrejas, escolas e sociedades de ajuda mútua, assim como organizações de ajuda contra a violência, muito comuns nesse período, como o De-partamento dos Libertos (Freedman’s Bureau). Para Foner, em algumas localidades, as conse-quências da migração para as cidades foram desastrosas, pois em virtude da falta de trabalho e de dinheiro, esses migrantes passaram a residir nos subúrbios, com pouca higiene e com alta proliferação de doenças.12 Porém, entre todas as experiências vivenciadas no pós-abo-lição pela população de ex-escravos e seus descendentes, Foner identificou, para o sul dos Estados Unidos, que o destino mais comum foi a permanência nas fazendas nos primeiros anos, trabalhando, agora, em outras condições.13

The great migration, como usualmente costumou-se denominar a migração da população de negros livres em direção ao norte dos Estados Unidos, só teve início no século XX, em 1910, com o ápice em 1920, e não nos anos iniciais da pós-emancipação.14 Há toda uma bibliografia norte-americana que trabalha as migrações sulistas em direção ao norte a partir de vários temas: políticos, sociais, econômicos, não econômicos, raciais e culturais.15

A “grande migração” do Brasil

No caso brasileiro, os primeiros trabalhos sobre a temática da migração de negros no pós-abolição exaltavam as experiências negativas. Ao analisar o município de Rio Claro,

12 FONER, Eric. O significado da liberdade, op. cit., p. 15.13 Ibid.14 GREGORY, James N. The southern diaspora and the urban dispossessed: demonstrating the census public use microdata samples. The Journal of American History, n. 82, 1995. p. 111-134.15 São eles: BERRY, Chad. Southern migrants, northern exiles. Urbana, IL: University of Illinois Press, 2000; GROSSMAN, James R. Land of hope: Chicago, black southerners, and the great migration, 1989, op. cit.; TOLNAY, Stewart E. The great migration and changes in the northern black family, 1940 to 1990. Social Forces, n. 75, p. 1213-1238, 1997; TOLNAY, Stewart E. Migration experience and family patterns in the ‘promised land’. Journal of Family History, n. 23, p. 68-89, 1998; TOLNAY, Stewart E. The great migration gets underway: a comparison of black southern migrants and non-migrants in the north, 1920. Social Science Quarterly, p. 235-252, 2001; LIEBERSON, Stanley; WILKINSON, Christy A. A comparison between northern and southern blacks residing in the north. Demography, n. 13, p. 199-224, 1976; LEMANN, Nicholas. The promised land: the great migration and how it changed America. Nova York: Knopf, 1991; JOHNSON, D. M.; REX, R. C. Black migration in America: a social demographic history. Durham, NC: Duke University Press, 1981; HENRI, F. Black migration: movement north, 1900-1920. Garden City, NY: Anchor, 1975; GREGORY, James N. The southern diaspora and the urban dispossessed: demonstrating the census public use microdata samples. The Journal of American History, v. 82, n. 1 p. 111-134, jun. 1995; GREGORY, James N. The southern diaspora: how the great migrations of black and white southerners transformed America. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2005; TROTTER JR., Joe William. The great migration in historical perspective: new dimensions of race, class & gender. Bloomington e Indianapolis: Indiana University Press, 1991; HARRISON, Alferdteen. Black exodus: the great migration from the American South. Jackson e Londres: University Press of Mississipi, 1991.

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Warren Dean percebeu que, na disputa por mercado de trabalho entre imigrantes e nacio-nais, os negros perderam espaço. Na impossibilidade da inserção social através do trabalho nas fazendas do interior de São Paulo, os ex-cativos foram expulsos e migraram forçosamen-te para cidades em ascensão, nesse caso, a cidade de Santos, zona portuária.16

A explicação mais generalizada e usualmente reproduzida sobre a trajetória de ex-escra-vos no período pós-abolição baseou-se em notícias alarmantes de jornais e na lógica liberal de modernização do país. A teoria da liberação de mão de obra do campo para as cidades, isto é, a expulsão — para a construção de um exército de reserva, que levaria à futura indus-trialização do Brasil e as consequências sociais calamitosas desse fato, como a segregação e a favelização —, foi uma das mais utilizadas no mundo inteiro, e por aqui não foi diferente. Para José Murilo de Carvalho, por exemplo, a abolição transformou acentuadamente as características da cidade do Rio de Janeiro, uma vez que “alterou-se a população da capital em termos de número de habitantes, composição étnica, de estrutura ocupacional”.17 Conse-quentemente, para Nei Lopes, com a falta de moradias no centro da cidade restaram, como opção, os morros, onde

aos migrantes do Vale do Paraíba que para o Rio de Janeiro continuam vindo desde a falência da lavoura cafeeira na região, aos veteranos da Guerra do Paraguai, os flagelados da grande seca, vêm juntar-se, agora, mais e mais negros, oriundos das diversas regiões do país, mas principalmente das províncias vizinhas.18

Ou seja, após 1888, a capital federal passou a ser o centro de atração de mão de obra ociosa do Sudeste, em crise de produção.

Para os autores mencionados, a partir do olhar econômico do processo, somente restou aos migrantes a segregação do trabalho. De acordo com Carvalho, “a abolição lançou o restante da mão de obra escrava no mercado de trabalho livre e engrossou o contingente de subempregados e desempregados” na cidade do Rio de Janeiro,19 isto é, na disputa desleal desses trabalhadores migrantes com os residentes da cidade do Rio de Janeiro e imigrantes, o resultado foi a segregação racial, social e espacial. Desse modo, a trajetória negativa dos ne-gros no pós-abolição, para esses autores, estaria ligada, em sua maior parte, a condicionantes econômicos, não levando em conta aspectos culturais, da violência, entre outros.

No entanto, trabalhos mais recentes já demonstraram que a visão negativa da “herança da escravidão” e da “vitimização” — de que o negro por vezes não se coadunava com a

16 DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.17 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, op. cit., p. 16.18 LOPES, Nei. O negro no Rio de Janeiro e sua tradição musical: partido-alto, calango, chula e outras canto-rias. Rio de Janeiro: Pallas, 1992. p. 3.19 CARVALHO, José Murilo. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, op. cit., p. 16.

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modernidade em construção ao mesmo tempo que era apenas espectador das novas situa-ções — deixava de lado a agência do ex-escravo, suas vontades e projetos de vida.20 Ou seja, a migração não deve ser vista como resultado do período da escravidão e seu subsequente desmantelamento, mas sim através da ótica da agência do negro no pós-abolição.

Mesmo diante dessa nova perspectiva, deve-se ressaltar que de fato a população do então município neutro aumentou significativamente após 1890. Se no ano de 1872, incluindo es-cravos e livres, havia na capital federal 274.972 pessoas, esse número aumentou para 522.651 em 1890, chegando, no ano de 1920, a 1.157.873 habitantes.21 Ou seja, somente na análise superficial desses números é possível atestar um movimento migratório para essa cidade, o que, aparentemente, não ocorreu no imediato pós-abolição, mas sim ao longo da década de 1920. No entanto, nos censos consultados não existem referências às origens dessas pessoas e muito menos às motivações, o que reforça a necessidade da pesquisa em outras fontes capa-zes de informar esses dados, tais como entrevistas, registros civis de nascimento e de óbito.

Nas entrevistas realizadas com descendentes diretos de ex-escravizados, Ana Rios se de-parou com três tipos de trajetórias de vida após a promulgação da Lei Áurea. Na primeira, encontrou histórias de extrema estabilidade. Nos últimos anos da escravidão no Brasil, na região do Vale do Paraíba, vários proprietários conseguiram manter os libertos nas fazendas, alforriando-os em massa. Tentavam construir “laços de gratidão” com os trabalhadores, no intuito de organizar um verdadeiro “exército” de trabalhadores negros.22 Muitos desses grupos conseguiram permanecer nas fazendas por muitos anos, e vieram a formar o que hoje a Fundação Palmares reconhece como comunidades remanescentes de quilombolas, encontradas na região do Vale do Paraíba.23 Além disso, havia os que de alguma forma com-praram pequenas propriedades e ali se estabeleceram, trabalhando como meeiros, parceiros, de empreitada, obtendo parte de sua subsistência através das pequenas roças. Em suma, no imediato pós-abolição, a maior parcela dessa população manteve-se no Vale do Paraíba.

Em segundo lugar, a autora encontrou trajetórias daqueles que não conseguiram obter estabilidade: migravam de fazenda para fazenda em busca de trabalhos temporários, e ra-

20 Para uma melhor discussão sobre esses olhares historiográficos ver introdução: RIOS, Ana Lugão; MAT-TOS, Hebe. Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição, 2005, op. cit., introdução; NASCIMENTO, Álvaro. Qual a condição social dos negros no Brasil depois do fim da escravidão? O pós--abolição no ensino de história, op. cit., p. 11-26.21 IBGE. Censos de: 1872, 1890, 1920.22 MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: significados da liberdade no Brasil escravista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.23 A partir do art. 68 da ADCT de 1988, as comunidades negras, ou “terras de pretos”, onde viviam des-cendentes diretos de ex-escravos, e que sobreviviam do uso coletivo da terra, passaram a ter o direito de desapropriação da mesma. Para uma melhor discussão da lei ver: MATTOS, Hebe. Novos quilombos: ressig-nificações da memória do cativeiro entre descendentes da última geração de escravos. In: RIOS, Ana Lugão; MATTOS, Hebe. Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Ci-vilização Brasileira, 2005; GUIMARÃES, Eliose Silva. Terra de preto: usos e ocupação da terra por escravos e libertos (Vale do Paraíba Mineiro, 1850-1920). Niterói: EdUFF, 2009.

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ramente obtinham algum tipo de mobilidade social por conta da sua intensa movimenta-ção. As histórias de vida são marcadas pela violência, instabilidade, pobreza e falta de laços parentais extensos.24 Por fim, existiam os que migravam definitivamente para os centros em ascensão. Esse último grupo, formado em sua maioria por filhos e netos, descendentes diretos de ex-escravizados, apenas migrou na década de 1920, quando a condição social e financeira de seus pais não era mais possível de ser reproduzida.25 Para os que residiam no campo a erosão do solo, as pragas, a diminuição do emprego por conta da desvalorização do café afetaram muito mais rapidamente o trabalhador no Vale do Paraíba. Provavelmente, para sobreviver tiveram de abrir mão do seu último bem, isto é, a terra. Afinal, toda a área desgastada passou a servir como pasto para o gado, que começava a se tornar a alternativa mais viável economicamente para a região.26

Somado a isso, outro elemento, de caráter não econômico, deve ter afetado diretamente a trajetória dos que desejavam migrar, no imediato pós-abolição, para a cidade do Rio de Janeiro: o medo. É muito provável que os jornais da época tenham tido um papel preponde-rante no impedimento da migração em massa da população rural para as cidades. Os conta-tos com jornalistas estrangeiros, principalmente dos Estados Unidos, podem ter incentivado uma preocupação demasiada com esse processo. Afinal, naquele país, a chegada de negros ao Norte provocou disputas violentas no mundo do trabalho, acirrou a segregação racial e aumentou a quantidade de pobres nos centros das cidades.27 O medo, propagado por discur-sos inflamados e publicados em jornais, pode ter auxiliado a permanência de negros no Vale do Paraíba, no imediato período do pós-abolição. Discursos denunciatórios como o “faltam braços no campo e sobram pernas na cidade”, propagados, por exemplo, pelo jornal Correio da Lavoura, no ano de 1917, eram proferidos com o intuito de assegurar aos fazendeiros a mão de obra nacional no Vale do Paraíba.28

Pouca ou quase nenhuma atenção foi dada às características sociais e culturais desse processo. Em primeiro lugar, nada deve ter incentivado mais a migração do que o desejo de muitos ex-escravos de reunir famílias separadas havia muito tempo pelo flagelo da época da escravidão.29 Um segundo fator a incentivar a migração pode também ter sido a busca de um maior e melhor acesso à educação. Desde o período da escravidão, muitos cativos deixaram, nas cartas de alforria, o desejo de trocar o cativeiro por longos anos de serviço obrigatório em troca de o patrão lhe assistir em caso de doença e, principalmente, dar educação aos seus fi-

24 RIOS, Ana Lugão; MATTOS, Hebe. Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição, 2005, op. cit.25 Ibid.26 FRAGOSO, João. Barões do café e sistema agrário escravista: Paraíba do Sul/Rio de Janeiro (1830-1888). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013.27 GROSSMAN, James R. Land of hope: Chicago, black southerners, and the great migration, 1989, op. cit.28 Hebdomanário sediado no atual município de Nova Iguaçu. Correio da Lavoura, 7 maio 1917.29 FRAGA, Wealter Filho. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas: Unicamp, 2006. p. 314.

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lhos.30 Pouco ainda se estudou sobre o acesso da população preta e parda às escolas de ensino básico no Vale do Paraíba; no entanto, nas regiões periféricas, como a Baixada Fluminense, já existem estudos demonstrando a entrada de professores e alunos negros nas escolas.31 É bem possível que boa parte dos jovens tenha optado por migrar em busca de um maior acesso à educação, pois, provavelmente, viam nela uma possibilidade de mobilidade social.

Do mesmo modo, pode-se apontar também a violência como motivadora da migração. Em entrevista a Ana Lugão Rios, Cornélio Cansino contou que quando criança seus fami-liares foram obrigados a se mudar para a fazenda São José, em Juiz de Fora. Seu pai havia feito uma rocinha na fazenda São Lourenço e, por conta da necessidade de capinar a área, ele acabou faltando ao trabalho de “turma” naquele dia. Para se vingar, o proprietário mandou abrir a porteira de sua rocinha e colocou os bois para comer tudo. Seu tio, preocupado com a situação, os convidou para morar com ele, na Fazenda São José.32

Apesar de esse exemplo de violência não demonstrar diretamente qualquer conotação racial, no interior de São Paulo ocorreram casos de assassinatos muito semelhantes aos exis-tentes no sul dos Estados Unidos, no mesmo período.33 Ao analisar a correspondência entre o chefe de polícia e o delegado local, em São Carlos, Karl Monsma deparou-se com casos de linchamentos. De acordo com uma das cartas encontradas, um mês e meio após a abolição, 400 pessoas invadiram a delegacia e assassinaram a tiros e pauladas o “liberto João”, que havia assaltado uma casa da localidade, dois dias antes. Apesar de nenhum jornal ou mesmo a denúncia policial ter afirmado a ocorrência de estupro, a população local acreditou haver ocorrido, por conta da violência utilizada. E por isso, após ter matado o autor do crime, o ajuntamento de pessoas resolveu pendurá-lo na Praça Matriz da cidade. Somado a esse caso, o autor encontrou mais três, com histórias muito semelhantes.34 Monsma chegou à conclu-

30 LIMA, Henrique Espada. Sob domínio da precariedade: escravidão e os significados da liberdade de traba-lho no século XIX. Topoi, v. 6, n. 11, p. 289-326, jul./dez. 2005.31 BEZERRA, Nielson. A cor da Baixada: escravidão, liberdade e pós-abolição no recôncavo da Guanabara. Duque de Caxias, RJ: APPH-CLIO, 2012.32 Entrevista de Cornélio Cansino a Ana Lugão Rios, em 1994. As entrevistas encontram-se no Acervo Me-mórias do Cativeiro (AMC) e encontram-se disponíveis em: <http://www.labhoi.uff.br/narrativas/depoimen-tos>. Acesso em: 14 mar. 2012.33 HENRI, F. Black migration: movement north, 1900-1920, 1975, op. cit.; TOLNAY, Stewart E.; BECK, E. M. Racial violence and black migration in the South, 1910 to 1930. American Sociological Review, v. 57, n. 1, p. 103-116, Feb. 1992; TOLNAY, Stewart E.; BECK, E. M. A festival of violence: an analysis of southern lynchings, 1882-1930. Urbana, IL: University of Illinois Press, 1995; WOOFTER, T. J. Negro problems in cities. Nova York: Doubleday, Doran & Co., 1928; TOLNAY, Stewart E. The African American ‘great migration’ and beyond. Annual Review of Sociology, v. 29, p. 209-232, 2003.34 MONSMA, Karl. Histórias de violência: inquéritos policiais e processos criminais como fontes para o estudo de relações interétnicas. In: DEMARTINI, Zeila de Brito Fabri.; TRUZZI, Oswaldo M Serra (Orgs.). Estudos migratórios: perspectivas metodológicas. São Carlos: EDUFSCar, 2005. p. 159-221; MONSMA, Karl. Linchamentos raciais depois da abolição: quatro casos do interior paulista. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA LATIN AMERICAN STUDIES ASSOCIATION, XXVIII., 2009, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Lasa, 2009.

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são de que, apesar de os linchamentos diminuírem entre 1910 e 1930, quando ocorreram esses casos de violência, a população de negros migrou por conta do medo.35

Do mesmo modo, Lucia Helena Silva, através da análise da documentação da Casa de Detenção do Município do Rio de Janeiro, conseguiu identificar a migração dessa popula-ção para a então Capital Federal entre os anos de 1890 e 1920. De acordo com a autora, a migração daqueles provenientes do interior do estado de São Paulo estava ligada aos seguin-tes fatores: fuga da concorrência desleal por empregos com os imigrantes, da falta de terras e do racismo.36

É possível, ao longo da década de 1920, que os jornais tenham passado a exercer um papel quase oposto ao citado anteriormente. Com a diminuição da imigração europeia, em parte por conta da Primeira Guerra Mundial, houve um aumento na necessidade de mão de obra na ca-pital e nas periferias, e, logo, os jornais passariam a auxiliar na divulgação de informações das oportunidades de emprego na cidade do Rio de Janeiro e seus arredores. Álvaro Nascimento vem se dedicando à análise de um jornal da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, denomi-nado O Correio da Lavoura.37 Nas folhas do jornal é possível notar, em várias passagens, sua preocupação com os trabalhadores do Vale do Paraíba, bem como vários anúncios do Minis-tério da Agricultura, convocando-os. Para além do aumento da oferta de serviços, regiões no entorno da cidade ampliaram suas produções, em parte direcionadas para o mercado de abas-tecimento da cidade e em parte para o mercado externo — como foi o caso dos laranjais em Nova Iguaçu, Campo Grande, Madureira e Cascadura — além das indústrias, com destaque para as fábricas de Bangu. Para nutrir tais empreendimentos de mão de obra, os jornais podem ter exercido papel preponderante na divulgação de informações sobre essas regiões. Ainda não se sabe se o jornal também era lido no Vale do Paraíba; contudo, através das folhas publicadas, é possível observar uma relação nítida entre essas regiões.

Para além das informações recebidas via material impresso, as pessoas residentes no Vale do Paraíba tinham notícias da Capital através de parentes e amigos migrantes. No caso dos trabalhadores de Nova Iguaçu, nas primeiras décadas de produção de laranja, eles eram convocados em apenas dois momentos — na plantação e na colheita —, ou seja, migravam sazonalmente para essa região retornando à casa ao fim da atividade.38 Sempre foi interes-sante pensar como as notícias relacionadas com empregos vagos ou terras livres chegavam a locais tão interioranos. Um desses mecanismos foi aberto por Dionísio. Seu neto, Manoel

35 Ibid.36 SILVA, Lucia Helena Oliveira. Construindo uma nova vida: migrantes paulistas afrodescendentes na cidade do Rio de Janeiro no pós-abolição (1888-1926). Tese (Doutorado em História) — Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001.37 NASCIMENTO, Álvaro. 13 de Maio: memória da escravidão e educação nas páginas do Correio da La-voura (Nova Iguaçu, RJ, 1917-1950). In: FORTES, Alexandre. Cruzando fronteiras: novos olhares sobre a história do trabalho. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2013. p. 205-228.38 SOUZA, Sonali Maria de. Da laranja ao lote: transformações sociais em Nova Iguaçu. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) — Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1992.

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Seabra, residente na Comunidade São José, disse que o avô caminhava durante seis dias do município de Nova Iguaçu até chegar à casa, na cidade de Santa Isabel do Rio Preto, distrito de Valença, no Vale do Paraíba. Em suas viagens, além de trazer presentes, inteirava os pa-rentes dos acontecimentos familiares e do seu novo local de moradia.39 Essa prática de troca de informações entre parentes, principalmente as relacionadas com novos ofícios e terras livres, era muito usual entre os camponeses.40

Outros trabalhadores que também contribuíram na distribuição de informações foram os ferroviários. As linhas férreas cortavam as fazendas de café, perpassavam a Baixada Flu-minense e terminavam no centro da cidade do Rio de Janeiro. José Gomes de Moraes, mais conhecido como Seu Juca, morador do município de Barra do Piraí, trabalhou durante 40 anos no prédio da Central da Estrada de Ferro Dom Pedro II, localizado no centro da cidade do Rio de Janeiro, voltando todos os dias para casa.41 Trabalhadores das linhas férreas, ao retornar às suas fazendas de origem, comentavam com os demais parentes e amigos as infor-mações que obtinham no trajeto, aumentando o interesse de futuros migrantes. Do mesmo modo, essa malha de transportes contribuiu para a emigração do Vale do Paraíba; afinal, desde o final do século XIX a ferrovia transportava, além do café para a capital, passageiros.

O processo de migração do Vale do Paraíba para as periferias da cidade do Rio de Janeiro foi captado também em outras fontes de pesquisa. Nas entrevistas do Acervo Me-mórias do Cativeiro, foi possível encontrar pelo menos duas trajetórias de descendentes de ex-escravizados que optaram por residir na Capital Federal. Cornélio Cansino, nascido em Juiz de Fora, no ano de 1913, afirmou em depoimento que seu tio Cornélio, que na época de sua juventude havia migrado para o estado de São Paulo, anos depois optou por residir no Distrito Federal. Chegando lá encontrou mais dois tios: Ricardo e Geraldo. Todos foram morar no centro da cidade. O tio Cornélio conseguiu uma pequena casa na rua Frei Caneca, enquanto os outros não tiveram a mesma sorte. Ricardo e Geraldo moravam no morro do Catumbi, na rua São Carlos, atual favela São Carlos.42

Apesar de esses exemplos demonstrarem a possibilidade de moradia bem próxima ao grande centro urbano, a maior parte dos migrantes descendentes diretos ou indiretos de ex-escravizados parece ter ocupado regiões periféricas. Na Bahia, por exemplo, Walter Fra-ga Filho conseguiu acompanhar uma migração de libertos para Região Metropolitana de Salvador, mas não avançou, pois encontrou poucas trajetórias.43 Já em outras regiões, como, por exemplo, o Paraná, de acordo com Leonardo Marques, os ex-escravos migraram para as

39 Entrevista de Manoel Seabra, 2003 (AMC).40 MARTINS, J. S. O tempo da fronteira: retorno à controvérsia sobre o tempo histórico da frente de expan-são e da frente pioneira. Tempo Social: revista de Sociologia da USP, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 25-70, maio 1996.41 Entrevista de Seu Juca, 2006. (Acervo UFF Petrobras Cultural de Memória e Música Negra — AMMN).42 Entrevista de Seu Cornélio Cansino, 1995 (AMC).43 FRAGA, Walter Fraga. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas: Unicamp, 2006.

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cidades mais próximas que ainda eram marcadas por um misto de área rural com a urbani-zação em crescimento.44 Ou seja, em comparação a esses movimentos, mesmo que o destino fosse o centro urbano, essa primeira geração de migrantes, provavelmente, estabilizou-se socialmente nas regiões do entorno, uma vez que ali estavam as lavouras e as áreas de criação de animais, destinadas ao abastecimento alimentar da cidade. Conhecedores do trabalho braçal no campo, é possível que ali tenham encontrado seus primeiros empregos.

Não há pesquisas que apontem numericamente a quantidade, origem, local de moradia e ofícios dos migrados. E as poucas pesquisas sobre o trabalho dos negros no centro da cidade não conseguiram identificar a origem dos mesmos. Fabiane Popinigis, ao analisar os proces-sos-crimes, se debruçou sobre o ofício dos comerciantes e de seus empregados no centro da cidade do Rio de Janeiro, no período da Primeira República. Apesar de ter encontrado uma parcela considerável de trabalhadores negros no comércio, não há informações sobre a ori-gem deles.45 O mesmo parece ter sido o caso de Velasco e Cruz ao pesquisar os estivadores de café no porto do Rio de Janeiro. Mesmo tendo analisado as fichas dos sindicalizados, em sua maioria pretos e pardos, não há, pelo menos em suas pesquisas publicadas, qualquer indício de migrantes do Vale do Paraíba.46 Entre os marinheiros da Armada, Álvaro Nascimento também não conseguiu identificar migrantes originários do vale do café.47 E mesmo na análise das associações de trabalhadores recém-ingressados após a abolição, Marcelo Mattos tampouco encontrou os migrados.48

A partir das questões levantadas, o próprio crescimento do subúrbio e da Baixada Flu-minense pode ser repensado, não sendo apontado como um resultado direto da reforma Pereira Passos e consequente expulsão da população pobre do centro da capital federal, como afirmava José Murilo de Carvalho.49 Rafael Mattoso, por exemplo, demonstrou que o cresci-mento dessas regiões foi conectado à dinâmica própria de atração e não apenas um resultado

44 MARQUES, Leonardo. Por aí e por muito longe: dívidas, migrações e os libertos de 1888. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009. p. 102-103.45 POPINIGIS, F. Proletários de casaca: trabalhadores no comércio (Rio de Janeiro, 1850-1920). Campinas: Unicamp, 2007.46 CRUZ, Maria Cecília Velasco e. Tradições negras na formação de um sindicato: Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café, Rio de Janeiro, 1905-1930. Afro-Ásia, n. 24, p. 243-290, 2000.47 NASCIMENTO, Álvaro. A ressaca da marujada: recrutamento e disciplina na Armada Imperial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001.48 MATTOS, Marcelo Badaró. Escravizados e livres: experiências comuns na formação da classe trabalhadora carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2008; MATTOS, Marcelo Badaró. Trajetórias entre fronteiras: o fim da escravidão e o fazer-se da classe trabalhadora no Rio de Janeiro. Revista Mundos do Trabalho, v. 1, n. 1, p. 51-64, jan./jun. 2009.49 De acordo com Carvalho “a população que se comprimia nas áreas afetadas pelo bota-abaixo de Pereira Passos teve ou de apertar-se mais no que ficou intocado, ou de subir os morros adjacentes, ou de deslocar-se para a Cidade Nova e para os subúrbios da Central” (CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, op. cit., p. 40).

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da expulsão de pessoas do centro do Rio de Janeiro.50 O bairro de Madureira, por exemplo, suscitava interesse da população por conta do seu amplo comércio, enquanto Bangu crescia demograficamente em virtude da característica fabril.51

A migração não é um fenômeno exclusivo das sociedades em desenvolvimento, uma vez que sociedades pré-industriais também a experimentaram. A movimentação de camponeses no Brasil foi uma constante desde os primeiros séculos e não ocorreu apenas após a abolição. Sheila de Castro Faria dedicou alguns capítulos em sua tese à migração de livres no interior do Brasil.52 A autora conseguiu identificar, por exemplo, que a migração entre descendentes de libertos era notória nos séculos XVIII e XIX. Do mesmo modo, Carlos Lima percebeu que “é perceptível uma tendência dos homens não brancos livres e libertos emigrar. [...]”.53 Para o autor, migraram para regiões onde havia a possibilidade de contrair matrimônio, aliada à possibilidade de obtenção de terra.54

Outro dado que deve ser analisado é o custo da migração. Para aquele que decide migrar, em primeiro lugar, há o desconhecido. Por mais que pessoas de outras regiões tenham vindo até a fazenda propor um trabalho em outro município, ou mesmo que notícias de jornais deem conta de empregos em diversas regiões do estado, a decisão de migrar é coletiva, fami-liar e normalmente dispendiosa. Basta lembrar que não há qualquer indício ou informação do quanto será necessário gastar até receber o primeiro salário. A segunda e a terceira gera-ções de migrados possivelmente não sofriam do mesmo problema. O custo da mudança des-sas duas gerações é sempre menor, pois o que migrou primeiro tende a ter uma condição de vida melhor, já conhece onde estão os empregos, volta para o local de origem e coopta apenas aqueles para os quais ele sabe que encontrará ocupação, e, por fim, cede sua casa para um primeiro momento. Tudo isso pode diminuir o custo das gerações posteriores de migrados.

Pouco ou quase nada se sabe sobre o custo real da primeira, segunda ou terceira geração de migrados. E por isso devem também ser levados em conta os fracassos, pois apesar de algumas pessoas terem sucesso, nem sempre a migração ocorria como planejado. Dona Flo-rentina Seabra, irmã de Manoel, nascida no ano de 1920, conta que durante sua infância, seu tio Hermegildo foi para Nova Iguaçu e por lá casou. Ficou pouco tempo casado, pois sua esposa acabou largando-o. De acordo com a depoente, após o acontecido “endoideceu e voltou pra cá. Aí ficou aí com a gente”.55

50 MATOSO, Rafael. Echos de resistência suburbana: uma análise comparativa das contradições socioespaciais cariocas a partir das experiências dos moradores da Freguesia de Inhaúma (1900-1903). Dissertação (Mestra-do) — Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.51 MARTINS, Ronaldo Luiz. Mercadão de Madureira: caminhos do comércio. Rio de Janeiro: Condomínio do Entreposto Mercado do Rio de Janeiro, 2009.52 FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 111-112.53 LIMA, Carlos A. M. Pequena diáspora: migrações de libertos e de livres de cor (Rio de Janeiro, 1765-1844). Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 6, n. 2, p. 99-110, 2000.54 Ibid., p. 109.55 Entrevista de Florentina Seabra, 2003. (AMC).

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Migração para a região metropolitana

Vô Dionísio, assim denominado pelos três netos entrevistados, saiu da Fazenda São José da Serra, nos primeiros anos após a abolição, e fez uma “rocinha” na propriedade ao lado, denomi-nada “empreitada”, ambas localizadas no município de Valença, na região do Vale do Paraíba fluminense. Ali criou e casou boa parte de seus filhos. De acordo com o neto, Manoel Seabra, “ele era carreiro e tinha as pernas tortas de tanto carregar peso”.56 Além disso, “Dionísio era maestro e tocava clarinete, mas é lembrado por netos e bisnetos como um homem terrível, que tratava os filhos com mão de ferro, a figura típica do ‘pai senhor’”.57 Seus descendentes não tiveram as mesmas oportunidades de trabalho e de acesso à terra. Ao longo dos anos de 1920, os filhos homens de Dionísio, nascidos após a abolição, Manoel (20/1/1899), José (23/9/1903) e Joaquim (3/3/1908), abandonaram a fazenda para trabalhar na plantação e colheita de laranja, no antigo município de Iguassu, localizado na Baixada Fluminense.58 E após longas investidas na região, retornaram para levar seus irmãos mais novos.59

Seguindo o procedimento de investigar as trajetórias de descendentes diretos de ex-es-cravos do Vale do Paraíba, foram analisadas as informações de 16 entrevistas, arquivadas no Laboratório de História Oral e Imagem da UFF, realizadas entre 1994 e 2001, por Ana Lugão Rios. A fim de produzir uma amostra significativa de indivíduos, foram contabili-zadas todas as pessoas mencionadas nos relatos — exceto as que morreram na infância ou adolescência — e foram considerados como migração apenas os deslocamentos duradouros para fora do município onde o antepassado escravo vivera. Os depoimentos foram coletados em diversos municípios do Vale do Paraíba e proximidades — Valença, Paraíba do Sul, Bananal, Juiz de Fora e Bias Fortes. A partir dessas entrevistas genealógicas, foram contabi-lizadas 466 pessoas mencionadas, todas nascidas entre os anos de 1850 a 1959. Desse total, 137 (29,4%) migraram do município de origem, em contraposição aos que tiveram como opção a permanência: 329 (70,6%).

Apesar de a estabilidade ter sido a norma entre os que vivenciaram a passagem da escravi-dão para a liberdade, como visto anteriormente, de acordo com as entrevistas, boa parte dos nascidos entre 1850 e 1869 experimentaram algum tipo de migração. Nesse primeiro corte,

56 A genealogia familiar qualitativa de Dionísio foi construída a partir de três entrevistas realizadas com seus netos moradores da Comunidade de Remanescentes de Quilombos de São José da Serra: Dona Zeferina (1995); Manoel Seabra (1998, 2003 e 2005); e Florentina Seabra do Nascimento (2003 e 2006) — publicada em MATTOS, Hebe. Marcas da escravidão: biografia, racialização e memória do cativeiro na história do Bra-sil. Tese (Professor Titular) — Departamento de História, Universidade Federal Fluminese, Niterói, 2004.57 Ibid.58 O antigo município de Iguassu compreendia os atuais municípios emancipados de: Japeri, Duque de Ca-xias, Nova Iguaçu, São João de Meriti, Queimados, Nilópolis, Mesquita e Belford Roxo.59 Manoel: livro IV, fl. 181, termo 8 — novembro de 1898. Arquivo Eclesiástico de Santa Isabel do Rio Preto (Aesirp); José: livro V, fl. 37, termo 4 — 23 de setembro de 1903, Aesirp; Joaquim: livro V, fl. 89, termo 73 — 3 de março de 1908, Aesirp.

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notou-se que em sua maioria eram homens, provavelmente solteiros, que se enquadravam na primeira tipologia de Ana Rios, ou seja, migraram dentro do interior do Estado, de fazenda para fazenda.60

A migração definitiva, para regiões metropolitanas e periféricas da cidade do Rio de Ja-neiro, esteve mais presente nas trajetórias de vida dos nascidos após 1888. De acordo com os depoimentos coletados, esse fenômeno iniciou-se em meados da década de 1920, tendo o ápice em 1930 e finalizado em meados de 1940. A maioria dos migrantes era do sexo masculino, e no auge do processo de migração, 1930, tinham entre 10 e 30 anos, exatamente as idades de Manoel, José e Joaquim, filhos de Dionísio. Isso significa dizer que os homens nascidos entre os anos de 1900 e 1919, provavelmente, não encontraram as mesmas condições de vida dos an-cestrais nas fazendas de café em sua fase jovem, e por isso optaram pela estratégia da migração definitiva, como apontado anteriormente por Ana Rios. Já as mulheres migrantes são mais ex-pressivas entre as nascidas nos anos de 1910-19 e 1920-29. Muitas delas, a exemplo de Leonor, outra entrevistada pela autora, migraram seguindo parentes.61 Desse modo, apesar do número maior de homens migrando, preliminarmente se supõe que as mulheres também migraram após a estabilização dos cônjuges e/ou parentes do sexo masculino.

A Baixada Fluminense, Região Metropolitana do Rio de Janeiro, aparece como o destino preferido dos filhos e netos de ex-escravos do Vale do Paraíba. De acordo com as entrevistas anteriormente mencionadas, das pessoas que tiveram alguma experiência de deslocamento em sua trajetória, 39,4% não tiveram um destino específico, espalhando-se quase sempre por centros em ascensão como, por exemplo, a cidade mineira de Juiz de Fora; todavia, as 60,6% restantes direcionaram-se para a Baixada.62

Tomando mais uma vez a década de 1930 como o momento de ápice da migração para essa região, entre os mais idosos, nascidos entre 1850 e 1879, e que provavelmente vivencia-ram a escravidão, 100% dos que tiveram alguma experiência de migração foram para a Bai-xada Fluminense. Semelhante trajetória foi vivenciada por Dionísio e sua esposa, Zeferina. Após seus filhos se estabilizarem em Cabuçu — bairro do município de Nova Iguaçu — eles se mudaram para a Baixada Fluminense com idades avançadas, pois, como apontam seus netos, ali havia facilidades geradas pelo crescimento urbano, como, por exemplo, o Hospi-tal de Iguassu.63 No entanto, é a migração de jovens a que mais chama atenção. Foram os nascidos entre 1900 e 1929 que mais optaram por residir na Baixada Fluminense. Como a experiência de migração geralmente ocorria quando essas pessoas estavam ou em fins da adolescência ou, o mais comum, em torno dos 20 anos, pode-se dizer que os nascidos entre 1890 e 1929 incrementaram as migrações para a Baixada entre 1910-1949, caindo significa-tivamente esse movimento nas décadas de 1950 e 1960 entre os nascidos entre 1930 e 1949.

60 Podem estar inseridos na primeira trajetória de migração apontada por Ana Rios anteriormente.61 Entrevista de Izaquiel Inácio (AMC).62 Acervo Memórias do Cativeiro (AMC).63 Entrevista de Florentina Seabra (AMC).

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Se, ao longo das primeiras décadas da recém-inaugurada República, os jovens descen-dentes de escravos do Vale do Paraíba encontravam dificuldades em obter empregos nessa região, em virtude da desvalorização do café no cenário internacional e da entrada maciça de criação de gado e plantação de eucalipto — que necessitava cada vez menos de mão de obra — a Baixada Fluminense começava a exportar suas primeiras laranjas. A produção de cítricos, em pequenas chácaras, começou timidamente na década de 1920, tendo seu auge em fins de 1940.64 De acordo com o censo do mesmo ano, em Nova Iguaçu, entre as 1.529 propriedades, havia 1.398 estabelecimentos rurais declarados como produtores de laranjas. Isso significa dizer que 92% das propriedades localizadas no município estavam direcio-nados a essa produção.65 Em comparação a outras atividades, a laranja demonstrou um crescimento significativo na tonelagem de produção em sete anos, sem contar a valorização em sua importância econômica no Estado.66 Os incentivos às exportações de laranja tiveram início na década de 1920, momento no qual a economia fluminense necessitava se reerguer economicamente após o declínio na produção de café.67 Em virtude do crescimento urbano, aliado aos incentivos governamentais tanto na política de saneamento quanto no incentivo à exportação, tornou-se necessário cooptar mão de obra para fazer subsistir esse novo em-preendimento.68

No final da Primeira República, ocorreu uma migração em massa para o antigo muni-cípio de Iguassu. Em comparação aos municípios do Vale do Paraíba, o crescimento demo-gráfico da Baixada Fluminense foi vultoso. De acordo com o gráfico 1, no recenseamento de 1872 havia, na região, 31.251 pessoas, o que não mudou drasticamente para o seguinte, de 1920, que contabilizou 33.396. No Relatório de Estatística Econômica e Financeira do Estado do Rio de Janeiro, de 1931, a população de Nova Iguaçu atingiu o número de 42.408 habitantes.69 Como visto, a partir da década de 1920 já é possível apontar um aumento demográfico no município de Nova Iguaçu. Contudo, o maior salto aconteceu na década seguinte, no censo de 1940, quando se verificou um crescimento populacional de mais de 300% em apenas 20 anos.70

64 PEREIRA, Waldick. Cana, café e laranja: história econômica de Nova Iguaçu. Rio de Janeiro: FGV, 1977. p. 115.65 IBGE. Censo de 1940.66 Jornal Correio da Lavoura, 4 mar. 1937, apud NASCIMENTO, Álvaro. Francisco Madeira, a visibilidade de um comerciante negro no pós-abolição: economia e mobilidade em Nova Iguaçu. In: SIMPÓSIO NA-CIONAL DE HISTÓRIA, XVII. 2013. Natal, RN. Anais... São Paulo: Anpuh, 2013.67 PEREIRA, Waldick. Cana, café e laranja: história econômica de Nova Iguaçu, op. cit., p. 115.68 SOUZA, Sonali Maria de. Da laranja ao lote: transformações sociais em Nova Iguaçu, 1992, op. cit.69 Ibid.70 Censos IBGE: 1872, 1920, 1940.

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Gráfico 1População por ano segundo os censos. Paraíba do Sul, Valença, Vassouras e Iguassu.

Fonte: IBGE. Censos de 1872, 1890, 1920 e 1940.

Na década de 1920 a população da Baixada Fluminense aumentou significativamente, e, concomitantemente, os dados dos registros civis de nascimento e de óbitos expressaram esse mesmo processo. De acordo com o gráfico 2, nota-se que, apesar da existência de sub--registros — problema enfrentado até os dias de hoje no Brasil — no município de Nova Iguaçu a busca pelo registro de nascimento aumentou a partir do ano de 1914. A partir dessa fonte, de todo modo, é possível levantar alguns indícios da configuração e movimentação populacional no Sudeste.

Entre os registros civis de nascimento pesquisados, encontrei três tipos. O primeiro é o realizado dentro do prazo estipulado por lei, ou seja, até 60 dias contados a partir do nascimento da criança.71 O segundo relaciona-se às crianças registradas tardiamente, incen-tivadas por novas legislações que anulavam multas incididas sobre o atraso. E por último, os registros de pessoas que durante a adolescência ou na fase adulta procuraram o cartório espontaneamente e declararam seu nascimento.72

71 Para uma melhor leitura das leis que regiam o registro civil no Brasil após 1889, ver: SENRA, Nelson de Castro. História das estatísticas brasileiras. Rio de Janeiro: IBGE, 2006. v. 2.72 No dia 18 de fevereiro de 1931, o Decreto no 19.710 tornou obrigatórios os registros de nascimentos, não exigindo pagamento de multas nem, tampouco, a necessidade de qualquer justificativa para o registro tardio. Nos anos de 1934 e 1939, foram coletados 540 registros que mencionavam esse decreto. No entanto, nada parece ter incentivado mais a procura pelo registro civil do que o Decreto no 1.116, de 24 de fevereiro de 1939, pois somente nesse ano foram realizados 1.187 registros tardios.

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Gráfico 2 Registros civis de nascimentos e óbitos em números absolutos.

Município de Nova Iguaçu, 1889-1939.

Fonte: 1o Ofício de Registro Civil de Pessoas Naturais do Município de Nova Iguaçu.

No primeiro caso, das crianças registradas no tempo correto, as informações referentes ao local de nascimento do pai e da mãe não são tão precisos. Por exemplo, se o pai e/ou mãe nasceram na região Norte, Sul ou do Vale do Paraíba do estado do Rio de Janeiro, é apenas declarada sua naturalidade como sendo “neste estado”. Todavia, o mesmo não ocorre com os registros tardios, compreendendo os de crianças e os “autodeclarados”.73 A riqueza de detalhes do segundo e do terceiro tipos de registros é superior à do primeiro, uma vez que informam, além do local preciso de nascimento, as profissões exercidas na Baixada (no caso do terceiro). Em virtude dessas qualidades, neste artigo, tanto os registros tardios quantos os “autodeclarados” compõem a amostra que permitiu a análise da migração dos trabalhadores pretos e pardos.

Entre o rol de pessoas registradas tardiamente no cartório de Nova Iguaçu, boa parte era proveniente de diversos municípios e, inclusive, de outros estados. Entre os anos de 1889 e 1939, dos 957 registros de nascimentos tardios de crianças, 340 (35%) foram declaradas como nascidas fora do município (tabela 1).74 As crianças declaradas como brancas haviam nascido principalmente, nessa ordem, na capital federal, nos municípios que compõem o

73 Na falta de uma terminologia específica, neste artigo, optou-se por denominar as pessoas que buscaram registrar o próprio nascimento nos cartórios como “autodeclarados”. Mesmo com a presença do registrado no cartório, não é possível afirmar se a cor assentada foi declarada por ele ou apenas assinalada de forma “arbi-trária” pelo cartorário. Contudo, o que torna essa documentação importante é a ação do indivíduo na busca do primeiro registro de identidade civil.74 Infelizmente, em virtude da natureza do registro, não é possível localizar a origem dos pais, uma vez que esse dado normalmente não é informado. Portanto, em registros de crianças nascidas na Baixada, não há referência ao local específico do nascimento do pai.

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Vale do Paraíba e no Nordeste.75 Tanto as crianças pardas quanto as pretas eram majorita-riamente naturais do Vale do Paraíba, com uma boa parcela também do Distrito Federal, seguindo-se o estado de Minas Gerais e apenas três pardos do Nordeste. Dos que vieram de outros estados, destaca-se o percentual identificado como brancos vindos do Nordeste. Desse modo, esses registros demonstram não apenas uma migração familiar, mas também que elas provinham principalmente do interior do estado do Rio de Janeiro, sendo que entre pardos e negros o percentual dos originários do Vale é o mais relevante para este artigo.

E qual é a origem dos migrantes jovens e adultos que optaram residir na região da Bai-xada Fluminense? Na tabela 2 encontram-se os dados referentes às pessoas que buscaram o registro civil para declarar seu próprio nascimento, os “autodeclarados”. Nela, é possível notar que, independentemente da cor, o Vale da Paraíba aparece como o principal local de origem. Aqueles registrados como brancos e pardos provinham principalmente, nesta

75 Apesar da possível variação semântica das categorias de cor — “branca”, “pardo” e “preto” — ao longo de 50 anos, neste artigo optei por utilizá-las como são apresentadas na documentação. Para uma melhor discussão sobre a mudança de significados, ao longo dos anos, ver: CORREIA, Margarita. A discriminação racial nos dicionários de língua: tópicos para discussão, a partir de dicionários portugueses contemporâneos. Revista Alfa. v. 50, n. 2, p. 155-171, jul./dez. 2006.

Tabela 1Região de nascimento das crianças migrantes (%) registradas tardiamente na Baixada Fluminense,

de acordo com a cor. Município de Nova Iguaçu, 1919-1939.

Branca Parda Preta Total geralAbs. % Abs. % Abs. % Abs. %

Regiões do país

Norte 4 2,4 - - - - 4 1,2Centro-Oeste - - - - - - - -Nordeste 25 14,9 3 2,7 - - 28 8,2Sul - - - - - - - -Subtotal 1 29 17,3 3 2,7 - - 32 9,4

Estados do Sudeste

Minas Gerais 7 4,2 7 6,2 9 15,0 23 6,7Espírito Santo - - 2 1,8 - - 2 0,6São Paulo 3 1,7 5 4,5 - - 8 2,3Subtotal 2 10 5,9 14 12,5 9 15,0 33 9,6

Estado do Rio de

Janeiro

Capital federal 55 32,7 29 25,9 8 13,4 92 27,1Região Metropoli-tana e interior 20 11,9 10 8,9 4 6,6 34 10,0

Vale do Paraíba 54 32,2 56 50,0 39 65,0 149 43,9Subtotal 3 129 76,8 95 84,8 51 85,0 275 81,0Total geral 168 100 112 100 60 100 340 100

Fonte: 1o Ofício de Registro de Pessoas Naturais do Município de Nova Iguaçu.

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Tabela 2Região de Nascimento dos “autodeclarantes” migrados para a Baixada Fluminense.

Município de Nova Iguaçu, 1919-1939.

Branca Parda Preta TotalAbs. % Abs. % Abs. % Abs. %

Regiões do país

Norte 4 1,6 3 1,3 − − 7 1,1Centro-Oeste 1 0,4 1 0,4 − − 2 0,3Nordeste 72 29,1 52 22,4 5 3,4 129 20,6Sul 3 1,2 2 0,9 1 0,7 6 1,0Subtotal 1 80 32,3 58 25,0 6 4,1 144 23,0

Estados do Sudeste

Minas Gerais 17 6,9 17 7,3 11 7,5 45 7,2Espírito Santo 2 0,8 1 0,4 3 2,1 6 1,0São Paulo 6 2,4 3 1,3 − − 9 1,4Subtotal 2 25 10,1 21 9,0 14 9,6 60 9,6

Estado do Rio de Janeiro

Capital federal 36 14,6 31 13,4 6 4,1 73 11,6Região Metropolita-na e interior 29 11,8 27 11,7 18 12,2 74 11,8

Vale do Paraíba 77 31,2 95 40,9 103 70,0 275 44,0Subtotal 3 142 57,6 153 66,0 127 86,3 422 67,4Total geral 247 100 232 100 147 100 626 100

Fonte: 1o Ofício de Registro de Pessoas Naturais do Município de Nova Iguaçu.

ordem, de municípios do Vale do Paraíba, da região Nordeste, da capital federal e de outras localidades do interior do estado do Rio de Janeiro. Já os migrantes identificados no registro civil como pretos eram originários principalmente, nesta ordem, de municípios do Vale do Paraíba, de outros municípios do interior do estado do Rio de Janeiro, e de Minas Gerais. No conjunto, portanto, as correntes migratórias para a Baixada eram basicamente duas: do próprio Sudeste — principalmente o Vale do Paraíba — e do Nordeste.

Desde o final do século XIX a população do sertão nordestino sofreu com intensos perí-odos de seca. Migraram para diversas áreas, primeiro para a região Norte e, posteriormente, incentivados pelo governo, mudaram-se para o Sudeste.76 Como se observa nas tabelas, mui-

76 Há toda uma gama de bibliografia que se dedica ao tema, ver: GRAHAM, D. H.; FILHO, S. B. H. Mi-grações internas no Brasil (1872-1970). São Paulo: Instituto de Pesquisas Econômicas, 1984; FERREIRA, Lusirene Celestino França. Nas asas da imprensa: a repercussão da abolição da escravatura na província do Ceará nos periódicos do Rio de Janeiro (1884-1885). Dissertação (Mestrado em História) — Departamento de Ciências Sociais, Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, MG, 2010; BASSANEZI, Maria Silvia C. Beozzo. Migrantes no Brasil da segunda metade do século XIX. In: ENCONTRO NACIO-NAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 12., Caxambu. Anais... Belo Horizonte: Abep, 2000; NOZOE, Nelson. Os refugiados da seca: emigrantes cearenses, 1888-1889. São Paulo: NEHD, 2003; SOUZA, Itamar

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tos migraram também para a Baixada, contribuindo para a formação da população local. Como se sabe, no Nordeste a população livre, negra e parda, era mais antiga — já que o Su-deste concentrou a maior parte dos escravos no século XIX, sobretudo na segunda metade77 e, portanto, mais miscigenada, não só com brancos, mas também com índios.

O mais importante a ser aqui destacado é a agência da população preta e parda na bus-ca pelo seu reconhecimento legal e de sua família, através da burocracia do Estado. Ao se registrar, na maior parte dos casos na fase adulta, muito provavelmente o declarante já era residente da região e contraíra matrimônio, o que representava certa estabilidade. Alexan-dre Gonçalves Barboza Júnior, lavrador casado com Adalgiza Travassos Barboza, natural de Mar de Espanha, no estado de Minas Gerais, na região do Vale do Paraíba, registrou no dia 14 de setembro de 1934 seus três filhos: José Maria Barboza (26/9/1917), Geraldo Travassos Barboza (5/12/1918) e Margarida Maria Barboza (2/9/1919). Aparentemente mi-grou inicialmente sozinho, e só posteriormente trouxe esposa e filhos, registrando todos no mesmo dia.78 Pelo fato de o registro civil de nascimento do “autodeclarante” possivelmente demonstrar sua estabilidade na região, é lícito supor que ele possa ter chegado ou no mesmo mês, ou em anos anteriores à chegada de sua família.

São diversos os casos que consegui acompanhar desde o nascimento, no Vale do Paraíba, até o registro na Baixada. Encontrei, por exemplo, homens na fase adulta e provavelmente solteiros que migraram para a Baixada entre os anos de 1934 e 1939, entre os quais destaco o caso de Gil. No dia 14 de dezembro de 1917, Agostinho Alves de Amorim e sua esposa, Brígida Alves de Amorim, batizaram Gil na igreja de Santa Isabel do Rio Preto, distrito do município de Valença, nascido no dia 17 de setembro do mesmo ano.79 Ele provavelmente migrou ainda jovem para a Baixada Fluminense, pois aos 22 anos se dirigiu ao Cartório de Registro Civil de Nova Iguaçu para declarar seu nascimento. Já se autodenominando Gildo Alves de Amorim, deixou expressa sua cor, preta, assim como o nome dos avós paternos: Álvaro de Amorim e Eliza de Amorim; e maternos: Pedro Américo de Amorim e Maria da Conceição.80

Pode-se apontar a busca mais incessante, por esses migrantes, do registro civil de nasci-mento como consequência de sua estabilidade, da necessidade de formalizar seu emprego. O aumento de “autodeclarantes” em 1934 pode ser explicado em parte pela promulgação e divulgação de novos direitos conquistados pelos trabalhadores através da constituição da-quele ano. Nada, porém, parece ter incentivado mais os empregadores a regularizarem seus proletários do que a criação da Justiça do Trabalho, no mesmo ano.81

de; FILHO, João Medeiros. Os degredados filhos da seca. Petrópolis: Vozes, 1984; THEOPHILO, R. Seccas do Ceará (segunda metade do século XIX). Fortaleza: Louis Cholowiesçki, 1909.77 SALLES, Ricardo. E o vale era escravo: Vassouras, século XIX, senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.78 Registro Civil de Nascimento de Nova Iguaçu (RCN), livro 49, reg. 6222, 6223 e 6224, de 14/9/1934.79 Arquivo Eclesiástico da Igreja de Santa Isabel do Rio Preto, livro: s/n, assento, 226, p. 185, de 1917 (Aesirp).80 Registro Civil de Nascimento de Nova Iguaçu (RCN), livro 60, reg. 14.880, do ano de 1939.81 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: um longo caminho. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

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O cruzamento dessa experiência com os demais registros civis demonstra que nos pri-meiros anos de migração houve uma predominância masculina na Baixada Fluminense. Em 1934, as mulheres correspondiam a apenas 15% dos migrados, para 85% de homens. Já no ano de análise seguinte, 1939, a quantidade de mulheres aumentou 32% para 68% de ho-mens. A razão de masculinidade entre todos os migrantes é muito maior em 1934, atingindo um número de 594,7, e no ano de 1939 passa para 206,5. Apesar de um número maior de homens migrando, é mister salientar que, por mais que os homens tenham sido os pioneiros na migração, as mulheres também fizeram esse empreendimento. Não é novidade a migra-ção desse grupo mesmo antes da abolição, pois, de acordo com Jean Lebrum:

As mulheres do século XIX movem-se mais do que se pensa. Participam das migrações camponesas vindas como domésticas ou costureiras, burguesas médias contratadas como preceptoras, não raro muito longe de seu país. Elas viajam e (às vezes) exploram. O mundo muda, modificam-se as fronteiras, mas também os sexos.82

Ou seja, nem sempre as mulheres tenderam a migrar na companhia ou em função dos seus cônjuges. Sua migração tem características próprias, nem sempre associadas ao processo desenvolvimentista de uma região.

Conclusão

A migração em massa não ocorreu no imediato pós-abolição. De acordo com a análise dos registros civis de nascimento, a maior parte dos migrantes chegou ao final da década de 1930. Ao cruzar essa informação com as entrevistas realizadas por Ana Rios, é possível afirmar que a migração definitiva do Vale do Paraíba para a Região Metropolitana da cidade do Rio de Janeiro ocorreu entre as décadas de 1920 e 1940 e foi empreendida por jovens — nascidos nos anos posteriores à abolição — em sua maioria homens e solteiros. Tomando a migração como estratégia ativa de melhora de vida, e não como um resultado da deses-truturação familiar, é possível observar outra configuração nesse processo vivenciado por descendentes diretos ou não de ex-escravizados: optaram por residir nas periferias da cidade do Rio de Janeiro, com destaque para área metropolitana, conhecida como Baixada Flumi-nense — uma região em ascensão onde era possível aliar o trabalho na lavoura com outros setores também importantes para a mobilidade social, como as escolas.

82 LEBRUN, Jean. Palavras de mulheres. In: PERROT, Michelle. Mulheres públicas. São Paulo: Unesp, 1998 apud SILVA, Lucia Helena Oliveira. Construindo uma nova vida: migrantes paulistas afrodescendentes na cidade do Rio de Janeiro no pós-abolição (1888-1926). op. cit., p. 104.

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Contudo, muitas questões ainda não foram respondidas sobre a história das migrações negras no Brasil, tais como: o papel da imprensa tanto na coibição da migração quanto no incentivo, nas décadas seguintes; a disputa de mercado de trabalho com os regionais; os conflitos gerados por essa chegada em massa de trabalhadores; os locais de moradia; o acesso à educação pelos migrantes, entre outras questões que abordaremos em artigos futuros. Ou seja, ainda há muito sobre o que pesquisar nas experiências das migrações negras do pós--abolição brasileiro.

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Migrações negras no pós-abolição do sudeste cafeeiro (1888-1940)

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El urbanismo humanista y la “policía española” en el Nuevo Reino de Granada, siglo XVI

Carlos José Suárez García*

RESUMEN El proyecto urbano europeo que se desarrolló durante el siglo XVI en América estaba fun-damentado en la ciudad como la mayor expresión de la civilización occidental. Este articulo presenta la genealogía urbana de los “pueblos de indios” construidos para concentrar a los indígenas y enseñarles la religión católica. El desarrollo de las formas puede trazarse median-te la comparación de diversos tratados urbanos considerados “humanistas”, que muestran a la ciudad como un medio para la expresión de comportamientos específicos; así, la ciudad era un espacio pedagógico y emocional para controlar la población indígena. Como práctica de buen gobierno, los “pueblos de indios” condensaban materialmente los principios de la “policía española”. Además de la origen “humanista” de los pueblos impuestos en América, este proyecto buscaba homogeneizar las creencias y comportamientos de los indígenas. Palabras clave: “Pueblos de indios”; urbanismo colonial; doctrina católica.

ABSTRACTThe European urban project established in America during the sixteenth-century deemed the city as the highest expression of civilization. This article shows the urban genealogy of the American “pueblos de indios” (Indian villages), built to concentrate the native population, and to teach them the Catholic doctrine. The urban form could be traced by comparing several architectural treatises considered “humanistic” that show the city as a medium to express a specific behavior; thus, the city was a pedagogical and emotional space to control the indigenous population. As a practice of good governance, the “pueblos de indios” materially condensed the “Spanish police” principles. Besides the humanistic background of the towns imposed in America, the project sought to homogenize the natives’ behavior and beliefs. Keywords: “pueblos de indios”; Colonial urbanism; Catholic doctrine.

Artículo recibido em 23 de junio de 2014 y aprobado en 29 de diciembre de 2014.Investigación financiada por CNPq (2011) y por Faperj (2012).* Master en Antropología en la Universidad Federal Fluminense (UFF) y investigador asociado en el Centro Asociado de Estudios Sociales de la Universidad Nacional de Colombia. Bogotá, Cundinamarca, Colombia. E-mail: [email protected].

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Durante la primera mitad del siglo XVI se fundaron las “ciudades de españoles” y las actuales capitales de Hispanoamérica, sobre las bases de una larga tradición urbanística europea; en la segunda mitad predominó una política de concentración de los nativos en “pueblos de indios”.1 Propongo estudiar en este artículo la genealogía de las formas urbanas para la concentración de los indígenas y su relación con los discursos morales y la “policía urbana”. La genealogía de la ciudad ideal que se impuso en el Nuevo Reino de Granada se puede rastrear hasta el siglo XIV con las obras de pensadores “humanistas” como Francesc Eiximenic, Rodrigo Sánchez de Arévalo, León Bautista Alberti y Pietro Cataneo. Las in-fluencias formales del urbanismo “humanista” europeo aparecen en el proyecto español, especialmente en las Ordenanzas de Felipe II de 1573, donde se reforzaba el carácter evange-lizador de los “pueblos de indios”. Las interpretaciones locales de las Reales Cédulas y Orde-nanzas promulgadas durante el siglo XVI se reflejaban en los Acuerdos de la Real Audiencia de Santafé y las obras de los primeros obispos del Nuevo Reino de Granada, los franciscanos Juan de los Barrios y Luis Zapata de Cárdenas. Finalmente, las Visitas a la Provincia de Tun-ja, efectuadas por el oidor Luis Henríquez entre 1598 y 1605, consolidaron el nuevo orden territorial mediante la nucleación y conformación de veinticuatro “pueblos de indios”, los cuales persisten en la actualidad.

Si bien la definición del término “policía” no se estableció formalmente hasta 1611 en el diccionario de Covarrubias como la vida urbana y la política,2 en los documentos españoles del siglo XVI la expresión “vivir en policía” definía el buen gobierno y justicia de los indí-genas. El fraile agustino Jerónimo Román y Zamora (1536-1597) definió la “policía” en su texto República de Indias, idolatrías y gobierno en México y Perú Antes de la Conquista (1575) como una virtud del príncipe observable en todas las sociedades:

Las buenas leyes dos efectos solamente pretenden inducir en la policía: el uno es enderezar a todo hombre y miembro de ella, como se debe haber con toda la comunidad y Republica, y en cualquier persona della, haciendo bien. Y el segundo es impedir que los hombres se abstengan de hacer mal y de toda injuria a toda la comunidad y a cualquier parte o miembro della.3

1 MORSE, Richard. A evolução das cidades latino-americanas. Cadernos CEBRAP, São Paulo, n. 22, 1975; MORSE, Richard. A prolegomenom to Latin America urban history. The Hispanic American Historical Review, Durham, v. 52, n. 3, p. 359-394, 1972; ROMERO, José Luis. América Latina, as cidades e as idéias. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.2 COVARRUBIAS, Sebastián. Tesoro de la lengua castellana, o española. Madri: Luis Sánchez impressor, 1611: “Termino ciudadano y cortesano. Consejo de policía, el que gobierna las cosas menudas de la ciudad, y el adorno della y limpieza. Politico, el urbano y cortesano. Politica, la ciencia y modo de gobernar la ciudad y republica”. p. 1.221.3 ROMÁN, Jerónimo. Repúblicas de Indias idolatrías y gobierno en México y Perú antes de la conquista. Madri: Victoriano Suárez editor, 1897, t. 1, p. 275.

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Este cronista observó que las sociedades indígenas de México y Perú castigaban dura-mente el adulterio pero toleraban la mancebía entre solteros como prácticas de buena “poli-cía”. Ésta denotaba también el cuidado en el trabajo y el buen orden en el mercado, virtudes excelsas que poseían los indígenas del Perú:

Presidía este mercado un juez, el cual miraba que nadie se hiciese agravio, y tasaba los precios, y el conocía de cualquier cosa que acaeciese en el mercado. En esta provincia habia mucha policia, porque allí habia plateros y pintores; y maestros de labrar cosas de plumas; las mujeres sabian hilar, tejer, y otras cosas que pertencen a las mujeres. Eran leyes muy santas y buenas, que si las quisieramos comparar a muchas de las nuestras, no discreparíamos mucho.4

Estas costumbres “virtuosas” observadas por los primeros cronistas podían ser preserva-das por la Corona, como aparece en la Real Cédula del 6 de agosto de 1555: “Mandamos que las leyes y buenas costumbres que antiguamente tenían los indios para su buen gobierno y policía, y sus usos y costumbres sean observadas y guardadas después que son cristianos”.5 Como virtud de orden, buen gobierno y harmonía de los habitantes, la “policía” se contra-ponía a la holgazanería, como estipulaba la Real Cédula del 18 de enero de 1552.6 Joseph de Acosta (1540-1600) dividió en dos su Historia Natural y Moral de las Indias (1590): su-perstición, ritos, idolatrías y sacrificios y policía, gobierno, leyes, costumbres y hechos.7 La oposición entre la “policía” y la “barbarie” describía diferentes niveles de orden social entre los indígenas, iniciando por los más salvajes que vivían esparcidos:

Hoy día hay en Nueva España de este género de gente, que viven de su arco y flechas, y son muy perjudiciales, porque para hacer mal y saltear se acaudillan y juntan, y no han podido los Españoles, por bien ni mal, por maña ni fuerza, reducirlos á policía y obediencia, porque como no tienen pueblos, ni asiento, el pelear con éstos es puramente montear fieras, que se esparcen y esconden por lo mas áspero y encubierto de la sierra: tal es el modo de vivir de muchas Provincias hoy día en diversas partes de Indias.8

Ya que la “policía” fue impuesta compulsiva y exhaustivamente por los españoles, los indígenas cambiaron paulatinamente sus costumbres, como lo describió Acosta:

4 Ibid., p. 306-307.5 PAREDES, Julián de. Recopilación de las Leyes de los Reinos de las Indias. Madri, 1681, Libro II, título I, ley iiii. 6 Ibid., Libro II, título XXXI, ley ix.7 ACOSTA, Joseph de. Historia Natural y Moral de las Indias. Madri: Ramón Anglés, 1894, t. 2, p. ix.8 Ibid., p. 233.

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Los bárbaros Chichimécos, viendo lo que pasaba, comenzaron á tener alguna policía, y cubrir sus carnes, y hacérseles vergonzoso lo que hasta entonces no lo era, y tratando ya con esotra gente, y con la comunicación perdiéndoles el miedo, fueron aprendiendo de ellos, y ya hacían sus chozas y buhíos, y tenían algún orden de República, eligiendo sus Señores, y reconociéndoles superioridad. Y así salieron en gran parte de aquella vida bestial que tenían; pero siempre en los montes y llegados á las sierras, y apartados de los demás.9

Tanto Román y Zamora como Acosta pretendían mostrar la existencia de leyes y policía entre los indígenas Nueva España y del Perú que no contravenían el orden español cristiano podrían someterse fácilmente a la Corona mediante la doctrina sin necesidad de la violencia. En el “Epítome de la conquista del Nuevo Reino de Granada” se menciona el término de “policía” ligada al orden dentro de la nación muisca, en especial los castigos por matar y hur-tar.10 Las connotaciones de buen orden urbano, la cortesía en el trato y las costumbres, así como el aseo, belleza y pulidez ligadas al término policía persistieron hasta el siglo XVIII.11

La “policía urbana” que se desarrolló en España desde el siglo XIII respondía al cuidado y regulación del orden urbano, del comportamientos y de la forma de la ciudad.12 Definía el buen gobierno de las personas y se configuraba dentro del espacio urbano, en oposición al ocio, la dispersión y las costumbres “bárbaras”. Esta concepción amplia se incorporó en las Ordenanzas del siglo XVI como modos de organizar a los nuevos paganos y someterlos a la religión católica. Así, la imposición de la religión, la ordenación territorial y la trama urbana funcional se expresaban simultáneamente al iniciar la Colonia.13

Concentrar para evangelizar: modos pacíficos de sumisión

Tras el descubrimiento del Nuevo Mundo, la legislación de las Indias del siglo XVI dio privilegios a los conquistadores mediante el sistema de “encomiendas” o “repartimientos”, que se estableció como el medio conversión espiritual de los indígenas al catolicismo y que se convirtió en el modo de dominación y de extracción del tributo. En la Real Cédula del 14 de agosto de 1509, el rey Fernando de Aragón dio las siguientes instrucciones a los adelantados para iniciar el proceso de catequización: “Que cada uno se encargue de los que fueren de su repartimiento y los defienda y ampare, proveyendo ministros que les enseñen la doctrina

9 Ibid., p. 239.10 FRIEDE, Juan. Descubrimiento del Nuevo Reino de Granada y Fundación de Bogotá (1536-1539). Bogotá: Imprenta del Banco de la República, 1960a.11 DICCIONARIO DE AUTORIDADES, t. V, 1737.12 ANGUITA, Ricardo. Ordenanza y policía urbana, orígenes de la reglamentación edificatoria en España. Granada: Universidad de Granada, 1997.13 FRAILE, Pedro. “Razón, estado, ciudad y territorio: de Sinapia a Valentin de Foronda”. Scripta Nova, Barcelona, v. 16, n. 418 (17), s/p, nov. 2012.

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cristiana, y administren los sacramentos guardando Nuestro Patronazgo y enseñen a vivir en policía”.14 Como complemento, el testamento de la reina Isabel de Castilla del 23 de noviem-bre de 1504 instaba que los indígenas fueran adoctrinados con dulzura contraponiéndose a las crueldades de los conquistadores: “No consientan ni den lugar a que los indios vecinos y moradores de las dichas islas y Tierrafirme ganados y por ganar, reciban agravio alguno en sus personas y bienes: manden que sean buen y justamente tratados”.15 En las cartas enviadas al rey entre 1516 y 1518, los padres de la Orden de San Jerónimo en la Nueva España propo-nían evangelizar a los indígenas con dulzura, mediante la nucleación y la “vida en policía”:

Ahora entendemos en reducir los indios a poblaciones de hasta trescientos o cuatrocientos, que no anden vagos, sino en policia; se casen, tengan sus haciendas, pesquerías, monterías... E estaban tan al cabo cuando los PP. Jerónimos e yo llegamos, asi en la justicia como en todo lo otro que conviene al buen tratamiento de los indios.16

Para asegurar la conversión de los indígenas, estas disposiciones prohibían las “idola-trías”, es decir, sacrificios humanos, entierros suntuosos, ofrendas a los dioses y borracheras. La prohibición ritual aparecía en las Reales Cédulas para Hernán Cortés de 1523 (y en la Real Cédula de 17 de noviembre de 1526), que ordenaba la destrucción sistemática de ídolos, templos y adoratorios y la prohibición de comer carne humana y hacer otras abominaciones contra la fe católica.17 Estas mismas Cédulas se ordenaba la forma y disposición de las “ciu-dades de españoles” que fueron trazadas usando “la regla y el cordel”; del espacio interno del poblado español, con la plaza, la iglesia y las casas; del ejido para el pastoreo y los baldíos alrededor de la ciudad estaría. Las nuevas fundaciones podrían expandirse a partir de la plaza, donde se localizarían las casas los principales y se festejarían las corridas de caballos.

Elijan el sitio de los que estuvieran vacantes y por disposición nuestra se pueda ocupar sin prejuicio de los indios y naturales o con su libre consentimiento y cuando hagan la planta del lugar repártanlo por sus plazas, calles y solares a cordel y regla, comenzando desde la plaza mayor y sacando desde ella las calles a las puertas y caminos principales, y dejando tanto compás abierto que aunque la población vaya en gran crecimiento se pueda siempre proseguir y dilatar en la misma forma.18

14 PAREDES, Julián de, op. cit., Libro VI, título VIII, ley i.15 Ibid., Libro VI, título X, ley i.16 SERRANO, Manuel. Orígenes de la dominación española en América. In: Nueva Biblioteca de Autores Es-pañoles. Madri: Casa editorial Bailly & Bailliere, 1918; BREWER-CARÍAS, Allan. La Ciudad Ordenada: Estudio sobre “el orden que se ha de tener en descubrir y poblar” o sobre el trazado regular de la ciudad hispa-noamericana, en particular, de las ciudades de Venezuela. Madri: Ediciones Pascual Mandoz — Universidad Carlos III de Madri, 1997, p. 413.17 PAREDES, Julián de, op. cit., Libro I, título I, ley vii.18 Ibid., Libro IV, título VII, ley i.

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Aunque las Instrucciones para Hernán Cortés de 1523 pueden considerarse como los principios del urbanismo en América para las “ciudades de españoles”, con la plaza central, calles rectas y templo cristiano, esta ley no hace explícita la concentración de los indígenas. La legislación sólo advertía que los indígenas no deberían vivir “derramados”, y prescribían su inclusión en las “ciudades de españoles”, sin detallar cómo concentrarlos. La reducción como mecanismo para adoctrinar a los indígenas no estaba totalmente definido en la prime-ra mitad del siglo XVI, aunque se generaba por oposición al patrón de asentamiento disperso que, según estas leyes, llevaba a la “ociosidad y malos vicios”. La concentración inicial de la población indígena en América requería de un espacio adecuado: la iglesia. El Papa Alejan-dro VI concedió a los Reyes Católicos el Patronazgo Real y el privilegio de edificarlas en los territorios americanos, mediante la bula Inter Caetera de 1493. La Real Cédula de 10 de noviembre de 1528 confirmó este acuerdo:

Que en aquellas provincias se edificasen iglesias donde ofrecer sacrificio a Dios Nuestro Señor y alabar Su Santo Nombre, y propusieron a los sumos pontífices que le erigiesen catedrales metropolitanas, las cuales se erigieron y fundaron, dando para sus fabricas, dote, ornato y servicio del culto divino gran parte de Nuestra Real hacienda, como patronos de todas las iglesias metropolitanas, catedrales, colegiales, abaciales y todos los demás lugares píos, arzobispados, obispados, abadías, prebendas, beneficios y oficios eclesiásticos.19

Para materializar la presencia católica en América, el emperador Carlos V ordenó la construcción de iglesias para sustituir las casas de “idolatrías” en la Real Cédula del 2 de agosto de 1533:

Que en las cabeceras de todos los pueblos de indios […] se edifiquen iglesias donde sean doctrinados y se les administren los Santos Sacramentos, y que para esto se aparte de los tributos que los indios hubieran de dar a nos y a sus encomenderos cada año lo que fueros necesario, hasta que las iglesias estén acabadas, con que no exceda de la cuarta parte de los dichos tributos.20

La Corona ordenó el adoctrinamiento masivo y compulsivo, bajo pena de pérdida de la población indígena encomendada, como estaba estipulado en las Cédulas Reales de 20 de noviembre de 1536 y de 10 de mayo 1554.21 Aun así, la falta de una reglamentación para reordenar el territorio indígena se evidencia en la Real Cédula del 1 de noviembre de 1536, que permite el uso de los patrones de asentamiento originales. La interdicción de la

19 Ibid., Libro I, título II, ley i.20 Ibid., Libro 1, título II, ley vi.21 Ibid., Libro VI, título IX, ley iii; Libro VI, título IX, ley i.

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movilidad indígena y la regulación de las horas para escuchar la catequesis y del calendario para determinar los días sacros se convirtieron en los mecanismos iniciales para ejercer la doctrina, como lo ordenaba la Real Cédula del 30 de noviembre de 1537.22 Todavía la Real Cédula de 3 de agosto de 1538 mandaba únicamente que los indígenas se congregasen sin avisar cómo: “Para que los indios aprovechen más en cristiandad y policía, se debe ordenar que vivan juntos y concertadamente pues de esta forma los concedan sus prelados y atende-rán mejor a su bien y doctrina”.23 La premisa mayor estas leyes era preservar al indígena sin ejercer la violencia, usando la catequesis y la reducción no planeada alrededor de la iglesia como mecanismo para la conversión, como explicaba la Real Cédula del 21 de marzo de 1551 a los gobernadores:

Que con mucha templanza y moderación ejecuten la reducción, población y doctrina de los indios, con tanta suavidad y blandura que sin causar inconveniente diese motivo a los que no se pudiesen poblar luego, y amparo de los ya reducidos, acudiesen a ofrecerle de su voluntad.24

Las disposiciones que pretendían suprimir los abusos de los españoles se basaban en las denuncias de religiosos como Bartolomé de las Casas. Entre las innumerables descripciones de la sevicia de los españoles,25 Manuel Serrano y Sanz describe en su obra Orígenes de la do-minación española en América un suceso de violencia que debió presenciar este evangelizador dominico:

Y aconteció que mientras un capitán distribuía la comida a los españoles, cierto soldado, que debió de notar en los indios movimientos de hostilidad, sacó la espada y comenzó a dar tajos en aquéllos; como los estados psicológicos, especialmente el del miedo, son contagiosos, los demás le secundaron, y en breve tiempo fueron muertos o heridos no pocos indios.26

La repetición las prohibiciones contra los malos tratos y la esclavitud en las colonias en la

ley durante la primera mitad del siglo XVI (Reales Cédulas de 1523, 1526, 1530, 1532, 1540, 1541, 1542 y 1543) advierte del uso excesivo de la violencia por parte de los españoles para someter a los indígenas. A pesar de las prohibiciones, la predominancia de las crueldades y la esclavitud indígena en el Nuevo Mundo llevaron a que Bartolomé de las Casas se enfrentara a sus adversarios defensores de las Guerras Justas27 publicando en 1552 la Brevísima relación de

22 Ibid., Libro I, título I, ley xii.23 Ibid., Libro VI, título I, ley xix.24 Ibid., Libro VI, título III, ley i. 25 URIBE, Ángela. Perfiles del mal en la historia de Colombia. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2009.26 SERRANO, Manuel, op. cit., p. 339. 27 LAFAYE, Jacques. Sangrientas fiestas del renacimiento: la era de Carlos V, Francisco I y Solimán (1500-1557). México: Fondo de Cultura Económica, 1999.

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la destrucción de las Indias.28 En 1550 el padre Jerónimo de San Miguel, primer provincial del Nuevo Reino de Granada, escribió una carta al rey informando la poca importancia que tenía la evangelización para la Real Audiencia de Santafé y narró los malos tratos contra los indíge-nas, que se manifestaban en forma de esclavitud, torturas, mutilaciones y muertes violentas.29 La transformación total del indígena como un nuevo ser mediante la “vida en policía” y la homogenización cultural se instalaba como proyecto regio y religioso en el Nuevo Mundo. La conquista, la sevicia y la codicia entraban en conflicto con el trato dulce, la nucleación y la misión evangélica. En este contexto, los “pueblos de indios” aparecían como estandartes simbólicos y pedagógicos de la religión católica, como nuevas comunidades de fe.

La ciudad ordenada en la tradición española

Aunque durante la primera mitad del siglo XVI hubo varias prescripciones urbanas para América, las Ordenanzas de descubrimiento, nueva población y pacificación de las Indias dadas por Felipe II, el 13 de julio de 1573, en el bosque de Segovia aparecen como el tratado definitivo de urbanismo hispánico idealizado, donde se recogen con minucia 80 años de experiencia fundadora en el Nuevo Mundo.30 El fin de la Conquista y de las Guerras Justas proclamado en este documento significó la unificación y homogenización urbana del vasto Imperio es-pañol. Como mecanismo perfeccionado de sumisión, en los “pueblos de indios” se concen-traban los nativos para evangelizarlos evitando la violencia, como se verifica en la repetición de términos como “paz”, “caridad”, “no hacer mal y daño” y “ni fuerza ni agravio” en las ordenes de reducción.31 Las Ordenanzas se amparaban bajo el Patronazgo Real en América según las Leyes 25, 26, 27 y 36,32 extendiendo y reiterando la orden de las Reales Cédulas 1528 y 1533 de edificar iglesias en los “pueblos de indios”. El objetivo urbano y moral de las Ordenanzas aparece en la Ley 148: “Que los índios que les fueron encomendados se reduz-gan a pueblos y en ellos edifiquen yglesias para que seam dotrinados y biban en policía”.33

Los “pueblos de indios” del Nuevo Mundo fueron imaginados como lugares pedagó-gicos, donde la experiencia sensorial definiría los comportamientos y costumbres de sus

28 CASAS, Bartolomé de las. Brevísima relación de la destrucción de las indias. Madri: Ediciones Cátedra, 1982.29 FRIEDE, Juan. Documentos inéditos para la historia de Colombia, v. IX-X (1547-1550). Bogotá: Academia Colombiana de Historia. 1960b. FRIEDE, Juan. Los Franciscanos en el Nuevo Reino de Granada y el mo-vimiento indigenista del siglo XVI. Bulletin Hispanique, t. 60, n. 1, p. 5-29, 1958. 30 BREWER-CARIAS, Allan, op. cit. 31 PIQUERA, Ricardo. Antonio de Berrio y las Ordenanzas de 1573. Boletín de Americanistas, Barcelona, n. 49, p. 233-243, 1999. 32 MINISTERIO DE VIVIENDA. Transcripción de las Ordenanzas de descubrimiento, nueva población y pacificación de las Indias dadas por Felipe II, el 13 de julio de 1573, en el bosque de Segovia según el original que se conserva en el Archivo General de Indias de Sevilla. Madri: Ministerio de Vivienda, 1976, p. 26-29, 36.33 Ibid., p. 112-113.

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habitantes. En la tradición urbanística europea la ciudad era el lugar de la interacción de quienes compartían una base moral. Deffontaines34 propuso comparar las ciudades “hipo-dámicas” españolas en América y las bastides edificadas entre 1240 y 1320 en el sur de Fran-cia, comunidades configuradas para la protección ante los abusos de los señores feudales y la Cruzada contra los Cátaros (1209-1244). Algunos autores reconocen el carácter cristiano de las fundaciones españolas del siglo XIII, como el trazado regular católico en contraposi-ción a la irregularidad urbana musulmana.35 Las ciudades al sur de España, como Málaga, Granada, Córdoba y Sevilla resaltaban por su estrechez y desorden urbano. En ellas fueron prohibidos los saledizos y cobertizos que entorpecían el paso de caballeros y coches: las nuevas ciudades privilegiaron la calle protegiéndola de la invasión de las casas.36 Entre los tratadistas humanistas que influyeron en el urbanismo español americano destaca el francis-cano catalán Francesc Eiximenic (1340-1409), cuyo pensamiento moral y religioso alimentó las ideas políticas de los Reyes Católicos.37 La herencia urbana de Eiximenic proviene de ciudades ortogonales proyectadas y edificadas por Jaime I de Aragón (1208-1276), como Villareal de Burriana y Nules.38 En los escritos del fraile Eiximenic se vislumbraba la idea de la ciudad bella, noble y bien ordenada, que seguía en su forma el modelo de la Jerusalén Celestial. Consideraba además que la ciudad debía ser proyectada según una teoría urbana, concibiendo sus funciones intelectuales y simbólicas para alcanzar la virtud cristiana. Sería en la ciudad racional, zonificada y dispuesta dentro de un orden cósmico donde los súbditos del príncipe cristiano debían seguir comportamientos de personas virtuosas.39

Para iniciar el proceso de concentración de indígenas, las Ordenanzas describían en las Leyes 34, 35, 39 y 40 las cualidades del lugar para fundar el “pueblo de indios” según la abundancia de agua, de frutos, y de personas jóvenes y sanas, y la posición y fuerza de los vientos.40 Estos criterios para la elección del lugar aparecen desde el siglo XIV. En el capítulo CVI del duodécimo libro de su tratado Lo Crestià (1385-1392),41 el franciscano Francesc Eiximenic caracterizó el lugar propicio para la construcción de la ciudad, una amplia plani-

34 DEFFONTAINES, Pierre. Como se constituiu no Brasil a rêde de cidades. Boletim Geográfico, Rio de Janeiro, n. 15, p. 298-308, 1944. 35 VILA, Soledad. La ciudad de Eiximenis: Un proyecto teórico de Urbanismo en el siglo XIV. Valencia: Di-putación Provincial de Valencia, 1984, p. 117.36 ANGUITA, Ricardo, op. cit.; SANTOS, Paulo. Formação de cidades no Brasil colonial. V coloquio inter-nacional de estudos luso-brasileiros. Coimbra, 1968.37 GUARDA, Gabriel. Santo Tomás de Aquino y las fuentes del urbanismo indiano. Boletín de la Academia Chilena de la Historia, n. 72, p. 5-50, 1965; NAVARRO, María Isabel. Las fundaciones de ciudades y el pensamiento urbanístico hispánico en la era del descubrimiento. Scripta Nova, Barcelona, v. 10, n. 218 (43), 2006.38 VILA, Soledad, op. cit. 39 ANTELO, Antonio. La ciudad ideal según fray Francesc Eiximenis y Rodrigo Sánchez de Arévalo. La Ciu-dad Hispánica siglos XIII al XVI (En la España Medieval, v. 6). Madri: Editorial Universidad Complutense, p. 19-50, 1985. 40 MINISTERIO DE VIVIENDA, op. cit., p. 34-39. 41 EIXIMENIC, Francesc. Dotze del Crestià. Valencia: Lambert Palmart, 1484.

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cie para su expansión con abundantes fuentes de agua. Debían evitarse aquellos vientos que pudieran traer enfermedades y aprovechar los que purificaban el aire,42 lo que influía en la localización de hospitales, desagües, carnicerías y prostíbulos.43

Esta tradición humanista española continuó con la Suma de la Política escrita en 1454 por el castellano Rodrigo Sánchez de Arévalo (1404-1470), para quien el lugar elegido debía ser templado, ya que las personas de tierras calientes eran blandas e intelectuales mientras que las personas de tierras frías eran belicosas y amantes de los placeres.44 Por lo tanto, las personas que vivían en tierras calientes podían ser fácilmente súbditos, pues no tienen la au-dacia ni la fuerza para repeler sus enemigos. Para asegurar la salud de la población, la ciudad debía ser alineada con los vientos calientes del oriente y los gélidos del norte, que purificarían las pestilencia. Debían evitarse los vientos provenientes de lagunas y pantanos,45 así como abastecer las ciudades con pozos estancados o fuentes con minerales. El agua debía ser clara y ligera, sin sabor ni olor, y las personas que la bebiesen debían mantener los dientes y las encías sanas.46

León Batista Alberti describía las mejores características de los lugares para construir las ciudades en el capítulo 4 del Libro I de su obra De re aedificatoria,47 de 1452. El entorno debía ser preferiblemente templado,48 sin humedad excesiva ni muy seco: “tendrá el campo saludable, muy ancho, vario, deleitoso, fértil, fortalecido, lleno, adornado con abundancia de frutas y de fuentes, haya ríos, lagos y esté patente la oportunidad de la mar”.49 El arquitecto prohibió construir en los valles, pues la ciudad correría el riesgo de inundarse con lluvias; también advirtió evitar lugares con relámpagos frecuentes. Sugirió evitar las aguas estanca-das o con barro, que serían criaderos de mosquitos, lombrices y enfermedades. Para Alberti el mejor criterio para fundar la ciudad era la buena salud de la población existente: “Si aque-lla región llevare copia de buenos frutos, si cría muchos viejos y de gran edad, si abundare de valiente y hermosa juventud, y de parto entero y muy ordinario”.50

Pietro Cataneo (1510-1574) fue heredero de la tradición arquitectónica sienesa, en cuya obra I quattro primi libri di architettura (1554)51 describe la elección del sitio para la ciudad: “Debbesi per tanto nella elettione del suo sito ricercare, la sanità, la fertilità, la fortezza, la co-momodità e la vaghezza, la sanità ci será porta dalla bontà dell’aria, dell’acque, e dell’ herbe”.52

42 Ibid., f. 50r.43 Ibid., f. 52r.44 SANCHEZ, Rodrigo. Suma de la política. Manuscrito Biblioteca Nacional de España, 1500?, ff. 13v-14r.45 Ibid., ff. 20v-22r.46 Ibid., ff. 22v-23r.47 LOZANO, Francisco. Los diez libros de arquitectura de Leon Baptista Alberto traduzidos de latin en romance. Madri: Alonso Gómez impresor, 1582. 48 Ibid., p. 11.49 Ibid., p. 11050 Ibid., p. 1451 CATANEO, Pietro. I quattro libri di architettura. Venecia: Aldus, 1554. 52 CATANEO, Pietro, op. cit., f. 2r: Que por lo dicho anteriormente hay que, para la elección de su lugar

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Este arquitecto afirmaba que la temperatura y la pureza del aire eran determinantes para la salud de los ciudadanos, de modo que la dirección de los vientos era relevante para la fun-dación y su estructura, como era para Eiximenic y Alberti. Igualmente, prescribió buscar fuentes de agua fresca para abastecer la nueva ciudad y prohibió cualquier tipo de edificación dentro de los valles por razones defensivas y de salud.

Elegido el sitio para la fundación del “pueblo de indios”, la proyección de éste según las Ordenanzas de 1573 debía iniciarse con el establecimiento de una plaza de la cual partían las calles principales, alineadas con “cuerda y regla”, como aparece en la Ley 111 y que repite lo dispuesto en la Cédula a Hernán Cortés: “dexando tanto compas abierto que aunque la poblacion vaya en gran crecimiento se pueda siempre proseguir en la misma forma”.53 Las dimensiones de la plaza estaban especificadas en la Ley 113, según una proporción 2:3, pero cuya grandeza dependía del número de habitantes:

Se hará la eleción de la plaça teniendo respecto con que la población puede crecer no sea menor que 200 pies54 en ancho y 300 de largo ni mayor de 800 pies de largo y 530 pies de ancho. De mediana y de buena proporción es de 600 pies de largo y 400 de ancho.55

La plaza rectangular serviría para las solemnidades de la ciudad, el cumplimiento del calendario religioso, las corridas de toros y otros eventos señoriales, y era el espacio donde giraba la vida urbana y se expresaban las relaciones de poder en América. La Ley 126 decla-raba la preeminencia de los edificios públicos en el marco de la plaza: “En la plaça no se den solares para particulares dense para fabrica de la yglesia y casas reales y propios de la ciu-dad”.56 Igualmente, las calles que partían de la plaza debían estar alineadas con los vientos principales y serían más anchas o estrechas dependiendo del clima, como estipulaba la Ley 114.57 Según las Ordenanzas, tras demarcar la plaza y las calles, la iglesia debía ser la primera y principal construcción del poblado, cuya preeminencia y visibilidad se lograba mediante el aislamiento y elevación del templo, como aparece consignado en la Ley 119.58 La Figura 1 muestra la interpretación de las Ordenanzas según Salcedo.59

buscar la sanidad, la fertilidad, la fortaleza, la comodidad y la grandeza, la sanidad nos será traída de la bon-dad del aire, del agua y del campo [Traducción propia].53 MINISTERIO DE VIVIENDA, op. cit., p. 82-85.54 1 pie equivale a 12 pulgadas o 0,28 metros. Por lo tanto, las medidas de las plazas serían: 56m × 84m las menores; 112m × 168m las medianas; 148m × 224m las mayores.55 Ibid., p. 86-89.56 Ibid., p. 94-97.57 Ibid., p. 88-89.58 Ibid., p. 90-91.59 SALCEDO, Jaime. Urbanismo Hispano-Americano siglos XVI, XVII y XVIII. El modelo urbano aplicado a la América española, su génesis y su desarrollo teórico y práctico. Bogotá: Centro Editorial Javeriano, 1994. p. 108.

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Figura 1 Interpretación de las Ordenanzas de 1573.

Doscientos años antes, en el capítulo CX de su obra Lo Crestia el franciscano Eiximenic aseveraba que la forma más bella y perfecta de la ciudad amurallada era la cuadrada.60 A partir de las entradas principales que se abrían en cada lado continuarían dos avenidas rectas de modo que la ciudad quedaba dividida en cuatro partes donde habitarían las personas de-pendiendo de su oficio.61 El centro de la ciudad era dominado por la iglesia católica, núcleo religioso de la comunidad.62 En medio de cada cuartel principal debía construirse una plaza y el templo o monasterio de las cuatro ordenes mendicantes. El edificio fortificado del prín-cipe se localizaría en un costado. De esta forma, la ciudad se constituye a partir del diseño cristiano de la cruz, lo que hace de su trazado principal un elemento pedagógico para sus habitantes. El plano de esta ciudad (Figura 2) es reproducido por Soledad Vila a partir del diseño de Puig y Cadafalch.63

Para Alberti la ciudad estaba determinada por la muralla y el trazado de las calles princi-pales debería guiarse por las edificaciones más importantes, como la iglesia, aunque para él la avenida ganaba destaque frente a las residencias: “Y también a la calle en la ciudad fuera que conviene que esté muy bien lastrada y del todo muy limpia, la adornaran los portales con iguales lineamientos, y de una y otra parte las casas iguales en línea y nivel”.64 El cruce

60 EIXIMENIC, Francesc, op. cit., f. 51v.61 Ibid., f. 51v.62 Ibid., f. 51v.63 VILA, Soledad, op. cit., p. 137.64 LOZANO, Francisco, op. cit., p. 248.

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Figura 2La ciudad ideal de Eiximenic.

de las calles se ampliaba para formar las plazas, las cuales cumplirían diversas funciones, desde el ocio infantil y los juegos de esgrima hasta el encuentro de comerciantes y artesanos de diversos gremios. Las proporciones de las plazas eran de 2:3; y la altura máxima de los edificios a su alrededor era un tercio del ancho de ésta, para no opacar su grandeza.65 A pesar de estas disposiciones la plaza no definía la ciudad para Alberti ni se configuraba como un elemento esencial para su estructura, como sucedía con las murallas.

Inspirado en el libro de Alberti, Filarete describe en su Trattato di architettura66 de 1454 que el centro de la ciudad sería ocupado por una plaza rectangular cuyos edificios se distri-buían así: al oriente la iglesia mayor, al occidental el palacio real, al norte la plaza de mercado y al sur la plaza de alimentos. También se localizaban en el marco de la plaza el palacio del capitán, la cárcel y la casa de la moneda. Las avenidas rectas unían la plaza con las entradas de la ciudad y eran recortadas por plazas menores para la venta de vino, paja, leña, granos y aceite, o para construir monasterios de las ordenes religiosas. Las avenidas debían hacerse inclinadas para mantener limpia la ciudad, de modo que al llover, o liberando agua desde la plaza, la suciedad sería barrida fácilmente hacia las puertas.67 El plano de esta ciudad ideal (Figura 3) llamada Sforzida aparece en el Trattato di architettura de Filarete.68

65 LOZANO, Francisco, op. cit., p. 247-254.66 FILARETE. Trattato di architettura. Milán: Il Polifilo, 1464. 67 Ibid., f. 43r-44r.68 Ibid., f. 43r.

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Figura 3Sforzinda, la ciudad ideal de Filarete.

La obra de Cataneo se encuentra iluminada exhaustivamente con xilografías que ilustran las formas de la ciudad, gran carencia del texto de Alberti escrito un siglo antes. Para el sienes la plaza principal estaría en medio, en el cruce de las principales avenidas que atravesaban la ciudad de puerta a puerta. Ésta se adornaría con pórticos de magnificas columnas y a su alrededor deberían localizarse sólo los edificios públicos y no las residencias del príncipe y notables de la ciudad.69. Además de esta plaza, en las avenidas podrían abrirse plazas me-nores para el comercio y la recreación.70 La Figura 4 muestra la ciudad del príncipe con su cittadella pentagonal según un grabado de Cataneo.71

A diferencia del urbanismo militar europeo del siglo XVI, las Ordenanzas de 1573 fue-ron un tratado urbano “humanista” para América que pretendía imponer la paz rompiendo con la tradición bélica europea. La forma y adecuación de las murallas fueron un problema insistente para la defensa de las ciudades, mientras que los “pueblos de indios” fueron con-cebidos como las primeras ciudades abiertas para América. Para Eiximenic la muralla que circundaba la ciudad debía tener una puerta principal de entrada, fortificada mediante altas torres.72 En el capítulo sexto de su obra Filarete describía cómo debía hacerse una ciudad, comenzando con la delimitación de las murallas, el castillo, las torres de entrada, el foso y las

69 CATANEO, Pietro, op. cit., f. 8v.70 Ibid., ff. 7v-8r. 71 Ibid., f. 20r.72 Ibid., f. 51v.

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Figura 4La ciudad de Cataneo.

escaleras. Luego, con la aparición del baluarte como proyección de la muralla para sustentar la artillería defensiva, la geometría urbana se perfeccionó durante el siglo XVI, de modo que las consideraciones especulativas del renacimiento dieron paso a problemas empíricos de orden militar y economía de medios.73 Cataneo prescribía que las murallas debían ser angulares y su forma variada, dependiendo del tamaño e importancia de la nueva urbe y de la fuerza del enemigo.74

Al finalizar el siglo XVI esta separación entre las tendencias “humanista” y “defensiva” es más visible al observar la Política para Corregidores y de dueños de vasallos en tiempos de paz y de guerra de Jerónimo Castillo de Bovadilla de 1597 quien resaltaba las virtudes de estos funcionarios reales, modestia, sobriedad, adorno, imagen, prudencia y ciencia, así como sus funciones, atribuciones y relaciones con otros administradores. En el capítulo V del libro III, Castillo de Bovadilla se refería al cuidado de las obras de la ciudad: la grandeza de los edificios públicos, la necesidad de controlar el agua y el cuidado de las calles, como “hacer

73 ISAC, Ángel. La ciudad militar en los tratados de fortificaciones del siglo XVI. In: La Ciudad Hispánica siglos XIII al XVI (En la España Medieval, v. 6). Madri: Editorial Universidad Complutense, 1985. p. 51-63. 74 CATANEO, Pietro, op. cit., f. 7r.

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quitar los saledizos, que son cubiertas de ladrones y afean la ciudad”.75 Entre otras obras bue-nas, este jurista promovía acabar todas las obras comenzadas y ensanchar plazas y calles de acuerdo con la riqueza de la ciudad; para esto el corregidor podía expropiar las construccio-nes aledañas para ampliar las plazas o realzar la belleza del templo cristiano. A continuación prescribía la limpieza de las calles, donde prohibía el paso de cerdos libres, estorbos e inmun-dicias, y artesanos callejeros como sastres, zapateros, herradores y bodegueros. Propuso cegar lagos y ríos que atravesasen la ciudad, pues atraerían la pestilencia, y prohibió que en lo alto del río que surtiese de agua fresca a la ciudad se curtieran cueros, se tomara baño o se diera de beber a las bestias.

Esta tradición urbana “humanista” que relacionaba los criterios de fertilidad y abundan-cia para la selección del lugar, la rectitud de las calles y la centralidad de la Iglesia fue asimi-lada para América. Siguiendo la nueva idea de la ciudad abierta y en continuo crecimiento, la importancia edificatoria en el Nuevo Mundo se desplazó de la muralla al eje plaza/iglesia como lugar de cohesión y orden urbano y comunitario. La “policía” como máxima expresión de la vida en la ciudad debía materializarse pedagógicamente en la forma urbana ideal, en la que dominaba la rectitud y la limpieza. El lugar determinante de la iglesia dentro de los “pueblos de indios” complementaba sensorial el proceso de doctrina y transformación de comportamientos de los indígenas americanos.

Los “pueblos de indios” y el proceso de reducción en el Nuevo Reino de Granada

Los indígenas muiscas conformaban la población aborigen predominante del Nuevo Reino de Granada a la llegada del conquistador Gonzalo Jiménez de Quezada en 1536. Fray Pedro Simón narra en sus Noticias historiales de las conquistas de tierra firme en las indias occidentales de 1627 que el arribo de las huestes al Altiplano fue impulsado por la codicia de El Dorado, de las minas de sal de Nemocón, Zipaquirá y Nemuza, y de las esmeraldas de Somondoco.76 Los muiscas se asentaban siguiendo un patrón disperso, característico de varias jefaturas indígenas de América, ocupando el territorio alrededor de los “cercados” de los caciques locales según una estructura político-religiosa que as-cendía hasta los caciques principales. Aunque el Zipa del sur y el Zaque del norte eran considerados las dos mayores títulos de la nación muisca, existían otros grandes caciques como Duitama, quien controlaba las rutas comerciales, y Sogamoso, sumo sacerdote de su religión heliolítica; otros cacicazgos considerados independientes dominaban el comercio

75 CASTILLO, Jerónimo. Política para corregidores y señores de vasallos en tiempos de paz y de guerra. Madri: Imprenta Real de la Gazeta, 1775, t. 2. p. 90.76 SIMÓN, Pedro. Noticias historiales de las conquistas de tierra firme en las indias occidentales. Segunda parte. Bogotá: Casa Editorial de Medardo Rivas, 1891.

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entre el río Magdalena y el Altiplano. Generalmente el cacicazgo y la casta sacerdotal eran heredadas por vía del tío materno.77

En el proceso de la Conquista los españoles mataron a los principales caciques muiscas conservando casi intactas las unidades menores de la jerarquía. En el nivel local, cada ca-cique tributario gobernaba una serie de capitanías, que podían ser mayores “sybyn” o me-nores “uta”. Acompañando esta jerarquía política estaba la estructura religiosa, compuesta por sacerdotes “xeques” y niños sagrados “moxas”.78 En las capitanías existían sacerdotes encargados de realizar las ofrendas en los templos “bubíos”, semejantes a los “lares” de la antigüedad. Además de estos templos estaban las casas santas “cucas”, donde se guardaban los objetos para los rituales religiosos o para las grandes ceremonias públicas, como adornos elaborados con plumas de guacamayas, cráneos de jaguares, ofrendas en oro y tejidos finos.79 En cada capitanía había un pequeño adoratorio conectado cosmológicamente con la tierra y mediante el cual el capitán sustentaba parte de su poder. Los muiscas tenían amplias redes de relaciones entre los valles del Magdalena, la llanura del Orinoco y el Altiplano andino, con quienes comerciaban productos de tierras bajas como algodón, maní, ají y tabaco, y elementos rituales como hoja de coca, yopo (Anadenanthra peregrina), pieles de felinos, plu-mas exóticas y pepitas de oro.80 Los muiscas se especializaron en la producción según cada capitanía, como la fabricación de mantas finas, de vasijas de barro y de figuras de oro, cuya cantidad y belleza eran indicativos del poder y prestigio de los jefes.

El historiador Jaime Jaramillo Uribe81 expone las dificultades para determinar la canti-dad de población muisca cuando llegaron los españoles, pues los cronistas solían exagerar o eran demasiado descriptivos, pues no se basaban en la contabilidad directa los cuerpos sino en conjeturas subjetivas y estimativas generales. Por ejemplo, el autor del Epitome de la Conquista presumía que en el campo de batalla habían 40.000 hombres del Zaque de Tunja y 60.000 del Zipa de Bogotá.82 En 1560 había aproximadamente 300 encomiendas con un promedio de 1.180 indígenas cada una, es decir, 350.000 indígenas siendo gobernador Jimé-

77 FALCHETTI, Ana María; PLAZAS, Clemencia. El territorio de los muiscas a la llegada de los españoles. Cuadernos de Antropología 1, Bogotá: Universidad de Los Andes, 1973. p. 39-65; RAMIREZ, María Clemencia; SOTOMAYOR, María Lucía. Subregionalización del Altiplano Cundiboyacense: reflexiones metodológicas. Revista Colombiana de Antropología, Bogotá, v. 26, p. 174-201, 1986-1988; LONDOÑO, Eduardo. El lugar de la religión en la organización social muisca. Boletín del Museo del Oro, n. 40, p. 63-87, 1996. 78 LONDOÑO, Eduardo, op. cit.; CORREA, François. El Sol del poder. Simbología y política entre los muiscas del norte de los Andes. Bogotá: Unibiblos, 2004.79 LONDOÑO, Eduardo, op. cit.80 LANGEBAEK, Carl Heinrik. Los caminos aborígenes: caminos, mercaderes y cacicazgos: circuitos de comunicación antes de la invasión española en Colombia. Caminos Reales de Colombia. Bogotá, Fondo FEN-Colombia, 1995. p. 35-45; LANGEBAEK, Carl Heinrik, Caminos del piedemonte oriental: sistemas de comunicación prehispánica entre los Andes orientales y el piedemonte llanero. Caminos Reales de Colom-bia. Bogotá, Fondo FEN-Colombia, 1995. p. 73-83. 81 JARAMILLO, Jaime. La población indígena de Colombia en el momento de la conquista y sus transfor-maciones posteriores. Anuario colombiano de historia social y de la cultura, v. 2, 1964.82 FRIEDE, Juan, op. cit., 1960a

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nez de Quesada. Como la explotación del trabajo indígena se realizaba a través del tributo y el servicio personal, solamente los “indios útiles” importaban en las cuentas del Rey: varones entre 17 y 45 años con capacidad de pagar tributo. El grupo principal se complementaba con otras categorías de “indios no útiles”: mujeres, niños, “reservados” (adolescentes), viejos, ausentes y “chusma” (enfermos).83 Para Jaramillo la Geografía y descripción universal de las Indias de Juan López de Velasco escrita en 1574 ofrece las cifras más precisas de la época: 52.000 indígenas por los encomenderos que vivían en Tunja, 40.000 en Santafé y 78.000 en el resto del Nuevo Reino de Granada, lo que evidenciaba que durante los primeros cua-renta años de conquista la población muisca disminuyó a casi la mitad, debido a las nuevas enfermedades, la violencia y los trabajos forzados para el pago del tributo.84 Finalmente, la relación del jesuita Alonso de Medrano de 1598 reportaba la existencia de 16 ciudades y 3 villas de españoles, e “innumerables pueblos de yndios fundados con sus yglesias doctrinas y govierno de corregidores españoles que los tienen sujetos y conquistados y con subordi-nacion alas dichas ciudades de españoles”.85 Este jesuita calculaba la existencia de 40.000 tributarios entre los muiscas que se encontraban dispersos; en la ciudad de Santafé habrían 2.000 vecinos españoles y 20.000 indígenas que les servían; en Tunja habrían 3.000 vecinos y 20.000 indígenas a su servicio, mientras que en la ciudad de Sogamoso vivían 10.000 in-dígenas que practicaban la idolatría.

La nucleación de la población muisca fue una preocupación constante de la Corona espa-ñola; una Carta Real de Carlos V del 9 de octubre de 1549 dirigida a los Oidores de la Real Audiencia de Santa Fé 86 trataba de la necesidad de reducir con dulzura la población indígena:

Al bien de los naturales de esas partes y a su salvación convenía que se juntasen e hiciesen pueblos de muchas casas juntas en la comarca que ellos eligiesen, por que estando como están ahora una casa por sí, y aun cada barrio, no pueden ser doctrinados como convendría, ni promulgarle las leyes que se hacen en su beneficio, ni gozar de los sacramentos de la eucaristía y otras cosas de que se aprovecharían y valdrían estando juntos y no derramados […] y que a todo lo susodicho debían ser los indios persuadidos por la mejor y más blanda y amorosa vía que ser pudiese, pues era todo en su provecho y beneficio.87

La Real Audiencia, máxima expresión de la justicia, fue creada como una forma de contrarrestar la desobediencia de los encomenderos e implementar las Ordenanzas en tierras americanas. Si bien el mandato de la Real Audiencia era la nucleación, ésta contradecía la

83 JARAMILLO, op. cit.84 COLMENARES, op. cit. 85 FRANCIS, Michael. Descripción del Nuevo Reino de Granada (1598) de Alonso de Medrano. Anuário Colombiano de Historia Social y Cultural, n. 30, p. 341-360.86 Instituida en 17 de julio de 1549.87 FRIEDE, Juan, op. cit., 1960b, t. X, p. 154-155.

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encomienda, que aprovechaba la dispersión de la población y se configuraba como la unidad de administración del territorio, de la mano de obra indígena y de la producción. Desde 1550 los frailes del Nuevo Reino de Granada se quejaban ante el Rey de que los indígenas eran forzados a trabajar únicamente en la encomienda, impidiendo la evangelización.88 El franciscano Juan de los Barrios, primer obispo de Santafé, señalaba en su texto de 1556 que la concentración era el modo más eficaz de adoctrinar los indígenas:

Y por que comúnmente los Yndios viven divididos, y separados en muchos Puebleçuelos, y seria gran trabaxo juntarlos en uno, para que oigan los dichos molestamos a los Sacerdotes asistan, y hagan Yglesia en los pueblos mayores, donde mas concurso aya, como queda dicho, y allí junten los hijos de sus feligreses, y les enseñes la doctrina christiana, e informes en las demás cosas de Nuestra Santa Fe Catholica, y como han de rezar cada día y quando se acuestan y levantan bendecir lo que comieren, y bebieren, y las demás buenas obras que los buenos christianos acostumbran hacer, enseñarles a leer y a escribir, contar y cantar, y sean los libros que leyeren devotos, y de sana doctrina.89

Se buscaba modificar el patrón de asentamiento disperso de los indígenas para hacer

efectiva la evangelización y la introducción de la “vida en policía”, como estaba prescrito en la Real Cédula de 1533 que obligaba a construir iglesias, aprovechando los lugares con mayor población indígena. A pesar de la orden de extirpación total de templos e idolatrías según la Real Cédula de 1523, el fraile Juan de los Barrios propuso levantar las nuevas igle-sias en el lugar de los templos muiscas:

Mandamos que todos los santuarios [del demonio] que hubieren hechos en todos los pueblos donde ya hay algunos indios cristianos y lumbre de fe, sean quemados destruidos, sin hacer daño a sus personas ni haciendas y sean purgados aquellos lugares conforme al derecho y así mismo todos los ídolos que se hallaren, y si fuere lugar decente se haga allí una iglesia o a lo menos se ponga una cruz en señal de cristiandad.90

También aparecen en el texto los castigos para aquellos indígenas que aun realizaban los antiguos rituales tradicionales consideradas “diabólicos”, donde se danzaba y se bebía chicha, fermento alcohólico del maíz. El obispo De los Barrios establecía el prohibición de las borracheras en el capítulo “De la policía, limpieza y orden de la iglesia y de otras cosas pertenecientes al buen gobierno de ella”:

88 PACHECO, Juan Manuel. La evangelización del Nuevo Reino siglo XVII (Historia extensa de Colombia, v. XIII, t. 2). Bogotá: Lerner; Academia Colombiana de Historia, 1971. 89 ROMERO, Mario Germán. Fray Juan de los Barrios y la evangelización del Nuevo Reino de Granada. Bo-gotá: Academia Colombiana de Historia, 1960. p. 481.90 ROMERO, Mario Germán, op. cit., p. 465.

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Los indios así cristianos como infieles usan ritos y ceremonias antiguas en borracheras, bailes y supersticiones en gran ofensa a Dios Nuestro Señor, mandamos y ordenamos a nuestros ministros y alguaciles no lo consientan hacer y si lo hicieren los prendan y los traigan ante nos para que sean castigados conforme a derecho.91

La danza también fue prohibida por el obispo: “Que en las iglesias no se hagan danzas ni vigilias ni deshonestidades ni se junten a comer, ni jueguen ni hagan consejos ni pregonen cosas profanas en ellas siguiendo el ejemplo de Nuestro Redentor”.92 Aunque la prohibición de estos comportamientos estaba acompañada de la obligación de reducir a los “naturales” en pueblos, el obispo no propone una forma urbana ordenada sino prohibiciones a algunas costumbres religiosas.

Tras la publicación del texto de Juan de los Barrios, el licenciado Tomás López, oidor de la Real Audiencia de Santafé, estableció las Instrucciones que se ha de guardar en juntar y poblar los indios naturales de los términos de la ciudad de Pamplona en 1559. Ahí el oidor des-cribió las mejores condiciones de sanidad y abundancia de agua del lugar, la plaza central, la iglesia al oriente, la casa del cacique al occidente y los demás predios que se repartirían entre la casa del Cabildo, la cárcel y otros demás principales.93 Luego, en su visita a los territorios de la provincia de Tunja de 1560, Tomás López ordenó la construcción de iglesias por cuenta de los encomenderos, ya que no habían templos ni religiosos suficientes para impartir la ca-tequesis.94 La Real Audiencia expidió el Acuerdo del 13 de noviembre de 1565 apremiando a los encomenderos para fundar los “pueblos de indios”: “Den orden como los naturales sean reducidos a pueblos grandes y se pueblen en forma de policía como los pueblos de españo-les”,95 es decir, las ciudades de Santafé y Tunja.

El segundo obispo de Santafé, fray Luis Zapata de Cárdenas, ordenó en su Catecismo de 1576 la quema de los santuarios muiscas que perduraban y la persecución agresiva contra las prácticas de “idolatría”. Para Zapata de Cárdenas los santuarios debían ser extirpados desde la raíz, para acabar definitivamente con la memoria del lugar:

Por cuanto los santuarios son un tropiezo y estorbo para que los infieles se conviertan y ansimismo para que los nuevamente convertidos vuelvan a idolatrar, se manda que con toda solicitud y santo celo de la honra de Dios y bien de estos indios, los sacerdotes inquieran donde hay santuarios […] para que se manden destruir y asolar del todo sin que haya memoria de ellos

91 Ibid., p. 469.92 Ibid., p. 519.93 BREWER-CARIAS, Allan, op. cit., p. 26.94 COLMENARES, Germán, op. cit.; MUJICA, José. Relación de visitas coloniales: Pueblos, repartimientos y parcialidades indígenas de la provincia de Tunja y de los partidos de La Palma, Muzo, Vélez y Pamplona. Tunja: Publicaciones Academia Boyacense de Historia, 1948.95 ORTEGA, Enrique (Org.). Libro de Acuerdos de la Real Audiencia del Nuevo Reino de Granada 1557-1567. Bogotá: Archivo Nacional, 1947. p. 293-294.

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[…] Pareció ser más conveniente raer de la tierra totalmente la memoria de estos santuarios.96

Los pasos decisivos para la reforma del orden territorial fueron la quema y destrucción de los lugares rituales y la concentración de los indígenas. Para Zapata de Cárdenas la construc-ción de iglesias en el territorio muisca ayudaría en la conversión de sus almas:

Por cuanto el estar los indios congregados en pueblos es cosa tan necesaria para vivir política y cristianamente, que sin este fundamento no se hace cosa, mandase al sacerdote o religioso que no consienta que se despueble indio alguno y al que huyere lo reduzga por ministerio de los alcaldes del pueblo y alguaciles.97

El orden que se intentaba colocar en América hispánica necesitaba de la erradicación del antiguo sistema de creencias para imponer el cristianismo. La “policía” aparecía como una de las virtudes urbanas ligada a la fe cristiana y opuesta a las prácticas de “idolatría”. El proceso de transformación cultural e imposición de las costumbres cristianas tardó décadas en implementarse, extendiéndose junto con las ideas religiosas como práctica de gobierno por los sacerdotes y funcionarios regios.

Visitas de fiscalización religiosa y población en la segunda mitad del siglo XVI

Luego de instituidas las Reales Audiencias en el territorio americano, fueron reglamenta-das sus diferentes funciones durante el siglo XVI. Entre sus miembros el Oidor visitador fue el principal mediador e interprete in situ de la Corona según estaba consignado en la Real Cédula del 11 de junio de 1552:

Muchas veces se hacen las tasas de tributos por informaciones, sin estar presentes los visitadores ver ni reconocer los pueblos y su calidad, de que resultan inconvenientes. Mandamos, que los visitadores vean los pueblos por sus mismas personas y reconozcan el número de los indios y su posibilidad, para que con más justificación y entera noticia procedan.98

Las funciones del visitador fueron ampliadas con el tiempo, y al carácter fiscalizador se

agregó la capacidad de hacer justicia y aplicar el castigo adecuado de inmediato. En la Real Cédula de 25 de mayo de 1566, el rey determinó con exactitud las funciones finales del visitador:

96 LEE, Alberto; ROMERO, Mario Germán. Primer catecismo en Santa Fe de Bogotá: manual de pastoral diocesana del siglo XVI. Bogotá: Concejo Episcopal Latinoamericano, 1988. p. 38.97 Ibid., p. 31.98 PAREDES, Julián, op. cit., Libro VI, título V, ley xxvii.

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Por que nos sepamos cómo son regidos y gobernados nuestros vasallos y puedan más fácilmente alcanzar la justicia y tengan remedio y enmienda los daños y agravios que recibieren. Mandamos, que de todas y cada una de las Audiencias de las Indias salga un Oidor a visitar la tierra de su distrito y visite las Ciudades y pueblos y se informe de la calidad de la tierra y número de pobladores: y como podrán mejor sustentares: y las Iglesias y Monasterios que serán necesarios para el bien de los pueblos: y si los naturales hacen sacrificios y idolatrías de la gentilidad: como los corregidores ejercen sus oficios: y si los esclavos que sirven en las minas son doctrinados como deben: y si se cargan los indios o hacen esclavos, contra lo ordenado: y visite las boticas: y si en ellas hubiere medicinas corrompidas no las consienta vender, y haga derramar: y asimismo las ventas, tambos y mesones, y haga que tenga aranceles, y se informe de todo lo demás que conviniere.99

Además de sus atribuciones fiscales, el visitador podía reformar el territorio, de modo que aplicaba varias estrategias en diversos niveles para poder alcanzar el objetivo evangelizador. El registro visual de los visitadores debía ser complementado con las informaciones sigilosas suministradas por los evangelizadores y los caciques, para conocer sobre el cumplimiento de la catequización y del orden de la población, según la Real Cédula del 18 de julio de 1560:

El Oidor que saliere a visitar la tierra se informe de indios de la orden y forma que hay en la enseñanza de la Doctrina Cristiana, quien se la enseña, dice Misa, y administra los Santos Sacramentos de la Iglesia, y si en esto estuviera alguno en falta, que haga que se provea luego de todo lo conveniente: y asimismo se informe si tiene tasa de tributos, si se excede de ella en llevarles más de los que estuviese tasado, y si es excesiva y reciben otros daños, agravios y malos tratamientos, y de que personas, y si los obligan a llevar cargas, y hagan justicia y provean de forma que los indios queden desagraviados, guardando y ejecutando en todo las leyes y ordenanzas.100

El visitador actuaba como los ojos y oídos del Rey. La visita de mayor importancia para el ordenamiento territorial y la concentración de los muiscas en pueblos fue realizada por el Licenciado Luís Henríquez entre los años 1598 y 1604. Según Orlando Fals Borda101 el principal impulso para reducir los indígenas del Nuevo Reino de Granada en poblados fue instaurado por el Oidor Antonio González el 22 de septiembre de 1593, quien luego nombró a Andrés Egas de Guzmán como visitador. Tras la muerte de este último en 1598, Luis Hen-ríquez continuó la política de nucleación compulsiva, siendo el responsable por los actos de población y localización de decenas de “pueblos de indios” e iglesias para la doctrina. Sólo en

99 Ibid., Libro II, título XXXI, ley i.100 Ibid., Libro II, título XXXI, ley viii.101 FALS, Orlando. Indian Congregations in the New Kingdom of Granada: land tenure aspects, 1595-1850. The Americas, Cambridge, v. 13, n. 4, p. 331-351, 1957.

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la Provincia de Tunja ordenó la nucleación en Sora, Cucaita, Samacá, Sáchica, Oicatá, Sora-cá, Cómbita, Chivatá, Boyacá, Motavita, Ramiriquí, Viracachá, Siachoque, Pesca, Iza, Cui-tiva, Tópaga, Gámeza, Busbanza, Socotá, El Cocuy, Soata, Sativa, Duitama y Paipa durante seis años de visitas: en cada nuevo pueblo se reducirían tres encomiendas en promedio.102

En el caso del Nuevo Reino de Granada, la aplicación de las Ordenanzas de Felipe II implicó la jerarquización del espacio de los pueblos y del territorio. Como el territorio era considerado una sucesión de superficies bidimensional, las áreas inclinadas no fueron consideradas relevantes para los conquistadores. Esta concepción chocaba con el uso de los nativos americanos, quienes aprovechaban la variabilidad climática causada por la elevación del terreno en las zonas tropicales para conseguir una mayor variedad de productos alimen-ticios y de uso ritual.103 En su visita Henríquez encontró la población dispersa, algunas igle-sias construidas con bahareque y paja y pocas de adobe con cimientos de piedra.104 Luego, determinó que los indígenas debían concentrarse en pueblos, localizados en lugares planos con abundancia de agua y madera, con buenas condiciones de temperatura y humedad. En otros casos, eligió entre varios asentamientos indígenas vecinos uno equidistante para que los muiscas pudieran atender los santos oficios sin necesidad de recorrer enormes distancias. A veces mandó mejorar las iglesias de paja y otras veces ordenó su traslado. Un ejemplo de cómo eligió el Oidor el lugar para concentrar los indígenas de varias encomiendas se encuen-tra en el auto de población de Boyacá:

Y para su conversión y aumento conviene se junten todos en un sitio, y consta que Boyacá es bueno, sano, enjuto y abundante de agua y leña, por tanto, mando que los dichos yndios pertenesçientes a Boyaca y sus parçialidades se recoxan, junten y puevlen en este sitio de Boyacá […] y los de Pachaquira, Guatative y Soconsaque se junten y poblen y hagan sus casas y buhíos en el sitio mejor, más cómodo y llano y mas çercano a la yglesia de vahareque, cuvierta de paxa, donde al presente son doctrinados, poblándoles y señalándoles sus casas y solares y la tierra neçesaria por barrios y calles, con distinçión de cada puevlo.105

El Oidor establecía la fundación a partir del lote para la iglesia, frente a la que se abría el vacío de la plaza, uniendo estos dos elementos urbanos. Además, el Oidor proyectó la plaza cuadrada, ya fuera por comodidad o intentando homogeneizar el tamaño de los lotes.

102 COLMENARES, Germán, op. cit.103 CORREA, François, op. cit.; SERJE, Margarita. The national imagination in New Granada. In: ERIC-KSON, Raymond; FONT, Mauricio A.; SCHWARTZ, Brian (Coord.). Alexander von Humboldt from the Americas to the Cosmos. Nova York: The Graduate Center, CUNY, 2004. p. 83-97. 104 MUJICA, José, op. cit.; ROMERO, Guadalupe. Los pueblos de índios en Nueva Granada: trazas urbanas e iglesias doctrineras. Tesis (Doctorado en Historia del Arte) — Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Granada, Granada, 2008.105 ROMERO, Guadalupe, op. cit., p. 1.744-1.745.

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El tamaño de la plaza para los “pueblos de indios” era pequeño según las dimensiones de las Ordenanzas de 1573, siendo de 100 varas castellanas106 por cada lado. En este sentido se asemejaba a la ciudad de Eiximenic, aunque en las Ordenanzas estaba prescrito que la plaza debía ser rectangular para realizar las corridas de caballos. En la visita a Sáchica, uno de los primeros poblados donde se dirigió Henríquez, se presenta de manera sucinta el orden de los futuros poblados de la Provincia de Tunja:

Mando se pueblen alrededor de la dicha yglesia el caçique y capitanes de el para que sean bien doctrinados y vivan en pulitica (sic) española, dando a los caçiques a quarenta varas en quadro por frente y a los capitanes a treinta y a los yndios a veinte, de forma que entre cada ochenta baras de largo quepan quatro buhios que salgan a veinte varas en quadro por frente y luego tengan una calle de çinco varas en quadro, y entre cada quarenta varas que divide la quadra a de aver un callejon de dos varas, e para el dicho efeto se a de desmontar las dichas sarsas e tunales del dicho sitio que tiene al presente, y en lo llano y mejor y alrededor de la dicha yglesia halla la dicha poblaçon con las dichas calles e callejones.107

Alrededor de la plaza, junto con la iglesia debían ubicarse las casas del cura y de los caciques de cada repartimiento, luego los capitanes y “particulares”. Esta repartición jerárquica contravenía tanto las prescripciones de las Ordenanzas de 1573, donde se es-tipulaba que lotes iguales se repartieran por suerte, como las proposiciones de Cataneo, quien localizó los edificios públicos en la plaza. El trazado de los “pueblos de indios” de Henríquez era jerarquizado mediante los tamaños de los lotes y su cercanía al epicentro sagrado. Las calles rectas, que debían permanecer limpias, tendrían espacio suficiente para el paso de los caballos y evitar la propagación del fuego. Como el pueblo era un espacio abierto, en espera de su futuro crecimiento, las calles terminaban en las tierras de labranza circundantes. El plano hipotético aproximado de un “pueblo de indios” de la Provincia de Tunja,108 tendría el templo dominando el espacio de la plaza, y la cuadrícula de las calles ordenando los lotes (Figura 5).

Henríquez también ordenó mejorar las condiciones del entorno: en Duitama ordenó la construcción de una acequia y canales para desviar los pequeños riachuelos que podían inundar la plaza y en Ramiriquí mandó a construir puentes que atravesaran el río Boyacá para agilizar el desplazamiento de los indígenas feligreses. Por otra parte, dispuso inter-dicciones hacia pueblos diferentes de los designados para recibir la doctrina. Esto implicó un reordenamiento de las viviendas indígenas para la evangelización, descomponiendo las redes sociales y familiares locales, y prohibiendo las peregrinaciones a lugares de culto an-

106 Una vara castellana equivale a 0,86 metro.107 ROMERO, Guadalupe, op. cit., p. 2.652.108 Elaborado a partir de ROMERO, Guadalupe, op. cit.

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Figura 5Plano hipotético del trazado urbano de los pueblos de indios.

cestral, como Sogamoso. Finalmente, Henríquez dispuso quemar las casas dispersas, como complemento de la nucleación; esta orden de supresión fue reiterada al final de cada auto de población, como aparece en la visita de Samacá de 1598:

Saquen todos los dichos yndios, quemandoles sus bohios, sacandoles ante todas cosas lo que tuvieren dentro y porque esto no a vastado otras vezes les mando les arranquen qualesquier lavranças que tuvieren y den aviso a los vezinos españoles sircunvezinos se las arranquen y coman con sus ganados y no les consientan estar en las sobre quevradas fuera aquellas que caen en los resguardos y comunidades por su merçed señaladas y en qualquier dia, parte donde hallen piedra de moler y buhio le puedan quemar aunque este en el dicho resguardo, dejando las lavranças enteras porque la povlaçon solo a de ser en los sitios señalados.109

La quema de viviendas complementada con la destrucción de la labranza por medio del ganado pretendía borrar con la apropiación ancestral productiva y reproductiva del territorio. Se trasladaba además una práctica de destrucción templos hacia la cotidianidad, que interfería en la cultura muisca al marcar los espacios permitidos y prohibidos para vivir y labrar.

Siendo el templo el epicentro de los “pueblos de indios”, la observación de su construc-ción fue una constante preocupación durante el siglo XVII como espacio pedagógico y de encuentro con la divinidad. Algunos elementos característicos de la vida en “policía” y del urbanismo “humanista” aquí descrito prevalecen en estos “pueblos de indios” edificados para la doctrina: la iglesia central como eje de fundación, la plaza cuadrada frente a la igle-

109 Ibid., p. 2.921.

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sia, los lotes en cuadrícula que se extienden jerárquicamente desde la plaza y las calles rectas y limpias. Durante la primera mitad del siglo XVII fueron entregadas algunas iglesias que Henríquez mando a erigir: Chivatá en el año 1605 y Duitama en 1613; en Pesca estaban los muros faltando el maderamen para el tejado en 1608; en Paipa estaba incompleta y con la madera para la armadura pudriéndose en 1619; en Sativa estaba sin terminar en 1630; en Viracachá y Ramiriquí solo estaban los fundamentos de piedra en 1622, igual que en El Cocuy en 1635.110 Aunque el proceso de concentración y población demoraron todo el siglo XVII para consolidarse, para el final de la Colonia todos los pueblos mencionados estaban edificados alrededor de la plaza.

Consideraciones finales

La genealogía de las formas urbanas expuesta en este artículo muestra una estrecha rela-ción entre la morfología de la ciudad con la moral y los comportamientos de sus habitantes. Eiximenic idealizó la ciudad cuadrada perfecta para la defensa, una comunidad armónica donde cada integrante tenía una función; dos siglos después algunas de estas ideas “huma-nistas” estuvieron presentes en los “pueblos de indios” ortogonales y abiertos que ordenó construir Henríquez en la Provincia de Tunja. Las formas de la ciudad ideal respondían a las necesidades sociales: en Europa fueron diseñadas para la fortificación y en el Nuevo Mundo fueron concebidas como mecanismos de doctrina. El carácter pedagógico de la ciudad hispanoamericana y la comunidad que la habitaba requería una expresión material determinada, como la rectitud de las calles y la austeridad, consideradas virtudes urbanas y morales, que se mantuvieron en las formas urbanas “humanistas” con notable rigidez. En estos “pueblos de indios” se expresaron las tradiciones urbanísticas católicas, con interpre-taciones y modificaciones que buscaban la simplicidad formal y la expresividad jerárquica y cosmológica de la religión que los españoles deseaban imponer.

Los procesos de doctrina y nucleación de la población indígena estaban ligados en la legislación española. Imponer una nueva fe implicaba determinar una nueva forma de vida mediante los “pueblos de indios”, cuyos elementos constitutivos, iglesia, plaza y trazado or-togonal que evocaba la cruz, se fundieron como principio fundador de la vida en “policía” y como un mecanismo para el control de la población. La iglesia era el punto de partida, escenario para consolidar el proceso de evangelización y ordenar los comportamientos de los indígenas. La plaza, plana y cuadrada, sintetizaba el lugar para las actividades públicas, y desde donde se desdoblaban las jerarquías sociales. El complejo plaza/iglesia, que está presente en toda esta tradición “humanista” se fusionó en los “pueblos de indios”, configu-rándose como el emblema mínimo de la sociedad española en América.

110 Ibid.

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Los “pueblos de indios” fueron una extensión del poder del rey y de la iglesia, el lugar para someter corporal y espiritual a los muiscas y conformar “ex novo” una comunidad que perdía paulatinamente sus lazos telúricos. La destrucción de las “idolatrías” y de las “casas de los rebeldes” aparecen como el substituto político de las murallas: si en Europa se priorizaba la actitud de guerra y defensa contra el invasor, en América los españoles priorizaban la paci-ficación y la destrucción sistemática de todo lo contrario a la tradición. La prohibición y per-secución de las costumbres consideradas “salvajes” como el sacrificio ritual, y la destrucción templos y casas fueron prácticas de gobierno y de control del territorio que complementaban la construcción de los “pueblos de indios” y el trato “bondadoso”. Se creaba una duplicidad en el cuerpo del indígena, que podía ser rechazado por vicioso e impúdico, pero que debía ser salvado mediante la conversión. Con la creación de los “pueblos de indios”, el proyecto cultural español se volvió integral: transformaría el alma, el cuerpo y el territorio indígena. Aunque este proyecto de concentración no se realizó completamente, las pautas de compor-tamiento fueron sustancialmente modificadas, siendo el catolicismo la religión predominan-te en la actualidad. Así, los “pueblos de indios” pueden ser vistos como un mecanismo que complementó el proceso de sumisión y conversión de las almas, ayudando a configurar una comunidad moral y espiritual con el paso de los siglos.

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“O celeiro da Amazônia”: agricultura e natureza no Pará na virada do século XIX para o XX

Franciane Gama Lacerda*Elis Regina Corrêa Vieira**

RESUMOO objetivo deste texto é entender como se construiu por parte de autoridades e articulistas que escreviam em jornais paraenses de finais do século XIX e início do século XX uma ideia de progresso e desenvolvimento para o estado do Pará. Trata-se de entender as conexões entre as áreas rurais e de floresta e a cidade de Belém (PA) e as ideias de progresso a partir da agricultura. Objetivando o entendimento de tais conexões, o texto discute três problemas importantes para a compreensão dessas questões, que são os “excessos” da natureza, o ensino agrícola e o saneamento rural.Palavras-chave: Pará; Amazônia; agricultura; natureza; séculos XIX e XX.

ABSTRACTThe aim of this paper is to understand how authorities and writers, who published in local newspapers from late nineteenth to early twentieth century, built an idea of progress and development for the state of Pará. It is about understanding, on one hand, the connections between rural areas, the forest and the city of Belém and, on the other, the ideas of progress and development through agriculture. In order to understand such connections, the article discusses three important problems: the “excesses” of nature, agricultural education and rural sanitation.Keywords: Pará; the Amazon; agriculture; nature; nineteenth and twentieth century.

Artigo recebido em 25 de outubro de 2014 e aprovado para publicação em 2 de maio de 2015.* Doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e professora na Universidade Federal do Pará (UFPA). Be-lém, PA, Brasil. E-mail: [email protected].** Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará (UFPA). Belém, PA, Brasil. E-mail: [email protected].

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Considerações iniciais

Em parte da historiografia que se dedicou a estudar a Amazônia brasileira, no período correspondente à virada do século XIX para o XX, convencionou-se associar a chamada modernidade a um processo que se expressou, sobretudo, no espaço das cidades a partir, por exemplo, da remodelação urbana das suas principais capitais, Belém e Manaus.1 De fato, esta não deixa de ser uma perspectiva pertinente para o entendimento desse processo. En-tretanto, se tomarmos como referência uma variedade de ações, bem como de discursos dos poderes públicos e de outros grupos sociais que buscaram entender esse espaço quando do auge e do declínio da economia da borracha (entre finais do século XIX e primeira década do século XX), veremos que tal modernização, que se refletiu no espaço urbano, se consti-tuiria não somente a partir da própria cidade, mas da floresta, pelas múltiplas possibilidades de atividades extrativistas e igualmente a partir de localidades do interior do estado do Pará com núcleos de produção agrícola, de áreas, na verdade, muito pouco exploradas.

Desse modo, em 1916, o governador do Pará, Enéas Martins, lamentava-se de que no Brasil gastavam-se “quantias fabulosas no aformoseamento das cidades” enquanto as terras “em volta delas” estavam “incultas” e a “lavoura estacionária”.2 O governador, embora se referisse ao Brasil, certamente tomava como referência sua própria experiência de governar um estado, como o Pará, cujos cofres públicos àquela altura padeciam com o declínio das exportações de borracha, ao mesmo tempo que, pelo menos para os poderes públicos, a pro-dução agrícola não era tão expressiva. De acordo com pronunciamentos do próprio governa-dor Enéas Martins, as principais fontes de rendas por meio de impostos do estado do Pará naquele contexto eram as exportações de borracha, castanha, cacau, couro, peles, grudes, a receitada Estrada de Ferro de Bragança; rendas do Matadouro do Maguary e rendas do fornecimento de águas, entre outros.3

Assim, os pronunciamentos de Enéas Martins nos sugerem certa oposição entre o urba-no e o rural. Contudo, no presente texto, nossa perspectiva não pretende enveredar por uma dicotomia entre floresta e cidade. Pelo contrário, nosso interesse são as amplas conexões en-tre esses dois espaços, bem ao molde do que sugere Raymond Williams em Campo e a cidade, ao lembrar que, historicamente, “cristalizaram-se e generalizaram-se” compreensões acerca desses espaços. Segundo Williams, o “campo passou a ser associado a uma forma natural de vida — de paz, inocência e virtudes simples”. Por sua vez, a cidade foi associada à “ideia de centro de realizações — de saber de comunicações, luz”.4 De fato, quando tomamos o Pará

1 Cf. DIAS, Edinéa Mascarenhas. A ilusão do fausto. Manaus 1890-1920. Manaus: Valer, 1999 e SARGES, Maria de Nazaré. Riquezas produzindo a belle époque. Belém do Pará (1870-1910). Belém: Paka-Tatu, 2000. 2 Mensagem dirigida em 1 de agosto de 1916 ao Congresso Legislativo do Pará pelo Dr. Enéas Martins, Go-vernador do Estado. Belém: Imprensa Oficial do Estado do Pará, 1916, p. 93.3 Idem, p. 3-6.4 WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 11-13.

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da virada do século XIX para o XX a partir da documentação tratada neste texto, como mensagens dos governadores e jornais paraenses, é muito evidente uma conexão entre flores-ta, áreas rurais e a capital do Pará, Belém, expressando variadas contradições desse contexto. Tais contradições são evidenciadas na documentação pesquisada, por uma preocupação com os possíveis problemas causados por elementos naturais que compunham o espaço amazô-nico, a exemplo das enchentes dos rios, da necessidade de extrativismo de produtos variados da floresta e ao mesmo tempo pelas tentativas de produção e de ensino agrícola e pastoril.

Assim, conforme abordaremos ao longo do texto, tais problemas que se gestavam nos espaços rurais ou em áreas de floresta acabavam se conectando com a cidade de Belém quando interferiam, por exemplo, no abastecimento dos moradores da capital paraense5 ou até mesmo em problemas de ordem urbana, quando muitos seringueiros em momentos de menor coleta do látex se dirigiam a Belém.6 Na mesma medida, para muitos moradores do interior do Pará, da virada do século XIX para o XX, a cidade de Belém era pensada como o espaço que teria os meios para resolver problemas como questões relacionadas com litígios por terra. Modelar nesse sentido é a história de Simplício de Barros, que, em 1904, sai da comarca de Bragança, a mais de 300 quilômetros de Belém, para queixar-se à chefatura de polícia da capital de um morador da região que pretendia “persegui-lo até que se retirasse dali”, em função de uma contenda motivada pelas terras de “duas roças”.7

Mas para além dessas conexões entre cidade e floresta que eram tecidas no cotidiano, talvez a principal fosse mesmo a importância que espaços como o da floresta ou de núcleos e povoados agrícolas tinham para as atividades econômicas da capital paraense. Desse modo, atividades como o extrativismo da borracha, de madeiras, a produção agrícola e pecuária, mesmo que vivenciados a quilômetros de distância de Belém, não deixavam de ter estreita relação com essa cidade.

Assim, o objetivo desse texto é entender algumas dessas conexões no Pará de finais do sé-culo XIX e início do século XX compreendendo como se construiu, por parte de autoridades e de grupos letrados que escreviam em jornais paraenses, uma ideia de progresso e desenvol-vimento para o Pará desse contexto, a partir da floresta e dos espaços rurais. Um caminho possível para se compreender tal processo parece ser o de seguir a constituição de atividades produtivas como a agricultura e a pecuária a partir da investigação dos debates nas páginas de periódicos que circularam no Pará e que constantemente apontavam as contradições de uma terra de natureza fértil e exuberante em contraste com uma agricultura considerada rudimentar. Do mesmo modo, os pronunciamentos dos poderes públicos paraenses também permitem perceber os significados do extrativismo e da agricultura para a modernização do Estado. Não era sem razão que, em 1910, o governador João Coelho concentrava suas aten-

5 Folha do Norte. Belém, 5 de janeiro de 1915, p. 3. 6 Folha do Norte. Belém, 7 de dezembro de 1898, p. 2; 12 de fevereiro de 1899, p. 2; 10 de abril de 1910, p. 1.7 PARÁ — Chefatura de Polícia — Autos Crimes, 1904. Auto de diligências policiais acerca da agressão sofrida por Simplício de Barros.

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ções no incremento da produtividade da lavoura com as esperanças de que o Pará, no decur-so dos anos, viesse a ser “o celeiro natural da Amazônia”.8 Por essa perspectiva, a agricultura aparece claramente como o meio para o desenvolvimento e progresso do estado.

Diante disso, a documentação pesquisada9 sugere algumas pistas para o entendimento das conexões entre as áreas rurais e de floresta e a cidade de Belém e as ideias de progresso para tais espaços. Objetivando o entendimento de tais conexões, e a ideia de progresso e desenvol-vimento do Pará por meio da fala de autoridades e de jornais paraenses, a pesquisa revelou três problemas importantes para a compreensão dessas questões, que trataremos ao longo do texto: 1) a correção dos excessos da natureza; 2) o ensino agrícola; 3) o saneamento rural.

A correção dos “excessos da natureza”

Euclides da Cunha, descrevendo seu primeiro contato com o rio na Amazônia (1904), diante de desapontamento e de certo encantamento com a natureza, descreve a paisagem como um “excesso de céus por cima de um excesso de águas”, espécie de “página inédita e contemporânea do Gênesis”.10 Do mesmo modo, em 1898, alguns anos antes da passagem do ensaísta pela Amazônia, um articulista anônimo que escrevia no jornal paraense Folha do Norte, preocupado com o que chamava de “futuro da Amazônia”, afirmava aos seus leitores que era necessário “corrigir e modificar os excessos da natureza” com os “progressos das ci-ências agronômicas”, para que a Amazônia chegasse a uma “nova era”.11 Preocupações desse tipo não foram apenas alvo dos jornais, mas inseriram-se também nas falas dos poderes pú-blicos. É o que se pode observar em muitas mensagens dos governadores republicanos, que não raro deram a entender em seus relatos que a natureza tão majestosa parecia prejudicar o interesse pela lavoura, atraindo as atenções de lavradores para o extrativismo da madeira. O governador paraense Paes de Carvalho acreditava em tal premissa e enfatizava que muitos migrantes, que deveriam ocupar-se da lavoura, “transformavam-se de agricultores em explo-radores e negociantes de madeira”. Assim, a exuberância das matas, com madeiras das mais variadas, às margens da Estrada de Ferro de Bragança era vista como o elemento fundamen-

8 Mensagem dirigida em 7 de setembro de 1910 ao Congresso Legislativo do Pará pelo Dr. João Antônio Luiz Coelho, Governador do Estado. Belém: Imprensa Oficial do Estado do Pará, 1910, p. 187.9 Ao lado das Mensagens e Relatórios de governadores do Pará, utilizamos os jornais Folha do Norte e A Palavra, investigando-se questões como: agricultura, ensino agrícola, saneamento rural, desenvolvimento da Amazônia. O uso da imprensa considerou o pensamento de Luca ao afirmar: “o pesquisador dos jornais e re-vistas trabalha com o que se tornou notícia”, devendo-se refletir sobre as “motivações” que deram publicidade ao evento. LUCA, Tania Regina. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Coord.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005. p. 140. 10 CUNHA, Euclides. Amazônia: a gestação de um mundo. In: Um paraíso perdido: ensaios, estudos e pro-nunciamentos sobre Amazônia. 2. ed. Organização, introdução e notas Leandro Tocantins. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. p. 4.11 Folha do Norte. Belém, 10 de março de 1898, p. 1.

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tal para o desvio das atividades dos colonos.12 Na verdade, deixava-se de se considerar aqui as próprias dificuldades enfrentadas pelos agricultores dessa região, e se atribuía à natureza o desinteresse do colono para o trabalho agrícola.

Em 1890, as atenções do governador Justo Chermont se voltavam para a região do “Bai-xo Amazonas”, cujos fazendeiros de gado sofriam com as enchentes do rio, que havia “subido acima do nível”, deixando os campos de criação de gado “inundados” e os animais quase sem terrenos para ficar. O resultado dessas enchentes, de acordo com o engenheiro Antô-nio Tocantins — que explorou a região visando conhecer o rio Trombetas e seus afluentes a pedido do governo do estado do Pará em 1890 —, era que muitas fazendas haviam sido “quase aniquiladas”, com a perda do gado por “violenta peste”.13 Tais enchentes, apesar dos problemas que causavam, faziam parte da vida das populações do Baixo Amazonas. De acordo com o relato do engenheiro, corria “a tradição” e guardava-se na memória episódios de inundações que, ao longo do século XIX, haviam devastado “totalmente as fazendas”.14 Nesse contexto, em busca de explorar o rio Trombetas e seus afluentes, Antônio Tocantins deparava-se com proprietários de fazenda preocupados com os excessos das águas. A corre-ção desse problema, para o engenheiro, tinha como caminho a “descoberta” de outros cam-pos na própria região para que o gado pudesse permanecer no tempo das enchentes. Com a expedição, o engenheiro apontava campos nas comarcas de Óbidos, Alenquer e Monte Alegre, estendendo-se até as fronteiras do Amazonas. Se a descoberta de outros campos viáveis para a criação de gado aparecia como uma solução para o problema das enchentes, Antônio Tocantins não deixou de descrever outros elementos dessa paisagem. Um exemplo disso eram “milhares de miritiseiros e açaiseiros” nas margens do rio, e “matas virgens (…) ricas em produto naturais” como a “castanha do país (Bertholetia Excelsa)”. Igualmente, ha-via “grande abundância de cumaru, breu, salsa, copaíba”, e uma “extraordinária quantidade de madeiras de construção”.15

Embora talvez trazidas à tona com certo tom de novidade, as informações do engenheiro não eram novas para as populações que viviam naquela região. Modelar nesse sentido é um editorial de 1872 do jornal Baixo-Amazonas, de Santarém (Pará) em que o articulista acredi-tava no florescimento da “civilização no Tapajós”. Tal processo se daria pela imigração e pelo comércio de produtos como cana, café, arroz, milho, tabaco, salsa, guaraná, goma elástica. Para fortalecer seus argumentos e atestar a “fertilidade do solo” o articulista alertava que na-quela região não existiam “somente o peixe e o cacau”. Concluía fazendo uma previsão de que Santarém floresceria servindo de “centro para um importante comércio no Tapajós”.16

12 Folha do Norte. Belém, 3 de setembro de 1898, p. 1.13 Relatório com que Duarte Huet Bacellar Pinto Guedes passou a administração do Estado do Pará ao Go-vernador Dr. Lauro Sodré. Belém: Typ. do Diário Oficial, 1891, p. 48.14 Idem.15 Idem, p. 49.16 Baixo-Amazonas. Santarém (PA), 6 de julho de 1872, p. 1.

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Vinte e um anos depois desses relatos, em 1893, sem o otimismo do articulista do “Baixo-Amazonas”, o governador do Pará, Lauro Sodré, mostrava-se preocupado com o definhamento da indústria pastoril no estado gerado pelas “dificuldades que a natureza lhe impõe”. Tomava como exemplo a ilha do Marajó, que, segundo o governador, teria condições de “ser o grande celeiro” que abasteceria a capital, mas que em função desses problemas, dos pesados impostos e até do roubo de gado, acabava por não ampliar o co-mércio da pecuária.17

Conforme asseveramos anteriormente, tais problemas enfrentados no interior do estado não deixavam de se expressar na capital paraense, que sofria “pela elevação dos preços dos gêneros de primeira necessidade”. Tal problema de abastecimento se complicava também pela “escassez de carne verde e natural subida dessa mercadoria”.18 Com a mesma ênfase de seu antecessor em 1898, o governador Paes de Carvalho apontava a importância da indústria pastoril na medida em que seu desenvolvimento dizia respeito à solução de um grave proble-ma que era o da “alimentação pública”. Para Paes de Carvalho, parecia evidente também a correção dos “inimigos naturais” dessa indústria com o incentivo e amparo à criação de gado e igualmente coibindo os “ataques criminosos”.19

Assim, quando nos preocupamos com as conexões entre a floresta e a cidade, percebemos que se os problemas desencadeados pelos tais “excessos da natureza” se davam no interior do Pará, as consequências desse processo, em certa medida, tinham seu principal reflexo não no seu lugar de origem — em que a população certamente já havia criado os meios necessários para conviver com essas intempéries —, mas na capital paraense, na medida em que, por exemplo, muitos moradores não tinham possibilidade de adquirir “carne verde” devido aos altos preços.20 Em 1898, o jornal Folha do Norte noticiava o aumento do preço da carne “nos talhos do mercado”.21 No final desse mesmo ano, os problemas com a carne continuavam pela falta do produto. Especulava-se na imprensa que se não chegasse o “gado do Maranhão”, a população não teria como consumir carne.22 No ano seguinte, 1899, com o sugestivo título “A fome”, noticiava-se que se tinha “mais um dia de carne escassa no mercado”.23 Essas notícias reforçam nossos argumentos da intrínseca ligação entre as áreas rurais e a cidade de Belém.

17 Mensagem dirigida pelo Governador Lauro Sodré ao Congresso do Estado do Pará em 1o de fevereiro de 1893. Belém: Typ. do Diário Oficial, 1893, p. 31.18 Idem, p. 28.19 Mensagem dirigida ao Congresso Legislativo pelo Governador José Paes de Carvalho. Belém: Typ. do Diário Official, 1897, p. 23.20 Macêdo discutindo alimentação em Belém no século XIX relaciona os constantes roubos de gado na região do Marajó à “carestia de carne verde” no mercado de Belém. MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira de. Do que se come: uma história do abastecimento e da alimentação em Belém 1850-1900. São Paulo: Alameda, 2014. p. 120-124.21 Folha do Norte. Belém, 6 de maio de 1898, p. 1.22 Folha do Norte. Belém, 11 de dezembro de 1898, p. 1.23 Folha do Norte. Belém, 10 de fevereiro de 1899, p. 2.

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A década de 1890, em virtude de enchentes que faziam definhar o rebanho, é marcada por constantes preocupações em relação aos problemas da indústria pastoril no Pará. Em maio de 1894, por exemplo, Luiz Rodolfo Cavalcanti de Albuquerque, ao publicar o traba-lho A Amazônia em 1893, ressaltava que o tema do gado ganhava as páginas da imprensa em “animada discussão (…) diária”.24 Tais discussões possivelmente levariam com o passar do tempo a outras preocupações em relação a uma modernização da pecuária. Segundo Medrado, é no início do século XX que a criação de gado é “atingida pelos discursos de modernização pautados na seleção genética do rebanho”, o que segundo a autora alteraria a “paisagem rural brasileira”.25 No contexto aqui trabalhado, as preocupações ainda não se voltavam para incrementos tecnológicos, mas muito mais, conforme vimos, para um como adequar a criação bovina à natureza amazônica. Ao mesmo tempo demonstram que as au-toridades paraenses e articulistas que escreviam em periódicos da capital, mesmo vivendo na região amazônica, pareciam não compreender muito bem as contradições da exuberância das florestas e dos rios e os enfrentamentos que as populações da floresta das áreas rurais e até mesmo da capital paraense acabavam tendo com esses espaços. Nesse contexto, conforme veremos a seguir, o ensino agrícola para esses sujeitos era uma solução para tais problemas, e uma medida fundamental para a modernização do Pará.

O ensino agrícola

Com o advento da República as preocupações com o que era considerado arcaico cons-tantemente foram evidenciadas tanto nos pronunciamentos dos poderes públicos como na imprensa paraense. Diante desses anseios de modernidade, ganhava força na fala dos pode-res públicos a ideia de que a lavoura desenvolvida no Pará era “atrasadíssima”, ou “estacioná-ria nos tempos coloniais”. Tal problema para as autoridades paraenses só seria resolvido com o ensino agrícola, que com bases científicas prepararia o agricultor acostumado “a bronca rotina”, para uma produção a partir de métodos mais modernos.26 Nesse contexto, o colono que se dedicava aos trabalhos na lavoura não deixava de ser visto por observadores da região com preconceitos, como alguém inapto para a agricultura, imputando-se aos seus métodos o fracasso da lavoura. Para se ter uma ideia disso, em 1907, C. F. Baker, da Seção Botânica

24 ALBUQUERQUE. Luiz R. Cavalcanti de. A Amazônia em 1893. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1894. p. 173.25 MEDRADO, Joana. Do pastoreiro à pecuária: a invenção da modernização rural nos sertões do Brasil central. Tese (doutorado) — Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. 2013, p. 88. Disponível em: <http://www.historia.uff.br/stricto/td/1443.pdf>.26 Essas expressões são encontradas nas seguintes Mensagens: Mensagem dirigida ao Congresso do Estado do Pará pelo José Paes de Carvalho, Governador do Estado em 15 de abril de 1899. Belém: Typ. do Diário Oficial, 1899, p. 24. Mensagem dirigida ao Congresso do Estado do Pará pelo Dr. José Paes de Carvalho. Belém: Typ. do Diário Official, 1900. p. 69.

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do Museu Goeldi, mostrava-se admirado com o modo como se plantava tabaco em Irituia (Pará). Segundo Baker, os lavradores desconheciam as “charruas, grades e cultivadores”, utilizando-se assim “mais ou menos” os mesmos métodos “que existiam entre os índios, antes da chegada dos brancos”.27 Em meados do século XX, alguns estudiosos da região continuavam a reforçar tal pensamento. Em 1958, o geógrafo Dirceu Mattos afirmava que “a devastação da mata” com “derrubadas e queimadas para a prática da agricultura” teria reduzido a região bragantina a uma “paisagem menos rica e exuberante”.28 Na década de 1960, o geógrafo Antônio Rocha Penteado também afirmava que nessa área “o extrativismo desenfreado e as queimadas das roças” substituíram “primitivas matas”.29

Tais compreensões, ainda que resultado de pesquisas, incorrem no equívoco de se co-locar na responsabilidade do lavrador, em função de sua falta de modernização, os fracas-sos da lavoura. Nesse sentido pode-se dizer que esses estudiosos da região amazônica se aproximaram, nas suas análises, do pensamento dos poderes públicos do século XIX, e de observadores da região, como Baker (1907). Entendendo os agricultores como atrasados e pouco civilizados, desconsiderando a cultura dos lavadores do interior do Pará, que associa-vam muitas vezes a lavoura com o extrativismo, tais observadores viam no ensino agrícola a solução para este problema.

As preocupações em torno da forma como o lavrador produzia não deixam de expressar um descompasso entre as técnicas agrícolas que as autoridades acreditavam que poderiam ser adotadas pelos trabalhadores, por meio do ensino, e a realidade de lavradores pobres do interior do Pará. Na verdade, esta não foi somente uma peculiaridade da Amazônia. Frago-so, analisando a agricultura fluminense do século XIX, demonstra que se confrontava a agrí-cola brasileira com a europeia, “onde a civilização e os povos inteligentes são identificados com a Europa e a não civilização com os países tropicais”. Desse modo o cultivo agrícola, marcado pela derrubada, queimada e abertura de roças era percebido como destruidor da natureza. Por outro lado, o autor ainda enfatiza o fato de que a importação de tecnologia

27 Relatório sobre uma viagem a Irituia, apresentado ao Diretor do Museu pelo Professor C. F. Baker, M. A. Auxiliar científico da secção botânica do Museu Goeldi. In: Mensagem dirigida em 7 de setembro de 1908 ao Congresso Legislativo do Pará pelo Dr. Augusto Montenegro. Belém: Imprensa Oficial do Estado do Pará, 1908, p. 218-219. Tal questão já foi abordada por Lacerda em: LACERDA, Franciane Gama. Migrantes cearenses no Pará: faces da sobrevivência (1889-1916). Belém: Açaí/Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia (UFPA)/Centro de Memória da Amazônia (UFPA), 2010, p. 337-338. Essa não foi uma preocupação apenas dos governos republicanos. Nunes aponta a presença desse debate sobre o Pará já na década de 1870. NUNES, Francivaldo. Benevides: uma experiência de colonização na Amazônia no século XIX. Rio de Janeiro: Corifeu, 2009. 28 MATTOS, Dirceu Lino. Impressões de uma viagem à zona bragantina do Pará. Boletim Paulista de Geo-grafia, n. 30, p. 45-46, 1958. 29 PENTEADO, Antonio Rocha. Problemas de colonização e de uso da terra na região Bragantina do Estado do Pará. Belém: Universidade Federal do Pará, 1967. p. 139. Segundo Santos “o colono (…) ainda que sem consciência se tornava um fazedor de deserto”. SANTOS, Roberto. História econômica da Amazônia (1800-1920). São Paulo: T. A. Queiroz, 1980. p. 105.

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europeia nem sempre atendia às necessidades de uma agricultura nos trópicos, onde um dos principais problemas era o “excesso de aquecimento da terra”, diferente do que acontecia em solo europeu.30 Preocupando-se com questão semelhante, Cribelli, discutindo as tentativas dos usos do arado por reformistas da agricultura brasileira de meados do século XIX, as-sinala várias motivações para os agricultores resistirem aos usos dos arados. Destaca assim problemas como dificuldades com transporte, manutenção e custos dos equipamentos, e até mesmo “atitudes sociais em relação à nova tecnologia”, como o medo de que as máquinas modificassem os regimes de trabalhos já estabelecidos, fazendo com que se evitasse o uso do arado, permanecendo os “métodos agrícolas tradicionais”.31 Para a autora, a crítica feita ao método de cultivo tradicional não foi somente um “um desejo ‘desafricanizar’ a nação” ou de “racionalizar a agricultura”, foi também “um esforço para transformar cuidadosamente a economia e a sociedade brasileiras (…) para instituir novas possibilidades para a geração de riquezas através da valorização da terra”.32

Em relação a questão semelhante, Christillino, estudando o Rio Grande do Sul no sécu-lo XIX, aponta outro aspecto em relação às práticas dos agricultores, que era uma tentativa de controle por parte do Estado, da terra e seus trabalhadores. No Rio Grande do Sul, onde também havia uma associação entre o extrativismo de mate e uma pequena agricultura exe-cutada pela família, havia uma preocupação das autoridades com os deslocamentos inerentes a esta atividade. Para o autor as “terras florestais brasileiras transformaram-se cada vez mais em uma questão social ao longo da segunda metade do século XIX, pois ofereciam refúgio à ação repressiva do Estado”.33 Na Amazônia pós-Cabanagem, também se intensifica uma preocupação com as populações que estão no interior e que também precisavam se deslocar em função de atividades de pesca e de coleta de produtos da floresta. Visando a civilização desses grupos pelo trabalho agrícola, Fuller enfatiza a criação pelas autoridades paraenses dos “Corpos de trabalhadores” que intensificaram o controle social das populações que vi-viam em áreas rurais e de floresta.34 Nesse âmbito, o ensino agrícola era pensado como uma forma de civilização das populações rurais pela aquisição de novas técnicas para o cultivo.

Ainda nas primeiras décadas do século XX, com os abalos sofridos na economia amazô-nica pela diminuição das exportações do látex, o discurso da imprensa paraense reiterava a

30 FRAGOSO, João Luís Ribeiro. A roça e as propostas de modernização na agricultura fluminense do século XIX: o caso do sistema agrário escravista-exportador em Paraíba do Sul. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 6, n. 12, p. 140-141, mar./ago. 1986.31 CRIBELLI, Teresa. O mais útil de todos os instrumentos: o arado e a valorização da terra no Brasil no século XIX. In: MOTTA, Márcia; SECRETO, Verónica (Orgs.). O Direito às avessas: por uma história social da propriedade. Guarapuava: Unicentro, 2011; Niterói, EDUFF, 2011. p. 306-308.32 Idem, p. 311.33 CHRISTILLINO, Cristiano Luís. Litígios ao sul do império: a Lei de Terras e a consolidação política da coroa no Rio Grande do Sul (1850-1880). Tese (doutorado) — Programa de Pós-Graduação em História da Univer-sidade Federal Fluminense, 2010, p. 238.34 FULLER, Claudia Maria. Os corpos de trabalhadores: política de controle social no Grão-Pará. In: Fascí-culos LH, n. 1. Belém: Laboratório de História/ Departamento de História, UFPA, 1999.

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necessidade do ensino agrícola. No jornal A Palavra tal questão aparecia com frequência na coluna “Lavoura e Criação”, como sendo “o nosso problema rural”. Na fala de um articu-lista d’A Palavra, Eloi-Sully, aparece a ideia de que não bastava ao agricultor ter nascido no campo e aprender através da experiência a cultivar o solo. Para ser “digno verdadeiramente deste qualitativo”, além da experiência tradicional, o lavrador deveria conhecer também os fenômenos naturais, sabendo como utilizá-los em seu favor e como evitar seus efeitos, possuindo “exatidão, método e pontualidade em tudo”.35 Para o articulista, seria então um conhecimento mais metódico que daria legitimidade ao agricultor. Por essa perspectiva apre-sentada no jornal A Palavra, os trabalhadores que há anos viviam do cultivo da terra, mas que, entretanto, tinham técnicas entendidas como rudimentares e atrasadas, não poderiam, sequer, ser considerados agricultores, apesar da experiência no amanho da terra. Ao mesmo tempo, conforme aponta Lourenço — ainda que não se referindo ao Pará —, tal agricultura era “praticada por todos os lavradores” desde o “roceiro mais pobre” até o “mais opulento dos senhores”.36

Na verdade, preocupações com técnicas mais modernas em relação à produção agrícola, conforme já apontamos, não eram mais nenhuma novidade no início do século XX. En-tretanto, num Pará marcado pela crise econômica provocada pelas exportações de látex do sudeste asiático, tais preocupações talvez se tornassem mais evidentes, em virtude da pró-pria experiência de perda do monopólio gomífero da Amazônia, justamente pela plantação sistemática desse produto.37 Em relação às preocupações com a produção agrícola no Pará percebemos que na análise do discurso jornalístico, embora a Europa aparecesse como o modelo de civilização e modernidade, havia também uma preocupação em adaptar as técni-cas, os métodos e as espécies vegetais, às condições de clima e às possibilidades agrícolas do Pará. Tal preocupação se manifesta na fala do articulista Eloi-Sully. Para ele, o bom êxito da produção se iniciava na escolha de uma boa semente, cujo principal requisito seria a “adap-tabilidade ao ambiente regional”.38

Assim, é possível pensar que na Amazônia o sucesso da cultura da seringueira na Ásia trouxe à tona uma preocupação com uma produção agrícola mais sistemática. Na fala dos poderes públicos paraenses, e pelo olhar de muitos articulistas da imprensa, a preparação do agricultor para tais atividades só se daria por meio de um ensino prático e sistemático, que teria como resultado a modernização do Pará. Desse modo, já em 1892, o governador Lauro Sodré acreditava na “criação e divulgação do ensino agrícola” que deveria ser ministrado

35 A Palavra. Belém, 9 de maio de 1918, p. 2.36 LOURENÇO, Fernando. Agricultura ilustrada: liberalismo e escravismo nas origens da questão agrária brasileira. Campinas: Editora da Unicamp, 2001. p. 163.37 Sobre as preocupações científicas em relação à borracha na Amazônia ver: CASTRO, Anna Raquel de Matos. Do ponto de vista do cientista: Jacques Huber e a borracha na Amazônia (1907-1914). Dissertação (mestrado) — Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia. Belém: Universidade Federal do Pará, 2013.38 A Palavra. Belém, 29 de abril de 1918, p. 1.

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“sob o ponto de vista prático” e “útil”, e igualmente “fugindo da formação de doutores e agrônomos”.39 Pensamento semelhante teve seu sucessor, Paes de Carvalho, que afirmava em Mensagem de 1901 o fato de que só seria possível uma agricultura mais sistemática com “uma grande e incessante propaganda contra a rotina de (…) primitivos hábitos de trabalho”. Visando tais objetivos conforme já apontara o governador Lauro Sodré, Paes de Carvalho também acreditava no “ensino científico e prático” a partir da “demonstração experimental diante de processos e agentes modernos” e também “com a distribuição gratuita e em grande escala de instrumentos e de semente”.40 Ironicamente, nos anos que se seguiram a esses pro-nunciamentos o extrativismo da borracha consolidava-se como a atividade econômica mais importante do estado do Pará.

Tais compreensões no Pará teriam seus desdobramentos, a partir da constituição, entre outras medidas, de núcleos coloniais nas últimas décadas do século XIX. Entretanto, à me-dida que estes iam se consolidando, trazia-se à tona pela imprensa e por meio das mensagens dos governadores do Pará justamente as dificuldades de se praticar a agricultura. Desse modo, em 1907, na zona bragantina, era fundada a “Estação Experimental de Agricultura Prática de Igarapé Assú”, que visava “estabelecer culturas em campos de experiência”, além de “introduzir e propagar o emprego de adubos químicos e de instrumentos aratórios e de mecanismos para beneficiar os produtos colhidos e para simplificar e baratear os produtos agrícolas”.41

Ao mesmo tempo, o que também era tradicionalmente plantado pelos colonos, como feijão, milho, cana de açúcar, mandioca, laranjas, limões, abacates, bananas, deveria ser as-sociado a novos produtos, como o sargo, a videira, a soja, o trigo, a partir de um processo de aclimatação dessas plantas.42 Tais tentativas de aclimatação revelam o interesse pelo plantio de novas espécies na Amazônia, uma vez que esses produtos poderiam ser consumidos e conhecidos no Pará. Desse modo, pode-se pensar que nesse processo houve uma tentativa de civilização pela introdução de outras culturas agrícolas por parte dos poderes públicos paraenses, responsáveis pelas estações experimentais de agricultura e pela distribuição de sementes entre os agricultores.

Apesar disso, quando, em 1916, o Pará participava de uma “Exposição de Frutas e Produ-tos Industriais no Rio de Janeiro”, o que aparecia no mostruário da delegação paraense eram produtos muitos conhecidos da maioria da população, como: banana, abacaxi, abricó, tape-

39 Mensagem dirigida pelo Governador Dr. Lauro Sodré ao Congresso do Estado do Pará em 1o de julho de 1892. Belém: Typ. do Diário Official, 1892, p. 23-24.40 Mensagem dirigida ao Congresso do Estado do Pará pelo Dr. José Paes de Carvalho. Belém: Imprensa Oficial, 1901, p. 71.41 Mensagem dirigida ao Congresso Legislativo do Pará pelo Dr. Augusto Montenegro Governador do Esta-do. Belém: Imprensa Oficial, 1907, p. 6.42 Mensagem dirigida ao Congresso do Estado do Pará pelo Dr. José Paes de Carvalho. Belém: Typ. do Di-ário Official, 1900, p. 74; Mensagem dirigida ao Congresso Legislativo do Pará pelo Dr. João Antônio Luiz Coelho. Belém: Imprensa Oficial do Estado do Pará, 1911, p. 136.

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rebá, bacuri, cupuaçu, muruci, castanha-do-Pará, laranja, produtos derivados dessas frutas como “doces e compotas de cacau”, “farinhas de banana e macaxeira”, “licor de taperebá”, “suco de maracujá”.43 A lavoura desses produtos, para o governador do Pará, Enéas Martins, seria o caminho para “libertar o Estado da tirania da borracha, pondo-o em condições de prosperidade econômica estável”.44

Nesse contexto de declínio das exportações do látex e de luta pela agricultura, as autori-dades paraenses não tinham que se preocupar apenas com a aclimatação de novas plantas, mas igualmente, com a construção de um gosto alimentar acerca de muitos desses produtos. De fato, alguns gêneros agrícolas, por volta de 1918, não deixavam de causar estranhamento e até mesmo rejeição por parte da população paraense. O articulista d’A Palavra, Eloi-Sully, afirmava que não existia uma devida valorização das novas espécies de hortaliças, que foram introduzidas pelo estabelecimento experimental de agricultura, sendo raros “os apreciadores da bertalha, do jiló, taioba, do aipo, do funcho, e dos aspargos”.45 Talvez tais produtos e o cultivo deles fossem importantes enquanto elementos civilizacionais, se não o eram, os po-deres públicos e negociantes paraenses pareciam querer acreditar nisso.

Ao analisarmos a situação do ensino agrícola no Pará, encontramos certas divergências no discurso da imprensa e das autoridades. Se de um lado os governantes se orgulhavam dos campos e das estações experimentais, de outro, percebemos, por meio da imprensa, o quanto os tais novos conhecimentos agrícolas ainda eram restritos. Desse modo, em 1911, o governador João Coelho afirmava em tom ufanista que as chamadas estações experimentais “constituíam verdadeiras escolas práticas”. De fato, o governador parecia acreditar nessa premissa ao enfatizar que nesses espaços rurais “o lavrador facilmente se preparava, pelo exemplo, pela inspeção, pela observação e pela experiência, para aplicar em suas terras os novos processos de cultivo econômico do solo”.46

A documentação pesquisada sugere que o ensino agrícola não tinha o único sentido de desenvolver e modernizar a agricultura. As preocupações dos governantes paraenses iam além, passando por uma ideia de civilização das novas gerações. Tal preocupação, como en-fatiza Fernando Lourenço, existia desde o império, quando já se discutia qual seria o papel do ensino agrícola no Brasil.47 Assim, alguns anos depois dos pronunciamentos do gover-

43 Mensagem dirigida ao Congresso Legislativo do Pará pelo Dr. Enéas Martins. Belém: Imprensa Oficial do Estado do Pará, 1916, p. 103.44 Idem, p. 93.45 A Palavra. Belém, 17 de fevereiro de 1918, p. 1.46 Mensagem dirigida ao Congresso Legislativo do Pará pelo Dr. João Antônio Luiz Coelho Governador do Estado. Belém: Imprensa Oficial do Estado do Pará, 1911, p. 131.47 Em relação ao império, Lourenço lembra que “muitas polêmicas foram travadas sobre qual deveria ser o pa-pel do ensino agrícola no país. (…) Combinada a uma vigilante política de imigração que vedasse a entrada de raças degeneradas, os aprendizados e as escolas práticas de agricultura seriam concebidos como instituições (…), voltadas para a formação educacional e (…) profissional da nova mão de obra que deveria substituir o braço escravo.” LOURENÇO, Fernando, op. cit, p. 164-165.

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nador João Coelho, um articulista do jornal A Palavra criticava as “Escolas de Agronomia”, dizendo que estas, em vez de prepararem os homens do campo, preparavam os moços da cidade, que estavam muito mais preocupados com um título de “doutor” e um status social do que com o desenvolvimento da lavoura.48

Nesse momento, o governo paraense não deixou de se preocupar com as crianças e jovens pobres, buscando incutir nestes o amor ao trabalho agrícola, para que, quando adultos, es-tivessem aptos a contribuir para o desenvolvimento do Pará. Assim, no início da década de 1910 o governador João Coelho demonstrava o desejo de inserir nas escolas primárias “lições de coisas e fatos com aplicação para a agricultura, para criar e nutrir um espírito de simpatia a favor dos trabalhos agrícolas”.49

Tal afirmação não deixa de desconsiderar a experiência agrícola de variados trabalha-dores que a seu modo trabalhavam no interior do estado do Pará, produzindo e associando o amanho da terra ao extrativismo. Se não tinham “simpatia”, como queria o governador, certamente trabalhavam com afinco, uma vez que para muitos desses trabalhadores, o cul-tivo da terra era a fonte de sua sobrevivência. Algumas experiências da vida cotidiana de la-vradores do interior do Pará trazidos à tona por meio de jornais contribuem para pensarmos nas dificuldades enfrentadas por tais trabalhadores. Em 1900, quando da chegada de muitos migrantes cearenses ao Pará a imprensa denunciava as dificuldades de grupos que viviam em núcleos coloniais da chamada zona bragantina. Na colônia agrícola Benjamin Constant afirmava-se faltar “medicamento, alimentação, tudo quanto lhes prometeu o governo”.50 Também em 1900, denunciava-se um surto de varíola que atacava os colonos da vila de Aca-rá. Na ocasião dizia-se na imprensa que nenhuma providência teria sido tomada “naquela vila para evitar a propagação do mal”.51 Do mesmo modo, no interior do Pará a necessidade da compra de “mercadorias a crédito”, em virtude do endividamento do agricultor, não raro foi fonte de conflitos e violências.52

Assim, a necessidade do ensino agrícola era uma fala constante por parte dos governa-dores e jornais paraenses, uma vez que se acreditava na formação das novas gerações para o trabalho agrícola. Eloi-Sully, o articulista d’A Palavra, defendia a utilidade da instrução primária para a vida econômica do Estado, de modo que nas escolas primárias rurais o ensi-no fosse eminentemente agrícola e pudesse levar aos alunos do interior do estado noções de trabalho na terra e patriotismo. Para ele a construção da “vida nacional” se daria também

48 A Palavra. Belém, 24 de fevereiro de 1918, p. 1. Sobre escolas de agronomia ver por exemplo: ARAUJO, Nilton de Almeida. A escola agrícola de São Bento das Lages e a institucionalização da agronomia no Brasil (1877-1930). Dissertação (mestrado). Feira de Santana-Salvador/BA: UFBA/UEFS, 2006.49 Mensagem dirigida ao Congresso Legislativo do Pará pelo Dr. João Antônio Luiz Coelho. Belém: Imprensa Oficial do Estado do Pará, 1911, p. 132-133.50 Folha do Norte. Belém, 8 de agosto de 1900, p. 1. 51 Folha do Norte. Belém, 10 de agosto de 1900, p. 2.52 A Tarde. Belém, 27 de outubro de 1916, p. 3.

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pelas “indústrias rurais”. Assim, “não preparar o menino para compreendê-las, servi-las e amá-las” seria o mesmo que “não prepará-lo para a vida nacional”.53

Na verdade, os anseios d’A Palavra iam ao encontro do discurso do governo federal, que via no trabalho agrícola uma forma de civilizar e disciplinar as novas gerações. De fato, o ministro da Agricultura, nesse mesmo contexto, compreendia que era fundamental a “aprendizagem das práticas agrícolas” por parte da chamada “infância desvalida”, por meio da internação nos “patronatos agrícolas”, espaços nos quais crianças e jovens, além da apren-dizagem de “ofícios agrícolas”, receberiam uma “cultura cívica”, pensada ainda em 1918 como uma “tarefa fundamental humanitária e republicana”.54 No estado do Pará, de acordo com Relatório do Ministério da Agricultura em 1920, é que se instalaria um “Patronato Agrícola” na ilha do Outeiro, próxima a Belém.55

Medidas dessa natureza já no início do século eram tomadas pelo governo estadual como forma de construção da civilização. Bom exemplo disso foi a Colônia de Maracanã, na costa atlântica do Pará. Em 1901, as atividades da colônia voltavam-se para a formação de meno-res “desvalidos”, como meninos indígenas ou filhos de migrantes da atual região nordeste do Brasil que se encontravam no Pará.56 A Folha do Norte acreditava que crianças e jovens man-dados de Belém para aquele espaço se “regeneravam”, deixando de ser “incorrigíveis larápios” por meio do trabalho em Maracanã. Não à toa, em uma festa nessa colônia o “Inspetor de Terras” distribuía “prêmios” para os melhores alunos, e “títulos provisórios” de terra para “65 famílias” que viviam naquela área.57 Tais experiências nos sugerem uma perfeita associação entre trabalho na terra e formação agrícola, pensadas como elementos disciplinadores para os grupos menos favorecidos e, por conseguinte, como meios para a civilização no contexto republicano. Ao mesmo tempo conectam Belém a essas áreas rurais aqui pensadas como espaços de segregação de crianças e jovens que poderiam perturbar a ordem urbana.

Passados alguns anos, em janeiro de 1918, um articulista d’A Palavra, falando da Primei-ra Guerra Mundial, associava a cultura do solo ao amor à pátria, que deveria ser ensinado, especialmente aos jovens, por meio da educação e do trabalho. Num estado do Pará marca-do pelo extrativismo de produtos florestais e pela queda nas exportações de borracha, este seria um apelo importante das autoridades e da imprensa para entusiasmar os lavradores, pensados por tais sujeitos como nem sempre afeitos ao trabalho na terra, conforme vimos até aqui. De fato, naquele ano, pronunciamentos dessa natureza não deixaram de aparecer

53 A Palavra. Belém, 17 de janeiro de 1918, p. 1.54 Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Ministro de Estado da Agricultura Indústria e Commercio, Dr. João Gonçalves Pereira Lima. 1918, p. 133-156.55 República dos Estados Unidos do Brasil — Presidência Epitácio Pessoa — Relatório apresentado ao Presi-dente da República pelo Ministro de Estados dos Negócios da Agricultura Indústria e Commercio Idelfonso Simões Lopes. Rio de Janeiro: Papelaria e Typographia Villa Boas & C, 1921.56 CRUZ, Ernesto. Colonização do Pará. Belém: Conselho Nacional de Pesquisas/Instituto Nacional de Pes-quisas da Amazônia, 1958. p. 131.57 Folha do Norte. Belém, 9 de janeiro de 1901, p. 1.

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nas páginas do periódico A Palavra, a exemplo de uma circular do arcebispo do Ceará, que recomendava aos “vigários” que agissem junto aos “fiéis” para que estes intensificassem a “cultura do solo”.58

Igualmente, temos um “apelo” de Vieira Souto, delegado executivo da Produção Na-cional, que em 1918 exortava o cultivo do campo com “afinco e entusiasmo” como um “dever patriótico” para com o Brasil e as nações dos países aliados. Desse modo, dizia que a “Europa, ameaçada de sofrer o martírio da fome”, reclamava “de toda a América o socorro de pronto avultado abastecimento de gêneros”. Segundo Vieira Souto o governo federal considerava “tão valiosos os serviços do soldado nos campos de batalha, como dos agricultores que, para alimentá-lo, trabalham nos campos de lavoura”. Visando tais obje-tivos, o comunicado, num esforço de guerra, convocava os agricultores, mesmo que tão distantes do front das batalhas europeias: “Cultivai, pois, os campos (…) cultivai-os desde a madrugada até o anoitecer”.59

Nesse contexto da Primeira Guerra Mundial, para a constituição do desenvolvimento do Pará, os jornais e poderes públicos paraenses traziam à tona um problema que consideravam mais um entrave aos progressos do estado. Trata-se das questões de saúde vivenciadas no interior da Amazônia. Ao mesmo tempo, tal questão não deixava, igualmente, de ligar as áreas rurais à cidade de Belém. Por meio da fala dos articulistas d’A Palavra sugere-se que o apelo patriótico do cultivo da terra esbarrava, mais uma vez, no próprio trabalhador.

Saneamento rural

Analisando o jornal A Palavra, percebemos que a questão do ensino agrícola se desdo-brava ainda no que o jornal produzido na cidade de Belém chamava de “saneamento rural”. Desse modo, por meio de uma imprensa que era urbana, e de e articulistas que viviam na cidade de Belém, alertava-se para o fato de que não bastava uma instrução que ensinasse o cultivo da terra, mas precisava-se ensinar ao agricultor sobre a transmissão e prevenção de doenças. Segundo os articulistas d’A Palavra de nada valeria modernizar as técnicas, pois o homem rural estava doente e esta condição prejudicava seu trabalho e o desenvolvimento da agricultura. Eloi-Sully, nosso já conhecido articulista d’A Palavra, propunha que nas escolas

58 A Palavra. Belém, 24 de janeiro de 1918, p. 2.59 A Palavra. Belém, 21 de fevereiro de 1918, p. 2. O mesmo apelo aparece também em A Palavra. Belém, 28 de fevereiro de 1918, p. 2. Discursos com teor semelhante são encontrados quando da Segunda Guerra Mun-dial. Não à toa essas atividades na floresta fizeram parte da “Batalha da Borracha”. DEAN, Warren. A Bata-lha da Borracha, 1940-1945. In: A luta pela borracha no Brasil: um estudo de História ecológica. São Paulo: Nobel, 1989. p. 107-130; SECRETO, María Veronica. Fúria epistolar: As cartas das mulheres dos Soldados da Borracha. Uma interpretação sobre o significado da assistência às famílias. Esboços (UFSC), Florianópolis, v. 14, p. 171-190, 2005; SECRETO, María Veronica. A ocupação dos “espaços vazios” no governo Vargas: “Discurso do rio Amazonas” à saga dos soldados da borracha. Estudos Históricos, n. 40, p. 115-135, 2007.

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rurais existisse uma preocupação com a aprendizagem de medidas profiláticas. O articulista defendia que “a saúde das classes produtoras” aliada a uma “instrução profissional funda-mentalmente agrícola” seriam essenciais para a “prosperidade geral”.60

Na verdade as propostas do articulista d’A Palavra se inseriam em um contexto de preocupações maiores, que nos últimos anos da década de 1910 começavam a ganhar força entre médicos e intelectuais que circularam por regiões diversas do interior do Brasil. Tra-tava-se da ideia do descaso em que viviam muitos brasileiros sem a assistência do Estado, vivendo à margem do que se considerava civilização nos sertões do Brasil. É importante notar como os jornais ajudam a difundir um debate que ocorria de forma intensa nos círculos médicos, ampliando seu alcance e tentando convencer a sociedade da importân-cia e da urgência do saneamento rural. De fato, Gilberto Hochman aponta que os atores do processo de saneamento rural foram muito variados e que em conjunto esses sujeitos foram capazes de difundir socialmente o caráter público da doença e um diagnóstico das condições sanitárias do país.61

Neste contexto se inserem as campanhas sanitaristas dos médicos Belisário Pena e Ar-thur Neiva, que influenciariam na criação do “Serviço de Profilaxia Rural” pelo presidente Wenceslau Brás, em 1918.62 Também é representativo deste contexto o personagem “Jeca Tatu”, de Monteiro Lobato, cuja redenção que o leva à prosperidade vinha justamente do poder da medicina, por meio do médico que constata que a sua indolência era resultado de sua falta de saúde e não exatamente de seu desinteresse pelo trabalho.63 Analisando artigos de Monteiro Lobato da primeira década do século XX, Campos enfatiza que muitas dessas ideias da miséria, do atraso do país imputadas ao trabalhador rural eram uma “perspectiva comum na época, onde predominavam as concepções do darwinismo social (…) entre inte-lectuais brasileiros”. Ainda segundo o autor, Monteiro Lobato faz uma revisão de suas ideias e passa a pensar que a pequena produtividade não era decorrente da indolência do lavrador, mas das “doenças endêmicas” produto de uma “situação social de injustiça”.64

Assim, ao mesmo tempo que jornais como A Palavra pressionavam as autoridades em relação aos problemas de saúde das áreas rurais, a própria medicina passava por avanços. Na virada do século XIX para o XX, ganhavam força estudos que relacionavam doenças como a febre amarela e a malária à transmissão feita por mosquitos. Se tal constatação nos parece hoje muito natural, não o era para a medicina do período, que até então atribuía às mudan-

60 A Palavra. Belém, 24 de fevereiro de 1918. p. 1.61 HOCHMAN, Gilberto. A era do saneamento. São Paulo: Hucitec, 2006. p. 41.62 Sobre campanhas sanitaristas ver: THIELEN, Eduardo Vilela; SANTOS, Ricardo Augusto dos. Be-lisário Penna: notas fotobiográficas. História, Ciência, Saúde, Manguinhos, v. 9 (2), maio/ago. 2002, p. 387-404.63 ALVES FILHO Aluízio. As metamorfoses do Jeca Tatu. A questão da identidade do brasileiro em Monteiro Lobato. Rio de Janeiro: Inverta, 2003.64 CAMPOS, André Luiz Vieira de. Terra, trabalho e progresso na obra de Monteiro Lobato. Revista Brasi-leira de História, São Paulo, v. 6, n. 12, mar./ago. 1986, p. 68.

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ças climáticas, aos miasmas, à insalubridade urbana e aos hábitos individuais a responsabili-dade pelas doenças infecciosas.65

No mesmo contexto, como parte das ações do “Plano de Defesa da Borracha”, tem-se a visita de uma comissão formada por médicos sanitaristas como Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, que objetivava avaliar as condições sanitárias dos principais centros de produção de borracha. Dessa visita, Oswaldo Cruz formulou um relatório sobre as doenças mais comuns na região, apontando o impaludismo como um problema de saúde constante.66 Em 1910, quando dessas visitas, o governador do Pará João Coelho registrava em sua Mensagem os esforços que seu governo tinha feito para acabar com doenças como febre amarela, malária, peste bubônica e até mesmo varíola, que conforme informava teria “focos em diferentes pontos da cidade e do interior do Estado”.67

Se havia uma preocupação com o saneamento e com a profilaxia de doenças, a execução dessas medidas era uma tarefa bastante complexa. Além da extensão e diversidade das áreas rurais, os recursos do Estado estavam escassos por conta da diminuição das exportações de látex. O articulista d’A Palavra J. C. Oliveira chega até mesmo a admitir que o Estado não tinha meios para realizar o saneamento do interior e que a União deveria assumir seu ônus.68 Embora A Palavra apontasse tais problemas, o governador do Pará, Lauro Sodré, em seu se-gundo mandato — possivelmente respondendo a críticas em relação às doenças que afligiam aos paraenses — afirmava com certa indignação o fato de que “os males” que castigavam o Pará eram os mesmos de todo o “país”. Ao mesmo tempo dava destaque aos seus esforços para “sanear a terra e acudir a vítimas das endemias com que a população lutava”.69 Desse modo, mesmo sem querer, Lauro Sodré acabava por deixar evidências dos problemas de saú-de que enfrentavam as populações mais pobres do estado conforme denunciava A Palavra.

Assim, outro articulista d’A Palavra reafirmava a urgência do saneamento rural. Ao fazer tal denúncia, O. D. Carneiro comparava o interior do Brasil a “um vasto hospital, mas sem enfermeiros e cataplasmas”. Segundo o articulista a solução para tais problemas poderia vir da instrução ministrada às crianças e aos jovens para que estes corrigissem os mais velhos e garantissem que a geração futura fosse “limpa, sã e laboriosa”. Desse modo, num tom higienista e civilizador, O. D. Carneiro afirmava que: “sem ensinar ao filho do impaluda-do, (…) como lutar contra o anopheles e como substituir seus métodos agrícolas (...) toda

65 No Pará Emílio Goeldi foi pioneiro desses estudos. Ver: SANJAD, Nelson. Da “abominável profissão de vampiros”: Emílio Goeldi e os mosquitos no Pará (1905). História, Ciências e Saúde, Manguinhos, v. 10, n. 1, jan./abr. 2003. 66 SANTOS, Roberto, op. cit, p. 252.67 Mensagem dirigida ao Congresso Legislativo do Pará pelo Dr. João Antônio Luiz Coelho. Belém: Imprensa Oficial do Estado do Pará, 1910, p. 78.68 A Palavra. Belém, 3 de outubro de 1919, p. 1.69 Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo do Estado do Pará pelo Governador Dr. Lauro Sodré. Pará: Typ. da Imprensa Official do Estado, 1919, p. 101-102.

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missão saneadora, toda prática litero-agricola não passará da primeira página dos jornais”.70 A fala do articulista também reafirma que a educação agrícola só seria completa se unisse a modernização das técnicas ao saneamento rural, sendo esta a principal condição para que a agricultura se desenvolvesse. Tal perspectiva, que conecta a cidade de Belém às áreas rurais e de floresta, não pode ser entendida distante de um ideal de civilização e de progresso que vindo da cidade pretendia disciplinar a vida das populações rurais intervindo na cultura desses grupos. Conforme vimos até aqui é possível dizer que esses grupos são vistos como que vivendo à margem do processo civilizacional em função da sua forma de produzir e igualmente das doenças que muitas vezes existiam nesses espaços. Na verdade, na Amazônia desse contexto, seria ingênuo considerar que as doenças estivessem restritas aos espaços ru-rais e de floresta, em uma cidade como Belém, cercada por rios e muito próxima à floresta. A linha entre o urbano, o rural e a floresta era de fato muito tênue. Não foi incomum um grande número de epidemias, que sem dúvida ligaram ao urbano e o rural no Pará.71

Em 1918 o jornal A Palavra denunciava que nos últimos anos as secas do Ceará trou-xeram para Belém grande número de migrantes que provocaram o surgimento de “novos bairros, formados por pobres populações alojadas em tugúrios de fortuna, sobre terrenos que de modo algum estavam preparados para recebê-las.” Segundo o jornal, o resultado disso foi o aumento do paludismo, já que parte considerável da população estava vivendo “em circunstâncias aproximadamente idênticas as dos exploradores e habitadores dos seringais, nos nossos sertões, e às margens dos rios”.72

Essas afirmações, que não deixam de ter um tom preconceituoso em relação aos migran-tes, apontam as contradições do processo de urbanização da capital paraense. Nos arrabaldes de Belém, a população pobre vivia em áreas cercadas de pântanos e igapós. Tais áreas, sendo propícias à proliferação de mosquitos, tornavam-se um ambiente perfeito para o paludismo. Observa-se que ao mesmo tempo que os jornais defendem o saneamento do interior e o iden-tificam com o sertão, constantemente se deparam com o sertão que existia dentro de Belém. Nísia Trindade destaca que o sanitarismo construiu uma imagem do sertão como sinônimo de doença e abandono.73 Desse modo, se nos subúrbios de Belém existia tanto uma grande

70 A Palavra. Belém, 7 de dezembro de 1919, p. 1.71 Para uma história das doenças, epidemias, práticas de cura e ações do Estado no Pará ver: VIANNA, Ar-thur. As epidemias no Pará. 2. ed. Belém: UFPA, 1975 [1908]; RITZMANN, Iracy de Almeida Gallo. Cidade miasmática — experiências populares e epidemias. Dissertação (mestrado) — Programa de Pós-Graduação em História da PUC de São Paulo, 1997; BELTRÃO, Jane Felipe. Cólera, o flagelo da Belém do Grão-Pará. Belém: MPEG/UFPA, 2004; AMARAL, Alexandre Souza. Vamos à vacina? Doenças, saúde e práticas médi-co-sanitárias em Belém (1904 a 1911). Dissertação (mestrado) — Programa de História Social da Amazônia da UFPA, 2006; COSTA, Magda Nazaré Pereira. Caridade e saúde pública em tempo de epidemias em Belém 1850-1889. Dissertação (mestrado) — Programa de História Social da Amazônia da UFPA, 2006; SILVA, Jairo de Jesus Nascimento da. Da Mereba-Ayba à varíola: isolamento, vacina e intolerância popular em Belém do Pará, 1884-1904. Dissertação (mestrado) — Programa de História Social da Amazônia da UFPA, 2009.72 A Palavra, 12 de maio de 1918, p. 1.73 LIMA, Nísia Trindade. O sertão como patologia, abandono e essência da vida nacional. In: Um sertão chamado Brasil. São Paulo: HUCITEC, 2013. p. 150.

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proliferação de doenças como o abandono por parte dos poderes públicos, essas áreas da cidade estariam bem próximas do sertão, chegando mesmo a se confundir com ele.

Na cidade de Belém o discurso do saneamento também assumiu outras conotações vi-sando à disciplina de grupos considerados perigosos. Assim, em 1918 o dr. Dias Júnior, inspetor geral da Profilaxia do Impaludismo, solicitava ao chefe de polícia a inserção de moradores da cidade tidos como “gatunos”, “vagabundos” e “desordeiros reincidentes” nos trabalhos sanitários da cidade, como “drenagem, desbravamento e dissecação de pântanos”, com a justificativa de que o aproveitamento de “vadios” no trabalho seria um excelente meio repressivo e regenerador.74

Tais compreensões sugerem que para os poderes públicos paraenses o saneamento tinha significados diversos que não apenas a melhoria de vida das populações do interior. De fato, se tomarmos como referência outras ações do dr. Dias Júnior, vamos encontrá-lo na Inspetoria Geral de Profilaxia da Febre Amarela, dois anos antes, em 1916, em diligência a hotéis, casas de pensão, casas de cômodo, estalagens e outras habitações coletivas, além de padarias de Belém, a fim de proceder a uma inspeção sanitária nesses estabelecimentos.75 Em Belém, o ano de 1916 — em função da presença de muitos migrantes cearenses em virtude da grande seca de 1915 — é marcado por várias intervenções das autoridades nesses espaços, por onde circulava muita gente das classes mais pobres.76

Percebe-se por essas medidas que as preocupações higienistas, em nome do progresso e do desenvolvimento do estado do Pará, estendiam-se entre a cidade de Belém e o interior do Pará, numa constante tentativa das autoridades de disciplinar especialmente os grupos mais pobres da população, que na primeira década do século XX, com os desdobramentos da cha-mada crise da borracha, experimentavam muitas dificuldades econômicas tanto no interior como na capital paraense. Ao lado disso, várias dessas medidas evidenciam a valorização de dois discursos civilizatórios: de um lado o poder da medicina e de outro poder da técnica, ambos tendo como centro a produção agrícola e as populações envolvidas nesse processo.

Considerações finais

Ainda nas primeiras décadas do século XIX, Antonio Ladislau Baena afirmava que o “único meio” para que a agricultura florescesse na Província do Pará seria “fazer ligar o estudo das plantas com o trabalho”. Para Baena, sem o emprego e a adaptação dos “novos

74 A Palavra. Belém, 19 de maio de 1918, p. 1.75 As visitas foram publicadas na Folha do Norte, de março a abril de 1916, com o título “A Higiene na Cida-de”. Em 17 de junho de 1916, publica-se parte referente às padarias: “Visita sanitárias as padarias de Belém”. Júlio Lobato publica-as conjuntamente, nesse mesmo ano de 1916: LOBATO, Júlio. Notas de um repórter: A vida de um repórter, reportagens nos hotéis e padarias de Belém. Belém: Typ. F. Lopes, 1916. 76 Folha do Norte. Belém, 7 de junho de 1916, p. 2.

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métodos” que a “civilização” introduzia em “outros países” a lavoura paraense continuaria “errática”, uma vez que o lavrador “anualmente” arroteava e abrasava “monstruosas árvores”, que eram “cruelmente derrubadas”.77 O pensamento de Baena não seria diferente de outros observadores da região, como demonstramos neste texto.

Assim, em 1897, o governador do Pará, Lauro Sodré, afirmava que para o desenvolvimen-to desse estado seria necessário “novas fontes de receitas”, com o desenvolvimento de “outras indústrias além da extrativa”, uma vez que, certamente exagerando, o governador acreditava que as atividades extrativistas “quase que exclusivamente” ocupavam “todos os braços”.78 Nesse momento, as preocupações com o desenvolvimento da agricultura eram fundadas no fato de que, de acordo com relatórios dos poderes públicos, o Pará tinha como gêneros de comércio “quase exclusivos” borracha, cacau e castanha. Essas eram as mesmas atividades extrativistas que marcaram a produção do Pará no império e permaneciam como um dado concreto de que a instauração do regime republicano — embora este estivesse apenas nos seus primeiros anos — não teria modificado as formas de se produzir.79 A resolução desse problema colocava-se, sem dúvida, como um desafio para os governantes paraenses na ânsia republicana de moderni-zar o estado do Pará. No decorrer da primeira década do século XX, conforme vimos ao longo do texto, as preocupações em torno desses problemas continuaram.

No período aqui trabalhado, os discursos dos articulistas de jornais e dos poderes públi-cos consideravam que para o crescimento econômico e consequente progresso do Pará seria necessário a resolução de dois problemas, no caso, a natureza amazônica e as doenças dos moradores de áreas rurais e florestais. Para tais observadores a resposta a esses problemas viria pelo ensino agrícola que permitiria aos agricultores e extrativistas um domínio sobre a natureza e sobre o cultivo da terra. Por essa perspectiva, conforme abordamos nesse texto, era por falta de formação técnica e de conhecimentos mais “civilizados” que as populações do interior não domavam os “excessos” da natureza, não tinham saúde e não cultivavam a terra de forma moderna.

Desse modo, o extrativismo dos mais variados produtos, o cultivo da terra, a pecuária, e as doenças das populações desses espaços se ligavam à capital do Pará, Belém, cotidiana-mente, tanto no que diz respeito a uma circulação de produtos vindo desses espaços, como também por meio das compreensões e medidas civilizatórios que os articulistas da imprensa e as autoridades paraenses construíam em relação a estes meios rurais e florestais.

No Pará desse contexto, os desdobramentos da crise da borracha, na década de 1910, levaram a um repensar da Amazônia brasileira, por parte dos poderes públicos, de intelec-

77 BAENA, Antonio Ladislau (1782-1850). Ensaio corográfico sobre a Província do Pará. Brasília: Senado Federal, 2004. p. 71.78 Mensagem dirigida ao Congresso do Estado do Pará pelo Dr. Lauro Sodré, Governador do Estado ao ex-pirar o seu mandato, no dia 1o de fevereiro de 1897. Pará: Diário Oficial, 1897, p. 22.79 Mensagem dirigida pelo Senr. Governador Dr. Lauro Sodré ao Congresso do Estado do Pará em sua pri-meira reunião, em 30 de outubro de 1891. Belém: Typ. do Diário Official, 1891, p. 59.

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tuais e articulistas da imprensa. Dessa maneira as populações de áreas rurais e florestais e seu modo de cultivar a terra e lidar com a floresta, conforme vimos, foram constante-mente alvo desses pronunciamentos. A documentação pesquisada até aqui sugeriu que uma perspectiva de desenvolvimento para a Amazônia esteve presente nesses pronunciamentos. Considerando-se a importância econômica que o extrativismo da borracha tinha para essa região, ironicamente, conforme asseveramos ao longo do texto, era a agricultura, para esses observadores, que garantiria a civilização, a estabilidade econômica e o progresso. No entan-to, empreender a produção agrícola de forma mais moderna e sistemática ainda que nas duas primeiras décadas do século XX não era uma tarefa fácil. De fato, as condições naturais da região amazônica e as práticas culturais de sua população não raro associaram o extrativis-mo à lavoura. Desse modo, ao mesmo tempo que em 1916, conforme vimos, Enéas Martins referia-se à libertação do Pará da “tirania da borracha”, o jornal A Palavra no ano de 1917 referia-se à importância da lavoura para o desenvolvimento do Pará, lembrando, entretanto, que tal intensificação da agricultura se dava “a passos de cágado”.80

Críticas como esta, feitas pelo jornal A Palavra e por outros periódicos paraenses, evi-denciam o importante papel da imprensa ao pressionar as autoridades a tomarem medidas mais enérgicas em relação à agricultura, conforme demonstramos ao longo do texto. De fato, tal pressão se torna ainda mais relevante quando pensamos na imprensa também como formadora de opiniões. Ao lado disso, não se pode esquecer que os projetos de desenvolvi-mento não eram particularidades do Estado, pois a imprensa também os construía e ressig-nificava a partir dos textos publicados.81 Desse modo, não é de estranhar-se que questões enfatizadas no texto, como a natureza amazônica, o ensino agrícola e o saneamento da zona rural, estivessem presentes nas páginas dos jornais, que também representavam os projetos republicanos das elites. Igualmente, conforme evidencia Barbosa, na imprensa das primeiras décadas da República temas como o da modernização da cidade e “da importância dos pro-gressos científicos são frequentes”, na medida em que “o jornal assume o papel de orientador, de difusor das ideologias dominantes e de porta-voz das elites”.82

Assim, de acordo com o que apontamos na imprensa e nos pronunciamentos das autori-dades, há uma tentativa de se difundir outras formas de se cultivar a terra pautada no cien-tificismo e na técnica. Tais pronunciamentos em relação à Amazônia desejam legitimar uma nova agricultura construindo outra relação entre o homem e a natureza, mais produtiva e mais civilizada. Tais práticas, ainda que vivenciadas em áreas rurais como núcleos coloniais da zona da Estrada de Ferro de Bragança, fazendas do Marajó, campos de criação de gado

80 A Palavra. Belém, 11 de fevereiro de 1917, p. 1.81 Segundo Cruz e Peixoto “a imprensa não só assimila interesses e projetos de diferentes forças sociais, mas muito frequentemente é ela mesmo espaço privilegiado da articulação desses projetos”. CRUZ, Heloisa de Faria; PEIXOTO, Maria do Rosário. Projeto História, p. 261, n. 35, 2005.82 BARBOSA, Marialva. Os donos do Rio: imprensa, poder e público. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2000, p. 132.

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do baixo Amazonas, sítios do Acará, roças de Bragança, florestas próximas ou distantes da capital paraense, não deixavam de se conectar com a cidade de Belém, por meio de seus produtos e de seus moradores.

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“O celeiro da Amazônia”: agricultura e natureza no Pará na virada do século XIX para o XX

Franciane Gama Lacerda e Elis Regina Corrêa Vieira

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Ingratas e pérfidas Medeias! Infanticídio e normatização da sexualidade feminina na literatura de rua francesa dos séculos XVI e XVII

Silvia Liebel*

RESUMOEste artigo volta-se ao estudo das representações do infanticídio na literatura de rua francesa entre 1574 e 1651, através da análise dos canards. Brochuras vendidas a uma ampla audiên-cia, os canards divulgaram ao longo do período analisado histórias fantásticas e sangrentas, nas quais a crueldade feminina encontra lugar de destaque. Simultaneamente produto e combustível da crescente moralização do reino, essas peças ilustram os perigos das mulheres entregues à lascívia e a necessidade de seu controle. A transmissão de uma moral ao feminino e as preocupações referentes ao infanticídio, parte de uma luta incansável contra a corrupção da juventude, tomam lugar neste trabalho, buscando na descrição literária as imagens sociais da criminosa e de sua alteridade. Palavras-chave: literatura de rua; infanticídio; violência; gênero, Idade Moderna.

ABSTRACTThis article analyses the representations of infanticide in French street literature between 1574 and 1651 through the study of the canards, chapbooks sold to a wide audience. In the analyzed period, these texts circulated fantastic and bloody stories, which highlighted female cruelty. Acting at the same time as a product and a driving force of the growing moralization of the realm, these pieces show the dangers of debauched women, and the need of controlling them. In search of a literary depiction of the criminal woman’s social image and her otherness, this paper deals with the transmission of a moral code to women and the concerns about infanticide, part of a relentless struggle against the corruption of youth.Keywords: street literature; infanticide; violence; gender; Early Modern period.

Artigo recebido em 29 de setembro de 2014 e aprovado para publicação em 17 de março de 2015.* Doutora em História pela Université Paris 13 e professora na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópolis, SC, Brasil. E-mail: [email protected].

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Ingratas e pérfidas Medeias! Infanticídio e normatização da sexualidade feminina na literatura de rua francesa dos séculos XVI e XVII

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Quando uma mãe de oito bebês, moradora de Villiers-au-Tertre, França, estampa uma profusão de jornais com a confissão de ter sufocado seus recém-nascidos,1 ela faz pensar não somente nos infanticídios, mas também no poder das mídias e nos textos que perenizam determinados casos. Um crime tornado notório pela frieza da acusada contrasta com outros — em um número bem mais elevado, arriscamos afirmar — que permanecem desconheci-dos das autoridades e do público em geral.

Considerada a mais importante investigação de infanticídio recente na França, o caso desenrolado em 2010 não é isolado. Dominique Cottrez, que escondeu os corpos de seus filhos ao longo de 20 anos, é apenas uma das últimas mulheres a encabeçar um infanticídio de grande repercussão. Outras lhe precederam, estampando as manchetes dos jornais em ca-sos que percorreram o mundo: Virginie Labrosse matou três recém-nascidos na Savoia entre 2001 e 2006, assim como Véronique Courjault em 2002 e 2003, no que ficou conhecido como “o caso dos bebês congelados”.2 No Brasil, corriqueiramente se leem notícias de bebês deixados para morrer até mesmo em lixeiras e bueiros. O mundo ocidental vê todos os anos uma sucessão de processos grotescos, intensamente mediatizados.

O infanticídio não é evidentemente um fenômeno contemporâneo, e a própria natureza do crime implica dificuldades para sua investigação: gestações dissimuladas, ocultamento de corpos e divergência sobre a causa mortis. Mesmo as pesquisas voltadas ao tema são restritas, dispersas em sua maioria dentro de um quadro amplo que diz respeito à história da família e à afetividade dentro dela.3 Os trabalhos de Philippe Ariès e Edward Shorter influenciaram acentuadamente as pesquisas nas décadas de 1970 e 1980, afirmando que o papel da criança cresce à medida em que começam a diminuir sua taxa de mortalidade a partir de fins do século XVII, culminando na atenção dada à infância no seio familiar no século XIX.4 Den-tro dessa perspectiva evolucionista, com a diminuição progressiva dos períodos de pestes e fomes, a criança deixaria de ser uma sobrevivente ou mais uma perda demográfica.

Não obstante a importância historiográfica desses apontamentos, uma das críticas que lhes é feita reside em sua ancoragem em premissas contemporâneas. É importante ressaltar o caráter corriqueiro e nada incongruente na França do Antigo Regime do envio de bebês a

1 Após a descoberta de dois corpos em 24/07/2010, a imprensa francesa se debruçou sobre o caso durante boa parte do segundo semestre daquele ano, com artigos em publicações tão diferentes quanto Le Monde, Le Figaro, La Voix du Nord, Le Point e Libération, entre dezenas de outras.2 Uma compilação desses casos e outros pode ser vista em: <http://lci.tf1.fr/lexique/infanticides-les-principa-les-affaires-en-france-6639636.html>. Acesso em: 15 fev. 2013.3 Sobre o tema, ver notadamente: ARMENGAUD, André. La Famille et l’enfant en France et en Angleterre du XVIe siècle au XVIIIe siècle — Aspects démographiques. Paris: SEDES, 1975; BADINTER, Elisabeth. L’Amour en plus. Paris: Flammarion, 1980; FLANDRIN, Jean-Louis. Le Sexe et l’Occident. Paris: Seuil, 1983; LEBRUN, François. La vie conjugale sous l’Ancien Régime. Paris: Colin, 1975; VALLAUD, Dominique. Le crime d'infanticide et l'indulgence des cours d'assises en France au XIXe siècle. Information sur les sciences sociales, v. 21, n. 3, p. 475-499, 1982.4 ARIÈS, Philippe. L’Enfant et la vie familial sous l’Ancien Régime. Paris: Paris, Seuil, 1973; SHORTER, Edward. The Making of the modern family. Nova York: Basic Books, 1975.

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amas de leite (por aquelas com meios suficientes para fazê-lo) ou do compartilhamento do leito entre a prole e os pais; ou ainda o papel da escola em fins da Idade Média e começos da Idade Moderna, que não consistia, inteiramente, na educação de crianças.5 As teses de Ariès e Shorter sobre a indiferença materna6 esbarram nas recomendações médicas do perí-odo enfocado que seriam, contraditoriamente, um indicativo de cuidado: se as mães eram atentas o bastante para se orientarem segundo os conselhos em voga, dificilmente pode-se lhes atribuir completa responsabilidade pelas desventuras sofridas. Encontramo-nos, assim, ao longo da segunda modernidade, em face não propriamente de uma evolução dos senti-mentos em relação à criança, mas de mudanças profundas nas mentalidades que afetaram, naturalmente, a esfera familiar. Faz-se necessário, portanto, compreender os sentimentos dentro dos diferentes contextos em que foram gerados e moldados.

Nesse quadro, a percepção do infanticídio altera-se na análise de suas motivações ao longo dos séculos: casos que outrora eram tomados como representativos da presença do Mal na terra tornam-se paulatinamente objeto do discurso médico. Mas mesmo se as mulheres infanticidas passam a ser vistas sob o estigma das doenças psiquiátricas, elas continuam a ser demonizadas face ao ataque contra sua própria carne: a fraqueza não deixa de ser atribuída ao gênero no campo discursivo.

Assim como o infanticídio não é um fenômeno novo, tampouco o é sua divulgação. Os canards,7 mesmo antes da criação da imprensa periódica na França, divulgavam já no século XVI casos do gênero imbuídos de uma visão de mundo e, mais especificamente, de uma visão particular do feminino. Exemplares da literatura de rua do período, esses textos foram publicados desde pelo menos 1525, oferecendo ao público narrativas a respeito de calamidades, fenômenos celestes, nascimento de monstros, crimes, ações demoníacas, en-tre outros eventos que apelavam à imaginação dos leitores. O infanticídio, como veremos na sequência, ocupava nessas peças um papel central quando o foco se deslocava para a figura da mulher.

5 Sobre as críticas à visão de Ariès e Shorter, ver: FLANDRIN, Jean-Louis. Enfance et société. Annales ESC, v. 19, n. 2, p. 322-329, 1964; LALOU, Richard. Le crime d’infanticide devant les tribunaux français (1825-1910). Communications, v. 44, p. 175-200, 1986; MOUNT, Ferdinand. La famille subversive. Paris: P. Mardage, 1982.6 ARIÈS, Philippe, op. cit.; SHORTER, Edward, op. cit.7 Optou-se pela utilização do termo no original francês devido aos problemas de sua tradução: livreto, opús-culo, brochura referem-se à forma, não tratam da origem inspirada nos cancans (boatos) ou na onomatopeia resultante dos gritos dos vendedores ambulantes. Já foram equivocadamente traduzidos em português a par-tir de um texto de Chartier como pasquins, termo que, entretanto, carrega em si uma denotação satírica e/ou caluniosa que não pode absolutamente ser vinculada a tais textos no momento aqui enfocado. Ver: CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: Unesp, 2004, p. 114 ss.

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O infanticídio nos canards franceses

Produtos do florescimento da tipografia no século XVI, os canards consistem em livretos baratos, vendidos ocasionalmente nas esquinas dos grandes centros franceses, notadamen-te Paris e Lyon. De autoria anônima, compreendem, em sua maioria, 8 ou 16 páginas de textos escritos em prosa, ocasionalmente acompanhados de decretos, sentenças ou apelos a processos judiciários. Seu caráter “popular” deve-se, assim, às características tipográficas que os classificam entre as peças de ampla reprodução a baixo custo dos impressores — papel barato, poucas páginas e poucos cuidados na impressão —, antes de referir-se a seu público. A despeito dos baixos índices de alfabetização do período, não se pode reduzir o alcance desta literatura unicamente ao universo daqueles que tinham os instrumentos necessários a sua completa absorção. O canard não é unicamente um texto de leitura silenciosa, ele impli-ca o compartilhamento de informações, a começar por sua divulgação: seus longos títulos, resumos das narrativas, eram gritados pelos vendedores ambulantes.

Frequentemente inspiradas nos boatos que se espalhavam pelas grandes cidades, essas peças, além de divulgarem escândalos públicos, serviam ao alerta das populações divulgan-do crimes (reais e imaginários) e calamidades. A seriedade e o caráter pedagógico de que suas narrações são revestidas não deixam dúvidas: os canards vão além da diversão de seus leitores. Eles anunciam as mazelas do reino e, como os desviantes, estão condenando a todos com seu comportamento pouco atento às normas ditadas pelas leis civis e eclesiásticas. Com a reprodução de discursos misóginos profundamente enraizados na sociedade sob um novo formato, mais acessível a um público amplo, os canards desempenharam um papel impor-tante no disciplinamento das consciências, atentos à vigilância terrena e à punição divina.

O conjunto de textos recolhidos em bibliotecas francesas e alemãs8 foi analisado em um período bem delimitado da primeira modernidade, compreendido entre o primeiro e o últi-mo opúsculo relatando um crime cometido por uma mulher, publicados, respectivamente, em 1574 e 1651. Do total de 541 textos analisados, destacam-se 31 narrações sobre ataques à prole cometidos por mulheres, dos quais apenas um não acarretou em morte, enquanto é registrado somente um ataque paterno contra os filhos. Tal número não é negligenciável, levando-se em conta a massiva quantidade de textos dedicados ao sobrenatural, ao universo religioso e às calamidades, que correspondem a quase 60% do total.

O primeiro canard a discutir a morte de uma criança por sua própria mãe data de 1574 e conta um episódio passado na Itália.9 Quando a mãe vai a uma festa e deixa seu filho de 7 anos tomando conta do bebê, que morre acidentalmente, ela se desespera e o mata:

8 Principalmente e (Wolfenbüttel — Alemanha), além de bibliotecas municipais nos dois países.9 Histoire du plus espouvantable et admirable cas qui ait jamais esté ouy au monde nouvellement advenu au Royaume de Naples, par laquelle se void l’ ire de Dieu n’estre encore appaisee, et nous tous humains subjets à son juste jugement. Paris: J. Ruelle, 1574.

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[...] deixando de lado a amizade maternal e destinada a se vingar de seu querido filho inocente, ela o tomou pelos pés e, levantando-o no ar, matou-o, arrebentando sua cabeça contra a parede, de maneira que do sangue de seu segundo filho, ela manchou e coloriu a parede de seu quarto marital.10

O ato individual desesperado dá origem a uma ampla desgraça familiar, pois, ao se de-parar com a cena, o marido e pai mata a esposa: “Hoje, mulher cruelíssima, você adquire o nome da ingrata e pérfida Medeia!”.11 Seu cunhado, ao tentar impedi-lo, é assassinado pelo filho mais velho do casal que, juntamente com o pai, é julgado e condenado à morte. Na ausência de um carrasco, o filho enforca o próprio pai e se salva da punição.

Ainda que minoria entre os casos de ataque contra crianças na literatura de rua, voltados em grande parte à morte de recém-nascidos, o drama napolitano dá uma dimensão compar-tilhada pelo conjunto de textos: o crime nunca é esgotado naquela que o pratica, ele atinge toda sua família. Como se verá na sequência, os genitores das acusadas são responsabilizados moralmente por seus desvios. No caso relatado, além da repercussão do crime feminino sobre o nome familiar, ele foi o estopim para todos os outros. A mulher dos canards aparece, assim, como legítima herdeira de Eva, induzindo o homem ao mal.

A primeira peça discutindo a morte de um recém-nascido acontecida na França aparece-rá em 1606.12 Os ocasionais publicados no ínterim entre o canard sobre a tragédia italiana e o texto sobre o infanticídio na França, ao menos os que sobreviveram ao tempo — e é importante ressaltar a raridade dos opúsculos conservados, já que esses eram impressos em papel de baixa qualidade, feitos para não durar, e possuíam extensa circulação —, narram eventos acontecidos no exterior ou, quando se trata de um caso francês, tratam da morte de crianças motivada pela miséria, além do assassinato de um filho adulto.

Não há nenhuma morte acidental de recém-nascido nos canards e o termo “ocultação da gravidez” é aplicado em apenas um texto, o Discurso feito ao Parlamento de Dijon, sobre a apresentação das cartas de abolição obtidas por Helene Gillet, condenada à morte por ter escondi-do sua gravidez e seu fruto.13 Esta peça, em particular, destaca-se pelo relato do procedimento

10 Tradução livre da autora: “ayant mis à part l’amitié maternelle et destinée à se venger de son cher fils innocent, elle le prit par les pieds et l’élevant en l’air le tua, escarbouillant sa tête contre la muraille, de manière que du sang de son second fils, elle tacha et colora la muraille de la chambre maritale.” Histoire du plus espouvantable et admirable cas qui ait jamais esté ouy au monde nouvellement advenu au Royaume de Naples, par laquelle se void l’ire de Dieu n’estre encore appaisee, et nous tous humains subjets à son juste jugement. In: LEVER, Maurice. Naissance du fait divers. Paris: A. Fayard, 1993. p. 51.11 Tradução livre da autora: “Aujourd’hui, femme très cruelle, tu t’acquiers le nom de l’ingrate et perfide Médée!”. p. 52.12 Les larmes de repentance d’une jeune fille Prisonniere, dans les Prisons de Lyon, qui a pery son fruict. Lyon: P. Roussin, 1606.13 Discours faict au Parlement de Dijon, sur la presentation des lettres d’abolition obtenuës par Helene Gillet, condamnée à mort pour avoir celé sa grosesse et son fruict. Comme aussi les lettres d’abolition en forme de Chartres et Arrest de verification d’ icelles. Paris: H. Sara, 1625, p. 4.

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legal empreendido pela acusada, de onde a ênfase sobre a ocultação, crime que se tornava objeto de intensa perseguição. Os casos de aborto são ausentes dessas narrativas — à exceção de uma tentativa falha provocada por bebidas apropriadas —, enquanto Pierre de L’Estoile (1546-1611), burguês parisiense que legou uma série de diários contando detalhes de sua vida cotidiana, com atenção especial aos escândalos e execuções públicas acompanhadas de per-to, narra somente um. A condenada, mulher consideravelmente idosa para a época, negou, aliás, o crime até o fim:

No sexto sábado deste mês [maio de 1600], uma mulher poitevina, de cinquenta anos, foi enforcada, na [praça de] Grève, em Paris, declarada culpada de ter feito morrer seu fruto em seu ventre, por uma bebida que ela tomou. O que ela, todavia, não quis jamais confessar; e porque ela não queria beijar a cruz, nem escutar um padre que lhe haviam dado, em razão da religião da qual ela era, o povo fê-la despachar prontamente, gritando que a enforcassem no primeiro degrau.14

Observa-se, a partir do relato de L’Estoile, que elementos adicionais frequentemente

desempenhavam um papel importante nas condenações (públicas ou pela justiça): o cará-ter estrangeiro das acusadas, práticas heterodoxas e, especialmente, uma confissão religiosa diferente da católica eram elementos essenciais para o julgamento do caráter das acusadas por suas comunidades. Em maio de 1600, a despeito do recente Edito de Nantes, as tensões entre católicos e protestantes estavam longe de cessar.

O infanticídio, tal como é mostrado na literatura de rua francesa, tem motivações di-versas: gravidez fora do casamento, vingança do antigo amante, pobreza ou influência de-moníaca. Ainda que esse delito seja especialmente associado à morte de recém-nascidos, observa-se nos livretos a morte de crianças e mesmo de filhos adultos. Esses últimos casos têm, evidentemente, motivações distintas daquelas que conduzem as jovens dos canards a “perecer seu fruto”, termo extensamente empregado. Na maioria dos casos, o infanticídio é intimamente ligado à sedução seguida do abandono. Nesse contexto, a gravidez de jovens solteiras é amplamente condenada pelos autores.

Os textos, em geral, seguem uma fórmula, mesmo quando não se trata da reprodução de uma narrativa com algumas mudanças isoladas para requentar uma história impressa anteriormente. As narrações se concentram, inicialmente, na perfeição das jovens e na boa educação que elas teriam recebido. O sedutor é frequentemente um amigo da família, um

14 Tradução livre da autora: “Le samedi 6e de ce mois [mai 1600], une femme poictevine, aagée de cinquant ans, fust pendue, en la Greve, à Paris, attainte et convaincue d’avoir fait mourir son fruict dans son ventre, par un breuvage qu’elle avoit pris. Ce qu’elle, toutefois, ne voulut jamais confesser; et, pource qu’elle ne vouloit baiser la Croix, ni escouter ung prestre qu’on lui avoit baillé, à cause de la Religion dont elle estoit, le peuple la fist dépescher promtement, criant qu’on la pendist au premier eschelon.” L’ESTOILE, Pierre de. Mémoires-Journaux. Tome VIIe du Journal de Henri IV, 1595-1601. Paris: Tallandier, 1982, p. 228.

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vizinho que tem livre acesso à casa, tendo em vista sua posição social superior. As jovens re-sistem no começo, mas terminam por ceder à paixão depois de uma promessa de casamento. As obrigações do sedutor são reivindicadas pelos autores, mas a fraqueza das jovens corrom-pidas é o principal alvo de suas críticas. A honra feminina, nesta perspectiva, é discutida apenas quando ela é perdida.

O infanticídio como lavagem da honra

Uma história em especial recebeu a atenção dos canardiers (os autores dos canards), ten-do ao menos cinco edições diferentes entre 1597 e 1623,15 sendo duas peças impressas pelo mesmo editor. Algumas das estratégias editoriais concernentes à literatura de rua são evi-denciadas por esse caso: o título da publicação original sofre ligeiras alterações nas edições subsequentes, difere a cidade onde os eventos tiveram lugar, assim como o nome e/ou a idade das protagonistas. Marguerite de la Riviere se torna Catherine de la Critonniere e Dianne de la Clappiere, com idade de 15 a 16 anos ou de 17 a 18, jovem de Pádua, Aix ou Metz. Não obstante essas modificações, a narrativa permanece a mesma.

Filha única, nascida “para ser o exemplo das moças de seu tempo”, a bela jovem recebe uma educação esmerada de seu pai, aprendendo a tocar vários instrumentos, além de cantar e dançar. A ausência da figura materna não é tratada pelo autor; entretanto, a falta de um dos pais é marcante nas narrações do gênero. Essa lacuna serve para reforçar os cuidados do genitor restante, que faz instruir a filha de forma virtuosa. Sua reputação era irretocável, com “uma modéstia grave e uma continência admirável, vitoriosa no que os outros são vencidos, resistindo ao amor até a idade de 17 anos”.16

Surge neste momento a figura do vizinho sedutor, o senhor de Lorion — também cha-mado d’Orme e du Chesne nas edições posteriores. Quando o pai da jovem viaja, acredi-tando não ter nada a temer de um nobre de tal posição, nem de sua filha virtuosa, Lorion, com a ajuda de uma governanta, “ministra de sua maldade”, seduz Marguerite. O nobre

15 Discours tragique et pitoyable sur la mort d’une jeune Damoiselle âgée de dix-sept à dix-huit ans, executée dans la ville de Padouë au mois de Decembre dernier 1596. Avec les regrets qu’elle a faict avant sa mort. Traduit de l’Italien en François. Paris: A. du Brueil, 1597; Discours pitoyable, de la mort d’une jeune Damoiselle, aagee de quinze à seize ans, executée dans la ville de Padoüe, au mois de Septembre dernier. 1607. Avec les regrets qu’elle à faict avant sa mort. Traduit d’Italien en François. (S.l.n.), (ca. 1607); Histoire pitoyable sur la mort d’une jeune Damoiselle agée de dix sept à dix huict ans, executee dans la ville de Padouë au mois de Decembre dernier. Tra-duite en François, par le sieur de Nerveze. Paris: A. du Brueil, 1617; Discours sur la mort d’une jeune Damoiselle executée à Aix, pour avoir meurtry son enfant. Avec les regrets qu’elle a faicts avant sa mort. Lyon: J. Tholosan, 1618; Histoire Tragique et Pitoiable sur la mort d’une jeune Damoiselle agée de 17. à 18. ans, executée dans la ville de Mets au mois de Novembre dernier. 1623. Paris: S. Lescuyer, 1623.16 Tradução livre da autora: “pour estre l’exemple des filles de son temps”; “une modestie grave et une conti-nence admirable, victorieuse en ce que les autres sont vaincus, en resistant à l’amour jusques en l’aage de dix-sept ans”, op. cit., p. 3.

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promete desposá-la e levá-la para longe de seu pai, mesmo se nada de negativo é dito sobre o comportamento paterno. Ele foge quando ela se descobre grávida, assim como a governanta. Marguerite se dá conta então das mentiras de seu amante:

Este cruel me dizia com uma voz enganadora, depois que ele se apossou de minha virgindade, que ele seria meu marido, que nossas vidas estariam estreitamente ligadas por este laço do casamento, e que nessa sociedade nós viveríamos e morreríamos juntos.17

Sozinha para encarar as consequências da paixão, a “pobre infortunada”, “abandonada por todos”, teme a rejeição social e a vergonha lançada sobre o nome de sua família. Pior do que a desonra é a marca visível da falta, que provoca remorsos nas jovens grávidas fora do casamento: “Esta criatura, que quis ver o dia tão logo sua temporada limitara sua estadia na sua prisão materna, mal fez sua entrada em terra e foi a acusadora e a testemunha do crime de sua mãe”.18

Marguerite, após um intenso diálogo interno e muito sofrimento, decide se desfazer do filho recém-nascido. Os textos mostram uma jovem que se torna “escrava da fúria”, entregue ao desespero e ávida por esconder sua infâmia a qualquer preço. A preservação do bom nome familiar se torna sua principal preocupação e, antes de matar seu bebê, ela se lamenta:

É preciso, oh minha criatura, que eu seja mãe tão cruel e desnaturada, que no lugar de te criar com o leite de meus seios, eu te faça aleitar os últimos suspiros de tua vida, e de te deitar na terra no lugar de no teu berço! É preciso, ah!, que eu seja antes tua homicida que tua nutriz, alma inocente! É preciso que tu laves com o teu sangue inocente as faltas de tua mãe, e por morte injusta tu a protejas de sua morte merecida! Ah, como eu tenho dor de ser tua assassina. Eu sei bem que Deus me punirá por isso como juiz justo, mas é possível também que sua misericórdia intercederá por mim?19

Marguerite estrangula então seu bebê e o enterra no jardim, sem parar de pensar na sal-

vação de sua alma. Jean-Pierre Camus (1584-1652), que se inspirou em diversos canards para

17 Tradução livre da autora: “Ce Cruel me disoit d’une voix trompeuse, apres qu’il se fut emparé de ma virgi-nité, qu’il me seroit Mary, que nos vies seroient estroittement liees par ce lien de mariage, et qu’en ceste societé nous vivrions et murions ensemble.” , op. cit., p. 9-10.18 Tradução livre da autora: “Ceste creature qui voulust voir le jour aussi tost que sa saison eust limité sa de-meure dans sa prison maternelle, n’eust pas fait son entrée en terre, qu’elle feust l’accusatrice et le tesmoing du crime de sa mere”, op. cit., p. 5.19 Tradução livre da autora: “Faut-il ô ma creature que je sois mere si cruelle et desnaturee, qu’au lieu de t’eslever du laict de mes mamelles, je te fasse alaicter les derniers souspirs de ta vie, et te coucher dans la terre plustost qu’en ton berceau ! Faut il, helas, que je sois plustost ton homicide que ta nourrice, ame innocente ! Faut-il que tu laves de ton sang innocent les fautes de ta mere, et par mort injuste tu la guarantisse de sa mort meritee ! Ah, que j’ay de douleur d’estre ta meurtriere. Je sçay bien que Dieu m’en punira comme juste juge, mais [il est] possible aussi que sa misericorde intercedera pour moy”? , op. cit., p. 6.

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suas histórias trágicas,20 vai além ao evocar uma infanticida que enterra seu bebê ao pé de uma árvore e, dois anos mais tarde, o corpo é encontrado em perfeito estado de conservação. Na presença de sua assassina, o pequeno cadáver verte sangue, denunciando-a.21 Marguerite prescinde do testemunho de sangue, confessando livremente sua ofensa quando o cadáver é encontrado. Durante sua execução, ela afirma: “eu sou culpada de morte e digna de sofrê-la por um tormento mais cruel que aquele que me preparam”.22 Seu amante, evadido e sem receber qualquer acusação criminal, é tratado como ingrato e desleal, o culpado de todas as suas mazelas. Mas não é ao filho que ela privou de vida que ela dirige seus maiores remorsos. É ao seu pai, ausente do suplício.

Eu, miserável, aviltei vossa casa, eu desprezei os mandamentos de Deus e esqueci de vossas admoestações paternas, eu profanei a instrução de meus mestres e meu alimento, eu não quis opor a virtude ao vício, quando ele se apresentou para me precipitar nos abismos da incontinência, cedendo minha pudicícia a seu adversário.23

Os remorsos expressos no momento da execução servem para apiedar a audiência e hu-manizar o monstro descrito no processo, que relata em seus momentos finais a conduta que conduziu à sua queda. Mais do que isso, a aplicação pública da sentença, dentro do aparato legal absolutista, visa ao reforço da autoridade real e da vigilância onipresente das popula-ções: nenhum crime é perdoado. Trata-se, com efeito, de um momento privilegiado para a transmissão de uma moral. A exortação ao público não era, nesse sentido, uma expressão livre das condenadas, mas um ritual onde o discurso serve primariamente aos interesses da justiça. De acordo com Robert Muchembled, os magistrados “ordenam a seus escrivães in-sistir obstinadamente para obter a cooperação do condenado, a fim de que ele ofereça a todos um exemplo edificante, para melhor demonstrar a eficácia e a grandeza da justiça do rei”.24

A partir da ameaça da perda da vida em face de uma justiça inclemente, e sendo a puni-ção proclamada justa pela própria condenada, que reconhece suas faltas como as piores que

20 As histórias trágicas, gênero literário publicado na França entre os séculos XVI e XVII, oferecem diver-sos exemplos inspirados nos canards, assim como servirão de base para a literatura de rua, em uma relação bastante próxima. Embora não sejam o foco deste artigo como os canards, as histórias trágicas auxiliam na apreensão da mentalidade da época expressa na literatura. 21 CAMUS, Jean-Pierre. Le témoignage du sang. In: BIET, Christian (Org.). Théâtre de la cruauté et récits sanglants en France (XVIe-XVIIe siècle). Paris: R. Laffont, 2006. p. 244-247. 22 Tradução livre da autora: “Je suis coupable de mort et digne de la souffrir par un plus cruel tourment que celuy que on me prepare”, op. cit., p. 8.23 Tradução livre da autora: “J’ay miserable, honny vostre maison, j’ay mesprisé les commandemens de Dieu et oublié vos admonitions paternelles, j’ay profané l’instruction de mes maistres et ma nourriture, je n’ay pas voulu opposer la vertu au vice, lors qu’il s’est presenté pour me precipiter dans les abismes d’incontinence, cedant ma pudicité à son adversaire”, op. cit., p. 13.24 MUCHEMBLED, Robert. Fils de Caïn, enfants de Médée. Homicide et infanticide devant le parlement de Paris (1575-1604). Annales. Histoire, Sciences Sociales, v. 62, n. 5, p. 1086, 2007.

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poderia cometer, compõe-se uma mensagem clara: deve-se se proteger das transgressões e se submeter às leis sancionadas pelo representante divino na terra. Desonrar a casa paterna aparece aqui como o ápice de um comportamento pouco atento aos códigos sociais, códigos estes continuamente reforçados pelos aparatos legal, religioso e comunitário. As noções de pudor e de continência estão fortemente presentes nos textos em geral, que as posicionam no domínio do sagrado. Abandonando essas virtudes, as faltosas ficam em vias de se lançar nos braços de Satã, o grande inimigo da cristandade ocidental do período.

A figura paterna, responsável pela educação de Marguerite, sofre um ataque direto em razão das faltas de sua filha. Para o autor do impresso, o pai é culpado tão somente de confiar no comportamento casto da jovem e na posição elevada do sedutor, garantia de sua honra. É ele, no entanto, que vê sua reputação manchada. Não é sobre o sedutor que a justiça se lança, tampouco o escárnio público. Mas a credulidade dos pais não é sempre sua única falta, como é atestado no caso de uma jovem de Bordeaux, da qual o mau caráter é atribuído aos mimos feitos por seus pais desde sua infância.

Quando os pais não sabem educar

A História lamentável de uma jovem senhorita, a qual teve a cabeça cortada na cidade de Bordeaux, por ter enterrado seu filho vivo no fundo de uma cave, o qual ao final de seis dias foi encontrado miraculosamente ainda em vida, e tendo recebido o batismo entregou sua alma a Deus,25 publicada em Lyon, em 1618, apresenta o outro lado das infanticidas da literatura de rua francesa: no lugar de uma donzela recatada, desonrada por um vizinho inescrupuloso, encontramos uma jovem libertina, cuja educação é questionada.

Na adolescência, a jovem anônima desfruta de toda liberdade e recebe continuamente dinheiro para suas “pompas”, “vaidades” e “folias”. Os pais lhe “soltam as rédeas” e essa indulgência exacerbada está na origem de seus excessos. O autor critica intensamente a per-missividade parental e lembra de bem seguir os preceitos bíblicos: “Exerce severa vigilância sobre uma filha libertina, para que ela não te exponha aos insultos dos teus inimigos, e te torne o assunto de troça da cidade, o objeto de mofa pública, e de desonra aos olhos de toda a população”.26

25 Histoire lamentable d’une jeune Damoiselle, laquelle a eu la teste tranchee dans la ville de Bourdeaux, pour avoir enterré son enfant tout vif au profond d’une cave, lequel au bout de six jours fust treuvé miraculeusement tout en vie, et ayant reçeu le Baptesme rendit son ame à Dieu. Lyon: F. Yurad, 1618.26 Histoire lamentable d’une jeune Damoiselle, laquelle a eu la teste tranchee dans la ville de Bourdeaux, pour avoir enterré son enfant tout vif au profond d’une cave, lequel au bout de six jours fust treuvé miraculeusement tout en vie, et ayant reçeu le Baptesme rendit son ame à Dieu, op. cit., p. 5; BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada Ave-Maria. São Paulo: Ave-Maria, 2001, Ecles., cap. XLII, v. 11.

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O autor liga intimamente a beleza ao vício. O desejo de receber atenção e de ser o objeto de afeição de sua companhia é constante para esta jovem. Insatisfeita com o que seria o mais apropriado a uma senhorita honesta, ela participa de numerosos bailes, ocasião para a con-cupiscência se manifestar. Não é surpresa então que encontre um apaixonado, que além da promessa de casamento lhe oferece um diamante de 500 escudos. Trata-se da única história onde uma jovem combina a paixão e o interesse, o que se acrescenta à condenação de seu comportamento aquém da moralidade pregada.

Ilustrando os amores ilícitos do casal, uma imagem na segunda página do canard lembra o ascendente maligno sobre os jovens com um demônio voador de aparência satisfeita que os observa. A árvore situada atrás da cena evoca a árvore da ciência do bem e do mal, assim com a cauda de serpente do pequeno diabo lembra a serpente tentadora. O casal é representado em uma atitude lasciva: a mão do jovem toca explicitamente o seio da senhorita, mas tam-bém o encontro dos olhares, o contato das peles e a postura de convite da jovem mostram que eles estão em vias de ceder à tentação.

Histoire lamentable d’une jeune Damoiselle, laquelle a eu la teste tranchee dans la ville de Bourdeaux, pour avoir enterré son enfant tout vif au profond d’une cave, lequel au bout de six jours fust treuvé miraculeusement tout en vie, et ayant reçeu le Baptesme rendit son ame à Dieu. Lyon: F. Yurad, 1618. p. 2 (Herzog August Bibliothek — Wolfenbüttel/Alemanha).

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O nobre então viola a garota e sua honra, “que ele lhe rouba, e colhe esta bela flor de virgindade, o bem mais precioso que uma jovem pode ter no mundo, e do qual a perda é tanto mais a deplorar, porque ela é irreparável”.27 Todavia, ele não mantém sua promessa. Ele abandona a senhorita que, arrependida de suas ações, descobre-se grávida. Sozinha, ela dá à luz em uma cave e enterra seu filho.28

Seus pais, que até então tinham lhe feito todas as vontades, dão-se conta das mudanças em seu ventre e insistem em saber a verdade. Ela nega. Temendo participar das ações da fi-lha, eles a entregam à polícia, ação radicalmente oposta a sua tolerância excessiva ao longo da vida da jovem. Enfim esta confessa o que se passou e a criança é milagrosamente encontrada viva na cave depois de seis dias. Tão logo ela recebe o batismo, morre. Acusada e condenada, a jovem é sentenciada a ter a cabeça cortada:

[…] a fim de servir de exemplo a tantas moças, que se deixam levar por seus desejos desenfreados, frequentam muito licenciosamente todo tipo de companhias, e não fazem caso de se encontrar entre os vencedores de sua pudicícia, que pelo veneno de seus discursos afetados vêm pouco a pouco ao cabo de suas empreitadas, depois as deixam desonradas, enegrecidas de infâmia e desonra, e servem a eles e a seus companheiros apenas de risada e de troça.29

Observa-se a conjunção no discurso entre as reprimendas feitas às faltosas (e especial-mente àquelas que nelas poderiam se espelhar) e sua ridicularização. A mulher corrompida enquanto nada mais do que um passatempo e um objeto de riso revela o aspecto corretor da risada. Usando a teoria de Henri Bergson30 acerca da significação social do riso, verificamos aqui a humilhação visando o aparo das arestas sociais. O riso se torna uma arma poderosa a serviço da retificação, e a moral dirigida às jovens mostra a necessidade da vigilância cons-tante de seu próprio corpo a fim de se manterem dentro do bom ordenamento social.

27 Tradução livre da autora: “qu’il luy ravit, et cueillit ceste belle fleur de virginité, le plus precieux gage qu'une fille puisse avoir au monde, et dont la perte est d'autant plus à deplorer, qu'elle est irreparable.” Histoire la-mentable d’une jeune Damoiselle, laquelle a eu la teste tranchee dans la ville de Bourdeaux, pour avoir enterré son enfant tout vif au profond d’une cave, lequel au bout de six jours fust treuvé miraculeusement tout en vie, et ayant reçeu le Baptesme rendit son ame à Dieu, op. cit., p. 5.28 De forma curiosa, nenhum dos bebês vítimas de infanticídio na literatura de rua francesa era do sexo feminino.29 Tradução livre da autora: “afin de servir d'exemple à tant de filles, qui se laissent emporter à leurs effrenés desirs, frequentent fort licencieusement toutes sortes de compagnies, et ne font point de cas de se treuver parmy les expugnateurs de leur pudicité, qui par le venin de leurs discours mignards viennent petit à petit à bout de leurs entreprinses, puis les laissent deshonnorees, noircies d'infamie et de deshonneur, et ne servent à eux et leurs compagnons que de risee et de mocquerie.” Histoire lamentable d’une jeune Damoiselle, laquelle a eu la teste tranchee dans la ville de Bourdeaux, pour avoir enterré son enfant tout vif au profond d'une cave, lequel au bout de six jours fust treuvé miraculeusement tout en vie, et ayant reçeu le Baptesme rendit son ame à Dieu, op. cit., p. 8.30 BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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Nesta história, a gravidez é uma consequência direta das relações “depravadas” da ju-ventude. Condenando repetitivamente as danças, o autor constrói um discurso destinado a corrigir os modos através dos tempos, não inserindo parâmetros temporais em seu texto. O ano de publicação é conhecido, mas a história não diz quando os eventos tomaram lugar. O importante não é um caso específico ocorrido em um determinado momento, mas a prolife-ração de um comportamento dissoluto que precisa ser severamente combatido em nome da moral e dos bons costumes. O canard exerce aqui sua função de difusor de comportamentos ideais para as jovens solteiras.

Que elas aprendam pela narração desta história a fugir das vaidades, do amor louco e das danças: a retirada da impudicícia, os fósforos da lascívia, a fonte da desonestidade, a cobertura do vício luxurioso, a ruína da castidade: danças onde elas entram ornadas da preciosa joia da virgindade, e de onde saem o mais frequente violadas e corrompidas, senão de fato, ao menos por um formigueiro de pensamentos voluptuosos que, escoando-se insensivelmente em suas almas, deixam-nas atrevidas, e dão a audácia de cometer o que sua imaginação depravada lhes representou. Que elas fujam como da peste tantos beijos, tantos olhares, tantos toques, tantos abraços, tantas propostas vãs, que minam e destroem tudo o que elas têm de pudico e de honesto: a fim de que tapando as orelhas às sereias das volúpias mundanas, seu coração seja aberto às santas inspirações de Deus, que as recompensará enfim com um honorável e bom partido, com o qual elas terminarão seus dias em alegria.31

A conduta que leva à queda é frequentemente retomada no testemunho das faltosas. Os remorsos expressos são uma constante, e um dos canards chega mesmo a relatar apenas o lamento de uma condenada lionesa em 1606, não seu crime. Este é descrito brevemente na dedicatória, que introduz “o arrependimento e os pesares que a fazem lamentar ter cruel-mente sufocado seu fruto, cuidando cobrir a vergonha de sua lubricidade”.32 Em grande

31 Tradução livre da autora: “Qu’elles apprennent par le narré de ceste histoire de fuir les vanités, le fol amour, et les danses : la retraicte de l’impudicité, les allumettes de la lascivité, la fontaine de la deshonnesteté, la couverture du vice luxurieux, la ruine de la chasteté : danses où elles entrent ornees du precieux joyaux de la virginité, et en sortent le plus souvent violees et corrompues, sinon de faict, au moins par une fourmilliere de pensers voluptueux, qui s’escoulans insensiblement dans leurs ames, les effrontent, et donnent l’audace de comettre ce que leur imagination depravee leur a representé. Qu’elles fuyent comme la peste tant de baisers, tant de regards, tant d’attouchemens, tant d’embrasemens, tant de vains propos, qui minent et sapent tout ce qu’elles ont de pudique et d’honneste : afin que bourchant les oreilles aux Syreines des voluptés mondaines, leu cœur soit ouvert aux saincts inspirations de Dieu, qui les guerdonnera enfin d’un honorable et bon party, avec lequel elles finiront heureusement leurs jours.” Histoire lamentable d’une jeune Damoiselle, laquelle a eu la teste tranchee dans la ville de Bourdeaux, pour avoir enterré son enfant tout vif au profond d’une cave, lequel au bout de six jours fust treuvé miraculeusement tout en vie, et ayant reçeu le Baptesme rendit son ame à Dieu, op. cit., p. 8.32 Tradução livre da autora: “le repentir et les regrets qui la font plaindre d’avoir cruellement suffoqué son fruit, cuidant couvrir la honte de sa lubricité”. Les larmes de repentance d’une jeune fille Prisonniere, dans les Prisons de Lyon, qui a pery son fruict, op. cit.

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parte narrada em primeira pessoa, esta peça mostra pretensamente o pensamento feminino. A condenada acusa nos mínimos detalhes cada parte de seu corpo (de seus pés a seu coração) que desempenhou um papel na sua ruína. Mais uma vez, é o comportamento feminino o ocasionador das desgraças que se sucedem na vida da protagonista.

Não, não, eu posso e devo acusar apenas a mim mesma, minha própria vontade e minha covardia, minhas liberdades, minhas audácias, minhas presunções, minhas volúpias, minhas delícias, minhas folias, meus excessos, minhas preguiças, minhas crueldades […], falta de contingência, de prudência, de temor, de sabedoria, de humildade, de honra, de respeito, de reverência, de discrição, falta de confissão, de frequentação dos sacramentos, de visita, de apreensão de minha queda, falta de caridade, de fé, de esperança, de temperança e outras virtudes que habitam nas almas bem nascidas.33

O conjunto das narrativas reproduz esse padrão de autoinculpação, no qual a jovem corrompida toma para si a responsabilidade total pela gravidez fora do casamento e pelo in-fanticídio provocado. Traço comum ao conjunto de textos narrando os mais diversos crimes, a apresentação do crime pelos condenados é essencial para o estabelecimento da punição. Nenhum crime foge ao seu castigo, e a justiça vigilante encarrega-se não apenas de aplicar a pena mas, especialmente, de anunciá-la publicamente de forma a desencorajar novos delitos. A jovem de Lyon encerra seu discurso falando a respeito de sua “cegueira”, que deve servir de exemplo aos demais, especialmente àqueles que se deixam levar pela sensualidade.

Salvo raras exceções, notadamente nos casos de incesto, as mulheres apresentadas nos canards não apresentam a iniciativa do ato sexual. Elas cedem aos desejos masculinos em função de uma promessa de casamento, depois da insistência do amado, permanecendo submissas àquele que é apontado pelos autores como o “sexo forte”. A confissão da pri-sioneira de Lyon é única neste sentido entre as fontes analisadas, já que ela anuncia seus desejos e condena sua própria lubricidade, que teria ocasionado sua ruína. No universo das histórias trágicas, Camus também relata um caso particular: uma jovem viúva aban-donada pelo amante, “mulher que mais o tinha pervertido do que ela a tinha seduzido”,34

33 Tradução livre da autora: “Non, non, je ne peux ni ne dois accuser que moi-même, ma propre volonté et ma lâcheté, mes libertés, mes audaces, mes présomptions, mes voluptés, mes délices, mes folies, mes déborde-ments, mes paresses, mes cruautés, […] faute de continence, de prudence, de crainte, de sagesse, d’humilité, d’honneur, de respect, de révérence, de discrétion, faute de confession, de fréquentation des sacrements, de visitation, d’appréhension de ma chute, faute de charité, de foi, d’espérance, de tempérance et autres vertus qui habitent aux âmes bien nées”. Les larmes de repentance d’une jeune fille Prisonniere, dans les Prisons de Lyon, qui a pery son fruict, op. cit., p. 5-6.34 Tradução livre da autora: “femme qui l’avait plutôt débauché qu’il ne l’avait séduite”. CAMUS, Jean-Pierre. Les morts entassées. In: BIET, Christian (Org.). Théâtre de la cruauté et récits sanglants en France (XVIe-XVIIe siècle). Paris: R. Laffont, 2006. p. 270.

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que mata seu bebê e se suicida. Além do caráter pouco frequente da sedução iniciada pela mulher, seu fim funesto provoca remorsos no pai da criança, que se mata com uma facada no peito.

Não obstante os recorrentes casos apresentados de homens que seduzem jovens inocentes para abandoná-las em seguida, para os autores o erro recai sobre a mulher que se permitiu ser violada. Ela permanece manchada depois de ter cedido à paixão, já que é quem carrega o estigma da desonra ao engravidar. A única maneira de evitar a infâmia e o opróbrio sobre o nome familiar neste cenário, seguindo a lógica pretensamente feminina apresentada nos textos, é fazer como se a gravidez nunca tivesse existido. A esse respeito, mais uma vez as observações de Pierre de L’Estoile propiciam um relance sobre a mentalidade burguesa do período enfocado, o que é particularmente interessante ao se considerar que o alvo primário da literatura de rua aqui enfocada era a burguesia urbana.

Em 1610, o memorialista condena as ações de uma jovem grávida fora do casamento, que se livra de seu “fardo” nos campos e retorna à Paris como se nada tivesse acontecido.35 De forma mais específica, assim como na literatura de rua e nas histórias trágicas, as mu-lheres são separadas em dois polos em seus diários, as vagabundas (garces) e as senhoritas (demoiselles). O renome e o status das acusadas desempenham um papel decisivo nas nar-rativas daqueles que contam seus crimes. O cronista escreve, no mês de agosto de 1598, a história de um infanticídio ocorrido na cidade de La Rochelle. Uma viúva, “muito amada e respeitada em toda a região pela memória de seu marido”,36 dá à luz clandestinamente. Procurando esconder sua falta, ela estrangula seu filho e esconde o corpo no interior de seu colchão. Descoberta, a viúva é colocada na prisão, onde ela tenta se matar, em vão. No dia seguinte ela é executada e “arrastada morta em uma esteira por todas as ruas da cidade, e depois pendurada pelos pés. Espetáculo hediondo e admirável em uma dama de seu status”.37 Um autor de canard não teria narrado melhor.

As notas registradas por L’Estoile dedicadas às execuções de infanticidas em Paris reve-lam julgamentos de valor específicos, segundo a origem ou a posição social das condenadas. As palavras empregadas anunciam a diferença de percepção. De uma parte, há a descrição sucinta do crime e o uso de termos neutros ou elogiosos, como aqueles aplicados à dama de La Rochelle: “No sábado 27 [março de 1599], foi enforcada, em Grève, uma senhorita

35 L’ESTOILE, Pierre de. Journal pour le règne de Henri IV et le début du règne de Louis XIII, tome III (1610-1611). Paris: Gallimard, 1960. p. 34.36 Tradução livre da autora: “fort aimée et respectée en tout le pays pour la mémoire de son mari”. L’ES-TOILE, Pierre de, op. cit., 1982, p. 133.37 Tradução livre da autora: “trainee morte sur une claye par toutes les rues de la ville, et puis pendue par les pieds. Spectacle hideux et admirable en une dame de sa qualité”. L’ESTOILE, Pierre de, op. cit., 1982. p. 133.

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que tinha matado seu filho”.38 “Na quarta 27 [julho de 1611], uma bela jovem que havia se desfeito de seu filho, [foi] enforcada em Grève.”39

De outra parte, as mulheres julgadas pertencentes à religião reformada, ou de um nível social inferior, são objeto de notas mais detalhadas nos diários. L’Estoile cita não apenas o crime pelo qual essas mulheres foram condenadas, mas a maneira como elas teriam matado seus filhos. Oposto a uma “dama de qualidade”, a uma “senhorita” ou a uma “bela jovem”, encontra-se: “Na quarta-feira primeira deste mês [julho de 1598], uma jovem foi enforcada e estrangulada, no fim da ponte S. Michel, em Paris, por ter jogado nas privadas um filho que ela tinha feito. Ela se dizia da religião [protestante], mas era aquela das putas.”40 “Na Porta de Paris, foi, este mesmo dia [13 de fevereiro de 1599], enforcada uma vagabunda, por ter jogado seu fruto nas privadas.”41 “No sábado 14 [abril de 1601], uma jovem vagabunda, com idade em torno de vinte e cinco anos mais ou menos, nativa de Troyes na Champagne, foi enforcada e estrangulada, em Grève, por ter matado com suas próprias mãos, dois de seus filhos.”42

Nada é dito de quem engravidou essas mulheres. As críticas são reservadas àquela que tenta dissimular sua infração às normas sociais. L’Estoile apresenta um caso raro com a con-denação em Paris de um homem chamado Claude Touart, em 1582. Acusado de ter sedu-zido e engravidado a filha de um personagem ilustre da cidade, ele é salvo do enforcamento por um grupo de amigos, aos quais se soma a turba presente ao suplício. O castigo buscado pelos pais da jovem, “para expiar a vergonha feita à sua família”, é contestado, pois ela teria consentido e ambos teriam contraído casamento. Para o diarista, as relações sexuais antes dos ritos solenes seriam uma consequência direta do mau “exemplo do pai, o qual abusava de uma vagabunda de uma camareira que ele tinha”. Além disso, “o jovem era bom e agradável, e capaz de fazer alguma coisa de bom”.43 Mas Claude Touart é uma exceção. Quando o se-dutor aparece nos canards, ele não é jamais condenado, nem pela justiça, nem pela censura

38 Tradução livre da autora: “Le samedi 27e [mars 1599], fust pendue, en Grève, une damoiselle qui avoit tué son enfant.” L’ESTOILE, Pierre de, op. cit., 1982, p. 182.39 Tradução livre da autora: “Le mercredi 27e [juillet 1611], une belle jeune fille qui avait défait son enfant, pendue en Grève.” L’ESTOILE, Pierre de, op. cit., 1960, p. 257.40 Tradução livre da autora: “Le mercredi premier de ce mois [juillet 1598], une fille fust pendue et estranglée, au bout du pont S. Michel, à Paris, pour avoir jetté dans les privés ung enfant qu’elle avoit fait. Elle se disoit de la Religion, mais c’estoit de celle des putains.” L’ESTOILE, Pierre de, op. cit., 1982, p. 125.41 Tradução livre da autora: “A la Porte de Paris, fust, ce mesme jour [13e février 1599], pendue une garse, pour avoir jetté son fruict dans les privés.” L’ESTOILE, Pierre de, op. cit., 1982, p. 177.42 Tradução livre da autora: “Le samedi 14e [avril 1601], une jeune garse, âgée d’environ vingt-cinq ans ou environ, native de Troyes en Champagne, fut pendue et étranglée, en Grève, pour avoir tué de ses deux mains deux de ses enfants.” L’ESTOILE, Pierre de. Journal pour le règne de Henri IV, tome II (1601-1609). Paris: Gallimard, 1958. p. 21.43 Tradução livre da autora: “pour expier la honte faite à leur famille”; “exemple du pere, lequel abusoit d’une garse de chambriere qu’il avoit”; “le garçon estoit beau et agreable, et capable de faire quelque chose de bon”. L’ESTOILE, Pierre de. Registre-Journal du règne de Henri III, tome IV (1582-1584). Genève: Droz, 2000. p. 38-40.

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social. A despeito dos “discursos afetados” e das falsas promessas de casamento, ele paga somente quando a jovem humilhada faz justiça com suas próprias mãos e, inevitavelmente, é também condenada por esse crime.

A exposição e condenação dos comportamentos da juventude, com uma ênfase no com-portamento feminino, não ocorreu em um momento aleatório. Inseridos em um amplo quadro retórico contra a sexualidade fora do casamento e, naturalmente, os filhos ilegítimos, os canards integram as estratégias de difusão de modelos de comportamento e conformidade às populações sob o Antigo Regime. Numerosos discursos — contra os bailes, o Carnaval, a vaidade das jovens, a depravação da juventude, o desrespeito às recomendações da Igre-ja — foram difundidos na mesma época, parte de uma mesma preocupação. A crescente presença judiciária, paralelamente à moralização pós-tridentina, intensificou a vigilância das populações que, continuamente, eram atingidas pelo esforço de depuração de seus hábitos e costumes. Mesmo através dos mais baratos impressos de então.

A sexualidade feminina e seu enquadramento

A reiteração do caráter sagrado do casamento, assim como a criminalização da oculta-ção da gravidez por um edito de Henrique II em 1556 anunciam os esforços da Justiça no sentido de controlar a sexualidade, especialmente a sexualidade feminina. A lei contra a ocultação da gravidez, promulgada segundo seu texto em razão da frequência do crime, é explicitamente voltada às “mulheres tendo concebido filhos por meios desonestos”.44 Estas ficam doravante obrigadas a declarar sua condição, a despeito do clamor social que sua con-dição pudesse levantar. Com a ausência de tal declaração, a ocultação da gravidez adquire contornos de premeditação de infanticídio, pois a morte da criança antes do batismo, mes-mo por razões supostamente naturais, acarreta em uma acusação de homicídio e desencadeia a perseguição judiciária.

O combate ao infanticídio não se restringiu às discussões legais. Ele adentrou o coti-diano, sobretudo após a ordenança de Henrique III em 1586, exigindo a leitura a cada três meses pelos curas e vigários do edito de Henrique II,45 recomendação que foi reforçada pelos parlamentares ao longo dos séculos XVII e XVIII.46 Observa-se, assim, o surgimento de uma nova preocupação em torno das ações maternas por parte do Estado, preocupação esta alimentada pelo discurso religioso que via no atentado contra o infante um ataque não ape-nas à célula familiar, mas à própria Igreja. Como Daniela Tinková expressa, a perseguição ao

44 ISAMBERT, François-André; JOURDAN, Alfred; DECRUSY. Recueil général des anciennes lois françaises depuis l’an 420 jusqu’ à la Révolution de 1789. Tome XIII. Paris: Belin-Leprieur, 1821-1833. p. 472.45 CHARTIER, Roger (Org.). Les usages de l’ imprimé. Paris: Fayard, 1987. p. 97.46 DUVILLET, Amandine. Du péché à l’ordre civil, les unions hors-mariage au regard du droit (XVIe-XXe siècle). Tese (Doutorado em História do Direito) — Université de Bourgogne, Dijon, 2011, p. 184.

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infanticídio nesse momento representa precisamente o “espírito barroco” da época, no qual as preocupações em torno da salvação da alma do feto e do recém-nascido se desenvolvem.47

Conjugam-se, assim, nesse processo, o crescimento da intolerância e a elevação do limiar das sensibilidades, em meio a amplas preocupações de fundo legal e religioso. Presente no cotidiano, a visão da ortodoxia a respeito do infanticídio alimentou os ocasionais, notada-mente entre o final do século XVI e o começo do século XVII, quando os canards mostram o valor conferido à vida perdida. O infanticídio deixa de ser uma realidade corrente e passa a integrar, não mais apenas o nível retórico, mas também a execução judiciária.

O esforço para limitar a sexualidade ao quadro legítimo do casamento mostra a obser-vância religiosa da Reforma Católica triunfante e, sobretudo, as preocupações referentes à linhagem, vinculada à honra masculina. O fenômeno não é restrito à França. A análise da legislação inglesa concernente à bastardia e ao infanticídio, reiterada em 1576, 1610 e 1624, reforça as inquietações de uma época. Anthony Fletcher fala da regulação pública de um grupo social específico, as mulheres pobres, das quais a sexualidade pouco controlada é vista como uma ameaça aos valores sociais.48 O aumento da perseguição e da punição das mães solteiras é propagado, seja com o trabalho forçado, o chicote ou o afogamento na Inglaterra, seja com o cadafalso na França.

A repressão teve frutos, acarretando em uma baixa das taxas de nascimentos ilegítimos nos séculos XVI e XVII nos dois países.49 Os ecos dos esforços judiciários são observáveis nos canards, que mostram as preocupações em torno do infanticídio como tema principal de 15 das 25 peças tratando de mortes cometidas por mulheres, além de três peças onde filho e pai são mortos, totalizando mais de 70% dos homicídios cometidos pelo gênero. Além disso, a falta é também perpetrada por mulheres em narrativas concernentes a sete crimes mistos, i.e., crimes que contaram com a ação de um homem e uma mulher, e a seis textos religiosos. Trata-se do principal crime atribuído às mulheres nos canards, e do mais severamente casti-gado. Na realidade, “o mais inaceitável dos delitos femininos”,50 o infanticídio é o crime que acarreta a maioria das execuções de mulheres condenadas pela Justiça: analisando os casos levados ao Parlamento de Paris entre 1574 e 1604, Muchembled mostra que 68% das execu-tadas, considerando-se todos os delitos, foram condenadas por infanticídio.51

Nesse contexto, não é surpreendente que o infanticídio seja o principal crime feminino enfocado nas narrativas quando os autores preferem a representação de uma jovem mulher como protagonista. O universo da literatura de rua não é, entretanto, unicamente expressão

47 TINKOVÁ, Daniela. Protéger ou punir? Les voies de la décriminalisation de l’infanticide en France et dans le domaine des Habsbourgs (XVIIIe-XIXe siècles). Crime, Histoire & Sociétés, v. 9, n. 2, p. 43-72, 2005. 48 FLETCHER, Anthony. Gender, Sew & Subordination in England 1500-1800. New Haven e Londres: Yale University Press, 1995. p. 278-279.49 CASTAN, Nicole. Criminelle. In: DAVIS, Natalie Z.; FARGE, Arlette (Org.). Histoire des femmes en Occident XVIe-XVIIIe siècle. Paris: Perrin, 2002. p. 539-554. 50 MUCHEMBLED, Robert, op. cit., p. 1063-1094.51 MUCHEMBLED, Robert, op. cit.

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dessas visões de mundo, mas ele também contribui para sua formação. Os modelos apresen-tados, assim como seu desvio, foram transmitidos a uma audiência que não pode ser medida. Trata-se do público interessado nos escândalos da época, gritados nas esquinas das grandes cidades e anunciadores da ruptura dos interditos. Trata-se de filhas, esposas e mães, todas sujeitas às tentações da carne, que tiveram seus caminhos desviados pela vicissitude, seja pela miséria, seja por um amante desleal.

A reação feminina face aos canards permanece desconhecida, visto os mecanismos de avaliação direta da leitura feminina no começo da Idade Moderna tocando um material amplamente crítico e moralizador serem inexistentes. Os textos, construídos muitas vezes a partir de uma voz feminina, como um testemunho das misérias vividas e um exemplo de arrependimento, carregam o filtro masculino, i.e., a compreensão masculina das emoções e das visões de mundo femininas. Para os autores desses textos, a culpa é iminentemente da mulher, e a falta da Eva tentadora não deixa de ser relembrada para se justificar as fraquezas masculinas.

E, como as tentações estão por toda parte, assim também está a vigilância. Nenhum cri-me escapa à punição, e os castigos das mulheres criminosas são detalhados e expõem, acima de tudo, seu remorso e sua exortação a um comportamento reservado, obediente e dócil. A busca pelo que as mulheres deveriam ser, mais do que seus desejos e aflições, encontra-se na essência destes canards, tão sangrentos quanto disciplinadores.

Referências bibliográficas

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Companhia Estrada de Ferro D. Pedro II: a grande escola prática da nascente

Engenharia Civil no Brasil oitocentista

Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro Marinho*

RESUMO Na formação social brasileira, ao final do século XIX, a conflituosa correlação de forças que sustentava o bloco no poder passou a demonstrar a perda da capacidade de formulações intelectuais capazes de articular reformas compatíveis com o momento histórico. Em linhas gerais, engenheiros passaram a atuar como técnicos e como dirigentes nas Companhias de Estradas de Ferro, cuja função particular articulava-se, naquele momento, aos interesses das frações do complexo agroexportador de determinadas regiões do país. Dessa forma, acredi-tamos ser possível explicar como os projetos ligados às ferrovias desdobravam-se de forma a extrapolar a sociedade civil em direção à sociedade política, revelando, assim, o processo de ampliação do Estado brasileiro.Palavras-chave: estradas de ferro; história da engenharia; Brasil do século XIX; Segundo Reinado; história da técnica e tecnologia.

ABSTRACTIn Brazilian society, in the late nineteenth century, the conflicting correlation of forces that supported the power bloc went on to demonstrate the loss of ability to intellectual formulations capable of articulating reforms compatible with the historic moment. In general, engineers started to work as technicians and as leaders in railway companies, whose particular function articulated the interests of the agro-export complex fractions of certain regions of the country. Thus, we believe we can explain how the projects related to railways unfolded in order to extrapolate the civil society towards the political society, revealing thus the process of expansion of the Brazilian state.Keywords: railroads; history of engineering; nineteenth-century Brazil; Second Empire; history of technology.

Artigo recebido em 26 de dezembro de 2014 e aprovado para publicação em 30 de abril de 2015.* Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador associado do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST). Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected].

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Introdução

O período privilegiado por este artigo — as três últimas décadas do século XIX — tem sido objeto de vasta literatura historiográfica, sobretudo devido aos primeiros sinais do processo de industrialização que se implantava no país e aos marcos formais referentes à abolição do trabalho escravo (e à transição para o trabalho livre), bem como ao golpe republicano. Malgrado as particularidades regionais, podemos afirmar que esses e outros aspectos específicos do período assinalam um processo corrente de acumulação capitalista, com mudanças profundas nas relações de trabalho e nas formas de produção no campo e nas cidades em quase todo o país. Nesse contexto, destacou-se uma fração agrária ligada à pro-dução e à exportação de café, cujas lavouras se concentravam no eixo centro-sul. Esse grupo atingirá a hegemonia dentro dos complexos agroexportadores da época, ainda que estivesse sub-representado no bloco no poder imperial.1

A cultura do café percorreu grande parte da história do império, adiantando-se nos anos 30 do século XIX pelo Vale do Paraíba, contando com novas frentes de expansão ao longo das décadas posteriores. Grande parte da historiografia especializada ressalta que tanto o café quanto as ferrovias, que vieram a reboque, foram responsáveis pela implantação da in-dústria no Brasil. Dessa forma, considerou-se importante observar como o capital cafeeiro, predominante até a década de 1920 do último século, se apresentou sob as mais diferentes formas, quais sejam as de capital agrário, industrial, bancário e comercial, sendo o próprio capital cafeeiro um investimento industrial, inclusive com a intensificação progressiva da mecanização.

Aliás, tal aspecto industrial da produção cafeeira não passara despercebido aos olhos dos observadores da época, como, por exemplo, Delgado de Carvalho, para quem a aparelhagem da usina de café atingiu um grau de perfeição muito notável em São Paulo. É hoje a indústria melhor organizada do Brasil. As grandes fazendas de São Paulo são instalações modelo, que surpreendem o viajante estrangeiro e são dignas de figurar ao lado das indústrias mais bem aparelhadas da Europa.2

Além disso, o desenvolvimento crescente da cultura do café demandou todo um aparato de infraestrutura, que passava por empresas de serviços, casas bancárias, comerciais e em-presas voltadas para implementação de transportes urbano e ferroviário. Da mesma forma, à ampliação da produção de café para exportação seguiu-se a instalação de estabelecimentos de importação e exportação responsáveis por todo o tipo de comércio realizado dentro e fora das fronteiras do país. Ou seja, a atividade cafeeira deu origem a um significativo “com-

1 MENDONÇA, Sonia Regina de. Ruralismo: agricultura, poder e Estado na Primeira República. v. 1. Tese (doutorado em História) — Universidade de São Paulo, São Paulo, 1990. p. 46.2 CARVALHO, Delgado apud SILVA, Sergio. Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil. 5. ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1981. p. 56.

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plexo econômico”, segundo parte da historiografia especializada. Tais aspectos reforçam o momento de industrialização — estreitamente dependente do capital estrangeiro — e a inserção do país no contexto do capitalismo internacional.

Do café às ferrovias: relações com a nascente engenharia civil no Brasil oitocentista

John Wirth afirma que, até 1900, Minas manteve-se como segundo produtor brasileiro de café, logo atrás de São Paulo. Contudo, ainda que o território fosse bem servido de estra-das de ferro, o estado apresentava algumas desvantagens em relação a São Paulo, como terras menos produtivas e salários menores pagos pelos produtores em relação aos dos paulistas. O declínio dos preços do café na década de 1890 teria resultado, também, num empecilho para a importação de produtos básicos que os produtores mineiros haviam deixado de pro-duzir para dedicarem-se à monocultura.3 Mendonça, por sua vez, apresenta um a um os fatores que levaram à decadência da cafeicultura no território fluminense, ocorrida a partir do último quartel do século XIX. Dentre eles, destaca-se a diminuição das margens de lucro da empresa cafeeira de exportação devido à dificuldade de adaptação da produção às novas condições do período, especialmente aquelas relacionadas com o encarecimento de mão de obra escrava.4 Uma das tentativas de reajuste da cafeicultura fluminense, nas décadas de 1860 e 1870, com vista a racionalizar o estoque de mão de obra existente, foi a construção de estradas de ferro, que permitiria a liberação do braço escravo — desviado para a condução de mulas — a fim de ser aproveitado nas lavouras de café.

Decerto, é importante ressaltar que os empreendimentos ferroviários, de uma maneira geral, foram desenvolvidos visando a contemplar interesses e necessidades das frações agro-exportadoras no transporte do produto aos principais portos brasileiros.5 Conforme afirma Eduardo Gonçalves David, “... [o]s barões do café exigiam meio de transporte mais eficiente que as tropas de mulas que serpenteavam pelas encostas íngremes da Serra do Mar em direção aos portos do rio Iguaçu, onde era o café embarcado em chatas, até a baía de Guanabara”.6

3 WIRTH, John D. O fiel da balança: Minas Gerais na Federação Brasileira, 1889-1937. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.4 MENDONÇA, Sonia Regina de Mendonça. A primeira política de valorização do café e sua vinculação com a economia agrícola do Estado do Rio de Janeiro. Dissertação (mestrado em História) — Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1977.5 Cf. MARINHO, Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro. Engenharia imperial: o Instituto Politécnico Bra-sileiro — (1862-1880). Dissertação (mestrado em História) — PPGH da Universidade Federal Fluminense. Niterói: UFF, 2002.6 DAVID, Eduardo Gonçalves. A ferrovia e sua história. Estrada de Ferro Central do Brasil. Rio de Janeiro: AENFER, 1998, p. 5. Geraldo Beauclair assinala que “o alento que a expansão cafeeira ganharia com as Estradas de Ferro (Pedro II, Cantagalo, Mauá-Serra da Estrela) ensejava, como contrapartida, o declínio dos pequenos portos disseminados junto às águas reduzindo o sistema regional de navegação. OLIVEIRA,

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Desse modo, as construções em benefício do complexo produtivo do café se realizaram a partir de múltiplos interesses de agentes que, inclusive, se confrontavam dentro do mes-mo campo agroexportador. As pressões feitas por cafeicultores de distintas regiões do país acabavam resultando no incremento de empreendimentos ferroviários cujo fim último seria diminuir o custo do transporte da produção para a exportação de uma determinada região e, muitas vezes, de um fazendeiro em particular.7

Uma vez que as lavouras do café, já no final do século em questão, tenderam à relativa decadência em algumas províncias e a um fortalecimento em outras, é possível concluir que as ferrovias, que funcionavam, de maneira geral, segundo as necessidades da economia cafe-eira — e, portanto, dos agentes vinculados ao complexo agroexportador — sofressem abalos ou ganhassem fôlego em regiões distintas. Andrea Fernandes Rabello, contudo, afirma que os fazendeiros da província fluminense viam nas estradas de ferro um investimento mais se-guro, pois respondiam apenas pelo capital investido, cujo retorno, assegurado pela garantia de juros, era certo.8

Porém, é importante ressaltar que a maioria das formulações da historiografia brasileira sobre as ferrovias, em sua maioria, repousa na noção de que modernidade e escravidão não faziam parte do mesmo processo histórico, ou, dito de outro modo, que existia uma contra-dição entre desenvolvimento técnico a e escravidão. Ao apresentar a abolição como a con-sequência de um processo de longa duração que envolveu mudanças estruturais, situações conjunturais e uma sucessão de episódios que culminaram na Lei Áurea, Emília Viotti da Costa,9 por exemplo, colocou em lados opostos os senhores escravistas do vale fluminense e do oeste paulista, onde os primeiros, mais que os segundos eram comprometidos com a es-cravidão. Assim, entre outros elementos apresentados pela eminente historiadora, as estradas de ferro fariam parte do processo do desenvolvimento capitalista do Brasil e estariam em contradição com a escravidão. Neste processo as ferrovias propiciaram a racionalização dos meios de transporte, o estímulo às novas atividades econômicas e à urbanização, e tudo isso teria garantido a possibilidade para o emprego do trabalho livre.

O resultado inevitável desta equação de longo tempo teria sido o seguinte: senhores do oeste paulista, mais afeitos à modernidade e menos apegados à escravidão, prosperaram. No revés desta moeda, os senhores escravistas fluminenses, por seu comprometimento com a escravidão, por sua não adesão aos novos tempos, fracassaram. Teriam deixado como legado,

Geraldo de Beauclair Mendes de. A construção inacabada: a economia brasileira, 1822-1860. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2001, p. 210.7 MARINHO, Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro. Engenharia imperial: o Instituto Politécnico Brasileiro — 1862-1880, op. cit.8 RABELLO, Andrea Fernandes Considera Campagnac. Os caminhos de ferro da Província do Rio de Janeiro. Ferrovias e café na 2a metade do século XIX. Niterói, 1996. Dissertação (mestrado em História) — Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1996.9 COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala à colônia. São Paulo: Unesp, 1998. p. 20-30.

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assim como constatou Raimundo Faoro10 e antes dele Monteiro Lobato,11 ainda no início do século XX, as “cidades mortas”. Nesta oposição, as ferrovias fluminenses, e em particular a Estrada de Ferro Pedro II, não se destacaram como objeto de pesquisas, frente ao “caminho da modernidade” trilhado pelas estradas paulistas e mesmo de outras províncias, que atraí-ram a grande maioria dos estudos contemporâneos.

Não se pretende, aqui, entrar detalhadamente nas controvérsias da historiografia especiali-zada sobre o tema, mas cabe ressaltar que, a partir das nossas pesquisas,12 temos percebido que as formações das estradas de ferro do Brasil imperial inseriam-se em um movimento duplo e complexo, onde o moderno se nutriu do atraso e o complementou, acelerando a abolição em alguns contextos e “vivificando” a escravidão em outros. Ou, como em 1883 afirmava Joaquim Nabuco, “a escravidão havia sido ‘vivificada’ e alentada pelo vapor e pela locomotiva”.13

Com a montagem do chamado complexo cafeeiro, na segunda metade do século XIX, a construção civil, sem dúvida uma das mais antigas atividades profissionais desenvolvidas no Brasil, ampliou imensamente suas perspectivas de atuação e, ao mesmo tempo, enfrentou desafios, tanto de ordem econômica quanto técnica. As grandes obras necessárias à criação da infraestrutura urbana, energética e de transportes construída nessa época ofereceram alguns desses desafios, que se confundem com as origens da engenharia como campo profis-sional e, ao mesmo tempo, com a formação de seus agentes, enquanto grupo social, a partir da autoridade intelectual acumulada.

Na década final do império brasileiro, com efeito, a engenharia civil encontrava-se, num primeiro momento, estreitamente vinculada à expansão e diversificação das condições de produção agrário-exportadora, portanto, vinculada igualmente aos agentes nela implicados. Tal processo dava-se concomitantemente no âmbito urbano — com os serviços de locomo-ção, calçamento, saneamento, gás, abastecimento de água — e, no âmbito rural, com a cons-trução das estradas de ferro e das linhas telegráficas que as acompanhavam. Esta conjuntura guardava relação direta com a expansão capitalista e as concepções ideológicas burguesas de progresso, técnica e competência, que demandavam a formação de agentes técnico-científi-cos condicionados às funções mais complexas e, dessa maneira, dotados de capacidade para a execução e direção de atividades vinculadas ao desenvolvimento econômico.14

A atividade profissional dos engenheiros civis, que se complexificava com o processo de afirmação e institucionalização do campo, desprendia-se de aspectos estritamente técnicos para formular, dirigir e executar diversas etapas de uma unidade de produção, onde ca-

10 FAORO, Raymundo. A questão nacional: a modernização. Estudos Avançados, v. 6, n. 1, p. 7-22, 1992.11 LOBATO, José Bento Monteiro. Cidades mortas. São Paulo: Globo Livros, 2007 [1919].12 MARINHO, Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro. Ampliando o estado imperial: os engenheiros e a orga-nização da cultura no Brasil oitocentista, 1874-1888. Tese (doutorado) — Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2008.13 NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Petrópolis: Vozes, 1988 [1883]. p. 122.14 MARINHO, Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro. Engenharia imperial: o Instituto Politécnico Brasilei-ro — 1862-1880, op. cit., a partir da p. 120.

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biam funções também financeiras e comerciais, tornando essas tarefas de competência dos engenheiros. Aliás, são os principais profissionais a dominar a matemática aplicada. Desta maneira, os aspectos financeiros relacionados com os de execução técnica permitirão aos engenheiros, cada vez mais, a capacidade de racionalização da produção, o que os coloca em posições de autoridade perante outros agentes contemporâneos. Assim, cada vez mais engenheiros-empresários começam a ser gestados em um processo de expressivo aumento da demanda das frações hegemônicas pelo trabalho destes profissionais.15 As frentes de trabalho se multiplicavam, mas o que aparecia em destaque era a demanda relativa a toda a sorte de obras públicas nas cidades e de atividades diretamente ligadas à construção e administração de estradas de ferro — ainda que, inicialmente, a participação do engenheiro brasileiro te-nha ocorrido na qualidade de auxiliar dos engenheiros ingleses. Ao longo desse processo, os profissionais ligados à engenharia brasileira conseguiram galgar gradativamente postos de direção. Trajetória que pode ser observada principalmente em relação às ferrovias nacionais. Na Estrada de Ferro D. Pedro II (EFDPII), por exemplo, principal ferrovia do país, todos os importantes postos de direção já eram ocupados por engenheiros brasileiros no início da década de 1870.

Em meio ao apogeu da cultura cafeeira no Vale do Paraíba, para cumprir o papel de levar os trilhos até as margens do rio Paraíba do Sul e de lá desdobrar-se em direções opos-tas, com vistas a alcançar as províncias de São Paulo e Minas, nasceu, não sem conflitos, a CEFDPII; Companhia Estrada de Ferro D. Pedro II. Em nossa análise,16 entendemos que embora a Estrada de Ferro D. Pedro II, construída e administrada pela Companhia de mes-mo nome, não tenha sido a primeira ferrovia do Brasil, foi o resultado possível do processo de embates entre a sociedade e o governo, iniciado em 1835. Das tensões em torno do cami-nho de ferro que iria transpor a Serra do Mar se formaram as bases para a implantação de ferrovias no Brasil. As estradas de ferro compunham parte da agenda das políticas públicas que envolvia as obras de infraestrutura, ou, como no linguajar de época,17 os “melhoramen-tos materiais”.18 Ferrovias e outros melhoramentos de infraestrutura que já vinham sendo pensados antes começavam a sair do papel, ou melhor, foram retomadas a partir de 1848,

15 Ibidem.16 MARINHO, Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro. Ampliando o estado imperial: os engenheiros e a orga-nização da cultura no Brasil oitocentista, 1874-1888, op. cit.17 MARINHO, Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro. Ampliando o estado imperial: os engenheiros e a orga-nização da cultura no Brasil oitocentista, 1874-1888, op. cit. 18 De acordo com o Diccionario da Língua Portugueza, datado de 1889, da autoria de Antonio Morais Silva, a definição para “melhoramentos públicos” referia-se às “obras de utilidade ou embelezamento feitas pelo Esta-do, pelo município, etc. para uso e gozo da população: v.g. abertura de ruas, praças, abastecimento de águas, esgotos, iluminação, viação acelerada, edificações, jardins, etc.” Cf. SILVA, Antonio Morais. Diccionario da língua portugueza. Rio de Janeiro: Editora Empreza Litteraria Fluminense de A. A. da Silva Lobo, 1889. Os referidos melhoramentos possuíam uma relação direta com o trabalho dos engenheiros e, por sua vez, com as obras públicas no século XIX. Além disso, estes melhoramentos poderiam ser tanto “materiais”, “morais” ou “públicos”, como também “urbanos”.

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em grande medida, a partir de uma linha política conservadora e modernizante, impressa pela trindade saquarema,19 a exemplo do Decreto no 641, de 26 de julho de 1852, que reor-ganizou a concessão de linhas férreas para integrar a corte, a região do Vale do Paraíba e as províncias de São Paulo e Minas Gerais através da Serra do Mar.20

Ao mesmo tempo que se demandava o trabalho dos engenheiros civis para as obras de infraestrutura, o crescimento das cidades ampliava ainda mais sua atuação em diferentes campos e, consequentemente, aumentava a necessidade de novos e maiores espaços para as suas discussões profissionais. Poder-se-iam encontrar, de maneira frequente, naquele perío-do, publicações de artigos e realização de debates dos engenheiros cujas temáticas estavam relacionadas com os chamados “melhoramentos” urbanos. Nas revistas científicas em espe-cial, os agentes costumavam registrar a questão das obras públicas, particularmente estradas de ferro, como um dos assuntos mais recorrentes, demonstrando o envolvimento intenso de sua prática profissional ao processo de crescimento e transformação do espaço urbano na virada do século e, consequentemente, os estreitos vínculos com as frações agrárias hegemô-nicas, conforme já apontamos.

É possível perceber, por exemplo, que nas sessões do Instituto Politécnico Brasileiro (IPB), de 1862 a 1880, assim como nas memórias publicadas na Revista do Instituto, pre-ponderaram temas relativos ao planejamento, construção e administração geral de ferrovias. Dos estudos premiados com a medalha Hawkshaw,21 35,7% diziam respeito a estradas de ferro.22

Da mesma forma, como podemos verificar na tabela 1, o tema de maior destaque na Revista do Clube de Engenharia, cuja primeira publicação data de 1887, prossegue referente às estradas de ferro, seguido de obras públicas:

19 MARINHO, Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro. Engenharia imperial: o Instituto Politécnico Brasilei-ro (1862-1880), op. cit.20 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: a formação do estado imperial. São Paulo: Hucitec, 2004. p. 182-189.21 Prêmio anual oferecido pelo IPB ao melhor trabalho de engenharia. As ferrovias empregaram um número alto de engenheiros brasileiros: 75% de todos eles por volta de 1880, nem todos no serviço público, porque diversas estradas de ferro eram exploradas por companhias estrangeiras (São Paulo Railway, Brazil Railway Co., Cie. Générale de Chemins de Fer du Brésil, entre outras) por concessão do Estado.22 RIPB, Tomo XII, 1878, 2a parte, p. 3; Apud MARINHO, Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro. Enge-nharia imperial: o Instituto Politécnico Brasileiro (1862-1880), op. cit.

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Tabela 1 Temáticas da Revista do Clube de Engenharia (1887-1910)

Temas TotalEstradas de Ferro 95

Abastecimento de água 23Saneamento 18

Portos 12Máquinas a vapor 7

Navegação 6Eletricidade 4Telegrafia 4Telefonia 2

Aço 2Cimento Portland 1

Vários 22

Fonte: Revista do Clube de Engenharia. Rio de Janeiro: Imprensa a Vapor Lombaerts & C. / Tip. Leuzienger & Filhos (1887-1910).23

Além da publicação de temáticas ligadas às obras públicas em revistas das próprias agre-miações, a organização de congressos conseguia reunir um número expressivo de agentes com o propósito de discutir diretrizes para a política de incremento da infraestrutura das ferrovias no país. Nesse sentido, as problemáticas formuladas e debatidas por aqueles intelec-tuais em suas reuniões cotidianas tornavam-se temas de seus congressos, aptos a promover as mais diversas campanhas, resultando na consolidação daqueles agentes como intelectuais organizadores da cultura. Algumas resoluções formuladas nesses eventos foram registradas em relatórios e pareceres, cujo conteúdo é passível de revelar não apenas a preeminência de um grupo particular, mas também certas contendas estabelecidas entre os agentes sobre os assuntos em questão. Na década de 1880, dois encontros ganharam destaque: o 1o Congres-so das Estradas de Ferro do Brasil, em 1882, e a 1a Exposição das Estradas de Ferro do Brasil, realizada em 1887, nos quais se reuniram diversos dirigentes do Clube de Engenharia.24

23 Apud MARINHO, Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro. Ampliando o estado imperial: os engenheiros e a organização da cultura no Brasil oitocentista, 1874-1888, op. cit. 24 MARINHO, Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro. Porta-vozes em uma era de incertezas: o Clube de Engenharia e a concepção de uma Inspetoria Geral das Estradas de Ferro. Revista Brasileira de História da Ciência, v. 3, p. 170-183, 2010.

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Tabela 2 Temários discutidos no 1o CEFB

Dia da Sessão Matéria Sócios pareceristas

14 de julho I — sobre o cruzamento de duas estradas de ferro

Wallace Gama Cochrane; Januário de Oliveira; Eduardo Klingelhoefer

17 de julho II — telégrafo das estradas de ferro

Mello Barreto; José Américo dos San-tos e Aarão Reis

19 de julho III — redução das tarifas das estradas de ferro

F. Mayrinck, Mello Barreto; Hercula-no Penna

29 de agostoIV — sistema de garantia de juros às empresas de estradas

de ferro

Pedro Betim, A. M. Oliveira Bulhões; Wallace Cochrane

19 de julho V — zonas privilegiadas das estradas de ferro

José Américo dos Santos e André Gustavo Paulo de Frontin

29 de julho VI — plano geral da viação férrea

A. M. Oliveira Bulhões, Firmo José de Mello, Jorge Rademarker Gru-

newald

1 de agostoVII — determinação do

coeficiente da resistência dos trens

Carlos Conrado de Niemeyer, Ray-mundo Teixeira Belfort Roxo e Hen-

rique Hargreaves

8 de agostoVIII — revisão da lei de

desapropriação para uso das estradas de ferro

Firmo José de Mello, Francisco Perei-ra Passos e Paulo de Frontin

10 de agosto IX — vias navegáveis do Brasil Jeronymo Moraes Jardim, Francisco Pereira Passos, R. F. Belfort Roxo

10 de agostoX — o regulamento de 26 de abril de 1857 sobre a polícia e

segurança das estradas de ferroFrancisco Pereira Passos e Joaquim

M. R. Lisboa

14 de agosto

XI — os impostos municipais sobre os gêneros que se

servem das estradas de ferro em demanda dos mercados

consumidores ou exportadores

Domingos José Rodrigues, F. P. Mayrinck e Luiz Bittencourt Sobri-

nho

22 de agosto

XII — as bases gerais para a descriminação da receita e despesa; movimento de

passageiros e mercadorias e mais dados estatísticos do

tráfego das estradas de ferro

Jorge Rademarker Grunewald, João Carvalho Borges Junior e Álvaro Ro-

dovalho Marcondes dos Reis

Fonte: REIS, Aarão Leal de Carvalho (Org.). Primeiro congresso das estradas de ferro do Brasil. Archivos dos Trabalhos. Rio de Janeiro: Clube de Engenharia, 1882.25

25 Apud MARINHO, Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro. Ampliando o estado imperial: os engenheiros e a organização da cultura no Brasil oitocentista, 1874-1888, op. cit.

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Envolvidos intensamente na viabilização do “complexo econômico” que surgia, os enge-nheiros assim se organizavam, negociavam, disputavam e estabeleciam alianças no âmbito da sociedade civil,26 ao mesmo tempo que inscreviam agentes na sociedade política, com vista a realizar ações particulares e salvaguardar os seus próprios interesses e os da classe que se vinculavam, quaisquer que fossem as frações hegemônicas dentro dos complexos agroex-portadores que conseguiam fazer girar, sob a sua órbita, a vida econômica do país.

No que diz respeito especificamente aos engenheiros que estamos analisando, a sua in-serção profissional foi correlata a essa intensificação ferroviária. Dentre os diversos decretos e leis elaborados no âmbito de agências da sociedade política (como o Macop — Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas e Mivop — Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas), elencamos, nesse período, aqueles que versavam especificamente sobre questões vinculadas às atividades profissionais dos engenheiros e que estiveram vinculados às formulações e construção consensuais elaboradas pelos engenheiros do IPB e do Clube de Engenharia.27

26 Como perspectiva teórica, adotamos a noção gramsciana de Estado ampliado, cuja formulação, em linhas gerais, toma como pressuposto a ideia de que este mesmo Estado se amplia e se torna mais complexo me-diante a incorporação progressiva de quadros oriundos de “aparelhos privados de hegemonia”. Desse modo, a partir da matriz gramsciana de “Estado ampliado”, visto como uma relação social e dialética entre sociedade civil e sociedade política, consideram-se não somente seus aparelhos de coerção — que visam à dominação e a possibilitam —, mas, também, a sua capacidade de produzir e reproduzir uma direção moral, intelectual e, portanto, cultural, exercida por uma fração de classe ou grupo social sobre outras frações ou grupos. As concepções do revolucionário italiano Antonio Gramsci privilegiaram as formas através das quais se assegu-ra o predomínio de um grupo ou fração de classe sobre o conjunto da sociedade nacional inteira, exercido mediante as organizações privadas de hegemonia. O Estado é compreendido como “o organismo próprio de um grupo destinado a criar as condições favoráveis à máxima expansão do próprio grupo”. O que garante a eficiência desse processo expansivo é não ser identificado como a concretização de interesses exclusivos dos grupos beneficiados, mas como expressão de toda a sociedade. A sociedade não consiste apenas num modo de produção garantido coercitivamente pelo “poder do Estado”, mas também em hábitos de vida e pensamen-to, numa concepção de mundo amplamente difundida pela sociedade e na qual se inserem os costumes, a moral, o gosto popular, o senso comum, o folclore e também os princípios filosóficos e religiosos da maioria da população. E é esse modo de pensar e agir dos homens e dos governados que consiste no mais importante suporte da ordem constituída. A força plena é uma reserva para os momentos excepcionais, os momentos de crise. Normalmente, o domínio da classe ou fração de classe dominante se apoia sobre uma adesão dos governados ao tipo de sociedade em que vivem, isto é, sobre o consenso. Gramsci desloca a noção centáurica — meio homem, meio animal — do Príncipe, de Maquiavel — para o Estado, denominando-o como insti-tuição composta de força e consenso, de dominação e hegemonia, de violência e civilização. Mas não se trata apenas de uma dualidade justaposta e, sim, de um processo orgânico complexo, sintetizando o Estado no conjunto formado pela sociedade política e sociedade civil, uma noção de “Estado ampliado”. Tal perspectiva ajuda a pensar como os engenheiros brasileiros construíram suas práticas e representações frente aos grupos organizados da sociedade civil aos quais estavam vinculados e, ainda, o que disputavam e como asseguravam sua presença nas diversas agências do Estado ampliado.27 De acordo com Sonia Mendonça, “o reconhecimento formal do estatuto de interlocutor legítimo conferido à [agremiação] se traduziria na infinidade de comissões ministeriais a que a que ela seria instada a participar, bem como na atribuição de vagas a serem por ela preenchidas nos Conselhos” (MENDONÇA, Sonia Regina de. O ruralismo brasileiro (1888-1931). São Paulo: Hucitec, 1997, p. 56).

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Tabela 3 Legislação referente ao campo das atividades profissionais ligadas à Engenharia (1871-1905)

Ramos e setores de atividades Decretos 1874-1905Estrada de ferro e transporte urbano 91

Portos 27Navegação 14

Construção Civil/Obras públicas Urbanas 13Telégrafos 8

Ensino engenharia 5Registro de Patentes e Prop. Industrial 4

Iluminação 3Regulamentação profissional 2

Telefonia 2Obras contra a seca 2Engenho e açude 2

Vocabulário técnico 1Total 174

Fonte: BRASIL. Coleção de leis e decisões do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1874-1889; BRASIL. Coleção das Leis da República: atos do poder executivo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1942.28

Como é possível notar na tabela 3, a imensa maioria da legislação centrava-se nas estra-das de ferro. De um total de 174 decretos, 91 são relativos ao setor (entendidas aí as conces-sões a particulares ou empresas, a aprovação de estudos para viabilidade de novas estradas de ferro ou para sua ampliação, concessão de garantia de juros, aumento orçamentário, regulamentação de fiscalização de obras e funcionamento etc.). Ainda como parte do con-texto do complexo agroexportador, na segunda posição há uma significativa concentração de decretos (27) ligados às atividades do setor portuário. Em terceiro lugar, estão os decretos relativos às concessões às empresas de navegação, sobressaindo a reorganização da Compa-nhia Lloyd Brasileiro.

Os vínculos que garantiam o destaque profissional, político e até mesmo empresarial, como já observamos, estiveram ligados primordialmente a esses setores. Claramente, e portanto, tinha atenção prioritária no atendimento para as políticas públicas, aquelas en-caminhadas pelas agências no aparato governamental, com inscrições das frações agrárias exportadoras. Estava aí também o lócus profissional e político na sociedade política dos engenheiros civis, não apenas profissional, mas também como intelectual com organicidade para construir consensos da sociedade civil.

28 Apud MARINHO, Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro. Ampliando o estado imperial: os engenheiros e a organização da cultura no Brasil oitocentista, 1874-1888, op. cit.

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Dessa forma, há um expressivo contingente de leis que tratam das grandes obras públicas, tais como estradas de ferro, abastecimento de água, construção de habitações populares e arrasamento de morros, todas as obras que se potencializavam com o crescimento populacio-nal da Corte e demais províncias, e em que os engenheiros inseriam-se progressivamente.29

Os demais decretos e leis guardaram também alguma relação com aqueles ligados dire-tamente aos interesses das frações agroexportadores. As linhas telegráficas, que, ao longo da segunda metade do século XIX, tenderam a acompanhar a construção das estradas de ferro, já haviam logrado a comunicação com a Europa e os Estados Unidos através de cabos sub-marinos, assim como já haviam coberto, até a década de 1886, cerca de 10 mil quilômetros de linhas estabelecendo ligações com 182 estações. Entretanto, a deficiência da cobertura telegráfica no território brasileiro deixaria inacessíveis as províncias de Mato Grosso, Goiás e Amazonas, todas sem comunicação direta com o restante do país.30

Além das regulamentações mencionadas, é perceptível, para as décadas em questão, um contingente ainda pequeno de decretos e leis distribuídos entre os ramos de construção civil de habitações populares (5); legislação regulamentando as Escolas de Engenharia (5); sobre a regulamentação dos registros de parente e de propriedade industrial (4), bem como o processo de regulamentação da transformação da iluminação pública a gás para o início da constituição de hidrelétricas e instalação do fornecimento de energia elétrica (4). E ainda há aqueles ramos que tiveram referências esporádicas, tais como a regulamentação profissional dos engenheiros, a constituição de um vocabulário de normas técnicas, a providência de obras contra as secas no Nordeste e o atendimento às demandas de obras nos açudes e engenhos.

Ressaltamos também que, embora tenham sido os anos de 1880 a 1890 o auge das construções ferroviárias, os engenheiros não estavam restritos à “engenharia ferroviária”. Na realidade, como sublinhado em outros momentos de nosso trabalho, o processo se iniciara rumo a uma ampliação dos espaços profissionais, empresariais e políticos, tanto na sociedade civil quanto na sociedade política. Exemplo dessa conjectura é o início de um conjunto de legislações que apontava para o eixo urbano como campo de trabalho especializado e de-mais serviços que se instalariam ao longo da república, tais como os decretos que iniciam as concessões de serviços de telefonia. A respeito deles, destacamos que Charles Paul Mackie, estadunidense integrante do Grupo Dirigente do Clube de Engenharia, e empresário com fortes ligações políticas, foi concessionário dos serviços de telefonia, benefício garantido após a sua aproximação da agremiação.

Consta de extensa literatura especializada que investiga o fim do império e a transfor-mação das estradas de ferro na principal indústria brasileira31 do período, cuja característica

29 MARINHO, Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro. Engenharia imperial: o Instituto Politécnico Brasilei-ro (1862-1880), op. cit.30 MACIEL, Laura Antunes. Cultura e tecnologia: a constituição do serviço telegráfico no Brasil. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 21, n. 41, p. 133.31 BRITO, José do Nascimento. Meio século de estrada de ferro. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1961;

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fundamental era a manutenção da monocultura de exportação do café. Todavia, ao mesmo tempo que seu traçado foi planejado a fim de garantir a produção e exportação do café, as ferrovias, em vários momentos distintos, também se destinaram a outros propósitos, tais como ao transporte de passageiros, de gêneros agrícolas e mercadorias diversas (algodão, açúcar, milho, sal etc.), de produtos importados (como o combustível para os próprios em-preendimentos ferroviários), além de artigos para as famílias dos fazendeiros. Os mineiros de fora da Zona da Mata, por exemplo, conforme afirma Blasenheim, precisavam vender seus produtos de granja, fazendas e minas,32 assim como a mão de obra escrava fluminense, de acordo com Andrea Rabello, devia ser alimentada, sendo que parte dos produtos necessários, como farinha, feijão e toucinho, chegava através das estradas de ferro.33 Concomitante ao fato de que as linhas concentravam essas funções, elas conseguiam aproximar habitantes de diferentes regiões e províncias, possibilitando a ligação e o estabelecimento de alianças entre grupos sociais e regionais distintos. Portanto, é preciso nos deter ao fato de que o advento ferroviário, iniciado na década de 1850, tinha em seu bojo aspectos que envolviam uma gama de interesses conexos e também diversos. Dentre os grupos e agentes implicados nesta indústria, encontravam-se os capitalistas estrangeiros (norte-americanos, franceses e, especialmente, ingleses), investidores e sócios das linhas (incluindo alguns fazendeiros), os proprietários nacionais das estradas de ferro, os grupos regionais proprietários das lavouras de café que disputavam espaço dentro do próprio complexo agroexportador, os proprietários das demais lavouras de menor importância para o comércio de exportação, além dos profis-sionais da engenharia que, em muitos casos, tornaram-se diretores das vias, concessionários dos ramais e implicados com a própria comercialização do café.

CARVALHO, Maria Alice Rezende de. O quinto século: André Rebouças e a construção do Brasil. Rio de Janeiro: Revan/IUPERJ-UCAM, 1998; DAVID, Eduardo Gonçalves. 127 anos de ferrovia. Rio de Janeiro: AENFER, 1985; DAVID, Eduardo Gonçalves. Estrada de Ferro Central do Brasil — a ferrovia e sua história. Rio de Janeiro: AENFER/AMUTREM, 1998; KANTINSKY, Júlio Roberto. Ferrovias nacionais. In: MOTOYAMA, Shozo (Org.). Tecnologia e industrialização no Brasil: uma perspectiva histórica. São Paulo: UNESP/CEETEPS, 1994; SAES, Flavio A. Marques de. As ferrovias de São Paulo, 1870-1940. São Paulo: Hucitec, 1981; SAES, Flavio A. Marques de. A grande empresa de serviços públicos na economia cafeeira, 1850-1930. São Paulo: Hucitec, 1986; AZEVEDO, Fernando de. Um trem corre para o oeste: estudo sobre a Noroeste e seu papel no sistema de viação nacional. Obras Completas v. XII, 2. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1950; DEAN, Warren. A industrialização de São Paulo (1880-1945). São Paulo: Difel/Edusp, 1971; GRAHAM, Richard. Grã-Bretanha e o início da modernização no Brasil (1850-1914). São Paulo: Brasiliense, 1973; LAMOUNIER, Maria Lúcia. Ferrovias, agricultura de exportação e mão de obra no Brasil no século XIX. História econômica & História de empresas, v. III, n. 1, 2000, p. 43-76; TELLES, Pedro Carlos da Silva. História da Engenharia no Brasil — séculos XVI a XIX, v. 1, 2. ed. Rio de Janeiro: Clavero, 1994; VARGAS, Milton (Org.). História da técnica e da tecnologia no Brasil. São Paulo: Unesp, 1994; SUMMERHILL, William. Order Against Progress: Government, Foreign Investment, and Railroads in Brazil, 1854-1913. Califórnia: Stanford University Press, 2003.32 BLASENHEIM, Peter L. As ferrovias de Minas Gerais no século XIX. In Locus: revista de história, Juiz de Fora, NHR/ EDUFJF, 1996, v. 2, n. 2, 1996, p. 81-110.33 RABELLO, Andrea Fernandes Considera Campagnac. Os caminhos de ferro da província do Rio de Janeiro. Ferrovias e café na 2a metade do século XIX, op. cit.

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Sendo assim, consideramos possível afirmar que, uma vez diagnosticada a relação entre engenheiros e as companhias de estradas de ferro com a fração hegemônica do complexo agroexportador cafeeiro, os agentes investigados — intelectuais orgânicos organizados na sociedade civil — estavam, num primeiro momento, estreitamente vinculados a tais frações hegemônicas. Contudo, este “técnico modernizador” vivia um contexto histórico marcado por profundas e rápidas modificações em níveis socioeconômico, político e cultural. Ora, as agitações e contendas que incidiam sobre a sociedade como um todo, alicerçadas pela desagregação do império, atingiam em cheio os agentes em análise. No entanto, isso não sig-nifica que todos os engenheiros em questão levantassem bandeiras abolicionistas ou indus-trialistas. A complexidade que marca a transformação do regime — característica da década de 1880 — é também substância da complexidade da própria análise das questões que eles defendiam. Tal aspecto apresenta-se como chave interpretativa importante para a compre-ensão, na análise realizada adiante, de quais interesses estavam implicados nos debates, além daqueles diretamente relacionados com a manutenção de sua posição e status profissional.

As Escolas de Engenharia, o Instituto Politécnico Brasileiro e, mais tarde, o Clube de Engenharia desempenhariam um papel de destaque, posto que emergiam como agências estratégicas da sociedade civil ao longo da segunda metade do século XIX, formadas por agentes detentores de prestígio, ascensão social e profissional. Dessa feita, o grupo de inte-lectuais orgânicos em questão constituía-se, aos poucos, como organizador da cultura, aqui entendida como solda da ação política e concepção do mundo. Ao mesmo tempo, com a conformação de seus interesses na sociedade civil e a sua representatividade junto aos apare-lhos privados de hegemonia e a pressão por sua inscrição frente a determinados organismos da sociedade política ligadas às obras públicas, os elementos que integravam esse grupo ten-deram a constituir um peso significativo nas relações de força vigentes.

Uma vez que os dados primários levantados por pesquisa anterior34 revelam uma forte implicação dos engenheiros — em especial aqueles agremiados no Clube de Engenharia — com o incremento das estradas de ferro, buscaremos apresentar, em linhas gerais, como se configurou o processo de implantação das ferrovias no país. Contudo, é importante res-saltarmos que autores anteriormente realizadores de investigações exaustivas sobre o tema identificaram grande dificuldade em desvendar suas trajetórias: em primeiro lugar por de-ficiência de dados. Em segundo, pelo intrincado processo de concessões, encampações e privatizações, construções de linhas e de uma quase infinda multiplicidade de ramais, com investimentos de agentes diversos, detentores de capital privado nacional ou estrangeiro, e cujo controle dos governos provinciais e federal não obstacularizava a construção de linhas “cata café” de fazendeiros particulares. Enfim, um mapeamento histórico das estradas de ferro tornar-se-ia um trabalho à parte que excederia os objetivos deste.

34 MARINHO, Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro. Ampliando o estado imperial: os engenheiros e a orga-nização da cultura no Brasil oitocentista, 1874-1888, op. cit.

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Por conseguinte, nossa intenção não é apresentar a história das estradas de ferro ou da Estrada de Ferro D. Pedro II, mas apenas alguns aspectos capazes de desvendar, posterior-mente, as relações estabelecidas entre os agentes do Clube de Engenharia, em sua primeira década de existência, e a indústria de ferrovias propriamente dita.

A partir do que aqui foi exposto, é fato que o campo de ação para engenheiros aumentou ao longo do século XIX. Em síntese, a engenharia, desde o final do século XVIII, particu-larmente em meados do século XIX, esteve presente nas grandes obras públicas e, especial-mente, na construção de ferrovias.

Tomando como ponto de partida as primeiras estradas de ferro nacionais, construídas na segunda metade do século XIX, desenhou-se uma forte interação entre os interesses dos investidores e a iniciativa governamental. Tal processo constituiu-se através da concessão das áreas para as empresas, o estabelecimento de regras para a desapropriação dos terrenos marginais às linhas, a fixação de taxas de juros, a isenção de impostos, inclusive no caso da eletrificação. Essa relação social tornou-se tão importante quanto os conhecimentos técnicos dos engenheiros envolvidos.35

As obras eram executadas pela aquisição de capital através de empréstimos ao mercado exterior garantidos pelo governo imperial. Nesse contexto, vale lembrar que as empresas que sofriam algum tipo de crise econômica eram encampadas pelo governo e que, de diferentes formas, o empreendimento ferroviário recebia investimentos do orçamento governamental.

Na época, as ferrovias eram consideradas verdadeiros símbolos de “progresso”, já que encurtavam distâncias e transportavam as mercadorias destinadas a suprir o mercado exter-no, possibilitando a chegada de certos bens a lugares antes quase inatingíveis. Hobsbawm assinala que

a estrada de ferro, arrastando sua enorme serpente emplumada de fumaça, à velocidade do vento, através de países e continentes, com suas obras de engenharia, estações e pontes formando um conjunto de construções que fazia as pirâmides do Egito e os aquedutos romanos e até mesmo a Grande Muralha da China empalidecerem de provincianismo, era o próprio símbolo do triunfo do homem.36

Pelo menos desde a primeira metade do século XIX, os dirigentes imperiais já vinham tentando formular uma lei que incentivasse a implantação, no país, de vias férreas. Em 1835, Antonio Paulino Limpo de Abreu, ministro da Justiça e interino do Ministério do Império, em companhia do então regente do império, Diogo Antonio Feijó, assinou decreto que concedia “a uma ou mais Companhias, que fizerem uma estrada de ferro da Capital do Império para as de Minas Gerais, Rio Grande do Sul, e Bahia, o privilégio exclusivo por

35 Ibidem.36 HOBSBAWM, Eric. A era do capital. São Paulo: Paz e Terra, 1982, p. 61.

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espaço de 40 anos para o uso de carros para transporte de gêneros e passageiros”.37 A propos-ta oferecida, que totalizaria uma extensão de mais de 5.500 quilômetros, ligando o Rio de Janeiro a Minas Gerais, Rio Grande do Sul à Bahia, aponta para o fato de que a formulação dos dirigentes do império fosse uma resposta ao impacto do uso da tração a vapor que já vinha sendo utilizada em vias fluviais do império brasileiro, bem como às repercussões do impulso ferroviário na Inglaterra. Convertendo as “cinco léguas de estrada” de ferro, elas se constituiriam 33 quilômetros de construção anual. Para as possibilidades da época, tal meta demonstrava ser uma proposta irreal.

Em 1854, foi construída a primeira estrada de ferro brasileira, no Rio de Janeiro, por ini-ciativa do barão de Mauá, utilizando investimento e mão de obra inglesa. Nesse mesmo ano, constitui-se, a partir das pressões dos produtores de café, a Companhia de Estradas de Ferro D. Pedro II, que seria responsável pela construção das interligações entre Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, a partir da capital. Para Graham,

A despeito da falta de entusiasmo inicial, os ingleses contribuíram grandemente para sua construção. Assim que a companhia foi organizada, levantou um empréstimo na Inglaterra, de mais de 1,5 milhões de libras, com garantias dadas pelo governo brasileiro. O primeiro presidente da Companhia, Christiano Benedicto Ottoni — criticado pelos ingleses — teve que admitir que “sem esse empréstimo a ferrovia não teria cruzado a cordilheira”. Em 1871 e 1875, depois de a linha férrea se tornar efetivamente propriedade do governo, grandes empréstimos foram conseguidos em Londres para outras construções.38

Da construção do primeiro trecho da estrada até sua inauguração transcorreu-se um longo tempo dedicado à busca da melhor localização para transpor as serras, que são uma constante no cenário do estado do Rio de Janeiro. O melhor traçado indicava que se cons-truísse um túnel próximo à cidade de Rodeio, atual Paulo de Frontin (RJ), encurtando assim o caminho até o porto do Rio. Em 1858, teve início a construção dessa estrada de ferro, que consistiu numa das mais significativas obras da engenharia ferroviária do país, superando os 412 metros de altura da Serra do Mar, com a realização de monumentais aterros, cortes e perfurações de túneis, dentre eles o Túnel Grande (túnel 12), que possuía 2.245 metros de extensão e “261/8 palmos” de altura.

Na década de 1860, iniciava-se a formação da “malha ferroviária” paulista, com a for-mação em Londres da empresa The São Paulo Railway Company, construtora da estrada conhecida como “inglesa”, cujo trajeto ia desde o porto de Santos até São Paulo e posterior-mente até Jundiaí e Campinas, com 10% do capital subscrito por Mauá e seus sócios, e o

37 Decreto no 101 de 31 de outubro de 1835. FEIJÓ, Diogo Antonio. BRASIL. Coleção de Leis do Império do Brasil. 1835. 38 GRAHAM, Richard. A Grã-Bretanha e o início da modernização do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1973, p. 60-61.

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restante, por capitalistas ingleses. O privilégio de zona que lhes fora concedido garantiu-lhes todo o escoamento de produtos agrícolas e minerais no trajeto entre São Paulo e Santos, tornando a exploração dessa ferrovia uma verdadeira mina de ouro.39

Desta maneira, num primeiro momento, as estradas de ferro foram construídas com a participação de engenheiros estrangeiros. Conforme a demanda em relação ao trabalho dos profissionais aumentava, criaram-se escolas para atender a essa nova categoria de pro-fissionais que, aos poucos, constituía-se no Brasil. Dessa forma, em 1874, na primeira orga-nização curricular da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, instituiu-se a cadeira “Estradas Ordinárias, Estradas de Ferro, Pontes e Viadutos”, procurando suprir as necessidades de conhecimento técnico sobre esses assuntos.40 Na década de 1880, organizaram-se novas dis-ciplinas de engenharia com a perspectiva de atender a um número crescente de engenheiros que atuavam nos projetos ferroviários e aprofundando a institucionalização.

Assim, em 29 de março de 1858, foi inaugurada a mais importante estrada de ferro para o império e, correlatamente, para a nascente engenharia civil. A Estrada de Ferro D. Pedro II que, de todos os empreendimentos ferroviários, é o que concentrou o maior número de dirigentes do Clube de Engenharia, iniciou suas atividades com trecho inicial de 47,21 km, da Estação da Corte a Queimados, no Rio de Janeiro. Surgiu com investimentos de capitais privados, no mesmo tempo e lugar da produção do café, garantindo, assim, grande redução nos custos dos transportes e dividendos para seus acionistas. Mediante cálculos feitos por Taunay, Sérgio Silva observou que a economia produzida foi cerca de 10% do preço do café na região fluminense durante o período compreendido entre 1860 e 1868, uma vez que o custo do transporte por tropas de mulas era seis vezes maior que o ferroviário.41

DIRETORES DA ESTRADA DE FERRO D. PEDRO II (1858-1889)

29/03/1858 a 13/12/1865 — Christiano Benedicto Ottoni 14/12/1865 a 13/01/1869 — Bento José Ribeiro Sobragy 14/01/1869 a 14/02/1872 — Mariano Procópio Ferreira Lage 15/02/1872 a 11/04/1873 — Elisário Antonio dos Santos (barão de Angra) 16/04/1873 a 12/06/1876 — Bento José Ribeiro Sobragy 31/08/1876 a 22/06/1880 — Francisco Pereira Passos

39 SEGNINI, Liliana R. Petrilli. Ferrovias e ferroviários: uma contribuição para a análise do poder disciplinar na empresa. São Paulo: Autores Associados/Cortez, 1982. p. 24.40 Em 1860 já apareciam referências curriculares relativas ao ensino sobre as ferrovias, embora menos siste-máticas (Cf. TELES, Pedro Silva. História da engenharia no Brasil — séculos XVI a XIX, v. 1, 2. ed. Rio de Janeiro: Clavero, 1994, v. 1, p. 471).41 SILVA, Sérgio. Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil. 7. ed., São Paulo: Alfa Omega, 1986. p. 51.

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06/09/1880 a 26/01/1884 — Herculano Veloso Ferreira Pena 20/02/1884 a 29/07/1884 — Miguel Noel Nascente Burnier 19/11/1884 a 30/11/1889 — José Ewbanck da Câmara

Fonte: DAVID, Eduardo Gonçalves. A ferrovia e sua história. Estrada de Ferro Central do Brasil. Rio de Janeiro: AEF/AAMT, 1998, p. 137. 42

Embora a produção de café da Província do Rio de Janeiro tenha saltado de um mi-lhão de sacas em 1835 para um milhão e meio em 1840, atingindo seu apogeu em 1882, com cerca de dois milhões e seiscentas mil sacas, e apesar da garantia de juros e outros incentivos garantidos por lei, essa estrada de ferro não conseguiu acompanhar a signifi-cativa expansão da produção cafeeira. Onze anos foi o tempo de duração em operação sob regime de sociedade anônima e, assim, em 1865, a D. Pedro II foi encampada pelo governo imperial. Na época com pouco mais de cem quilômetros, essa ferrovia continuou a ser utilizada pelos fazendeiros como um poderoso instrumento de redução de custos. Assim, expandiu cerca de cem quilômetros para aproximadamente três mil e quinhentos quilômetros chegando à província de São Paulo (no Brás em 1875), Minas Gerais (em Juiz de Fora, no ano de 1875 e, em Belo Horizonte, em 1895), ampliando suas linhas dentro da província do Rio de Janeiro.43

Essa ferrovia teve a sua concessão e privilégio de exploração autorizados pelo decreto número 4.914 de 1872.

O beneficiário da concessão foi o engenheiro Antonio Paulo de Melo Barreto e foi então montada a empresa sob a denominação Estrada de Ferro Leopoldina, com garantia de juros e subvenções avalizadas pelo governo brasileiro, bem como de empréstimos feitos em Londres, iniciando a exploração em 1872 e a construção em 1873. Em 1878, para conseguir a completa construção das linhas da Estrada de Ferro Leopoldina, Melo Barreto contraiu o empréstimo, baseado em debêntures (os primeiros a serem lançados na Praça).44

A Estrada de Ferro Leopoldina foi a primeira ferrovia construída na província de Minas Gerais, em 1872, por concessão do governo imperial e iniciativa dos fazendeiros da Zona da

42 Apud MARINHO, Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro. Ampliando o estado imperial: os engenheiros e a organização da cultura no Brasil oitocentista, 1874-1888, op. cit.43 Guia geral das estradas de ferro e empresas de transportes com elas articuladas. Rio de Janeiro: Contadoria Geral dos Transportes, 1960.44 PAULA, Dilma Andrade de. Fim de linha. A extinção de ramais da Estrada de Ferro Leopoldina, 1955-1974. Tese (doutorado em História) — Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2000, p. 86.

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Mata. Do período que vai de 1876 a 1890, a companhia recebeu autorização para construir e encampar uma série de ramais, dentre os quais Estrada de Ferro Norte de Minas, Estrada de Ferro Mauá e Estrada de Ferro Príncipe do Grão Pará. Todavia, em 1891, ela passará a ser administrada pela Companhia Geral de Estradas de Ferro, empresa fundada com objetivo de comprar, vender e custear estradas de ferro próprias e de terceiros. Esta, por sua vez, passa a ser administrada por ingleses em 1897. Um ano depois, é fundada a The Rio de Janeiro Northern Railway Company (Leopoldina Railway), responsável por todas as estradas de ferro e ramais da antiga Estrada de Ferro Leopoldina. Em meados do século XX, ela é en-campada pelo governo federal.

De acordo com os dados primários levantados para as duas últimas décadas do período imperial,45 a maioria do grupo dirigente do Clube de Engenharia esteve à frente de Com-panhias de Estadas de Ferro, fossem elas de propriedade privada nacional ou estrangeira, ou administradas por intermédio de agências governamentais. Em geral, eles ocupavam os cargos de engenheiro civil, engenheiro chefe, engenheiro fiscal, chefe de serviço telegráfi-co, diretor, diretor técnico, presidente, engenheiro condutor, chefe de linhas, chefe de tra-ção e consultor, para citar alguns exemplos. Alguns poucos aparecem, na documentação analisada sobre o Clube de Engenharia, como fundadores e proprietários. Há também um número mais significativo de agentes cujos registros nos documentos indicam terem sido membros de comissões para o estudo da viabilidade das linhas e de ramais.

As duas companhias onde se é possível encontrar um maior número de dirigentes da agremiação ocupando postos de trabalho e direção são, em primeiro lugar, a Estrada de Ferro Dom Pedro II, com vinte agentes e, em segundo, a Estrada de Ferro Leopoldina, com seis. Por esse motivo, acreditamos ser relevante estabelecer algumas análises sobre os agentes que estiveram vinculados, de alguma maneira, a essas duas ferrovias, no caso do presente artigo, particularmente a EFDPII.

Estrada de Ferro D. Pedro II

Participaram do planejamento, da construção e da direção da EFDPII vários membros do Clube de Engenharia. Dentre aqueles que compuseram o quadro de dirigentes da agre-miação, e que ocuparam o cargo de Diretor da EFDPII, estavam:

45 MARINHO, Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro. Ampliando o estado imperial: os engenheiros e a orga-nização da cultura no Brasil oitocentista, 1874-1888, op. cit.

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Tabela 4Diretores da EFDPII (1876-1889)

1876 a 1880 Francisco Pereira Passos1880 a 1884 Herculano Veloso Ferreira Pena1884 a 1889 José Ewbanck da Câmara

Fonte: DAVID, Eduardo Gonçalves. A ferrovia e sua história. Estrada de Ferro Central do Brasil. Rio de Janeiro: AENFER, 1998.46

Após o golpe republicano, outros membros do Clube ascenderam à direção dessa ferro-via, que passou a ser chamada Estrada de Ferro Central do Brasil. De 1889 até a década de 20 do século XX, exerceram o cargo de “diretores” (ainda que, segundo Eduardo Gonçalves David,47 não tenha sido sempre essa denominação) João Chrockatt de Sá Pereira de Castro (1891), Jerônimo Rodrigues de Morais Jardim (de 1894 a 1896), André Gustavo Paulo de Frontin (de 1896 a 1897 e de 1910 a 1914), Francisco Pereira Passos (de 1897 a 1899), Gus-tavo Adolfo da Silveira (de 1900 a 1901), Gabriel Emiliano Osório de Almeida (de 1903 a 1906) e Aarão Leal de Carvalho Reis (de 1906 a 1910).

Portanto, os membros do Clube prevaleciam como diretores na última década do século XIX e início do XX. Possivelmente, sua perpetuação após a mudança do regime político — e, portanto, fração dirigente — indica que tais agentes conseguiram manter prestígio junto à correlação de forças que construiu a república, pelo menos em relação àqueles di-retamente envolvidos na administração de vias férreas. Uma das possibilidades aventadas é terem conseguido consolidar agências no Ministério de Obras Públicas e por sua condição indispensável técnico-científica constituírem-se com profissionais imprescindíveis.48 Claro está também que alguns desses engenheiros já antecipavam a sua discordância para com a direção do bloco no poder do império. Para Aarão Reis, por exemplo, a continuidade na sociedade política deve ter sido mais confortável do que para outros agentes.

Além dos citados, esteve ligado à EFDPII Antonio Maria de Oliveira Bulhões, ocupando o cargo de engenheiro chefe na década de 1850 e início da década 1860. João Chrockatt de Sá Pereira de Castro, mencionado anteriormente como um dos diretores do período repu-blicano, também foi engenheiro fiscal da empresa em 1880. Desse modo, é possível concluir que o primeiro vinculou-se à empresa antes e o segundo, depois de sua encampação pelos di-rigentes do governo imperial, ocorrida em 1865, conforme sublinhado anteriormente. Além do vínculo comum a essa empresa, ambos os agentes estiveram também imbricados, em

46 Apud Ibidem.47 DAVID, Eduardo Gonçalves. A ferrovia e sua história. Estrada de Ferro Central do Brasil, op. cit.48 MARINHO, Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro. Ampliando o estado imperial: os engenheiros e a orga-nização da cultura no Brasil oitocentista, 1874-1888, op. cit. MARINHO, Pedro. Porta-vozes em uma era de incertezas: o Clube de Engenharia e a concepção de uma Inspetoria Geral das Estradas de Ferro, op. cit.

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momentos distintos, à sociedade política, sendo que cada um representou o que podemos deduzir como duas “gerações” do quadro dirigente do Clube de Engenharia. O primeiro esteve ligado à formulação da Inspetoria de Obras Públicas ainda durante o império; o se-gundo, à mesma agência, mas já no período da república.49 Malgrado as distintas gerações, ambos tinham em comum em seu currículo o fato de terem ocupado um após o outro a pre-sidência do Clube de Engenharia e, em um mesmo momento, terem pertencido ao Conselho Diretor (1899-1900). Essa questão, que se repetirá em relação a outros agentes, pode indicar a existência de um nexo contínuo entre a agremiação que buscamos investigar e ao Estado em sentido restrito, ou seja, uma ligação intrínseca entre os agentes do Clube de Engenharia organizados na sociedade civil e o seu correlato aparelhamento na sociedade política.50

Dentre os ramais ligados à EFDPII, incluímos a Linha Auxiliar até o Vale do Paraíba no Rio de Janeiro, que correspondia à antiga Companhia Melhoramentos do Brasil, servindo à região de plantação agrícola e cafeicultora. Essa ferrovia foi incorporada pela E. F. Central do Brasil (antiga EFDPII) em 1903. De acordo com os dados levantados, Francisco de Pau-la Bicalho, Carlos Conrado de Niemeyer e André Gustavo Paulo de Frontin se dedicaram juntos à Comissão de Estudos do Macop — Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas — para a viabilização da obra em 1883.

Niemeyer e Frontin eram naturais do Rio de Janeiro, enquanto Francisco de Paula Bi-calho era mineiro. Os três ingressaram no Clube de Engenharia nos primeiros anos de sua existência (entre 1880 e 1882; portanto, já estavam associados à agremiação quando foi orga-nizada a comissão mencionada, embora só Niemeyer ocupasse cargo na diretoria, à época). Todos também foram membros do Conselho Diretor em períodos diversos e se encontraram neste mesmo Conselho no início do século XX.

Frontin, que passou a ocupar cargos na diretoria do Clube em 1886, reservou a década de 1880 para as suas funções de dirigente da agremiação, outras relacionadas com as ativida-des para a EFDPII e o desempenho de atividades acadêmicas. Niemeyer e Bicalho, por sua vez, no período em que trabalharam para a mesma companhia, estavam inseridos em outras empresas e agências, exercendo funções diversas.

Antes de aderir ao projeto da Linha Auxiliar, Francisco Bicalho, que já acumulara vasta experiência em atividades ligadas às estradas de ferro exercidas na década de 1870, desempe-nhou na entrada dos anos 1880 a função de 1o engenheiro da Empresa de Obras Públicas do Abastecimento d’água do Rio de Janeiro (1878-1880) e, em meados da década, foi diretor da Estrada de Ferro Rio D’Ouro (1885). Ainda que tenha sido admitido em 1881 como membro do Clube, só passou a ocupar cargos na diretoria em 1888, como membro do Con-

49 MARINHO, Pedro. Porta-vozes em uma era de incertezas: o Clube de Engenharia e a concepção de uma Ins-petoria Geral das Estradas de Ferro, op. cit. p. 170-183.50 MARINHO, Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro. Ampliando o estado imperial: os engenheiros e a orga-nização da cultura no Brasil oitocentista, 1874-1888, op. cit.

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selho Diretor, portanto, quando já havia estabelecido uma carreira sólida nas atividades de engenharia voltadas para estradas de ferro e obras públicas.

Carlos Conrado de Niemeyer, por sua vez, já havia trabalhado junto a outras atividades na própria EFDPII em décadas anteriores. No decorrer do período em que esteve ligado às atividades diretamente relacionadas com a Comissão de Estudos do Macop para viabilizar a obra da ferrovia, dedicou-se a duas outras funções. Integrou o Conselho Diretor do Clube de Engenharia (no período que vai de 1881 a 1904, à exceção de alguns poucos mandatos), foi secretário da Seção de Comércio e Meios de Transporte (Sain — Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional) em 1885 e desempenhou a função de engenheiro chefe da Locomoção de EFDPII/Macop de 1876 a 1890. Os três agentes, nesse período, formavam uma tríade importante: o primeiro era recém-formado e vinculado a obras públicas de estradas de ferro e a atividades acadêmicas; o segundo, dedicado a agências das sociedades política e civil também ligadas a obras públicas e ferrovias; e o terceiro, fundador do Clube de Engenharia, inscrito na sociedade política e representante de uma agência ligada ao nascente grupo de industriais. Contudo, o que mais chama a atenção é a inscrição de cada um deles na socie-dade política nas décadas que se seguiram à república, especialmente no caso de Francisco Bicalho e Paulo de Frontin. Bicalho, por exemplo, atuou como:

1893-1895 — chefe da construção da Alfândega de Juiz de Fora (MG), indicado pelo governo mineiro.

1895-1898 — chefe da Comissão construtora da cidade Belo Horizonte (MG). 1901 — Designado pelo governo federal para transferir a ferrovia para a Companhia

Western (Estrada de ferro Recife a São Francisco). 1901 — inspetor geral das Obras Públicas da Capital Federal. 1903 — diretor geral da Comissão Construtora da Avenida Central, nomeado pelo mi-

nistro Lauro Müller (juntamente com Paulo de Frontin e Gabriel Osório de Almeida).1903-1907 — diretor técnico da Comissão Fiscal e Administrativa das Obras (Mvop-

Ministério da Viação e Obras Públicas) para o Porto do Rio de Janeiro (presidida por Lauro Müller e integrada por Paulo de Frontin, Gabriel Osório de Almeida, José Freire Parreiras Horta, Domingos Sérgio de Sabóia e Silva e Manuel Maria de Carvalho).

1906 — engenheiro civil da Comissão para estudo dos diques da ilha das Cobras do Rio de Janeiro.

E Frontin foi, durante toda a chamada Primeira República:

1896-1897 — diretor da EFCB. 1903 — diretor geral da Comissão Construtora da Avenida Central, nomeado pelo mi-

nistro Lauro Müller, juntamente com Francisco Bicalho e Gabriel Osório de Almeida.

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1903-1907 — diretor técnico da Comissão Fiscal e Administrativa das Obras do Porto do RJ — Mvop (presidida por Lauro Müller e integrada por Francisco Bicalho, Gabriel Osó-rio de Almeida, José Freire Parreiras Horta, Domingos Sérgio de Sabóia e Silva e Manuel Maria de Carvalho).

1907-1908 — engenheiro chefe e organizador da Repartição de Fiscalização das Estra-das de Ferro Federais.

1910-1914 — diretor da EFCB. 1912 — membro do Conselho Superior de Ensino. 1913-1914 — engenheiro-chefe da EFCB — Duplicação do trecho da Serra do Mar. 1915-1930 — diretor da EFCB. 1917 — senador eleito Distrito Federal. 1918 — senador eleito Distrito Federal.1919 — deputado do Distrito Federal. 1919 — prefeito nomeado do Distrito Federal (pelo decreto de 22/01/1919).

Niemeyer, por sua vez e já na primeira década da república, seria:

1907 — engenheiro chefe de Seção de Estatística da Repartição Federal de Fiscalização das Estradas de Ferro.

Aarão Leal de Carvalho Reis, natural da província do Pará, e o recém-formado Amarílio Olinda de Vasconcellos, de Alagoas, foram chefes do Serviço Telegráfico da ferrovia E. F. D. Pedro II no mesmo período, entre 1881 e 1885. Da mesma forma, exerceram, na mesma década, funções na sociedade política. Vasconcellos foi engenheiro chefe de Diretoria de Obras Públicas — Macop, em 1886. Reis foi diretor de Obras Civis no Ministério da Mari-nha (entre 1887 e 1889) e diretor geral do Mivop (Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas), no período compreendido entre 1889 e 1890. Na década de 1880, Reis foi ainda membro do Conselho Diretor do Clube, 3o secretário do 1o Congresso de Estradas de Estra-das de Ferro de 1882 e sócio da Associação de Auxílios Mútuos dos Empregados da EFDPII. Vasconcellos ingressou, em 1885, na diretoria do Clube, ocupando uma vaga do Conselho Diretor, ficando o mandato de 1885 a 1886, mesmo período em que era do Macop. Todavia, desses dois agentes do grupo dirigente do Clube, observamos que apenas Aarão Reis teve ascendência expressiva na sociedade política após a república, mostrando-se um agente estra-tégico nos quadros da agremiação. Segundo as fontes consultadas, Aarão Reis atuou como:

1889-1890 — diretor geral do Mivop. 1890 — conselheiro do Mivop. 1891-1893 — engenheiro chefe da E. F. Elétrica da Tijuca (RJ).

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1892 — E. F. Melhoramentos no Brasil/Linha Auxiliar da Central do Brasil (Proj. Const.).

1892-1893 — chefe da Comissão de Estudos das localidades indicadas para a nova capi-tal de Minas Gerais, Belo Horizonte, a convite de Afonso Pena.

1894-1895 — organizador e diretor geral dos Trabalhos da Construção da cidade Belo Horizonte.

1895 — diretor geral dos Correios da República. 1896-1897 — diretor da EFCB. 1906-1910 — diretor da EFCB. 1911 — suplente de deputado Federal do Estado do Pará. 1913-1918 — inspetor geral, Ifocs-Mvop 1918 — consultor técnico — Tavares de Lira, Mvop. 1927-1929 — deputado federal do estado do Pará.

Antonio Augusto Fernandes Pinheiro, fluminense, foi, em 1873 e 1876, 1o engenheiro civil do Prolongamento Alagoinhas a Juazeiro (BA) da EFDPII. Podemos afirmar que esse agente, semelhante a Carlos Conrado de Niemeyer, dentre outros, foi um dos representantes industriais que compunham o quadro de dirigentes do Clube de Engenharia. Sócio efetivo IPB e do Clube, era também sócio honorário da Associação Industrial e presidente da Seção de Indústria Fabril (Sain) de 1880 a 1885 e membro da Comissão Exposição da Indústria Nacional de 1881 a 1882. Além disso, foi também idealizador e presidente do 1o Congresso de Estradas de Ferro, em 1882. Sua inserção nas agências ligadas aos industriais se deu con-comitante ao seu ingresso no Clube e posterior à sua passagem pelas obras de ferrovias, onde desempenhava a função de engenheiro.

O gaúcho José Ewbank da Camara foi, em 1881, engenheiro chefe das Construções da Companhia em questão e seu diretor entre 1884-1889, como referido anteriormente. Mem-bro do IPB até 1889, fundador e vice-presidente do Clube no período compreendido entre 1887 e 1888, foi engenheiro consultor do Macop e, na década de 1880, juntamente com Niemeyer e Fernandes Pinheiro, fazia parte da Sain (era presidente da Seção de Estatística Industrial de 1885). Antes de suas funções na EFDPII, havia trabalhado em outras obras ligadas a vias férreas.

Antonio Maria de Oliveira Bulhões foi um nome de destaque no Clube, tendo sido presi-dente em três mandatos e vice-presidente em um. O início de sua trajetória profissional data da década de 1850, quando fez os estudos preliminares para Linha Serra do Mar da EFDPII, em 1856. Entre as décadas de 1850 e 1870, participou de vários projetos como engenheiro civil dentro do Macop. Em 1882, participou do 1o Congresso de Estradas de Ferro como 1o vice- presidente e chefe da Comissão do Plano Geral da Viação. Em sua trajetória, encontra--se ainda a função de inspetor geral de Obras Públicas. Em 1887, compôs a comissão para

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estudo do relatório “Saneamento e prolongamento do Canal do Mangue do Rio de Janeiro do Clube de Engenharia”, juntamente com outros quatro dirigentes da agência em questão: Jorge Rademaker, Jerônimo de Moraes Jardim, Antonio Marques Baptista Leão e Frederico Liberalli.

Estes três últimos agentes apresentados (Antonio Augusto Fernandes Pinheiro, José Ew-bank da Camara e Antonio Maria de Oliveira Bulhões), ainda que reservem algumas par-ticularidades, tiveram trajetórias profissionais semelhantes, no que diz respeito às empresas e agências as quais se filiaram. Os três se dedicaram a atividades relacionadas com as obras públicas, sobretudo aquelas vinculadas às estradas de ferro e estiveram ligados ao Macop por meio de comissões, como engenheiros consultores ou inspetores de obras públicas. Parece importante destacar o fato de que Fernandes Pinheiro e Ewbank da Camara, que compu-nham uma mesma geração do Clube, estiveram, na mesma época, ligados à Sain em setores distintos: Indústria Fabril e Estatística Industrial, respectivamente.

De acordo com os registros dos documentos do Clube de Engenharia, Jerônimo Ro-drigues de Morais Jardim, goiano, foi diretor da Companhia EFDPII entre 1894 e 1896, período posterior à passagem de Bulhões pela empresa. Sócio efetivo do IPB e integrante do Conselho Diretor do Clube de Engenharia por oito mandatos (o primeiro em 1881 e o último terminado em 1893), foi suplente do Conselho Diretor e 1o vice-presidente entre 1893 e 1896. Além de ter pertencido dentro do Clube à Comissão para estudo do relatório de Saneamento e Prolongamento do Canal do Mangue, como dito anteriormente, juntou-se a Gabriel Osório de Almeida, em 1890, para elaboração do Plano de Viação realizado pelo Congresso de Estradas de Ferro em 1882. Foi 1o secretário deste 1o Congresso de Estradas de Ferro e recebeu várias comendas, dentre as quais, Ordem de Cristo e Ordem da Rosa. Na década de 1870, inscreveu-se em diversas agências da sociedade política. Inclusive, é possível afirmar que Morais Jardim foi um dos quadros de maior destaque da agência por sua ascen-dência na sociedade política.

Foi engenheiro civil da Inspetoria Geral das Obras Públicas da Corte do Macop (1870). Fez parte de Comissões do Macop (1875) e Comissões do Ministério da Guerra (1875), foi engenheiro civil da Comissão Plano de Melhoramentos do Rio de Janeiro, foi do Ministério do Império (1874-1876), engenheiro chefe de abastecimento d’água RJ (1875). Inspetor Ge-ral de Obras Públicas da Inspetoria Geral das Obras Públicas da Corte do Macop de 1874 a 1880. Além disso, ocupou cargos no Executivo e no Legislativo como deputado da província de Goiás (1879/1881/1884) e presidente da Província do Ceará (1889). Na última década do século, portanto, já na Primeira República, exerceu a função de chefe da Comissão para ela-boração do Plano de Viação (junto a Gabriel Osório de Almeida, em 1890) e foi ministro do Mivop (1898). O agente, portanto, atravessou o fim do império e início da república como agente da sociedade civil e sociedade política nos dois períodos, inclusive se mantendo no Ministério de Obras Públicas — Mivop — mesmo depois de instaurada a república.

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Jorge Rademaker Grunewald, fundador do Clube e membro do Conselho Diretor por três mandatos (1886-1887; 1887-1888; 1893-1896), esteve na Companhia EFDPII em três momentos distintos: como chefe de seção em 1869, participou do projeto do novo prédio da Estação do Campo, em 1870 e, por fim, foi engenheiro chefe de Tráfego em 1876. Ao con-trário dos nomes citados até o momento, não foram encontradas informações desse agente exercendo funções em outras companhias de estradas de ferro.

Conrado Jacob de Niemeyer, fundador benemérito do Clube de Engenharia, foi dese-nhista e fiel de armazém da EFDPII até 1863 (Macop). Foi tesoureiro do Clube durante todo o período em análise, estendendo-se até 1904, à exceção de um ano, em que integrou o Conselho Diretor. Niemeyer, que não era engenheiro de formação, costumava ocupar cargos administrativos e/ou financeiros nas empresas, tais como de diretor e tesoureiro da Empresa Industrial de Melhoramentos no Brasil, em 1893, diretor da Moinho Fluminense e membro do Conselho Fiscal da Companhia de Carris Jardim Botânico (ambos sem informações de datas). Na primeira década que se seguiu logo ao fim do império, o nome desse agente apa-rece como empresário. Em 1890, era proprietário e diretor da Empresa Comercial Soares & Niemeyer; em 1893, diretor e tesoureiro da Empresa Industrial de Melhoramentos no Brasil; e, em 1917, fundador/sócio da Companhia Brasileira Carbonífera de Araranguá, em Santa Catarina.

Firmo José de Mello foi engenheiro chefe da ferrovia em 1873. Teve uma passagem rápida pela diretoria do Clube — foi membro do Conselho Diretor em um só mandato, de 1882 a 1883, mesmo período em que foi 2o vice-presidente do 1o Congresso de Estradas de Ferro do Brasil, em 1882. Trabalhou em outras três companhias de estradas de ferro e, tempo depois, mais especificamente em 1886, integrou a Macop como engenheiro chefe da 2a Seção.

Francisco Pereira Passos, natural de Piraí, estado do Rio de Janeiro, foi diretor da Com-panhia EFDPII entre 1876 e 1880 e entre 1897-1899 (nesse período, já denominada Estrada de Ferro Central do Brasil). Antes dessa atividade, foi engenheiro civil da Comissão Plano de Melhoramentos Rio de Janeiro do Ministério do Império (1874-1876) e participou da Comissão de Elaboração do Vocabulário Técnico de Engenharia (1876). Sua trajetória na diretoria do Clube começou em 1881, como vice-presidente, cargo que ocupou até 1883. Logo depois, integrou o Conselho Diretor, onde foi membro por três mandatos não conse-cutivos. Além de ter se tornado empresário na República, foi diretor da EFCB entre 1897 e 1899, como informado anteriormente, e prefeito do Rio de Janeiro entre 1903-1906, mesmo período em que desempenhou a função de engenheiro chefe das obras da Avenida Central.

Gabriel Emiliano Osório de Almeida, antes de se associar ao Clube de Engenharia, em 1891, já havia trabalhado para a EFDPII (1888), para outras duas companhias de vias férreas (1888) e na Superintendência de Obras Públicas do Estado de São Paulo (1890). Seu ingresso no Clube ocorreu um ano após a sua participação, em 1890, em uma Comissão para elabo-

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ração de um Plano de Viação, constituída por Jerônimo de Moraes Jardim. No mesmo ano em que ingressou na agremiação, foi consultor técnico do Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas. Ao mesmo tempo que desempenhava atividades em agências do governo e em empresas de estradas de ferro, foi diretor, presidente e empreiteiro de empresas importantes, tais como a Companhia Docas de Santos e o Lloyd Brasileiro. É possível perceber que não foi exclusivamente a associação dos engenheiros que inscreveu esse agente na sociedade política. Contudo, com o advento da república, Osório de Almeida consolidou ainda mais a sua posição dentro de agências da sociedade política, através da ocupação de cargos diversos, tais como:

1903 — diretor geral dos Telégrafos.1903-1906 — diretor da EFCB. 1903-1907 — diretor técnico da Comissão Fiscal e Administrativa das Obras do Porto

do Rio de Janeiro — Ministério da Viação e Obras Públicas (presidida por Lauro Müller e integrada por Paulo de Frontin, Francisco Bicalho, José Freire Parreiras Horta, Domingos Sérgio de Sabóia e Silva e Manuel Maria de Carvalho).

1911-1913 — presidente do Conselho Municipal da Capital Federal. 1913 — árbitro do governo “nas questões que se necessitarem” da Companhia do Porto

do Rio de Janeiro. 1913-1916 — membro do Conselho Municipal do Rio de Janeiro.

João Teixeira Soares, mineiro, foi engenheiro residente designado para os estudos do Ramal Sapopemba a Santa Cruz entre 1876 e 1882 e foi engenheiro civil da mesma EFD-PII — Macop em 1872. Ex-sócio do IPB, fundador e sócio vitalício benemérito do Clube, membro do Conselho Diretor por seis mandatos distintos, sendo o primeiro em 1881 e o último terminado em 1902. Foi também presidente no mandato de 1899 e 1900. Trabalhou em várias companhias de vias férreas nas décadas de 1880 e 1890. Sua trajetória foi marca-damente empresarial. De 1882 a 1920, pelo menos, Soares foi presidente de quatro firmas distintas: Lloyd Nacional, Empresa Soares & Cia Ltda., Companhia Cantareira e Viação Fluminense e Estrada de Ferro Bauru a Itapura (EF Noroeste do Brasil). No mesmo período, foi proprietário da empresa Compagnie Chemins de Fer Sud Ouest Brésiliens. Nas décadas de 1870 e 1880, foi engenheiro de várias companhias de estradas de ferro, de capital privado ou via Macop, além da participação em comissões para realização de obras públicas, como a do canal de Macaé a Campos (com Francisco de Paula Bicalho). No período republicano, foi engenheiro chefe da Comissão de Estudos e Saneamento da Baixada Fluminense e membro da Comissão de Elaboração do Plano Regional de Viação de Minas Gerais.

E por último, além dos citados, tiveram vínculo com a EFDPII Eduardo Mendes Limo-eiro (1872), Herculano Velloso Ferreira Penna (de 1880 a 1884), João Raymundo Duarte (1879) e Miran Latif (de 1884 a 1889).

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Considerações finais

Entre as frações dominantes do Brasil oitocentista prevalecia a hegemonia de uma con-cepção do mundo dimensionada, em meio a outras matrizes, pelas várias mudanças que ocorriam no ocidente europeu. Ao mesmo tempo, no próprio contexto brasileiro elabora-vam-se novas formas concretas de inserção em um mundo capitalista. De um modo geral, conquanto não de forma homogênea, seus intelectuais buscavam vincular-se aos “valores científicos” predominantes e partilhavam a perspectiva de construir uma “imagem civi-lizada e moderna” do império brasileiro no exterior. Desta maneira, por intermédio da construção de uma referência profissional, os engenheiros brasileiros logravam vincular o seu lugar social dentro desse contexto dinâmico. Sua representação da ideia de “progresso” não era apenas um artifício retórico e superficial, mas uma real construção de identidade profissional alicerçada na concepção de que o Brasil devia a estes agentes a possibilidade de atingir a “civilização”. Norteando tais formulações, essas noções elaboravam-se por meio de duas faces interligadas: as transformações internas da sociedade europeia e a ex-pansão e dominação externas sobre os povos e territórios considerados “atrasados”, “exó-ticos” e “naturalizados”.

No Brasil imperial, grandes obras de construção civil exigiam, ao longo da segunda metade do século XIX, soluções técnicas para problemas complexos e inter-relacionados com a infraestrutura da nação. Para equacionar tais questões, os engenheiros civis brasi-leiros, representados por sua agremiação — o Clube de Engenharia — e representantes de uma área profissional recém-institucionalizada, recebiam uma formação acadêmica que os preparava a exercer atividades profissionais bem amplas. Ademais, apreendiam conheci-mentos específicos voltados para o domínio de quase todas as etapas de um mesmo ramo de produção, como no caso das estradas de ferro, junto às quais tais agentes se envolviam na elaboração, organização, construção e na própria fiscalização das obras. Dessa forma, o acesso ao campo de especialização na formulação de projetos e construção de grandes obras para a viabilização de vias férreas seria facilitado com o suporte da atualização dos conhecimentos necessários para a sua atuação profissional. O motivo primeiro de todo esse interesse na formação de agentes aptos à indústria ferroviária era, certamente, o aper-feiçoamento dos serviços de infraestrutura que começavam a ser privilegiados por amplos grupos sociais ligados ao poder decisório do aparelho governamental do país, com o pro-pósito de solucionar problemas que preocupavam as frações agroexportadoras dominan-tes, especialmente aqueles ligados à viabilização do escoamento da produção e à resolução sobre a questão da mão de obra.

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Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro Marinho

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A terra dos coronéis no Oeste do Brasil: A cattle frontier, violência e dominação

fundiária no Cerrado goiano

Sandro Dutra e Silva*Talliton Tulio Rocha Leonel de Moura**

Francisco Itami Campos***

RESUMOAs questões fundiárias do Oeste do Brasil foram marcadas pela dominação e violência na história da ocupação da fronteira. Diferente do texto clássico de F. J. Turner em que a dispo-nibilidade de terras livres na fronteira motivou, não apenas a ocupação do Oeste mas tam-bém foi elemento fundamental para a construção da identidade americana (individualismo e democracia), este artigo apresenta as características de isolamento, pobreza estrutural e violência, que marcaram a fronteira no Meio-Oeste brasileiro. Assim, baseados na Western History e no conceito clássico de fronteira, bem como nas apropriações desse conceito pela historiografia brasileira, propomos identificar, por meio da análise documental e em fontes secundárias o estudo da relação entre sociedade, história e natureza na fronteira goiana, com ênfase na cattle frontier e na dominação fundiária que marcou a região entre a segunda me-tade do século XIX e a primeira metade do século XX.Palavras-chave: fronteira Goiás; Oeste brasileiro; pecuária; história do Oeste; dominação fundiária.

ABSTRACT Land issues in Western Brazil were marked by domination and violence during the history of the frontier’s occupation. Unlike the classic text of F. J. Turner, where the availability of free

Artigo recebido em 21 de outubro de 2014 e aprovado para publicação em 21 de março de 2015.* Doutor em História Social pela Universidade de Brasília (UnB), professor titular do Centro Universitário de Anápolis (UniEVANGELICA) e professor titular da Universidade Estadual de Goiás (UEG). Goiânia, GO, Brasil. E-mail: [email protected].** Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais do Cerrado, pela Uni-versidade Estadual de Goiás (UEG). Anápolis, GO, Brasil. E-mail: [email protected].*** Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), professor titular (aposentado) na Uni-versidade Federal de Goiás (UFG) e professor no Centro Universitário de Anápolis (UniEVANGÉLICA). Goiânia, GO, Brasil. E-mail: [email protected].

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land in the frontier motivated not only the occupation of the West, but also represented a key element for the construction of the North-American identity (individualism and democracy), this paper presents the characteristics of isolation, structural poverty and violence that marked the Brazilian Midwest frontier. Thus, based on Western History and on the classical concept of frontier, as well as its appropriations by the Brazilian historiography, we propose to study, through documentary analysis and secondary sources, the relationship between society, history and nature in the Goiás frontier, with emphasis on the cattle frontier and land dominance that marked the region between the second half of the nineteenth century and the first half of the twentieth century.Keywords: Goiás frontier; Midwestern Brazil; Livestock; Western history; Land domination.

***

Introdução

A história do Oeste brasileiro tem sido interpretada por meio de diferentes categorias historiográficas, entre as quais a de fronteira. Essa categoria é utilizada em estudos que envolvem história e natureza. De acordo com David McCreery,1 o conceito de fronteira aparece pouco nas interpretações históricas, tanto no Brasil como na América Latina. A quase ausência dessa categoria na tradição historiográfica brasileira deve-se, em grande par-te, à compreensão dela tanto na América Latina quanto no Brasil, entendida como divisa territorial. O autor argumenta que o conceito de sertão tem sido mais empregado no Brasil, compreendido como categoria que mistura ficção e realidade. As diferenças entre fronteira e sertão decorrem das formas distintas de perceber o território e as relações entre história, sociedade e natureza, pois se para “[...] a tradição norte-americana a fronteira tinha conota-ções de oportunidade, de um lugar para começar de novo, para os brasileiros o sertão era um espaço escuro, desconhecido e perigoso, sem Deus, sociedade ou Estado”.2

Esse aspecto também é destacado pelo historiador americano Walter Prescott Webb,3 que reforça os diferentes sentidos que assumem esse termo na Europa e nos Estados Unidos. Na concepção europeia, fronteira está ligada às linhas divisórias que separam diferentes territórios e estados nacionais, sentido que deixou heranças na forma de compreensão latino--americana, enquanto que, nos Estados Unidos, fronteira assume significado diferente:

1 O pesquisador David McCreery fez uma pesquisa historiográfica com uma extensa base de dados documen-tais sobre o período Imperial em Goiás (1822-1889), em que utilizou o conceito de fronteira para caracterizar o distanciamento e o isolamento da província goiana em relação às demais regiões do país. Ver: McCREERY, David. Frontier Goiás, 1822-1889. Stanford, California: Stanford University Press, 2006.2 Whereas in the North American tradition the frontier had connotations of opportunity, of a place to start over, for Brazilians the sertão was a dark, unknown, and dangerous space, without God, society, or the state (tradução livre do autor). McCREERY, David, ibidem, p. 15.3 WEBB, Walter Prescott. The Great Frontier. Reno, Las Vegas: University of Nevada Press, 2003.

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O americano considera a fronteira como encontrando-se dentro desse espaço, não à borda ou nos limites de um país. Não é uma linha impeditiva à passagem, mas uma área convidativa à entrada. Em vez de ter apenas uma única dimensão, o comprimento, como na Europa, a fronteira americana tem duas dimensões, o comprimento e a largura. Na Europa, a fronteira está, presumivelmente, permanentemente estacionada; na América ela era transitória e temporal.4

Apesar dessas nuances conceituais, podemos destacar um conjunto de pesquisadores brasileiros que tem se apropriado desse conceito. Muitos desses autores se aproximam da concepção americana, utilizando o conceito de fronteira como importante categoria ana-lítica na compreensão histórica entre indivíduos e o meio natural. Posicionamo-nos nesse grupo por considerar que o uso dessa categoria interpretativa abre ricas possibilidades na compreensão da relação entre sociedade, história e natureza no Oeste brasileiro.

O objetivo deste texto é analisar a dinâmica da vida social em Goiás, marcada pelas condições de fronteira, no período compreendido entre as primeiras décadas do século XIX e início do século XX. Nesse período, a pecuária extensiva era a principal atividade econô-mica nas savanas do Oeste do Brasil.5 Ela garantia a apropriação das terras pelas elites locais e caracterizava uma cattle frontier6 em Goiás.

Vale destacar que a base teórico-metodológica para esse exercício interpretativo é a tradi-ção americana da Western History,7 sobretudo nos estudos que utilizam as categorias frontier

4 The American thinks of the frontier as lying within, and not at the edge of a country. It is not a line to stop at, but an area inviting entrance. Instead of having one dimension, length, as in Europe, the American frontier has two dimensions, length and breath. In Europe, the frontier is stationary and presumably permanent; in America, it was transient and temporal (tradução livre do autor). WEBB, Walter Prescott. Ibidem, p. 2-3.5 As áreas de savana no Cerrado goiano favoreceram o desenvolvimento da atividade pecuária na região central do Brasil. A abundância de gramínea nativa dos “campos cerrados” e a facilidade em escoamento da produção por meio de tropeiros e boiadeiros permitiram a sustentabilidade desta atividade econômica, que se tornou a principal entre o final do século XVIII e a primeira metade do século XX. Já na primeira metade do século XX iniciou-se a construção da ligação ferroviária com o Sudeste brasileiro, favorecendo a migração para o território goiano e a valorização de terras mais próprias para a agricultura. Essas terras compreendiam as áreas de floresta tropical conhecida como Mato Grosso de Goiás, desprezada pela atividade da pecuária. Sobre a expansão agrícola e colonização do Mato Grosso de Goiás ver: SILVA, Sandro Dutra e. Os estigmati-zados: distinções urbanas às margens do rio das Almas em Goiás (1941-1959). Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História. Universidade de Brasília, Brasília, 2008.6 Sobre a Cattle Frontier ver: HENNESSY, Alistair. The Frontier in Latin American History. Londres: Edward Arnold, 1978; McCREERY, David, op. cit.7 De acordo com o historiador Arthur Ávila a Western History é um campo historiográfico norte-americano dedicado à história do Oeste e da fronteira. O autor afirma que esse campo historiográfico inicialmente con-fundia a história da fronteira como uma história nacional e atualmente busca a compreensão de fenômenos regionais. Sobre a Western History e o processo de “marginalização” desta como história nacional para o re-gional ver: ÁVILA, Arthur Lima. Da história da fronteira à história do Oeste: fragmentação e crise na Western history norte-americana no século XX. História Unisinos, v. 13, n. 1, p. 78-83, jan./abr. 2009.

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e wilderness.8 Essa tradição envolve não apenas a relação entre a sociedade e natureza, que é o debate central dos historiadores ambientais, mas os temas diversos que caracterizam os estudos dos “historiadores do oeste”. O historiador americano Donald Worster9 apresenta essa pluralidade de abordagens na Western History, posicionando-se, assumidamente, como um historiado do oeste. Segundo o autor, existe ainda uma gama ampla de temas a serem abordados pelos historiadores interessados nos estudos do oeste, com um universo amplo de debates em que a fronteira assume diferentes dimensões. Worster cita como exemplo as abordagens de Henry Nash Smith10 sobre os símbolos e os mitos do oeste.11 Argumenta, no entanto, que o enfoque do seu trabalho, em particular, está na relação entre a história e a natureza. A opção em utilizar nessa análise os pressupostos da tradição americana nos estudos da fronteira justifica-se por ser a Western History uma referência que nos permite uma melhor analogia ao contexto goiano. Ainda, porque nos permite ampliar o debate historiográfico dos estudos regionais em Goiás, geralmente centrados na tradição da teoria social europeia, como as do estruturalismo e da tipologia da dominação. Assim, os trabalhos em Goiás que utilizaram como temas o poder local, coronelismo, dominação fundiária e violência seguiram uma linha interpretativa em que as condições da frontier/wilderness não figuravam como base interpretativa.12 Este artigo não tem a pretensão de questionar o valor teórico-metodológico da tradição europeia nos estudos historiográficos em Goiás. Além dis-so, a nossa intenção aqui não é realizar um estudo comparado do caso norte-americano e a tese clássica da fronteira com a fronteira em Goiás. O nosso objetivo central é buscar uma aproximação com os pressupostos dos estudos da fronteira para uma análise interpretativa da história goiana, considerando como objetos de investigação as questões envolvendo poder local, latifúndio e violência nos vastos sertões da fronteira do gado em Goiás. Para tanto, a

8 Sobre os temas da fronteira e natureza na tradição americana existem várias obras que tiveram como base o texto clássico de F. J. Turner (TURNER, Frederick Jackson. The frontier in American history. Mineola, Nova York: Dover Publications, 2010). Podemos citar, além do próprio Turner: CRONON, William. Uncommon Ground: Rethinking the Human Place in Nature. Nova York/Londres: W. W. Norton & Company, 1996; NASH, Roderick Frazier. Wilderness and the American Mind. New Haven/Londres: Yale University Press, 1982; SMITH, Henry Nash. Virgin Land: the American West as Symbol and Myth. Cambridge, Massachusetts/Londres, Inglaterras: Harvard University Press, 2009; WEBB, Walter Prescott. The Great Frontier, op. cit.; WORSTER, Donald. Under Western Skies: Nature and History in the American West. Nova York: Oxford University Press, 1992.9 WORSTER, Donald, op. cit.10 SMITH, Henry Nash, op. cit.11 Idem.12 Sobre os estudos que envolvem relações de poder em Goiás, ver: PALACIN, Luís. Coronelismo no extremo norte de Goiás: o padre João e as três revoluções de Boa Vista — Tocantinópolis. São Paulo: Edições Loyola, 1990; PALACIN, Luís. O século do ouro em Goiás: 1722-1822, estrutura e conjuntura numa capitania de Minas. Goiânia: Ed. da UCG, 1994; CAMPOS, Francisco Itami. Coronelismo em Goiás. Goiânia: UFG, 2003; BORGES, Barsanufo G. O despertar dos dormentes. Goiânia: editora da UFG, 1980; CHAUL, Nasr Fayad. Coronelismo em Goiás: estudo de casos e famílias. Tese (Mestrado em História). Goiânia: Kelps, 1998; SOUZA, Dalva Maria Borges de Lima Dias de. Violência, poder e autoridade em Goiás. Goiânia: Editora UFG, 2006.

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cattle frontier e as suas implicações em relação ao poder local, às questões agrárias e a violên-cia como traço cultural são analisadas a partir da referência e da apropriação do conceito na tradição americana da Wertern History, em sua relação com a história e a natureza em Goiás, Centro-Oeste do Brasil.

A cattle frontier em Goiás: os senhores de gado e as questões fundiárias

De acordo com Ávila, nas décadas de 1940 e 1950 a Western History passou a sentir uma sensível mudança de foco, contribuindo para o que ele definiu como a emergência de “cons-ciência regional”.13 O resultado dessa transformação foi que a historiografia do oeste buscava a revisão da concepção turneriana da fronteira, questionando, contextualizando e trazendo novos olhares para a tese clássica e mais atraente na historiografia americana. A partir daque-le momento a historiografia procurou se envolver mais com a temática local em detrimento das explicações nacionais da fronteira.14 Esse período mais “regionalista” não significava um abandono da temática da fronteira, mas procurava romper com as interpretações generalistas de uma história nacional da fronteira. As décadas de 1980 e 1990 foram marcadas por uma retomada do tema por meio da chamada New Western History. Ávila nos adverte que apesar dos novos historiadores do oeste manterem uma posição de resistência à visão “heurística” do conceito de fronteira em termos turnerianos, o campo historiográfico parecia incapaz de fornecer aportes teórico-metodológicos que fosse capaz de servir como chave interpretativa para o próprio Estados Unidos como para todas as Américas.15 Entre crises, deslocamentos e renascimentos, o conceito de fronteira ainda mantém o seu valor interpretativo. Assim, nos posicionamos em concordância com Alistair Hennessy, que defende adaptações necessárias para o uso do conceito de fronteira nas interpretações históricas, especialmente para o caso latino-americano. Para Hennessy, o mito da democracia e a sua relação com a fronteira não se aplicam à América Latina por duas razões em especial: (i) o modelo linear de ocupação americana se difere do modelo de hollow frontier (fronteira oca) do caso latino-americano, significando diferentes maneiras de ocupar o território; (ii) a fronteira na América Latina, em vez de constituir modelos democráticos, intensificava o poder local e seu sistema de do-mínio fundiário.16

Esse foi o caminho utilizado pelo historiador americano David McCreery como modelo interpretativo em sua obra Frontier Goiás.17 Suas análises são referências fundamentais para

13 ÁVILA, Arthur Lima, op. cit.14 Uma importante contribuição para esse debate é a obra de Donald Worster (op. cit.), sobretudo nos capítu-los intitulados “Beyond the Agrarian Myth” e “New West, True West”. WORSTER, Donald, op. cit.15 Ibidem, p. 94.16 HENNESSY, Alistair, op. cit.17 McCREERY, David, op. cit.

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a ampliação dos estudos sobre a relação entre sociedade, território e natureza na fronteira em Goiás. Esse historiador procurou dialogar tanto com a tradição historiográfica brasileira, quanto com tradição americana, e também com as interpretações do inglês Hennessy (1978) sobre a fronteira na América Latina. A fronteira Goiás foi analisada a partir da coleta e estu-do de significativa base documental sobre a província goiana (1822-1889). A tese central era que o território goiano situava-se nos limites do mundo moderno do século XIX. A provín-cia de Goiás era a “fronteira da fronteira”, devido ao seu isolamento territorial e político, às dificuldades de acesso e à estagnação econômica herdada da escassez da mineração de ouro no final do século XVIII. Para ele, além desses fatores histórico-geográficos, outros elemen-tos contribuíram para essa condição periférica, tais como frequentes ataques indígenas e de jagunços que aterrorizavam fazendas e vilarejos em Goiás.

A precária estrutura de poder foi uma das principais características da fronteira goiana, cuja administração pública era baseada no personalismo e na dominação fundiária, com poucas possibilidades de desenvolvimento econômico. A falta de estradas tornava a região um espaço isolado, distante do poder central. As ligações da Corte com o planalto central do Brasil se davam por rotas de tropeiros. A pecuária era a atividade econômica que mais se adaptava às condições da fronteira, dadas as formas de transporte e manejo das boiadas. Essas condições da fronteira resultaram na emergência de processos de desumanização nas relações entre os indivíduos que viviam no isolamento do distante Oeste do Brasil.

O conceito de fronteira foi a opção teórica que o autor utilizou para desenvolver a sua reflexão sobre Goiás, visto como a fronteira mais longínqua do império (the frontier of the frontier). A fronteira em Goiás era o lugar de ameaças, perigos, conflitos e dominação. Os senhores de terra e de gado em Goiás assumem, nessa análise, significativo valor interpreta-tivo, considerando as proporções continentais do território brasileiro e as articulações entre o império brasileiro e as elites locais, como forma de garantir a integridade territorial e a au-tonomia fiscal na fronteira: “No dia a dia, o Estado era representado pela elite local, a quem a população sempre devia obediência: O príncipe reina com a ajuda dos senhores da terra, que são os que governam”.18 Além disso, a fronteira representava as condições de exclusão e pobreza que atingia todos os segmentos sociais. A pobreza e a ineficiência do Estado em ins-tituir um sistema de coesão social fizeram com que a região entrasse em uma condição per-manente de desumanização. Todos estavam sujeitos a situação de precariedade e de escassez, fossem eles coronéis, camponeses ou indígenas. Até mesmo o mais abastado dos cidadãos sofria as consequências do isolamento no distante oeste.

McCreery recorre ao conceito de cattle frontier como referência à estrutura econômica e de dominação política em Goiás. Ele considera a base econômica pelo prisma da atividade pecuária, que se apresentava como principal fonte econômica em Goiás. A terra não se apre-sentava como critério de riqueza, por ser a quase totalidade do território considerado como

18 Ibidem, p. 3.

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“terra devoluta”, com a criação de gado se desenvolvendo livremente sobre esse território “sem donos”. Os territórios indígenas é que constituíam uma exceção e uma ameaça ao mes-mo tempo, pois na porção sudoeste da província estava localizada a nação Caiapó e ao norte e noroeste as possessões xavantes.

Os senhores de gado compunham a elite da fronteira, sendo responsáveis pelo controle do poder executivo, do judiciário e do legislativo. A atuação política dos coronéis se carac-terizava pela defesa dos “interesses do Estado”, que na verdade era a conjunção de interesses privados. Com um Estado fraco e inoperante, os senhores de gado executavam essas funções e agiam como autoridade, os donos do poder na fronteira. McCreery denominou essa forma de dominação de “despotismo pastoral”, em que os coronéis, os senhores de gado, assumiam o controle das funções políticas e administrativas do Estado, abrindo estradas, construindo pontes e cuidando da segurança das cidades, legitimando com isso a sua função social como verdadeiros donos das terras e rebanhos.

O século XIX foi marcado por tipos específicos de violência que caracterizam a cattle frontier em Goiás. Reforçamos que a cattle frontier não é apenas uma forma econômica base-ada na pecuária. Era um tipo específico de “pecuária de fronteira” em que outros elementos, além do gado, se inseriam. A pecuária na fronteira oeste se diferenciava do sistema de pro-dução característico do sul do Brasil, descrito pelo geógrafo brasilianista Stephen Bell como “Brazilian Ranching System”. O geógrafo pesquisou a região da Campanha Gaúcha no sul do Brasil no período entre 1850 a 1920, apresentando um complexo sistema de produção do gado, que incluía melhoramento genético, uma organização produtiva da propriedade, pro-cessos de industrialização, logística entre outros sistemas produtivos com vistas ao mercado, interno e externo.19 A cattle frontier em Goiás mantinha as precárias estruturas de produção, aliadas a domínio fundiário em um vasto território de terras devolutas de campos cerrados. Assim, quando nos referimos à fronteira do gado em Goiás não levamos em consideração apenas a estrutura econômica, mas todas as relações sociais e políticas que marcavam a con-dição de fronteira. O texto de McCreery serve de suporte na compreensão desse contexto, sobretudo no século XIX. Ao mesmo tempo, outras fontes, como relatos de viagens e outras narrativas,20 apresentam as condições sociais no distante sertão goiano. O relato de via-

19 Sobre o “Brazilian Ranching System” ver: BELL, Stephen. Campanha Gaúcha: a Brazilian Ranching System, 1850-1920. Stanford, California: Stanford University Press, 1998.20 Uma fonte privilegiada sobre o início do século XIX em Goiás e o cenário de isolamento da fronteira goiana são os registros do jornal Matutina Meiapontense, publicado em Meia Ponte (atual Pirenópolis) entre 1830 a 1834. O jornal foi uma iniciativa do comendador Joaquim Alves de Oliveira, citado por Saint-Hilaire em sua passagem por Meia Ponte. O naturalista francês hospedou-se em uma das fazendas do comendador, a Fazenda Babilônia, e destacava os ideais liberais do fazendeiro e comerciante goiano (SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à província de Goiás. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1975). O jornal publicou diferentes tipos de matérias, inclusive registros oficiais da província de Goiás. Foi uma das principais fontes utilizadas por David McCreery em sua coleta de dados. Esse material está disponível em formato digital.

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gem deixado pelo naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), que percorreu a província de Goiás no início do século XIX, descreve o ambiente social na fronteira. Para Saint-Hilaire, a província de Goiás era um vasto sertão, não apenas pelas proporções territo-riais imensas e com uma população dispersa, na vastidão do planalto central do Brasil, mas também pelo estágio de barbárie em que se apresentava:

Juntamente com a numerosa população que se estabelecera, como por artes mágicas, na região de Goiás, vieram também os vícios mais terríveis. Bandos de criminosos tinham encontrado naquelas solidões não só riquezas como também a impunidade, e no meio de uma sociedade em formação, onde ainda não existia polícia, eles podiam dedicar-se sem receio a todos os desregramentos. Em vão os magistrados tentavam fazer ouvir a sua voz, para reprimir as desordens. Tão corruptos quanto aqueles que deviam punir, eles só mereciam desprezo. As brigas se sucediam, e nenhum homem ousava encontrar-se com o outro sem estar armado, só deixando de lado as armas quando ia à igreja.21

A ocupação em Goiás esteve ligada, no início de sua colonização, à atividade minera-dora do século XVIII. Passado o surto da exploração das lavras de ouro, a atividade pasto-ril tornou-se dominante. Antigos garimpeiros ou foram em buscas de novas minas, ou se fixaram nos ranchos para a criação de gado. Dessa forma, a atividade pastoril passou a ser predominante em Goiás no século XIX e no início do século XX. A atividade criatória fixou o morador na terra, na medida em que a produção aurífera na província não foi florescente e nem duradoura. A região tinha uma baixa densidade demográfica, contando, em 1900, com 255.284 habitantes, o que contabilizava 0,40 habitante por km2. Em 1920, o censo registrou uma população de 511.919 habitantes, apresentando uma densidade demográfica de 0,8 habitante por km2. Em compensação, o censo registrava 2.841.081 cabeças de gado, numa razão de 5,5 por habitante. Era um sertão de gado, mais do que um sertão de gente.22

A pecuária se tornou, desde o final do século XVIII, a principal forma de ocupação, com o rebanho se distribuindo por todo o território goiano. Ela era fonte de riqueza e o maior fator de arrecadação de impostos, assim permanecendo em Goiás até os anos 1950. Essa atividade também permitia quebrar, parcialmente, o isolamento a que se circunscrevia a população goiana. Na inexistência de estradas e de meios de transporte, era o gado que se deslocava para o mercado mineiro ou paulista.23

Isolado e sem comunicação, com uma economia caracterizada como de subsistência ou natural, embora tivesse na pecuária a sua principal fonte de receita, assim o estado de Goiás

21 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às nascentes do rio São Francisco. Belo Horizonte: Itatiaia, 2004. p. 161-162.22 CAMPOS, F. Itami. Questão agrária: bases sociais da política goiana (1930-1964). Tese (Doutorado em Ciências Políticas) — Departamento de Ciências Sociais, Universidade de São Paulo, USP, São Paulo, 1985.23 CAMPOS, Francisco Itami. Questões agrárias: bases sociais da política goiana. Goiânia: Kelps, 2012.

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se apresentava no final do século XIX e no início do século XX. Essa condição de fronteira criava grupos regionais que dominavam a região e chegavam a confrontar o poder estabe-lecido do Estado. O domínio fundiário para a atividade pastoril era, na maioria das vezes, marcado por violentos conflitos pela disputa da terra. Ou melhor, pela disputa de pastagens.

As condições e os temas da fronteira do gado em Goiás se inserem no contexto apresen-tado por Oliveira24 como indícios da retomada do uso conceitual e a abordagem da frontier pela historiografia contemporânea que esteve associada ao campo da história ambiental nos Estados Unidos. Um exemplo dessa retomada sob o enfoque ambiental são os estudos de Donald Worster sobre o oeste.25 Worster se define como um historiador do Western, e que muitas vezes precisa definir que não se trata de um historiador do mundo ocidental, mas de um local específico que é o American West. E dentro dos estudos do West é que as questões que envolvem história e natureza são analisadas. A história ambiental assume em Worster uma posição privilegiada para a compreensão do oeste e da fronteira. Ele propõe, no entanto, ir além dos mitos da concepção clássica da fronteira, inclusive questionando sobre o real sig-nificado de oeste como território. Temas como mito agrário, ecologia pastoril (Cowboy eco-logy), sociedade hidráulica, capitalismo agrícola, entre outros estudos, envolvem a discussão entre a fronteira, o oeste e a natureza. Sobre as questões que envolvem a relação entre a histó-ria ambiental e a Western History o autor apresenta dois modos ecológicos primários (primary ecological modes) na ocupação da fronteira. O primeiro desses modos está relacionado com as atividades de pecuária e de pastoreio e o segundo relacionado com a agricultura, sobretudo no que se refere a atividades de plantio irrigado. Worster denomina esses sistemas como o “Oeste pastoril” e “Oeste hidráulico” (pastoral and the hydraulic West).26 Esses apontamentos figuram como suporte teórico fundamental na ampliação das análises da fronteira do gado em Goiás. Muito mais do que apenas descrever a atividade pecuária e suas características na ocupação territorial da província de Goiás, ela nos permite inserir novos elementos analíti-cos, sobretudo questões que vão além da atividade do pastoreio.

A cattle frontier figura como um universo de possibilidades, incluindo estudos como: a expansão da atividade em um determinado ambiente, os recursos de gramíneas e pastagens disponíveis, a introdução de novas pastagens, a genética do gado introduzido, o cotidiano da atividade do vaqueiro, o papel do boiadeiro no transporte do gado para o mercado con-sumidor, o domínio do vasto território e as relações de poder envolvidas, dentre outras. A história da pecuária no Brasil remonta ao século XVI e esteve vinculada, desde o início, ao processo de deslocamento para os sertões. Em seu texto sobre a pecuária goiana, Odorico Costa27 reforça a tese de que os vaqueiros tiveram a mesma importância que os bandeiran-

24 OLIVEIRA, Lucia Lippi. Americanos: representações da identidade nacional no Brasil e nos EUA. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000.25 WORSTER, Donald, op. cit.26 Ver o artigo: New West, True West. In: WORSTER, Donald, ibidem, p. 19-33.27 COSTA, Odorico. A pecuária goiana. Cultura Política: revista mensal de estudos brasileiros, Rio de Janei-ro, ano IV, n. 46, p. 257-268, nov. 1944.

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tes e desbravadores do sertão para a conquista geográfica da fronteira brasileira. O texto, escrito num período em que o regime nacionalista procurava reforçar elementos simbólicos para a justificativa da expansão agrícola no oeste,28 utilizava-se de referências como Basílio de Magalhães e Capistrano de Abreu para reforçar a tese de que vaqueiros e bandeirantes alargaram os limites territoriais brasileiros. Em suas palavras: “O curral de gado possui ex-traordinária situação na formação do Brasil. Ele foi sinal de passagem, foi evidência de posse e foi, ainda, tulha para a alimentação. Foi um extraordinário instrumento de colonização”.29 Odorico Costa considerava o vaqueiro como ator privilegiado na ocupação da fronteira, vin-do após ele as fazendas, o engenho, o arraial e o efetivo povoamento das áreas interioranas.

O vaqueiro, assume, nessa interpretação, papel simbólico importante na conquista do sertão. Odorico procura reforçar o caráter heroico do vaqueiro descrevendo as suas ativida-des como elementos do ordinário, mas com função desbravadora como a dos bandeirantes. Dentre as atividades que cabiam ao vaqueiro na fronteira são destacadas pelo autor: amansar e domesticar o gado no sertão; evitar seu extravio na vastidão sem cercas; curar os animais das pragas e vermes; marcar os bezerros; proteger os animais dos ataques das onças e das co-bras; abrir bebedouros; e localizar áreas que servissem para a salitragem do gado, conhecidas como “barreiras” ou “lambedouros”. No exercício desse ofício o autor relata a rusticidade da atividade pastoril, pois o vaqueiro teria que se isolar no ambiente hostil do cerrado, dor-mindo muitas vezes no campo junto com a boiada, principalmente durante o “inverno”, que como os moradores do Meio-Oeste do Brasil denominam o período chuvoso. Na invernada, que é um termo utilizado tanto para descrever a abundância de pastagem que coincide com o período chuvoso, o vaqueiro passava grande parte do seu tempo junto do gado, cuidando da bezerrada, pois era o momento em que ocorriam a maioria dos partos.30

No período de estiagem o vaqueiro precisava buscar novas pastagens em sua rotina de trabalho nas savanas do Brasil Central. Precisava atravessar o território, transpor rios, pro-teger o rebanho dos ataques indígenas e livrá-los de áreas dominadas por ervas daninhas. Nesse sentido a relação entre o vaqueiro e o sertão, no cenário da natureza hostil, consti-tuía um elemento explicativo da rusticidade que era um elemento constituinte do seu ethos. Assim é que os elementos constituintes do ethos bandeirante,31 como o enfrentamento à natureza hostil e a sua função na conquista territorial do Oeste brasileiro, foram evidencia-dos no vaqueiro. Para Costa o vaqueiro teve relevante participação na formação nacional, comparando-o ao bandeirante da historiografia paulista: “Ele e o bandeirante se completam. O bandeirante era dinâmico. A sua função era a de devassar, de rasgar matas, de desbravar

28 SILVA, Sandro Dutra e. O desbravador do Oeste: categorias e símbolos referenciais para a colonização de Goiás na Era Vargas. In: MARIN, Joel Orlando Bevilaqua; NEVES, Delma Pessanha (Org.). Campesinato e marcha para Oeste. Santa Maria, RS: Editora UFSM, 2013. p. 59-78.29 COSTA, Odorico, op. cit., p. 262.30 Idem.31 SILVA, Sandro Dutra e, 2013, op. cit.

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chãos, de furar terras bárbaras ainda. O vaqueiro é estático. Agarra-se à terra e nela lança uma semente de civilização.”32

O vaqueiro e o bandeirante se assemelham na conquista do território e no enfrentamento à natureza. O bandeirante minerador em Goiás acaba se transformando em vaqueiro após o esgotamento das minas de ouro. No entanto, não foi a migração do minerador em vaqueiro que introduziu a atividade pastoril em Goiás, haja vista que essa atividade esteve presente desde o início da ocupação na mining frontier. De acordo com Americano do Brasil,33 no final do século XVIII a pecuária goiana apresentava excelentes condições e tornava-se uma atividade rentável e economicamente viável, na medida em que a mineração exigia maiores recursos e sacrifícios na sua extração. Os excelentes campos de cerrado favoreciam o desen-volvimento dessa atividade e, ao mesmo tempo, constituía novos senhores nas savanas cen-trais do Brasil. Da mesma forma, os ranchos e fazenda espalhavam-se pelos vastos territórios da província goiana. A fronteira do gado tomava forma e se caracterizava como a principal atividade em Goiás. As necessidades de expansão e domínio fundiário, associado a uma estrutura de força e dominação, com pouca presença do Estado, tornaram esse ambiente favorável para a constituição de situações em que a violência se torna naturalizada.34

Quando buscamos aplicação desses conceitos ao modelo goiano, ele segue a estrutura do oeste pastoril, baseado nas concepções da cattle frontier e nas assertivas de David McCreery. No entanto, esses fatores não identificam apenas uma relação entre história e natureza no sentido das fontes e dos recursos naturais. Ele aponta, ainda, para um vasto ambiente de adaptação e interação com o cenário natural. Nesse sentido, muito mais do que as questões ecológicas que envolvem a adaptação à atividade pecuária nas savanas do planalto central brasileiro, outros temas se inserem nessa história do oeste. De acordo com Worster,

Os historiadores do Oeste não precisam se desesperar com este tema. Para aqueles com imaginação para encontrá-lo, há uma variedade densa de temas que podem ser, historicamente, escritos sobre esta região. Dentro de seus limites amplos e em todas as suas extensões esparsas, através do qual se encontra uma duração de mais de 200 anos de colonização europeia e outros milhares de anos de vida aborígene, a região oferece para estudar toda a ganância, a violência, beleza, a ambição e variedade que todos podem se utilizar. Com tempo e esforço suficiente, quem sabe um dia poderá oferecer uma história de cuidado, a adaptação duradoura das pessoas na terra. [...] Estamos começando a conhecer onde é o verdadeiro Oeste, o que ele foi, o que ele poderia ter sido, o que ele ainda pode ser. Estamos começando a conhecer o lugar pela primeira vez.35

32 COSTA, Odorico, op. cit., p. 263.33 BRASIL, Antônio Americano do. Súmula de História de Goiás. 3. ed. Edição anotada por Humberto Cris-pim Borges. Goiânia: Unigraf, 1982.34 McCREERY, David, op. cit.35 [...] the western historians need not despair of the West. For those with imagination to find it, there is plenty of thick history to be written about this region. Within its spacious boundaries and across its sparse, dry expanses,

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A história e natureza como temas do oeste não se limitam a descrições meramente fi-togeográficas ou agronômicas do território. Outros fenômenos de vida social se interagem a esse ambiente. A cattle frontier em Goiás, nesse sentido, se insere nesse vasto campo de abordagens que compõe a historiografia do Oeste brasileiro, ao fazer referências à estrutura econômica e à dominação política em Goiás durante o século XIX.

O século XX manteve a mesma estrutura da cattle frontier em Goiás. No entanto, algumas diferenças na situação de fronteira ocorreram, sobretudo na ampliação do sistema de transpor-te, com a chegada da ferrovia em 1912.36 A ferrovia, no entanto, resolve parte do isolamento, na medida em que ela se estende em parte do sul do estado. A partir dela foram se estabelecendo novas rotas rodoviárias e criando novas localidades na região da fronteira. Esse processo trouxe a valorização das propriedades, que outrora eram “terras devolutas”. Essas grandes áreas de campo cerrado passaram a ser requeridas pelos coronéis em Goiás. Também impulsionou a migração para essa região de fronteira, intensificando novos tipos de violência, tanto no campo como nas zonas urbanas em processo de expansão, como veremos adiante.

Um exemplo dessa nova forma de fronteira foram os relatos de Carlos Pereira de Ma-galhães, baseado em uma coletânea de cartas escritas entre 1918 a 1925, posteriormente publicadas com o título de “Cartas de Goias”.37 Em uma carta datada de 8 de março de 1919, o advogado Carlos Pereira de Magalhães, vindo de São Paulo com a finalidade de regularizar a documentação relativa à compra de grande área de terras em Goiás, descrevia aos seus superiores, membros de rica família paulista, a sua impressão sobre o sertão goiano: “esta gente goiana [...] tem como herança dos antepassados paulistas o heroísmo; quanto ao ambiente, é de combate, tanto se mata boi no matadouro como gente na chapada. A força do querer desta raça, quando despertada, é de ferro, para o bem o para o mal”.38 Esse registro situa-se como indício da representação de isolamento e violência que caracterizava o distante Oeste brasileiro, nas fronteiras de Goiás. O advogado paulista descrevia com assombro aos Monteiro de Barros a violência que acometia o sertão goiano, descrito por ele como o “Brasil grande e bárbaro”. Magalhães referia-se a Goiás como um sertão segregado da civilização por dois séculos e que o contato com essa condição de fronteira despertava nele o “espírito sertanista”. O espírito sertanista dizia respeito ao seu estranhamento em relação ao ambiente natural e cultural. Ainda assim, apresentava-se a seus superiores como em missão sertanista, em função da necessidade de reconhecimento das paisagens e da etnografia do hinterland

through what is now more than two hundred years of European settlement and many thousands of Indian life, this region offers for study all the greed, violence, beauty, ambition, and variety anyone could use. Given enough time and effort, it may someday also offer a story of careful, lasting adaptation of people to the land. [...] We are beginning to know where the true West is, what it has been, what it might have been, what it might still be. We are beginning to know the place for the first time (WORSTER, Donald, op. cit., p. 33).36 Sobre a expansão ferroviária em Goiás ver: BORGES, Barsanulfo, op. cit.37 MAGALHÃES, Carlos Pereira de. Cartas de Goiás no princípio do século XX. São Paulo: Editora De Letra em Letra, 200438 Ibidem, p. 57.

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brasileiro: “A nós, que elegemos este Estado para a aplicação de capital e trabalho, impõe--se como obrigação estudar e conhecer-lhe o ambiente. Como advogado que sou, as causas criminais e a delinquência, esse grande mistério, me atraem”.39

Muitos dos relatos de Magalhães apresentavam as condições naturais, os desafios da na-tureza hostil do Cerrado do Brasil Central, as ameaças das feras selvagens, o temor de cons-tantes ataques indígenas e de cangaceiros, vindos do nordeste do país, e a violência cotidiana dos goianos. No entanto, os seus relatos têm um teor etnocêntrico, como este escrito em 14 de dezembro de 1918, em que afirmava que a vida noturna era dominada por jogatinas e que não existia a garantia de vida fora das ruas iluminadas, concluindo: “O ambiente social mantém padrões que não estão à altura do nosso século. O homem genioso é de opinião, que vai às últimas consequências para sustentar sua palavra, embora absurda, é admirado”.40 No cenário etnocêntrico de Magalhães, o ambiente e a sociedade, ou a natureza e a história, se misturavam. As paisagens gerais da distante fronteira goiana caracterizavam um Brasil vasto e bárbaro, em que as relações sociais e a natureza hostil estabeleciam o tom das vivências nas savanas centrais do oeste. Escrita durante o período belicoso da Primeira Guerra Mundial, a carta chamava a atenção para o fato de que a violência não era traço cultural exclusiva do distante e bárbaro sertão: “Quando os povos que são o eixo do mundo e os pilares da civilização passam quatro anos em mútuo massacre, não admira que os povos atrasados se preparem para se entredevorarem”.41

Além da violência cotidiana, um tipo de violência muito comum envolvia as relações de trabalho e fundiárias em Goiás. Nesse quadro, inserem-se as relações entre coronéis e camponeses, incluindo relações de trabalho e a posse da terra.42 Neste contexto a ficção e a realidade pouco se diferenciam. Em um conto do escritor goiano Bernardo Élis podemos perceber uma pequena amostra dessa atmosfera social. Em “A enxada”, o escritor goiano conta a trajetória de um camponês, Supriano ou Piano, que, por não ter nem posse da terra, nem os meios de produção, acabou por contrair dívidas com um poderoso senhor de terra. Esta condição o levou à servidão por dívida com um fazendeiro, o capitão Elpídio Chaveiro. Esse, por sua vez, destinou um lote de terra, já desmatado e queimado, para que Piano fizesse ali uma plantação. No entanto, não lhe disponibilizou as condições necessárias para o plan-tio, faltando até mesmo a enxada para lavrar a terra. O conto de Bernardo Élis centra-se na luta desesperada do camponês em busca de uma enxada, e no seu temor em não conseguir entregar a lavoura plantada no prazo estipulado pelo fazendeiro, temendo as consequências

39 Idem.40 Ibidem, p. 3041 Ibidem, p. 3242 Sobre esse tema ver: CAMPOS, Francisco Itami; SILVA, Sandro Dutra e. Coronéis e camponeses: a fron-teira da fronteira e a tese da “ficção geográfica” em Goiás. In: SILVA, Sandro Dutra; PIETRAFESA, José Paulo; FRANCO, José Luiz de Andrade; DRUMMOND, José Augusto; TAVARES, Giovana Galvão. Fron-teira Goiás: sociedade e natureza no Oeste do Brasil. Goiânia: Ed. da PUC Goiás, 2013. p. 39-54.

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que poderiam vir. Bernardo Élis se apropria do realismo-naturalista e da forte carga de dramaticidade desse estilo literário. No conto, o lavrador Piano, após longa peregrinação e não conseguindo a enxada para realizar o serviço, começa a lavar a terra com as próprias mãos. Incapaz de cumprir o acordo, Piano tem a sua morte determinada pelo fazendeiro. Um capanga, também soldado do governo,43 foi designado para resolver o caso. O soldado desloca-se para a roça e se espanta com o cenário dramático: o camponês com os membros desfigurados, um molambo de gente cavando a terra seca para a plantação. No cumprimento das ordens dadas, o soldado mata o lavrador. Bernardo Élis descreve assim a cena:

Aí o soldado abriu a túnica, tirou debaixo um bentinho sujo de baeta vermelha, beijou, fez o pelo-sinal, manobrou o fuzil, levou o bruto à cara no rumo do camarada. [...] Do seu lugar, Piano meio que se escondeu por trás de um toco de peroba-rosa que não queimou, mas o cano do fuzil campeou, cresceu, tampou toda a sua vida, ocultou o céu inteirinho, o mato longe, a mancha por trás do soldado, que era o sol querendo romper as nuvens.44

A partir do realismo do conto de Bernardo Élis podemos conjecturar as possíveis formas de dominação que impunham as condições de desumanização na fronteira. No entanto, além das questões que caracterizavam o território, em suas articulações políticas e geográfi-cas, a fronteira era, ainda, uma condição cultural.

Um dos episódios mais dramáticos na história goiana e que torna evidente o clima de tensão e violência que se desenvolveu em Goiás, nas primeiras décadas do século XX, foi a chacina de São José do Duro, ocorrida no norte do estado em 1919. O episódio é um dos mais emblemáticos casos envolvendo duas oligarquias importantes em Goiás: os Caiado, grupo oligárquico do sul, e os Wolney, coronéis do norte goiano. As disputas políticas entre o norte e o sul do estado sempre estiveram presentes no jogo de poder em Goiás. No en-tanto, as relações entre os dois grupos se tornaram mais tensas quando Abílio Wolney e o senador Antonio Ramos Caiado se declaram inimigos. Todavia, o início da operação militar que culminou na chacina de parte da família Wolney em São José do Duro teve início por conta de um inventário redigido por Abílio Wolney, envolvendo terras e gado. Abílio Wol-ney45 tornou-se o advogado da viúva do fazendeiro Vicente de Pedro Belém46 e trabalhou na redação do inventário de bens do falecido. O documento foi apresentado ao juiz Manuel José de Almeida, que constatou algumas irregularidades, como a omissão de bens. O juiz

43 Esse foi um ponto destacado por David McCreery (2006) sobre a estrutura de poder em Goiás, na medida em que os grandes fazendeiros incorporavam bandidos e jagunços em suas milícias particulares e também, por serem os políticos da região, também na polícia. Ver: McCREERY, David, op. cit.44 ÉLIS, Bernardo. Veranicos de janeiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. p. 55.45 AIRES NETO, Abílio Wolney. O diário de Abílio Wolney. Anápolis: Edição do autor, 2002.46 Este foi assassinado em tocaia no dia 29 de dezembro de 1917. Ver: COELHO, Guilherme F. Expedições históricas nos sertões de Goyaz: São José do Duro. Goiânia: ICBC, 2008.

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não aceitou o documento, alegando não estar em sintonia com as normas da lei vigente. Ele argumentava que um montante de bens não havia sido arrolado, que Abílio Wolney e sua família tinham se apoderado deles, e os acusava de serem os mandantes do assassinato de Vicente Belém. Ao mesmo tempo, os Wolney acusavam o juiz, o coletor estadual Sebastião Brito e o delegado de polícia Joaquim Monteiro de Rezende de serem os mandantes do as-sassinato e quererem usurpar as suas posses.

Em tom de ameaça Abílio Wolney entrou na cidade com alguns jagunços e obri-gou o juiz a aceitar o inventário. Após o acontecido, o juiz deixou a cidade, e o delegado de polícia do município enviou um telegrama ao chefe de polícia estadual e ao presidente do Estado, desembargador João Alves de Castro, pedindo intervenção estatal para averiguação dos crimes cometidos. Foram encaminhados cerca de 40 policiais juntamente com o juiz Celso Calmon para a resolução do conflito. Ao findar as investigações, Celso Calmon decre-tou a prisão provisória de Abílio Wolney e de seu pai, o coronel Joaquim Ayres Cavalcante Wolney. Na tentativa de prisão dos acusados, o pai de Abílio foi assassinado pelos policiais por resistir à prisão. Os policiais invadiram a fazenda em que a família Wolney estava, capturaram os membros da família, homens e mulheres. Abílio Wolney conseguiu escapar da invasão e se refugiou em uma outra fazenda da família, em que estavam acampados os jagunços e capangas da família. Os policiais prenderam o restante da família, tomados como reféns. As mulheres ficaram em prisão domiciliar e os homens foram presos ao tronco, anti-go instrumento de prisão e tortura dos escravos. Qualquer ameaça de ataque do coronel do norte ao vilarejo do Duro os presos seriam executados.

Abílio Wolney atravessou a divisa do estado entrando na Bahia. Em contato com lide-ranças e aliados retornou para São José do Duro com aproximadamente 200 jagunços e can-gaceiros, com vistas a recuperar o controle da vila das mãos dos policiais. Diante do ataque dos jagunços, todos os reféns presos no tronco foram mortos. O combate durou 3 dias, até que os policiais abandonaram a vila.47

Esse evento histórico apresenta-se como um caso marcante da condição de fronteira em Goiás. Aparentemente, ele teve início quando um coronel tentava se apropriar dos espólios de um pequeno fazendeiro falecido. Com a interferência do estado na questão, o caso se transforma em um conflito armado entre as oligarquias do norte e sul de Goiás. Uma ques-tão política regional que tomou proporções de um violento conflito armado, envolvendo questões agrárias e de dominação em Goiás. O domínio de terras, sobretudo de áreas ricas em pastagens, transformava a cobiça dos coronéis pecuaristas em Goiás em sangrentas dis-putas de poder.

47 Esse episódio foi posteriormente transformado em romance pelo escritor Bernardo Élis. Ver: ÉLIS, Bernar-do. O tronco. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.

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Em uma carta escrita por Magalhães, em 20 de fevereiro de 1919, temos registros de um contemporâneo sobre a repercussão da chacina de São José do Duro em Goiás. O advogado relata que participou de reunião da Câmara de Vereadores de Pirenópolis em que notou a preocupação com a entrada de baianos (jagunços) em Goiás. Informava, ainda, que o in-tendente da vila de Espírito Santo do Peixe havia mobilizado uma postura municipal para interditar a entrada de cavaleiros vindos da Bahia. Na verdade, o relato tratava da presença de jagunços que aproveitavam o caos, imposto pela briga entre os coronéis do norte e do sul de Goiás, para cometer seus crimes. Magalhães assim relatou o contexto desse conflito e a sua repercussão em Pirenópolis, no sul do estado:

Por esses dias, foram chegando ao rancho do major, sujos e suarentos, uns soldados componentes da escolta que, segundo constava, havia assassinado toda a família Wolney. Esse rico fazendeiro estabelecido na Vila do Duro, norte do Estado, era odiado pelos políticos militares como adversário perigoso. A presença de uma expedição militar nesses desertos pôs em efervescência a jagunçada ociosa de aquém e além de Goiás.48

A fragmentação política e a dominação fundiária tornaram a fronteira goiana, desde o

século XIX até a primeira metade do século XX, um território com precárias condições de controle público. Pedro Gomes de Oliveira,49 escrevendo na década de 1940, período que foi marcado pela inauguração de Goiânia, a nova capital de Goiás, afirmava que o território goiano era uma “ficção geográfica”. A tese de Oliveira se fundamentava na argumentação de que Goiás era um território sem o sentido de unidade. Até então, o sul e o sudoeste do estado ligavam-se a Minas Gerais; o nordeste goiano vinculava-se à Bahia; o norte goiano comercializava e se relacionava com o Maranhão e o Pará. A antiga capital, Cidade de Goiás, não expressava a unidade estadual, ficando isolada nas cercanias da Serra Dourada. Além disso, a falta de estradas e a dificuldade de comunicação eram fatores que contribuíam para a não integração das regiões e para a falta de unidade territorial.

A legislação de terras e a dominação fundiária

As questões agrárias e o processo de ocupação territorial em Goiás no século XX tiveram como característica marcante a dificuldade do acesso à propriedade pelos mais pobres. Este traço é evidenciado pelos recursos e meios usados pelos grupos dominantes. Além de uma legislação impeditiva, exigências burocráticas para a requisição de terras foram estabeleci-das, dificultando o acesso à terra pelos mais pobres e permitindo o apossamento pela classe

48 MAGALHÃES, Carlos Pereira, op. cit., p. 51-52.49 OLIVEIRA, Pedro Gomes. O pito aceso. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1942.

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dirigente. Isto fez com que o preço da terra aumentasse. Embora proibido pela legislação imperial (Lei de Terras de 1850), o apossamento pelos poderosos se tornou a forma mais comum de ocupação no estado desde o século XIX.

A legislação de terra em vez de facilitar o acesso à terra, ao exigir a compra da proprie-dade, tornou inviável a sua própria aplicação. A legalização das terras, nas formas previstas, era desinteressante, tanto para a pecuária extensiva como para as lavouras de subsistência. A Constituição republicana de 1891 estabeleceu que as terras públicas deviam ser geridas pelos estados, e não mais pelo governo da república. As terras foram transferidas para os estados da federação, que, em sua maioria, desconheciam a extensão e a localização de suas terras devolutas.

Em razão da disposição constitucional em 1893 Goiás tem a sua primeira lei de terras. Esta lei estabelece que a forma de acesso à terra é a compra em hasta pública (Art. 1o), favorecendo a quem dispuser de dinheiro e procurando impedir a ocupação. Define como terras devolutas “as que não tiverem no domínio particular por título legítimo” e aquelas cujas posses não se fundarem em títulos capazes de legitimação ou reavaliação (Art. 13o). Uma definição que termina por abranger a todo o território estadual: todas as terras são públicas até prova em contrário. A lei estabelece como critérios preferência para venda: 1o – maior lance; 2o – pagamento à vista; 3o – cultura no terreno exposto à venda; 4o – compra de maior número de lotes. (Art. 8o do Decreto) [...] Esse conjunto de normas será mantido nas diferentes legislações de terra a partir de então.50

A legislação goiana de 1893 apresentava as mesmas limitações e impedimentos da legisla-ção de 1850. Em 1897, entrou em vigor nova legislação de terras em Goiás, introduzindo al-gumas modificações, como título provisório e aforamento, práticas comuns no apossamento das terras, e que foram mantidas ao longo da Primeira República (1889-1930). Destaque-se que a partir da primeira década do século XX, com a expansão da cafeicultura no sul do es-tado e com a chegada da ferrovia, ocorreu uma maior valorização das terras, gerando críticas por parte de governantes que passaram a reivindicar mudanças na legislação: “Em 1912 e 1913, o Executivo pede ao Congresso modificações na legislação de terras, a fim de obstar a ação devastadora de particulares que estão se apropriando das terras devolutas”.51

A partir das modificações das medidas normativas, estipuladas pelo governo goiano no início da década de 1910, verificou-se uma preocupação maior dos órgãos públicos com o problema dos apossamentos, sendo que, desde o início da República, a lei de terras estipulava prazos para a legalização dos títulos. Porém, os prazos expiravam e os títulos não eram emiti-dos, o que gerava sérios problemas para a administração pública, tais como a venda de terras

50 CAMPOS, F. Itami, 1985, op. cit., p. 97.51 Ibidem, p. 100.

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de domínio particular pelo Estado e o desconhecimento real das áreas devolutas existentes. A partir da primeira década do século XX, ocorreu um surto de ocupação de terras, o que levou o governo estadual a fazer várias tentativas no sentido de regulamentar os títulos parti-culares. Por meio da Lei no 636 de 27 de julho de 1919, o governo goiano facilitou o registro de terras ocupadas, porém, essa medida não surtiu muito efeito, haja visto que, em 1925, novamente o executivo reclamava providências a fim de tornar possível o cadastramento de terras devolutas em função da pouca procura por registros.

O movimento revolucionário de 1930 colocou no poder, em Goiás, o grupo oposicionis-ta liderado por Pedro Ludovico Teixeira, que assumiu como interventor, ficando no governo até 1945. Esse governo, no que diz respeito às políticas de imigração e colonização, teve como destaque, além da mudança da capital do estado, com construção iniciada em 1933 e localizada na região do Mato Grosso de Goiás,52 a aceleração do processo de ocupação dessa região do estado. O incremento populacional evidenciava o fluxo migratório. Os dados do censo de 1920 indicavam uma população natural do estado em torno de 99,3%, enquanto que os dados de 1940 mostravam que a população nativa era de 80,8%, com 19,2% de imi-grantes.53

Além da construção da nova capital, outros fatores contribuíram para o surto migratório em Goiás, como o estímulo dado pelo governo para a ocupação de terras devolutas. Em 1935, foi promulgada a Lei no 52, que concedia para as famílias numerosas que migrassem para Goiás benefícios assistenciais e lotes de terras de 25 hectares, que deveriam ser demar-cadas na região das Matas de São Patrício, na região do Mato Grosso de Goiás, no muni-cípio de Jaraguá, estrategicamente localizadas próximo aos trilhos da ferrovia em Anápolis. Segundo Campos, essa legislação não chegou a ser efetivamente regulamentada e aplicada na época, mas teve um papel fundamental na divulgação da política de imigração goiana. A notícia de que em Goiás o governo estava doando terras atraiu para a região um grande número de novos colonos, e o estado passou a ser visto como um novo eldorado.54

Mesmo com o afluxo migratório, o interventor federal, em relatório ao presidente da república (1930-1933), criticou a legislação em vigor (Lei no 124 de 1895), por considerá-la inadequada às condições do estado, que era obrigado a dispensar recursos para a execução

52 O Mato Grosso de Goiás era um grande enclave florestal composto por floresta tropical estacional e que se manteve preservada até as primeiras décadas do século XX. A preservação dessa área deveu-se, em grande parte, à atividade da pecuária, que viam nos campos de Cerrado as gramíneas necessárias para a atividade. O custo em desmatar áreas de florestas densas, como o Mato Grosso de Goiás, tornava-se economicamente inviável. No entanto, a partir da expansão da fronteira agrícola, sobretudo a partir do início da construção de Goiânia em 1933 e da chegada da ferrovia em Anápolis em 1935, ocorreu a ocupação e desmatamento dessa área. Ver: FAISSOL, Speridião. O “Mato Grosso de Goiás”. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); Conselho Nacional de Geografia, 1952; WAIBEL, Leo. Capítulos de geografia tropical e do Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Conselho Nacional de Geografia. Rio de Janeiro: IBGE, 1958; SILVA, Sandro Dutra e, 2013, op. cit.53 CAMPOS, F. Itami. 1985, op. cit.54 Idem.

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da colonização. Para tanto, solicitava mudanças na lei, que deveria estar mais adequada às condições regionais, eliminando “as pesadas obrigações que a legislação anterior impunha aos cofres públicos, [...] procurando estimular a formação de núcleos coloniais”.55 Em 1935, o sistema de vendas de terras devolutas foi modificado por meio do Decreto-Lei no 313 de 1 de agosto, minimizando os trâmites burocráticos, abolindo os títulos provisórios e facilitando a compra. Com a instalação do Estado Novo, em 1937, a política de imi-gração e colonização passou ao controle do governo federal. Entretanto, não ocorreram modificações na legislação de terras em Goiás, sendo que a regulamentação em vigor na época manteve-se até 1945.

Outro elemento importante na visualização do território e da expansão da fronteira é a forma como este território foi ocupado. O apossamento foi a forma comum de ocupação usada pelos senhores de gado e no desdobramento da frente agrícola, cuja atividade se ar-ticulava com a da pecuária. A Lei de Terras de 1850, proibindo o apossamento, pretendeu estabelecer a venda como único critério de aquisição da terra, contudo, pouco efeito produ-ziu. Alguns autores já expuseram as consequências desta exigência. Em Goiás a prática do apossamento da terra continuou, embora a legislação proibisse.56

Destaque-se que, na república, a Constituição de 1891 transferiu aos estados a condição de legislar sobre a terra, tornando os estados administradores de imensa extensão de terras públicas. Até quase a década de 1960, as administrações estaduais desconheciam a extensão das terras devolutas, não sabendo também a sua localização. Essa condição favoreceu a prá-tica do apossamento, permitindo a formação de latifúndios. Assim, “a maioria dos estabele-cimentos pecuários não estava ao abrigo de qualquer título, além da mera ocupação, sendo escasso o interesse e muitas as dificuldades para a aquisição do domínio de terras”.57

A partir dos anos 1930, passou a ocorrer um tipo de apossamento diferente, milhares de migrantes pobres se deslocaram, principalmente de Minas Gerais, para ocupar pequenos tratos de terra em Goiás. As condições oferecidas permitiram a continuação do que Leo Waibel chama de agricultura migratória: “derrubar e queimar as matas, usar a terra durante alguns anos e depois mudar-se para outra mata a fim de recomeçar o mesmo ciclo”.58

Os posseiros, após o desbravamento do Mato Grosso de Goiás, continuaram sua ca-minhada para o norte (Matas de São Patrício), onde foi implantada a Colônia Agrícola Nacional de Goiás (Cang, atualmente o município de Ceres), e seguiram ocupando e desma-tando o médio-norte e o norte goianos. Esses posseiros detinham 20,8% das propriedades

55 Ibidem, p. 105.56 Sobre as questões fundiárias em Goiás, ver: LUZ, Maria Amélia Alencar. Estrutura Fundiária em Goiás: Consolidação e Mudanças (1850 1910). Goiânia: ICHL UFG, 1982; AGUIAR, Maria do Amparo Albuquer-que. Terras de Goiás: estrutura fundiária (1850-1920). Goiânia, Ed. UFG, 2003.57 GUIMARÃES, Haroldo de Brito. O “Grilo” em Goiás: sua história, seus métodos e sua derrota. Revista de Direito, Goiânia, n. 9, 1973. p. 22.58 WAIBEL, Leo, op. cit., p. 335.

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em 1940, tendo a sua participação ampliada em 1950 para 28,4% das propriedades.59 Os posseiros, longe de uma economia de mercado, afastados dos mecanismos de poder, desco-nhecendo a legislação de terras e distantes dos aparelhos de Estado, foram paulatinamente ocupando o território.

Quando as estradas tornaram possível o mercado, aquelas terras “sem valor” passaram a ter preços. Os novos donos chegaram, com títulos fornecidos pelo Estado ou com documen-tos falsificados. A questão era definir quem era o dono: o posseiro que trabalhava a terra há tempos, mas que não tinha documento, ou o fazendeiro/grileiro titulado. Esta foi a questão política central em Goiás nos anos 1950.

A grilagem pode ser entendida como uma forma de ocupação da terra valorizada.60 A grilagem de terras, em Goiás, apareceu como fenômeno social nas décadas de 1940 e 1950, sobretudo a partir da construção de Brasília. Na região Norte houve maior incidência da grilagem, determinada quase que exclusivamente pela construção da rodovia Belém-Brasília. Na década de 1970, afirmou um senador, “temos quase que a metade do Estado atrofiado, sem nenhum desenvolvimento econômico, por culpa desses criminosos...”.61 Ele se referia à impossibilidade de o norte goiano (região acima do paralelo 13) receber os benefícios dos incentivos fiscais dados à Amazônia Legal. Não somente a região Norte foi objeto da ação dos grileiros. Anteriormente, também a região sul de Goiás foi campo de ação da grilagem.

No início dos anos 1950, os grileiros têm defensores em diferentes níveis da adminis-tração pública — juízes de direito, promotores públicos, deputados estaduais, delegados de polícia: “... nos anos de maior prosperidade, a grilagem chegou a representar uma potência dentro do Estado, com ideólogos que traçaram sua doutrina, intelectuais que defenderam suas ideias e parlamentares que adotaram suas posições”.62

No processo de ocupação, foram muitas as formas utilizadas por diferentes grupos para se estabelecer na terra. O que chama a atenção nessas ocupações são os recursos e meios uti-lizados pelas elites dominantes para controlar a terra e impedir o trabalhador de ter acesso a ela. No controle da terra, observa-se a utilização de uma “legislação impeditiva”, pois as exi-gências burocráticas de requisição de terras, os levantamentos e demarcações, dentre outras, além do preço, fizeram com que o acesso à terra fosse limitado aos senhores de gado, que assim expandiam seus rebanhos e suas terras. Além disso, o uso da violência sempre barrou o acesso à terra. A violência em diferentes formatos, dos capangas e mesmo da força pública, sempre esteve aliada às famílias dirigentes, senhores de terras e gado.

A prática da “grilagem” se tornou, a partir de um dado momento, uma forma efetiva de domínio da terra por setores dirigentes goianos. Embora sejam diversas as formas de ocu-

59 CAMPOS, Francisco Itami, 2012, op. cit.60 KOTSCHO, Ricardo. O massacre dos posseiros. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 97.61 BRASIL. Senado Federal. Benedito FERREIRA. O “Grilo” no Planalto. Discursos. Brasília: Senado Fede-ral, 1971. p. 43.62 GUIMARÃES, Haroldo de Brito, op. cit., p. 225.

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pação, dois atores merecem referência — o fazendeiro/coronel63 e o camponês. Ainda que a legislação exigisse a compra como forma de ocupação, ela própria estabelecia condições e exigências (burocracia e demarcações) para a ocupação por aqueles que já detinham a posse da terra, estimulando o latifúndio.

Quando a legislação e a burocracia não eram suficientes para reprimir o acesso à ter-ra, a violência era o recurso utilizado pelos latifundiários para reprimir a população que procurava um meio de sobrevivência nas terras devolutas. O movimento de repressão aos seguidores de Santa Dica, em 1925, por exemplo, evidencia a preocupação dos coronéis com camponeses e posseiros que participaram de um movimento de cunho messiânico em Goi-ás, movimento que teve relação com questões fundiárias. Desde 1923, a fama de Benedita Cipriano Gomes, uma jovem de 16 anos que teria ressuscitado, percorria o sertão goiano e reunia pessoas ao seu redor. Antes dos milagres de Santa Dica, codinome de Benedita, o vilarejo de Lagoa, próximo ao município de Pirenópolis, contava com apenas 12 casas. Em menos de dois anos a população do vilarejo subiu para mais de 500 pessoas e teve a visita, em média, de 60 mil romeiros.64

Santa Dica e os diqueiros, como eram conhecidos os seus seguidores, pregavam, além das curas e das questões religiosas, a posse coletiva da terra. Eles tentaram criar um reduto, que foi intitulado de República dos Anjos, onde a propriedade da terra era coletiva. Inicial-mente, Santa Dica e seus seguidores causaram problemas apenas para a Igreja Católica, por usurpar as funções clericais e desenvolver um catolicismo popular no interior de Goiás. O aumento populacional da República dos Anjos, no entanto, começou a perturbar setores do-minantes da sociedade, que acusavam Dica de se apossar de fazendas particulares e temiam que o reduto viesse a se tornar uma sociedade paralela, como aquela organizada por Antônio Conselheiro em Canudos, no sertão baiano.

No dia 10 de agosto de 1925, o governo do estado de Goiás aceitou a denúncia dos coro-néis de Pirenópolis e instalou um processo para julgar possíveis crimes e contravenções que o reduto poderia estar causando. Para a averiguação das acusações, foi decretada a prisão preventiva de Santa Dica. Quatro dias após a instalação do processo, 80 policiais foram ao reduto prender a milagreira, resultando em um conflito armado, com 11 mortes. O caso de Santa Dica envolveu dois elementos dominantes da sociedade goiana: a Igreja Católica e os grandes latifundiários. Tanto a usurpação das funções da igreja como as questões agrárias na “República dos Anjos” foram fatores que pressionaram o Estado a reprimir o movimento. A legislação vigente não permitia aquela aglutinação e temia o aumento daquele grupo. Em uma sociedade em que a violência era um fator cultural, o resultado obedecia à regra.

63 Em Goiás o termo fazendeiro muitas vezes é aplicado tanto ao agricultor quando aos criadores de gado. Em comparação com o uso do termo em outras regiões da América, a expressão “rancheiro” deveria ser a mais utilizada, pela vinculação desta com a atividade pecuária. Mas, tradicionalmente, aplica-se ao pecuarista o termo de fazendeiro, talvez por considerá-lo como proprietário de uma fazenda de gado.64 Ver: VASCONCELOS, Lauro de. Santa dica: encantamento do mundo ou coisa do povo. Goiânia: UFG, 1991.

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Os posseiros foram reprimidos de diferentes formas no acesso à terra. Nos muitos con-flitos de terras em Goiás, os posseiros tiveram contra si a força pública estadual, controlada pelos senhores de gado. Além disso, a ineficiência dos órgãos encarregados de controlar a terra pública desencadeou esse processo. Existia uma legislação de terras que não era apli-cada, existia um departamento de terras que não funcionava e a conivência das autoridades com a ação da “grilagem”.

Considerações finais

Como se formaram os latifúndios em Goiás? Esta foi a pergunta de um senador goiano, que ele mesmo respondeu, apresentando documentação da ação de políticos do estado. O senador concluiu afirmando: “as oligarquias mantêm-se no poder praticando influências, tomando terras, queimando ranchos, matando e expulsando posseiros, alargam desta forma seu poderio econômico”.65

A legislação de terras, Lei no 134, de 23/6/1897, e as que lhe substituíram são imprecisas quanto aos prazos e aos procedimentos para a legalização. No caso da lei de 1897, logo após a sua edição, muitas foram as críticas feitas por autoridades governamentais, contudo sem resultados práticos. Em 1904, em texto do Relatório da Secretaria de Obras Públicas do Estado de Goiás, a questão agrária reflete a dominação e a forma de apropriação das proprie-dades: “As terras do estado são em grande parte usufruídas por verdadeiros usurpadores que não se preocupam de legalizar os seus títulos.”66 Além da falha da legislação, a administração estadual não organizava o setor de venda da terra e nem controlava a sua ocupação. Uma resposta clara para a indagação do senador pode ser encontrada no relato da questão da terra que faz o governador Coimbra Bueno em 1949:

[...] O Regulamento de 1923 autorizava a venda de terrenos devolutos por meio de títulos provisórios, mediante a satisfação de precárias e insuficientes condições. Estabelecia a área de 15.000 hectares para máximo de venda [...]. A frouxidão do texto regulamentar, e a facilidade na expedição dos chamados títulos provisórios de domínio deram como resultado o seguinte: A maioria dos pretendentes requeria tratos enormes de terras, estimando sua área num mínimo possível e pagando o preço por esse mínimo. Recebia o título provisório, tomava posse de vastos latifúndios, e só requeria a medição quando as terras se valorizavam com a invasão de terceiros. A posse dessas vastas áreas permitia a seus titulares tornarem-se verdadeiros senhores

65 BRASIL. Senado Federal. Henrique Santilo. Goiás... terras, grilos e dólares. Discursos. Brasília: Senado Federal, 1981. p. 25.66 GOIÁS. Relatório da Secretaria de Obras Públicas do Estado de Goiás, ano 1904.

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feudais. Cobravam arrendamentos a pequenos lavradores que neles se fixassem, alienavam livremente tais terrenos e praticavam todos os atos de legítimos donos [...].67

As teses da “ficção geográfica” e da “fronteira da fronteira” relacionam-se com os debates da fronteira como um território e uma condição. Os elementos apresentados por Oliveira68 reforçam a falta de unidade e ao mesmo tempo os vazios administrativos, constituindo a fronteira goiana como um espaço ficcional. Já os argumentos de McCreery reforçam o isolamento, que, por sua vez, permite a emergência de estruturas próprias em decorrência dessa condição. Uma aproximação maior com a discussão de Hennessy e o contexto latino--americano, e, ao mesmo tempo, uma realidade distinta da concepção clássica da democrá-tica presente na tese de Turner. O historiador Arthur Lima de Ávila69 entende que a tese de Turner se fundamenta na existência de free lands no oeste, o que atraía colonos em busca de novas oportunidades. A relação entre sociedade e natureza na tese de Turner fundava as bases para a democracia americana. De acordo com Ávila:

[...] afastados da civilização e em contato com a natureza intocada (a wilderness), eles eram livres para perseguir a tão sonhada igualdade econômica e política — não existia nenhum entrave à ascensão do homem comum ao topo da pirâmide social, a não ser sua própria fraqueza. [...] Além disso a wilderness era responsável pela americanização do colono: sua identidade europeia era deixada para trás e ele renascia como o homo americanos, um novo ente cultural (eticamente europeu, mas culturalmente mestiço) completamente adaptado ao Novo Mundo. Era este choque dialético entre “selvageria” (o espaço natural) e “civilização” (o homem branco da fronteira — o pioneer) que surgia o excepcional regime democrático da América.70

A fronteira goiana, seja em relação ao espaço ficcional da região ou no distanciamen-

to e no isolamento em relação a outras regiões brasileiras, não foi um lugar que permitiu a emergência dos valores próprios da democracia. Ao contrário, fortaleceu os processos rela-cionais nos domínios do latifúndio. Tratava-se de uma dominação que se exercia não apenas na posse da terra, mas também nas relações sociais. Também, considerando a tese clássica de Martins,71 identificamos na fronteira goiana, a partir das relações fundiárias, os processos de desumanização do outro. Compreendemos, no entanto, que essa discussão não se encerra nos argumentos propostos neste artigo, na medida em que a temática aponta para assuntos variados que poderiam ser ainda mais bem explorados. No entanto, procuramos destacar

67 GOIÁS. Governador Coimbra Bueno, Mensagem à Assembleia Legislativa, 1949, p. 50.68 OLIVEIRA, Pedro Gomes, op. cit. 69 ÁVILA, Arthur Lima, op. cit.70 Ibidem, p. 85.71 MARTINS, José de Sousa. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Hucitec, 1997.

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os processos relacionais que envolviam a dominação fundiária na fronteira e a sua carga de violência (simbólica e real).

O isolamento da fronteira goiana, nesse sentido, vai além da ficção geográfica e os debates em torno do sentido da unidade territorial. Essa fragilidade territorial encontra amparo na tese de McCreery sobre a “fronteira da fronteira”. Nesse sentido, a pecuária não pode ser inter-pretada como a gênese da ritualização da violência, mas como uma condição de fronteira, na qual os criadores de gado eram os donos do poder. Essa ritualização da violência naturalizada constituía os traços culturais do ethos da fronteira em Goiás. Parafraseando Magalhães,72 em Goiás matar um boi no matadouro era tão natural quanto matar um sertanejo no cerrado.

A cattle frontier em Goiás se insere como um caminho interpretativo da relação entre história e natureza no Oeste do Brasil. Ela incorpora a cultura pastoril e os elementos do distante oeste que se relacionam com essa atividade, como o isolamento, a violência e a do-minação fundiária que marcavam a fronteira goiana. Muito mais do que apenas descrever a atividade pastoril, a fronteira do gado deve ser compreendida no conjunto de temas que os historiadores têm à sua disposição, seguindo as orientações deixadas por Donald Worster73 de que os desafios e as abordagens são imensos sob o céu do grande oeste.

Fontes documentais

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72 MAGALHÃES, Carlos Pereira, op. cit.73 WORSTER, Donald, op. cit.

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De las catacumbas a los últimos confines: violencia, sentido y representación en

los periplos del martirio*

Carlos Arturo Salamanca Villamizar

RESUMO Neste artigo proponho uma análise transversal das figuras do mártir e do martírio. Usando a noção de mediação, na primeira parte eu tento analisar o papel de liderança de represen-tações de martírio em práticas de memória durante a segunda metade do século XVI. Eu analiso algumas das condições que contribuíram para o surgimento de uma “cultura do martírio” e o papel da mediação nesta emergência. Na segunda parte, eu estudo como a (re) descoberta das catacumbas romanas abriu um campo de produção de significados em torno da figura do martírio. Na terceira parte, com foco na Companhia de Jesus, analiso algumas mediações pelas quais as representações do martírio transgrediram as fronteiras de igrejas e conventos para se projetar nas fronteiras de um mundo em plena expansão mundial.Palavras-chave: mártir; mediações; jesuíta; catacumbas romanas; missionário.

RESUMENEn este trabajo propongo un análisis transversal de las figuras del mártir y del martirio. Recurriendo a la noción de mediación, en la primera parte analizo el rol protagónico de las representaciones del martirio en las prácticas de la memoria durante la segunda mitad del siglo XVI. Analizo algunas de las condiciones que contribuyeron a la emergencia de una “cultura del martirio” y el rol de las mediaciones en tal surgimiento. En la segunda parte, estudio la forma en que el (re)descubrimiento de las catacumbas romanas, abrió un campo de producción de sentido en torno a la figura del martirio. En la tercera parte, centrándome en la Compañía de Jesús, analizo algunas mediaciones a través de las cuáles las figuras del martirio transgredieron las fronteras de iglesias y conventos para proyectarse a los últimos confines en un mundo en plena expansión.

* Versiones anteriores a este trabajo fueron presentadas en encuentros y seminarios en Bogotá (Centro Ático de PUJ, 2013), y Buenos Aires (Seminario General, IDAES, Universidad Nacional de San Martin, 2014). Agradezco a Germán Rey y a Guillermo Wilde por sus invitaciones, y a los participantes de dichas reuniones que con sus comentarios y preguntas me impulsaron a revisar parte de los argumentos. Agradezco a Simone diSanti y Stefano Costantini de Stephano Tours (www.stefanorometours.com) por haberme autorizado a uti-lizar sus fotografías (Figuras n. 5, 6,7,8)

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Palabras clave: mártir; mediaciones; jesuita; siglo XVI; misionero.

ABSTRACT This paper proposes a cross-sectional analysis of martyr and martyrdom. Through the notion of mediation, in the first part I analyze the leading role of representations of martyrdom in memory practices during the second half of the sixteenth century. I analyze some of the conditions that contributed to the emergence of a “martyrdom’s culture” and the role of mediation in such emergence. The second part studies how the (re)discovery of the Roman catacombs encouraged the production of meanings around the figure of martyrdom. In the third part, focusing on the Society of Jesus, I analyze a few instances of mediation through which the figures of martyrdom transgressed the boundaries of churches and convents to project themselves to the last frontiers of a world in full expansion.Keywords: martyr; mediations; Jesuits; sixteenth century; missionary.

***

Introducción

En su desarrollo, la investigación antropológica e histórica produce terrenos privilegiados de análisis y observación que resultan del entrecruce de variables espacio-temporales, y en los que es posible analizar fenómenos y dinámicas específicos. La historia, dice Rancière, está hecha tanto de hechos como de lazos que los vinculan.1 Tomadas como Grandes Aconteci-mientos, cuestiones como las “Guerras de Religión”, o el “Descubrimiento de América” han ido constituyéndose como unidades analíticas a partir del encadenamiento de acontecimien-tos y dinámicas, que permiten ciertos grados de coherencia y unidad. El “pasado histórico”, afirma White, “está hecho de acontecimientos discretos cuya facticidad ha sido establecida por deliberación y cuyas relaciones entre sí son más o menos contingentes”.2

Interesado en la violencia y sus representaciones, mi análisis se sitúa en la articu-lación contingente entre tres campos que, aunque cronológicamente coincidentes — segunda mitad del siglo XVI — han estado tradicionalmente escindidos: las guerras de religión, las políticas del martirio y las prácticas misionales. ¿Qué vínculos pueden establecerse entre las narrativas acerca de la muerte de los hugonotes de la San Bartolo-mé y de los misioneros muertos a manos de los infieles americanos?, ¿entre las prácticas discursivas en torno a las catacumbas romanas y a aquellos confines remotos en que la

1 RANCIÈRE, Jacques. Figuras de la Historia. Buenos Aires: Eterna cadencia, 2013 [2012].2 WHITE, Hayden. El pasado práctico. In: TOZZI, Verónica y LAVAGNINO, Nicolás. Hayden White, la escritura del pasado y el futuro de la historiografía. Buenos Aires: Eduntref, 2012. p. 19-40.

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sangre de jesuitas se convirtió en semilla de cristianos?, ¿entre las representaciones de la herejía y las de la infidelidad?

Este trabajo se sitúa en la línea de autores como Gruzinski quien, emprendiendo una lectura simultáneamente situada en los reinos europeos conquistados por la Reforma y la América española — México en particular — identificó, entre otros, un proceso simultá-neo y paralelo de iconoclastia: “en la Inglaterra de los Tudor se cubren las iglesias con cal”, afirma el autor, de la misma forma que “en México se habían blanqueado ya las pirámides”.3 Análisis transversales como éstos permiten ver la forma en que fueron resueltas contradic-ciones como la hostilidad hacia los ídolos y la predicación con imágenes, o la naturaleza de la separación efectuada entre la imagen misma como objeto de idolatría y la imagen como objeto de remembranza, recuerdo, y memoria.4 Reconociendo que las representaciones son significativas de formas específicas y en contextos determinados, el análisis transversal y multi-situado permite preguntarnos por los mecanismos de adaptación, negociación e in-terpretación a través de los cuales dichas representaciones son producidas una y otra vez.5

Recurriendo a la noción de mediación, en la primera parte analizo el protagonismo de las representaciones del martirio en las prácticas de la memoria durante la segunda mitad del siglo XVI. Analizo algunas de las condiciones que contribuyeron a la emergencia de una “cultura del martirio” y el rol de las mediaciones en tal surgimiento. En la segunda parte, me refiero a la forma en que el (re)descubrimiento de las catacumbas romanas, abrió un campo de producción de sentido en torno a la figura del martirio. Un descubrimiento del pasado que implicaba también su producción en los espacios de lo cotidiano del espacio misional, en las rutinas y en el lenguaje habitual de iglesias y conventos. En la tercera parte, centrándome en la Compañía de Jesús, analizaré algunas mediaciones a través de las cuáles las figuras del martirio transgredieron las fronteras de iglesias y conventos de la ciudad para proyectarse hasta los últimos confines en un mundo en plena expansión, no sin dejar de reconocer que entre aquellas regiones y las iglesias y conventos, los viajes se producía en varios sentidos.

Aunque centrado en las figuras del martirio, este artículo se inserta en un proyecto más amplio sobre violencias y prácticas discursivas. La figura del mártir, lejos de quedar res-tringida geográficamente al contexto europeo, transciende sus fronteras de la mano de las prácticas de misión de distintas congregaciones.

Así como había sucedido con las prácticas y los tropos de las representaciones geográficas y antropológicas de la alteridad de siglos precedentes,6 las experiencias de encuentro con el

3 GRUZISNKI, Serge. La guerra de las imágenes. De Cristóbal Colón a “Blade Runner” (1492-2019). México: FCE, 1994 [1990]. p. 72. 4 Ibid., p. 73.5 Cf. FREEDBERG, David. The hidden god: image and interdiction in the Netherlands in the sixteenth century. Art history, v. 5, n. 2, p. 133-153, 1982. p. 144.6 Cf. SALAMANCA VILLAMIZAR, Carlos A.. Saberes geográficos, tensiones de alteridad y teatros del mar-tirio en las cartografías jesuíticas del nuevo mundo. (en prensa, Revista Española de Antropología Americana).

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nativo americano y con el otro en general,7 son interpretadas permanentemente a través de marcos específicos de significación. En las representaciones que aluden a la figura del marti-rio en América se sintetizan algunas de tensiones políticas en las que la religión tiene un rol estructurante. A su vez, la experiencia americana incidiría en las representaciones en torno a las tensiones religiosas, en un movimiento dialéctico entre los discursos de la experiencia histórica y la experiencia histórica de los discursos.

Mediaciones de memoria y las narrativas del martirio

Durante la segunda mitad del siglo XVI europeo se llevó a cabo una notable producción de pinturas murales, mapas, breviarios, panfletos, martirologios y grabados fundamentales en las prácticas de la memoria de la época. Tal producción tendría por epicentro ciudades como Amberes, Roma y París, y estaría atravesada por circuitos de circulación a múltiples escalas entre archivos, talleres de grabadores, muros de iglesias e imprentas. Imágenes de di-ferente formato, tamaño, calidad y naturaleza circularían a través de misarios, biblias, cartas de oración, estandartes y libros.

En esta explosión iconográfica intervino un número creciente de dibujantes, grabadores, editores e impresores, respaldado por un también creciente número de Iglesias, monarquías y empresarios interesados en el emergente mercado editorial. Aunque no será objeto de este trabajo, no menos importante son las personas y colectivos a quienes, bajo la forma de testi-gos o audiencias, parecía dirigirse dicha producción con diversos propósitos e intereses.

A partir de mi investigación sobre prácticas comunicativas en contextos de violencia ma-siva, he reconocido la noción de mediación como propia de las prácticas de la memoria y del recuerdo. Bajo esta categoría incluyo aquello que otros autores han definido como “lugares”,8 “vehículos”,9 “artefactos”,10 “tecnologías”11 o “mecanismos”.12 Considero que estas denomina-ciones son insuficientes, entre otras razones, por focalizar la observación en una de las partes, por poner el acento en el medio o en su naturaleza, por no dar cuenta de las relaciones y de los vínculos que se establecen entre los agentes intervinientes, y por ignorar que la producción tie-ne un destinatario con el cual se busca, pretende o supone una relación o un vínculo especifico.

7 Cf. VILLAMIZAR, Carlos A. S. Herejes e infieles: imaginación etnográfica, experiencia histórica y prácti-cas comunicativas de la alteridad en la obra de De Bry. Revista Brasileira de História das Religiões, v. 7, n. 19, p. 91-106, 2014. 8 NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. Gallimard: París, 1984.9 RICŒUR, Paul. La Mémoire, l’Histoire, l’Oubli. París: Seuil, 2003. p. 47.10 LIFSCHITZ, Javier Alejandro; ARENAS GRISALES Sandra Patricia. Memoria política y artefactos cul-turales. Estudios Políticos, n. 40, p. 98-119, 2012.11 TILL, Karen. Artistic and activist memory-work: Approaching place-based practice. Memory Studies, v. 1, n. 1, p. 99-113, 2008.12 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. México: FCE, 2000.

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Tomando distancia de la lingüística estructural que aislaba el lenguaje de la realidad, del sujeto y de su dimensión intersubjetiva, Ricoeur afirmó que más que un objeto, el lenguaje es una mediación y que dicha mediación se da, al menos en tres instancias: del sujeto con la realidad, entre el sujeto y otro, y del sujeto consigo mismo.13 La idea de mediaciones permite incorporar al análisis las relaciones intersubjetivas de producción, circulación, negociación, y legitimación de discursos y representaciones, en situaciones y contextos específicos. La no-ción de mediación de memoria permite reconocer e integrar las diferentes instancias en las que personas y grupos establecen vínculos y relaciones en torno a prácticas como el recuerdo, la evocación y la conmemoración desde una perspectiva social. A su vez, permite incorporar tanto a los sujetos como a colectivos que, situados en los espacios intermedios y en las zonas de negociación, impulsan, diseñan, participan, y llevan a cabo estas prácticas. La amplitud de la categoría reside en la necesidad de señalar un conjunto de espacios/tiempo móviles en un campo constituido por un conjunto de nodos entre los cuales se establecen vínculos relacionales. La idea de mediación permite lecturas transversales de diferentes esferas tradi-cionalmente escindidas (lo artístico, lo político y lo social y lo religioso), y su vinculación con las demás esferas de la vida social, útiles para entender las formas en que se construye sentido y memoria. La noción de ‘mediaciones’ también abreva en las investigaciones sobre las performances del poder,14 y la teatralización de la política, que evidencian que el poder nunca es sólo una cuestión de fuerza, sino también de lenguajes y discursos.15

Las pinturas murales, los mapas, los breviarios, los martirologios y los grabados pueden ser analizados en tanto mediaciones porque en su producción, circulación y uso median narrativas, significados que crean relaciones sociales. Siguiendo a Freedberg veremos cómo los frescos, los grabados y las mediaciones de memoria que analizaremos no son resultado exclusivo de un acto individual sino más bien hacen parte de una cultura visual siendo fun-damental analizar los contextos en los que emergen y en los que se insertan.16

Ni verdaderas, ni transparentes ni puras, las mediaciones de memoria permiten observar tanto las características o la naturaleza de aquello que actúa como elemento mediador como las relaciones que se establecen entre los participantes. Aunque las mediaciones pueden ser reconocidas, descritas e identificadas en su especificidad, es preciso recordar que su natu-raleza, sus características y sus tramas de significación dependen de diversas articulaciones coyunturales, dinámicas y cambiantes; así, las mediaciones son simultáneamente “objeto” y “proceso”. Retomo aquí los estudios de las imágenes en relación con los contextos sociales

13 RICŒUR, Paul. La Mémoire, l’Histoire, l’Oubli, op. cit, p. 47.14 BALANDIER, Georges. Le pouvoir sur scène. París: Fayard, 2006 [1980].15 GEERTZ, Clifford. Negara. The Theater State in Nineteenth Century in Bali. Princeton: Princeton University Press, 1980.16 FREEDBERG, David. The hidden god: image and interdiction in the Netherlands in the sixteenth century, op. cit., p. 133-153.

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en los que emergen,17 su agencia,18 su ontología y algunas dimensiones de su poder,19 sus procesos interculturales y “mestizos” de constitución,20 sus apariciones e interpretaciones en contextos sociales particulares21 o sus continuidades en múltiples contextos históricos.22 Aunque en diálogo con las teorías de la comunicación y de las relaciones de poder en torno a la producción y la recepción de las imágenes, intento llevar aun más lejos el análisis para incluir las mediaciones en sus instancias de producción, circulación y consumo.

El martirio: el surgimiento de un “nuevo” género

La producción, uso y circulación de gramáticas, mapas, biblias y otras obras de carácter reli-gioso adquirió un gran impulso con la instalación de las primeras imprentas en Europa a finales del siglo XV, y ya para mediados del siglo XVI, la producción editorial se desarrollaba a una escala mucho mayor. Durante la primera mitad del siglo XVI las imágenes religiosas irían ad-quiriendo un sentido político como consecuencia de la Reforma y la Contrarreforma. El proceso doble y articulado de creciente politización de la religión y sacralización de la política a través de las imágenes tocaría su punto más alto durante la segunda mitad del siglo XVI con las confron-taciones entre católicos y protestantes, durante las llamadas Guerras de Religión (1562- 1598).23

En dicho contexto, adquirió un lugar preponderante el martirio en tanto práctica en la que los mártires son reivindicados como actores e instrumentos de la imitación de Cristo. La emergencia de los martirologios se produjo de manera articulada a una serie de profundas transformaciones en las artes de la memoria y su relación con la violencia y su representación. Entre sus antecedentes se encuentran imágenes y pinturas referidas a temas provenientes de leyendas medievales como la joven Úrsula martirizada por los hunos y a acontecimientos de tenor hagiográfico como la masacre de los Santos Inocentes (Figura n. 1).

17 FREEDBERG, David. The hidden god: image and interdiction in the Netherlands in the sixteenth century, op. cit., p. 133-153; BEZERRA DE MENESES, Ulpiano. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, v. 23, n. 45, p. 11-36. 2003; CHALFEN, Richard. Photography. In: LEVINSON, David; EMBER, Melvin (Eds.). Encyclopedia of Cultural Anthropology. Nova York: Holt, 1996, n. 3, p. 926-31.18 GELL, Alfred. Art and agency. An Anthropological Theory. Oxford: Clarendon Press, 1998.19 FREEDBERG, David. The power of images. Studies in the History and Theory of Response. Chicago: University of Chicago Press, 1989.20 GRUZINSKI Serge. La Pensée métisse. París: Éditions Fayard, 1999.21 CHRISTIAN, William. Apariciones en Castilla y Cataluña (siglos XIV-XVI). Madri: Editorial Nerea, 1990; CHRISTIAN, William. Local Religion in Sixteenth-Century Spain. Princeton: Princeton University Press, 1989.22 BELTING, Hans. The End of the History of Art?. Chicago: The University of Chicago Press, 1987.23 BERCHTOLD, Jacques; FRAGONARD, Marie-Madeleine (Ed.) La mémoire des guerres de Religion. La concurrence des genres historiques, XVIe-XVIIIe siècles. Actes du colloque international de Paris. (15-16 novembre 2002) Genève: Droz, 2007. JOUANNA, Arlette et al. Historie et dictionnaire des guerres de religion. París: Laffont, 1998.

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Figura n. 1 Matanza de los Inocentes, SF.

Este grabado ha sido atribuido a Marco Dente (1490-1527) quien lo habría elaborado a partir de una obra de Baccio Bandinelli (1493-1560).

Fuente: The Metropolitan Museum of Art.Número de acceso: 49.97.618, The Elisha Whittelsey Fund, 1949. (http://www.metmuseum.org)

Autores como Lestringant y Moireau han reconocido al martirologio como una puesta en escena polisémica que combina el rito judicial, el espectáculo público y el acto religioso; un dispositivo teatral que toma sus referentes del rito judicial del interrogatorio y del rito es-pectacular de los juegos de circo de la Roma imperial.24 En este acto comunicativo el mártir ‘habla’ a Dios, al público, a sus victimarios, a sus pares (a otros que murieron como él, a otros que morirán como él) a quienes se une por el mismo acto, constituyendo una comunidad en torno al acontecimiento.

Las prácticas comunicativas en torno al martirio retoman varias características de las prácticas de la memoria de las épocas clásica y medieval. Entre ellas, el arte de la memoria como un conjunto de repertorios de técnicas y ejercicios de ampliación y profundización de la memoria, los mapas y representaciones cartográficas como lugar de inscripción del cono-

24 LESTRINGANT, Frank; MOREAU, Pierre-François. Ouverture. Revue de Sciences Humaines, n. 269, p. 7-13, 2003.

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cimiento sobre el mundo y síntesis de dicho conocimiento, y la noción de teatro, en tanto dispositivo de visualización, de puesta en escena y de noción de un orden y un repertorio de relaciones existente.25

A estas características se suman otras como la circulación de narrativas e imágenes que van y vienen entre los muros y las fachadas de conventos e iglesias, los grabados de los mar-tirologios, y un sinnúmero de publicaciones religiosas como misarios, las semblanzas, cartas de oración que, entre otros, circulaban a través de los mismos peregrinos (Freedberg 1983, p. 41). Asimismo, es pertinente citar la forma en que las escenas del martirio ganan una vi-sibilidad pública inédita contribuyendo eficazmente a la creación de nuevas audiencias. Por último, la coexistencia de narrativas en tensión e incluso opuestas y en conflicto con propó-sitos didácticos y ejemplarizantes como consecuencia de la Reforma protestante.

Aunque se manifiesta en diferentes partes de Europa, la “explosión” en las representacio-nes del martirio tiene como epicentro los reinos de Inglaterra y Francia, y algunas obras icó-nicas. Del lado protestante sobresalen el Libro de los Mártires,26 y los 40 Cuadros,27 mientras que del lado católico, vale la pena subrayarse Le Thêatre des Cruantés.28 Estos martirologios fueron precedidos por obras como las Actes de Martyrs.29

Aspectos particulares como las figuras retóricas de las representaciones del martirio uti-lizadas por católicos y protestantes en el contexto de las guerras de religión ya han sido analizados en otra parte; a efectos de introducir el análisis que realizaremos me limitaré a subrayar algunos elementos. Estas mediaciones, al mismo tiempo que registran, narran y re-presentan la crueldad y el heroísmo, establece unos “otros” y un “nosotros” entre los que se establece una guerra de imágenes por la legitimidad religiosa. Segundo, una pieza clave del dispositivo representacional del martirio tiene que ver con la forma en que son interpeladas las audiencias. En algunos casos apelando a la pasión colectiva y a la identificación entre el mártir y el lector-espectador e insertando las imágenes en estrategias en las que se interpe-lan las pasiones populares. En otros, sugiriendo un distanciamiento como condición para el acercamiento a la verdad histórica. Tercero, atravesado por la representación, el martirio no es una práctica discursiva, el mártir no es el único que habla ni el habla es la práctica preponderante en esta performance del espectáculo, pues existen múltiples tensiones entre

25 SALAMANCA VILLAMIZAR, Carlos S. “Religión, política y espectáculo: narrativas del martirio en la primera modernidad”, 2015, mimeo. 26 FOXE, John. The Unabridged Acts and Monuments Online. 1576 [1563]. Sheffield: HRI Online Publications, 2011. URL: <http//www.johnfoxe.org>. Consultado: 9-12-2013.27 PERRISSIN, Jean; TORTOREL, Jacques. Premier volume contenant quarante tableaux ou Histoires diverses qui sont mémorables touchant les Guerres Massacres et Troubles advenus en France en ces dernières années. Le tout recueilli selon les témoignages de ceux qui y ont été en personne, et qui les ont veus, lesquels sont pourtrais à la vérité. S/E, S/F. 28 VERSTEGAN, Richard. Théâtre des cruautés des hérétiques de notre temps. Paris: Editions Chandeigne, 1995 [1557]. URL: <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1040506g>. Consultado: 12-3-2014.29 CRESPIN, Jean. Actes de Martyrs, S/E, 1554.

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quienes observan y son observados y a su vez entre quienes producen, observan e interpretan las pinturas, los grabados y las imágenes.

Jubileo, inframundo y la figura del martirio

(re)descubriendo el martirio

Durante la segunda mitad del siglo XVI, uno de los terrenos en los que se disputaba la legitimidad entre católicos y protestantes era la nitidez del vínculo que unía a unos y otros con la iglesia originaria. En Roma éste interés se dirigió a los primeros mártires, a sus reli-quias y a sus restos. En ese marco, las catacumbas se constituyeron como uno de los lugares más significativos, bajo la idea de haber sido escenario de refugio de los primeros cristianos frente a las persecuciones de ocho emperadores consecutivos desde Nerón hasta Juliano.30 Comprometido con el cumplimiento de las conclusiones del Concilio de Trento, Gregorio XIII (1572-1585) emprendió una renovación moral de la iglesia de la que es pertinente sub-rayar dos elementos. Por una parte, la institucionalización y formalización de la preparación de sacerdotes y misioneros, concretizada en la creación de colegios y seminarios y en su racionalización y centralización en seminarios.31 Por otra, el despliegue y uso de la cultura del martirio32 materializándose en un interés por los lugares de los mártires que generaría un número creciente de excavaciones en busca de las catacumbas.33 Aunque la Roma sub-terránea operó como un verdadero epicentro, en varias ciudades europeas el martirio hacía parte de un verdadero air du temps. En Amberes por ejemplo, los mismos altares que hacían referencia al martirio y que décadas atrás habían enfrentado una severa ola de iconoclastia, empezaron a ser restaurados a partir de la década de 1560.34

La empresa arqueológica se propuso demostrar la antigüedad del Cristianismo y tuvo como protagonistas a Antonio Bosio (1575-1629), “padre de la arqueología cristiana” y al florentino Felipe Neri (1515-1595), “apóstol del Roma”, quienes no sólo impulsaron el culto

30 No obstante, señala Osborne, las catacumbas fueron mucho más que un refugio y, al menos hasta el siglo VIII, un espacio social integrado a diferentes prácticas religiosas; de hecho, afirma el autor, el proceso de decline de las catacumbas no empezó sino en el siglo VIII. Cf. OSBORNE, John. The Roman Catacombs in the Middle Ages. Papers of the British School at Rome, n. 53, p. 278-328, 1985.31 RICHARDSON, Carol. Durante Alberti, the Martyrs’ Picture and the Venerable English College, Rome, Papers of the British School at Rome, n. 73, p. 223-263, 2005. p. 223.32 OSSWALD, Cristina. A iconografia do martírio na Companhia de Jesus entre os sécs. XVI e XVIII. Re-vista Portuguesa de Filosofia, n. 65, p. 1301-1313, 2009. p. 1302.33 Acerca del lugar de las imágenes en el culto a los santos, las reliquias, como resultado de los decretos del Concilio de Trento. Cf. FABRE, Pierre Antoine. Décréter l' image ? La XXVème session du Concile de Trente dans le texte. París: Les Belles Lettres, 2013.34 Cf. FREEDBERG, David. The Representation of Martyrdoms during the Early Counter-Reformation in Antwerp. Burlington Magazine, v. 876, n. 118, p. 128-138, 1976.

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a los mártires y las reliquias35 sino que trabajaron en la documentación de los murales y de las catacumbas.36 El hallazgo de la primera catacumba el 31 de mayo de 1578 constituiría la oportunidad de reconstituir el vínculo con la iglesia originaria, exaltar la veracidad de la doctrina derivada de su continuidad histórica y así, oponerla a las posiciones protestantes. En este marco, las sepulturas fueron declaradas “verdaderas”, las catacumbas, “evidencia de la vigorosa persistencia de la iglesia”, y el pasado cristiano “poderoso portador de salvación”.37 El hallazgo/producción de esta geografía sagrada convertiría a la ciudad en lugar de encuen-tro con los más altos misterios de la fe, reforzando su condición de lugar de peregrinación; en estos años en los que además se difunden las traducciones de la ‘Historia de Roma’ de Apiano y sus historias de las persecuciones,38 los antiguos mártires nuevamente ungidos, se convertían en respuesta adecuada a las teorías protestantes.

El cardenal Cesare Baronio (1538-1607) fue una figura central en la promoción de una serie de políticas culturales cuyo eje principal era el martirio.39 Entre 1588 y 1607, Baronio elaboró una obra monumental de la historia de la iglesia cristiana en 12 tomos — los Anales Eclesiáticos — en respuesta a Las Centurias de Magdeburgo (1559-74) que declaraban la Igle-sia Católica como contraria a la verdadera doctrina. Al cardenal también le fue confiada la revisión del Martirologio Romano por Gregorio XIII; Baronio publicó una primera versión en 1586 y una segunda, corregida, en 1589. Asimismo, impulsó la restauración de varias iglesias y la preservación de los monumentos de la antigua Roma como evidencia de los mi-lagros, martirios y otros eventos memorables del Cristianismo. Bajo su égida se restauraron, entre otros, la iglesia de los Santos Nereo y Aquileo, cuyas actas de martirio, de acuerdo a Rodríguez de Cevallos,40 habían sido exhumadas y publicadas por el mismo Baronio. Sus iniciativas fueron reafirmadas por algunos de los Papas que siguieron a Gregorio XIII, espe-

35 MONTORO CASTILLO, Mónica. 2008. Los oratorianos de San Felipe Neri y los inicios de la arque-ología cristiana. CuPAUAM, n. 34, p. 147-154. 36 OSBORNE, John. The Roman Catacombs in the Middle Ages, op. cit., p. 312. Aunque brevemente, sub-rayemos que esto constituye el indicio de una tendencia — creciente durante el siglo XVII en particular entre los jesuitas, de un movimiento articulado entre la interpretación simbólica y la investigación empírica. Como afirma Dekoninck, el emblemista va a tomar prestadas deducciones y observaciones de la historia natural, mientras que el científico, después de sus escrupulosas deducciones, estaría presto a proponer interpretaciones que habilitaran enseñanzas morales o religiosas. Uno y otro son dos dimensiones de un mismo proceso. Para un ejemplo ilustrativo de lo anterior, ver Figura no. 9. Cf. DEKONINCK, Ralph. Imaginar la ciencia: la cultura emblemática jesuita entre ars rethorica y scientia imaginum. In: CHINCHILLA, Perla; ROMANO, Antonella (Coord.). Escrituras de la modernidad. Los jesuitas entre cultura retórica y cultura científica. Ciudad de México: Universidad Iberoamericana, 2008, p. 143-160. p. 145.37 LABROT, Gérard. L’ image de Rome: une arme pour la Contre-Réforme, 1534-1677. París: Champ Vallon, 1987. p. 77-80.38 EHRMANN, Jean. Massacre and Persecution Pictures in Sixteenth Century France. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, n. 8, p. 195-199, 1945.39 RODRÍGUEZ G. DE CEBALLOS, Alfonso. El mártir, héroe cristiano. Los nuevos mártires y la represen-tación del martirio en Roma y en España en los siglos XVI y XVII. Quintana: Revista de estudios do Departa-mento de Historia da Arte, n. 1, p. 84-99, 2002. p. 91.40 Ibid., p. 92.

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cialmente Sixto V (1585-1590) y Clemente VIII e incorporadas en el conjunto de acciones que habían sido previstas para la celebración del Jubileo en 1600.

En un contexto en el que su sacralidad venía siendo cuestionada por la doctrina pro-testante, las políticas espaciales del martirio se desplegaron sobre la sacralidad indiscutible de una geografía subterránea que permitía postular la sacralidad de la geografía católica en general, compuesta de iglesias, objetos e imágenes y reliquias, integrados ahora en una uni-dad, en un todo constituyente. En las catacumbas la Iglesia no encontró solamente rastros de un pasado glorioso, también las claves de un futuro trascendente. La magnificencia de los espacios del ayer exigía una magnificencia equivalente en los espacios de la religiosidad del presente, una correspondencia que operaría como cimiento y cemento de los proyectos arquitectónicos y urbanos impulsados por Sixto V.41

La emergencia de la sacralidad de espacios y objetos como condición “verdadera” explica la importancia que martirologios católicos como el de Verstegan42 atribuían a la figura de la profanación. Llevadas a cabo por los protestantes, las prácticas de profanación de imágenes y templos eran sumergidas en un campo de significación mayor en el que se postulaba, de manera implícita, que las profanaciones se ejercían contra una unidad compuesta tanto de los espacios sagrados de los primeros mártires como de las imágenes e iglesias del presente. Frente a la evidencia de las catacumbas, el cuestionamiento a la sacralidad de los símbolos adquiriría nuevos sentidos.

Con la celebración del Jubileo, bajo el mandato de Clemente VIII, se emprendió la reno-vación de varias iglesias en Roma con un plan iconográfico en el que tuvo un rol importante la exaltación del martirio de los más grandes santos de los primeros siglos. Con este criterio fueron renovadas las iglesias de los Santos Nereo y Aquileo (1600), San Apolinar (1580-1588), San Stefano Redondo (1582) y la iglesia de San Vitale (1596 -1603) cuya fachada, de acuerdo a Rodríguez de Cevallos43 fue decorada con instrumentos de martirio.

Una de las características del conjunto de obras realizado en cumplimiento de este plan iconográfico fue el contraste retórico. Entre otros, este contraste se lograba ya asociando su-jetos y objetos de naturaleza diferente (ángeles cargando instrumentos de tortura) ya, opo-niendo la forma (empleo de luces neutras, colores pastel, claros y suaves, formas armoniosas) al fondo (la crueldad, lo truculento, ver Figura n. 2). Más que la santidad de los ángeles o lo horrendo de los instrumentos de tortura, con el contraste y la oposición se propone un tercer mensaje: la dimensión sagrada del martirio, su aceptación como un destino divino.

A través de la representación combinada de escenarios, objetos y protagonistas, las imá-genes evidencian una tortura institucionalizada por el aparato disciplinario del Imperio Ro-mano. La máquina empleada, las autoridades intervinientes y el personaje oficiante, dan

41 LABROT, Gérard. L’ image de Rome: une arme pour la Contre-Réforme, 1534-1677, op. cit., p. 77.42 VERSTEGAN, Richard. Théâtre des cruautés des hérétiques de notre temps, op. cit.43 RODRÍGUEZ G. DE CEBALLOS, Alfonso. El mártir, héroe cristiano. Los nuevos mártires y la represen-tación del martirio en Roma y en España en los siglos XVI y XVII, op. cit., p. 89.

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cuenta de prácticas de tortura que se llevan a cabo con técnicas establecidas y un orden cere-monial. Aunque en un segundo plano, la escena de tortura es dominada por un ángel “testi-go” en la parte central superior; a los costados, dos querubines simulan sostener el retablo. La coexistencia entre personajes profanos y sagrados sugiere la sacralidad del acto de martirio dando lugar a una realidad en la que coexisten lo visible y lo invisible, lo trascendente y lo terreno. El conjunto se ubica en un escenario interno rodeado por una columnata; a lo lejos, se dibuja la silueta de la ciudad, entre el interior y el exterior, la muchedumbre encabezada por notables se suma como testigo al espectáculo.

Figura n. 2Tortura de San Vitale. “S Vitalis. Equuleo Torquetur”

Agostino Ciampelli (1562-1630). Basílica de San Vitale, Roma, 1595.

El fresco ‘El Martirio de Bartolomé’ (Figura n. 3) me permite señalar una segunda ca-racterística que Freedberg44 refiriéndose a obras similares, ya había identificado. La presencia de significados implícitos, escondidos o subconscientes. Aunque ‘El Martirio de Bartolo-mé’, es una expresión más de la célebre escena, representada varias veces, del santo siendo desollado, también hace referencia a otro evento de la realidad más cercana para el obser-vador contemporáneo a la realización de la obra. El evento en cuestión tuvo lugar, apenas unos años antes a la elaboración de la pintura en el famoso cerco de la ciudad chipriota de Famagosta, hasta entonces en manos venecianas, por parte de un ejército otomano bajo las

44 FREEDBERG, David. The hidden god: image and interdiction in the Netherlands in the sixteenth century, op. cit., p. 143.

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órdenes de Mustafa Bashaw. En 1571, rompiendo los términos establecidos para la rendición de Famagosta, Mustafa ordenó desollar vivo y martirizar al comandante veneciano de la for-taleza, Marc Antonio Bragadino, y a todos los cristianos que permanecían en la ciudad.45 El vínculo entre los dos episodios que se efectiviza mediante la obra puede establecerse en razón de las similitudes en las formas del martirio (Bartolomé y Bragadin siendo desollados), la actitud de los sufrientes (abnegación, valentía, fe), la violencia como espectáculo público y su representación, y la confrontación entre cristianos e “infieles” representados en el personaje situado a la izquierda del protagonista.

Figura n. 3El Martirio de San Bartolomé.

“Il Pomarancio”. Iglesia de Nereo y Aquileo, Roma, 1580.

45 Cf. RALSTON CAWLEY, Robert. George Gascoigne and the Siege of Famagusta quick view. Modern Language Notes, v. 43, n. 5, p. 296-300, 1928. p. 299; Ver también PARUTA, Paulo. The history of Venice; likewise the wars of Cyprus, wherein the famous sieges of Nicossia, and Famagosta, and Battel of Lepanto are contained. SF. p. 126. URL: <http://quod.lib.umich.edu/e/eebo/A56527.0001.001/1:8?rgn=div1;view=fulltext>. Consultado: 24-03-2015.

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Siguiendo a Turner,46 Freedberg afirma que “los significados latentes — y hasta cierto punto los ocultos — de un signo dominante” en un contexto pueden ser descubiertos a partir de la exégesis de su significado en otro”.47 Podríamos decir entonces que un cristiano víctima en Famagosta de la sevicia de los infieles, más que el martirio de San Bartolomé, es lo que ve el observador. Sin embargo, otra interpretación puede proponerse. Un suceso de conocimiento público del pasado reciente, mediante los juegos de las temporalidades, es puesto en relación con un acontecimiento — sagrado — de la historia profunda (los infortu-nios de Bartolomé), y el santo y el comerciante pasan a un segundo plano como si al adquirir un sentido trascendente se evaporasen. Mediante esos juegos, Bragadino se refleja en Bar-tolomé, adquiriendo profundidad histórica y dotando de identidad mística su desventura, y aquél en éste, postulando su pertinencia para entender los acontecimientos del presente. El cuadro pues, no es acerca de un hombre siendo desollado; es sobre la continuidad histórica de las formas del martirio, sobre el martirio como práctica religiosa trascendente y la identi-dad entre términos al interior de una relación estructural:

INFIELES : MARTIRIO : SAN BARTOLOMÉ :: BRAGADINO : MARTIRIO : INFIELES.

Contraste retórico, carácter institucionalizado de la tortura, ubicación a medio cami-no entre la representación de lo real y la representación de las alegorías, mensajes cifrados, juegos de las temporalidades son cinco características del conjunto de obras realizados en cumplimiento del plan iconográfico promovido por Baronio. En Roma, en la última década del siglo XVI, además de la celebración del Jubileo en 1600, en este conjunto de obras influ-yó el entusiasmo por los mártires y la figura del martirio. Nos referiremos ahora a algunos ejemplos del género específico del martirio.

El ciclo de los mártires

Durante la segunda mitad del siglo XVI, la expansión de la industria editorial generó una distribución cada vez más amplia de obras clásicas, atlas, y textos religiosos que poco a poco transgredió los límites tradicionales de circulación, restringida a la nobleza y al clero. Como vimos, la Reforma Protestante y las disputas por la supremacía religiosa generaron numerosas tensiones y conflictos. En este marco se publicaban obras como las de Acosta48 y

46 TURNER, Victor. La selva de los símbolos. Buenos Aires: Siglo XXI, 1999.47 Cf. FREEDBERG, David. The hidden god: image and interdiction in the Netherlands in the sixteenth century, op. cit., p. 133-153.48 ACOSTA, José de. Historia natural y moral de las Indias. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 1999 [1590].

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De Las Casas49 en las que, entre muchos otros aspectos, se planteaba el tema de la naturaleza de la violencia. Las discusiones metafísicas del Descubrimiento, los conflictos por la hege-monía religiosa y la expansión de la cultura del martirio, configuraron un escenario en el que visiones contrapuestas del mundo estaban en disputa y en el que las políticas del martirio ocupaban un lugar fundamental.

Las representaciones del martirio habían sido incorporadas al proceso formativo de los novicios con una voluntad pedagógica y ejemplarizante. La intensidad con la que este tipo de espacios fueron edificados hace recordar el impuso que la actividad edilicia adquirió durante el pontificado de San Pascual (817-824)50 en que se produjo un traslado masivo de reliquias desde las catacumbas y se realizaron algunos murales concernientes al martirio presumible-mente para celebrar tal evento (Osborne 1985, p. 293).

Ubicados en forma de murales en conventos e iglesias, las representaciones del marti-rio transformaban el espacio cotidiano de aislamiento, educación y ejercicios espirituales. Efectivamente, la Compañía de Jesús, creada apenas unas décadas antes (1539), tuvo un gran protagonismo en la consolidación de la “cultura del martirio”. Durante las dos últimas décadas del siglo XVI, bajo la égida jesuita al menos siete ciclos de mártires serían realizados en iglesias romanas. En 1582 por ejemplo, los jesuitas húngaros encargaron a tres artistas, los italianos Niccolò Circignani, Mateo de Siena y Antonio Tempesta, la intervención de la iglesia de San Stefano Redondo en Roma, apenas tres años después de haber sido sucedido a los padres paulinos en la administración del lugar. En 1580 el Colegio Húngaro se fusionó con el Germánico, para acoger a novicios de diferentes regiones del por ese entonces convul-sionado imperio austrohúngaro. La elección de los lugares en los que se ubicarían tales re-presentaciones dialogaba con una geografía marcada por actos de consagración; San Stefano Redondo había sido edificada en el lugar de una iglesia cristiana primitiva construida en el Siglo IV en honor a San Esteban, primer mártir cristiano. Desde el siglo VII en que, como se anotó, muchas reliquias y restos fueron trasladados de las catacumbas a las iglesias, la iglesia albergaba los restos de los proto-mártires Primo y Feliciano.51

49 DE LAS CASAS, Fray Bartolomé. Breve relación de la destrucción de las indias occidentales. México: Onti-veros, 1822 [1552].50 OSBORNE, John. The Roman Catacombs in the Middle Ages, op. cit., p. 292.51 Sitio internet de la Iglesia de San Stefano Redondo. URL: <http://www.santo-stefano-rotondo.it/index.php?option=com_content&view=article&id=1&Itemid=5&lang=it>. Consultado: 17-03-2015. Ver también OSBORNE, John. The Roman Catacombs in the Middle Ages, op. cit., p. 286. Una selección de imágenes de los frescos puede ser vista aquí. Fotos: <http://panoramy.zbooy.pl/gallery/rzym-santo-stefano-roton-do-3/20120224-124624-4495-raw5d.jpg/e>. Consultado: 2-04-2015.

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Figura n. 4Iglesia de Santo Stefano Rotondo, Planta y elevación del edifício.

La planta del edificio, de tres círculos concéntricos, evoca la basílica del Santo Sepulcro de Jeru-salén. Posee una columnata circular de 22 columnas jónicas. El conjunto está dominado por un

altar central en recuadro octagonal sobre el que se representan episodios de la vida de san Esteban, obra de Niccolò Circignani, llamado Il Pomarancio (1517-1596).

Fuente: Arquitectura Paleocristiana.52

En el muro envolvente del ambulatorio, Circignani elaboró un conjunto de treinta y un frescos, cada uno encuadrado por columnas de ladrillo (Figuras n. 5 y n. 6). “El ciclo de los Mártires” representa diferentes escenas de martirio ocurridas a lo largo de 400 años del Cristianismo, el todo presidido por la imagen de Cristo en el Calvario.53 En 1584 Tempesta realizaría otros dos frescos complementarios, el primero hacía alusión a la masacre de los inocentes, el segundo a la virgen de los dolores. El conjunto de los frescos permitía incorpo-rar las historias de los mártires en las oraciones y meditaciones de los novicios constituyendo el escenario de prácticas de la memoria del martirio. A través de la evocación de los sufri-mientos soportados en el nombre de Cristo, las obras pretendían preparar a los novicios para

52 URL: <http://architetturapaleocristiana.blogspot.com.ar/2012/09/la-chiesa-di-santo-stefano-rotondo.html>. Consultado: 2-04-2015.53 RODRÍGUEZ G. DE CEBALLOS, Alfonso. El mártir, héroe cristiano. Los nuevos mártires y la representa-ción del martirio en Roma y en España en los siglos XVI y XVII, op. cit., p. 91.

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su misión de evangelización54 en un contexto en el que la ampliación del mundo a través de la expansión europea del siglo XVI daba lugar a una apertura mundial del campo misional y en el que el martirio ocupo un lugar protagónico.55

Figuras n. 5 y 6Iglesia de San Stefano Rotondo, 2015. Roma.

Foto: Simone diSanti, The Stefano Rome Tours Team.

Cada una de las pinturas de San Stefano Redondo representa un mártir o un grupo de mártires; en la parte inferior está acompañado de la descripción en latín e italiano de la forma en que el o los mártires fueron torturados, en qué circunstancias, cuándo y bajo el dominio de qué Emperador. La dimensión pedagógica del martirologio teatral fue comple-mentada con letras en los frescos que orientaban la lectura y la interpretación (Figuras n. 7 y 8). El martirologio de San Stefano se vincula con los ejercicios espirituales de Loyola entre los que se destacan la “composición del lugar” como parte de la meditación espirituales y el drama como herramienta educativa de los novicios.56

54 MONSSEN, Leif Holm. Rex Gloriose Martyrum: A Contribution to Jesuit Iconography. The Art Bulletin, v. 63, n. 1, p. 130-137, 1981.55 JACQUELARD, Clotilde. Une catastrophe glorieuse: le martyre des premiers chrétiens du Japon, Nagasa-ki, 1597. e-Spania, n. 12. 2011. URL: <http://e-spania.revues.org/20808>. Consultado: 21-10-2013.56 ORDIZ VÁZQUEZ, Francisco Javier. El ‘triunfo de los santos’ y el teatro jesuita del siglo XVI en México, Anales de literatura hispanoamericana, n. 18, p. 19-28, 1989. p. 20.

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Figuras n. 7 y 8Iglesia de San Stefano Rotondo, 2015. Roma

Foto: Simone diSanti, The Stefano Rome Tours Team

Siguiendo el orden de los martirios expresados en el ciclo de frescos del ambulatorio circular, el rito litúrgico termina en un mural localizado cerca de la puerta de la iglesia; un final de puntos suspensivos que sugiere a los novicios sumarse a la gloriosa sucesión de san-tos. ¿Hacia dónde irían los nuevos misioneros? Al dejar San Stefano Redondo, los novicios sabían que su nueva vida “posiblemente terminaría en un martirio similar al de los primeros cristianos”.57 Otra pista puede encontrarse en Sanguinis martyrorum semen Christianiorum, una completa enciclopedia de jesuitas martirizados, organizada por continentes e ilustrada con 169 imágenes de escenas de martirio.58 La imagen (Figura n. 9) muestra la naturaleza de las batallas que enfrentaron los soldados de la Compañía al asumir al mundo entero como escenario de sus batallas, y a los infieles y a los herejes como sus enemigos.

57 NOREEN, Kirstin. Ecclesiae militantis triumphi: Jesuit Iconography and the Counter-Reformation. The Sixteenth Century Journal, v. 29, n. 3, p. 689-715, 1998. p. 697.58 OSSWALD, Cristina. A iconografia do martírio na Companhia de Jesus entre os sécs. XVI e XVIII, op. cit., p. 1305.

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Figura n. 9Sanguinis martyrorum semen Christianiorum

La sangre de los mártires es la semilla de los cristianos. Grabador: Mathias Küssel

Se observa un jardín espiritual con cruces cuidadas floreciendo en el jardín y en la copa de los ár-boles, regadas con la sangre de los mártires jesuitas por asistentes espirituales. En la parte superior,

un jesuita enarbola un libro, símbolo de la ciencia. Dromedarios y elefantes situados en la parte inferior y acompañados de un hombre con turbante y atuendos “orientales”, sugieren la dimensión

universal de la empresa del martirio.

Fuente: TANNER, Mathias. 167559

59 Societas Jesu usque ad sanguinis et vitae profusionem. En Spiritual Journeys. Books Illustrating the First Two Centuries of Contemplation and Action of the Society of Jesus. Prague: Typis Universitatis Carolo--Ferdinandeae per Joannem Nicolaum Hampel factorem, Amberes, 1675. Fuente: <http://libraries.slu.edu/a/digital_collections/spiritual-journeys/afterword.html>. Consultado: 1-12-2013.

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El Triunfo de una Iglesia Militante

En 1583, apenas un año después de la realización de los frescos de San Stefano Redon-do, el grabador Giovanni Battista de’Cavalieri (1526-1597), publicó el Triunfo de la Iglesia Militante60. Se trata de un pequeño libro que reproducía los frescos bajo forma de grabados, acompañándolos de información, letanías, oraciones y otros ejercicios religiosos. Diversos autores han subrayado la importancia de las impresiones (sus estilos, sus adaptaciones en función de las audiencias, sus formas de circulación) tanto en el estatus de las imágenes como en su difusión.61 En un contexto en el que la Compañía impulsaba un sistema propio y glo-bal para todas las instituciones educativas (el Ratio Studiorum), el EMT tuvo un gran im-pulso editorial representado en 4 ediciones durante los seis años siguientes a su publicación.62

La imagen de San Esteban incluida en el EMT (Figura n. 10) presenta cuatro escenas: en primer plano San Esteban, en actitud serena, de rodillas y vestido con una túnica, es apedre-ado por tres hombres descalzos y con el torso desnudo; a la izquierda algunos apóstoles son golpeados mientras que a la derecha se presenta la escena de decapitación de San Jaime por un guardia en frente de dos testigos. En la parte superior derecha, el martirio es observado por Jesucristo. Son estos los rastros de una técnica que se difundiría ampliamente durante el s. XVII63. La combinación de texto de imagen, la división del espacio visual del grabado en escenas, la identificación con letras de cada una de los eventos descritos, y el hacer explicito cada detalle de la escena.

60 CAVALIERI, Giovanni. Ecclesiae Militantis Triumphi. Roma, 1583. 61 Ver, por ejemplo, FREEDBERG, David. Prints and the status of images in Flanders. In: ZERNER, Henri (Ed.). Le Stampe e la diffusione delle Immagini e degli Stili (Atti del XXIV Congresso Internazionale di Storia dell’Arte) 1979, v. VIII, Bologna, 1983, p. 39-44.62 NOREEN, Kirstin. Ecclesiae militantis triumphi: Jesuit Iconography and the Counter-Reformation, op. cit., p. 699.63 Acerca de esta técnica, Cf. FREEDBERG, David. Prints and the status of images in Flanders, op. cit., 46 y FABRE, Pierre Antoine. Ignace de Loyola. Le lieu de l’ image : Le problème de la composition de lieu dans les pratiques spirituelles et artistiques jésuites de la seconde moitié du XVIe siècle. París: Vrin/EHESS, 1992.

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Figura n. 10Escena de San Esteban, reconocido como el primer mártir cristiano.

Grabador: Giovanni B. Cavalieri.

Fuente: CAVALIERI, Giovanni Batista. Ecclesiae Militantis Triunphi. op cit, placa 2.

En estos contextos la legitimidad de los mensajes no dependería de su originalidad, pues esta misma parecía imposible en razón de los múltiples agentes que intervenían en su producción. Artistas, grabadores o editores no tenían un control total del proceso de produc-ción y más bien, eran parte de conjuntos heterogéneos en donde la copia, la cita, la síntesis, y la edición primaban por sobre el acto creativo puro y la estricta autoría individual.64 Aquí la noción moderna de autor es inestable, no sólo por aquello que se entiende por creación individual, sino por los varios agentes que participan en su producción.

En diálogo con la escenografía del martirio de Stefano Redondo, el EMT reforzaba el uso del martirio como camino a la gloria divina y ejemplo a seguir por los jóvenes novicios,

64 MUKERJI, Chandra. Printing, cartography and conceptions of place in Renaissance Europe Media. Culture & Society, v. 28, n. 5, p. 651-669, 2006. p. 652.

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intensificaba la relación entre los murales introduciendo letanías y pequeñas oraciones para los mártires, y breves frases con el significado espiritual de cada fresco, creando un orden litúrgico que acompañaba el orden espacial en el que están dispuestas las pinturas, dotando al novicio de un instrumento que ampliaba su repertorio interpretativo de los frescos. A su vez, el EMT vehiculizaba prácticas litúrgicas ordenadas en rutinas diarias, semanales y anuales que se articulaban a las conmemoraciones, festividades y otras fechas importantes del calendario ritual cristiano.

En el movimiento pendular entre lo individual y lo colectivo, entre el estar en el “Teatro” de San Stefano Redondo y el ejercicio espiritual a través de la evocación del Teatro viabili-zada por el EMT, se percibe la “Composición del lugar”, uno de los ejercicios espirituales de Loyola centrado en la imaginación de un locus, la configuración imaginaria de una escena, y la reconstrucción imaginaria de un orden.

Los principios inherentes al ejercicio espiritual, darían lugar a una serie de acciones como la conformación de las misiones jesuíticas en Paraguay en las que se asumía que determinada organización espacial de las misiones permitiría la imposición de una nueva concepción de sociedad; en esta línea, la urbanidad en las misiones era frecuentemente descrita como una escena teatral, la plaza central como el escenario principal y eje de la vida ritual, y los castigos corporales públicos una acción educativa ejemplarizante.65

El EMT era útil para los novicios no sólo en función de la acción de intermediación con los frescos de San Stefano Redondo. Después de haber pasado por el ciclo formativo, los jóvenes sacerdotes partían a la experiencia de misionarización, unos en sus lugares de origen en otras partes de Europa, otros en los territorios de frontera de un mundo en expansión. Por interme-dio del EMT los novicios enfrentados a la hostilidad de herejes e infieles, llevarían consigo tres certezas divinas procedentes de la escenografía de la memoria de San Stefano Redondo: una primera, temporal (sus sufrimientos se insertaban en una larga historia de glorificación), una segunda, socializante (sus penurias serían ejemplos para otros), y una tercera, trascendente (sus martirios serían glorificados). Lejos de quedar encerrada en los muros de las iglesias, la memo-ria de los mártires fue utilizada en el proyecto de expansión universal de la Compañía con un propósito que quedaría consignado en los Anales del Colegio inglés en Roma:

Hemos distribuido este trabajo [el EMT] por todas partes, incluso en las Indias, para que la infamia de estas desastrosas persecuciones, la frenética rabia de los heréticos, la firmeza inconquistable de los Católicos, puedan ser conocidas en todas partes.66

65 WILDE, Guillermo. The Political Dimension of Space-Time Categories in the Jesuit Missions of Paraguay (17th and 18th Centuries). In: MARCOCCI, Giuseppe; DE BOER, Wietse; MALDAVSKY, Aliocha y PAVAN, Ilaria (Eds.). Space and Conversion in Global Perspective. Leiden: Brill, 2014. p. 175-213. 66 FOLEY, Henry. Records of the English Province of the Society of Jesus. Londres: Burns ans Oates, 1880, 6:83. In: NOREEN, Kirstin. Ecclesiae militantis triumphi: Jesuit Iconography and the Counter-Reformation, op, cit., p. 698, mi traducción.

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La coherencia y sentido del sistema representacional se mantenía a través de juegos de correspondencia entre imágenes, orden y convenciones. La continuidad entre el dispositivo escenográfico y el impreso, no excluía la posibilidad de realizar ajustes para responder más adecuadamente a los nuevos circuitos de circulación. Sin embargo, las imágenes de San Stefano Redondo no fueron reproducidas de manera idéntica en el EMT. Por ejemplo, el grabado “Martyrs du temps des empereurs Maximin et Licinius” que hace parte de la edi-ción de 1583, (Placa 28, p. 15) aparece en la edición de 1598, aunque invertida en sentido horizontal.67 Asimismo, en el EMT no fueron incluidos los frescos de los Santos Inocentes ni el de la Virgen de los Dolores realizados por Tempesta en San Stefano Redondo.68 A pesar de los cambios de forma, soporte, formato y escala, la continuidad entre el ciclo de los mártires y la publicación no es puesta en duda; esto demuestra que diferentes elementos del conjunto representacional podían cambiar sin afectar al conjunto mismo.69

El Ecclesiae Militantis Triunphi no fue el único caso en que los dispositivos iconográficos del martirio realizados en las iglesias fueron reproducidos a gran escala en forma de grabados introducidos en martirologios. Tres años después de la intervención iconográfica en la Iglesia de San Apollinari en 1583 se publicó el Beati Apollinaris primi. En el mismo año, Circigna-ni realizó los frescos de la iglesia San Tommaso di Canterbury del colegio inglés en Roma que describían el martirio de los católicos en Inglaterra, iniciando con el apóstol Pedro y terminando con la muerte del católico inglés Richard Thirkeld en York en el mismo año de 1583, vinculándolos a todos en una sola y misma sucesión. Al año siguiente fue publicada en Roma la Ecclasiae Anglicanae Trophea (Figura n. 11) que reproducía los frescos del Colegio.

67 NOREEN, Kirstin. Ecclesiae militantis triumphi: Jesuit Iconography and the Counter-Reformation, op. cit., p. 712.68 Ibid, op. cit.69 FABRE, Pierre-Antoine. Les Visions d'Ignace de Loyola dans la diffusion de l'art jésuite. MLN, v. 114, n. 4, p. 816-847, 1999. p. 817.

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Figura n. 11Ecclesiae anglicanae trophaea

Grabador: Giovanni B. Cavalieri.

Fuente: GRASSI, BARTOLOMEO. Ecclesiae Anglicanae Trophaea. Roma, 1584.

La capacidad exhibida por Cicignano y Cavalieri para inscribir los acontecimientos más recientes en una historia de larga duración, se vio posibilitada por el formato al que recu-rrían. Recordemos también que en 1583, un año antes, era publicada la cuarta edición del libro de los mártires de Foxe que tenía una orientación profundamente anticatólica. Las obras de Cicignano y Cavalieri como la obra de Foxe compartían un doble propósito aunque contrario: el despliegue de una estrategia articulada de divulgación/ expansión de una histo-ria larga y gloriosa escrita con la sangre de los mártires articulada al presente, la construcción y evocación de una geografía santificada con los actos del martirio.

Durante estos años la Compañía de Jesús desarrollaría un inmenso repertorio de mar-tirologios, grabados y otras mediaciones de memoria que convertían la crueldad sufrida por sus mártires en una acción “verdaderamente triunfante”.70 En 1608 el coloniense Johannes Bussemacher realizó el grabado “Effigies et Nomina Quorundam e Societate Iesu” (Figura n. 12). El grabado, dedicado a Johannes Hartmann, aparentemente realizado en una hoja separada, muestra la esfinge de 102 mártires jesuitas muertos entre 1549 y 1606, ordena-

70 OSSWALD, Cristina. A iconografia do martírio na Companhia de Jesus entre os sécs. XVI e XVIII, op. cit., p. 1301-1313. p. 1303.

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dos por orden cronológico y acompañados por textos de Pedro Ribadaneira. De acuerdo a Osswald,71 los mártires están “acompañados por la palma del martirio y el instrumento (no necesariamente correcto) del mismo martirio”. Un año después de ésta publicación San Ignacio de Loyola sería beatificado.

Figura n. 12Effigies et Nomina Quorundam e Societate Iesu.

Colonia, 1608. Grabador: Johannes Bussemacher

Fuente: The British Museum

En el siglo XVII, la iconografía jesuita y la expansión de la Compañía se vieron impulsa-das por la celebración del centenario de la Compañía en 1640 y del centenario de la muerte de San Ignacio en 1656; celebraciones que fueron precedidas por su beatificación (1609) y su canonización (1622). Las narrativas del martirio se expandieron en todos los rincones de la extensa geografía jesuítica y la figura de los mártires se inscribió en distintos espacios en el territorio americano.72 En una descripción de una de las misiones del Paraguay en las que vivió entre 1691 y 1733, el jesuita Anton Sepp describió que, en su austeridad, la misión solo contaba con tres imágenes, dos de las cuales eran de mártires, una de San Juan Bautis-ta — decapitado por Herodes, y otra de San Francisco de Javier — martirizado en China

71 Ibid., p. 1304.72 BARCELOS, Artur. Os jesuítas e a ocupação do espaço platino nos séculos XVII e XVIII. Revista Com-plutense de Historia de América, n. 26, p. 93-116, 2000.

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en 155273. Estas imágenes son indicios del poderoso vínculo que existía entre la vocación misionera y la búsqueda de la muerte al servicio de la fe,74 por lo que en España no dejaban de embarcarse voluntariamente en busca del martirio. Al respecto Page habla de 36 mártires solamente en el Paraguay siendo los únicos canonizados González de Santa Cruz, Alonso Rodríguez y Juan de Castellanos.75 La expansión de las imágenes del martirio a todos los rincones del mundo colonial se correspondió con la incorporación de elementos de la fauna y la flora no-europeas en las escenas de los martirios jesuitas, instaladas en lugares frecuen-tados por novicios.76 Es decir, las representaciones del martirio incorporaban ya el paisaje de lo extraño, lo adverso y lo distante como escenario de una narrativa actualizada.

Los mártires viajarían a tierras paganas además de las imágenes en impresiones, misarios y estanpillas, a través de otras mediaciones. En 1578 Gregorio XII envió al Colegio de San Ildefonso de México algunas reliquias de mártires, extraídas de las catacumbas. El tesoro arqueológico fue recibido en noviembre del mismo año con una pieza teatral sobre los pri-meros cristianos de fastuosa puesta en escena,77 materializando la tradición jesuita del teatro como medio de propaganda religiosa78 que tendría continuidad en México,79 Brasil80 y en varios otros lugares de América Latina.81

Como afirma Fabre, con su desembarco, las reliquias generarían un desafío a los jesuitas del Colegio: convertir lo antiguo (las reliquias) en la manifestación de un orden nuevo, y hacer de lo nuevo (la conquista espiritual de Nueva España) la manifestación de una larga y antigua tradición (la historia cristiana).82 Fabre también afirma que durante el siglo XVI,

73 WILDE, Guillermo. The Political Dimension of Space-Time Categories in the Jesuit Missions of Paraguay (17th and 18th Centuries), op. cit.74 GIUDICELLI, Christophe; RAGON, Pierre. Les martyrs ou la Vierge ? Frères martyrs et images outragées dans le Mexique du Nord (XVIème-XVIIème siècles). par. 2. Nuevo Mundo. Mundos Nuevos, 2005. URL: <http://nuevomundo.revues.org/615>. Consultado: 18-11- 2013. 75 PAGE, Carlos. Siete Ángeles. Jesuitas en las reducciones y colegios de la antigua Provincia del Paraguay. Buenos Aires: Paradigma Inicial, 2011. p. 43.76 OSSWALD, Cristina. A iconografia do martírio na Companhia de Jesus entre os sécs. XVI e XVIII, op. cit., p. 1303.77 ORDIZ VÁZQUEZ, Francisco. ‘El triunfo de los santos’ y el teatro jesuita del siglo XVI en México, op. cit., p. 19-28.78 SCHNITZLER, Henry. The Jesuit Contribution to the Theatre. Educational Theatre Journal, v. 4, n. 4, p. 283-292, 1952.79 ORDIZ VÁZQUEZ, Francisco. ‘El triunfo de los santos’ y el teatro jesuita del siglo XVI en México, op. cit., p. 22-26.80 WASSERMAN, Renata. The Theater of José de Anchieta and the Definition of Brazilian Literature. Luso--Brazilian Review, v. 1, n. 36, p. 71-85, 1999.81 LÓPEZ, Sebastián. Contrarreforma y Barroco. In: FAJARDO DE RUEDA, Marta. El espíritu barroco en el arte colonial. Bogotá: BLAA, 1981. p. 61-91. URL: <http://www.banrepcultural.org/blaavirtual/todasla-sartes/ext/ext13.htm#4a>. Consultado: 18-11-2013.82 FABRE, Pierre-Antoine. Reliquias Romanas en México, historia de una migración. In: WILDE, Guillermo (Ed.). Saberes de la conversión. Jesuitas, indígenas e imperios coloniales en las fronteras de la cristiandad. Buenos Aires: Sb, 2011. p. 205-224. p. 213.

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la procesión de las reliquias a través de la ciudad era presentada como “una forma de cons-tituir la ciudad sagrada al interior de la ciudad profana”,83 y aún el siglo XIX, se realizaban ceremonias que pretendían actualizar la ciudad recorrida por las reliquias presentadas ahora como objeto/evento constituyente de la joven nación en emergencia.84

Las imágenes del martirio se inscribieron también en iglesias y catedrales. En el colegio de los jesuitas de Salvador de Bahía construido entre 1683 y 1694 por ejemplo, fueron reali-zadas las efigies de veintiún hermanos y padres de la Compañía85 en el cielo raso de la sacris-tía. El mártir y la figura misma del martirio dieron lugar también a dramatizaciones.86 No obstante, dos elementos dificultaban el reconocimiento público del mártir: la ausencia de restos y la falta de testimonios.87 En busca de un reconocimiento que sólo podían encontrar en Roma a través de la canonización, los misioneros mártires americanos hacían el camino inverso desde tierras paganas en donde se entregaban con entusiasmo a la labor apostólica hacia las metrópolis y los centros de formación en busca de su beatificación, de honores en su tierra natal, o de convertirse en ejemplo para los novicios.88 Una vez canonizados, los már-tires se sumarían al martirologio a través de mapas, grabados, publicaciones y ceremonias para continuar con un recorrido complementario y articulado al descrito con destino a las colonias con el objetivo de cumplir con el dispositivo ejemplarizante.

Este fue el caso de 26 cristianos capturados y crucificados después del naufragio en 1596 del galeón que los transportaba a Japón y que, durante su cautiverio, escribían cartas en las que escenificaban sus propios sufrimientos. El registro en el que circularían posteriormente buscaba la empatía de las audiencias europeas con las tragedias de los mártires y la empresa misionera en las colonias convertidas, las primeras en actualizaciones de la escena primordial de los primeros mártires y la segunda en una empresa universal y trascendente: “leyendo, usted compartirá el dolor, participará en su labor”, decía una de éstas publicaciones, “en-

83 Ibid., p. 216.84 Ibid., p. 217.85 DE MOURA SOBRAL, Luis. Pintura, santos y propaganda: la sacristía del antiguo colegio de los jesuitas de Salvador, Bahía. In: Territorio, Arte, Espacio y Sociedad, Actas III Congreso Internacional del Barroco Ame-ricano: Universidad Pablo de Olavide, Sevilla, 8 al 12 de octubre de 2001. 86 Diversos autores han encontrado en la figura de los mártires en general y en las reliquias en particular, un campo fecundo para el análisis de las interacciones entre las sociedades indígenas y los actores coloniales. En-tre otros: CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte de. Compartir las reliquias. Indios Tupíes y jesuitas frente a los huesos de un misionero Chamán en el Brasil de inicios del siglo XVII. In: WILDE, Guillermo (Ed.). Saberes de la conversión. Jesuitas, indígenas e imperios coloniales en las fronteras de la cristiandad. Buenos Aires: SB, 2011. p. 225-250. MAXWELL Kenneth. The Spark: Pombal, the Amazon and the Jesuits. Portuguese Studies, n. 17, p. 168-183, 2001.87 GIUDICELLI, Christophe; RAGON, Pierre. Les martyrs ou la Vierge ? Frères martyrs et images outragées dans le Mexique du Nord (XVIème-XVIIème siècles). Nuevo Mundo Mundos Nuevos. par. 14, 2005. URL: http://nuevomundo.revues.org/615. Consultado: 10-11-2013.88 GÓMEZ-GÉRAUD, Maria Cristina. Le théâtre des premiers martyrs japonais: la leçon de théologie. In: LESTRINGANT, Frank; MOREAU, Pierre-François et al. Martyrs et Martyrologues. Revue de Sciences Humaines, n. 269, p. 175-187, 2003.

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contrará que la historia primitiva de los mártires está siendo representada y actualizada dignamente”.89

El discurso franciscano sobre el martirio, aunque separado y a veces en tensión con el jesuita, se acercó al registro épico que impulsaba la idea del “ejército de Cristo” enfrentado a la “conquista espiritual”. A su vez, la memoria de los mártires franciscanos en Japón procuró la “analogía teleológica”, facilitada por la crucifixión.90 Un juego que daría lugar a varias transfiguraciones: Nishizaka, la colina donde serían crucificados los mártires en el monte calvario, Pedro Bautista, padre de la iglesia japonesa franciscana en San Pedro, Kioto en la nueva Roma y los 26 crucificados en una versión actualizada de Cristo.91

La cartografía jesuítica del siglo XVIII en América retomó en varias ocasiones la cues-tión del martirio. A modo de ejemplo pueden citarse el mapa de Cardiel (1760) del Para-guay,92 los trabajos cartográficos de Fritz (1707) en el Amazonas93 y el mapa de Machoni (1733) de las regiones chaqueña y de Chiquitos.94 En estos mapas se localizan, entre otros, los sitios en que fueron martirizados los misioneros jesuitas y el pueblo en que doctrinaban”.95 Estos acontecimientos localizados, junto con otros nodos de memoria espacializada como las misiones destruidas, saqueadas o desplazadas, extienden la geografía sagrada inaugurada con las catacumbas subterráneas romanas hasta los “últimos confines” a los que estaban destinados los misioneros en tanto continuadores de la empresa divina.

Conclusiones Este trabajo ha sido más cartográfico que histórico y más sobre las representaciones de

los acontecimientos que sobre los acontecimientos mismos.96 Me he propuesto seguir las figuras polivalentes del mártir y del martirio en su circulación a través de grabados, mapas y otras mediaciones, en un mundo en expansión gracias a los adelantos científicos y una mayor intensidad en los viajes y las exploraciones.

89 FROES, Louis. Histoire de la glorieuse mort de vingt six chrestiens qui ont esté crucifiez por le commandement du Roy de Jappon. Rouen: Thédore Reinsart, 1599. In: GÓMEZ-GÉRAUD, Maria Cristina. 2003. Le théâtre des premiers martyrs japonais: la leçon de théologie, op. cit, p. 177.90 JACQUELARD, Clotilde. Une catastrophe glorieuse: le martyre des premiers chrétiens du Japon, Naga-saki, 1597, op. cit, par. 16.91 Ibid.92 CARDIEL, José. Parte de la América Meridional en que trabaja el zelo de los religiosos de la Compañía de Jesús de la Provincia dicha del Paraguay. 1760. In: FURLONG, Guillermo. Cartografía jesuítica del Río de la Plata. n. 32. Buenos Aires: Jacobo Peuser, 1936. 93 FERRAND DE ALMEIDA, André. Samuel Fritz and the Mapping of the Amazon. Imago Mundi, n. 55, p. 113-119, 2003. p. 117.94 PAGE, Carlos. Siete Ángeles. Jesuitas en las reducciones y colegios de la antigua Provincia del Paraguay. op. cit., p. 125.95 Ibid.96 Cf. RICOEUR, Paul. La Mémoire, l’Histoire, l’Oubli, op. cit., p. 275.

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El análisis de los martirologios producidos en el contexto de las guerras de religión evi-denció que también en el terreno de los discursos se llevaron a cabo las disputas por la legitimidad entre católicos y protestantes, que éstas se conjugaron en tiempo pasado y en el espacio subterráneo en el que quedó una memoria enterrada. Los éxitos arqueológicos impulsaron las políticas culturales del martirio y la producción de tres tipos de mediaciones de memoria: conjuntos arqueológicos divinos en tanto prueba fehaciente del vínculo que unía a los católicos con los primeros mártires, ciclos del martirio en iglesias y conventos que permitían incorporar las historias de los primeros mártires a la práctica litúrgica y al ciclo formativo de los novicios, y que eran complementados a su vez con un tercer tipo de mediaciones de memoria: libros de pequeño formato que apoyándose en las representaciones de los mártires y el martirio acompañaban a los novicios hacia las últimas fronteras en las que los herederos directos de los primeros mártires repetirían el ejemplo de sus predecesores manteniendo viva su memoria. Adversas, hostiles y lejanas, las últimas regiones descubiertas serían los escenarios propicios para que los herederos de los primeros mártires repitiesen el ejemplo de sus predecesores manteniendo viva su memoria.

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De las catacumbas a los últimos confines: violencia, sentido y representación en los periplos del martirio

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De las catacumbas a los últimos confines: violencia, sentido y representación en los periplos del martirio

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O queijo e os vermes: o cosmo de um historiador do século XX*

Dominick LaCapraCornell University

...ao querer (a uma distância que é a do afastamento da dupla reflexão) ler solo o texto original da existência-relação humana individual, o texto antigo, bem conhecido, transmitido pelos pais

— lê-lo inteiramente uma outra vez, se possível, de forma mais autêntica.

Søren Kierkegaard, Uma primeira e última declaração,Pós-escrito final não científico.

Então incentivaram-no a falar: Menocchio abandonou qualquer reticência.

Carlo Ginzburg, O queijo e os vermes

RESUMOO queijo e os vermes: o cosmo de um historiador do século XX foi originalmente publicado em History & Criticism, de 1985, coletânea de ensaios de Dominick LaCapra. Abertamente polê-mico, realiza uma leitura cerrada de um texto clássico da historiografia do século XX, O queijo e os vermes, de Carlo Ginzburg, buscando, por aí, explicitar e problematizar certas tendências, então — e ainda —, predominantes na profissão histórica. Trata-se de um esforço para chamar a atenção dos historiadores para a necessidade de refletir sobre sua prática e desenvolver modos de interpretação mais críticos e autocríticos, num diálogo mais próximo com a crítica literária e a filosofia contemporânea. Ao traduzi-lo para o português, visamos contribuir para tornar a obra de LaCapra mais conhecida entre o público acadêmico brasileiro.

* The Cheese and the Worms: the Cosmos of a Twentieth-Century Historian. In: LACAPRA, Dominick. History & Criticism. Ithaca e Londres: Cornell University Press, 1985. p. 45-69. Tradução de Renata Sammer e João de Azevedo e Dias Duarte, respectivamente, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio) e doutor em História Social pela mesma universidade.

Lise Sedrez
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O queijo e os vermes: o cosmo de um historiador do século XX foi originalmente publicado em History & Criticism, de 1985, coletânea de ensaios de Dominick LaCapra. Abertamente polêmico, realiza uma leitura cerrada de um texto clássico da historiografia do século XX, O queijo e os vermes (1976), de Carlo Ginzburg, buscando, por aí, explicitar e problematizar certas tendências, então – e ainda –, predominantes na profissão histórica. O propósito de LaCapra é chamar a atenção dos historiadores para a necessidade de refletir sobre sua prática e desenvolver modos de interpretação mais críticos e autocríticos, num diálogo mais próximo com a crítica literária e a filosofia contemporânea. Ao traduzi-lo para o português, visamos contribuir para tornar a obra de LaCapra mais disseminada entre o público acadêmico brasileiro.
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ABSTRACTThe Cheese and the Worms: the Cosmos of a Twentieth-Century Historian was originally pub-lished in History & Criticism (1985), a collection of essays by Dominick LaCapra. Openly polemic, the essay performs a close reading of a classic text of twentieth-century historiog-raphy, The Cheese and the Worms, by Carlo Ginzburg, seeking to make visible and prob-lematize some then – and still – prevailing tendencies in the historical profession. It is an effort to call the attention of historians to the necessity of reflecting on their practice and developing modes of interpretation more critical and self-critical, in a closer dialogue with the disciplines of literary criticism and contemporary philosophy. In translating it into Por-tuguese, we seek to contribute to make LaCapra’s work better known among the Brazilian academic public.

***

Em 1983, passei os últimos dias de dezembro em Ithaca, Nova York. Teria preferido um lugar que oferecesse um clima mais temperado. Procurando abrigo do rigor inquisitorial de um inverno especialmente severo, encontrei meus pensamentos voltados, mais uma vez, para um tópico que tendia a preocupar-me no passado recente: o estado da historiografia con-temporânea. O comentário meta-histórico pode ser algo de gelar os ossos. É um processo de dupla reflexão, duas vezes afastado do objeto ostensivo da investigação do historiador — um processo que faz a imediatez da experiência passada parecer especialmente remota. Como pode tal empreendimento, aparentemente desumano, capacitar alguém a ler velhos textos, de fato, o texto da própria existência, de forma mais autêntica? Eu preferiria dedicar meu tempo e minha energia a temas mais amigáveis, a assuntos de caráter narrativo — talvez, remexer os ricos depósitos de papéis arquivados e contar as suas fábulas em formas narrativas insinuantes. Entretanto, folheando as páginas de trabalhos históricos recentes, esbarro em alegações que capturam a minha curiosidade e em configurações de ideias que desafiam a minha compreensão. Por vezes, eu quase pareço estar em outro mundo.

A historiografia hoje não está naquele estado de fermentação encontrado em campos tais como a crítica literária e a filosofia continental. Os historiadores tendem a orgulhar-se de sua imunidade diante da dúvida corrosiva e do escrutínio autorreflexivo que apareceram em outras áreas de investigação, especialmente naquelas infiltradas pelo pensamento francês recente. Longe de ver as iniciativas críticas recentes como emissárias da promessa angelical de uma reforma ou mesmo de um renascimento nos estudos históricos, muitos historiadores foram tomados pelo que se poderia quase chamar de um zelo contrarreformístico em rea-firmar procedimentos ortodoxos. Mas a profissão histórica contemporânea não é um bloco sólido, e mesmo os acadêmicos mais tradicionais mostram-se abertos ao menos a alguns movimentos mais recentes. Se fôssemos generalizar de maneira um tanto ou quanto severa

Lise Sedrez
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“The Cheese and the Worms: the cosmos of a Twentieth-century historian” was originally published in History & Criticism(1985), a collection of essays by Dominick LaCapra. Openly polemic, the essay performs a close reading of a classic text of Twentieth-century historiography, The Cheese and the Worms (1976), by Carlo Ginzburg, seeking to make visible and problematize certain tendencies then – and still – prevalent in the historical profession. LaCapra’s purpose is to call the attention of historians to the necessity of reflecting on their practice and developing modes of interpretation more critical and self-critical, in a closer dialogue with the disciplines of literary criticism and contemporary philosophy. In translating it into Portuguese, we seek to contribute to the wider dissemination of LaCapra’s work among the Brazilian academic public.
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sobre as tendências proeminentes da profissão, listaríamos o seguinte: uma inclinação a apoiar-se em uma definição social de contexto como uma matriz explanatória; uma guina-da em direção a um interesse pela cultura popular; uma reconceitualização da cultura em termos de discursos coletivos, mentalidades, visões de mundo, e mesmo ‘linguagens’’; uma redefinição da história intelectual como o estudo dos significados sociais historicamente constituídos; e um realismo documental arquivístico, que trata os artefatos como jazidas de fatos na reconstituição das sociedades e culturas do passado. Essas tendências representam, de várias maneiras significativas, um progresso em comparação com práticas mais antigas, porém, podem se tornar ambíguas quando engendram sociocentrismo dogmático, populis-mo metodológico, a recusa em reconhecer a significância histórica de aspectos excepcionais da cultura e uma compreensão ultrassimplificada da linguagem e do significado, frequente-mente acompanhada de um uso redutivo de textos e documentos.

Um livro recente que, penso, incorpora ambos, as promessas e os perigos das tendências contemporâneas, capturou a imaginação histórica: O queijo e os vermes, de Carlo Ginzburg.1 É raro que um livro tão pequeno (128 páginas de texto principal, 15 de prefácio e 43 de no-tas) produza ondas tão grandes na profissão. Os tradutores de Ginzburg observam acurada-mente: “o livro foi merecidamente louvado como uma das mais significativas contribuições recentes a um campo de estudo florescente, a cultura popular na Europa moderna” (p. viii — edição em língua inglesa). Roger Chartier oferece uma explicação mais extensa sobre o porquê da atenção conferida ao livro:

Como nos mostra Carlo Ginzburg, quando os documentos autorizam, é inteiramente permi-tido explorar, como se por uma lente de aumento, a maneira como um homem do povo pode pensar e usar os elementos intelectuais esparsos da cultura literária que o alcançam por meio de seus livros e da leitura que ele faz deles. Aqui, Bakhtin é posto de ponta cabeça, uma vez que um sistema de representações é construído a partir dos fragmentos emprestados da cultura aca-dêmica e livresca, aos quais outros significados são atribuídos, pois no fundamento do sistema há uma outra cultura: “por trás dos livros que Menocchio ruminava, identificamos um código de leitura e, por trás dele, um estrato sólido de cultura oral”. Não podemos, portanto, postular como necessária a conexão estabelecida por Felix Gilbert entre a ampliação social do campo de pesquisa em história intelectual e o recurso a procedimentos estatísticos. De fato, se, sob certas condições, a abordagem quantitativa (interna ou externa) aos textos mais elaborados pode ser aceita como legítima, por outro lado, quando os arquivos permitem, o trabalho intelectual do mais anônimo dos leitores pode ser submetido aos procedimentos analíticos comumente reservados aos ‘grandes’ pensadores”.2

1 GINZBURG, Carlo. The Cheese and the Worms. Traduzido por John and Anne Tedeschi. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1980, primeiramente publicado em italiano, em 1976. Todas as referências são a essa edição. N.T.: Salvo indicado, utilizamos a edição brasileira para as citações: O queijo e os vermes, tradução de Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 2 CHARTIER, Roger. Intellectual History or Sociocultural History? The French Trajectories. In: LACAPRA,

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Assim, Ginzburg, por meio de uma variante imaginativa de pesquisa sobre a resposta de um leitor, revelou um modo de história social qualitativa que supostamente emprega técnicas da história intelectual “alta” ou de “elite”. No processo, ele abre para nós o “cosmo” de um moleiro do século XVI, o inesquecível Domenico Scandella, chamado Menocchio. Apesar de não ser qualificado por especialização nem no campo nem no período, eu gostaria de arriscar ao menos uma leitura parcial do texto de Ginzburg — um texto que é suficiente-mente emblemático do “cosmo” do historiador do século XX. A semelhança entre O queijo e os vermes de Ginzburg vis-à-vis a profissão histórica contemporânea e a “visão de mundo” de Menocchio vis-à-vis a cultura popular do século XVI está, evidentemente, longe de ser completa. Ao passo que o notável livro de Ginzburg recebeu amplo reconhecimento, nem todos os historiadores que o elogiam concordariam com todos os aspectos de seu argumento, mesmo que possam assentir à sua concepção geral sobre a direção que a pesquisa histórica deve assumir. Ademais, para Ginzburg, temos um texto escrito, enquanto, para Menocchio, temos apenas uma “visão de mundo” putativa, reconstituída inferencialmente a partir de dois registros da Inquisição (há um intervalo de 15 anos entre os julgamentos, e Menocchio foi queimado na fogueira, quando velho).

Um motivo recorrente do livro de Ginzburg é a importância das discrepâncias entre o que ocorre nos textos que Menocchio lê e as leituras ativas, de fato agressivas, que Me-nocchio faz deles. Ginzburg interpreta essas discrepâncias sintomáticas como indicações de uma cultura oral, popular (mais especificamente, camponesa), que inconscientemente serviu como o crivo ou filtro para as leituras de Menocchio. Gostaria de apontar uma discrepância entre o papel dessa interpretação no argumento dominante do texto principal de Ginzburg e o que tende ocasionalmente a vir à tona em seus dois prefácios (um para a tradução em língua inglesa e o outro para a edição italiana), em uma importante nota de rodapé, e em breves comentários ao longo do texto que são expandidos em um crescendo vigoroso, quase explosivo, à medida que chegamos ao fim do texto principal. Essa discrepância indica uma tensão importante na concepção de Ginzburg sobre o que Menocchio representa e, de ma-neira mais geral, em sua exposição das relações entre as culturas popular, alta e dominante no século XVI e ao longo do tempo. Pode-se inicialmente formular essa tensão em termos do contraste entre uma ideia de autonomia da cultura popular e uma ideia de sua interação recí-proca ou circular com a cultura dominante ou hegemônica. Veremos como essa formulação inicial é inadequada, entretanto, ela atesta a força do compromisso de Ginzburg com uma concepção de cultura popular que, se não autônoma, é primordial ou basilar no “cosmo” de Menocchio.

Comecemos com o argumento que parece ser dominante no texto principal, ao menos até suas páginas conclusivas. Ele apresenta a cultura oral, popular e camponesa, como um

Dominick; KAPLAN, Steven L. (Orgs.). Modern European Intellectual History: Reappraisals and New Perspectives. Ithaca: Cornell University Press, 1982. p. 35-36.

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fenômeno muito antigo, fundamentalmente pré-cristão, que a agitação da Reforma permitiu que emergisse, rompendo a crosta das formas culturais mais visíveis. Ginzburg partilha essa visão com Mikhail Bakhtin, e sua inovação é apresentá-la como um “código” oral, que mo-dela a leitura de Menocchio de textos escritos. Eis uma das típicas formulações de Ginzburg dessa visão:

Qual a relação entre uma cosmogonia como a de Menocchio — o queijo primordial do qual nascem vermes que são os anjos — e a Reforma? Como remeter à Reforma afirmações como as atribuídas a Menocchio por seus conterrâneos: “Tudo o que se vê é Deus e nós somos deuses”; “O céu, a terra, o mar, o ar, o abismo e o inferno, tudo é Deus”? É melhor imputá-las, por en-quanto, a um substrato de crenças camponesas, velho de muitos séculos, mas nunca totalmente extinto. A Reforma, rompendo a crosta da unidade religiosa, tinha feito vir à tona, de forma indireta, tal substrato; a Contrarreforma, na tentativa de recompor a unidade, trouxera-o à luz, para expulsá-lo. Seguindo essa hipótese, as afirmações de tom radical feitas por Menocchio não serão explicadas se remetidas ao anabatismo, ou, pior ainda, a um genérico “luteranismo”. Antes, devemos nos perguntar se elas não fazem parte de um ramo autônomo de radicalismo camponês que o tumulto da Reforma contribuíra para que emergisse, mas que era muito mais antigo do que a Reforma. (p. 56)

Ao longo do livro, a atribuição da “visão de mundo” de Menocchio a uma cultura po-pular oral ou a um radicalismo camponês (aqui explicitamente denominado “autônomo”) se torna muito mais que uma “hipótese”, tanto no sentido científico quanto no ordinário. Cientificamente, a interpretação de Ginzburg (como ele reconhecerá na nota de rodapé que ainda vamos discutir) não pode ser provada de acordo com os critérios mais comuns de ve-rificação e falsificação. Eu, contudo, aceitaria a condição da “visão” como uma “hipótese” no sentido mais ordinário. É bastante plausível argumentar que as ideias de Menocchio têm uma relação significativa com tradições orais e populares de idade indeterminada. Contudo, a natureza da relação entre essas tradições orais e outros aspectos ou níveis de cultura ainda seria controversa. Igualmente controverso seria o seu papel em comparação a outros fatores e forças na leitura de Menocchio de textos escritos e sua interação com outros aspectos da cultura.

Parte da atração da concepção de Bakhtin de uma cultura popular oral imemorial reside no fato de que — apesar de sua evocação periódica de uma metafísica fonocêntrica — ele a mantém numa condição relativamente “hipotética” (no sentido ordinário), não a rotiniza nem coloca uma carga “científica” excessiva sobre ela, e a usa retoricamente para motivar in-terpretações amiúde perspicazes.3 Ginzburg, contudo, exige mais da concepção que adapta

3 Sobre Bakhtin, ver LACAPRA, Dominick. Bakhtin, Marxism, and the Carnivalesque. In: Rethinking Intel-lectual History: Texts, Contexts, Language. Ithaca: Cornell University Press, 1983. p. 291-324.

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de Bakhtin, buscando resolver questões controversas em uma direção particular. Para ele, uma cultura oral, popular e camponesa, vista como autônoma ou, ao menos, como primor-dial e basilar, é a chave para as leituras e para a “visão de mundo” de Menocchio. Todas as metáforas que Ginzburg emprega assumem a condição basilar da cultura oral no “cosmo” de Menocchio. Encontramos metáforas arqueológicas e arbóreas, às vezes combinadas de modo a indicar a condição incontestavelmente privilegiada da cultura popular oral, por exemplo, em uma frase tal como “num veio profundo de radicalismo camponês trazido à luz pela Reforma” (p. 72).* E, em uma nota, nos é dito que Ginzburg escolheu o termo “radicalismo camponês” de acordo com a “frase de Marx, que diz que o radicalismo ‘toma as coisas pela raiz’ — uma imagem que, além de tudo, se adapta de maneira perfeita ao contexto” (p. 216, nota). Encontramos também metáforas oculares: “mais do que o texto, portanto, parece-nos importante a chave de sua leitura, a rede que Menocchio de maneira inconsciente interpu-nha entre ele e a página impressa — um filtro que fazia enfatizar certas passagens enquanto ocultava outras, que exagerava o significado de uma palavra, isolando-a do contexto, que agia sobre a memória de Menocchio deformando a sua leitura. Essa rede, essa chave de lei-tura, remete continuamente a uma cultura diversa da registrada na página impressa: uma cultura oral” (p. 72).

As obsessivas metáforas de Ginzburg conduzem-nos, como seus leitores, aos seus inves-timentos significativos na ideia de uma cultura primordial, oral e popular — investimentos metafísicos, literários e metodológicos.

Metafisicamente, Ginzburg elabora a oposição binária entre fala e escrita em termos re-miniscentes de Claude Lévi-Strauss, em um capítulo intitulado “Lição de escrita”, em Tristes trópicos.4 Desse modo, ele cede a um fonocentrismo que faz da escrita um bode expiatório e re-prime, na própria fala, as características projetadas exclusivamente sobre a escrita. Nas palavras de Ginzburg:

Desse modo, [Menocchio] viveu pessoalmente o salto histórico de peso incalculável que se-para a linguagem gesticulada, murmurada, gritada, da cultura oral, da linguagem da cultura escrita, desprovida de entonação e cristalizada nas páginas dos livros. Uma é como um pro-longamento do corpo; a outra é ‘coisa da mente’. A vitória da cultura escrita sobre a oral foi, acima de tudo, a vitória da abstração sobre o empirismo. Na possibilidade de emancipar-se das situações particulares está a raiz do eixo que sempre ligou de modo inextricável escritura e poder... Compreendia que a escritura e a capacidade de dominar e transmitir a cultura escrita eram fontes de poder... (p. 104-105)

* N.T. A referida combinação de metáforas arqueológicas e arbóreas, ausente na tradução brasileira, foi manti-da na norte-americana: “a deeply rooted current of peasant radicalism brought to the surface by the Reformation”.4 LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Tropiques. Nova York: Penguin 1974 [1955], cap. 28, p. 294-304. Há tradução brasileira: Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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Assim, a autoridade da suposta experiência de Menocchio é evocada para autenticar a palavra falada e relegar a escrita à esfera suspeita do poder — o recurso da cultura hegemô-nica ou dominante. Os estratagemas gerais envolvidos em uma metafísica fonocêntrica, e sua relação com um mito das origens perdidas, foram tão amplamente “desconstruídos” por Jacques Derrida que é supérfluo repetir aqui este gesto5 (Ginzburg menciona Derrida no prefácio à edição italiana, mas é apenas para descartar como “superficiais” e “niilistas” suas críticas à História da loucura de Foucault — críticas que Ginzburg parece ter entendido mal). Basta notar que a palavra falada não é desprovida de poder, como a performance oral dos próprios inquisidores seria suficiente para mostrar. Tampouco é a escrita invariavelmente uma “coisa da mente” abstrata — de fato, ela nunca é simplesmente uma “coisa da mente”. O problema é o das diferenças empíricas variáveis entre fala e escrita (bem como entre socieda-des “pré-literatas” e sociedades nas quais a fala é suplementada pela escrita) — um problema cuja articulação, com referência a circunstâncias e contextos específicos, a metafísica evoca-da por Ginzburg prontamente funciona de modo a obscurecer. Para o historiador, o interesse da extensão da noção de écriture de Derrida, de modo a abarcar tanto a fala quanto a escrita (no sentido ordinário), é o de problematizar oposições universais tendenciosas entre as duas e deslocar o ônus da prova, em casos específicos, para a pesquisa concreta. Talvez não seja irrelevante observar que a “experiência” de Menocchio, tal como descrita pelo próprio Gin-zburg, não se presta a uma metafísica fonocêntrica. Menocchio tinha um respeito profundo pelos livros, lia-os com intensidade e paixão, e buscava autorização para suas visões no que lia. “Lera poucos livros, em geral por acaso. Desses, mastigara, triturara cada palavra. Ele os ruminava durante anos; durante anos palavras e frases fermentaram em sua cabeça” (p. 87). A maneira como Menocchio lia poderia por si mesma indicar que sua escolha de livros não era tão fortuita como Ginzburg acredita. Ele tinha, por exemplo, consideração especial por um livro que se adequa mal à tese da primordialidade da cultura oral e camponesa: a Bíblia, “um livro diferente dos demais porque continha um núcleo dado por Deus” (p. 70). Como veremos, contudo, o ponto não é apenas inverter a ênfase de Ginzburg e chegar à imagem de um Menocchio piedosamente livresco; mas antes questionar a persuasividade das inversões simples em geral, sejam a favor da cultura popular, camponesa e oral, sejam a favor da alta cultura, escrita e hegemônica (uma oposição excessivamente simples, postulada, ademais, em séries de termos que não são de todo coincidentes).

A própria ideia de Ginzburg sobre a importância primordial da cultura oral na leitura e no “cosmo” de Menocchio é reforçada por uma metodologia estruturalista e pela confiança em uma forma literária particular: a história de detetive. Sua narrativa é estranhamente anedótica e geométrica, projetivamente empática e redutivamente analítica, extremamente

5 Ver especialmente DERRIDA, Jacques. Of Grammatology, trans. Gayatri Chakravorty Spivak. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1976 [1967], pt. 2, cap. I. p. 101-140. Há tradução brasileira: Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1973.

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fragmentada (62 capítulos para 128 páginas, alguns capítulos contendo apenas um ou dois parágrafos) e demasiadamente unificada em tema e tese. O objeto de sua busca é obviamente uma estrutura profunda, e a sua noção de um código, filtro ou crivo privilegiado provê um dispositivo reducionista conveniente para dar um sentido total e unificado aos comentários registrados de Menocchio. Uma metodologia estruturalista um tanto ou quanto rígida po-deria ser, ela própria, vista como a “estrutura profunda” de uma narrativa “superficialmente” difusa e por vezes descosida. Em um outro nível, o próprio formato da história de detetive garante que a pergunta “quem-é-o-assassino” revelará um único agente: a cultura popular oral. De fato, a convergência fatal das suposições metafísicas, metodológicas e narrativas, em uma ideia fundamental de cultura oral cria no leitor a sensação de que há uma relação cega de transferência entre Ginzburg como intérprete e Menocchio como Ginzburg o “lê” — Menocchio que supostamente lia de forma “parcial e arbitrária — quase uma mera procura de confirmação para ideias e convicções já estabelecidas de maneira sólida” (p. 76).

Deve-se notar, antes de dar continuidade à indagação sobre a natureza da cultura po-pular oral no relato de Ginzburg, que uma metodologia estruturalista tem um efeito para-doxal. Ginzburg quer, com razão, opor-se ao preconceito de que todas as ideias emanam originalmente da alta cultura ou das classes dominantes — que elas vêm das “cabeças dos monges e dos professores universitários, e certamente não de moleiros e camponeses” (p. 155, nota — edição em língua inglesa) (talvez, esse preconceito deva ser menos contraposto — já que a contraposição engendra apenas o inverso —, do que simplesmente descartado como patentemente ridículo). Ele quer mostrar a natureza ativa das leituras de Menocchio. Não obstante, a ênfase sobre a cultura oral como um código privilegiado que Menocchio inconscientemente emprega retorna o moleiro à passividade em um outro plano, e reduz a mera superficialidade a sua determinação e audácia. Na medida em que Menocchio é uma figura da cultura popular, tal ênfase obscurece o fato de que pode haver exceções no plano da própria cultura popular. Ademais, essa ênfase depende de um conceito estrutural (ou fixação) do inconsciente como um crivo ou filtro que unifica a experiência. Desse modo, ela reprime a “noção” mais desafiadora e desestabilizadora do inconsciente como um nome paradoxal para processos de repressão, deslocamento e condensação — processos que trazem à tona a importância do problema da própria relação de transferência do historiador com o passado, bem como da necessidade de elaborar essa relação de maneira crítica e autocrítica. Não obstante, é essa inevitável relação de transferência que revela, em termos mais especí-ficos, como Menocchio está “muito perto de nós: é um homem como nós, é um de nós” e como sua história “coloca implicitamente uma série de indagações para nossa própria cultura e para nós” (prefácio à edição em língua inglesa, p. 9-10).

Qual é a natureza da cultura oral, popular e camponesa, que eu repetidamente evoquei, mas deixei um tanto ou quanto envolta em mistério? É preciso confessar que sua natureza é também algo misteriosa em O queijo e os vermes. A narrativa difusa e o estilo anedótico

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facilitam o seu tratamento em termos vagos, fragmentados e alusivos. Ela é com maior frequência evocada do que descrita ou analisada, e sua clareza está em relação inversa a seu suposto poder explicativo. Esse fato afina-se, talvez, com a dimensão metafísica do relato de Ginzburg, no qual a “cultura popular” adquire traços usualmente associados a um “termo--Deus”. De nada ajuda quando, próximo ao fim do livro, Ginzburg apela ao Settennario de Scolio como encarnação da elusiva tradição oral, pois, embora o poema tenha sido escrito por um “rústico desconhecido”, inclui elementos de fé fundamentalista nos Dez Manda-mentos, iconoclastia, desejo por um estilo simples, elogio da sobriedade e da piedade, uma concepção frugal da vida apropriada, uma ideia extramundana de utopia, intolerância dog-mática, anti-intelectualismo, e um ânimo anticarnavalesco (p. 171-177). O fato de que o poema foi escrito por um “rústico desconhecido” levanta questões a respeito da unidade da cultura popular oral, mesmo quando essa última é restringida ao campesinato, pois essa cul-tura não era tão homogênea em suas tradições e práticas como as referências de Ginzburg a ela sugerem. Ela abrigava diferenças e divisões internas, bem como internalizava aspectos da cultura dominante, notadamente da Cristandade. Evidentemente, Ginzburg não ignora esse ponto, mas isso tem muito pouca importância na estória que ele conta. Uma variante crucial desse ponto, contudo, emerge com referência à figura do próprio Menocchio, especialmente à luz de algumas considerações proeminentes nas páginas conclusivas de Ginzburg.

Quatro características da cultura popular oral parecem sobressair como particular-mente relevantes nos comentários dispersos pelo relato de Ginzburg. Primeiro, há um materialismo expresso, por exemplo, na cosmogonia do queijo e dos vermes de Menocchio e em seu questionamento das doutrinas de um deus criador, da divindade de Cristo, da imaculada concepção e da imortalidade das almas. Aqui, contudo, nota-se que Menoc-chio, ao contrário de Ginzburg, não se empenha na busca por um nível primordial ou fundacional de explicação, seja dando prioridade à cultura oral sobre a cultura escrita, seja estipulando algum princípio ou entidade singular como a causa primeira das demais. Em suas variações da história de como o mundo era como um queijo de onde os anjos e o pró-prio Deus emergiram, Menocchio é bastante flexível, até maleável, ao discutir as relações entre o caos, Deus, e “a santíssima majestade”. Em certo ponto ele argumenta que “tudo era um caos [...] e de todo aquele volume em movimento se formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite, e do qual surgem os vermes, e esses foram os anjos. A santíssima majestade quis que aquilo fosse Deus e os outros, anjos” (citado na p. 97). Aqui, o caos parece ser primário, e “a santíssima majestade”, diferenciada de Deus, parece ter o papel de um demiurgo legislador. Em resposta à questão do vigário-geral sobre a natureza dessa santíssima majestade, Menocchio diz que ele a concebe como “o espírito de Deus, que sempre existiu” (p. 98). Aqui, o espírito de Deus é coevo do caos e precede Deus. Em outra versão, contudo, Menocchio torna Deus eterno e troca as posições entre Ele e o Espírito Santo. Em resposta à questão do inquisidor, Menocchio, segundo relatado,

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responde: “eu acredito que sempre tenham estado juntos, nunca separados, isto é, nem o caos sem Deus, nem Deus sem o caos” (p. 98). Diante de questionamentos inquisitoriais ulteriores, Menocchio diz ser Deus eterno com o caos, mas que inicialmente a sua união é apenas implícita — “[Deus] não conhecia a si próprio e nem era vivo, mas depois se co-nheceu, e isso é o que eu entendo por ter sido feito do caos” (p. 98). Mais adiante em seu próprio relato, Ginzburg oferece uma redução linear enganosa das visões transmitidas de Menocchio: “o caos precede a ‘santíssima majestade’, que não é melhor definida; do caos nasceram os primeiros seres viventes — os anjos e mesmo Deus, que era o maior de todos — por geração espontânea, ‘produzidos pela natureza’” (p. 102). Poder-se-ia, por contras-te, insistir que há valor nas formulações mais flexíveis de Menocchio, especialmente com referência ao nosso próprio análogo secularizado delas: a busca por explicações unificadas ou por níveis primordiais em relação às forças que contestam essa mesma busca. Os pró-prios gestos explanatórios de Ginzburg neste quesito aproximam-se, às vezes, da lógica inquisitorial que ele explicitamente rejeita.

Um segundo elemento da cultura camponesa é um igualitarismo combinado a uma vi-são da sociedade existente como dividida entre “superiores” e “homens pobres” (p. 50). Me-nocchio via a hierarquia eclesiástica como uma encarnação essencial da opressão, porquanto a Igreja era ainda uma grande proprietária de terras. “A essa construção colossal baseada na exploração dos pobres, Menocchio contrapõe uma religião bem diferente, em que todos são iguais, porque o espírito de Deus está em todos” (p. 52).

Um terceiro elemento é a tolerância, em um sentido positivo, relacionada com o reco-nhecimento “da equivalência de todas as fés, em nome de uma religião simplificada, sem caracterizações dogmáticas ou confessionais” (p. 94). Nas palavras transmitidas de Menoc-chio: “A majestade de Deus distribuiu o Espírito Santo para todos: cristãos, heréticos, turcos, judeus, tem a mesma consideração por todos, e de algum modo todos se salvarão” (p. 94). Ou ainda: “eu penso que cada um acha que a sua fé seja a melhor, mas não se sabe qual é a melhor” (citado com ênfase acrescentada, p. 94).

Em quarto lugar, há um utopismo mundano. “A imagem de uma sociedade mais justa era projetada de maneira consciente num futuro não escatológico. Não o Filho do Homem no alto, sobre as nuvens, mas homens como Menocchio — os camponeses de Montereale que ele tentara inutilmente convencer, por exemplo —, através de sua luta, deveriam ser os mensageiros do ‘mundo novo’” (p. 139). É curioso que, a despeito de se apoiar em Bakhtin e de reconhecer que “no centro da cultura configurada por Bakhtin está o carnaval” (prefácio à edição italiana, p. 15), Ginzburg não pondere sobre o papel efetivo do carnaval em Mon-tereale, nem sobre o significado do fato de que uma das ocupações do próprio Menocchio — como tocador de violão nos festejos — poderia ser vista como carnavalesca. Tampouco Ginzburg enfatiza a relação entre carnaval e utopia. Em Bakhtin, o carnaval é a utopia mundana, realista, que se alterna de maneiras variáveis com práticas sérias, rotineiras, e que

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caracteriza um modo de vida no qual é legítimo ter tanto relações “sérias” quanto “jocosas” com as mesmas crenças ou instituições. Com efeito, para Bakhtin, tudo torna-se melhor quando se pode brincar com aquilo que se tem por mais sagrado.

Uma questão inevitável é se “algumas investigações confirmam a existência de traços que reconduzem a uma cultura camponesa comum”, como Ginzburg afirma (prefácio à edição italiana, p. 21). Em que medida os quatro traços notáveis que eu extraí do relato de Ginz-burg são exclusivos à cultura camponesa, originalmente desenvolvidos na cultura camponesa (na qual parece, às vezes, haver um iluminismo popular avant la lettre), ou especialmente prevalecentes na cultura camponesa? Ginzburg não oferece respostas a essas questões, nem mesmo as formula de forma suficientemente clara e distinta. Ele gostaria de afirmar a exis-tência de uma tradição oral imemorial, que seria o repositório privilegiado dos traços que ele vê e admira em Menocchio. Não obstante, Ginzburg oferece evidências de que, no século XVI, os camponeses e citadinos que Menocchio “tentara inutilmente convencer” também abrigavam outras tendências, e mesmo contracorrentes. Não apenas o testemunho deles nos julgamentos de Menocchio parece indicar a assimilação de aspectos da cultura dominan-te, como também parece haver tendências no campesinato que não podem ser concebidas somente como derivativos miméticos ou internalizações da cultura dominante, por exem-plo: um grau de intolerância em relação a forasteiros. Inversamente, pode-se argumentar que os traços atribuídos à cultura popular oral possuíam certos análogos no cristianismo, como por exemplo: a crença “materialista” na ressurreição do corpo, o igualitarismo das correntes evangélicas, e a propensão das visões extramundanas de uma utopia celestial para converter-se em protesto mundano. Mais significativo, talvez, é o fato de que o cristianismo pré-Reforma fora relativamente tolerante em relação a heterodoxias, tolerante em demasia para os reformadores, que desejavam uma espiritualidade mais rigorosa e que devem ter achado difícil distinguir entre tolerância e abuso. Em certo sentido, Menocchio parece ser, entre outras coisas, característico da pré-Reforma em seu próprio entendimento expansivo do cristianismo.

Essas observações levantam o que é a maior e mais premente questão: quais eram as rela-ções variáveis, ao longo do tempo — incluindo a relação entre ortodoxia e heterodoxias —, na interação entre cultura(s) hegemônica(s) das classes dominantes, cultura(s) popular(es), e alta(s) cultura(s)? Ginzburg não explora essa questão de uma maneira suficientemente discri-minante. Com efeito, ele é impedido de fazê-lo por sua insistência no papel de uma cultura popular unificada como a chave para o “cosmo” de Menocchio e por sua confiança na oposi-ção binária entre cultura dominante e cultura popular. Em seu prefácio retrospectivo, escrito para a edição em língua inglesa, Ginzburg refuta a acusação de que teria atribuído “autono-mia absoluta” à cultura popular e, recorrendo a Bakhtin, afirma, ao contrário, a existência de uma “circularidade”: “entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas existiu, na Europa pré-industrial, um relacionamento circular feito de influências recíprocas,

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que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo (exatamente o oposto, por-tanto, do ‘conceito de absoluta autonomia e continuidade da cultura camponesa’ que me foi atribuído” (p. 10). No prefácio à edição italiana original, há um comentário similar que tam-bém se ampara numa referência a Bakhtin: “temos, por um lado, dicotomia cultural, mas, por outro, circularidade, influxo recíproco entre cultura subalterna e cultura hegemônica, particularmente intenso na primeira metade do século XVI” (p. 15). Entretanto, vimos que Ginzburg, no corpo do texto principal, refere-se, sim, a “um ramo autônomo de radicalismo camponês” (p. 56), além de investir consideravelmente na ideia de um substrato primordial de crenças camponesas. Perto do final do texto principal, Ginzburg verte suas visões numa perspectiva histórica de mais longo prazo:

Rabelais e Bruegel não foram, provavelmente, exceções notáveis. Todavia, fecharam uma épo-ca caracterizada pela presença de fecundas trocas subterrâneas, em ambas as direções, entre a alta cultura e a cultura popular. O período subsequente, ao contrário, foi assinalado tanto por uma distinção cada vez mais rígida entre cultura das classes dominantes e cultura artesanal e camponesa como pela doutrinação das massas populares, vinda de cima. Podemos localizar o corte cronológico entre esses dois períodos na segunda metade do século XVI, que coincide significativamente com a intensificação das diferenças sociais sob a influência da revolução dos preços. Mas a crise decisiva ocorrera algumas décadas antes, com a guerra dos camponeses e o reino anabatista de Münster. Então se impôs às classes dominantes, de maneira dramática, a necessidade de recuperar, mesmo ideologicamente, as massas populares que ameaçavam es-capar a qualquer forma de controle vindo de cima — porém mantendo e até acentuando as distâncias sociais. (p. 189-190)

Essa passagem enfatiza a reciprocidade ou circularidade dos intercâmbios no início do século XVI, e percebe uma “quebra” na segunda metade do século. No entanto, ela muda os termos de comparação da relação entre “a alta cultura e a cultura popular”, no período inicial, para aquela entre a “cultura das classes dominantes e [a] cultura artesanal e camponesa”, no período subsequente, como se “alta” e “dominante” fossem termos equivalentes, e como se camponeses e artesãos pudessem ser amalgamados, ao menos no período posterior. Os termos e as comparações do argumento geral parecem confusos e contraditórios: uma tradição au-tônoma, ou ao menos basilar, de cultura camponesa está, não obstante, em relação recíproca ou circular com uma alta cultura (ou, às vezes, cultura dominante) no início do século XVI, embora uma quebra sobrevenha na segunda metade do século. Ora, como é possível que uma cultura camponesa seja ao mesmo tempo autônoma (ou ao menos primordial, fundamental, infraestrutural — a chave, o filtro, o crivo, e assim por diante) e esteja envolvida em relações recíprocas ou circulares com uma cultura dominante? Mesmo correndo o risco de se enovelar em monótonos exercícios semânticos ou, ainda pior, de reproduzir sobre o texto de Ginzburg uma variante da lógica inquisitorial, esperar-se-ia maiores esclarecimentos.

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A nota de rodapé nas páginas 154-155 [edição em língua inglesa]* — outra adição re-trospectiva ao texto — ao mesmo tempo acrescenta uma luz e intensifica a confusão. Mais uma vez, Ginzburg nega a acusação de “autonomia absoluta” e reafirma as relações circulares ou recíprocas, sem buscar explicar a relação entre autonomia (apenas simples?) — ou, ao menos, primordialidade — e reciprocidade (admitindo, talvez, uma autonomia “relativa” paradoxal). Entretanto, Ginzburg faz esta surpreendente concessão: “é legítimo objetar que a hipótese que reconduz as ideias de Menocchio sobre o cosmo a uma remota tradição oral também não está comprovada — estando, talvez, destinada a manter-se assim... ainda que, como afirmei anteriormente, pretenda, no futuro, demonstrar a sua possibilidade com evi-dências adicionais”; acrescentando, em seguida, este comentário espantoso: “de qualquer modo, seria recomendável desenvolver novos critérios de prova especificamente adaptados a uma linha de pesquisa baseada numa documentação tão perfeitamente heterogênea e ins-tável. Que um novo campo de investigação altere não apenas os métodos mas também os próprios critérios de prova numa dada disciplina é demonstrado, por exemplo, na história da física: a aceitação da teoria atômica necessitou uma mudança nos padrões de evidência que haviam sido desenvolvidos na esfera da física clássica” (p. 155 — edição em língua inglesa). Retornarei em breve à questão da documentação. A referência a critérios alterados de prova é, contudo, surpreendente, e a referência à física parece não mais do que diversionismo. No texto de O queijo e os vermes, é, em grande medida, a força de um desejo metafísico por uma estrutura profunda, primordial, na história e nos esforços de explicação do historiador, que impele os movimentos contraditórios no argumento, e as únicas alterações nos critérios de prova parecem ocorrer na direção de uma mitologia secular que, especialmente em suas formas não reconhecidas, pode ter implicações profissionais duvidosas. Uma referência ao encontro de Freud com o “crime primordial” ou à admissão de Lévi-Strauss de que, no limite, ele também oferece um mito — o mito da mitologia — teria sido mais apropriada.

A nota de rodapé de Ginzburg torna explícita uma consideração que, embora periodica-mente adumbrada, não é adequadamente explorada no corpo do texto principal: a hegemo-nia e sua relevância para a reciprocidade nas relações. Tal como Ginzburg observa: “a cultura dominante e a cultura subalterna competem em uma luta desigual, na qual os dados estão viciados” (p. 155, nota — edição em língua inglesa). Um efeito da ênfase de Ginzburg na cultura popular oral, bem como de sua técnica narrativa no texto principal, é que a cultura hegemônica ou dominante permanece como uma categoria em grande medida residual, e mesmo como uma imagem do radicalmente “outro”. É bastante claro que o inquisidor pode condenar Menocchio à fogueira por heresia, ao passo que Menocchio não pode punir o inquisidor por dogmatismo intolerante e ortodoxia rígida. Entretanto, aprendemos pouco sobre aqueles que perseguem Menocchio ou sobre as relações entre autoridades religiosas e

* N.T.: A passagem referida, presente na edição em língua inglesa, não existe na edição brasileira. Portanto, as traduções relativas a ela são de nossa responsabilidade.

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seculares numa estrutura hegemônica. Aqui, a empatia de Ginzburg pelos oprimidos induz a uma percepção evanescente, fragmentária, dos opressores, cujos próprios problemas, ansie-dades e motivações permanecem recobertos por um véu de silêncio.

Em relação à questão da cultura hegemônica, é possível introduzir o problema da do-cumentação em um sentido um pouco diferente daquele de Ginzburg. Um registro da In-quisição é, como observa Ginzburg, parte dos “arquivos da repressão”. Pesaroso, Ginzburg comenta no prefácio à edição italiana que o grosso da evidência que temos sobre a cultura popular vem desses repositórios da cultura hegemônica, e que a reconstrução de crenças e práticas populares deve ser inferencial e indireta. Porém, suas reflexões parecem terminar nesse ponto, e sua única preocupação parece ser a de encontrar novos caminhos para fa-zer inferências sobre a “realidade”, a qual está tentado a conceber em termos metafísicos e mitológicos. No texto principal, o enredo e o formato analítico já estão bem assentados antes que haja indicações de que Ginzburg os está baseando em registros da Inquisição, e o fato de que ele o faz nunca se torna problemático. Ademais, a despeito de sua insistência na oposição, concebida em termos de uma metafísica questionável, entre o oral e o escrito, Ginzburg não trata da dificuldade colocada pelo problema mais específico do registro es-crito do testemunho oral por escrivães da Inquisição. Tampouco reconhece a importância do que se poderia ironicamente chamar de la question préalable — a necessidade de uma leitura crítica, rigorosa, de documentos tais como os registros da inquisição, antes que sejam usados como jazidas de fatos ou fontes para reconstruções inferenciais da “realidade”. Pois esses documentos são em si mesmos realidades históricas, que não apenas representam mas também suplementam as realidades às quais se referem, e uma leitura crítica deles pode fornecer percepções sobre os processos culturais — percepções de um tipo que, no mínimo, resiste aos desejos mitologizantes. Um registro da Inquisição é, em primeiro lugar, parte de um contexto discursivo que incorpora relações hegemônicas, e um estudo rigoroso da natu-reza das perguntas e repostas pode proporcionar um entendimento concreto da ação mútua entre dominação e “reciprocidade” assimétrica. Ao menos o leitor merece uma transcrição do próprio registro da Inquisição para estar em uma posição melhor para testar o uso e a interpretação dele feitos. Quando uma fonte tal como essa é usada simplesmente como uma jazida ou como um ponto de referência ocasional para uma história ou para uma redução analítica, ela é efetivamente silenciada e o leitor fica desamparado em sua tentativa de es-tabelecer uma apreciação crítica do relato do historiador. Essa dificuldade é especialmente pronunciada em O queijo e os vermes, no qual é amiúde impossível tratar criticamente da questão a respeito do que está vindo de Menocchio e do que está sendo projetado por Gin-zburg. Em qualquer interpretação, há momentos em que é impossível responder a esse tipo de questão, mas é preciso ter alguma base para levantá-la e para estimar quando ela se torna irretorquível, especialmente quando o componente interpretativo do relato é acentuado e a relação de transferência entre o historiador e o seu tema é particularmente intensa. É ao

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tornar públicos os textos que se interpreta e ao proporcionar uma leitura rigorosa — crítica e autocrítica — deles que a história social pode extrair algo de valoroso de procedimentos que são (ou deveriam ser) importantes na história intelectual. Levantar esses pontos não é eliminar a tarefa de empregar documentos na reconstrução inferencial de outros eventos e processos; é, contudo, adicionar outra camada de investigação àquela tarefa — uma camada que pode torná-la mais responsável cognitivamente.

Juntei alguns comentários dispersos em O queijo e os vermes para formar uma configu-ração de ideias algo diferente daquela predominante no argumento de Ginzburg. Minha ênfase recairia na interação complexa, com frequência distorcida, entre níveis ou aspectos da cultura e na relação concomitante entre ortodoxia e heterodoxia na vida intelectual e social. A cultura popular oral, da qual a cultura camponesa é um componente, pode ser reconstituída apenas de uma forma bastante incerta, dada a natureza da evidência. E, como indica Ginzburg, as forças de resistência à cultura hegemônica encontram-se amiúde entre os silêncios do passado, os quais devem ser considerados pelo historiador. Todavia, esse es-forço não implica que a “voz” do historiador domine completamente o passado. Tampouco exclui a necessidade de investigar os modos de acomodação às forças dominantes, pois esses oferecem um contexto realista para a apreciação da natureza — mais ou menos excepcional ou disseminada — da própria resistência. Com efeito, o historiador deve estar alerta para a possibilidade de tensões e contradições no interior de uma cultura tanto quanto entre os seus níveis, incluindo a cultura popular. Ginzburg critica a história das mentalidades por sua “insistência nos elementos inertes, obscuros, inconscientes de uma determinada visão de mundo” e por sua “conotação terminantemente interclassista” (p. 23-24). Entretanto, ele não apenas ameaça reproduzir em um outro nível a insistência no inconsciente estrutural, como também tende a deslocar a suposição de uniformidade cultural da sociedade como um todo para as relações dentro de uma classe ou de um nível de cultura.

A própria cultura hegemônica não é um todo homogêneo; ela varia ao longo do tempo, e as suas fissuras ou incertezas, em qualquer momento dado, oferecem espaços nos quais a resistência pode se manifestar. Em certos períodos, pode ser até difícil discernir o que é he-gemônico ou ortodoxo. Por meio do conflito, a Reforma e a Contrarreforma intensificaram a unidade no interior dos grupos antagônicos, e é possível que tenha havido “uma distinção cada vez mais rígida entre cultura das classes dominantes e cultura artesanal e camponesa” (p. 190). Contudo, o século XVI em geral foi um período em que a própria hegemonia estava em questão, e as linhas de comunicação não estavam completamente partidas, nota-damente (como assinala Ginzburg) entre segmentos da cultura popular e da alta cultura. A Igreja pré-Reforma podia se dar ao luxo de ser relativamente tolerante, na medida em que os desafios a ela não se haviam cristalizado em movimentos organizados em grande escala e em instituições alternativas. Quando do aparecimento da Reforma, a crosta não estava simples-mente partida de maneira a permitir a emergência de heterodoxias. Tal como nos primeiros

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séculos do cristianismo, a própria natureza da ortodoxia tinha de ser definida (ou redefini-da), e a extensão dos desafios, tanto da parte de protestantes de várias confissões quanto da parte de heterodoxias relativamente não cristãs (bem como de diversas misturas), ajudou a gerar ansiedade e intolerância dogmática. A própria Igreja Católica exibiu alguns dos traços espiritualmente mais “rigorosos” dos seus críticos reformados — incluindo a sua “seriedade” e ímpeto anticarnavalesco —, não apenas para combatê-los de maneira mais efetiva como também devido aos elementos internamente persuasivos das formas mais recentes. Há uma troca importante entre Menocchio e o inquisidor a esse respeito. Em resposta a uma das re-correntes questões relativas às suas discussões com outrem sobre os artigos de fé, Menocchio diz que falara “sobre artigos da santa fé com alguns, por brincadeira”. O inquisidor replica: “como ‘brincar’ com as coisas da fé? É justo brincar com coisas da fé?” (p. 161). De uma perspectiva diferente, e de certa forma mais antiga, o que é lamentável é que essas questões poderiam ser reduzidas ao nível tolo da indignação retórica. Não obstante, como indica Ginzburg, os próprios inquisidores podiam, em certos momentos, estar inseguros a respeito de crenças ou procedimentos, e essa incerteza permitia ao menos um pequeno espaço para as iniciativas de Menocchio.

Se houve relações mais verdadeiramente recíprocas entre os níveis da cultura, as quais parecem ter permanecido ao longo do século XVI, essas tiveram lugar entre segmentos da cultura popular e da alta cultura. Nesse ponto, ademais, cultura hegemônica e alta cultura não podem ser simplesmente equiparadas. Em um sentido óbvio, cultura dominante, ou hegemônica, pode ser vista como uma forma de alta cultura, e aspectos da alta cultura (no sentido de obras de uma elite cultural) podem reforçar a cultura hegemônica. Entretanto, a própria alta cultura pode abrigar forças de resistência e crítica que são mais efetivas so-cialmente quando se conectam com aspectos da cultura popular. Se Frances Yates estiver certa, tendências heterodoxas eram às vezes prevalecentes, talvez até “dominantes”, nas elites culturais ao longo do século XVI.6 Como o próprio Ginzburg repetidamente nota, havia no mínimo convergências entre as visões de Menocchio e aquelas avançadas nos círculos mais “progressistas” da alta cultura, particularmente entre humanistas “heréticos”.

Nesse ponto, podemos retornar à complexa figura de Menocchio e às questões relativas ao que essa figura pode nos dizer a respeito da interação entre níveis ou aspectos da cultura em seu tempo e ao longo do tempo. Em seu prefácio à edição italiana, Ginzburg assevera que “mesmo um caso-limite (e Menocchio com certeza o é) pode se revelar representativo” (p. 21). Mas em que sentido exatamente seria ele o portador representativo ou exemplar da cultura camponesa, popular e oral? Em certo sentido — mas quão preciso se é possível ser a esse respeito? —, Menocchio é “representativo”. Contudo, ele é também algo além de

6 Conferir YATES, Frances. Giordano Bruno and the Hermetic Tradition. Chicago: University of Chicago Press, 1964. Há tradução brasileira: Giordano Bruno e a tradição hermética.São Paulo: Cultrix, 1964 e The Occult Philosophy in the Elizabethan Age. Londres: Routledge, 1979.

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representativo. Ele é excepcional, não “um camponês ‘típico’” (p. 20) — nem mesmo (se me permitem um trocadilho atroz) um moleiro meão. Menocchio parece ser excepcional na maneira como articula crenças comuns, excepcional em sua resistência a pressões, tanto em sua comunidade vilareja quanto nos julgamentos inquisitoriais. Ele é talvez excepcional até em sua própria variante de desejo metafísico, em seu “impulso irrefreável de ‘procurar as coisas grandes’” — um impulso que o “atormentava” (p. 168). Mesmo quando se tornou um velho isolado, acometido de amarga ironia, ele não estava inteiramente quebrado. Também isso parece deveras excepcional.

Contudo, mesmo num sentido mais obviamente sociocultural, há algo de excepcional (“individual” poderia ser uma palavra melhor) em Menocchio, e sua condição — em larga medida reprimida ao longo do texto de Ginzburg — parece emergir com força nas páginas finais. Eu sugeriria que Menocchio era “representativo” e “excepcional”, no sentido peculiar de ser uma figura liminar — uma posição que o afeiçoava ao papel de bode expiatório dian-te da Inquisição. Sua posição era liminar entre a cultura popular e a cultura de elite, bem como entre a cultura oral e a cultura escrita. A ideia de que a cultura oral é o crivo principal de Menocchio parece particularmente suspeita em vista do modo como Menocchio estava dividido entre o “mundo” da cultura oral e aquele dos livros que tanto significavam para ele. Com efeito, o caso do outro moleiro (Pighino) que foi julgado pela Inquisição — um caso citado por Ginzburg em grande medida para sublinhar a “representatividade” de Menocchio — também serve para enfatizar sua liminaridade. Embora, em certos aspectos, uma figura menos impressionante do que Menocchio, Pighino pode, de fato, ter participado das leitu-ras do famoso herético Paolo Ricci, mais conhecido como Camillo Renato (e que também atendia pelo nome humanista de Lisia Fileno) (p. 184 e 185). Aqui, haveria um contexto discursivo efetivo conectando elementos da cultura popular com segmentos heterodoxos da alta cultura. Ainda mais surpreendente: Ginzburg nota que o julgamento de Menocchio em 1599 quase coincidiu com aquele de Giordano Bruno — uma quase coincidência “que po-deria simbolizar a dupla batalha, para cima e para baixo, conduzida pela hierarquia católica naqueles anos” (p. 191).

Ademais, em certos aspectos, Menocchio estava também situado no limiar entre a cul-tura popular e a cultura dominante. Ele queria intensamente estabelecer um intercâmbio com os seus “superiores” e, às vezes, esse desejo alimentava sua impudência. Nas palavras de Ginzburg, Menocchio “sentira a necessidade de se apropriar ainda do patrimônio de conhe-cimentos de seus adversários, os inquisidores. Percebe-se, portanto, no caso de Menocchio, um espírito livre e agressivo, decidido a acertar contas com a cultura das classes dominantes” (p. 179). Essa necessidade — eu acrescentaria — parece muito moderna, pois é uma neces-sidade que confronta os críticos, hoje, em todos os níveis da cultura.

Porém, a complexidade dessa figura da resistência não termina aqui. Menocchio era, de fato, alguém que teve muitos papéis sociais no nível da própria cultura popular, incluindo,

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de forma proeminente, aqueles de camponês e moleiro. Ele lavrava a terra e, não obstante, vestia-se com o traje branco tradicional do moleiro. Perto do fim do livro, Ginzburg intro-duz considerações que indicam tanto a existência de certas tensões nas classes populares quanto a posição especial dos moleiros na cultura popular:

A hostilidade secular entre camponeses e moleiros consolidara a imagem do moleiro esperto, ladrão, enganador, por definição destinado às penas do inferno... A acusação de heresia casava muito bem com tal estereótipo. Contribuía para alimentá-la o fato de o moinho ser um lugar de encontros, de relações sociais, num mundo predominantemente fechado e estático. Um lugar de troca de ideias, como a taverna e a loja... As próprias condições de trabalho faziam dos moleiros - analogamente aos taverneiros, comerciantes, artesãos ambulantes - um grupo profissional aberto às ideias novas e propenso a difundi-las. Além disso, os moinhos, situados em geral longe das habitações e dos olhares indiscretos, serviam muito bem de abrigo para reuniões clandestinas. (p. 181-182)

Temos, então, Menocchio — moleiro, camponês e tocador de violão nos festejos — re-sistindo à cultura hegemônica, não obstante querendo entrar em controvérsia com ela, pro-fundamente interessado em certos livros, e transmitindo uma cultura oral conectada a certos aspectos heterodoxos da alta cultura. Poder-se-ia também chamá-lo de protointelectual, uma versão primitiva do que Gramsci viria a chamar de intelectual “orgânico”, um intelectual vindo das classes populares, não obstante capaz de abordar a cultura hegemônica e a alta cultura no interesse dos oprimidos? Talvez. Ginzburg indica como Menocchio confrontou um problema que se havia tornado familiar no período moderno: aquele de se dirigir a uma audiência dividida. “Ele apresentava aos concidadãos ignorantes uma versão simplificada, exotérica, de suas ideias: ‘Se pudesse falar, falaria, mas não quero falar’. A versão mais com-plexa, esotérica, era, entretanto, reservada para as autoridades religiosas e seculares, a elas desejava com ardor se dirigir: ‘Eu disse’, declarou aos juízes de Portogruaro, ‘que, se me fosse permitida a graça de falar diante do papa, de um rei ou príncipe que me ouvisse, diria muitas coisas, e, se depois me matassem, não me incomodaria’” (p. 112-3).

Qualquer que tenha sido o caso na época de Menocchio, períodos posteriores manifesta-riam formas exacerbadas desse problema, e os intelectuais puderam se esquivar da necessida-de de falar em duas vozes, à medida que a própria cultura popular parecia sitiada, senão apa-gada, e novos modos de dominância tomavam forma. Mesmo a apropriação na alta cultura de tradições populares mais antigas poderia assumir formas esotéricas ou herméticas, que as faziam inacessíveis a uma audiência mais ampla. E, como destaca Ginzburg numa nota de rodapé, o período moderno acrescentou uma outra dimensão da cultura, a cultura mercan-tilizada ou de massa — algo que ainda não existia no século XVI, ao menos em nenhuma forma que se aproximasse da sua forma moderna (p. 200, n. 3). A cultura mercantilizada afe-

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ta todos os outros níveis da cultura e tem relações complexas com a cultura hegemônica em geral e com a cultura estatal oficial em particular. A extensão em que ela assimilou a própria cultura popular, bem como a extensão em que é pontuada por forças de crítica e resistência, é uma história intrincada, cuja exposição nos levaria muito longe.

Todavia, a proximidade de Menocchio, “um homem como nós, [...] um de nós”, um homem cuja história “coloca implicitamente uma série de indagações para nossa própria cultura e para nós” (p. 9), é uma questão multifacetada. O que eu enfatizaria, na conclusão, é a relevância da dimensão de transferência da pesquisa na própria profissão histórica. Na academia, temos testemunhado, em pequena escala, a emergência de várias heterodoxias, e nos encontramos em um ponto em que a própria definição de ortodoxia está em questão. Como sempre, há uma relação significativa entre questões intelectuais e questões institucio-nais. Ver Menocchio predominantemente como portador de uma cultura popular oral, à qual é conferida uma posição privilegiada na interpretação, facilmente serve para reforçar as relações hegemônicas na historiografia profissional. Se um certo nível da cultura representa a realidade primordial, então, é um passo muito curto para a suposição de que aqueles que a estudam são os “verdadeiros” historiadores, aqueles que se concentram nas coisas mais im-portantes. Poder-se-ia facilmente reunir evidência oral e escrita para apoiar o argumento de que um certo número de historiadores deu esse passo. O resultado é um paradoxo bizarro e vicioso, no qual uma relação vicária com os oprimidos do passado serve como pretexto para pretensões contemporâneas de dominação. Porém, um entendimento diferente dos proble-mas pode promover um relato mais acurado da interação entre aspectos da cultura no pas-sado, bem como uma concepção construtiva das suas relações desejáveis no presente, tanto dentro da profissão histórica quanto além dela.7

7 Os elogios a O queijo e os vermes têm sido muitos. Porém, a recepção do livro entre os especialistas não esteve destituída de reação crítica. Para a sua mais extensa análise crítica, que, de uma forma restrita, converge com o argumento deste ensaio, ver ZAMBELLI, Paola. Uno, due, tre, mille Menocchio? Archivo storico italiano, 137, p. 51-90, 1979. Essa é a crítica à qual Ginzburg tenta responder na longa nota de rodapé à edição em língua inglesa (p. 154-155), que eu discuti. Ver também as reservas contidas nas resenhas de COHN, Samuel Jr. Journal of Interdisciplinary History, 12, p. 523-25, 1982; MIDELFORT, Erik H. C. Catholic Historical Review, 68, p. 513-14, 1982; VALERI, Valerio. Journal of Modern History, 54, p. 139-143, 1982. Embora tenha aparecido antes da publicação de O queijo e os vermes, “Carlo Ginzburg”, de SCHUTTE, Anne Jacobson. Journal of Modern History, 48, p. 296-315, 1976, contém algumas observações que são pertinentes ao seu argumento. Schutte enfatiza o papel da óbvia animosidade de Ginzburg em relação à Igreja Católica e em favor da cultura “pagã”. Eu escolhi enfatizar a relevância um tanto ou quanto menos aparente da abordagem de Ginzburg para a própria profissão histórica. Schutte também levanta algumas questões penetrantes sobre as limitações no uso de Ginzburg dos registros da Inquisição como fontes.

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Referências bibliográficas

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Por uma história política do culturalEntrevista

Fernando Bouza*

A história, tal como a escreve Fernando Bouza, vai de par com seu gosto profundo pelo arquivo e pelo livro. É ele que guia o caráter de sua vasta obra, que não se pretende inovado-ra, mas que inova, de saída, pela inclusão imediata de sua própria experiência — não apenas crítica, mas também sensorial — de historiador entre livros e papéis. É assim que a mate-rialidade dos textos e sua lógica de classificação e de conservação, antiga e moderna, passam a constituir o rol de instrumentos de reflexão desse historiador das sociedades ibéricas do Antigo Regime. As formas orais, visuais e escritas (manuscritas e impressas) de emissão e de recepção cultural, com seus efeitos políticos plurais, surgem em seus livros numa diversidade de estudos de casos que não apenas informam as descontinuidades das modalidades de co-municação, de conhecimento e de memória. Elas servem também para redefinir as pergun-tas a serem lançadas sobre as múltiplas formas políticas do Estado moderno, desconstruindo assim a teleologia historiográfica do exercício central do poder monárquico.

Há pouco mais de dez anos, exatamente em 2003, Bouza concedeu uma entrevista à revista Topoi.1 Aqui, esse diálogo se renova em torno de quatro grandes blocos temáticos. O primeiro bloco é dedicado à sua obra, na sua relação com a historiografia, nesta última década. O segundo, sobre o trabalho do historiador, trabalho de arquivo, de que ele é grande especialista. O terceiro é dedicado à sua visão da historiografia contemporânea. E o quarto é voltado para as potencialidades de uma agenda de estudos que poderíamos chamar, de maneira genérica, de o “período filipino”, em que se inserem muitos de seus trabalhos, reco-brindo, evidentemente, Espanha e Portugal, mas também o Brasil.

Andrea Daher: Lembro que, na entrevista concedida em 2003, você nos falava da abordagem — muito original, naquele momento — dos usos orais e visuais de determinados objetos, pela cultura aristocrática de corte nos séculos XVI e XVII. Era o momento da publi-cação do seu livro Palavra e imagem na corte: cultura oral e visual da nobreza no Século de Ouro (Madri: Abada Editores, 2003). Com este livro, pode-se dizer que comunicar e forjar

* Entrevista realizada em 19 de junho de 2013, no Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ. Apresentação, edição e revisão final de Andrea Daher.1 BOUZA, Fernando. Entrevista. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, p. 357-361, jul./dez. 2003. Disponível em: <http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/Topoi%2007/topoi7ent.pdf>.

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memória, à época, eram elementos eficazes nas lutas de representação do que você chama “ethos estamental”, ou seja, a produção de distinção e de legitimação pela aristocracia corte-sã — o que você estabelecia em sintonia com as proposições de Norbert Elias. Passados dez anos, a pergunta agora seria a seguinte: o que mudou, do ponto de vista da historiografia, de um modo geral, em relação precisamente à oralidade, à produção de memória, nessa chave de análise das lutas de representação de um “ethos estamental” como o da aristocracia de corte do Século de Ouro e, em suma, em relação às conclusões mais importantes veiculadas no seu livro, em 2003?

Fernando Bouza: Em primeiro lugar, quero agradecer o convite, a presença de todos e especialmente a atenção e a confiança que depositaram em mim, ao imaginar que me ouvir pode ter algum resultado positivo.

Com relação à pergunta, a mudança foi importante. Importante no meu próprio traba-lho, mas, também, na historiografia de que meu trabalho, obviamente, é só um eco. Resu-mindo, acho que se produziu uma recuperação, pelo menos em parte, de horizonte. Explico brevemente. Quando, há dez anos, eu trabalhava sobre a palavra e a imagem na cultura aristocrática, tentava voltar minha atenção para fenômenos que não tinham sido estudados até esse momento. Era, especialmente, uma tentativa de recuperar “vozes”. Ainda me movia a ideia de reconstruir as categorias da época, “seu” léxico, “suas” formas de expressão, “sua” luta política. Esperava poder encontrar no oral e no visual expedientes de luta política e de diferenciação. Dez anos depois, acho que tentei — e tento ainda — não apenas reconstruir as categorias da época. Cada vez mais, estou a procura de um horizonte maior. É como se a historiografia internacional voltasse a desejar ter um horizonte. O que quero dizer com “horizonte”? Isso não supõe, de modo algum, voltar à ideia clássica de progresso, recuperar a ideia de que “é preciso saber como se lia em 1450 para explicar que hoje lemos de uma maneira e não de outra”. Creio que os tempos e os espaços foram ampliados. De alguma maneira, recuperei objetivos que me fazem medir a história com séculos mais longos, me afastando talvez um pouco mais do contexto concreto da aristocracia ibérica. Esse horizonte, para mim, e, pelo que entendo, para muitos outros historiadores, é o surgimento da esfera pública. Quer dizer, trata-se de uma história da comunicação que passou, creio eu, a ser uma história da comunicação política. Eu sempre quis fazer história cultural da política, uma história cultural social. E, no fundo, me atreveria a dizer que faço mais história social do que história cultural. Mesmo que estes sejam termos de bandeiras ou etiquetas, por assim dizer. Eu sempre me considerei um historiador generalista, um historiador do mundo ibérico dos séculos XVI e XVII.

Voltando ao argumento sobre o que mudou nos últimos dez anos: passei de uma história da comunicação e da memória a um objetivo maior, o da construção da esfera pública. Quer dizer, agora, quando falo de voz, de imagens, de imprensa e de cópia manuscrita, eu o faço

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tentando reconstruir um processo maior, um laboratório em que surgiu uma esfera pública, relacionado com os meios de comunicação. Assim, mudei, ampliei a escala; continuo fazen-do estudos de casos, pensando por casos — poderíamos dizer assim, penser par cas —, mas agora com uma escala maior no tempo e no espaço, e com um horizonte. Não digo meta, não digo destino; digo horizonte, o que seria a construção da esfera pública e o surgimento da opinião pública. Isso mudou, e para mim foi uma mudança natural e importante.

Andrea Daher: E como se deu essa construção, então, em torno da esfera pública?

Fernando Bouza: Como vocês sabem, a história da imprensa é uma história de revo-lução: a célebre “revolução da imprensa”. Eu vou contar desta maneira. Em primeiro lugar, se supunha que a imprensa era uma revolução do moderno diante do medieval. Hoje, esta é uma ideia completamente superada. A segunda ideia de revolução da imprensa é a de que ela surge como um novo sistema que gera o racionalismo, segundo o modelo de McLuhan, que também foi, em parte, superado. A terceira ideia, que acho a mais interessante, é a de que a imprensa não foi revolucionária nem pelas suas produções nem porque gerou uma forma única de leitura, já que existiam formas de leitura em voz alta etc. Mas ela foi “revolucioná-ria” — e revolucionária entre aspas —, sim, porque gerou novas relações e novas realidades para a época. A primeira delas seria o público moderno, que é uma realidade muito pouco estamental. A segunda tem a ver com as possibilidades mercantis próprias da imprensa. Elas fizeram com que o mundo do que foi chamado “cultura popular”, ou pequena tradição, se preferirem, se transformasse em texto impresso e pudesse ser consumido por pessoas de tradição letrada. Mas, ao mesmo tempo, a grande tradição pode ser difundida no mundo da pequena tradição por meio da imprensa em línguas vernáculas, através da edição dos clássicos romantizados, de formas de leitura em voz alta etc. Quer dizer que aqui a imprensa se apresenta como revolucionária não por ser promotora de um novo corpo de textos, mas pelas novas relações sociais e políticas que pode gerar. De um lado, sabemos bem, está a pro-paganda que vem de cima para baixo e que recorreu amplamente às imprensas tipográficas; de outro lado, de baixo para cima, há o fato de que as populações puderam dar respostas às medidas tomadas pelos governantes sobre a base de textos que também puderam chegar à imprensa. Portanto, a imprensa me interessa como uma forma de fazer chegar, de colocar em circulação conhecimentos, notícias, afetos, o que quisermos. E também como um elemento de construção de novas comunidades. O público moderno é, para mim, uma comunidade totalmente nova, entendido como público massivo e indiscriminado. E isso, claro, me faz lembrar que Gabriel Naudé — que todos vocês conhecem, autor do clássico do pensamen-to absolutista, Considérations politiques sur les coups d’ état (1639) — era bibliotecário. Esse público moderno, como digo, é um público não estamental: porque há pessoas de distintas condições, letradas e iletradas, que fazem leitura em voz alta, e pessoas com representação

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política diferenciada (nobres, eclesiásticos, povo) que, entretanto, estão unidas porque leem os mesmos textos e porque gostam dos mesmos textos. Em Dom Quixote (I, 32), vocês lem-bram, todos gostam dos livros de cavalaria: o fidalgo, o sacerdote, Sancho, o taberneiro, a mulher do taberneiro, Maritornes etc. Pessoas que sabem ler e outras que não sabem. Pes-soas que, no fundo, do ponto de vista da representação estamental pertenceriam a mundos diferentes, mas que, entretanto, estão unidos porque todos eles leem ou ouvem ler livros de cavalaria, que são os de que mais gostam. Essa nova comunidade criada pela imprensa pare-ce ter tido também uma atração muito forte para os reis que, não em vão, ao longo da Idade Moderna, da Alta Idade Moderna, se transformaram em autores. Elizabeth da Inglaterra é tradutora e autora; Jaime VI, Stuart, é autor publicado; Felipe IV de Habsburgo é tradu-tor; Luís XVI é tradutor publicado; Felipe V de Bourbon é tradutor publicado. Do ponto de vista da história do poder, pensem nas possibilidades de imaginar uma nova forma de representar a comunidade política, na qual o reino é o público — massivo, indiscriminado, da imprensa — e o monarca absoluto, este sim absoluto, é um autor. Para mim, isso supõe grandes possibilidades. E, na prática, acho que para o mundo ibérico isso foi importante. É claro, devo fazer operações que, em princípio, são operações de reconstrução do vocabulário político e do léxico da época, a que nunca vou renunciar, e vou continuar pensando por casos. Mas, agora, talvez, com um horizonte temporal maior, de 1521 a 1711, por exemplo.

E, também, mudei a escala. Por exemplo, como lhes dizia, tenho de voltar a pensar a propaganda. Até agora, aceitamos que a propaganda era coisa própria dos reis. Mas, agora, nos deparamos com o fato de que se publicam textos em defesa e de legitimação de uma conduta particular, comunitária, coletiva, através da imprensa ou do manuscrito. Isso foi algo feito por todos os tipos de pessoas, de indivíduos a corporações, a cidades, grêmios, transformadas em pessoas ou grupos que desejam tornar públicas as suas razões para agir de uma forma ou de outra. Por exemplo, Francisco Manuel de Melo: esse grande escritor português foi detido em Madri ao voltar da Guerra da Catalunha, suspeito de ser um agente dos Bragança, depois do Primeiro de Dezembro de 1640. Uma cédula real de Felipe IV, de março de 1641, o isenta de qualquer dúvida sobre a sua lealdade. D. Francisco Manuel faz com que esse texto seja publicado, o leva à imprensa, de forma a transformá-lo num texto que possa ser apresentado como testemunho de sua lealdade. É verdade que teve de impri-mir poucos exemplares, pois a cédula de 1641 é uma peça muito rara no corpus de Francisco Manuel de Melo, possivelmente a mais rara que existe. Eu, pelo menos, só consegui ver um exemplar na minha vida. Esse impresso é também, sem dúvida, propaganda, mas propagan-da de um só. E, além disso, a propaganda, a vontade de difundir, de justificar e de tornar pública uma postura determinada pode ser propaganda desde baixo, não só de cima, como a clássica propaganda monárquica.

Sabe-se, ainda, que houve pessoas analfabetas que buscaram um memorialista para que escrevesse por eles um “papel”, e que, mais tarde, o fizeram ser publicado. Porque, no final

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das contas, a imprensa tem uma dimensão fortemente mercantil. Onde houvesse uma insta-lada, todos poderiam recorrer a ela e, por mais que nos custe acreditar, era relativamente fácil se transformar em autor no século XVII. De forma que, insisto, trabalhando sobre casos de particulares que recorrem à imprensa dizendo “meu parecer sobre a Guerra de Portugal é este ou aquele”, me vejo frente ao fato de que, efetivamente, eles participam no debate comu-nitário através da imprensa, e que esta gerou novos autores, como disse.

Alguns desses novos autores foram pessoas comuns; pessoas que, possivelmente, não te-riam tido a chance de participar de um debate até essa eclosão seiscentista da imprensa. E a situação se torna, inclusive, ameaçadora, de forma que se criou em 1648, na Espanha, uma nova instância jurisdicional, sobre a qual não sabíamos quase nada até dois anos atrás: o “Juiz Superintendente de impressões e de livros relativos ao Governo Geral e político e causa pú-blica”. Foi criada em 1648 por Felipe IV, precisamente, para que existisse um juiz único e privativo que aprovasse, que censurasse as obras, em ocasiões apenas de papéis de poucos ofí-cios, que tratassem de assuntos de governo geral e de causa pública. Isso porque cada vez mais havia particulares que usavam a imprensa para tornar públicas suas ideias e observações. E, dessa maneira, pude passar de uma história das formas de comunicação para uma história da esfera pública. No fundo, o que me interessa não é exatamente quais foram os argumentos das polêmicas, mas quais foram os meios mediante os quais as pessoas comuns ou os particulares puderam fazer com que se ouvissem seus pareceres sobre questões que antes eram gerais. Talvez não pudessem fazê-lo através das instituições representativas, como as cortes ou assembleias, nem mesmo através das facções da corte régia. Mas, para a minha surpresa, e possivelmente também para a surpresa deles naquele tempo, o puderam fazer graças à imprensa — que era, como já disse, um meio muito mercantilizado. Para os textos que não afetassem a religião ou o sistema político, a única coisa que era preciso fazer era ter uma autorização de censura prévia e reunir dinheiro para imprimir. Assim, se pode dizer que era muito mais fácil se transformar em autor de um texto impresso em 1630 do que em 1750.

Lise Sedrez: Nessas discussões sobre as modificações da imprensa e o papel que ela tem, em várias esferas, na criação do poder público, peço que você fale um pouco sobre o que representou, na região ibérica, essa mudança material. Estou me recordando de alguns trabalhos feitos sobre a produção de livros em Veneza, como o de Mario Infelise, L’editoria veneziana nel’700 (Milão: Franco Angeli, 2000). O que significou a produção do papel e a presença de imprensa em pequenas e grandes cidades? Essa difusão do ofício do tipógrafo, da criação da imprensa, como você disse, a ponto de qualquer pessoa, dentro de certos limites, poder publicar alguma coisa: o que isso significou nessa modificação da sociedade ibérica?

Fernando Bouza: No mundo ibérico, efetivamente, encontramos, no período barroco, um certo caos de imagens, de rumores, de textos. Um caos que me lembra alguns momentos

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do século XIX, como o período entre 1808 e 1814, na Espanha e em Portugal, quando se produz uma eclosão semelhante de textos, de imagens e de vozes. Porque, é claro, mesmo que eu tenha falado aqui de imprensa, quero lembrar que de nenhuma maneira se pode imaginar o passado sem manuscritos, sem imagens e sem vozes. Sem esquecer tudo isso, na minha opinião, a imprensa é possivelmente o mais operativo desses sistemas, precisamente porque é um sistema muito mercantilizado. Quer dizer, é um sistema no qual a relação com os impressores é mercantil: alguém tem um texto e busca imprimi-lo. Se for um texto que não vai ser vendido, ou seja, se não for produzido um lucro econômico com a venda desse texto, na Espanha dos séculos XVI e XVII não era necessário pedir licença real aos Conselhos para imprimi-lo. Por exemplo, se alguém fizesse um memorial sobre a Guerra de Portugal e não o quisesse vender, este texto poderia ser impresso legalmente, sem autorização oficial, até 1648. É importante que isso seja lembrado.

Ademais, é o particular que vai à imprensa com seu manuscrito e paga para que ele seja impresso. É, por assim dizer, como fazemos hoje os nossos cartões de visita. Imaginem que vocês vão a uma gráfica e encomendam cem cartões de visita — pessoalmente, meus pais en-comendaram cartões de visita para mim quando me tornei doutor, imagino que algo assim tenha acontecido com todos nós. Bem, como disse, alguém chegava com um parecer sobre a Guerra de Portugal junto a um impressor e fazia imprimir cem pareceres, que eram postos em circulação direta, pois não havia um sistema editorial como o atual, nem nada do estilo. E, durante boa parte dos séculos XVI e XVII, as normas ainda eram frouxas para este tipo de impressão que não se vendia.

Por último, observo que a imprensa chega também a todo lugar onde se instalou a ma-quinaria para imprimir. A própria reprodutibilidade da mecânica impressa é relativamente simples. Por exemplo, o irlandês Albert O’Farail, ou O’Ferral, chegou a Madri na década de 1670 com a pretensão de imprimir livros para a missão da Irlanda. Ele dizia que os li-vros impressos eram missões mudas, porque nos lugares onde os missionários não podiam chegar, chegavam os livros. E este Mr. O’Farail não encontrou ninguém em Madri que soubesse compor os caracteres de imprensa em inglês; talvez ele também não os encontrasse, se procurasse hoje. E o que ele fez? Aprendeu ele mesmo, se transformou em impressor, se tornou autor do texto e seu compositor. Algumas pessoas tiveram imprensas particulares em suas casas. Por exemplo, em meados do XVII, Gaspar de Haro, marquês do Carpio, teve uma imprensa completa em sua casa que, é claro, não era ele que movia. Mas, nela, o marquês editava pequenos folhetos das comédias do Coliseu de Madri, cujos exemplares presenteava de forma exclusiva. Ramiro Nuñez de Guzmán, duque de Medina de las Torres, também teve uma imprensa para seus pleitos. Em suma, onde há imprensa, pode haver livros impressos. Se pensarmos bem, é particularmente nas reduções jesuíticas do XVIII que, se há imprensa e alguém que sabe usá-la, há impressos. Neste sentido, é certo que a imprensa gera novos autores porque mercantiliza a escrita e a autoria. E, em segundo lugar, porque

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onde existir alguém que saiba imprimir (e como acabamos de dizer, não era tão complicado aprender a fazer isso), poderá existir um impressor. A reação foi complicada e dupla: de um lado, encontramos testemunhos dos outros impressores, aqueles que faziam livros para auto-res mais “honrados”, que reclamam desses pequenos textos, dizendo que são apenas receitas ou miudezas, que não valem nada, e que são eles que fazem os grandes livros. De outro lado, esses novos autores publicados que têm acesso à imprensa são muito criticados pelos autores considerados profissionais. Quer dizer, a República das Letras hispânica reclamava muito dessa profusão de letras. Por exemplo, este é o caso do autor chamado Luiz López, que era um confeiteiro, que fazia massa folhada, e tinha aberto algumas lojas em Saragoça, o que o tornou bastante rico. O confeiteiro tinha comprado os manuscritos de um erudito genealo-gista. Assim, com esses antigos manuscritos e sua própria curiosidade, decidiu se converter em autor impresso. E, de fato, ele publicou vários livros sob seu próprio nome — neste caso, livros completos, não folhetos —, que imprimiu por sua conta, pagando diretamente os gastos da emissão. Os cronistas e os autores autorizados — me permitam a expressão — se indignaram. Um deles o chamou depreciativamente de “o folheador”; outro afirmou: “tristes tempos, quando qualquer um se atreve a escrever e estampar”. O próprio López responde, em 1638, que, por mais que não escrevesse com “pena de ganso”, tinha o direito de “fazer a ponta com tantas outras, como as das águias que voam nas alturas”.2 O que mais me in-teressa aqui é essa ideia de que a imprensa gera e propicia o aparecimento de novos autores.

Lise Sedrez: Esses comentários parecem espelhar a reação de certos jornalistas à criação de blogs, nos dias de hoje, na internet.

Fernando Bouza: Isso me interessa muito. Vejam, o mundo da internet é um mundo que lembra muito essa espécie de caos que estou tentando apresentar a vocês. A internet gerou, primeiro, a estupefação dos autores tradicionais. Pouco a pouco, eles foram se in-corporando à rede. Mas, se observarmos bem, o que a internet faz é gerar novos autores. Novos autores que recuperaram formas antigas de autoria. Quer dizer, há novos autores que, tomando uma parte aqui e outra acolá, se tornam compiladores. Há novos autores que são glosadores, que comentam os textos de outros e os guardam. Há novos autores que são pessoas que unicamente colocam textos na rede. Então, esse impacto das novas tecnologias, concretamente o da internet sobre a autoria, me parece bastante interessante. Não é que aconteça o mesmo com a imprensa, é claro que não. Mas trata-se, sim, de uma difusão que gera novas escritas, novas práticas.

A reação dos Felipes, no século XVI, foi um pouco singular. Primeiro, houve reclama-ções: o marquês de los Vélez, em 1599, lavra uma frase na pedra: “Já não existe quem não imprima.” No final do século XVI, todo mundo já imprime. Foi então que houve, como

2 “hacer punta con tantas otras como vuelan de remontadas águilas”.

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disse, a criação em 1648 do cargo de juiz superintendente em matérias de imprensa, uma figura especial para que todos os textos impressos tivessem um juiz único. O poder não sabe, portanto, como reagir diante do surgimento de tantos autores, e tenta controlá-los, precisamente com medidas como a criação dessa nova magistratura para textos que, até esse momento, como dissemos antes, estavam circulando sem censura.

Imagino que isso também nos permita compreender ou refletir sobre o que acontece na atualidade. Sou muito pouco chegado a fazer comentários sobre a atualidade por temor de cair em preconceitos. Entretanto, proponho que vocês estabeleçam a relação por si sós: quem quiser ver uma relação entre a imprensa popularizada, digamos, do barroco ibérico, e a situação da internet hoje, que o faça. Mas não fui eu quem fez, apenas deixei a evocação em sua memória (porque, claro, jogo com a memória de vocês)!

Voltando à ideia do caos que imperava nos anos 1600, 1610, 1620, havia um grande número de autores na Inglaterra, na França, na Espanha e em Portugal que se perguntavam, inclusive com humor, o que estava acontecendo naqueles tempos em que viviam, quando tudo estava mudando. Um autor inglês como Gabriel Harvey se perguntava por que as pes-soas não estavam lendo o que deveriam ler. O letrado lê livros de cortesãos, lê Castiglione, e não Duns Scott. É um mundo às avessas. Em Portugal, no texto satírico que eu mencionava antes, se pergunta: “O que está acontecendo? Por que não comemos o que é nosso e, sim, o que é dos outros?”. O texto lusitano Senatus consultus, de Celorico,3 diz que os brasileiros comem seus abacaxis, enquanto os portugueses comem goiabadas e açúcar de mel. Este é um testemunho de uma precoce globalização alimentícia. Existem vários testemunhos do começo do século XVII que falam de um mundo que está se mesclando. Com efeito, a imprensa é um instrumento dessa mescla, e isso a torna especialmente interessante. Mas, é claro, ela também apresenta seus problemas. Por exemplo, como vocês já sabem, ela fixa os textos, reproduzidos em centenas de exemplares a partir de um único original.

Eugenio Asensio, esse grande autor espanhol que todos os historiadores modernistas espanhóis gostariam de ter como mestre — todos, de alguma maneira, procuramos esta-belecer uma relação para poder dizer que somos discípulos de Asensio —, percebeu que a imprensa tinha permitido que os romances populares chegassem até nós em versão impressa. Mas Asensio se perguntava se isso não teria custado ao romance o freio de sua evolução. Porque a imprensa, de alguma maneira, ao fixar o texto, o seca, o transforma em algo fóssil. Assim, é claro, ele pode ser copiado, imitado, reproduzido, mas tende a perder uma parte de sua capacidade de nova criação.

Voltando ao tema da atualidade, percebam que o que a internet não conseguiu superar foi o códice. As primeiras imagens de textos na internet editados na rede nos fizeram recu-

3 Senatus consultus, texto enviado pela vereação de Celorico, em 1624, ao Conselho de Portugal, em Madri. Cf. MARTINS, Carla. Bibliografia crítica sobre a temática de Celorico da Beira. Dissertação (Mestrado em Ciências Documentais) — Universidade da Beira Interior, Covilhã, 2011.

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perar o mundo do rolo. Temos o rolo na tela, como se voltássemos à imagem da leitura em rolo, um rolo que vai passando. Mas os editores perceberam que isso tinha inconvenientes. Por exemplo, nos primeiros anos da internet, as pessoas não podiam parar de ler um texto num dia e voltar a ler no dia seguinte, no mesmo ponto. Isso, que antes não era possível fa-zer, agora é. Por isso, ler hoje na internet significou recuperar uma série de práticas próprias da leitura do códice como desenho. Já podemos, assim, marcar o lugar em que deixamos a leitura na tela. A tela pode aparecer dividida em duas folhas; alguns servidores, inclusive, nos permitem ouvir um ruído de página quando se muda a folha/tela. Quer dizer, a internet mudou, sim, o estatuto do autor e do público, mas ela não conseguiu ir no sentido contrário dessa forma maravilhosa que é o códice. Trata-se de um desenho, dos melhores desenhos que existem, e que está há quase dois milênios entre nós.

Um autor de sermões do começo do século XVII, por exemplo, se pergunta se é melhor ouvir ou ler um sermão. Evidentemente, é melhor ouvir um sermão, por conta do aspecto retórico — a expressividade do sermão que se ouve quando o padre, com sua voz educada, pode ir do sussurro ao grito, é muito difícil de transportar às figuras da retórica em papel. Mas esse mesmo autor diz que, por mais que o sermão ouvido diretamente seja melhor, o sermão escrito é também muito proveitoso porque nos permite deixar de ler hoje, dormir e voltar a ler amanhã, exatamente na mesma passagem em que se havia parado. E, sem dúvida, os sermões que duravam muito tempo — os sermões de verão não podiam durar mais de duas horas; os sermões de inverno podiam durar até mais de três horas — eram um exercí-cio, uma representação que não podemos imaginar hoje em dia.

Com o livro, posso chegar exatamente numa passagem e lê-la no dia seguinte. O códice, como vocês bem sabem, permite ainda comparar duas passagens textuais. Por exemplo, uma do Antigo Testamento e outra do Novo, ou uma passagem do Êxodo e outra do Evangelho de São João. Esta operação é muito difícil de ser feita a partir de um rolo, de um pergami-nho em rolo, mas muito simples a partir de um códice/livro. Era o que acontecia com as telas antes de a internet dar o salto e imitar o códice. Talvez a internet pudesse acabar com o códice, mas, na prática, acabou por imitá-lo. O desenho do códice, por enquanto, é bastante durável.

Andrea Daher: O segundo problema é a prática do comentário, da glosa, que tem de se transformar na relação com suportes como o rolo e, hoje, a tela.

Fernando Bouza: Sim, é claro. O mundo medieval teve quatro grandes figuras de autoria: o escritor, o compilador, o glosador e o autor. O primeiro é aquele que copia o texto materialmente. O segundo reúne partes do texto para fazer um novo, tomando, por exemplo, capítulos de Aristóteles, Sêneca ou Cícero (imaginem esta operação hoje, com a internet, é fácil fazer). O terceiro parte de um texto e faz glosas que podem ser incorporadas

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no texto principal ou ao lado dele, na forma clássica de mandorla.4 O quarto seria o autor, que escreve um texto novo, tendo por base suas leituras e citações de obras anteriores. É nesta figura de autoria que prima a imprensa. Agora, recuperamos formas de autoria que, de alguma forma, tinham se perdido durante o período da imprensa manual e mecânica.

Andrea Daher: O universo de circulações, de usos, de emergência de novas práticas através desses usos, pode ser caracterizado por uma figura conceitual, digamos, que é a figu-ra da tensão. Na verdade, quando você diz que um texto fixa, ao mesmo tempo há fixação e há mescla. A eficácia dessa categoria “mescla” talvez seja maior para o século XVI do que a de globalização, sobretudo nesse mundo em que o oral, o escrito e o icônico convivem em interface. É nesse sentido que há sempre tensão, e nunca totalmente fixação. Em todo caso, há formas de uso mais plásticas, como as que você descreve num livro, publicado em francês, que se intitula Hétérographies: formes de l’ écrit au Siècle d’Or espagnol (Madri: Casa de Velázquez, 2010). A ideia de tensão define muito bem uma heterografia. Na sua última resposta, você nomeou três formas de heterografia que correspondem à seguinte tipologia: uma primeira heterografia seria a da palavra escrita como produtora de presença de alguma coisa ausente. Uma segunda heterografia seria a persistência da manuscritura, cuja análise encontramos, ainda, em outro livro seu, Corre manuscrito: una historia cultural del Siglo de Oro (Madri: Marcial Pons, 2001). E, em terceiro lugar, a tradução. Creio que essas três heterografias são campos férteis para se pensar a tensão entre fixação e plasticidade de deter-minadas práticas culturais.

Fernando Bouza: A heterografia é outra forma de ver a cultura escrita, outra grafia. Em primeiro lugar, o mais interessante é que se trata de uma noção que, de alguma forma, implica reconhecer que cada um de nós, cada um dos ouvintes, cada um dos escritores, dos historiadores, no final das contas se depara como autor diante de um público. É uma história que se repete uma vez ou outra, quando temos então de lidar com a memória dos outros. Memória no sentido das expectativas dos outros, o que eles já sabem, as tópicas, os lugares comuns. De forma que escrever heterografias supõe partir do fato que há uma “orto-grafia” em que se resume a história cultural da escrita para o mundo ibérico dos séculos XVI e XVII. Ou seja, a heterografia carrega implícito o reconhecimento de que primeiro existiu uma ortografia, quer dizer, uma forma correta de escrever sobre a cultura escrita do período moderno. E nessa cultura “ortografada” (que assinala o que teria sido o correto), em vez de formas eficazes, nas quais a escrita produz efeitos sensíveis por si mesma, encontrávamos usos racionais que falavam do texto como um depósito racional, um lugar que deve ser de-sentranhado através da razão. Isso fazia com que fossem ocultados outros usos que os textos escritos também tinham no Século de Ouro, quando podiam ser tocados, apalpados, senti-

4 Auréola de forma amendoada que, na arte religiosa, circunda uma figura sacra.

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dos sobre a pele ou, até mesmo, ingeridos, comidos. Em segundo lugar, a ortografia passou a dizer respeito à imprensa, e não ao manuscrito. Em terceiro lugar, os textos se centravam nos autores (Cervantes, Camões, Faria e Sousa), e não nos tradutores. Ou seja, para mim, a primeira ideia de heterografia relaciona-se com a ideia de se fazer outra história da cultura escrita, oral e visual dessa época. E também há algo de heterográfico no fato de insistir que esta história pode ser escrita também no arquivo — coisa que, para mim, é especialmente importante —, ou que essa outra história é tão ou mais rica do que a história tradicional.

No fundo, o que é proposto é algo que todos sabemos e, mesmo assim, esquecemos com frequência: o passado é um lugar distinto. Eu gosto muito da ideia de alteridade do passado. Quando visitamos a Biblioteca de San Lorenzo do Escorial de Felipe II — cuja imagem certamente vocês têm em seu imaginário por fotografias —, percebemos que os livros estão colocados ao contrário. Os livros não estão com a lombada para fora, mas mostrando os cor-tes das folhas, que são totalmente dourados. Como José de Sigüenza explicou no início do XVII, era desta maneira que se fazia para que os livros refletissem a luz da sala, a luz do co-nhecimento. Para mim, esta imagem é muito característica do mundo da cultura escrita da Idade Moderna, não só na Espanha e em Portugal, mas em todas as partes. Trata-se de um mundo distinto, porém igual, um mundo de alteridades. E a melhor maneira de imaginá-lo é esta: a imagem de um livro que é igual aos que eu conheço hoje, mas que está colocado de outra maneira, ao contrário. Tenho de descobrir por que está ao contrário. A explicação dada passava por buscar o reflexo material da verdade, que brilhava nas folhas do corte dos livros. Isso me levou, agora, a entrar em um território que é distinto: recorrer às categorias próprias da época para descrever uma prática concreta como a de colocar os livros ao contrário, algo que não era só Felipe II que fazia.

Portanto, a heterografia é uma maneira de dizer e de recordar que existe uma alterida-de da cultura escrita, e é uma espécie de manifesto da vontade de insistir nessa alteridade. Sim, tratamos de livros, autores, público, leitura, palavra, imagem, mas a primeira coisa que temos de fazer é saber se essas palavras significavam a mesma coisa que significam hoje. Porque, possivelmente, não significavam o mesmo em todos os casos. Portanto, a ideia de heterografia supõe também chamar atenção para as práticas. Reconstruir as práticas supõe ingressar no território da alteridade da cultura escrita, oral e visual do passado.

Escrever essas heterografias foi também um tour de force. Só é possível compreender o trabalho que fiz como resultado de um convite especial, para um auditório também muito especial, o do Collège de France, um lugar onde podem ser feitas heterografias. É nesse sentido que os valores apontados por Andrea Daher — eficácia, manuscrito e tradução — são heterográficos. E, ao afirmar que são heterográficos, se reconhece, ao mesmo tempo, o cânone imediatamente anterior. Além disso, insisto que é possível escrever de outra maneira, uma maneira que passe fundamentalmente pelas práticas, pois o heterográfico, assim como o heterodoxo, se reconstrói a partir de práticas.

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Andrea Daher: E o que a eficácia, o manuscrito e a tradução potencialmente trazem de heterográfico? Qual é a vantagem heurística desses três loci?

Fernando Bouza: Bem, em primeiro lugar, a eficácia teria a ver com o fato de que ler ou escrever ou nomear têm um efeito criador. Na época moderna, amaldiçoar um filho podia significar que, de fato, o filho ficasse amaldiçoado; ler o nome de um herege podia provocar algum efeito maligno sobre a pessoa que o lê, inclusive físico, mas não um efeito intelectual, nem moral. A isso, chamaríamos eficácia. São reflexos de um mundo de práticas de leitura que não passam pela leitura racional da tópica homo typograficus de Marshall McLuhan. Quer dizer, são formas de apropriação dos textos que não têm a ver com o intelecto ou com a razão, mas que têm a ver com os sentidos. É uma chamada ao sensorial na leitura. Por exemplo, livros para recém-nascidos. Por acaso eles os podem ler? Evidentemente, não. Mas esses livros — geralmente versões abreviadas dos evangelhos — têm eficácia por si sós. A acumulação de casos mostra que, tanto em meios cortesãos como em meios “populares”, em meios letrados e não letrados, foram registrados usos nos quais a escrita relacionava-se com os sentidos e não com a razão. Por exemplo, a prática de ingerir textos, de comê-los, é algo que para nós hoje em dia é uma doença — a ingestão de papéis escritos está descrita tecnica-mente como uma doença, uma forma de transtorno alimentar, conhecido como “transtorno de pica”. Há uma personagem da Comédie de Honoré de Balzac (1840), Pierrette Lorrain, que come papéis, que come folhas de livros, porque sofre clorose férrica, ou seja, uma forma de anemia. A tinta ferrogálica a satisfaz, pelo fato de a jovem padecer de falta de ferro. Mas comer papéis antes do século XIX não era descrito como uma doença, era na verdade uma prática; criticada, talvez, mas uma prática de fato bastante ampla.

Em segundo lugar, o mundo do manuscrito teria a possibilidade de refletir estruturas abertas na transmissão. Há pouco dizíamos que o impresso fixa o texto, que o torna estável em sua forma, ao mesmo tempo que o difunde e o preserva. Agora, é preciso lembrar que o texto manuscrito é um texto mais instável em sua forma, mas por isso mesmo mais acomo-dável. Neste sentido, o manuscrito poderia ser definido pela sua capacidade de adaptação à circunstância. Por exemplo, se fizéssemos uma operação simples: suponhamos que a profes-sora Andrea Daher desse para que fosse copiado um texto qualquer ao professor João Frago-so, e que este o copiasse de punho e letra, e que sua cópia fosse passando pelas mãos de todos os que estão nesta sala, e fossem feitas assim sucessivas cópias até trinta. Se comparássemos o texto original da professora Daher com o texto recebido no final, como vocês podem su-por, o texto possivelmente não seria igual. Entretanto, se fizermos trinta cópias impressas do mesmo texto, todas elas serão iguais ao original composto. Isso quer dizer que, em uma tradição manuscrita, é possível cometer erros em cada nova cópia, mas também incorporar novas formas de mudança que podem significar melhorias: comentários, glosas, correções, explicações etc. Ou seja, o mundo da cópia manuscrita é um mundo acomodável. Por isso,

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para as instituições e os grupos sociais, são muito importantes os interesses envolvidos, que devem se adequar a espaços e tempos distintos. Um exemplo disso são as ordens religiosas. Elas são, obviamente, uma instituição comum na Idade Moderna, mas têm espaços muito distintos. As necessidades de uma missão nas Filipinas não são iguais às necessidades de uma missão nas Canárias, em Cabo Verde ou na Bahia. São completamente diferentes. Portanto, os manuscritos podem manter a estrutura central, se ajustando à ordem original, mas podem se adaptar circunstancialmente a distintas realidades locais. Quanto ao espaço, o mundo im-perial é um mundo manuscrito, é claro. Do mesmo modo acontece com as variáveis de tem-po, os conhecimentos ou os saberes que devem ser adequados às mudanças, com o passar do tempo. É o caso do mundo da corte. Geralmente, pensamos esse mundo cortesão como um mundo bastante estático. Imaginamos, por exemplo, a corte imperial vienense dos Habsbur-go como uma corte absolutamente regulamentada, um espaço onde todo mundo sabia o que tinha de fazer a cada dia, a cada momento. Isso é, ao meu ver, um pouco efeito dos filmes de Luchino Visconti. Ao contrário, a vida de corte do Antigo Regime era um tipo de vida extremamente circunstancial, variável, na qual tudo mudava. É certo que algumas coisas que consideramos efêmeras duravam muito tempo, como os cadafalsos de D. Sebastião, que foram conservados durante décadas em Lisboa porque não foram destruídos. Mas, em geral, a memória da corte é muito frágil e nem tudo se encontra nas bem conhecidas etiquetas ceri-moniais. Quando ocorria algo na corte que era um pouco complicado por ser incomum, era preciso procurar com toda urgência uma pessoa mais velha, que tivesse vivido ali por muito tempo, para perguntar como se organizava essa ou aquela cerimônia. Resumindo, na corte, muitas coisas mudavam e não eram forçosamente previstas, pois a memória da corte pode ser muito frágil. Nesse mundo de circunstâncias que mudam, é preciso uma memória muito local. A cópia manuscrita se acomoda muito bem a esse mundo de mudanças e em contínua transformação. Vejamos um exemplo de como, em 1548, 1592 e até 1621, o mesmo texto foi sendo modificado para se acomodar às mudanças da corte. O exemplo do qual lhes falo é clássico, são as chamadas Instruções de corte, que João de Silva, conde de Portalegre, compôs em 1592 sobre a base de outras instruções escritas por Juan de Vega em 1548. Ambas seriam novamente adicionadas em 1621 a um novo texto de corte. Por mais que tenham chegado a ser impressas, sua difusão, muito abundante, foi feita através de cópias manuscritas. Um dos capítulos dessas Instruções se dedica, por exemplo, ao que deve ler o jovem cavalheiro que vai à corte. Vemos, neste caso, a circunstância do agora, do hic et nunc, que o impresso não proporciona porque é permanente e não circunstancial. Em 1548, se recomenda ao jovem cavalheiro que vai à corte que leia livros de santos e de história, como também que ele fale com os velhos soldados. Em 1592, esse mesmo capítulo traz o que Juan de Vega escrevia em 1548 e agrega o texto de Juan de Silva que diz, então, que o jovem cavalheiro que vai à corte terá de ir ao encontro dos privados, e que fará muito bem em ler Tácito. E, em 1621, com o texto de Silva adicionado ao de Vega, o que se diz é que o cavalheiro quando chegar

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ao palácio deve pretender falar com o valido — dos viajantes soldados de 1548 ao valido de 1621, passando pelos validos de 1592. Quanto às leituras, há de se ler poesia — das histó-rias e vidas de santos (1548) a Góngora (1621), passando por Tácito com seus ecos lipsianos (1592). Aqui vocês têm, em três cenas sucessivas, uma completa história cultural da corte espanhola. O manuscrito tornou possível que o mesmo texto se acomodasse a três circuns-tâncias distintas. Por sua vez, o texto impresso de Baldassare Castiglione era o mesmo em 1548, em 1592 e em 1621. Não há referências aos validos no texto de seu Il cortegiano (1528). Este foi um texto que sempre gozou de grande estima, que sempre foi considerado muito importante, mas, do ponto de vista das necessidades de quem vai ao palácio e tem de viver nele, não responde às novas circunstâncias da vida palaciana. Evidentemente, o texto fala da dissimulação, da sprezzatura, de um mundo de oralidade no qual se “habla delgado”. Tudo isso é certo, mas Il cortegiano não tem resposta para a nova realidade dos privados nem, mais tarde, para a do valido. Contudo, essas instruções manuscritas que os pais escrevem para os filhos que vão à corte podem ir se adaptando com o tempo, mediante adições de novas perguntas para novas questões. Portanto, quanto ao manuscrito, a tensão com o impresso é a tensão de uma escrita que é adaptável.

Por último, quanto à tradução, mais uma vez teríamos de pensar o estatuto do autor, esse estatuto heroico de alguém que escreve um livro para que os leitores o desvendem — por exemplo, lemos a obra de Braudel e, no fundo, tentamos compreender sua mensagem: o que Fernand Braudel quer nos dizer? O autor heroico é um tipo de autor individual, perfeita-mente reconhecível, e que faz de sua escrita, de alguma forma, um manifesto. Esse tipo de autor, heroico ou heroicizado, provém do Iluminismo. Antes, os autores não gozavam de um estatuto tão preeminente, por mais que, pouco a pouco, ele fosse sendo construído. Querer chamar a atenção sobre o tradutor em vez do autor pressupõe falar de usos indistintos da escrita e descobrir algo que acho sumamente interessante: alguns acreditaram que a tradução era uma forma superior de escrita, uma forma “senhorial” de escrita na qual o tradutor, como um general militar, vai se apoderando do intelecto do autor cuja obra traduz, dominando seus conceitos ao passá-los para a oura língua. Esta ideia da tradução “senhorial” é, para mim, especialmente interessante. Durante a pesquisa, pude descobrir que, ao reconstruir os usos da época, traduzir era considerado, em determinadas ocasiões e para determinados gê-neros, uma forma superior à escrita de uma obra. Assim, rompia-se a ortografia do período, rompia-se, através de usos e de práticas, o reconhecimento da autoridade da época.

Andrea Daher: Todos aqueles que conhecem a sua obra sabem como ela se inscreve no interior de formas materiais, que são formas de acumulação e de conservação da escrita e da imagem que constituem os arquivos e as bibliotecas, os museus, as galerias etc. Nela, esses espaços ganham uma significação política e uma dimensão social que costumam estar ausentes do trabalho mais geral dos historiadores. Como incluir, então, essa lógica do arqui-

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vo, muitas vezes desfeita, no trabalho historiográfico? Qual é a importância da inclusão da lógica do arquivo no trabalho historiográfico? Aproveito a ocasião para perguntar, ao final, qual foi a sua impressão da Biblioteca Brasiliana José e Guita Mindlin, onde esteve recente-mente, em São Paulo.

Fernando Bouza: Quero insistir na ideia de que os “depósitos do saber” construídos durante a Idade Moderna — mas também os de hoje, entre eles a biblioteca Mindlin ou qualquer outra biblioteca — não são espaços inocentes. São frutos de uma escolha, são, por si só, uma construção. Mas, me atreveria a dizer que isso se dá não apenas por eles serem a voz de um grupo ou de outro, mas porque “fazer” um arquivo implica guardar determina-dos papéis e não guardar outros, e isso com uma ordem particular e específica. Ou seja, aqui surge novamente a ideia de pensar por casos, reconstruindo suas categorias e colocando-os em seu horizonte, de modo a compreender realidades que são distintas das nossas. Mas veja-mos um exemplo, partindo do fato de que, sempre que existam opções, pode-se buscar uma estratégia, há a possibilidade de uma intencionalidade. Visitei também, no Rio de Janeiro, o Real Gabinete Português de Leitura, que é absolutamente fascinante. Lá, me lembrei de uma das minhas manias, quase patológica, que é a de querer saber qual é o manuscrito ou o impresso com o primeiro registro bibliográfico e qual é o último. Qual seriam o primeiro e o último dos livros dispostos no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro? Falo isso porque, como vocês sabem, Felipe IV de Habsburgo (D. Felipe III de Portugal) tinha uma grande biblioteca em seu palácio do Alcazar de Madri. Seu avô, Felipe II, tinha fundado a grande biblioteca do Escorial, mas Felipe IV criou uma biblioteca em línguas vernáculas em seu Alcazar. Então, me deixando levar por esta minha ideia peregrina de querer saber qual era o primeiro livro e qual era o último, me deparei com a informação de que, segundo o inventário da biblioteca, de 1637, o primeiro livro na ordem tipográfica de registro era um livro intitulado Excelencias de la Monarquia e Reynos de España (1597), de Gregório López Madera — o que não é nada mal como “primeira pedra” para o hipotético edifício textual da real biblioteca. E o último livro de todos é Utopía, de Thomas Morus, traduzido ao castelhano. (Perdoem-me por dizer isso, mas Jorge Luis Borges é um notário, não é alguém que fabule.) Uma biblioteca de 1637, na qual, segundo seu próprio inventário, o primeiro livro é sobre a monarquia de Espanha e o último sobre utopia: para mim, isso não pode ser um fato casual, há uma intencionalidade pragmática nessa disposição. Acho que nisso fica refletida a ideia de que arquivos e bibliotecas não são inocentes depósitos do saber. Sem dúvida, talvez o rei Felipe IV não fosse o responsável dessa disposição, mas, sim, um bibliotecário, cujo nome era Francisco de Rioja. Ele ordenou os livros de uma forma e não de outra, como François Grudé, senhor de La Croix du Maine, que em seu livro Biblio-thèque (1584) propõe a biblioteca ideal para o rei da França, em que elenca cem inscriptions sob as quais se deveriam reunir todos os livros. A primeira inscription relacionava-se ao Deus

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criador do Gênesis e a última, claro, ao Apocalipse. Aí encontra-se encerrado o universo. A ordem dos livros, como diz Roger Chartier, é a imagem do universo. Por isso eu digo que arquivos e bibliotecas não são inocentes.

Por outro lado, a minha relação com livros, com bibliotecas e arquivos é uma relação muito, muito cara e muito particular. Em certa ocasião, uma pessoa me disse que o que eu fazia era um pouco perverso. A palavra é forte, mas vocês verão que a perversão é muito inocente. Esta colega me disse que eu procurava no arquivo o que os demais procuram na biblioteca e que, ao mesmo tempo, procurava nas bibliotecas o que os outros procuravam no arquivo. Eu respondi que, se essa era a minha perversão, eu era quase um santo. Mas, sim, na minha relação com os livros pode existir algo dessa mudança de lugares na hora de fazer as perguntas. A minha confiança nos arquivos é, claro, enorme. Quero insistir nessa máxima: “arquivo, arquivo e arquivo”, com horizonte, sem horizonte, com usos, sem usos. O arquivo é não é um lugar inocente tampouco, mas é um lugar maravilhoso. Pessoalmente, não sou um grande leitor de literatura, talvez até um mau leitor de literatura, apenas de romances policiais — agora eu estou lendo um que se passa aqui no Rio de Janeiro, do delegado Es-pinoza, de Luiz Alfredo Garcia Roza, e, então, vou pelas ruas da cidade e me surpreendo, dizendo “ah, esta é a avenida Atlântica!”. Eu já li muita literatura contemporânea, mas não leio mais, porque para mim o lugar da fábula, o lugar do riso, o lugar da emoção é o arquivo e a biblioteca. Os relatos que posso encontrar aí são verdadeiramente maravilhosos. E não sou capaz de ler o último ganhador do prêmio Goncourt!

Andrea Daher: Mas, ao mesmo tempo, essa ideia de conhecer o primeiro e o último li-vro de uma biblioteca é bastante fabulosa também. Aliás, ela daria um romance igualmente “fabuloso”. E, nele, o personagem central haveria de ser Fernando Bouza.

Fernando Bouza: Não! Vejam, a história de “romance” vinculada à biblioteca mais bo-nita que eu já vi — não tem nada a ver com isso, mas eu vou contar para vocês — tem a ver com o mundo das fichas. Lembram das antigas fichas de catálogos? Na Biblioteca Nacional da Espanha, em Madri, havia uma enorme sala de fichários. Dois andares de salas de fichá-rios. Um labirinto. E havia pessoas que deixavam mensagens entre as fichas. Se você estivesse procurando uma obra, poderia encontrar, por casualidade, alguma dessas mensagens. Por exemplo, na ficha de Diário de um sedutor, de Søren Kierkegaard, por se tratar de um ro-mance de amor, era possível encontrar uma mensagem que dissesse: “Senhorita aventureira, se deseja, estarei no café tal dia e tal hora”. Eu não sei onde se deveria procurar a resposta. Afinal, deixar mensagens em fichários era, evidentemente, um jogo particular.

De qualquer forma, esta história fala sobre a biblioteca como um lugar em que se brinca, um lugar de opções. Seria injusto tentar reduzir toda a estratégia e eliminar a parte da brin-cadeira e do prazer. Eu gostaria de insistir nisso: por vezes, leio trabalhos sobre bibliotecas

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ou arquivos nos quais se propõe que existem estratégias e intenções políticas que não chego a ver. Não sei se vocês perceberam que, para uma determinada história cultural, existe uma tendência para encontrar “mensagens secretas” em qualquer tipo de prática. Contra essa tendência, acho que é necessário estar alerta e ser prudente, como nos mostra a história do colecionismo de pinturas.

Atualmente estou trabalhando sobre as galerias de pinturas dos descendentes de D. An-tonio Prior do Crato: é uma coleção valiosa, mas não vou necessariamente encontrar ali um manifesto de sua demanda pelo trono português. Parece que os seus proprietários gostavam, simplesmente, das pinturas; ou, talvez, eles quisessem imitar os grandes colecionistas princi-pescos. Mas, é claro, não tenho de encontrar uma chave, porque a cultura não está sempre escrita à la clef para o período da Idade Moderna. Nesse ponto acho que estão sendo feitos alguns excessos. Mas, é claro, existem arquivos e bibliotecas sobre os quais cabe dizer que fo-ram usados intencionalmente. Naquela época, não só as monarquias tinham arquivos, mas também as casas nobiliárias, as instituições eclesiásticas, as comunidades ou, ainda, os parti-culares. E alguns arquivos foram mobilizados como recurso de luta política de seus proprie-tários ou, simplesmente, como uma forma de garantir a subsistência deles. Por exemplo, os descendentes de D. Antônio, no século XVII, tiraram grande vantagem do arquivo do Prior pretendente, tanto abrindo o arquivo para os eruditos, que estavam interessados em conhe-cer seus acervos, quanto recordando os antigos vínculos que uniam sua casa aos potentados da Europa; ou ainda, de forma mais ousada, ameaçando publicar alguns documentos que poderiam ser comprometedores. Resumindo, foram utilizados, de forma muito concreta, todos os recursos da memória que o arquivo familiar antonino lhes permitiu. Algumas das famílias da nobreza portuguesa que permaneceram fiéis a Felipe IV depois de 1640 fizeram coisas extraordinárias, como dar à imprensa seus arquivos, ou publicar o arquivo inteiro dos papéis que conservavam. Martim Soares de Alarcão, da casa do condes de Torres Vedras, publicou Relaciones (1656), em que afirma que “chegando a colocar em ordem os papéis que foram encontrados em Castela pertencentes a varonia, com o objetivo de guardá-los, pare-ceu mais conveniente os fazer estampar”. A explicação que Soares de Alarcão sugere é que os papéis servirão como exemplo a outros, que todos poderão conhecer sua lealdade e, além disso, “para a maior segurança dos próprios papéis”. Em meados do XVII, o arquivo não era monopólio do poder “estatal”, como é no mundo contemporâneo. Isso me lembra uma passagem de Ernst Jünger, que em Strahlungen [Radiaciones. Diarios de la Segunda Guerra Mundial] (1949) descreve a sensação de enorme poder sobre a França quando se está na sala dos catálogos da Bibliothèque Nationale de Paris. Esta ideia de ter conquistado um país in-teiro ao ocupar seus arquivos não parece ser uma possibilidade de mesma extensão naquela época — eu ia dizer “nossa”, mas talvez seja muito possessivo —, digo, para os séculos XVI e XVII, porque havia grandes arquivos, mas também uma constelação de pequenos arquivos, de arquivos pessoais, nos quais se conservam as histórias de suas vidas.

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Em São Paulo tive a oportunidade de ver alguns desses arquivos pessoais desse período, reduzidos apenas a um volume, no qual se reúnem certificados de soldados, de oficiais ou de clérigos e que são testemunhos de vidas inteiras. Aliás, pude também consultar uma docu-mentação sobre assuntos impensados, com notícias de Miguel de Noronha sobre o comércio de “alcatifas” entre Goa e os conventos de Lisboa. No Instituto de Estudos Brasileiros, tive acesso a uma excepcional coleção de manuscritos. Achei a Mindlin uma biblioteca muito boa. Vi peças únicas, que nunca tinha visto antes — e, creiam, vi muitas coisas ao longo da minha vida. Por exemplo, panfletos portugueses de propaganda, impressos em castelhano feitos em Viena, que chamaram muito a minha atenção, e que até agora não estavam no meu catálogo de papéis sobre a Restauração, como também a coleção de impressos holandeses, na qual existem raras peças. Uma coisa interessante é que eu pude consultar peças de polê-mica e propaganda portuguesa posteriores a 1640 que não foram pedidas pela Coroa, mas diretamente por particulares. Livreiros que publicam, por sua conta, uma série de panfletos (esses panfletos têm um interesse como mercadoria destinada a um público leitor que quer estar informado sobre o que está acontecendo). Achei extraordinário o impresso conservado na Mindlin, publicado em Lisboa, “que escreveo o Marques de Montalvam, sendo Viso Rey do Estado do Brasil, ao Conde de Nassau” (1642), incluindo os cumprimentos do holandês pelos acontecimentos de 1640 (questão que Stuart Schwartz conhece bem). Portanto, a Brasiliana de Guita e José Mindlin tem peças muito, muito boas.

Jacqueline Hermann: Queria aproveitar a sua presença, então, já que o assunto é arquivo, para comentar um pouco a criação do Arquivo General de Simancas, exatamente durante o período do reinado de Felipe II. O que isso representou, o que podia representar numa concepção de poder que está na sua obra? Queria que você pudesse aproveitar este mo-mento para falar um pouco da importância da criação desse arquivo e do projeto de poder que estava ali estabelecido.

Fernando Bouza: Felipe II fundou o arquivo da Embaixada da Espanha na Santa Sede, em Roma. Os outros arquivos de que cuida, continuamente, são arquivos prévios. Concre-tamente, Simancas é um arquivo anterior. Ele recebe uma nova organização, na forma de ordenanças, em tempos de Felipe II. O monarca se interessa pessoalmente pela matéria dos arquivos e, durante a sua estada em Lisboa (1581-1583), ele visita a Torre do Tombo e ordena que copiem os seus estatutos, que têm um importante impacto nas ordenanças de Simancas. Ele também se interessa pelo arquivo da Coroa de Aragão, se ocupando de sua instalação e da recepção de novos fundos. Mas o arquivo fundamental de Felipe II é Simancas. É um arquivo que tem uma categoria extraordinária, a partir do momento que o seu responsável é secretário real. Portanto, não é só um lugar de erudição, pois o secretário Diego de Ayala faz parte do organograma dos secretários reais. Quer dizer, Ayala em Simancas é tão secretário

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do rei quanto Mateo Vázquez em Madri. E, efetivamente, o arquivo não é só um lugar de erudição porque tem uma vinculação com a prática de governo.

Para mim, o arquivo de Simancas supõe, por um lado, a memória da monarquia, de uma monarquia que rapidamente se escriturizou e que tira proveito disso. Em algumas de suas seções, especialmente “Patronato real”, está depositada a história dos direitos da monarquia. Neste sentido, seria um lugar da memória histórica da própria Coroa. Por exemplo, a maior parte da documentação que, em 1580, Felipe II mobiliza para reivindicar os seus hipoté-ticos direitos ao trono — remetendo-se, antes de mais nada, à crise de 1385 — provém de Simancas.

Ao mesmo tempo, o arquivo é um lugar de memória e é um lugar de despacho de gover-no. E isso é extraordinário. Porque existem outros lugares onde parece que se cumpriu mais a função de memória dos direitos e privilégios da monarquia. Entretanto, em Simancas, ambos os usos se cruzam, o comemorativo e o prático. Nesse sentido, Felipe II como “Rey Papelero” tem um lugar especial em Simancas.

Andrea Daher: Gostaria que você nos falasse um pouco do panorama mais geral da historiografia contemporânea, em termos das interlocuções mais fortes do seu trabalho. É claro que, como foi dito, as pesquisas em arquivos e bibliotecas sendo uma marca muito forte nos seus livros, por vezes as interlocuções parecem estar mais apagadas. Sabemos da sua forte relação com o trabalho de Roger Chartier, não fosse pelos interesses comuns em torno da cultura escrita e pela história do livro; sabemos também de sua forte interlocução com Jean-Frédéric Schaub, não fosse pelo interesse de ambos em unir, ou melhor, em apagar, digamos assim, as fronteiras entre história cultural e história política. Mas há também toda uma série de interlocuções com historiadores portugueses, como António Manuel Hespanha e, talvez mais recentemente, com historiadores brasileiros. Você poderia traçar um panora-ma dessas interlocuções hoje, em relação ao seu trabalho?

Fernando Bouza: A ideia de interlocução me preocupa muito. Em primeiro lugar, no começo desta sessão, quando falava da recuperação de horizontes, estava fazendo também um juízo sobre a situação da historiografia contemporânea. A meu ver, insisto, não volta-remos a fazer uma história fundamentada na noção de progresso, mas, sem dúvida, será recuperada certa ideia de “horizonte”, depois de tempos de pós-modernismo. Pouco a pouco, creio que estão sendo recuperadas essas linhas norteadoras, algo que, pessoalmente, acho interessante.

Em segundo lugar, meu trabalho atual tem muito a ver com as ideias de comunicação política e de esfera pública. No fundo, o que eu gostaria de fazer agora é uma história da opinião. Em que momento os que governam tiveram interesse em saber o que os governados diziam? Em que momento os governados souberam que essas opiniões podiam ser impor-

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tantes? E como isso serviu para dinamizar a história? Ou seja, estou mais interessado na análise de efeitos, na mudança ao longo do tempo. Contudo, me preocupa bastante que o meu tipo de escrita não seja mais simples. Fazendo aqui a minha própria crítica, creio que exijo muito do leitor, pedindo que seja ele quem chegue às conclusões em sua própria análise. Mas, isso tem a ver com a minha educação, quando se evitava a ideia de meramente admi-nistrar doutrina. Nós, pesquisadores educados na década de 1980, fomos vacinados contra o atualismo. Isto teve o efeito de me lançar aos estudos de casos, com forte base documental de arquivo, para reconstruir os casos de forma mais completa e complexa. Talvez também tenha trazido a consequência de um tipo de fuga para a frente, através da erudição e das notas de rodapé, sem quase me atrever a apresentar conclusões analíticas. No fundo, fui educado para fazer dos leitores meus cúmplices, para que sejam eles que tirem as conclusões, recusando qualquer papel doutrinário da escrita da história.

Andrea Daher: De fato, à leitura de seus livros, há sempre a surpresa da enorme fragmen-tação da estrutura, da perspectiva narrativa, mas também teórico-metodológica. Há, sem dú-vida, os efeitos da sua formação nos anos 1980 e, nesse sentido, este talvez não seja exatamente um aspecto unicamente da sua escrita, mas muito mais de uma escolha estratégica.

Fernando Bouza: Exatamente. De alguma maneira a minha geração foi educada para escrever assim, entretanto, para falar de outra maneira. Na sala de aula parece possível expor de cronologias mais amplas, falar em termos de consequências, coisas que não eram passíveis de serem expressas na escrita da história. A minha vontade de envolver performativamente o leitor na conclusão das minhas próprias pesquisas tem algo a ver com o que os autores dos séculos XVI e XVII faziam. Quer dizer, eles contavam com o que o leitor já sabia. Assim, eram os leitores ou as leitoras que concluíam seus textos. Tendo sido pessoalmente vacinado contra o atualismo, fui educado na necessidade de não transmitir doutrina através da escrita da história, como disse. Diante dos que escreviam para proclamar, por exemplo, “estas são as causas do absolutismo”, fui ensinado que devia dispor os materiais, de tal forma que fosse o leitor quem concluísse “estas são as causas do absolutismo”. Isso faz com que, possivelmente, a leitura de meus textos não seja simples.

Por outro lado, minha relação de dependência com as fontes primárias de arquivo só é compreensível levando em conta a enorme riqueza dos arquivos na Espanha e em Portugal. Eu só pude me permitir o luxo de conhecer esses casos e escrever as suas histórias porque existe Simancas, a Torre de Tombo etc. Porque existem esses lugares absolutamente maravilhosos onde, como dizia antes, as melhores histórias do mundo esperam para serem contadas um dia. Essa enorme riqueza, possivelmente, reforçou em mim o efeito geracional antes mencionado e ajudou a tornar ainda maior a minha insistência na base documental e a minha vontade de transferi-la. É claro, eu que digo que nenhum arquivo é inocente, tenho de reconhecer que os

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textos tampouco o são, e que, no final das contas, posso dizer que me desloquei do mundo português ao mundo de uma monarquia que é pluricontinental, um mundo de monarquias ibéricas pluricêntricas. Neste sentido, comecei fazendo história de Portugal e me deparei com o fato de que entre 1580 e 1640 não havia uma corte no reino. E desta ausência passei à corte régia de Felipe II e, nela, à história da comunicação. E desta, sempre com critérios de história cultural e política, passei à história da opinião pública. Agora, digamos, o meu mundo não só é um mundo ibérico, mas é também um mundo americano, filipino, indiano etc. Neste movimento, eu acho que foi de enorme importância o impacto não da historiografia espanhola sobre a portuguesa, mas, ao contrário, da historiografia luso-brasileira sobre a espanhola e a europeia. Uma das coisas que mais mudou na historiografia modernista na Espanha é, preci-samente, ter começado a romper as barreiras entre escrever a história da Espanha e a história da América. Porque em muitas universidades espanholas, entre elas a minha, existia uma forte diferença entre os historiadores americanistas e os historiadores gerais da Idade Moderna. Essa situação mudou, em grande medida pelo efeito da história do mundo atlântico e, especialmen-te, pelo forte impacto entre os historiadores da obra de António Manuel Hespanha. Foi ele quem trouxe até Portugal e, mais tarde, até o Brasil boa parte da historiografia espanhola. A mudança supõe que, se eu agora escrevo um artigo sobre Felipe II, posso incorporar cenários como as Ilhas Salomão, no Pacífico, ou São Sebastião do Rio de Janeiro, um povoado de que o Rei Católico recebe notícias desde finais da década de 1550.

Quando apresentei a minha tese, em 1986, sobre D. Felipe I e Portugal em 1580, fiz mui-to poucas observações sobre o Brasil, por questões documentais, mas também porque uma aproximação brasileira teria sido imprópria para uma tese lida num Departamento de História Moderna, e não de História da América. Portanto, de fato, a minha relação com estas outras historiografias aumentou muito porque o impacto do luso-brasileiro da nova maneira de inter-pretar a relação entre Brasil e Lisboa (e também a Índia) foi enorme na historiografia espanhola.

É possível que os primeiros passos tenham sido dados a partir da Espanha para Portu-gal. Mas, no final das contas, a historiografia modernista espanhola aprendeu história da América através de Portugal e do Brasil. Assim poderia ser descrita a minha situação atual. Me atrevo a dizer que devemos continuar fazendo história através de casos. Temos de seguir trabalhando no arquivo, temos de recuperar horizontes de uma duração mais longa. Nunca devemos renunciar à análise, e temos de romper as barreiras disciplinares, da mesma forma que se romperam as barreiras entre cultura, política e história da arte. Possivelmente, para a história modernista espanhola, a mais difícil de romper foi a fronteira da história da Améri-ca, apesar de permanecer vigente ainda para muitas outras.

Weder Ferreira: Gostaria que você pontuasse a importância da constituição de Cádiz e da revolução do Porto no contexto editorial da Península Ibérica, e dissesse de que forma esse contexto influenciou as outras nações na América Latina, por exemplo.

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Fernando Bouza: Cádiz é o mundo da constituição política e da liberdade de impren-sa. Por isso, Cádiz seria de fato o final dessa história que quero reconstruir, na qual entram em circulação impressos, manuscritos, imagens e vozes. A liberdade de imprensa é especial-mente importante em Cádiz porque se vincula a uma nova maneira, cidadã, de estabelecer a relação entre os governantes e a comunidade, os governados. Entretanto, isso não supõe que não seja preciso desentranhar primeiro a tópica que une liberdade e imprensa, uma das mais poderosas, e que, além disso, joga de forma maliciosa porque, digamos, age sobre nós quase sem que saibamos, como uma forma de pré-conhecimento. Seria importante fazer uma re-construção do maior número possível de narrativas relacionadas com a tópica da liberdade da imprensa, em torno dos anos de 1808, 1810 e 1812. São momentos nos quais, na Espanha, se consegue a liberdade de imprensa e se estabelecem pela primeira vez distintas imprensas permanentes em lugares nos quais, até aquele momento, não se dispunha delas, como o Rio de Janeiro, Montevidéu ou Valparaíso do Chile. Tanto em Cádiz como nestes lugares novos, são forjadas narrativas para serem impressas, nas quais se defende a ideia de que antes da chegada da imprensa imperava o silêncio, o vazio comunicativo. Nisso coincidem, por exemplo, os relatos uruguaio e chileno. Mas, como vocês sabem bem, a imprensa chega a Montevidéu a partir do Rio de Janeiro, como um presente que a rainha Carlota Joaquina envia aos monarquistas de Montevidéu, que são partidários do absolutista Fernando VII. Os fernandinos montevideanos proclamam que, graças à imprensa, podem finalmente se expressar, o mesmo que disseram os chilenos de Valparaíso (apesar de serem emancipadores, e não absolutistas). No final das contas, a tópica da liberdade da imprensa como sinônimo de expressão e verdade tem a ver com o acervo conceitual do Iluminismo, que supõe que, antes da chegada da imprensa, não é possível a plena comunicação. Pessoalmente, responderia que não, porque antes da imprensa era possível recorrer a sistemas efetivos de difusão manuscri-ta, como os da scribal publication, ou seja, a circulação mediante traslados e cópias manuscri-tas de notícias e conceitos. Sem dúvida, a chegada da imprensa permite a geração de termos de comunicação política mais fluentes, mas não creio que se possa dizer que as sociedades do Antigo Regime que careciam de imprensa estivessem condenadas ao silêncio em questões de comunicação política. E quando digo silêncio, poderia dizer ignorância. Dito isso, convém lembrar que, é claro, o papel desempenhado pela imprensa nos movimentos que rompem com o Antigo Regime no começo do século XIX foi extraordinariamente importante, na Cádiz liberal da Guerra de Independência ou nas colônias espanholas da América em tem-pos dos movimentos emancipadores. É impressionante o volume de textos impressos em espanhol que saíram de centros tipográficos dos Estados Unidos, como da Filadélfia, ou em algumas antigas ilhas do Caribe inglês, onde também se imprime em espanhol para abaste-cer a América espanhola. Teríamos de estudar muito melhor essa propaganda impressa para as Índias, assim como — e me permitam que insista nisso — a construção e a difusão do mito libertador da imprensa. No meu entender, esse mito tem uma forte repercussão sobre

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o imaginário coletivo. Pelo menos, foi o que me pareceu aqui no Brasil, onde se dá, é lógico, uma enorme importância ao estabelecimento de uma imprensa permanente com a chegada da corte dos Bragança em 1808. Em certas ocasiões, tenho a sensação de que, antes dessa data, havia uma espécie de “menos valia comunitária”. Não posso entrar nessa questão, mas creio, sim, que o estudo dos circuitos da scribal publication no Brasil dos séculos XVI e XVII poderia ser verdadeiramente revelador. Claro, isso também me levou a questionar por que não havia uma imprensa permanente no Rio de Janeiro, ou na Bahia, antes dessa data. Em qualquer caso, hoje, heterograficamente, sabemos que a não existência de imprensa não supõe a impossibilidade de conhecer, expressar, lembrar ou comunicar mediante vozes, imagens e manuscritos. Sem dúvida, a imprensa favorece uma difusão massiva e perdurável dos textos, mas isso não supõe que antes dela as populações estivessem condenadas ao vazio do silêncio e da ignorância.

Andrea Daher: Essa é uma tópica historiográfica pós-romântica e pós-iluminista. Por exemplo, no Brasil do século XIX, a publicação de dicionários, de gramáticas e de vocabu-lários em língua tupi partia exatamente desse pressuposto de um “vazio” que se estendia desde o passado colonial, que devia ser preenchido com essas reedições ou impressões de manuscritos, de modo a produzir uma presença dessas línguas indígenas então “inaudíveis”.

Fernando Bouza: Em vez de lidar com esse “vazio”, lidar com a voz abriria possibilida-des para pensar as coisas de uma forma muito distinta. O que é preciso urgentemente é um estudo completo, recorrendo todos os relatos da chegada da imprensa a distintos lugares. A chegada da imprensa à Nova Zelândia, estudada por Donald Mackenzie, a Valparaíso com a publicação de La Aurora, a chegada da imprensa em Montevidéu, a chegada da imprensa no Rio... Sobre essas bases teríamos de observar as continuidades que os distintos relatos apresentam e sua dependência em relação à tópica ilustrada. Não há voz: estão condenados ao silêncio os que não falam como falavam os ilustrados, que falavam letra impressa, como se sabe.

João Fragoso: Nesse terceiro tópico, você se referiu a alguns temas que, particular-mente, são caros para nós, pelo menos para uma parcela das pesquisas aqui desenvolvidas a respeito de monarquia pluricontinental. Essa é uma nova ideia que se está construindo, friso, sobre a relação entre conquistas e centros da monarquia, seja ela lusa ou hispânica. Enfim, gostaria que você falasse sobre o impacto dessa ideia de monarquia pluricontinental na histo-riografia contemporânea, e que desenvolvesse a questão, consequentemente, da possibilidade de negociação entre as elites, a elite das conquistas com as elites do centro da monarquia. E mesmo sobre o que redefine a própria ideia de unificação política, entre esses dois lugares. Isso redefine a ideia de um Estado absolutista que durante tanto tempo prevaleceu na nossa

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historiografia e, de alguma forma, ainda domina. Quer dizer, é um absolutismo que não só cerceava a presença de senhorios, numa sociedade policimodal na Europa, como também cerceava a própria possibilidade de as conquistas estabelecerem negociações com os centros, no caso Lisboa e, mais adiante, no período ibérico, Madri. Para mim foi uma surpresa a atenção que uma literatura historiográfica espanhola voltou para essa historiografia luso--brasileira centrada nessa questão da monarquia pluricontinental, na possibilidade dessas ne-gociações hierárquicas, enfim, negociações entre conquistas americanas e centros europeus.

Fernando Bouza: Primeiro, quanto à monarquia pluricontinental, monarquia pluri-cêntrica etc., no caso espanhol houve uma influência dupla. A meu ver, na situação atual, tem-se uma dívida com a tradição anglo-saxã de John H. Elliott e o mundo da monarquia hispânica, na recuperação de seu aspecto plurisjudicional. De fato, o impacto não foi sentido só na Espanha. Lembro a vocês da proposta de Conrad Russell de lançar mão de um esque-ma para a Monarchia Britannica, para os Stuart do século XVII, no qual não se pode ignorar a influência da Monarchia Hispana tal qual havia proposto Elliott. Isso é interessante porque passava-se de um modelo de monarquia nacional inglesa a uma monarquia compósita, não muito longe do que tinha sido qualificado como “monstruosidade hispânica”. Em suma, a dívida dos historiadores modernistas espanhóis com a obra de J. H. Elliott e sua interpreta-ção das monarquias compósitas é enorme.

Em segundo lugar, a outra dívida importante é com a obra de António Manuel Hes-panha, cujo impacto na Espanha foi muito grande, principalmente na polêmica sobre a existência ou não do Estado na Idade Moderna — uma polêmica de que ele participou de mãos dadas com alguns historiadores espanhóis como Bartolomé Clavero. Convém lembrar que esta polêmica internacional foi vivida na Espanha de uma forma muito intensa e próxi-ma, com figuras como Bartolomé Clavero, António Manuel Hespanha ou Pablo Fernández Albaladejo diante de outros autores que insistiam na existência do Estado. O impacto da polêmica foi enorme e, de fato, chegou com força às aulas o eco das colocações de Hespanha.

Ademais, creio que também se sentiu a repercussão de alguns historiadores da história econômica. Acho que tem um peso especial a obra de Zacarías Moutoukias e seus estudos sobre os pactos informais entre as elites rio-platenses e a Coroa espanhola, expresso, digamos, numa forma de manutenção da lealdade em troca de enriquecimento por via de contrabando — até que a nova legislação dos Bourbon fizesse quebrar o pacto informal e, consequente-mente, fincasse uma das bases do movimento emancipador. As teorias de Moutoukias foram importantes por seu impacto sobre redes comerciais, num mundo que superava as próprias fronteiras, digamos, jurisdicionais. E foi ele, lembro, a primeira pessoa que, há trinta anos, me falou sobre “pactos informais das elites”, antes mesmo que eu pudesse conhecer a obra de Hespanha. Nesse ponto, a minha dívida com o americanista Murdo J. MacLeod e suas histórias de resistência/acomodação também é antiga.

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Como podem ver, é uma história que foi se consolidando pouco a pouco. Agora, nos últimos anos, se produziu uma conjunção de historiadores do Brasil, de Portugal e da Espa-nha, fruto da qual foram ampliados os espaços até a Ásia e, muito especialmente, até a Amé-rica. Historiadores que, como Stuart B. Schwartz, reuniram experiências do que acontecia na Bahia, mas que não esqueciam o que acontecia em Évora ou em Sevilha. A nova histo-riografia sobre a Europa hispânica dos séculos XVI e XVII também foi importante, porque abriu o mundo ibérico para Nápoles, Antuérpia ou Besançon. Mas, sem dúvida, o salto até o Brasil foi produzido pelas mãos de historiadores portugueses, como Pedro Cardim ou Nuno Monteiro, cujo impacto na Espanha foi muito forte. A intensificação dos contatos com a historiografia portuguesa foi muito grande e, pelo menos na minha experiência, o contato com a historiografia brasileira sobre o período dos Felipes foi, até agora, através de Portugal, vocês sabem disso.

Não é assim para o campo da historiografia cultural, no qual Paris, talvez, tenha tido um papel tão importante quanto o de Lisboa para os estudos políticos, institucionais ou sociais. Eu olho ao mesmo tempo para Paris e para Lisboa. Em todo caso, as obras de António Ma-nuel Hespanha, Nuno Monteiro, Pedro Cardim, Angela Xavier e tantos outros me levaram a novos horizontes. Eu aprendi muito com eles. Vocês sabem que as relações hispano-portu-guesas são complexas, complicadas, e foram cometidos alguns erros em matéria de política cultural. Concluindo, é comum pensar numa historiografia espanhola forte que se expande para outras historiografias, mas, nesse caso, acreditem em mim, o impacto dos historiadores modernistas portugueses sobre a história que está sendo feita sobre a monarquia hispânica dos séculos XVI e XVII foi absolutamente crucial. E, através de Portugal, no meu caso, recebi também o impacto do Brasil.

Andrea Daher: Quanto à sua agenda de estudos, sobretudo sobre o período filipino, você tem afirmado querer defini-la através de alguns conceitos-chave que abririam campos potenciais de pesquisa. Um desses conceitos que reorganiza um campo potencial de traba-lho, como dizia João Fragoso, é o de negociação. Ele pode levar a uma crítica, talvez velada, à noção de globalização, que seria menos apta do que a categoria de “mescla” para dar conta de circulações culturais, de mestiçagens ou de outros fenômenos sociais bem característicos do século XVII. Outro fenômeno que surge nessa agenda de estudos é a tradução. Você poderia falar, em suma, dessas três categorias: “negociação”, “mescla”, “tradução”, na chave de uma agenda de estudos setecentistas para o século XXI.

Fernando Bouza: As possibilidades de negociação, tradução e mistura são muito gran-des, dada a sua natureza transversal. Além da “agenda filipina”, agora mesmo na historiogra-fia vivemos um enorme interesse pela transversalidade que, de fato, tem a ver com a recupe-ração de horizonte. Ela teria a ver com o espaço, mas, também, com o tempo, algo que viria

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reduzir a nossa insistência na memória. A meu ver, as três realidades antes mencionadas são transversais, e especialmente as traduções possuem algo de negociação.

Em primeiro lugar, no campo concreto da historiografia filipina, o grande momento da negociação seria, sem dúvida, 1580, um momento histórico com estatuto polêmico, entre a conquista e a negociação. Convém recordar que insistir no perfil negociado de 1580 em Por-tugal não supõe, de modo algum, ignorar a existência de conflito. De uma forma um tanto simplista, se pode pretender que a negociação supõe a ausência de conflito. De modo algum. Negociar é uma maneira distinta de apresentar a solução de um conflito. Existe guerra com negociação e, é claro, existe negociação com guerra. No período 1578-1581, talvez o que se encontre seja uma negociação com a ameaça de guerra ou com uma guerra aberta, com epi-sódios muito cruéis como os saques do Porto e de Lisboa. De fato, depois do saque do Porto as autoridades filipinas realizaram uma minuciosa investigação, uma visita, conservada num arquivo privado madrileno, que identifica com detalhes os roubos, destruições e violências das tropas castelhanas. É um documento que não deixa nenhuma dúvida sobre os terríveis acontecimentos. Mais tarde, o aparecimento dos jaezes das cavalarias de D. Sebastião, na cidade andaluza de Málaga, demonstra o negócio que alguns quiseram fazer com o que foi roubado de Lisboa. Por sua vez, num espólio particular, D. Antônio I, prior do Crato, levou consigo à França os relicários de corpos santos reunidos pelos Avis no Palácio de Lisboa. (A história de como essas relíquias acabaram na Bélgica, onde hoje se encontram, exigiria uma atenção muito mais particular.) Em Portugal de 1580 há destruição e há guerra, sem dúvida, mas ao mesmo tempo o conflito também se traduz em formas de negociação. Em suma, a monarquia que Felipe II construía era uma monarquia que se fundamentava na resolução de conflitos, fosse pela violência militar, fosse, como em tantas ocasiões, sobre a base de negociações. Durante todo o período filipino, as formas de negociação foram sucessivas. Inclusive no final da década de 1630, com o conde Duque de Olivares, assistimos a formas de negociação, apesar de terem fracassado. Refiro-me à tentativa de Olivares de redefinir um novo Portugal, distinto ao de 1580, que não se baseava na aliança com elites territoriais, mas num pacto fiscal negociado com as cidades, especialmente do interior, com Portugal do sertão. Olivares colocou o futuro desse novo Portugal em figuras comissariadas, como Francisco Leitão, que, de fato, alcançou avanços parciais que supunham uma ruptura com a ordem anteriormente negociada (e que, em boa medida, deve ser colocada em relação com o advento do Primeiro de Dezembro de 1640).

Em segundo lugar, quanto à “mescla”, na monarquia ibérica foram estabelecidas, sem dúvida, fronteiras jurisdicionais que compartimentavam o espaço de uma monarquia com-pósita, unida mas separada. São as fronteiras internas sobre as quais John H. Elliott e tantos outros — inclusive, eu mesmo — insistiram. Não obstante, existe aí também uma trans-versalidade, e essas fronteiras internas da monarquia são muito porosas. A escala global da monarquia ibérica é uma realidade na qual as coisas se misturam e se movem sobre as ditas

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fronteiras jurisdicionais. Sobre essas fronteiras se movem as elites, mas também os livros, as imagens, os alimentos, usos e práticas, criando formas mescladas. Creio que a monarquia dos Felipes se transforma numa espécie de laboratório no qual a “mescla” como forma de globalização merece ser estudada.

Há pouco tempo foram restauradas as pinturas originais de uma das três torres do Pala-cio del Pardo, nas redondezas de Madri, feitas em tempos de Felipe II. Ao restaurar uma sala foi encontrada uma série de afrescos de animais, tanto do Velho como do Novo Mundo. A reconstrução da chegada dessas imagens de animais a Madri, ou dos próprios espécimens, nos permitiria trabalhar com a ideia de “mescla” global. Mas, também, com as histórias de vida que essas imagens nos contam, trajetórias pessoais sobre todo o espaço transversal da monarquia. Há, como bem sabe Stuart B. Schwartz, muitos casos interessantes, como por exemplo o de italianos a serviço da monarquia, sob o mando de castelhanos na Bahia ou em Pernambuco para defender o Brasil contra os holandeses. Ou seja, os italianos não lutaram no território da Itália, os castelhanos no de Castela e os portugueses e brasileiros no Brasil. As tropas estavam misturadas, da mesma forma que os missionários estavam misturados. Ao trabalhar com histórias de vida de missionários, nos deparamos sempre com algum que esteve em Portugal, na Guiné, nas Canárias, na Catalunha ou no Caribe; missionários que estiveram na América e regressaram à Europa e aplicaram sua experiência das Índias na velha Europa.

Pode-se falar também de transversalidade nas práticas, nos interesses econômicos ou na criação de novos mercados. No final do primeiro quarto do século XVII e através de um memorial impresso em Castela, Buenos Aires pede permissão para entrar no comércio com Angola e com o Brasil. Esta é uma realidade que só é possível graças a Portugal dos Felipes e sua pluricontinentalidade.

Por fim, lhes apresento outro caso que considero mais interessante do que o dos italia-nos na Bahia: é o testemunho da presença de índios da Patagônia no Rio de Janeiro. Casos como este me permitem estabelecer uma visão de América, de uma América ibérica que se reconhece e funciona como um contínuo. Há pouco tempo, pude escrever um artigo com o título “Dois Felipes e um Rio”, publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional (n. 90, março 2013) sobre a morte de um índio da Terra do Fogo na cidade do Rio de Janeiro, ainda no início do Portugal filipino.

E, por último, a tradução, que, creio, é uma maneira muito interessante de entrar no mundo filipino. Gostaria de imaginar a própria monarquia como uma forma de tradução, como uma forma de negociação entre o oral, o visual e o escrito, entre os ditos popular e letrado, entre jurisdições, entre línguas. Como Edmund Chilmead escreveu em 1660, “we are fallen into an age of translation”, uma época em que tudo se misturava e tudo se traduzia.

A meu ver, a agenda filipina tirou a sorte grande. Reconheço, é claro, que não podemos atribuir tudo o que acontece no Brasil, nesse período de 1580 a 1640, aos Felipes, porque

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existem coisas que vêm de trás, e que, possivelmente, se produzem por forças exclusivamente autônomas. Mas este parece ser, sim, um “laboratório”, termo que uso com plena consciên-cia. Nesse laboratório seria possível trabalhar com todo tipo de mescla: de espaços, de pesso-as, de territórios, de interesses, de práticas, de mundos que se enfrentam a realidades distin-tas e que encontram formas de negociação ou formas de destruição — porque também essa é uma história de destruição. O período tem, além disso, uma vantagem, que do ponto de vista histórico não devemos esquecer: a sua duração. Ou seja, a família que, no Rio, recebeu o pobre índio da Terra do Fogo, como lhes contava, chegado da Espanha, mas originário da Patagônia, pode ser a mesma família que em 1640 estava envolvida com a Restauração. São 60 anos, um tempo suficientemente longo para um observatório amplo, mas durante o qual é possível que uma mesma pessoa estivesse presente no momento da Sucessão em 1580 e no da Restauração em 1640. E isso dá uma perspectiva de histórias de vida, pelas quais sinto uma predileção bastante especial, como vocês podem imaginar.

Andrea Daher: Esta foi a sua segunda entrevista a Topoi e sua primeira visita ao Brasil, onde falou ao público brasileiro e não deixou de visitar bibliotecas e arquivos. Desejamos que, conhecendo desde já os títulos dos primeiros livros dos acervos das bibliotecas brasilei-ras, possa renovar continuamente a curiosidade sobre os últimos.

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Edificar territórios, governar o sagrado: história da espacialização eclesiástica medieval a partir de um caso

(supostamente) controverso

Gabriel de Carvalho Godoy Castanho*

Lunven, Anne. Du diocèse à la paroisse. Évêchés de Rennes, Dol et Alet/Saint-Malo (Ve-XIIIe siècle). Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2014. 432 p.

Anne Lunven nos oferece um ótimo exemplo metodológico e analítico dos estudos históricos da Igreja medieval desenvolvidos nesse início de século XXI. Historiadora e ar-queóloga, a pesquisadora pratica em seu livro a interdisciplinaridade e a renovação documen-tal largamente defendida e desejada pela Nova História francesa há cerca de 40 anos. Se, por um lado, o uso de material arqueológico se impõe aos pesquisadores da alta Idade Média (período para o qual dispomos de um número insuficiente de testemunhos escritos), por ou-tro, foi preciso a implementação sistemática de escavações de salvamento a partir dos anos 1970 (sobretudo após meados da década se-guinte) e a acumulação de dados, provenientes do que se habituou chamar “arquivos do solo”, nas últimas décadas para que passássemos a dispor de informações quantitativamente rele-vantes e qualitativamente variadas capazes de fornecer bases sólidas para análises históricas do passado nas terras da atual França.

O livro de Lunven nos apresenta toda a riqueza e os limites do estado atual das es-cavações em três regiões importantes e que constituíam então a fronteira entre o mundo franco e o mundo bretão. Região de transi-ção cultural e política, a área das dioceses de Rennes, Dol e Alet (cuja sede foi transferida para Saint-Malo em meados do século XII) não escapa a uma dificuldade maior dos estudos arqueológicos atuais, a saber, uma identificação certa da natureza dos traços de ocupação humana encontrados no solo. Grosso modo, a dificuldade repousa sobre o fato de que durante muito tempo (até pelo menos o começo do século XI, muitos lu-gares de culto — capelas, igrejas etc. — não eram construídos em pedras, mas em ma-deira, como o eram também os locais de ha-bitação — casas). Tal indefinição na identi-ficação da modalidade de ocupação do solo tem como correlata a questão da constitui-ção da diocese e da paróquia.

Por muito tempo tidas pelos historiado-res como um dos principais legados romanos para a Idade Média, a paróquia e a diocese compõem, atualmente, uma das frentes de trabalho mais importantes do que podemos chamar de “nova história da Igreja medie-

* Doutor em Histoire et Civilisations pela École des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris) e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected].

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Edificar territórios, governar o sagrado: história da espacialização eclesiástica medieval a partir de um caso (supostamente) controverso

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val”. De grande importância entre os me-dievalistas franceses na última década, essa maneira renovada de se estudar a instituição eclesiástica medieval parte de um princípio fundamental bastante simples: conhecer os meios e as etapas de construção dogmática da instituição eclesiástica. Utilizando o ter-mo “dogma” pretendo nomear não apenas as concepções intelectuais da fé cristã ligadas à revelação divina e, portanto, tidas pelos fiéis como um conjunto de verdades incontestes, universais e a-históricas. Pretendo com o uso da palavra “dogma” evidenciar a forma como a própria história da instituição ecle-siástica (sua ancoragem espacial, a formação de seu corpo profissional e o exercício de seu poder) está associada aos dogmas da Igreja, fazendo com que aquilo que foi o resultado de uma construção histórica (a presença da Igreja neste mundo) seja tomada como uma realidade atemporal tributária de uma su-posta vontade divina. Nesse sentido, e por oposição a uma história confessional que por muito tempo dominou os estudos da Igreja medieval, os historiadores têm recentemente posto em causa a ideia de que o quadro ter-ritorial dessa instituição tenha sido marcado por uma inércia temporal responsável pela transferência dos quadros imperiais roma-nos para a instituição eclesiástica medieval.

Como bem lembra Florian Mazel em um dos prefácios à obra, é apenas no sécu-lo XVII que o primeiro mapa cartográfico apresentando a disposição espacial das igre-jas foi produzido. Para os períodos anterio-res dispomos do rol de bispados produzido pela administração imperial entre o final do século IV e início do século V (Notícia das

Gálias) e do Provincial Romano produzido pela chancelaria pontifical no século XII sob a forma da listagem universal de províncias e dioceses que compunham a cristandade lati-na. A somatória dessas listas com a ausência de documentação mais detalhada e contínua entre a Antiguidade tardia e a Idade Média central levou historiadores a defenderem a continuidade entre as cidades e as dioceses antigas e medievais por meio de uma supos-ta territorialidade das paróquias merovín-gias. Trabalhando com um quadro regional preciso e com o jogo de escalas paróquia--diocese, Lunven nos apresenta um panora-ma bastante diferente em que a relação cida-de-diocese não é dada, mas sim construída ao longo do tempo seguindo diferentes vias e ritmos. A autora revela ainda substancial enfraquecimento do referencial territorial na composição dos espaços estudados até pelo menos o século XI.

De fato, seguindo de perto a nova his-tória da Igreja medieval evocada anterior-mente, a autora traça uma história da pola-rização espacial em torno do lugar de culto como elemento estruturante da organização social. Assim, de uma alta Idade Média marcada por uma baixa territorialidade do domínio eclesiástico e por uma alta persona-lização (sob a tutela de verdadeiras famílias sacerdotais, único elemento de ligação entre os locais de culto) passa-se ao estabelecimen-to de uma polarização hierarquizada a partir da sede da diocese de onde emana o poder episcopal. Tal poder passará, entre os sécu-los XII e XIII, a ser exercido localmente por arquidiáconos e deões (cada um responsável por uma rede intermediária de locais de cul-

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343Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 16, n. 30, p. 341-346, jan./jun. 2015 | www.revistatopoi.org

to e seus dependentes). Entre um momento e outro temos um longo processo histórico de afirmação da diocese que se manifesta se-manticamente pela difusão do uso do termo diocesis em detrimento de parrochia ou epis-copatus. Período de gestação no qual a autora destaca o esforço dos bispos (desde o século IX e, sobretudo, após o século XI) em con-quistar, para sua igreja, as regiões em dispu-ta com outros centros de poder. O aspecto principal desse processo de construção de um território eclesiástico identificado com o que hoje entendemos por diocese teria ocor-rido no espaço estudado entre 1050 e 1150 quando os textos escritos passam a diferen-ciar claramente as terras ligadas ao episcopa-tus e as áreas dependentes de outros poderes como o pagus.

Ao inserir a Bretanha, tida como uma região sui generis pela historiografia tradi-cional, na lógica de polarização espacial em torno dos locais de culto por meio do forta-lecimento da relação de dominium, a autora demonstra que o caso de Dol, organização episcopal constituída a partir de um antigo mosteiro, é, na verdade, único e não uma re-gra para a região, como se pensava anterior-mente. O livro de Lunven nos indica ainda, e com riqueza de detalhes, o ritmo sob o qual se deu a expansão do poder territorial da Igreja na região: 1) a presença de uma grande quantidade de igrejas em meados do século IX sem que se possa falar propria-mente em uma rede (ou seja, conexões entre os locais de culto) hierarquizada ou mesmo de um tecido paroquial constituído sobre a lógica territorial (até o século XI a tendên-cia geral é o aparecimento de igrejas onde

já existem habitantes e não o inverso — ver p. 79); 2) a afirmação de um polo eclesiásti-co que ao mesmo tempo atrai a população (criação do cemitério) e projeta seu poder de dominium (recebimento de tributos) sob uma rede cada vez mais articulada de igrejas dependentes a partir dos séculos XI e XII (é importante notar que essa alteração na or-ganização social da Igreja é contemporânea ao amplo movimento de reconstrução de lo-cais de culto que passaram então a ser cons-truídos em pedra e não mais em madeira, testemunho da importância adquirida pela manifestação terrestre da instituição ecle-sial); 3) a encarnação do poder da Igreja por meio do estabelecimento de uma hierarquia administrativa responsável por centralizar o recebimento dos tributos e administrar os sacramentos após o século XII.

Rico em gráficos, mapas e contando com mais de duas dúzias de fotografias coloridas dos sítios estudados, bem como uma série de anexos documentais, o livro segue o forma-to francês tradicional com uma divisão em três partes, cada uma subdividida em dois capítulos. Seguindo uma lógica cronológica, cada parte apresenta uma etapa na formação da paróquia e da diocese medieval na região estudada. Na primeira parte, após analisar as estruturas eclesiásticas da alta Idade Média, a autora defende a impossibilidade de falarmos em diocese ou em paróquia antes do século XI. A segunda parte aborda as mudanças tra-zidas pelo pensamento dito gregoriano que teria sido o responsável pela associação entre novas práticas de consagração dos espaços e a valorização dos edifícios eclesiásticos, levando a uma concepção hierarquizada dos lugares

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de culto, locais onde “se encarnava o céu” (p. 28). Por fim o texto termina com um estu-do dos mecanismos administrativos necessá-rios para a gestão dos territórios eclesiásticos que se encontram entre os séculos XII e XIII quase totalmente formados.

Os dois primeiros capítulos, amplamen-te fundados em documentação arqueológi-ca, nos oferecem uma argumentação ímpar contra a ideia corrente entre os historiado-res de que as dioceses seriam herdeiras das civitates romanas, enquanto as paróquias seriam tributárias das villae galo-romanas e do vici (terras de uma aglomeração secundá-ria). Contrariamente também à historiogra-fia local que via na plou (vocábulo oriundo do romano plebs usado para nomear a forma bretã dada à paróquia) uma comunidade autônoma, Lunven demonstra que a autori-dade eclesiástica tinha um caráter pessoal e local antes de se projetar sobre um território (p. 104-122). O caso de Rennes é bastante revelador da dificuldade em se estabelecer uma relação entre os locais de culto e um território habitado sob seu controle uma vez que esta cidade, capital religiosa segundo a documentação escrita, não possui atual-mente, em seus arquivos do solo, nenhum indício arqueológico que testemunhe a vida pública ou a existência de habitações entre os séculos IV e X-XI (entre um período e ou-tro dispomos apenas de material funerário, o que confirma a ocupação perene da cidade ao longo dos séculos — ver p. 43-44).

A argumentação da autora se baseia em uma distinção entre poder e espaço, uma vez que sua leitura da documentação di-plomática sugere que a referência episcopal

empregada nesses escritos indica “mais o reconhecimento de uma autoridade do que o pertencimento ao território da diocese” (p. 59). Tal distinção pode parecer estranha para o leitor contemporâneo acostumado a associação entre as duas esferas (espaço e poder) subjacente a nossas concepções atuais de espaço público e de Estado. No entanto, do mesmo modo que as noções de “público” e de “Estado” devem ser usadas criticamente quando aplicadas à Idade Média, o uso de “território” deve levar em conta o fato de o período medieval não conceber o espaço (até pelo menos a segunda metade do século XII) como uma entidade homogênea e contínua. A consequência é que o poder medieval se exerce localmente e de um ponto a outro se-gundo uma economia da salvação cada vez mais centrada na instituição eclesial. Exem-plo disso é que uma parcela importante das igrejas que se tornarão centros paroquiais entre os séculos XI e XIII já existia desde a alta Idade Média, ainda que sem projetar seu controle sobre o território. Por outro lado, as igrejas fundadas a partir do século XI por laicos ou decorrentes de desflorestamento (em ambos os casos trata-se de novos locais de culto) não criavam automaticamente no-vas paróquias (p. 91, 99 e 100).

Os capítulos três e quatro, embora ricos em informações e reflexões a respeito da or-ganização eclesiástica na área estudada, for-necem poucos elementos novos para a dis-cussão mais geral a respeito da polarização do espaço em contexto de fortalecimento do discurso espiritual por parte dos membros da Igreja. Grosso modo, pode-se dizer que a autora compreende os movimentos ditos re-

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formistas dos séculos XI-XII como uma es-tratégia política mais do que um esforço pela correção das funções eclesiásticas (p. 191). Mesmo assim, a partir da cultura material o livro apresenta elementos interessantes que fortalecem a necessidade da revisão do para-digma historiográfico que defende a existên-cia de uma verdadeira onda de construção de novas igrejas no começo do século XII (na esteira da chamada mutação do ano mil proposta por G. Duby). Material arquitetô-nico em mãos, Lunven confirma a abertura de diversos canteiros de obras entre os sécu-los X e XII, mas demonstra não se tratarem de novas construções e sim de reformas. Ou seja, em vez de se falar em multiplicação de locais de culto, devemos falar em mudan-ça na natureza dos prédios já existentes (p. 164 e 176-184). É o que a autora chama de “petrificação da igreja e construção aqui em baixo da Cidade celeste” (p. 176). Tal altera-ção no continente (igreja) está ligada a uma alteração no conteúdo (comunidade) por meio da revalorização da noção de ecclesia em seu aspecto polissêmico (metafórico e metonímico) estudado, entre outros, por D. Iogna-Prat (p. 179).

Por fim, os dois últimos capítulos abor-dam a formação administrativa das igrejas, condição fundamental para o estabeleci-mento e a manutenção das dioceses e das paróquias. No primeiro caso, o século XII aparece novamente como momento capi-tal. Monges e cônegos dispondo de sólida formação intelectual passam a destronar as dinastias episcopais que reinavam na região até então (p. 270-271). A partir daí obser-vamos as chancelarias episcopais de Rennes,

Alet e Dol se desenvolverem gradativamente e de forma perene (p. 278-279). Para contro-lar as igrejas dependentes que se encontram espalhadas, algumas vezes a quilômetros de distância, os bispos passam a empregar uma hierarquia administrativa fundada nos arquidiáconos e nos deões. Estes são respon-sáveis, entre outras tarefas, pela coleta dos tributos previamente recolhidos pela escala mais baixa deste novo corpo administrativo, os padres em suas paróquias. De fato, a dio-cese e a paróquia passam, cada vez mais, a se tornar um referencial fiscal: o centro para o qual convergem os tributos. Contudo, ainda que desde o final do século XI o fiel de uma igreja tenha passado a ser identificado como residente de uma paróquia (p. 325), a preo-cupação com uma delimitação espacial pre-cisa dessa unidade eclesiástica de base era um fenômeno marginal durante a Idade Média. A definição dos limites paroquiais, quando acontecia, se dava nos seguintes contextos de disputas de fronteiras: em torno da clausura monástica; dentro de um sítio castelão; ao longo da formação de novos centros; duran-te os trabalhos de arroteamento, quando da divisão do dízimo (p. 336). Todo esse siste-ma parece ter atingido seu ápice na região durante o século XIII, uma vez que algumas paróquias chegaram a ser suprimidas após esse momento (p. 324).

Ao final do livro algumas conclusões regionais se impõem: 1) os séculos XI e XII foram um momento capital da organização territorial eclesiástica; 2) os mundos bretão e franco não se diferem em suas estruturas eclesiais nem em suas baixas territorialidades eclesiásticas; 3) de uma situação de indepen-

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Edificar territórios, governar o sagrado: história da espacialização eclesiástica medieval a partir de um caso (supostamente) controverso

Gabriel de Carvalho Godoy Castanho

346Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 16, n. 30, p. 341-346, jan./jun. 2015 | www.revistatopoi.org

dência existente entre os homens e um local de culto específico durante o período caro-língio passa-se à hierarquização (sacralização) espacial e social entre os séculos XI e XII.

A variada e abundante documentação utilizada não impediu que a autora reali-zasse uma análise detalhada e articulada de seu material. O livro tem o grande mérito de buscar na realidade histórica estudada a definição dos conceitos analíticos utilizados (diocese e paróquia, por exemplo). No en-tanto, um olhar conceitual atento às abor-dagens teóricas contemporâneas (como a ampla discussão de geógrafos e filósofos da segunda metade do século XX a respeito da noção de território) e à organização dos gru-pos religiosos medievais (cônegos regulares e monges são tidos pela autora como simples equivalentes — p. 115 e 235 — e a incerteza na diferenciação ou na semelhança entre cô-negos regulares e o capítulo das catedrais — p. 285-296) poderia esclarecer o propósito de Lunven e evitar confusões desnecessárias. No primeiro caso, a apresentação teórica do conceito contemporâneo de território facili-

taria a compreensão da alteridade medieval e sua separação entre espaço e autoridade (ele-mentos hoje profundamente imbricados). No segundo, a confusão entre diferentes grupos sociais de religiosos oblitera a impor-tância da emergência da normalização das práticas espirituais no processo de implan-tação territorial e administrativa da Igreja.

De todo modo, o livro é uma contri-buição importante não apenas para os es-tudiosos da Bretanha, mas também para os medievalistas em geral e mesmo para os modernistas interessados na história da Igre-ja. De fato, fica claro ao longo dos capítulos que a instituição eclesiástica é o resultado de uma constante construção administrativa do espaço. Um processo histórico que abarca também o crescente interesse eclesiástico em controlar os principais momentos das vidas dos fiéis mediante o pagamento de tributos. Será sobre essa base administrativa e moral bem assentada localmente que surgirá o Es-tado moderno calcado no controle de um território, mas isso já é outra história.

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347Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 16, n. 30, p. 347-353, jan./jun. 2015 | www.revistatopoi.org

Assim na terra como no céu

Maria Filomena Pinto da Costa Coelho*

Bastos, Mário Jorge da Motta. Assim na terra como no céu... Paganismo, cristianismo, senhores e camponeses na Alta Idade Média ibérica (séculos IV-VIII). São Paulo: EdUSP, 2013. 264 p.

Eis um livro que tem uma grande contri-

buição a dar: é um belo exercício de história. Seu autor, Mário Jorge da Motta Bastos, é professor de História Medieval na Universi-dade Federal Fluminense e desenvolveu sua trajetória como pesquisador sobre a Idade Média ibérica. Mas, para este historiador, mais importante do que o tempo e o espaço sobre os quais se debruça é a perspectiva da qual se parte. Neste sentido, ele deixa as coi-sas claras desde o início: a história só é possí-vel a partir do presente, como um problema que se coloca ao passado, no intuito de dar sentido à vida dos homens e mulheres em sociedade. Mário Jorge Bastos aparece em cada palavra que escreve — não apenas nas entrelinhas —, assumindo o protagonismo do texto, e fazendo jus à tradição marxista, com a qual se alinha. Portanto, trata-se de um livro de história que expressa com muita clareza de onde se parte, os caminhos que se pretende percorrer e de que forma se fará esse percurso.

Nos tempos que correm, em que nos va-mos acostumando com o “mais ou menos”, não deve passar despercebido o trabalho acadêmico realizado com seriedade e com-petência e, no que tange à disciplina da His-tória, dentro de parâmetros que permitem acompanhar a construção do objeto de es-tudo, as interpretações que se tecem sobre o passado e, finalmente, as conclusões a que se chega. Creio que é somente sobre essa base que o trabalho do historiador pode, ou não, ser considerado (julgado?) legítimo. Assim, o livro é um exercício de história, cuja ex-trema transparência permite ao leitor acessar de forma segura os fundamentos teóricos e os problemas que se entrelaçam no texto e que conduziram o autor em sua leitura dos documentos.

No intuito de prestar tributo à franqueza acadêmica que Mário Jorge Bastos derrama em sua obra, devo dizer que não sou mar-xista. Entretanto, li Assim na terra como no céu... com o prazer do historiador que en-contra um bom livro de história. Na forma como o texto é redigido, todos os aspectos são importantes: desde os desafios de ser marxista no mundo de hoje — com todas as idiossincrasias que a palavra encerra —, passando pelas dificuldades que o historia-dor enfrenta ao sistematizar de forma com-

* Doutora em História Medieval pela Universidad Complutense de Madri (Espanha) e professora da Univer-sidade de Brasília (UnB). Brasília, DF, Brasil. E-mail: [email protected].

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Maria Filomena Pinto da Costa Coelho

348Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 16, n. 30, p. 347-353, jan./jun. 2015 | www.revistatopoi.org

preensível aquilo que desejaria que fosse apreendido por um só golpe de vista, até o hermetismo de algumas fontes primárias. O autor põe tudo a descoberto.

Assim na terra como no céu... parte de um problema que a historiografia dedica-da à alta Idade Média do Ocidente entende como fundamental: a conversão ao cristia-nismo. Portanto, trata-se de um tema que já foi esmiuçado por muitos autores, apoia-do por um leque de explicações e de abor-dagens igualmente vasto. A proposta de Mário Jorge Bastos desenvolve-se em seis capítulos: 1) O processo de senhorialização da sociedade ibérica; 2) A Igreja no quadro da sociedade senhorial; 3) A revelação divi-na; 4) Continuidade ou transformação?; 5) Caráter, relações e campos de intervenção do poder divino; 6) Os santos e a liturgia. É por meio deste plano que o autor pretende explicar de que maneira se entrelaçam pa-ganismo, cristianismo, senhores e campo-neses na Península Ibérica, entre os séculos IV e VIII.

Diferentemente de muitas das interpre-tações já clássicas da historiografia que ver-sam sobre a temática, o livro apoia-se numa premissa basilar: o estudo do passado só faz sentido se ancorado na vida em sociedade. Portanto, para que a “conversão ao cristia-nismo” alcance o patamar de um problema de história, na sua totalidade, precisa ser en-tendido em sociedade, revelando, de uma só vez, suas implicações culturais, políticas e econômicas. São as transformações ocor-ridas nas relações sociais que explicam a conversão e as características de que ela se reveste. De forma mais ampla,

Qualquer tentativa de enfrentamento, prático e/ou teórico, do “núcleo duro” das abstrações religiosas deve orientar-se pela apreensão da lógica social em meio à qual essas se inscrevem, considerando-se a articulação das abstrações com as relações sociais e os modos de produção historicamente específicos. (p. 19)Fazer história é desvendar a essência da articulação das globalidades sociais historicamente dadas, nível fundamental de seu conhecimento porque capaz de explicar, num mesmo movimento, o funcionamento real da sociedade e a aparência que a mesma assume para seus integrantes (...), porque permite inscrever a religião nos fluxos históricos globais nos quais a mesma se insere, e não como um elemento secundário, reflexivo ou “epifenomênico” em relação aos processos mais essenciais, porque “mais materiais”, mas como um elemento primário essencial à articulação das sociedades, em especial daquelas historicamente anteriores ao advento do capitalismo. (p. 20)

De um só golpe, Mário Jorge Bastos criti-ca “gregos e troianos”. A religião não pode ser entendida pelos historiadores numa dimensão mágica, capaz de por si mudar a sociedade, nem tampouco como uma manifestação de somenos importância, mais adequada aos es-tudos sobre a cultura. Ambas as posições, tão comuns na historiografia, e que travaram rui-dosas batalhas acadêmicas, fazem exatamente a mesma coisa: retiram a religião da história. O desafio de trazer a religião para dentro da história é complexo, uma vez que, para além

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Maria Filomena Pinto da Costa Coelho

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de exigir o estudo e interpretação da própria sociedade em análise, supõe ainda o diálogo crítico com os grandes temas da síntese histo-riográfica, como é o caso da transição/passa-gem da Antiguidade à Idade Média, na qual os historiadores entendem que a conversão ao cristianismo teve um papel fundamental. Neste caso, o livro apresenta já na introdução a maneira como se pretende enfrentar o pro-blema, além de resumir brevemente as prin-cipais correntes e suas implicações. A velha dicotomia “cristianismo × paganismo” ainda é considerada pelo autor como um aspecto importante a ser discutido, uma vez que as soluções propostas nos últimos tempos pelos historiadores não ajudam a explicar a reli-gião em sociedade (“no âmago das relações sociais”). Ora se afirma a vitória do cristia-nismo, ora a resistência do paganismo, numa lógica de forças monolíticas que se enfrentam, e cujos resultados são interpretados às vezes como virtude, às vezes como desvio. Mensu-ram-se, até mesmo, os níveis de paganismo e de cristianismo!

A saída, para o autor, encontra-se na pos-sibilidade de atribuir à cultura a dimensão de amálgama, como resultado do sentido que a sociedade constrói sobre suas mudanças na história. Assim, reconhece-se uma apro-ximação às propostas do historiador inglês marxista Edward P. Thompson, para quem a cultura representava um nível de análise fundamental. Daí deriva também a defesa da utilização do conceito de classe para se estudar a sociedade ibérica, uma vez que não se trataria de “uma categoria estática, o que supõe uma derivação mecânica de classes que surgiriam, imediatamente, das próprias

relações de produção, desconsiderando-se as relações sociais de mais amplo teor nas quais estas se inserem” (p. 46). Seguindo a Thompson, consistiria em compreender que “as classes ‘acontecem’ ao viverem, os homens e as mulheres, suas relações de pro-dução, e ao experimentarem suas situações determinantes, dentro de um conjunto de relações sociais com uma cultura e expecta-tivas herdadas, e ao modelarem estas expe-riências em formas culturais” (p. 46).

Para atingir o objetivo proposto, Mário Jorge Bastos parte, então, da sociedade ibéri-ca. Em seus primórdios, identifica as trans-formações cruciais que explicam o sentido que o cristianismo alcançou, encontrando--as na constituição da família. Com base num corpus documental rico e variado, e já muito trilhado pelos historiadores, o autor desvela as mudanças que se operaram no seio das famílias senhoriais e camponesas, cujo resultado mais evidente foi a nucleação, em detrimento do modelo da família exten-sa, acompanhada de um sistema de inter--relações sociais verticais do parentesco, que coloca a aristocracia no vértice dessa relação.

A Igreja, como instituição basilar do período, somente poderá ser compreendi-da a partir do papel que aquela aristocracia assume, sobretudo ao nível local, na reela-boração social dessas estruturas de paren-tesco. Portanto, a Igreja, com seu inegável crescimento, é fruto dessa aristocracia e do campesinato, e não uma espécie de guardiã da virtude institucional, que a duras penas sobrevive à ignorância da sociedade e das superstições pagãs. O título do segundo capítulo, “A igreja no quadro da sociedade

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senhorial”, não deixa dúvidas quanto à po-sição do autor com relação ao imponente legado jurídico que essa instituição nos dei-xou para o período visigodo, e que costuma influenciar os historiadores:

É totalmente outra a perspectiva que assumo, tendo em vista que o objeto deste estudo não é a doutrina jurídica da igreja, mas são as práticas e relações sociais efetivas que estruturaram a instituição e a sociedade global na qual a mesma estava inserida. Nesse sentido, a recorrência da afirmação, o ajuste e a ampliação daquele conjunto de normas expressam as tensões e os conflitos característicos do funcionamento contraditório da realidade social ibérica do período, o que explica a incapacidade dos legisladores de promover a sua plena resolução. (p. 104-105)

No que se refere aos níveis inferiores da sociedade, a Igreja faz-se representar nos pá-rocos, cujas condições jurídicas não diferem muito daquelas que atam os camponeses aos senhores. São, portanto, clérigos dependen-tes no âmbito do senhorio. Neste sentido, a conclusão do autor aponta para o papel pri-mordial que a Igreja alcançou na qualidade de fruto mais visível da sociedade senhorial.

Como dito, as fontes documentais que embasam o livro são aquelas já conhecidas pela historiografia. No quarto capítulo, Má-rio Jorge Bastos apoia-se num desses famo-sos documentos, De corretione rusticorum, de Martinho de Braga, no intuito de desve-lar os eixos centrais da argumentação cristã, sem deixar de destacar as formas como a his-

toriografia costuma interpretar esse tipo de discurso. Com relação ao primeiro aspecto, é importante compreender que a ortodoxia era atravessada por uma infinidade de inter-pretações e de disputas eclesiásticas em tor-no da verdade. Os concílios são reveladores desse ambiente de multiplicidades teológi-cas, que devem ser explicados também na perspectiva da luta pelo reconhecimento de uma única autoridade que exercesse o poder, e que preservasse a Igreja da total entropia que os particularismos supunham. Assim, é imprescindível que o historiador não perca de vista a fragilidade da fronteira entre he-resia e ortodoxia, que se estabelecia ao sa-bor dessas disputas. O autor sugere que é justamente sobre essa elasticidade que se vai construindo a unidade da Igreja, muito em-bora se deva afastar completamente aquela surrada ideia de que a instituição virtuosa cede, de forma inteligente e calculada, frente à ignorância e ao paganismo para não perder demasiado terreno, ou, então, aquela outra interpretação de que a Igreja se desvirtua, devido à “paganização” de seus membros. A mensagem mais importante de Martinho de Braga, em seu sermão, incide sobre a forma (súmula) como “vincula os crentes ao pro-jeto global de ordenação social deliberado pelas elites clericais” (p. 123), revelada pela divindade. Ignorar a vontade de Deus é o caminho para a perdição, que só pode ser evitado por meio da submissão àqueles que poderão conduzir à verdade: o clero orto-doxo. Somente este pode identificar o que é sagrado, bem como as práticas corretas de devoção, as quais necessariamente devem ter a sua intermediação. Caso contrário, trata-se

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de manifestações demoníacas e pagãs que devem ser suprimidas, sob a pena de condenação eterna. A estratégia do discurso de Martinho, para impossibilitar que essas manifestações possam ser vistas como par-te de um “sistema religioso concorrente”, é retirar-lhes qualquer conteúdo sagrado, e apresentá-las como práticas laicas e histó-ricas. Trata-se, portanto, de uma proposta religiosa que quer abarcar a realidade total e colocar a Igreja como a única capaz de realizar plenamente a história humana, de acordo com os desígnios de Deus, e a elite clerical como a autoridade cognitiva cristã que interpreta corretamente o mundo.

Do que se disse até aqui, depreende--se um projeto político de hegemonia. Este conceito será apresentado pelo autor de ma-neira a ressaltar a necessidade de entendê-lo numa perspectiva dinâmica, de constantes transformações, coisa que de resto fez a elite cristã ibérica. Se para os historiadores pare-ce importante decidir se a época era mais de continuidades ou de rupturas, para es-ses medievais era na tradição que se anco-rava o movimento da história. As mudan-ças que eles propunham eram “uma versão do passado que deve ligar-se ao presente e ratificá-lo, inclusive pelas transformações que se impõem à sua plena adequação” (p. 138). A hegemonia assenta-se no passado, na tradição, e mesmo que o historiador decida tratar-se de ‘reminiscência/sobrevivência’, ela é vivida com o significado que o presente lhe atribui. Ao mesmo tempo, é preciso não es-quecer que a hegemonia eficaz precisa con-tar com o ‘consentimento dos dominados’ — conceito de Maurice Godelier —, o qual

se obtém graças à constante reafirmação dos sentidos do poder, que se assenta na “parti-lha das representações do mundo” (p. 152). Ao desenvolver os argumentos, Mário Jorge Bastos deixa bastante clara a inutilidade das medições sobre o que há de continuidade ou de ruptura; o importante é que o historiador não deixe de explicar de que forma esses as-pectos se amalgamam no cotidiano da socie-dade. A chave reside em ampliar os horizon-tes do que se entende por economia na Idade Média, o que permitirá concluir que “toda naturalização das relações sociais de pro-dução desemboca, necessariamente, em sua sobrenaturalização” (p. 158). Portanto, o fe-nômeno alcança senhores e camponeses que elaboram e dão sentido às relações que esta-belecem entre si e com a natureza, por meio da religião. Tal proposta afasta-se daquelas que reduzem a religião ao nível das ideias, como se fosse possível partir unicamente do pensamento para desvendar seu significado. Apoiado em Marx, o autor sublinha que “a religião remete ao quadro geral da estrutura social e a processos sociais concretos (...) isto é, a uma apreensão global da sociedade, uma vez que constitui e expressa suas hierarquias e desigualdades, imiscuindo-se aos proces-sos de dominação e resistência” (p. 164).

A proposta que o cristianismo oferece à sociedade nos primeiros séculos da Idade Média é englobante, de acordo com a má-xima de que o poder divino tudo abarca. Tal capacidade de intervenção de Deus na vida dos homens é visível nos escritos de Ambrósio, Agostinho, Isidoro de Sevilha, Aurélio Prudêncio, Ildefonso de Toledo e outros autores a quem recorre Mário Jor-

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ge Bastos para fundamentar sua reflexão. Assim, as relações sociais são também uma preocupação da divindade, que se manifes-ta por meio da sacralização dos laços de dependência, da fidelidade e dos vínculos pessoais. A retórica do cristianismo revela uma profunda interligação entre o plano terrestre e o celestial, não como simples estratégia de legitimação da ordem social, mas como resultado da profunda imbrica-ção entre as relações sociais de produção e o plano religioso. A própria monarquia vi-sigoda constrói-se, como prática e discur-so, sobre a concepção do ungido de Deus, senhor de terras e de homens, coisa que não o diferenciava qualitativamente do tipo de poder que era exercido pela aristocracia.

A difusão dos valores sociais da aris-tocracia cristã assume especial visibilidade com o culto aos santos e às suas relíquias. Criam-se ambientes onde se materializa o modelo e difundem-se narrativas. Por um lado, os lugares de culto povoam-se de pro-vas que avalizam a existência histórica des-sas virtudes (os santos) e as hagiografias en-carregam-se de disseminar a sua fama. Os mosteiros e as igrejas são os lugares ideais para esse fim, aos quais a própria aristocra-cia se associa, por meio das fundações, da participação direta no corpo eclesiástico, e dos enterramentos, que compartilham o mesmo espaço físico dos santos. Ao analisar as famosas hagiografias ibéricas do período, o autor mostra como o discurso que lhes dá sentido assenta-se nas relações de patrocí-nio, fidelidade e dependência, bem como na afirmação da Igreja como a única ordo capaz de guiar os cristãos à salvação. Da

mesma forma, os rituais propiciatórios (ofe-rendas) afirmam e revitalizam a “concepção senhorial das relações sociais fundadas na munificência, na liberalidade característica da aristocracia, mas que atuam em prol do fortalecimento de seu prestígio social, de seu poder e, em última análise, de capaci-dade de impor-se aos seus dependentes” (p. 229). Oferece-se ao senhor (Deus) não por-que ele precise, mas para que ele restitua os dons, abençoados e multiplicados.

Mas, ficaria ainda uma pergunta: como interpretar a pertinácia daquilo que a autori-dade classificava como heresia?

Ora, a contumácia manifesta nessas concepções e práticas dissonantes, renitentes e heterodoxas parece-nos revelar um processo muito mais complexo, em seu curso, do que o da suposta unificação religiosa atingida com a “conversão do Ocidente ao cristianismo”, complexidade intimamente articulada às contradições sociais intrínsecas à implantação da sociedade senhorial no período, e manifestação vigorosa dos conflitos que matizaram todo seu processo! (p. 233)

Enfim, Mário Jorge Bastos mostrou que assim como as coisas se organizavam na terra, refletiam-se no céu. Para tanto, foi necessário entender que as relações de produção orga-nizavam-se de maneira complexa, sob formas jurídicas, políticas e culturais específicas (ti-pos de dominação, de coerção, de proprieda-de e de organização social), presentes desde o início do processo como parte constitutiva e primordial. Portanto, não se trata de apre-

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sentar essa dimensão como secundária, ou mero reflexo, o que se afasta completamente da ideia de que a base econômica se reflete mecanicamente na superestrutura. Um exer-cício de história que permite repensar as ma-neiras como a historiografia tem explicado a “conversão do Ocidente ao cristianismo”,

bem como acompanhar a renovação da abor-dagem marxista da História. Mas, diante das dificuldades que a Academia tem para convi-ver com a pluralidade, talvez o livro seja mar-xista demais para gregos e marxista de menos para troianos...

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Os desafios profissionais do historiador

Flavia Renata Machado Paiani*

Banner jr., James M. Being a Historian. An Introduction to the Professional World of History. Nova York: Cambridge University Press, 2012.

Ser historiador significa, certamente, algo mais que estudar o passado e pesquisar em bibliotecas e arquivos. No livro Being a Historian: an Introduction to the Professio-nal World of History, o historiador estadu-nidense James M. Banner Jr. preocupa-se em mostrar que os historiadores não devem estar circunscritos à carreira acadêmica (preocu-pação que se explicita, sobretudo, no terceiro e no quinto capítulos). Embora ele analise a realidade profissional do historiador nos Es-tados Unidos, suas indagações também são pertinentes à realidade brasileira na medida em que compartilhamos muitas das inquie-tações sobre o futuro de nosso ofício.

Em um primeiro momento, o autor bus-ca diferenciar a disciplina “história” da pro-fissão que se debruça sobre ela. Para ele, a profissão diz respeito à “direção e à maneira com que é utilizado um cabedal de conhe-cimento, e não ao cabedal de conhecimento em si” (p. 4). Ele destaca que a profissão re-quer uma educação mais ou menos uniforme no conjunto de conhecimento e protocolos

de prática de pesquisa — ou seja, é a forma-ção acadêmica que diferenciará o “historia-dor profissional” do “historiador amador”. Nesse sentido, o autor assinala que os his-toriadores profissionais não ficam restritos a uma única profissão, podendo atuar como acadêmicos, editores, consultores, escritores independentes, curadores em museus etc.

O leitor brasileiro talvez estranhe algu-mas profissões sugeridas por Banner Jr., pois, em linhas gerais, o historiador no Brasil segue majoritariamente a docência — seja na edu-cação básica, seja na educação superior. Ain-da nos é recente a luta em torno do projeto de lei (PL) sobre a regulamentação de nossa profissão para que possamos repensar nos-sos espaços de atuação. Ademais, ainda nos é pouco conhecida a noção de “história pú-blica” — discutida entre os historiadores es-tadunidenses desde a década de 1970 — que nos permite, do mesmo modo, ampliar nosso leque de atuação e nosso papel na sociedade.

Assim, dividido em oito capítulos, o cer-ne do livro não é pautado apenas no debate sobre história acadêmica e história pública: seu foco é a redefinição do lugar (profis-sional e, em certa medida, social) ocupado pelo historiador. Todavia, essa redefinição perpassa os rumos tomados pela disciplina de história, bem como o monopólio que a

* Doutoranda em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: [email protected].

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Os desafios profissionais do historiador

Flavia Renata Machado Paiani

355Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 16, n. 30, p. 354-358, jan./jun. 2015 | www.revistatopoi.org

universidade tende a exercer sobre ela. Ainda assim, o autor ressalta que as mudanças mais significativas pelas quais a disciplina passou nos últimos anos desenvolveram-se precisa-mente fora do meio acadêmico. Ele destaca, em especial, o papel da American Histori-cal Association (AHA) — “hoje em dia, a maior e mais antiga organização de histo-riadores profissionais nos Estados Unidos e, indiscutivelmente, a organização histórica mais importante do mundo” — que pode ser igualada a um departamento acadêmi-co no que concerne à sua influência sobre o modo como a história é ensinada e praticada nos Estados Unidos (p. 42). No caso brasi-leiro, caberia nos questionarmos o papel his-toricamente desempenhado pela Associação Nacional de História, cuja sigla — ANPUH — originalmente remete não a uma associa-ção de historiadores, mas a uma associação de professores universitários de história. A ampliação do número de associados, bem como sua relativa heterogeneidade (não são mais os professores universitários exclusiva-mente), desemboca também na pressão pela regulamentação da profissão de historiador, de que trata o PL 4.699/2012.

Em realidade, o ideal acadêmico impreg-na a disciplina desde o século XIX, quando de sua profissionalização na Alemanha. Des-de então, “aqueles que preparam outros his-toriadores (...) são eles próprios membros do corpo acadêmico”, tornando-se a aspiração profissional dos jovens ingressantes. Para o autor, “o desafio não é libertar alguém des-sa aspiração, mas, antes, libertá-lo de uma resposta automática a essa aspiração”. Nesse sentido, ele também destaca que a quanti-

dade de vagas para docentes nas universida-des não comporta o número de doutores em História: em outras palavras, “as carreiras acadêmicas não podem e não irão absorver todos os historiadores disponíveis” (p. 64). De modo semelhante, temos assistido no Brasil ao expressivo aumento do número de recém-titulados em decorrência da expansão dos programas de pós-graduação em Histó-ria: temos atualmente 69 programas, sendo que 37 contemplam o doutorado.1

Dessa forma, o terceiro capítulo (A Multitude of Opportunites: Sites, Forms, Kin-ds, and Users of History) nos é interessante à medida que enfoca e problematiza as possi-bilidades de atuação do historiador fora do meio acadêmico, bem como os públicos que se interessam por história. Banner Jr. assinala o papel que um vasto grupo formado por edi-tores, designers e especialistas em marketing e venda desempenha na circulação do conhe-cimento histórico, assim como os curadores em mostras de temática histórica, que lidam diretamente com o grande público.

Para além de editoras e museus (para citar apenas dois exemplos), o autor desta-ca a possibilidade de um historiador atuar de modo independente. Ele aponta para o pequeno número de historiadores que foram bem-sucedidos como escritores de livros de história, em que pesem os desafios enfren-tados pela ausência de vínculo institucional. Novamente, se remontarmos ao nosso caso, percebemos uma diferença entre os Estados Unidos e o Brasil: contrariamente aos co-

1 De acordo com a Relação de Cursos Recomenda-dos e Reconhecidos pela Coordenação de Aperfeiço-amento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

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Os desafios profissionais do historiador

Flavia Renata Machado Paiani

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legas de lá, nossos principais escritores de livros de história são, em sua maioria, jor-nalistas (como Laurentino Gomes, Eduardo Bueno e Leandro Narloch) sem formação acadêmica em História. Esse fenômeno, o da “narrativa jornalística da história”, requer um debate mais aprofundado no meio aca-dêmico brasileiro, embora o pontapé inicial já tenha sido dado pelo historiador Rodrigo Bragio Bonaldo em dissertação defendida em 2010.2

É certo, porém, que existe uma relativa dificuldade em escrever para o grande pú-blico, pois essa habilidade requer um trei-namento que o historiador, em geral, não tem (seja no Brasil, seja nos Estados Uni-dos). Banner Jr. percebe que os programas de pós-graduação, assim como a maioria dos departamentos, tendiam (até há pouco tempo) a priorizar o preparo convencional. Mesmo quando havia treinamento e prática formais para desenvolver um repertório mais diversificado de habilidades, “a ausência de incentivos e de reconhecimento para atingir círculos extra-acadêmicos continuava a ini-bir a disseminação do treinamento na escrita para um público mais amplo” (p. 74).

Ainda assim, o autor reitera que o conhe-cimento produzido na academia não pode mais ter como único destinatário seus pares acadêmicos, mas deve também abarcar os “cidadãos bem informados”, os “curiosos”,

2 BONALDO, Rodrigo Bragio. Presentismo e presen-tificação do passado: a narrativa jornalística da his-tória na Coleção Terra Brasilis de Eduardo Bueno. Porto Alegre: UFRGS, 2010. 169 p. Dissertação (Mestrado em História) — Programa de Pós-Gra-duação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.

os “aficionados” por determinados temas do passado, o “governo” e outras corporações. Essa constatação não implica, contudo, des-considerar a importância da academia na produção e legitimidade do conhecimento histórico.

Sem as monografias e os artigos de periódicos escritos por acadêmicos para acadêmicos, sem a especialização e a confiança na obra de outros acadêmicos (que se tornaram visíveis pelo uso da tão ridicularizada nota de rodapé), o conhecimento histórico teria permanecido parte do mundo da especulação amadorística, e não teria se tornado uma parte constitutiva da compreensão humana, baseada na evidência bem fundamentada, na interpretação sujeita à avaliação e à revisão, e nos acréscimos em aberto. Ademais, sem a erudição monográfica, os popularizadores da história — escritores não acadêmicos e cineastas especialmente — não teriam tido à sua disposição o conhecimento que empresta à sua obra a credibilidade que ela possui. (p. 72)

Apesar deste reconhecimento no que concerne ao papel desempenhado pela aca-demia, Banner Jr. insiste nos círculos extra--acadêmicos (em especial, nos diferentes públicos que reivindicam o acesso ao conhe-cimento histórico), bem como na capacidade de adaptação e de inovação do historiador em atender a essas demandas. Indo além, o autor também critica, no quinto capítulo, a tímida atuação dos departamentos de histó-

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ria no preparo de professores para a própria academia, uma vez que a formação recai so-bre a prática da pesquisa, e não sobre a prá-tica do ensino.

A partir do quinto capítulo (History outside the Academy), Banner Jr. desdobra a noção de história pública, destacando que a crise de emprego na década de 1970 en-tre os novos doutores impulsionou o desen-volvimento da história pública nos Estados Unidos. Nesse contexto, ele explica que “o desejo de permanecer historiador profissio-nal por parte daqueles que se frustraram na procura de uma colocação acadêmica expli-ca muito do crescimento da história pública” (p. 135). Ao mesmo tempo, o autor acrescen-ta que o aumento da demanda por conheci-mento histórico criou não apenas novas prá-ticas e oportunidades para os historiadores, mas também renovou o modo de conceber o significado desse conhecimento. No en-tanto, ele percebe que a história pública não goza de grande estima no que se refere ao seu nível de autoridade intelectual. Diferen-temente da história acadêmica, as práticas históricas públicas são ainda recentes, e sua baixa estima incide no (não) recrutamento das mentes jovens mais brilhantes.

Assim, Banner Jr. ressalta duas diferen-ças primordiais entre a história acadêmica e a história pública a partir da caracterização desta última. A primeira diferença refere-se à “utilidade direta, mais que a aplicabilidade difusa, do conhecimento histórico aos assun-tos humanos” (p. 144). A “utilidade direta” da história pública consiste na resposta aos in-teresses específicos do público não acadêmico sobre questões do passado, afetando sua com-

preensão do mundo. Já a segunda diferença relaciona-se, em certa medida, à primeira apontada. A história acadêmica “procura, principalmente, avançar o conhecimento aca-dêmicos e dos estudantes” (p. 144). Por seu turno, a história pública procura avançar a compreensão sobre o passado entre o público não acadêmico, fazendo com que a reflexão histórica aconteça fora da sala de aula ao enco-rajar as pessoas a interpretarem esse passado. Ademais, os materiais e os meios de pesquisa da história pública não se limitam aos livros e aos manuscritos, mas englobam, sobretudo, a comunidade — “seus prédios, seus bairros, seus produtos industriais e outras dimensões de seu passado” (p. 148).

É verdade que o autor torna-se repetitivo em certos pontos do livro em decorrência, em parte, de seu próprio didatismo. Ao mesmo tempo, ele evidencia uma realidade do histo-riador nos Estados Unidos que suscita ques-tionamentos interessantes também à nossa realidade. Ao apenas tangenciar questões epistemológicas da disciplina, ele enfoca, principalmente, os profissionais que fazem uso dela e que contribuem para a produção e a disseminação do conhecimento histórico dentro da universidade ou fora dela. Desse modo, os públicos da história também en-tram em pauta no livro, porque eles não são apenas os destinatários do conhecimento produzido, mas são, especialmente, aqueles que demandam e interpretam esse tipo de conhecimento.

Em suma, o livro pode ser o ponto de partida para que o historiador brasileiro re-flita sobre diferenças e semelhanças relativas ao exercício de nossa profissão nos dois paí-

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ses. O intento comparativo pode, então, des-dobrar-se em uma abordagem mais ampla, que preze pela articulação de novos espaços de atuação profissional com a redefinição de

nosso papel na sociedade. Logo, ser historia-dor no Brasil nos dias de hoje requer o apro-fundamento da reflexão acerca do futuro de nosso ofício.

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O Partido dos Panteras Negras

Wanderson da Silva Chaves*

Bloom, Joshua; Martin, Jr., Waldo E. Blacks Against Empire: The History and Politics of the Black Panther Party. Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 2013. 540p.

Poucos aspectos da história norte-ameri-cana do pós-guerra são tão opacos quanto a história do Partido dos Panteras Negras. Sua vertiginosa trajetória de ascensão e queda, entre 1967 e 1971 — e encerramento defini-tivo das atividades, em 1982, de forma prati-camente anônima — vem sendo disputada e fixada por duas narrativas principais, publica-mente ainda em disputa, mas que, entretan-to, discursivamente tendem a se encontrar. A sustentada pelo Federal Bureau of Investiga-tion (FBI), mais conhecida por ser a adotada na cobertura jornalística nos EUA desde en-tão, associa ao Partido um programa racista, fascista, sectário e separatista, que justificaria, em razão de ameaças à segurança nacional, a campanha de época pela destruição dos Pan-teras. A outra narrativa, calcada na fortuna crítica dos chamados “estudos afro-america-nos”, e sustentada principalmente pela mili-tância e organizações do nacionalismo negro, vincula o Partido a um projeto de busca da unidade e do orgulho racial, característicos da

negritude. O mérito de Blacks Against Empi-re reside justamente na desconstrução destes dois lugares-comuns. Reconstrói-se, ao longo do livro, a lógica de atuação do Partido a par-tir de suas principais tensões e ambiguidades: embora decisivas para o programa partidário, essas particularidades eram categoricamen-te ignoradas no trabalho de memória, e na historiografia.

O trabalho de Joshua Bloom, sociólo-go da UCLA, e Waldo E. Martin Jr., his-toriador da Universidade da Califórnia em Berkeley, e autor experiente — com publi-cações sobre escravidão, racismo, direitos civis e movimentos sociais — foi árduo. O livro começou a ser escrito em 2000, e no seu curso, mobilizou cerca de 50 pesqui-sadores e colaboradores diretos, reunindo mais de 12 mil páginas de documentos raros e inéditos, hoje, integrados aos acervos da Biblioteca de Estudos Étnicos e à Bancroft Library, de Berkeley. Quatorze teses acadê-micas foram desenvolvidas sob a cobertura desse projeto, que estendeu sua pesquisa a arquivos nacionais e internacionais, priva-dos e governamentais, e retomou, por meio de entrevistas, e um sério esforço de certifi-cação documental, a massa de testemunhos, memórias e autobiografias que ainda são a principal fonte bibliográfica sobre o Partido

* Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP. Brasil. E-mail: [email protected].

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e para boa parte das organizações civis dos EUA dos anos 1960 e 1970.

O resultado desse empreendimento: uma boa narrativa factual, comparada ao desastre historiográfico das duas tendências da litera-tura temática, e que coloca imediatamente questões inquietantes; particularmente, a de que os Panteras Negras, não apenas retorica-mente, mas em agenda e estratégias, busca-ram ser radical e efetivamente antirracistas.

Comparado às organizações do Movi-mento dos Direitos Civis dos anos 1960, o Partido parece ter ido fundo e longe: torna-ram-se uma organização nacional com for-te presença nos grandes centros urbanos, e agindo, principalmente, fora do Deep South e da sua rede de organizações religiosas, es-tudantis e profissionais negras. O projeto de Martin Luther King Jr., para os anos 1960, de que sindicatos, igrejas e o mainstream li-beral colaborassem nas reformas econômi-cas, sociais e políticas destinadas à definitiva dessegregação — a integração de todos à projetada beloved community — obteve pou-co suporte fora das suas bases tradicionais, a classe média negra, e simpatizantes progres-sistas do Norte. Os colaboradores que não responderam à conclamação de King, to-davia, não fizeram falta ao arco de alianças construído pelos Panteras. Profundo conhe-cedor da organização, o FBI sabia que seu projeto de desmantelamento do Partido pas-sava principalmente por ações de dissuasão aplicadas aos aliados: os órgãos da chamada Nova Esquerda, particularmente os envolvi-dos na luta contra a Guerra do Vietnã; os “negros moderados”, rescaldo do Movimen-to dos Direitos Civis; governos de Estados

comunistas ou não alinhados; e lideranças, associações e igrejas baseadas nas periferias das cidades, não apenas nos bairros negros. A estratégia: diplomaticamente, romper o suporte internacional; e com medidas poli-ciais secretas, minar as pontes entre os di-versos segmentos de classe da comunidade negra, bem como as conexões “inter-raciais”, que eram o grande patrimônio político do Partido.

Os Panteras Negras não eram secessio-nistas, nem partidários da negritude como projeto, embora a reivindicação à herança de Malcolm X — que era uma meta partidária importante, particularmente o chamado à luta por “todos os meios necessários” contra o Estado e a polícia — tenha sido central para a sua atuação. Com relação a programas, nada de decisivo opôs o Partido à proposta de inte-gração, que caracterizava a agenda pública de King. Curiosamente, ela seguia no sentido do seu aprofundamento, ao destacar mudanças estruturais para destruir — e não apenas re-formar — dinâmicas raciais, como condição para tornar os direitos civis realmente efeti-vos. A diferença em relação a King, sempre afirmada com muita ênfase, era tática: con-tra a resistência não violenta, advogava-se a autodefesa armada, e, ainda que nunca de forma consensual e programática, também o enfrentamento armado ao Estado como parte da sua atribuída vocação de partido revolu-cionário. O FBI explorou publicamente essa escolha tática como uma aberta declaração de guerra. E com uma massiva campanha de infiltração, sabotagem e extermínio, na qual buscou vincular o Partido a falsas ações, de-frontou os Panteras Negras intermitentemen-

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te aos dilemas estratégicos e éticos da instru-mentalização política da violência.

A resposta dos autores à historiografia — que concede grande relevância às leitu-ras policiais, ao heroísmo dos testemunhos, e aos atuais Movimentos Negros, que se pre-tendem herdeiros políticos do Partido — foi estritamente documental. Nela, há um es-forço em distinguir as ações secretas de Es-tado das realizadas pelos Panteras, e em se-parar a agenda e atuação do Partido daquela das organizações raciais negras, posto que essa diferença tornou-se mais que retórica — tornou-se programática. E compreende--se bem ao longo do livro o porquê.

Fundado em 1966, o Partido dos Pan-teras Negras era, inicialmente, uma milícia armada, formada integralmente por ho-mens, que atuava na região de Oakland, Califórnia. Suas principais atividades eram o monitoramento da polícia, via obstrução e denúncia da violência dos órgãos de segu-rança, e a intimidação — física e através de boicotes e mobilizações públicas — de de-nunciados de racismo e infração aos direitos civis. Os marcos dessa atuação eram inu-sitadamente legais. Segundo leis estaduais da época, o porte e o transporte de armas carregadas, em locais públicos ou veículos, eram permitidos se o armamento estivesse devidamente exposto, e fora de posição de tiro. Acompanhar ações policiais também era permitido, desde que mantida distância. Huey Newton e Bobby Seale, estudantes de direito, e membros fundadores do Partido, fizeram essa descoberta legal, e nela apoia-ram a aplicação da autodefesa armada para além da situação — a invasão de residências

sem mandado judicial — que primeiro ha-via mobilizado seus esforços.

Até 1967, o Partido era mais uma uni-dade, dentre várias outras, espalhadas pe-los EUA, surgidas simultaneamente nessa época, que se autointitulavam Panteras Ne-gras. Todas elas atendiam a um chamamen-to comum. Usando o animal símbolo do Lowndes County Freedom Organization (LCFO), organização política que o Students Non-Violent Coordinating Committee (SNCC) pretendia transformar em partido no Alabama, os Panteras de Oakland eram mais um grupo que buscava dar forma po-lítica ao slogan “Black Power”, de Stokely Carmichael, líder do SNCC. Então, pou-co conhecido fora do norte da Califórnia, o grupo de Newton, Seale e do jornalista de Ramparts, Eldridge Cleaver, por volta de outubro de 1968, já havia rapidamente uni-ficado em torno da sua liderança todos os grupos de Panteras, aproximado e empare-dado vários setores da esquerda norte-ame-ricana, estabelecido uma publicação oficial com tiragem de massa, reunido um orça-mento anual milionário, angariado suporte internacional, e dominado o debate pela de-finição dos sentidos do Poder Negro. Essa ascensão, que se alicerçou na atração dos jo-vens mobilizados nos confrontos raciais na era dos assassinatos de Malcolm X (1965) e King (1968), foi alcançada com dramáticas e bem-sucedidas ações públicas, e após duras disputas interorganizacionais e partidárias.

Em razão de suas opções táticas, Newton, Seale e Eldridge Cleaver consideravam o Par-tido o único capaz de exercer algum esforço de politização sobre a massa de jovens negros

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que escolheu a violência. E graças ao perfil da sua liderança, os únicos que poderiam atrair identificação imediata. De fato, um histórico de pobreza, bom treinamento militar prévio, passagens por prisões, eventuais aproxima-ções ao Nation of Islam (NOI) e um sério es-forço de formação intelectual os assemelhava a parte considerável da militância que ingres-sou nas cerca de 80 sucursais que os Panteras chegaram a ter no país. Inicialmente, o Parti-do espelhou a retórica racialista e nacionalista que emergiu nos confrontos e protestos, mas das suas proclamações, na qual se declarava vanguarda partidária do “exército de liberta-ção negro”, dificilmente se poderia obter uma agenda nacionalista. Discursivamente difusa, e muito dependente da eficácia performativa das ações e da sua poderosa iconografia, suas metas nem sempre óbvias eram a liberação do racismo, o combate à polícia, a autogestão co-munitária e a união tática dos negros como estágio preliminar e preparatório da luta “an-ticolonial” contra o Estado norte-americano a ser lançada.

Os Panteras eram a mais literalmente “fanonista” dentre as organizações de base negra dos EUA, vinculação que foi pouco destacada pelos próprios autores. Isto sig-nificava uma aposta no programa de luta armada exposto em Os condenados da terra (1961), em que se apelava à violência como força liberadora pessoal e militar do domí-nio colonial. Esse potencial de transgressão, pensado para se dirigir contra o “exército do-méstico de ocupação” que seria a polícia, era dirigido também contra o que era conside-rado, pelo Partido, o grande “maniqueísmo colonial” a ser revertido — a raça. Embora

a liderança dos Panteras Negras tivesse bom domínio da literatura marxista e dos textos políticos de Che, Mao e Lênin que fizeram carreira naquela época, era Fanon a principal ferramenta do Partido no rechaço às organi-zações cujo programa fosse “antibranco” ou que pretendessem disciplinar sua atuação. Por uma ou por ambas as razões, o SNCC, o Congress for Racial Equality (CORE), o braço político do NOI, o Revolutionary Ac-tion Movement (RAM) e o Partido Comu-nista dos Estados Unidos foram asperamen-te repelidos.

Após o estabelecimento de restrições le-gais ao uso de armas, em 1969, os Panteras se orientam para a montagem, nas suas su-cursais, de clínicas médicas, refeitórios, cur-sos de formação política e escolas primárias, entre outras iniciativas cujo fim declarado era estabelecer a gratuidade, socialização, criação e a autogestão de serviços públicos dentro das comunidades negras. Sustentada por grande suporte e participação volun-tária, a iniciativa afetou o War on Poverty, grande programa federal de reforma urba-na, terceirizado para empresas, fundações, igrejas e organizações negras. Publicamen-te, a política social de governo era ferida, na comparação, por sua atribuída timidez, ino-perância e racismo. A essa reorientação, na qual o Partido transferiu para sua lideran-ça “civil” a condução da maioria das ações, coincidiu curiosamente uma brutal ofensiva policial, na qual se prendeu ou executou os principais quadros dos Panteras Negras, su-cessivamente, cidade a cidade.

Esse momento também coincidia com a construção de uma sólida aliança do Par-

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tido com os movimentos contra a Guer-ra do Vietnã, da qual os dois segmentos se consideraram beneficiados. Orientando-se parcialmente pelas mudanças no discurso público dos Panteras, os grupos predomi-nantemente estudantis, envolvidos nos pro-testos, foram acrescentando uma retórica anti-imperialista, e depois, crescentemente antifascista e anticapitalista, a seu próprio discurso antiguerra, inicialmente ligado ao pacifismo dos objetores de consciência. Essa conexão temática veio acompanhada de grande produtividade organizacional. Com apoio do Partido, são criadas, em comuni-dades de população hispânica, asiática, in-dígena e de “brancos pobres”, organizações similares às dos Panteras. Apoiados princi-palmente nestes novos grupos, e com supor-te de aliados que incluíam igrejas, ativistas gays e feministas e grupos antirracistas, os Panteras Negras criaram o Comitê Nacional de Combate ao Fascismo, sem restrições de filiação. A emergência do que se designou, por esse comitê, de “Coalizão Arco-Íris”, funcionou como uma correia de transmis-são circular: cada grupo assumia sua pauta particular no esforço conjunto de oposição à Guerra no Vietnã, no coletivo de lutas libe-ratórias globais e domésticas, e na resistência à ofensiva policial.

O FBI mudou sua estratégia de combate aos Panteras em 1971. Naquele momento, embora não contasse com boa parte de seus quadros políticos, já presos, mortos ou exila-dos, o Partido atingiu seu auge de expansão, filiação e influência. Em um dos pontos al-tos do livro, Bloom e Martin Jr. descrevem como o Federal Bureau of Investigation,

respondendo à guinada do governo Nixon, desarticulou a rede de apoiadores dos Pan-teras Negras e iniciou o seu declínio. Do isolamento que se produziu, seguiu-se a ex-posição de diferenças políticas e temáticas, contradições retóricas e tensões internas e com aliados que rapidamente tornaram o Partido politicamente insignificante.

Diplomaticamente, o compromisso de Nixon com a gradual retirada das tropas do Vietnã, o restabelecimento de relações com China e Argélia e a conclusão da maioria das lutas de libertação nacional na África desmo-bilizou as organizações estudantis antiguerra e inibiu o apoio internacional aos Panteras. Dava-se fim à pauta “anti-imperial” comum. Com a universalização das cotas raciais como política de Estado, bem como a ampla refor-ma universitária, que tornou os chamados “estudos afro-americanos” item curricular obrigatório, normalmente com dotação orça-mentária e suporte departamental próprios, o governo Republicano capturou a atenção e conquistou a confiança da maioria dos alia-dos dos Panteras nas universidades e entre as classes médias. Alianças e acomodações políticas são estabelecidas com estes setores: após terem sido expelidos ou hostilizados pelo Partido, a velha guarda do Movimento dos Direitos Civis e as jovens organizações negras assumem, já dentro do governo, a im-plantação dessas medidas que se tornariam, mais que a retomada das políticas sociais de Lyndon B. Johnson, o início da gestação do multiculturalismo como proposta de ordem.

O faccionalismo também destruiu os Panteras. A liderança do Partido, quando desafiada a iniciar a prometida luta arma-

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364Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 16, n. 30, p. 359-364, jan./jun. 2015 | www.revistatopoi.org

da pela facção — depois conhecida por — Black Liberation Army, optou por tentar preservar aliados politicamente moderados, especialmente entre seus principais patroci-nadores. Huey Newton, que então se deslo-cava para o centro da máquina democrata na Califórnia, e para a gestão de programas de assistência comunitária em nada diferentes daqueles que já vinham sendo realizados nas várias instâncias de governo, desmilitarizou a imagem da organização, abandonou a re-tórica revolucionária, promoveu expurgos e estabeleceu uma rígida estrutura burocrática de mando. Além disso, estreitou laços com pequenas máfias do submundo de Oakland, dinâmica de despolitização que acabou por afastar, sobretudo, aos aliados e rede de con-tatos entre a Nova Esquerda. Feministas e gays externos às comunidades negras já ha-viam retirado seu apoio antes disso, em razão do persistente sexismo que supostamente se definia como traço da atuação dos Panteras.

Desbaratados por sucessivos raids po-liciais, mais duradouros que sua real rele-vância, as cisões civis ou armadas do Par-tido perderam rapidamente, após 1973, a consistência programática que caracterizara sua existência anterior, como pretendida or-ganização de massa. Assim, embevecidos e guiados apenas pelo heroísmo, os membros remanescentes, reduzidos ao terrorismo ou ao gangsterismo, deixaram de existir for-malmente como grupo.

Embora tantas referências icônicas dos Panteras, desde a saudação de punhos ergui-dos à sua particular articulação dos impera-tivos do Black is beautiful — mais orgulhosa

exposição de signos corporais que pesquisa de africanismos — povoem a moda, a cultura pop e o panteão de referências de inúmeros gru-pos políticos, ninguém seria capaz de reivin-dicar o espólio deles. Falando principalmente dos Estados Unidos, os autores argumentam que se deve recusar ver qualquer continuida-de exatamente onde ela é mais mencionada e reivindicada: entre os advogados da chamada thug life, presentes nas expressões dominantes do rap contemporâneo; e entre os ativistas das políticas raciais de Estado. Os argumentos de Bloom e Martin Jr. me convencem de que es-tes já seriam outra história, pois suas agendas e métodos eram não apenas diferentes: por defenderem, do centro do espectro político, sobretudo propostas de reforma e reordena-mento da ordem racial, suas posições seriam adversárias à posição antirracista, às lutas an-tiestatais e às táticas de recrutamento e poli-tização do lúmpen criminal que os Panteras praticaram.

Com cuidadoso uso de documentação e crítica aos testemunhos, Blacks Against Empire ajuda a esclarecer o complexo traba-lho de memória — que também é esqueci-mento e encobrimento — que atualmente sustenta (pode-se dizer, também no Brasil) a gestação de políticas ditas antirracistas. Em-bora não seja evidente, a definição do perfil da ordem democrática como ligado, não à Questão Política (liberdades), mas à resolu-ção da Questão Social (compensação, repa-ração), envolve, de variadas formas, a histó-ria de malogro e sucesso de pessoas como os Panteras.

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Sintaxis del futuro: el proyecto de una Sudamérica real, posible e imaginada

Karina Vasquez*

Castro, Fernando Vale. Pensando um con-tinente. A Revista Americana e a criação de um projeto cultural para a América do Sul. Rio de Janeiro: Editora Mauad, 2012.

En Pensando un continente…, Fernando Vale Castro se propone analizar la Revista Americana, una publicación que surge en las filas de Itamaraty — dirigida por los diplo-máticos Araujo Jorge y Delgado de Carval-ho, y el periodista Joaquín Viana —, en Río de Janeiro durante la década comprendida entre 1909 y 1919. Contra la perspectiva que reduce este emprendimiento a un sim-ple instrumento de divulgación de los linea-mientos de Itamaraty, apenas como un mero reflejo o caja de resonancia de las principales posiciones del Barão de Rio Branco, el au-tor plantea la necesidad de comprender esta revista como una “comunidad argumentati-va”, donde convergen diversas opiniones que sin embargo comparten un objetivo general, ligado al mutuo acercamiento entre las dis-tintas naciones sudamericanas y a la cons-trucción de una estrategia diplomática capaz de garantizar en el continente la solución pa-cífica de conflictos en un contexto mundial

caracterizado por una enorme incertidum-bre e inestabilidad. Si, tal como sugiere el autor, toda revista puede ser entendida por la dialéctica entre producción y recepción, en este caso se propone priorizar “a ótica dos produtores”, entendiendo — en la línea de Skinner y Pocock — la producción de los discursos plasmados en la revista como “ac-tos de habla” que, al mismo tiempo, surgen y modifican el contexto lingüístico en el que adquieren sentido e inteligibilidad.

Comprender estos discursos como “actos de habla” implica ponerlos en relación con sus contextos, y en el primer capítulo Vale Castro presenta las principales preocupacio-nes que atraviesan el contexto de creación de la revista. En este sentido, el autor articu-la un panorama que va desde las aceleradas transformaciones que permearon de manera general el último tercio del siglo XIX con las particularidades del contexto brasilero, sig-nado por la proclamación de la República, las apuestas, esperanzas y desilusiones de la llamada “generación de 1870” en pos de un proyecto modernizador para el Brasil, y el afianzamiento de una dirección clara en la política exterior, a partir del nombramiento del Barão de Rio Branco en el ministerio de

* Doctora en Ciencias Sociales y Humanas por la Universidade de Qulimes (Argentina) y profesora en la Universidad de Quilmes y en la Universidad de Buenos Aires (UBA). Buenos Aires, Argentina. E-mail: [email protected].

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Sintaxis del futuro: el proyecto de una Sudamérica real, posible e imaginada

Karina Vasquez

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Itamaraty. Esta figura condensa un haz de problemas, entre los cuales el autor desta-ca conceptualmente dos que van a resultar particularmente relevantes en las reflexio-nes de la Revista Americana. Por un lado, la cuestión del establecimiento de los límites fronterizos y la unidad territorial, que si ya desde el imperio aparecen asociados al pro-blema de la construcción del Estado, con el establecimiento de la República adquieren un importante rol material y simbólico en la consolidación de un proyecto de nación. Y si el Barão de Rio Branco va a ser la figura que encarne el éxito de la estrategia políti-co-diplomática en la resolución de conflictos fronterizos, convirtiéndose así en el “ícone de um país, ao menos em tese, unido, está-vel e com visibilidade externa” (p. 37), es a partir de ella que la revista puede plantearse — a través de la problemática de las fronte-ras — la elaboración de un proyecto que va-lorice a la diplomacia, como agente cultural capaz de promover el conocimiento mutuo y de llevar a cabo las acciones/negociaciones que contribuyan al establecimiento de un equilibrio geopolítico, garante de la paz en épocas tumultuosas. Por otro lado, la segun-da cuestión que va a resultar particularmen-te relevante en las páginas de la revista es el acercamiento de Itamaraty a EEUU — un proceso que había comenzado durante los últimos años del imperio y se afianza con la República — y la consiguiente adopción del panamericanismo, que va a constituir una de las principales características de la política del Barão —, adopción que parte del reconocimiento del ascenso de EEUU a potencia mundial y que aspira también a

posicionar favorablemente a Brasil frente a Europa y al resto de las naciones sudame-ricanas. Caracterizado el contexto, el autor esboza las diferentes etapas que marcaron a este emprendimiento de larga duración. Así es que, siguiendo las sugerencias de Vale Castro, se pueden distinguir dos etapas, marcadas por sucesivas interrupciones: la primera, desde su creación en 1909 hasta la muerte del Barão de Rio Branco en 1912, momento en que se da la primera interrup-ción larga de la publicación, debida — entre otras cosas — a dificultades provocadas por la gran guerra con el abastecimiento de pa-pel; la segunda comprende los cuatro núme-ros que salieron en 1915, con un perfil más comercial y popular, incorporando incluso un “Suplemento ilustrado” de contenido va-riado, y los últimos años de la revista (1917-1919), donde se retoma el formato anterior, buscando mantener como eje central de los artículos la problemática de la aproximación intelectual, política, económica y cultural de las naciones de América.

Después de esta presentación general de la revista, Vale Castro aborda en el capítulo 2 la problemática del pan-americanismo en la Revista Americana. Tal vez, sea este capí-tulo uno de los momentos centrales del libro, dado que la perspicacia analítica del autor permite aprehender a la revista como un em-prendimiento plural y complejo que, si bien en líneas generales sostenía una posición afin al acercamiento a EEUU propiciado por Ita-maraty, sin embargo acogió en sus páginas el debate, presentando también artículos que expresaron posiciones claramente con-trarias a la orientación de la política externa

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brasilera. El autor analiza, en primer lugar, qué se entendía por esos años por “pan-ame-ricanismo” basado en la Doctrina Monroe, un intento de la política externa norteameri-cana de presentar a América Latina como un área subordinada a sus intereses económicos y políticos. El problema es que, si bien por motivos pragmáticos, el Barão de Rio Bran-co promovió un acercamiento a EEUU, no fue este el caso mayoritario del resto de los países sudamericanos, y este es un dato re-levante a fin de visualizar los presupuestos comunes y los conflictos — explícitos o im-plícitos — que permearon la construcción de esta “comunidad argumentativa” que constituyó la revista. Así, si a principios del siglo XX, el debate sobre el alineamiento con EEUU, tiene al interior de la intelectua-lidad brasilera fuertes defensores — como Joaquim Nabuco — y detractores — como es el caso Oliveira Lima —, pareciera que ya para 1910 se produce cierta marginalización de esas posiciones críticas del panamerica-nismo, a tal punto que, en los primeros años de la revista este debate pareciera dividir, por un lado, a los intelectuales diplomáticos brasileros, ligados directamente a Itamaraty (como el propio Nabuco, Araripe Jr, Helio Lobo), que defienden una posición clara-mente favorable a la Doctrina Monroe y, por extensión, a la política norteamericana en el continente; y del otro, intelectuales latinoa-mericanos (el argentino Norberto Piñero, el chileno Macial Martínez, el venezolano Jacinto López, entre otros) que manifiestan más bien sus críticas a las aspiraciones he-gemónicas e intervenciones continentales de EEUU, planteando en algunos casos alter-

nativas, como un ibero-americanismo o un pan-iberismo (alternativas que apostaban más bien a un estrechamiento de los víncu-los con Europa, más que con EEUU). Ya en el segundo momento de la revista, después de 1915, hay una inflexión provocada ma-yormente por los efectos de la gran guerra, por la cual ya no hay espacio para posiciones contrarias a la aproximación entre América del Sur y Estados Unidos. En este sentido, los artículos analizados en esta etapa mues-tran cierta coincidencia en torno a una visión más favorable del panamericanismo. El au-tor señala que su recorrido por las dos etapas de la revista muestra un cierto redimensio-namiento del concepto de monroísmo, que va desde la acérrima defensa de la Doctrina Monroe a una visión más crítica, que deja de lado la perspectiva intervencionista nor-teamericana, para poner en el énfasis en un discurso basado en un discurso basado en la cooperación, en la integración, en un mode-lo de pan-americanismo más directamente ligado los intereses de América del Sur.

En el tercer capítulo, Vale Castro plantea un análisis de algunos conceptos centrales que fueron objeto de discusiones y articu-laron debates en la revista — tales como la necesidad de promover el respeto a los prin-cipios del derecho público internacional, intervenciones en torno a los conceptos de soberanía y hegemonía, la cuestión de las fronteras como elemento primordial en la construcción de cualquier proyecto nacional, el debate en torno a la navegabilidad de los ríos — con el objetivo de mostrar cómo, más allá de los desacuerdos, la revista perseguía como objetivo central la elaboración de un

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“ideário americano, baseado no intercâmbio e na cooperação entre as nações americanas, capitaneadas pela diplomacia do continente” (p. 155). Desde la perspectiva de la revista, es justamente el cuerpo diplomático — en-tendido como una élite intelectual, relativa-mente independiente del poder político— aquel sujeto capaz de llevar adelante tanto la construcción de una “moral sudamerica-na” para las relaciones internacionales, así como también crear las condiciones de un equilibrio continental que debiera servir de ejemplo a otras regiones del planeta. Lejos de pensar la trayectoria de la revista como una simple reflejo de las opiniones del Barão de Rio Branco, este emprendimiento des-pliega toda una serie de intervenciones que apuntan a reflexionar sobre el papel que la diplomacia brasilera debería jugar — como sostiene Vale Castro — en la elaboración no tanto de un diagnóstico preciso, sino más bien de un pronóstico, “um projeto de fu-turo que deveria ser construído com uma América muito mais do que real, uma Amé-rica possível, uma América imaginada” (p. 156). Que esa América posible fuera real, de-pendía de la acción de los intelectuales — en especial, diplomáticos — en pos del diálogo, la cooperación y el conocimiento mutuo en-tre naciones diversas, operaciones que la re-vista pretendió llevar a cabo no sólo a partir de la presentación de distintos argumentos y debates en la sección artículos, sino tam-bién a partir de otras secciones, aludidas en el libro, como las “Notas” y “Bibliografía”, donde es posible visualizar una primera ten-tativa de crear un tejido cultural, que permi-tiera pensar el continente.

Sin duda, el esfuerzo analítico de Vale Castro ha permitido construir una imagen más rica, compleja y plural de la Revista Americana, que nos invita a reflexionar tanto sobre las nuevas representaciones de Amé-rica que comienzan a surgir a principios de siglo, como también sobre los diversos roles que los intelectuales imaginan para sí frente a esas representaciones continentales, roles que motivan discursos, acciones, contactos, acercamientos mutuos y la aparición de re-des que, en muchas ocasiones, sostuvieron o acompañaron emprendimientos comunes. Desde esta perspectiva, junto a los planteos de Skinner y Pocock, quizás hubiera sido útil incorporar también algunos otros aportes de la historia intelectual, en particular aquellos que proponen abordar las revistas como una “estructura de sociabilidad”, en el sentido que esta noción ha sido definida en los tra-bajos de Jean-François Sirinelli y Michel Tre-bisch.1 En este sentido, si bien Vale Castro acota su análisis al espacio escrito y público de la revista (es decir, sabemos muy poco de las condiciones internas en torno a cómo se armaba el sumario, cómo se seleccionaban los artículos, a partir de qué vínculos o redes lle-gaban las diversas intervenciones de autores

1 Cfr. Sirinelli, Jean-François. Le hasard ou la nécessité? Une histoire en chantier: l’historie des intellectuels. Vigtième siècle. Revue d’histoire, n. 9, janvier-mars, p. 97-108, 1986; Trebitsch, Michel. Avant-propos : la chapelle, le clan et le microcosme; Racine, Nicoli y Trebitsch, Michel. Sociabilites Intellectueles. Lieux, Millieux, Reséaux. Cahiers de L’IHTP, n. 20, CNRS, París, p. 11-21; Pluet-Despatin; Jacqueline. Une contribution a l’histoire des intellectuals: les revues, en Les Cahiers de L’ IHTP, n. 20, marzo de 1999, número especial “Sociabilites intellectuels: lieux, milieux, reseaux”, p. 125-136.

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latinoamericanos, cómo se contactaba a los autores, etc.), también restringe mayormente su análisis a un aspecto de la revista — aquel asociado directamente a la actividad diplo-mática —, dejando en un segundo plano el análisis de aquellas intervenciones ligadas a la historia, a la literatura, y a la sociabilidad intelectual. Según refiere el autor, esta publi-cación contaba con una sección de “Notas”, otra de “Bibliografía” y una dedicada a las “Revistas”: hubiera sido muy útil analizar los libros y las revistas reseñadas, justamen-te para discernir qué tipo de sociabilidad, ampliada a la escena continental, proponía la Revista Americana. Al final de su texto, el autor nos presenta un índice de los artículos: el problema de este índice es que, si bien re-sulta útil el panorama general que ofrece al

lector en pocas páginas, es un índice trunco, que eclipsa la “sintaxis” de la revista, dado que cada número no se reduce al listado de artículos. Tal como aparece en las fotos que acompañan al libro, en las ediciones de la re-vista hay intervenciones poéticas, comenta-rios, reseñas, notas de redacción, etc., en de-finitiva, textos y discursos — que junto con el formato que asumió cada número- definen de forma activa las estrategias por las cuales este emprendimiento se dirigió a sus diver-sos públicos. El análisis de Vale Castro com-plejiza, en muchos sentidos, la relación de la revista con Itamaraty; creo que hubiera sido deseable también visualizar de forma más precisa cómo la revista se construye como un espacio de sociabilidad para los intelectuales y escritores del continente.

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Para além do paradigma da representação: o passado-feito-presente por meio de obras literárias

Thaís Leão Vieira*

Gumbrecht, Hans Ulrich. Atmosfera, am-biência, stimmung: sobre o potencial ocul-to da literatura. Tradução Ana Isabel Soa-res. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC Rio, 2014.

Desconstrutivismo e estudos culturais são duas perspectivas teóricas e metodológi-cas bastante conhecidas para quem trabalha com linguagens. De um lado, a presença de um campo que defende a inexistência de qualquer contato entre a linguagem e a reali-dade e, por outro lado, os estudos culturais, tributários do marxismo, que por sua vez, ao creditarem maior ênfase na dimensão empírica das obras, se despreocupariam com a questão epistemológica. A saída para es-sas duplas abordagens é proposta por Hans Ulrich Gumbrecht, para quem a leitura das obras literárias deve retomar a vivacidade da literatura. Para que essas leituras se deem para além das representações, o autor propõe encontrar a atmosfera e o ambiente e poste-riormente devolvê-las em um novo presente.

“É correto que o ensaísta busque a ver-dade”, escreveu [Lukács], “mas deve fazê-lo à maneira de Saul. Saul partiu em busca dos burros de seu pai e descobriu um reino; as-

sim será com o ensaísta — aquele que é de fato capaz de procurar a verdade —; encon-trar, no final de sua busca, aquilo que não procurava: a própria vida” (p. 29). Dessa for-ma, Gumbrecht apresenta sua perspectiva que não intenta o alcance da verdade, mas sugere que, ao se concentrar nas atmosferas e ambientes, os estudos literários se dirigem às obras “como parte da vida no presente”. A questão das atmosferas e ambientes, entre-tanto, deve aparecer mais do que os níveis de representação das obras, no sentido de Gumbrecht. A leitura do stimmung, que não distingue a experiência estética da experiên-cia histórica, permitirá reter a vitalidade da literatura. Ao fazê-lo, o foco incide não ape-nas na experiência histórica vivenciada pela obra literária no momento de sua produção, ou seja, a obra não torna presente apenas um momento do passado, porém, na perspectiva de Gumbrecht, a análise da obra revela mui-to da nossa imediatez histórica. Em outras palavras, por que em determinados momen-tos os ecos de determinadas obras são maio-res do que em outros períodos?

A relação entre o olhar voltado ao stim-mung e o efeito de presença como um objeto de pesquisa é nítida em Atmosfera, ambiên-cia, stimmung, lançado em 2014 no Brasil.

* Doutora em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e professora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Rondonópolis, MT, Brasil. E-mail: [email protected].

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Grumbrecht recupera os sentidos de stim-mung em quatro momentos fundamentais: a era moderna, o romantismo, o século XIX na pintura histórica e na arquitetura histo-ricizante e pós-segunda Guerra Mundial. Mais importante para Gumbrecht é a virada na história do conceito, quando stimmung deixa de exercer o papel de harmonia e me-diação, pois é justamente aí que se transfor-ma em uma categoria universal — essa di-mensão permite ao autor buscar a atmosfera e o ambiente “característico de cada situa-ção, obra ou texto”.

A questão do observador e da “crise da representação”, identificada por Michel de Foucault em As palavras e as coisas, interessa especialmente em dois momentos do livro, ambos no contexto do século XIX. O ato de observar o mundo e se colocar nesse pro-cesso de observação coloca o artista Caspar David Friedrich e o escritor Machado de Assis em posição de suma importância para Gumbrecht. Os observadores que se apresentam nas obras de Friedrich, em sua maioria ocupando lugar central no espaço pictórico, são partícipes de certa atmosfera, colocada pelo autor alemão radicado nos Es-tados Unidos por meio de dois problemas. O primeiro é a relação entre a experiência e a percepção. Contrariamente à tradição her-dada dos séculos XVII e XVIII do pensa-mento racionalista, o observador de segunda ordem deu forma à epistemologia do século XIX ao redescobrir “como a sua relação com as coisas-do-mundo é determinada não só pelas funções conceptualizantes da consci-ência, mas implica também os sentidos” (p. 86). Outra consequência da função do ob-

servador é a referência ao ângulo específico da observação — para cada objeto potencial de referência, uma infinidade de descrições, o que resulta na perda da estabilidade dos objetos de referência. Pelas leituras das obras pictóricas, algo se produz de forma disse-minada no final do século XVIII, quando grandes pensadores citados por Gumbrecht, como Goethe e Kant, buscavam a harmonia entre a existência e as coisas do mundo. As imagens que os quadros apresentam reme-tem ao sublime incompatível com a harmo-nia, dando ao observador uma sensação de desprazer.

A ideia de temporalidade como elemento constitutivo das atmosferas e ambientes sur-ge no texto sobre Memorial de Aires, de Ma-chado de Assis, que Gumbrecht associa com a dimensão do tempo posta na obra Ser e tem-po, de Martin Heidegger. Para Gumbrecht, Memorial de Aires não é um livro apenas so-bre tristeza, mas a obra nos diz de que modo a tristeza pode adquirir substância no tempo “entre um futuro existencial sem ‘conteúdo’, um presente vazio e um passado que não desaparece, o tempo tem necessariamente de se mover com lentidão — como que se aproximando do ponto de imobilidade ab-soluta” (p. 120). Se, no presente, o autor (o conselheiro Aires) encontra um vazio, há algo dessa escrita que Gumbrecht nos reve-la: que ao dizer sobre nada, ela dá forma a determinada existência, talvez a do mundo colonial e das ilusões perdidas. O diário do autor ficcional Aires é, nesse sentido, um li-vro sobre nada, que Flaubert objetava como projeto estético. Aires escreve quando não há nada que mereça registro em sua vida. Assim

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como seus amigos, os Aguiar, são sozinhos, Aires também o é, e ambos possuíam no passado uma felicidade perdida para sempre, combinada com a consciência da perda do presente e do futuro. Outro aspecto trazido por Gumbrecht da obra de Machado é que o autor do memorial, o conselheiro Aires, é um observador de segunda ordem, aqui-lo que Foucault considerou como a crise da representação, uma vez que o sujeito do co-nhecimento se torna ele mesmo objeto. E ao serem colocadas dessa forma, “as conquistas do observador de segunda ordem incluem a descoberta de que cada representação do mundo depende da perspectiva” (p. 118), ou seja, da tomada de consciência do obser-vador de que o ponto de onde ele observa define a representação de determinado ob-jeto, no caso específico, o reconhecimento de Aires sobre “a saudade de si mesmos” dos Aguiar, que implica um vazio no presente e uma falta de projeção para o futuro.

Morte em Veneza, de Thomas Mann, marca o encontro da morte em vida do perso-nagem Aschenbach. O clima atmosférico e as condições meteorológicas na narrativa, bem como as mudanças de tempo verbal, apresen-tam as transições, a impressão do “tempo pa-rado” e o peso da vida à medida que Tadzio não corresponde ao amor de Aschenbach até a partida desse amor idealizado. O alerta de Gumbrecht no começo do livro, na referência à Lukács, faz com que o autor se preocupe mais em encontrar a vivacidade da obra do que suas possíveis verdades. Nesse ponto, “a morte dentro da vida de Aschenbach revela a intensidade da vida, mais do que sua ver-dade” (p. 105). A presença dessa atmosfera e

desse ambiente teria preparado as possibili-dades da filosofia existencial.

A atmosfera dos anos 1960 é discutida no capítulo dedicado à Janis Joplin, espe-cialmente à canção Me and Bobby McGee. Com grande eloquência, talvez esse seja o texto de todos os demais na obra em que o sentido do presente esteja mais forte em Gumbrecht: “só hoje, quando nos torna-mos uma geração de velhos tantas vezes infantis [...] conseguimos, de fato, perceber quais eram as promessas daqueles meses [...] na voz de Janis Joplin, recordamos uma liberdade que não sentimos no presente do passado” (p. 127). Ao discutir a narrativa da canção, Gumbrecht encontra no casal Joplin e Bobby a ambiência de sua geração, a metáfora para sua juventude. Ao som do verso “liberdade é só outra palavra para ‘não ter nada a perder’”, Gumbrecht exemplifica que, ao conhecer Bobby, Joplin perde para sempre a liberdade de quem nada tem a perder, pois ela trocaria todos os dias do seu futuro por um único de seu passado, numa perspectiva de que a felicidade é oposta à liberdade. Porém, não é só o conhecimento dos versos da canção que faz dela perten-cente à substância e torna possível recupe-rarmos o stimmung dessa juventude de ou-trora, mas nas variações e modulações da voz de Joplin, no registro e nas gravações de canções que mantêm vivo o stimmung daquela geração que pode ser condensada pela voz delicada, sedutora, desesperada de Joplin de Me and Bobby McGee, que não precisa unicamente dos sentidos das pala-vras para recuperar as atmosferas e estados de espírito que a voz de Joplin evoca.

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Na última parte do livro, com referência à filosofia, especialmente à situação após a Pri-meira Guerra Mundial, Gumbrecht se volta para o que foi considerado como os “loucos anos 20” e o clima posterior à Grande Guer-ra. Nesse contexto, o autor indica que esses foram os anos que levaram à morte do sujei-to moderno e ao fim do papel do herói, que deveria ter dado leveza ao peso da existência humana, porém, não o fez. O clima desse período foi retratado numa metáfora que de-duz, dessa atmosfera de incertezas e profunda desorientação, que “o chão fugira sob nossos pés”. Gumbrecht reconhece na filosofia de Martin Heidegger uma experiência que dá sentido àquela situação histórica, devolvendo à “existência individual humana o ‘chão que havia desaparecido sob os pés’” (p. 151). Iden-tificar a dinâmica que constitui a existência poderia, para Gumbrecht, naquele contexto, apontar o que impedia tais dinâmicas; em outras palavras, poderia indicar o que levaria à incompletude das vidas individuais.

Claramente, Grumbrecht observa uma tensão entre vitalismo e razão nos anos 1920 e o exílio de felicidade como um emblema e sintoma desse tempo. Assim como na fi-losofia existencial de Heidegger, na obra de Unamuno sobre o sentimento trágico da vida, as possibilidades positivas eram vis-tas como ilhas dentro do sentido trágico da vida. É nesse ponto que Gumbrecht dá aos leitores a expressão daquilo que ele considera como uma estetização da vida, como parte dessa visão trágica, a partir da tensão entre o que ele chama de “sobriedade” e “êxtase”. Um dos gestos de sobriedade era a busca por experienciar as coisas do mundo na sua coi-

sidade pré-conceitual, que está presente em Heidgger, em artistas da Bauhaus, Paul Klee, em registros do surrealismo e em designers do período. Essa visão busca a sensação pela di-mensão corpórea e espacial da nossa existên-cia, voltando-se para posições mais modestas e menos monumentais. Isso justificaria a su-posta excitação pela arte primitiva. De outro modo, a década de 1920 também comportou, nas possibilidades de se alcançar a felicidade pela intensidade, perigo e excitação e a alegria de viver poderia ser encontrada nos “topos das montanhas ou dos arranha-céus” (p. 155).

A sensibilidade-chave de Gumbrecht de-monstra, aos nossos olhos, uma abordagem in-terpretativa do passado em que, nesse comple-xo contexto de exílio da felicidade, experiências históricas como o socialismo, que adiava para o futuro um tempo melhor, e o cristianismo, que deixara para a vida no além a esperança da felicidade, não tiveram o êxito do fascismo, que, com a promessa de satisfação imediata, pode ter se constituído em uma atmosfera e ambiência da busca pela felicidade, no aqui e agora, como a atração fatal dos anos 1920.

Atmosfera, ambiência, stimmung sobre o potencial oculto da literatura é um livro edi-ficante, no sentido de que constrói, por meio do sensível, várias presenças. Erige em nós temporalidades que se transformam conti-nuamente, lendo em busca de stimmung, re-velando seu potencial dinâmico. O conceito diz, para além da leitura das obras feitas por Gumbrecht, da própria leitura de Atmosfe-ra... pois esta afeta a nós leitores, dadas a dis-posição, a sensibilidade e a acuracidade com as quais o autor nos revela múltiplas ambiên-cias e vivifica a literatura em/para nós.

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Resposta a Paul Lovejoy

João José Reis*

Em artigo publicado no número 28 da Topoi, intitulado “Jihad na África Ocidental durante a ‘Era das Revoluções’”, Paul Lovejoy se propõe a criticar Eric Hobsbawm e Eugene Genovese por não terem incluído determinados eventos africanos em suas reflexões a respei-to da Era das Revoluções e das revoltas escravas nas Américas, e na Bahia em particular. No caso de Hobsbawm, alega, inclusive, que já haveria bibliografia suficiente sobre o assunto na época em que publicou (em 1962) sua obra The Age of Revolution, 1789-1848. No seu prefá-cio, Hobsbawm, precavido, chamava a atenção que seu livro não era “narrativa detalhada”, mas uma síntese interpretativa que tinha como alvo uma espécie de “leitor ideal” que seria o “cidadão inteligente e educado”, não o especialista. Ele já previa “os inevitáveis escorços de que os especialistas lamentarão.”1

O lamento publicado na Topoi por Paul Lovejoy levou mais de 50 anos para ser feito. O interessante é que a África que este historiador tenta resgatar na crítica a Hobsbawm não se encontra totalmente ausente de The Age of Revolution, o que Lovejoy negligencia informar ao leitor de seu artigo. O tema é o mesmo, embora dentro daquele espírito de síntese anunciado e executado por Hosbsbawm. Senão, leiam:

Os comerciantes muçulmanos, que monopolizavam virtualmente o comércio do interior da África com o mundo exterior e o multiplicou, ajudaram a trazer o Islã à atenção de novos povos. O tráfico de escravos, que destruiu a vida comunitária, fê-lo atraente, pois o Islã é um poderoso meio de reintegração de estruturas sociais. Ao mesmo tempo a religião maometana era atraente para sociedades semifeudais e militaristas do Sudão, e seu senso de independência, militância e superioridade a transformou num útil contrapeso à escravidão. Negros muçulmanos se fizeram maus escravos: os haussás (e outros sudaneses) que foram importados para a Bahia (Brasil) se revoltaram nove vezes entre 1807 e o grande levante de 1835, até que, com efeito, foram na sua maioria mortos ou deportados de volta à África. Os escravistas aprenderam a evitar a importação dessas áreas, que tinham sido abertas apenas recentemente para o tráfico.2

* Doutor em história pela University of Minnesota, EUA, professor titular da Universidade Federal da Bahia e bolsista de produtividade científica do CNPq, nível 1A. Salvador, BA, Brasil. E-mail: [email protected] HOBSBAWM, Eric. The Age of Revolution, 1789-1848. Nova York: Abacus, 1977 [orig. 1962]. p. 11, 12.2 Idem, p. 273-274.

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Resposta a Paul Lovejoy

João José Reis

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O historiador inglês enfatiza o protagonismo haussá, o que não é correto para todo o ciclo de revoltas baianas, haja vista a atividade dos nagôs islamizados — e não só destes — nos mais de 30 levantes e conspirações do período; nem foram os rebeldes “na sua maioria mortos ou deportados [da Bahia] de volta à África”; nem os escravistas baianos deixaram de importar escravos “dessas áreas” após 1835, pois compravam o que o mercado lhes oferecia. Mas não é o caso de corrigir Hobsbawm a essa altura. A questão é corrigir Lovejoy. Pois ele escreve que tanto Hobsbawm como Genovese “tiveram papel fundamental na inclusão das revoltas escravas como parte da ‘era das revoluções’”, mas que sua “intenção [de Lovejoy] é enfatizar o papel do jihad da África Ocidental nesse contexto” (p. 26). O leitor terá perce-bido que há em Hobsbawm pelo menos uma dose de Lovejoy, em particular sua ênfase na militância e inadaptabilidade de escravos muçulmanos à escravidão na Bahia. Hobsbawm retirou sua informação sobre as revoltas baianas da obra de Artur Ramos, As culturas negras no Novo Mundo. E aqui há mais coisa ao gosto de Lovejoy porque Ramos, seguindo Nina Rodrigues, escreveu: “Na Bahia, essas insurreições foram nada mais, nada menos, do que a continuação das longas e repetidas lutas religiosas e de conquista levadas a efeito pelos negros islamizados no Sudão”.3 Isso indica que a tese geral de Lovejoy não é bem uma novi-dade e que sua exegese de Hobsbawm leva o leitor a pensar que a África dos haussás estava ausente do autor que ele critica. Não só estava presente como estava, de algum jeito, do lado do crítico!

Quanto a Eugene Genovese, estamos em face de um autor que escreveu um livro espe-cificamente sobre revoltas escravas nas Américas, publicado 35 anos atrás.4 Em resumo, a tese de Genovese é que essas revoltas se dividem em duas fases, uma antes, outra depois da Revolução do Haiti (1791-1804). Antes, elas buscavam a restauração de modos de vida afri-canos, depois seriam abolicionistas, na trilha do Haiti, que por sua vez teria se inspirado nos ideais libertários da Revolução Francesa. Já indiquei há muito tempo a insuficiência dessa tese — e antes de mim Stuart Schwartz — no que diz respeito às revoltas escravas baia-nas.5 Lovejoy chega a escrever numa ligeira nota de seu artigo da Topoi (p. 25, nota 5) que Genovese relacionou-as diretamente aos mesmos episódios de que é acusado de desprezar na história africana. Cito Genovese, que não é tão ligeiro: “Por todas as Américas, escravos muçulmanos ganharam a reputação por serem especialmente rebeldes. A ideologia político-

3 RAMOS, Artur. As culturas negras no Novo Mundo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979 [orig. 1937]; e RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 4 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976, p. 38.4 GENOVESE, Eugene D. From Rebellion to Revolution: Afro-American Slave Revolts in the Making of the New World. Nova York: Vintage, 1979. 5 REIS, João José. Um balanço dos estudos sobre as revoltas escravas da Bahia. In: REIS, João José (Ed.). Es-cravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 128-129; e SCHWARTZ, Stuart. Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society: Bahia, 1550-1835. Cambridge: Cambridge University Press, 1985. p. 473. Minha afinidade com as ideias de Genovese está noutra parte: seu conceito de paternalismo enquanto ideologia de dominação de classe. Ver, entre várias obras em que aquele autor trata do assunto, Roll Jordan Roll: The World the Slaves Made. Nova York: Pantheon, 1974.

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-religiosa que trouxeram da África Ocidental mal prepararam a eles para a escravização sob os infiéis, a cujo poder eles eram supostos de resistir.” Mais adiante, após mencionar o jihad fulani iniciado em 1804, Genovese afirma que haussás e iorubás6, embora hostis na África, teriam se unido na Bahia por questões que “provavelmente incluíam um condicionamento psicológico de seu passado e presente urbano em combinação com o atrativo do Islã como uma força organizacional”.7 Então não é verdade que Genovese “ignora qualquer perspectiva de fundo religioso influenciada pelo Islã” (p. 63), segundo escreve Lovejoy, a essa altura já esquecido da nota 5 no início do artigo da Topoi.

Esquecimento é o que não falta no texto de Lovejoy, que solicita especificidade mas olvi-da invocar ou despreza os momentos específicos em que os dois autores criticados invocam processos e eventos que ele diz estarem ausentes de suas obras. Pode ser pouco, pode ser insuficiente, até equivocado, no entanto estão lá.

Paul Lovejoy gasta muitas palavras de seu artigo a desacreditar minha interpretação — e secundariamente a de distintos estudiosos — da Revolta dos Malês em 1835, além de outros temas ancilares de que tratei. Mas nesse esforço, ele também distorce ou omite o que escrevi porque me leu mal, ou sequer leu, embora referencie em suas notas de rodapé títulos que ale-ga ter consultado, e muitos, inclusive escritos em português, língua que, tem-se a impressão, ainda não aprendeu a ler direito.

Vamos seguir a ordem em que os assuntos aparecem no texto às vezes tortuoso de Lovejoy. Na página 27 ele reúne um grupo de historiadores que escreveram, uns mais do que outros, sobre as revoltas baianas (João Reis, Stuart Schwartz, Michael Gomez e Sylviane Douf), concluindo: “Porém essas contribuições não inserem os eventos nas Américas no contexto dos jihad e, particularmente, nas transformações do Sudão Central.” Não vou comentar os demais autores maltratados: falo por mim.8 Escrevi sobre essas “transformações” — e se trata do jihad em território haussá e seus desdobramentos em território iorubá e na Bahia — em diversas edições de meu livro Rebelião escrava no Brasil, mais longamente na edição revis-ta e ampliada de 2003, que Lovejoy afirma ter consultado. Numa conta talvez conservadora, dedico pelo menos 10% do meu livro ao background africano dos malês, a maior parte (mas não só) aos eventos que produziram a maciça presença de muçulmanos na Bahia. Somente no início do sexto capítulo, 17 páginas são destinadas aos acontecimentos no Sudão central e no território iorubá, especificamente; ao longo do livro o vocábulo jihad aparece muitas vezes em 34 páginas; referência às ações do líder do jihad de 1804, Usuman dan Fodio, em

6 Uso o termo iorubá ao longo deste artigo, mas esclareço que na África do tempo dos malês não existia uma identidade “iorubá” como tal para o conjunto da população hoje assim considerada.7 GENOVESE, Eugene D., op. cit., 1979, p. 29-30.8 Mas, a propósito, ver SCHWARTZ, op. cit., p. 474; DIOUF, Sylviane. Servants of Allah: African Muslims Enslaved in the Americas. Nova York e Londres: New York University Press, 1998. p. 158-163; GOMEZ, Michael A. Black Crescent: The Experience and Legacy of African Muslims in the Americas. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. p. 110-113.

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24 páginas, que inclui muitas referências a seu manual de como fazer a guerra santa segundo os mais rigorosos preceitos islâmicos; o líder dos muçulmanos iorubás, Solagberu é men-cionado em oito páginas; o Califado de Sokoto emerge em 18 páginas; a cidade iorubá de Ilorin, onde vou buscar a origem dos malês na África (dica primeiramente sugerida por Nina Rodrigues),9 é aludida em 30 páginas do livro; o historiador iorubá Samuel Johnson (que Lovejoy apresenta como novidade!, p. 57), é mencionado em 13 páginas; o viajante britânico Hugh Clapperton, em 15 páginas, e seu assistente Richard Lander, em 13 — cujos relatos são também recomendados por Lovejoy para que se conheça a África dos malês e mussulmis. Contei aqui apenas páginas que contêm referências diretas feitas a esses assuntos e autores, e me reporto a elas apenas a título de exemplo. Entre fontes primárias e secundárias africa-nistas sobre temas relacionados com a África muçulmana e o país iorubá, consultei, e cito sempre de modo específico, em torno de 100 títulos, devidamente listados na bibliografia do livro. Chega a ser divertido ler em Lovejoy que diversos autores, com destaque para ele próprio, claro, mas não eu, “analisaram a origem africana dos participantes do levante dos malês” (p. 56-57).10

Quem me ler encontrará, a cada passo da narrativa, nos momentos que considero per-tinentes, a presença da África como possibilidade interpretativa para os eventos baianos. E na última edição do livro, de 2003, me empenho ainda mais nesse sentido do que nas an-teriores, se comparada, por exemplo, à edição em inglês, sobre a qual, aliás, Lovejoy, apesar de “reservas sobre minhas conclusões”, escreveu: “Ao contrário de virtualmente todo um gênero de estudos da escravidão, Reis leva a história africana a sério.”11 Esqueçam, porém, o que ele escreveu. A questão agora não é, como Lovejoy pretende, que eu desconheça a África dos malês ou deixe de interpretá-la como fator ponderável em minha narrativa da revolta de 1835; o problema é seu desejo de se impor como a última palavra sobre o tema, não importa se para isso precise desobedecer procedimento elementar da crítica intelectual, que é reco-nhecer e expor honestamente os dados e interpretações do oponente.12

Sobre o tema geral proposto por Lovejoy em seu artigo, transcrevo trecho de um capí-tulo que recentemente publiquei, em parceria com Laura de Mello e Souza, no qual resumo o que, com palavras diferentes, já venho dizendo há muito tempo:

9 RODRIGUES, Nina, op. cit., p. 40.10 Um autor que Lovejoy reconhece estar no caminho justo é Manuel Barcia. Sobre ele, escreve: “Como Barcia observa, o jihad teve um impacto dramático sobre Cuba e Bahia, embora o autor não documente esse impacto” (p. 64). Se não documenta, como aprovar a conclusão de que o impacto foi de fato “dramático”? Não percebo — e não cabe aqui entrar no mérito do trabalho de Barcia.11 Paul Lovejoy em resenha de João José Reis, Slave Rebellion in Brazil: The Muslim Uprising of 1835 in Bahia. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1993. In: The International Journal of African Historical Studies, v. 30, n. 1, p. 183, 1997. No original: “Unlike virtually the whole genre of slave studies, Reis takes African history seriously.”12 Uma crítica de bom leitor — que me levou a burilar meus argumentos, não a mudá-los fundamentalmente — de duas edições anteriores de meu livro é a de COSTA e SILVA, Alberto da. Sobre a rebelião de 1835 na Bahia. Revista Brasileira, ano viii, n. 31, p. 9-33, 2002.

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Se a Era da Revolução foi principalmente um fenômeno atlântico originado na Europa, na América do Norte e no Caribe, as ideologias de protesto das rebeliões escravas baianas vieram, sobretudo, da África Ocidental. A maioria dos escravos rebeldes na região [Bahia] era de falantes de haussá e iorubá que tinham experimentado conflitos devastadores em suas terras, particularmente as guerras civis que levaram à queda do poderoso reino de Oyo e o jihad liderado pelos fulanis, iniciado em 1804 no território haussá, que levou à criação do califado de Sokoto em 1809. Indisputavelmente uma Era da Revolução nesta parte da África Ocidental, essas guerras levaram ao colapso de reinos centenários e à formação de novos estados, um deles uma poderosa federação muçulmana. Elas tiveram repercussões no Brasil, particularmente na Bahia, [...] porque os conflitos africanos, que se prolongaram por décadas, ocasionaram a morte, a migração, o deslocamento e a escravização de milhares de pessoas capturadas nas batalhas ou sequestradas de suas cidades, muitas das quais eram vendidas a negociantes de escravos nos portos do golfo de Benim na costa atlântica.13

Eu já percebera, sem entrar em detalhes, o aborrecimento de Lovejoy neste artigo (p. 35, 63). Mesmo sem nunca ter lido o trecho acima, seria ainda impróprio ele incluir meu nome na seguinte frase: “O envolvimento [dos iorubás] em eventos [rebeldes] nas Américas foi mais do que uma extensão da resistência escrava associada à ‘era das revoluções’, como descrito por estudiosos influenciados pela tradição inaugurada por Hobsbawm e Genove-se, a exemplo dos historiadores Jane Landers, Matt Childs e João Reis” (p. 40). E conclui retoricamente: “Como podemos compreender como os africanos pensavam sobre seu envol-vimento nesses eventos se não levarmos em consideração suas experiências prévias?” (p. 40) Não podemos, concordo, embora sem me deixar possuir por uma monomania afrocêntrica, mas compreendendo que também se deva considerar, e fundamentalmente, as experiências do tráfico, da escravidão, da formação pelos africanos de novas redes de sociabilidade, estra-tégias políticas e ressignificações culturais deste lado do Atlântico. É o que busco fazer em Rebelião escrava no Brasil. Nesse livro, em nenhum momento me reporto a Hobsbawm ou Genovese na acepção atribuída por Lovejoy, mas digo, quanto à revolta de 1835: “Ao contrá-rio do que ocorrera no Haiti quarenta anos antes, as ideologias revolucionárias europeias que proclamavam o direito universal à liberdade e à cidadania passavam ao largo da mentalidade desses homens [os malês] formados na África e na Bahia.”14 E me remeto ao Islã, mas não só a este, para entender aquela mentalidade.

13 MELLO e SOUZA, Laura de; REIS, João José. Popular Movements in Colonial Brazil. In: CANNY, Nicholas; MORGAN, Philip (Orgs.). The Oxford Handbook of the Atlantic World, 1450-1850. Oxford e Nova York: Oxford University Press, 2011. p. 563-564. Naturalmente, a parte sobre as revoltas baianas foi escrita por mim. 14 REIS, João José. Rebelião escrava. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 268. O leitor perdoará a insistência em referir-me a este livro ao longo deste texto, mas espero que entenda por que o faço.

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Seguindo uma tradição que remonta a Nina Rodrigues e passa por Pierre Verger, já de-monstrei que o grande influxo de escravos muçulmanos para a Bahia aconteceu na virada do século XIX em decorrência do jihad de 1804 e seus desdobramentos entre vizinhos do país haussá, que foi seu epicentro. Antes do jihad a presença de africanos traficados para a Bahia dessa região através do Atlântico era insignificante, ou seja, os estados haussás contra os quais Usuman dan Fodio e seus sucessores lutaram, estes sim forneceram pouca gente para o tráfico transatlântico, o que está implícito na análise de Lovejoy (p. 52). Os conflitos deslanchados e o regime fundado por Dan Fodio foram responsáveis pelo incremento do tráfico do Sudão Central para o litoral. Lovejoy acha que o “Islã era um fator que desencora-java a venda de escravos para as Américas”, e pouco adiante: “Fatores religiosos e ideológicos impediam que os muçulmanos vendessem escravos para os europeus ou para comerciantes associados aos mercados transatlânticos” (p. 49). Ele trabalha com a hipótese de que a de-portação de tão grande número de muçulmanos para a Bahia seria uma exceção, mas não explica o porquê da excepcionalidade (p. 49).

Segundo Lovejoy o jihad e a pressão da Inglaterra, combinados, seriam responsáveis pela retração do tráfico na Costa da Mina (golfo do Benim) em favor do tráfico na África Centro-Ocidental. Ele joga com números, então me permitam entrar nesse jogo. O tráfico da Costa da Mina (golfo do Benim), somado ao da África Centro-Ocidental, vitimou, na segunda metade do século XVIII, cerca de 2 milhões e 27 mil africanos, dos quais ape-nas 27% foram embarcados em entrepostos da primeira região para as Américas. Já entre 1801 e 1850, em torno de 2 milhões 331 mil cativos foram embarcados nas duas regiões, e da Costa da Mina não mais que 18% destes. No entanto, o cálculo a ser feito é se houve uma redução considerável de embarques na Costa da Mina entre um e outro período, e o resultado é que houve uma redução que não se pode definir como alentada, de cerca de 550 mil para cerca de 411 mil. Ou seja, dos estimados 960.520 cativos transportados da Costa da Mina através do Atlântico entre 1750 e 1850, 43% o foram entre 1801 e 1850, uma desvantagem de 7% em relação aos 50 anos anteriores. Isso sugere que o tráfico transatlântico da Costa da Mina, onde embarcavam cativos da região afetada pelo jihad, não declinou substantivamente, mesmo tendo diminuído as regiões consumidoras desses cativos nas Américas, agora praticamente reduzidas ao Brasil e o Caribe espanhol (com destaque para Cuba) ao longo da primeira metade do Oitocentos.15 Retirados do banco de dados online Slave Voyages, esses dados, no entanto, subestimam o intenso tráfico bra-sileiro — sobretudo para a Bahia, o maior consumidor de escravos da Costa da Mina — porque, para o período que vai de 1817-1818 (proibição do tráfico luso-brasileiro acima da linha do Equador) a 1831 (proibição total do tráfico brasileiro), os negreiros declaravam

15 Ver os números em ELTIS, David e RICHARDSON, David. A New Assessment of the Transatlantic Slave Trade. In: ELTIS, David; RICHARDSON, David (Orgs.). Extending the Frontiers: Essays on the New Transatlantic Slave Trade Database. New Haven e Londres: Yale University Press, 2008. p. 46-47.

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à alfandega como destino portos na costa de Angola, mas de fato seguiam para a Costa da Mina. Parte dos dados do Slave Voyages se baseia, então, em declarações fraudulentas registradas nos passaportes emitidos na Bahia. Alexandre Ribeiro encontrou que 74% dos navios apresados pelos ingleses nas águas do golfo do Benim entre 1822 e 1830 tiveram seus passaportes emitidos para os entrepostos de Molembo e Cabinda, no litoral ango-lano.16 Eu calculo, por baixo, que devamos por isso acrescentar aos números do tráfico oriundos da Costa da Mina pelo menos 100 mil cativos que foram parar na conta do tráfico angolano, o que reduz bastante, para apenas 2%, a diferença entre os números do século XVIII e os do século XIX apontados acima para a exportação de gente da Costa da Mina. Lovejoy prega que o comércio de escravos na África Ocidental “perdeu importância devido às mudanças internas associadas à consolidação de governos de caráter islâmico que condenavam a venda de muçulmanos” (p. 44), o que não é verdade, pelo menos para o comércio brasileiro. O comércio diminuiu alguma coisa, mas não “perdeu a importância”. No que Lovejoy pode estar correto é que esses números pudessem ser bem maiores, diante do aumento da produção de escravos pelos regimes do jihad e que não foram destinados ao tráfico transatlântico, mas usados internamente (Lovejoy, p. 47-48). Decisivo para a ausência de Sokoto no tráfico transatlântico talvez fosse — talvez! — que seus dirigentes não conseguiram conquistar o litoral da Costa da Mina, onde estavam os entrepostos negreiros. Tentaram, via Ilorin, mas não conseguiram.17

A seção sobre biografias é outro momento curioso de Lovejoy nas páginas da Topoi. Ali um parágrafo aponta, como se fora novidade, nomes e fontes presentes — à exceção de uma — em Rebelião escrava (Samuel Crowther, Ali Eisami, Francis de Castelnau, ‘Abdurrahman al-Baghdádi); ou se refere a informações exaustivamente usadas por mim da documentação primária relativa às revoltas baianas. Para escrever biografias, Lovejoy aconselha: “Há tam-bém numerosos testemunhos dos envolvidos no levante dos malês de 1835 e de alguns mu-çulmanos que não fizeram parte nesse movimento” (p. 58). Não diga! Como compus todo um capítulo com minibiografias de malês, baseado em grande parte nesses testemunhos, corri meus olhos para a nota 65 do artigo de Lovejoy, e nada de João Reis. O primeiro pa-rágrafo daquele meu capítulo termina assim: “Seguem então minibiografias desses alufás”, e me estendo por 21 páginas a traçar perfis desses líderes muçulmanos.18 O primeiro trabalho citado por Lovejoy na nota 65 é uma dissertação de mestrado sobre a revolta baiana de 1835, de uma aluna de sua universidade, talvez orientanda dele, cujo subtítulo, por acaso, é “mini--biographies of leaders and others accused” (p. 58, nota 65). Interessante!

16 RIBEIRO, Alexandre Vieira. The Transatlantic Slave Trade to Bahia, 1582-1851. In: ELTIS, David; RICHARDSON, David. (Orgs.). Extending the Frontiers. New Haven: Yale University Press, 2008. p. 139, e p. 141 (Tabela 4.4).17 REIS, João José, op. cit., 2003, p. 172-173, e bibliografia ali indicada.18 REIS, João José, ibidem, cap. 9 (citação p. 283). Esse capítulo, mais reduzido, se encontra também na edi-ção em inglês, Slave Rebellion, cap. 7.

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Mais adiante Lovejoy escreve uma frase sobre um personagem a respeito de quem escrevi um livro todo (em coautoria com Flávio Gomes e Marcus Carvalho). Ele ensina: “Rufino José Maria, cujo nome africano, Abuncare, provavelmente indica Abu, abreviação de Abu-bakar, e ‘Ncare’, contração de Birnin Konni (N’Care = N’Konni), uma cidade fortificada no norte de Sokoto, não estava envolvido na revolta na Bahia porque ele estava no sul do Brasil na época” (p. 59). O autor está tratando de identidade, de origem, quis dizer que Ru-fino seria de Birnin Konni, e garante que se ele estivesse na Bahia em 1835 teria participado da revolta. Não vou entrar no mérito da adivinhação etimológica do autor (N’Koni vem a dar N’Care!), nem da adivinhação sobre o que teria feito Rufino em 1835 se estivesse na Bahia.19 Sobre este último ponto, basta lembrar que nem todo muçulmano se envolveu na revolta, inclusive entre os malês como ele. Fico na sua douta proposta sobre a origem do per-sonagem, porque é disso que se trata. Ora, sob interrogatório da polícia recifense, em 1853, Rufino disse ser “natural de Oió”, o reino iorubá, onde tinha mãe e pai cujos nomes iorubás declinou; em outros documentos sua nação é descrita ora como mina, ora, e mais especifi-camente, como nagô (que seria a nação de alguém de Oyo); e quando ele visitou Serra Leoa se estabeleceu em Fourah Bay, o distrito iorubá-aku-nagô-malê da colônia inglesa sobre o qual existe um capítulo inteiro em O alufá Rufino, além de um outro sobre Serra Leoa no tempo da visita de Rufino.20 Lovejoy pensa saber mais sobre de onde viera Rufino do que este próprio. Embora referencie o livro em suas notas, ele demonstra não ter lido O alufá Rufino, daí não perceber nele a inevitável presença da África na biografia atlântica que Reis, Gomes e Carvalho traçam do personagem. Neste livro alguns capítulos são especificamente dedicados à África, mas Lovejoy não inclui seus autores entre outros — inclusive ele próprio, naturalmente — que “colocam a África no centro de seus estudos e seguem biografias de in-divíduos em contextos históricos específicos, da melhor forma que podem ser reconstruídas” (p. 66). Quando algum dia conseguir ler O alufá Rufino, o historiador provavelmente achará que nossa “reconstrução” da vida de Rufino terá sido inadequada.

Quem já me leu sabe que enfatizo a dimensão étnica da Revolta dos Malês sem negli-genciar o enorme peso da questão religiosa, inclusive de como o Islã teria funcionado para moldar a identidade nagô na Bahia. Em Rebelião escrava escrevi quatro capítulos especifica-mente sobre a religião dos malês, seus líderes e seu papel na revolta (capítulos 6 a 9). Encerro

19 Sobre este último ponto, só lembrar que nem todo muçulmano se envolveu na revolta, inclusive entre os malês. Outra coisa: na nota 66 referente a este trecho, o historiador escreve: “Um problema similar é encon-trado em REIS”, e cita um artigo meu, Domingos Pereira Sodré, un prêtre africain dans la Bahia du XIXe siècle. In: HÉBRARD Jean (Org.). Brésil; quatre siècles d’esclavage. Paris: Karthala, 2012. p. 165-215. Qual “problema similar” exatamente? Nenhum esclarecimento.20 REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus J. M. de. O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (c. 1822-c. 1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, passim (ver por exemplo a transcrição do interrogatório na p. 367) e capítulos 14 e 15 sobre Serra Leoa. Quanto ao nome muçulmano de Rufino, referido na imprensa como Abuncare, estaria mais próximo, por exemplo, de Abdul ou Abu Karin (O alufá, p. 9).

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o capítulo 8 assim: “Para eles [os malês] ..., além da dimensão religiosa, que certamente teve, a rebelião se caracterizou por outros importantes fatores que se entrelaçaram com o religioso. O fator étnico foi um deles.”21 O próprio termo malê é etnicamente específico, derivado de ìmàle (ou imàle, imòle, imònle), muçulmano em língua iorubá; o grito de guerra ouvido nas ruas no momento do levante foi “Viva nagô”; a maioria esmagadora dos membros dos círcu-los muçulmanos envolvidos na conspiração era nagô; os mestres muçulmanos identificados como protagonistas da revolta eram, na sua quase totalidade, nagôs; entre os presos, 149 (83%) dos escravos e 60 (53,6%) dos libertos (ao todo 72,6%) eram nagôs.

Muitos contemporâneos inflacionaram a participação dos haussás em 1835, e eu dis-cuto suas razões. Em resumo, os haussás compunham 10,5% dos prisioneiros, eram es-magadoramente libertos (23 em comparação com oito escravos), a quem as autoridades quiseram atingir com prioridade pelo perigo potencial que representavam na organização de revoltas (podiam se deslocar mais livremente, tinham ou alugavam casas onde reu-nir conspiradores etc.). Acrescente-se que as autoridades tinham a lembrança de revoltas anteriores levadas a cabo pelos haussás, e que eles eram considerados os típicos muçul-manos, inclusive pelo conhecido letramento de alguns. Mas no decorrer do inquérito o quadro de militância haussá se desfez: dos 31 presos dessa nação, apenas três foram no final sentenciados. O único mestre haussá, Elesbão do Carmo, ou Dandará, que declarou ter sido malam em sua terra, foi preso, interrogado, pronunciado, mas não teve seu nome incluído no libelo acusatório, nem foi sentenciado. Suspeito que, ao contrário de outros mestres muçulmanos, conseguiu provar sua inocência; ou, se participou da conspiração, seria exceção e não regra quanto ao envolvimento haussá no movimento. O único mestre claramente envolvido que não era nagô, Luis Sanim, presidia um núcleo conspiratório in-teiramente nagô, disse falar fluentemente a língua dos nagôs, mas (atentem!) declarou ser tapa e não nagô. Não apenas nagôs fizeram o levante — e entre estes, não apenas nagôs islamizados —, o que afirmo é que a participação haussá, a maior nação muçulmana na época na Bahia, foi desconcertantemente pequena no levante. Escrevi: “A identidade malê era uma identidade islâmica nagô. Haussá? Haussá era mussulmi.” Segundo Castelnau — fonte que Lovejoy gosta de usar e confia — os haussás que ele entrevistou na Bahia no final da década de 1840 tinham os malês como infiéis. 22 Aliás, não disputo que os haussás fossem melhor treinados na crença muçulmana do que os nagôs, questiono que tivessem emprestado direção intelectual e política ao movimento de 1835, como haviam feito em movimentos anteriores, em 1807 e 1814, por exemplo. Isso está discutido, com detalhe e nuances, em Rebelião escrava.

Lovejoy evita o debate direto sobre este assunto. Propõe que, no contexto da revolta de 1835, haussá era nagô, e por extensão malê era o mesmo que mussulmi, o que não encontra

21 REIS, João José, op. cit., 2003, p. 282 (a ênfase não está no original).22 Para detalhes, REIS, João José, ibidem, cap. 10 (citação p. 349) e a referência a Castelnau na p. 177.

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sustentação nos documentos baianos, nem na história africana. Se aqueles que se declara-ram nagôs durante a devassa podiam também ser haussás, quem seriam os haussás que se declararam haussás?

Na própria Ilorin — onde foram ora aliados, ora adversários, ora aliados novamente — haussás e iorubás/nagôs viviam em quarteirões separados, não importa que um falasse a língua do outro, não se sabe com que destreza, ou que comungassem a mesma religião. Alia-dos aos fulanis, os haussás sufocaram os muçulmanos iorubás liderados por Solagberu após terem derrotado o partido do pagão Afonjá e eliminado a este. As clivagens étnicas foram, em grande parte, trazidas da África dos malês para a Bahia.23 Na África elas se encontram, por exemplo, nas lembranças de Samuel Crowther, uma fonte que Lovejoy distorce. Ele diz que o futuro bispo anglicano, natural da cidade de Osogun, na periferia do reino de Oyo, “atribuiu a destruição de muitas cidades de Oyo na década de 1820 a muçulmanos de Oyo, a quem ele chamou de fulanis, embora muitos falassem iorubá” (p. 54). Infelizmente, Lovejoy não remete a uma página específica da obra de Crowther citada para sustentar sua ideia. Ocorre que Crowther distinguiu os “maometanos de Oyo” dos “Foulahs” (fulanis) — e chega a narrar um episódio nada amistoso entre indivíduos de um e outro grupo24 —, mas também, num outro momento, acrescentaria à lista dos seus “inimigos” mais um persona-gem coletivo: “os escravos estrangeiros”, se referindo aos escravos de Oyo que se levantaram em 1817 e eram na sua maioria haussás, embora não só. Ou seja, Crowther distingue mu-çulmanos iorubás, fulanis e haussás.25

O alufá Rufino também disse ter sido capturado por haussás, ele que era muçulma-no nagô, ou seja, malê. Segundo uma testemunha a seu interrogatório de 1853, ele disse ter “sido aprisionado na guerra pelos Ussás [...]”, decerto referindo-se aos mesmos “escravos estrangeiros” de Crowther.26 Enquanto os nativos sabiam distinguir quem era quem nos conflitos em curso naquela região, o viajante estrangeiro capitão Hugh Clapperton, ele sim, desavisadamente chamaria de “Fellatas”, ou fulanis, aos muçulmanos em geral (iorubás, fu-lanis, haussás) que pilhavam Oyo naquela altura (Lovejoy, p. 54). Ainda assim, C lapperton escreveu que aos “escravos haussás” rebeldes “se reuniram muitos Fellatas” — ambos os grupos aderentes do Islã, uns mais que outros —, dando a entender que aprendeu alguma coisa com os nativos sobre as diferenças étnicas, apesar do manto da religião comum, no conflagrado território de Oyo e em Ilorin.27 Ou seja, dois testemunhos desse conflito — o

23 REIS, João José, ibidem, cap. 6, e bibliografia ali referida.24 Ver REIS, João José, ibidem, p. 169.25 Palavras de Crowther: “Os inimigos que levaram a cabo essas guerras eram principalmente os maometanos de Oyo, os quais abundam em meu país — se uniram com os Foulahs e aqueles escravos estrangeiros que es-caparam de seus senhores, formando uma força de cerca de 20.000 que perturbaram todo o país.” Ver Letter of Mr. Samuel Crowther to the Rev. William Jowett, in 1837. In: Journals of the Rev. James Frederick Schön and Mr Samuel Crowther. 2. ed. Londres: Frank Cass, 1970 [orig. 1842]. p. 372.26 REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus J. M. de, op. cit., p. 372.27 CLAPPERTON, Hugh. Journal of a Second Expedition into the Interior of Africa from the Bight of Benin

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de Crowther e o de Clapperton — que Lovejoy usa para fazer convergir uma identidade étnica radicada na religião, a identidade fulani, na verdade distinguiram os fulanis de outros grupos locais, sobretudo de iorubás e haussás, apesar de poderem supostamente falar uns as línguas dos outros e comungar da mesma religião.

Ao desembarcarem na Bahia, entre 1817 e 1835, os haussás vindos de Oyo e Ilorin ti-nham como se integrar às redes sociais dos haussás chegados em levas anteriores muito mais volumosas. Este é um tema a que me dedico. Os haussás como um todo, na altura de 1835, não formavam uma nação pequena, eram relativamente numerosos (estimei-os em mais de 2 mil almas, entre escravos e libertos, cerca de 10% dos africanos em Salvador),28 tinham, além de uma comunidade linguística, sentimento de origem e religião (embora nem todos fossem muçulmanos e, destes, nem todos jihadistas) que os congregavam, apesar de, quanto ao último item, numerosos terem se convertido ao catolicismo, sendo preciso investigar se isso os apartou radicalmente de seus irmãos islamitas. Então, à exceção de um ou outro com problemas de identidade — eu encontrei um que se dizia ora mina, ora haussá 29—, os afri-canos não se confundiam quanto a serem nagô ou haussá no ambiente baiano dos malês.30

Não dá para negligenciar o peso da identidade étnica — ou da identidade de nação — na concepção, mobilização e execução do movimento de 1835. E não existia exata con-vergência entre religião islâmica e nação africana, pois mesmo entre os haussás havia gente pagã, gente aderente ao bori e gente que trocara o islamismo pelo catolicismo, e mesmo, é provável, quem circulasse entre as diversas crenças. Majoritariamente não muçulmana, a nação nagô tinha um setor muçulmano, portanto nação não equivalia a religião, com o que quero dizer que mulçumanas ou não as pessoas “iorubás” se diziam nagôs.

Minha metodologia para estabelecer pertencimento às nações africanas em 1835 foi analisar as declarações dos próprios acusados durante os interrogatórios. Autoidentificação, identidade êmica. Embora os termos étnicos das nações tivessem sido criados no circuito do tráfico, por um processo de ladinização — que muitos preferem chamar crioulização —, os africanos terminaram por adotá-los, uma complexa operação de etnogênese que não cabe aqui detalhar. Basta lembrar que a nação nagô, por exemplo, era uma espécie de

to Soccatoo. Londres: Frank Cass, 1966 [orig. 1829]. p. 61, 62, por exemplo, e citação p. 18. O assistente de Clapperton, Richard Lander, também aprendeu que “Falatah” e haussá eram grupos diferentes. Ver LANDER, Richard. Records of Captain’s Clapperton Last Expedition to Africa. Londres: Frank Cass, 1967 [orig. 1830], v. 1, p. 96-97, 290, apenas a título de exemplo.28 REIS, João José, op. cit., 2003, p. 327.29 REIS, João José, ibidem, p. 585, n. 74.30 Evito aqui debater as revoltas haussás das primeiras décadas do século XIX, assunto de que trato desde minha tese de doutorado de 1982, e antes de mim outros autores o fizeram, inclusive Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil, cap. 2, que escreveu na virada do século XX. No entanto, Lovejoy escreve que “Schwartz foi pioneiro em enfatizar a ligação entre as revoltas na Bahia e a migração hausa (sic)” (p. 64). Já que ele não o abona em nota, imagino que se refira ao livro de Schwartz, Sugar Plantations, publicado em 1985 (e em cujas referências está a minha tese, por ele orientada), e desconheço autor com este nome que tivesse escrito sobre as revoltas baianas antes de Nina.

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federação que servia de guarda-chuva identitário a indivíduos e grupos oriundos dos quatro cantos da iorubalândia, que falavam idioma comum, embora com sotaques diferentes, e ti-nham outros traços culturais a uni-los, entre os quais mitos de criação do povo iorubá. Seus membros, entretanto, guardavam a memória de origens e identidades específicas e, por isso, alguns deles, ao serem interrogados, se disseram nagô-ba (de Egba), nagô-jexá (de Ilesha), nagô-jabu (de Ijebu). Mas não encontrei nenhum nagô-uçá na documentação da devassa ou fora dela. Assim falou o escravo nagô Antonio: “Ainda que todos são nagôs, cada um tem sua terra.”31 Indivíduos pertencentes a algumas nações pouco numerosas — que não era o caso dos haussás — podiam participar das redes sociais e religiosas nagôs ou haussás. Encontrei um nagô-tapa, por exemplo; mas um só, pois tapa, termo como os iorubás chamavam aos vizinhos nupes, era uma identidade distinta adotada por estes africanos na Bahia.32

As identidades em torno da noção de nação eram amiúde fluidas, contextuais, rela-cionais, estratégicas, mas não arbitrárias. Assim, quer pela experiência africana, quer pela baiana, é arbitrário atribuir identidade nagô (ou “iorubá”) a indivíduos que se identificavam como haussás na África. Os haussás permaneciam haussás na Bahia, apesar de — como os nagôs — oriundos de reinos os mais diversos e de muitos terem vivido às vezes longos anos em território iorubá (leia-se, sobretudo, Oyó). Que haussás falassem a língua iorubá não re-solve a questão, como quer Lovejoy (p. 62), porque, na mesma conjuntura de 1835, africanos houve — e até crioulo — que declararam falar aquela língua ao mesmo tempo que diziam pertencer a nações que não a nagô. Falar a língua do outro, ou abraçar a mesma religião, não torna alguém o outro. Isso é elementar.

Não me reconheço embarcado em “tentativa simplista de associar a etnia exclusivamente com a língua” (p. 62), Lovejoy pode dormir tranquilo quanto a isso. A identidade étnica era amiúde acompanhada de outros sinais diacríticos, aliás apontados por Lovejoy, mas que também explorei em Rebelião escrava e outros trabalhos meus, a exemplo do inventário de nomes próprios que arrolei e busco interpretar.33 Também faço um esforço para tentar deco-dificar, como sinais de pertencimento étnico, as escarificações faciais descritas nos autos de prisão dos suspeitos de 1835.

Sobre este último tema, Lovejoy escreve em seu artigo na Topoi: “Escarificações faciais e corporais eram praticadas como um meio de identificação, inclusive como proteção con-tra a escravidão, além de representarem rituais de solidariedade da comunidade” (p. 61). Lovejoy estava nesse momento dando uma volta pela África antes de chegar à Bahia de 1835, mas achei essa frase familiar porque penso o mesmo desde pelo menos 2003, quando tam-bém fiz meu passeio pela África para escrever umas quatro páginas sobre escarificações entre os suspeitos de rebeldia.34 Achei estranho que, na referência em nota, Lovejoy assumisse a

31 REIS, João José, op. cit., 2003, p. 307.32 REIS, João José, ibidem, p. 339 e bibliografia ali indicada. 33 REIS, João José, ibidem, p. 315-319, e bibliografia ali indicada.34 Ver REIS, João José, ibidem, p. 311-315.

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ideia como inteiramente sua, pois cita como fonte um trabalho seu. Este trabalho, no en-tanto, plagia (com alguma paráfrase), quiçá por displicência, dois parágrafos de um capítulo que escrevi em parceria com Beatriz Mamigonian. Essa é uma acusação tão grave que, para dissolver dúvidas, ofereço imediatamente a prova ao leitor nas imagens que seguem. 35 Em primeiro lugar, Lovejoy:

E agora, Reis e Mamigonian:

35 Imagens reproduzidas de, respectivamente, LOVEJOY, Paul. Scarification and the Loss of History in the African Diaspora. In: APTER, Andrew; DERBY, Lauren (Orgs.). Activating the Past Historical memory in the Black Atlantic. Newcastle: Cambridge Scholarly Publishing, 2010. p. 99-138 (o plágio está na p. 110-111); e REIS, João José; MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Nagô and Mina: The Yoruba Diaspora in Brazil. In: FALOLA, Toyin; Childs, Matt (Orgs.). The Yoruba Diaspora in the Atlantic World. Bloomington: Indiana University Press, 2004. p. 77-110 (trechos plagiados na p. 82-83).

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Vejam só que ironia, Lovejoy a plagiar trechos africanistas do cara que não entende de África! Ele lê com desleixo — quando lê — não apenas outros autores, lê assim a si próprio! Senão como entender que não consiga distinguir o que escreve do que escrevem os outros? Lovejoy chega a citar nosso artigo a certa altura, mas sem dar o devido crédito da autoria desses dois parágrafos. Valerá a pena o leitor consultar ambos os artigos, ou capítulos de coletâneas, porque o plágio se estende às notas. A esse propósito, no final do segundo pará-grafo plagiado, Lovejoy ainda escreve: “este parágrafo recorre a Drewal 1997.” O historiador da arte africana Henry Drewal é, na verdade, fonte devidamente citada na nota 12 de nosso artigo. Mesmo se tivesse escrito, “este parágrafo recorre a Reis e Mamigonian”, o trecho de-veria ser acompanhado de algumas aspas de atribuição autoral. Espero que sejamos os únicos autores assim predados pelo versátil africanista, até porque tenho utilizado seus escritos para compor minhas impressões sobre alguns aspectos da história da África.36

Qualquer leitor do artigo de Paul Lovejoy na Topoi ficará impressionado com a longa lista de títulos que compõem suas notas de rodapé. Mas o leitor especializado amiúde encon-trará desajuste entre o que é discutido no texto e o que é referenciado em nota, entre outros desvios do protocolo acadêmico.37 Às vezes se afigura um exercício algo desorganizado de

36 Sete títulos dele estão listados em REIS, João José, op. cit., 2003, p. 629.37 Ver, por exemplo, texto e nota 57 na p. 56 do artigo de Lovejoy. Ainda sobre o que Lovejoy escreve nesta

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engordar notas. Consideremos, só por hipótese, que as obras citadas tenham sido “lidas” do jeito que foram as minhas e as de alguns autores mal lidos que me dei ao trabalho de checar — a conclusão seria que ali estão em grande parte referenciadas com o intuito de demonstrar erudição bibliográfica para estabelecer autoridade acadêmica e impor poder intelectual. Se-ria este o segredo do “método” erudito pregado por Paul Lovejoy (“incluir mais bibliografia nas nossas análises”, p. 59) e empregado ao longo de seu artigo?

Eu poderia me estender muito mais sobre outros pontos inconsequentes do artigo de Lovejoy, mas acho que o recado está dado.

Referências Bibliográficas

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página quanto ao conflito entre Muhammad Bello (dirigente de Sokoto) e Muhammad al-Kameni (dirigente de Borno), note que o mesmo não está ausente de REIS, João José, op. cit., 2003, p. 174, e p. 567, n. 30.

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Jihad, “Era das Revoluções” e história atlântica: desafiando a interpretação de Reis da história brasileira

Paul E. Lovejoy*

Agradeço a oportunidade de responder aos comentários do professor João José Reis, que criticou duramente meu artigo na Topoi no 29, de junho de 2014. O prof. Reis decidiu concentrar-se em detalhes específicos de minha análise, em vez de enfrentar o desafio do de-bate acadêmico que era a substância do artigo. Em suma, afirmei que a análise acadêmica do mundo atlântico durante a era das revoluções, e não especificamente as publicações do prof. Reis, foi em larga medida distorcida de duas maneiras fundamentais. Em primeiro lugar, o mundo atlântico como é geralmente definido, com as exceções referidas em meu artigo, não inclui a história da África Ocidental, embora o continente africano tenha ajudado a confor-mar a bacia atlântica e, portanto, deveria ter tanta projeção quanto a Europa ou as Américas. Localizei as origens deste equívoco nas obras de Eric Hobsbawm e Eugene Genovese, dois proeminentes historiadores, para fins de debate. Isso está certamente claro em meu artigo e deveria ter sido percebido pelo prof. Reis. De fato, meu artigo deixa implícito que, em sua ilustre carreira, o prof. Reis tem a mesma estatura de Hobsbawm e Genovese e, portanto, a minha crítica ao seu trabalho é um sinal de respeito.

Em segundo lugar, meu argumento específico é que o movimento da jihad na África Ocidental coincidiu com a era das revoluções, apesar de esse movimento ter sido negligen-ciado ou mal interpretado — embora exista uma extensa literatura escrita por africanistas sobre o assunto e que defende a enorme relevância da jihad. O prof. Reis se encontra na categoria dos pesquisadores que não souberam apreciar essa importância, embora ele tenha ido muito além de outros pesquisadores ao identificar alguns dos fatores da história africana que são essenciais para a reconstrução da história atlântica durante a era das revoluções. In-felizmente, ou o prof. Reis não entendeu o argumento básico de meu artigo ou se tornou tão defensivo diante da crítica que perdeu a perspectiva. Espero que meu próximo livro, Jihad in West Africa during the Age of Revolutions, 1785-1850 (Ohio University Press), ainda no prelo, torne meus argumentos ainda mais claros e lhe dê outra oportunidade para refletir sobre as críticas de seu próprio trabalho, de forma que este intercâmbio possa deixar de ser um ataque à integridade pessoal para se tornar um debate acadêmico.

* Doutor em história pela University of Wisconsin, EUA, e Distinguished Research Professor e Canada Research Chair em African History na York University, Canadá. Toronto, Canadá. E-mail: [email protected].

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A maioria dos detalhes específicos na crítica do prof. Reis não merece resposta. Os his-toriadores podem julgar por si mesmos cada ponto e se a crítica é relevante ou não; afinal, fomos treinados para isso. Sei que o prof. Reis promove o debate e o diálogo com seus pró-prios alunos, os quais são capazes de reflexão madura. Todos nós usamos as publicações uns dos outros para lecionar, mesmo quando o debate inclui erros de interpretação, omissão de documentação e outras falhas. Se um dado pesquisador é ou não fluente o bastante em por-tuguês, árabe, hausa, ioruba, francês, inglês ou qualquer outra língua é uma dificuldade que todos enfrentamos, mas que não deveria jamais ser um obstáculo para nossas tentativas de reconstrução histórica. Todos tentamos fazer o melhor trabalho possível com as habilidades que temos. Sempre admirei o trabalho do prof. Reis, embora nem sempre tenha concordado com suas interpretações. Talvez, no futuro, o prof. Reis venha a reconsiderar os principais pontos apresentados em meu artigo na Topoi.

Com relação a detalhes biográficos, acredito que tive acesso a todas as publicações de Bishop Crowther e a seus artigos não publicados. O fato de que não ter citado Crowther quando o prof. Reis acredita que eu deveria não deve ser interpretado como negligência ou descaso. Como qualquer pessoa que conheça minhas publicações pode constatar, tenho publicado material biográfico sobre africanos escravizados e mercadores africanos há muito tempo, não apenas sobre Mahommah Gardo Baquaqua e Gustavus Vassa, mas muitos ou-tros; muito de meu trabalho é baseado em biografias e autobiografias. De fato, a pesquisa sobre Baquaqua entrou em nova fase e uma tradução de minhas publicações anteriores sobre ele estará disponível em breve em português, no Brasil, incluindo informações inéditas, en-quanto minha biografia de Vassa, que com frequência é chamado erroneamente de Olaudah Equiano, será também em breve publicada. Além disso, estou atualmente envolvido em um projeto, com recursos do Conselho de Ciências Sociais e Humanas do Canadá, sobre os testemunhos de africanos ocidentais escravizados na era do tráfico de escravos. A equipe com a qual trabalho inclui Nielson Bezerra, recém-contratado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj); Jane Landers, da Universidade Vanderbilt, no Tennessee, EUA; Jean-Pierre Le Glaunec, da Universidade de Sherbrooke, no Quebec, Canadá; Femi Kolapo, Universidade de Guelph, no Canadá; Kwabena Akruang-Perry, da Universidade de Cape Coast, em Gana; e Suzanne Schwarz, da Universidade de Worcester, no Reino Unido. Nos-so próximo encontro de trabalho deve ocorrer em outubro próximo, em Duque de Caxias (RJ), onde nossa base de dados sobre biografias será discutida. Essa base de dados inclui relatos biográficos e autobiográficos de mais de mil africanos ocidentais, materiais sobre cerca de 200 mil africanos libertos, além de documentos eclesiásticos sobre mais dezenas de milhares de africanos.

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O problema com a semelhança entre o texto do capítulo escrito por Reis e Mamigonian sobre os nagô e os mina1 (2004) e meu artigo sobre a escarificação2 (2009) é, de fato, preo-cupante. Claramente, um parágrafo do meu texto é quase uma cópia literal de um parágrafo do artigo de Reis e Mamigonian, e não tenho uma explicação adequada para isto. De algum modo, ao escrever meu artigo, inseri o texto de minhas anotações sobre o artigo de Reis e Mamigonian, sem me dar conta que era uma cópia literal e não as minhas anotações sobre o dito artigo. Certamente peço desculpas pelo erro, que é um constrangimento. No entanto, eu fiz referência a Reis e Mamigonian em diferentes momentos do meu texto. Além disso, eu tinha revisado as fontes usadas por esses autores, especialmente o relato de d’Avezac sobre Osifekunde, assim como a versão reduzida que fora publicada há mais de 40 anos em Africa Remembered, de Philip D. Curtin.3 No texto sobre a escarificação, minha intenção era me referir especialmente à publicação original de d’Avezac, por causa de seu grande valor. Com efeito, estou atualmente envolvido em um projeto com o dr. Olatunji Ojo, da Universidade Brock, no Canadá, para preparar uma nova edição anotada do relato de Osifekunde, a qual examinará particularmente os detalhes do contexto histórico dos ijebu e dos ioruba.4 Logi-camente a questão da escarificação será discutida neste projeto, e incluirá agora a correção de meu erro cometido no artigo sobre escarificação. No entanto, sejamos muito claros. Plágio é o roubo específico e consciente das ideias de outras pessoas e o uso das palavras de outrem como se fossem próprias. No meu caso, cometi um erro. Assim, a acusação específica do prof. Reis, que, aliás, não tem nenhuma relação com os argumentos apresentados no artigo publicado na Topoi, é claramente uma tentativa deliberada de me difamar como um meio de evitar um debate acadêmico sério.

Com respeito às observações de primeira mão de John Lander e seu relato, a minha in-tenção é similar. Quando escrevia a apresentação sobre escarificação para a conferência na Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA), eu já tinha publicado uma edição anota-da sobre a segunda expedição de Clapperton, da qual Lander foi membro, depois de muitos anos de pesquisa com Jamie Bruce Lockhart. Embora o prof. Reis não cite esse trabalho, a versão anotada da segunda expedição de Clapperton foi publicada pela Brill5 na Holanda em

1 REIS, João José; MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Nagô and Mina: The Yoruba Diaspora in Brazil. In: FALOLA, Toyin; CHILDS, Matt (Orgs.). The Yoruba Diaspora in the Atlantic World. Bloomington: Indiana University Press, 2004. p. 82-83. 2 LOVEJOY, Paul E. Scarification and the Loss of History in the African Diaspora. In: APTER, Andrew; DERBY, Lauren (Orgs.). Activating the Past Historical Memory in the Black Atlantic. Newcastle: Cambridge Scholarly Publishing, 2010. p. 110-111. 3 LLOYD, P. C. Osifekunde of Ijebu. In: CURTIN, Philip D. (Org.) Africa Remembered: Narratives of West Africans from the Era of the Slave Trade. Madison, WI: University of Wisconsin Press, 1967. p. 217-88. 4 D’AVEZAC, Armand. Notice sur le pays et le peuple des Yebous en Afrique. Paris: Dondey-Dupré, 1845. Disponível gratuitamente na Gallica. 5 LOCKHART, Jamie Bruce; LOVEJOY, Paul E. (Orgs.). Hugh Clapperton into the Interior of Africa: Records of the Second Expedition 1825-1827. Leiden: Brill, 2005.

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2005. Além disso, também enquanto escrevia aquele texto, Bruce Lockhart e eu estávamos trabalhando nos manuscritos inéditos dos irmãos Lander, alguns dos quais havíamos loca-lizado enquanto trabalhávamos no projeto sobre Clapperton. Como é notório, John Lander acompanhou Hugh Clapperton na segunda expedição para o interior da África Ocidental a partir de Badagry. John Lander, inclusive, publicou um volume sobre essa expedição em 1830.6 Em seguida, Lander voltou com seu irmão para dar continuidade à expedição de Clapperton, que morreu em Sokoto em 1827. O editor londrino, John Murray, publicou um relato sobre essa expedição e, embora seus arquivos não estejam disponíveis para consulta, eles contêm importantes manuscritos de relevância histórica.7 Eu pretendia fazer referência aos manuscritos de Lander no artigo sobre escarificação, inclusive ao diário que fora perdido no rio Níger quando os irmãos Lander foram escravizados em Kiri, antes de serem levados à costa em 1830.8 Esse material está no site do Instituto Harriet Tubman há muitos anos. Embora, inadvertidamente, eu tenha usado o texto do capítulo Reis-Mamigonian em meu artigo, eu planejava oferecer informação adicional, derivada desses manuscritos inéditos. Por alguma razão me distraí e não incluí as referências inéditas em meu capítulo sobre escari-ficação. Portanto, este foi meu erro. Não acredito que o prof. Reis ou a Dra. Mamigonian saibam que esse material inédito está disponível, e eles também parecem desconhecer o material publicado sobre Clapperton.

Na passagem citada pelo prof. Reis, que é uma cópia da passagem em seu capítulo, em um livro no qual eu também publiquei, há uma nota textual “ibid.”, que não consigo expli-car. Esse pequeno detalhe deveria ter sido suficiente para chamar minha atenção na fase da revisão de provas do capítulo, mas evidentemente até esse sinal passou desapercebido. Além disso, embora tenha aprendido muito em minhas conversas com o Prof. Henry Drewal, que é um excelente pesquisador, minha referência a ele era uma nota a mim mesmo, pois eu o consultara para me assegurar de alguns dos detalhes da escarificação, o que ele de fato confirmou. Ele me ajudou em vários outros temas, a partir de seu trabalho de campo. A referência não deixa isso claro porque, mais uma vez, cometi o erro de usar minhas notas

6 LANDER, Richard. Records of Captain Clapperton’s Last Expedition to Africa. Londres: Colburn and Bentley, 1830. 2 v.7 LANDER, Richard; LANDER, John. Journal of an Expedition to Explore the Course and Termination of the Niger. Nova York: J & J Harper, 1832. 2 v.8 Ver LOCKHART, Jamie Bruce. Documents Relating to the Lander Brothers’ Niger Expedition of 1830. Disponível em: <http://www.tubmaninstitute.ca/documents_relating_to_the_lander_brothers_niger_expedition_of_1830>, que inclui Journals or Journalism?: The Landers’ Niger Journal (1834); John Lander’s Journal in John Murray Archive (National Library of Scotland, Edinburgh); Richard Lander’s Journal in the Welcome Library (Londres); Correspondence in John Murray Archive, para o período 1830-31; Provenance: Recovery from the River Niger of the Two Lost Journals, os dois diários que foram encontrados no rio Níger, em Kiri, em algum momento de 1831, assim como os excertos do diário de John Lander, livro no 2. Ver também SHADD: Studies in the History of the African Diaspora — Documents, disponível em: <http://tubman.info.yorku.ca/publications/shadd/>. Ver também outras cartas dos irmãos Lander na coleção de Sierra Leone da Universidade de Illinois, em Chicago, que foram incluídas no SHADD.

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Jihad, “Era das Revoluções” e história atlântica: desafiando a interpretação de Reis da história brasileira

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não editadas no texto publicado. No mundo acadêmico é inaceitável fazer referência ao trabalho de outros pesquisadores ou mesmo citá-los sem o devido crédito. Portanto, não há desculpa para meu erro, embora eu acredite que esta resposta ajudará a explicar o contexto. Certamente sou grato a Topoi pela oportunidade de explicar e corrigi-lo. Se o capítulo vier a ser publicado outra vez, irei corrigir meu erro e admiti-lo. Como já afirmei, também vou deixar isso claro na publicação de uma edição anotada sobre Osifekunde, cuja biografia é importante no Brasil.

Como enfatizei em meu artigo para a Topoi e como também o faço em meu próximo livro com a Ohio University Press, os mal-entendidos com respeito ao Islã e mesmo à jihad têm profundas consequências no mundo de hoje. Argumentei que a jihad era uma grande força na história da África Ocidental ao tempo em que africanos escravizados eram enviados ao Brasil ou a Cuba. Preocupa-me muito que a questão da jihad e do conhecimento do Islã de uma perspectiva histórica sejam tão pouco entendida. O que é preciso para enfatizar o papel do Islã na história? Como a desatenção com diferentes perspectivas conforma uma visão distorcida do mundo contemporâneo, em que a jihad é uma força global? Com certe-za, o prof. Reis deveria considerar essas questões em sua interpretação da história brasileira.

Referências bibliográficas

CANDIDO, Mariana; LIBERATO, Carlos; LOVEJOY, Paul E.; SOULODRE-LA FRANCE, Renee (Orgs.), Laços atlânticos: África e africanos durante a era do comércio transatlântico de escravos. (Luanda, no prelo.)D’AVEZAC, Armand. Notice sur le pays et le peuple des Yebous en Afrique. Paris: Dondey-Dupré, 1845. Disponível gratuitamente na Gallica. LANDER, Richard. Records of Captain Clapperton’s Last Expedition to Africa. Londres: Colburn and Bentley, 1830. 2 v.LANDER, Richard; LANDER, John. Journal of an Expedition to Explore the Course and Termination of the Niger. Nova York: J & J Harper, 1832. 2 v.LLOYD, P. C. Osifekunde of Ijebu. In: CURTIN, Philip D. (Org.). Africa Remembered: Narratives of West Africans from the Era of the Slave Trade. Madison, WI: University of Wisconsin Press, 1967. LOCKHART, Jamie Bruce. Documents Relating to the Lander Brothers’ Niger Expedition of 1830. Disponível em: <http://www.tubmaninstitute.ca/documents_relating_to_the_lander_brothers_niger_expedition_of_1830>.LOCKHART, Jamie Bruce; LOVEJOY, Paul E. (Orgs.). Hugh Clapperton into the Interior of Africa: Records of the Second Expedition 1825-1827. Leiden: Brill, 2005.

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Jihad, “Era das Revoluções” e história atlântica: desafiando a interpretação de Reis da história brasileira

Paul E. Lovejoy

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LOVEJOY, Paul E. Scarification and the Loss of History in the African Diaspora. In: APTER, Andrew; DERBY, Lauren (Orgs.). Activating the Past Historical Memory in the Black Atlantic. Newcastle: Cambridge Scholarly Publishing, 2010. REIS, João José; MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Nagô and Mina: The Yoruba Diaspora in Brazil. In: FALOLA, Toyin; CHILDS, Matt (Orgs.). The Yoruba Diaspora in the Atlantic World. Bloomington: Indiana University Press, 2004. SHADD: Studies in the History of the African Diaspora — Documents. Disponível em: <http://tubman.info.yorku.ca/publications/shadd/>.

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Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 16, n. 30, p. 396-401, jan./jun. 2015 | www.revistatopoi.org 396

Jihad, “the Age of Revolution” and Atlantic History: Challenging Reis Interpretation of Brazilian History

Paul E. Lovejoy*

It is fortunate that I have an opportunity to reply to the comments of Professor Reis, who has criticized my article in Topoi in no uncertain terms. Prof. Reis has chosen to focus on specific details of my analysis rather than confront the challenge of scholarly debate over the substance of my article. Briefly, I have alleged that the scholarly analysis of the Atlantic world during the age of revolutions, not specifically the publications of Prof. Reis, has largely been distorted in two fundamental ways. First, the Atlantic world as usually conceived, with exceptions that are referred to in my article, has largely not included West African history, even though the African continent helped to shape the Atlantic basin and hence should figure as prominently in the study of the Atlantic, even the Black Atlantic, as Europe and the Americas. I have traced the origins of this failure, symbolically at least, to Eric Hobsbawm and Eugene Genovese, two prominent historians, for purposes of discussion. This is certainly obvious in my article and should have been apparent to Prof. Reis. Indeed the implication in my article is that Prof. Reis is of the same stature as Hobsbawm and Genovese in his distinguished career and hence should have been able to withstand my criticisms of his work as a sign of respect.

Second, I have argued specifically that the jihad movement in West Africa that coincided chronologically with the age of revolutions has been overlooked or misinterpreted, despite an extensive literature by specialists of West Africa who have argued the enormous significance of jihad. Prof Reis falls into the category of scholars who have failed to appreciate this importance, although he has gone much further than many other scholars in identifying some of the factors of African history that are essential in the reconstruction of Atlantic history during the age of revolutions. Unfortunately, either Prof. Reis did not understand the basic argument of my paper or he became so defensive in the face of criticism that he lost perspective. Hopefully, my forthcoming book, Jihad in West Africa during the Age of Revolutions, 1785-1850 (Ohio University Press), will make my arguments even clearer and give him another chance to reflect on the criticisms of his own work so that this exchange can move from being an attack on personal integrity to a discussion of scholarly discourse.

* Ph.D in history from the University of Wisconsin, EUA, and Distinguished Research Professor and Canada Research Chair in African History at York University, Canadá. Toronto, Canadá. E-mail: [email protected].

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Jihad, “the Age of Revolution” and Atlantic History: Challenging Reis Interpretation of Brazilian History

Paul E. Lovejoy

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Most of the specific details of Prof Reis’s criticisms do not warrant response. Historians can judge for themselves each point and whether or not the criticisms are relevant; we are trained to do so. I know that Prof. Reis promotes discussion and dialogue with his own students, who in any event are capable of mature reflection. All of us teach each other’s publications, even when mistakes of interpretation, omission of documentation, and other failures figure in discussion. Whether or not a specific scholar is sufficiently fluent in Portuguese, Arabic, Hausa, Yoruba, French, English or any other language is a difficulty we all confront but which should never impede attempts at historical reconstruction. We all do the best we can with the skills we have. I have always admired Prof. Reis’s scholarship, although I have not always agreed with his interpretations. Perhaps at some point in future Prof. Reis will reconsider the main points that I presented in my Topoi article.

With respect to biographical details, I believe that I have copies of all of Bishop Crowther’s publications and his unpublished papers. Failure to cite Crowther when Prof. Reis thinks I should have should not be interpreted as a sign of neglect. As anyone who knows my publications will fully realize, I have been publishing biographical materials on enslaved Africans and African merchants for a very long time, not only Mahommah Gardo Baquaqua, Gustavus Vassa, but many others; much of my work is based on biographies and autobiographies. Indeed the research on Baquaqua has entered a new phase and a translation of my previous publications on Baquaqua will soon be available in Portuguese in Brazil and with the inclusion of new information, while my biography of Vassa, who is usually referred to erroneously as Olaudah Equiano, will also soon be published. Moreover, I am currently engaged in a long term project, funded by the Social Sciences and Humanities Research Council of Canada, on the testimonies of enslaved West Africans from the era of the slave trade. The team with which I am working includes Dr. Nielson Bezerra, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Jane Landers, Vanderbilt University, Jean-Pierre Le Glaunec, Université de Sherbrooke, Femi Kolapo, University of Guelph, Kwabena Akruang-Perry, University of Cape Coast, Ghana, and Suzanne Schwarz, University of Worcester. Our next workshop is planned for this coming October in Duques de Caixas, Rio de Janeiro, where our combined database on biographies will be discussed. That database includes biographical and autobiographical accounts of over 1,000 West Africans, the materials on Liberated Africans of approximately 200,000 individuals, and baptismal and other church documentation on tens of thousands more Africans.

The problem with the similarity in texts between the chapter by Reis and Mamigonian on Nagô and Mina (2004)1 and my paper on scarification (2009)2 is indeed troubling. It is

1 REIS, João José; MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Nagô and Mina: The Yoruba Diaspora in Brazil. In: FALOLA, Toyin; CHILDS, Matt (Eds.). The Yoruba Diaspora in the Atlantic World. Bloomington: Indiana University Press, 2004. p. 82-83. 2 LOVEJOY, Paul E. Scarification and the Loss of History in the African Diaspora. In: APTER, Andrew; DERBY, Lauren (Eds.). Activating the Past Historical Memory in the Black Atlantic. Newcastle: Cambridge

Lise Sedrez
Highlight
Duque de Caxias
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Jihad, “the Age of Revolution” and Atlantic History: Challenging Reis Interpretation of Brazilian History

Paul E. Lovejoy

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clear that my text is virtually verbatim replication of Reis and Mamigonian, which I cannot adequately explain. Somehow in writing my paper, I inserted the text from my notes and subsequently failed to revise and otherwise summarize Reis and Mamigonian. I certainly apologize for this mistake, which is an embarrassment. However, I did indeed refer to Reis and Mamigonian in the following paragraph and elsewhere in my chapter. Moreover, I had reviewed the sources of their information, especially D’Avezac’s account of Osifekunde, as well as the shortened version that was long ago published in Philip D. Curtin’s Africa Remembered.3 My intention in my scarification chapter was to refer specifically to D’Avezac’s original publication because of its great value. Indeed, I am currently involved in a project with Dr. Olatunji Ojo, Brock University, in preparing a new annotated edition of Osifekunde’s account, which will examine in particular the details of the Ijebu and Yoruba background.4 Of course the scarification issue will be discussed in the project that I am completing with Dr. Ojo, including now a correction of my mistake in the scarification paper. However, let’s be very clear. Plagiarism is a specific and conscious theft of other people’s ideas and the use of the wording of others through a claim of ownership. In my case, I made a mistake. Hence, Prof. Reis’s specific accusation, which actually has nothing to do with the article published in Topoi, is misleading and is clearly a deliberate attempt to defame as a way of avoiding serious scholarly discussion. I am not impressed.

My intention with respect to first hand observations of John Lander and his account was similar. At the time of writing the scarification presentation for the conference at UCLA, I had already published the annotated edition of the second Clapperton expedition, with which Lander was a member, with many supporting documents, after many years of research with Jamie Bruce Lockhart. Although Prof. Reis does not cite this work, the annotated version of Clapperton’s second expedition was published by Brill in the Netherlands in 2005.5 Moreover, at the time of writing the scarification paper, Bruce Lockhart and I were working on the unpublished papers of the Lander brothers, some of which we had collected while completing the Clapperton project. As is well known, John Lander accompanied Clapperton on Clapperton’s second expedition inland from Badagry, and indeed Lander published a volume on that expedition.6 Lander subsequently returned with his brother to follow up the expedition led by Clapperton, who had died in Sokoto in 1827. The London publisher, John Murray, published an account of that expedition, and the Murray archives,

Scholarly Publishing, 2010. p. 110-111. 3 LLOYD P. C. Osifekunde of Ijebu. In: CURTIN, Philip D. (Ed.). Africa Remembered: Narratives of West Africans from the Era of the Slave Trade, Madison, WI: University of Wisconsin Press, 1967. p. 217-88. 4 D’AVEZAC, Armand. Notice sur le pays et le peuple des Yebous en Afrique. Paris: Dondey-Dupré, 1845, which is readily available for free download on Gallica. 5 LOCKHART, Jamie Bruce; LOVEJOY, Paul E. (Eds.). Hugh Clapperton into the Interior of Africa: Records of the Second Expedition 1825-1827. Leiden: Brill, 2005. 6 LANDER, Richard. Records of Captain Clapperton’s Last Expedition to Africa. Londres: Colburn and Bentley, 1830. 2 vols.

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which are not open to the public, contain important manuscripts of historical relevance.7 I had intended to refer to the Lander manuscripts in the scarification paper, including the journal that was lost in the Niger River when the Lander brothers were enslaved at Kiri before being taken to the coast in 1830.8 This material has been on the website of the Harriet Tubman Institute for many years. While I inadvertently retained the text from the Reis-Mamigonian chapter in my paper, I had meant to provide additional information that was drawn from this unpublished manuscript material. Somehow I was diverted and did not include the unpublished references in my chapter on scarification. Hence, this was my mistake. I do not believe either Prof. Reis or Dr. Mamigonian has realized that this unpublished material is available, and they seem to be unaware of the edited Clapperton material as well.

In the passage that Prof. Reis cites that is a duplicate of a passage in their chapter, in a book in which I also published, there is also a textual note “ibid.” to which I am at a loss to explain. That detail alone should have been sufficient to have caught my eye at the proof stage for the chapter, but clearly I missed that signal, as well. Moreover, while I have learned a lot from my discussions with Prof. Henry Drewal, who is an excellent scholar, my reference to him was a note, to myself, that I had consulted with him to verify some of the details of scarification, which he indeed confirmed. He helped me on a number of other points, based on his own field work. The reference does not make this clear, again because I mistakenly used my unedited notes. In scholarship, it is unacceptable to refer to and indeed to quote the work of other scholars without attribution. Hence there can be no real excuse for my error, although I trust that this explanation will help to explain the context. I certainly welcome the opportunity to correct the mistake. Should the chapter be republished, I will of course correct this error and suitably acknowledge the mistake in a note, and as already stated, in the publication of an annotated edition on Osifekunde, whose biography is of course important in Brazil, I will also make this clear.

As I emphasized in my article in Topoi and as I do in my forthcoming book with Ohio, the misunderstandings with respect to Islam and indeed jihad have profound consequences in today’s world. I have argued that jihad was a major force in the history of West Africa at

7 LANDER, Richard; LANDER, John. Journal of a Narrative to Explore the Course and Termination of the Niger. Nova York: J & J Harper, 1832. 2 vols.8 See Jamie Bruce Lockhart, Documents Relating to the Lander Brothers’ Niger Expedition of 1830, Available at: <http://www.tubmaninstitute.ca/documents_relating_to_the_lander_brothers_niger_expedition_of_ 1830>, including Journals or Journalism?: The Landers’ Niger Journal (1834); John Lander’s Journal in John Murray Archive (National Library of Scotland, Edinburgh); Richard Lander’s Journal in the Wellcome Library (London), Correspondence in John Murray Archive” for the period 1830-31; Provenance: Recovery from the River Niger of the Two Lost Journals, which were retrieved from the Niger River at Kiri at some point in 1831, as well as extracts from John Lander’s Journal Book n. 2. Also see SHADD: Studies in the History of the African Diaspora – Documents. Available at: <http://tubman.info.yorku.ca/publications/shadd/>. Also see the additional letters by the Lander brothers that are in the Sierra Leone collection at the University of Illinois at Chicago, which have since been added to SHADD.

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a time when many enslaved Africans were sent to Brazil and Cuba. I am greatly concerned that the issue of jihad and knowledge of Islam from an historical perspective is so poorly understood, as Prof. Reis’s response clearly reflects. What does it take to emphasize the role of Islam in history? How does the neglect of different perspectives shape a distorted view of the contemporary world in which jihad is a global force? Surely, Prof. Reis should consider these questions in his interpretation of Brazilian history.

References

CANDIDO, Mariana; LIBERATO, Carlos; Lovejoy, Paul E.; SOULODRE-LA FRANCE, Renee (Eds.). Laços atlânticos: África e africanos durante a era do comércio transatlântico de escravos. (Luanda, no prelo.)D’AVEZAC, Armand. Notice sur le pays et le peuple des Yebous en Afrique. Paris: Dondey-Dupré, 1845. Available for free download on Gallica. LANDER, Richard. Records of Captain Clapperton’s Last Expedition to Africa. London: Colburn and Bentley, 1830. 2 v.LANDER, Richard; LANDER, John. Journal of an Expedition to Explore the Course and Termination of the Niger. Nova York: J & J Harper, 1832. 2 v.LLOYD, P. C. Osifekunde of Ijebu. In: CURTIN, Philip D. (Org.). Africa Remembered: Narratives of West Africans from the Era of the Slave Trade. Madison, WI: University of Wisconsin Press, 1967. LOCKHART, Jamie Bruce. Documents Relating to the Lander Brothers’ Niger Expedition of 1830. Available at: <http://www.tubmaninstitute.ca/documents_relating_to_the_lander_brothers_niger_expedition_of_1830>.LOCKHART, Jamie Bruce; LOVEJOY, Paul E. (Eds.). Hugh Clapperton into the Interior of Africa: Records of the Second Expedition 1825-1827. Leiden: Brill, 2005. LOVEJOY, Paul E. Scarification and the Loss of History in the African Diaspora. In: APTER, Andrew; DERBY, Lauren (Eds.). Activating the Past Historical Memory in the Black Atlantic. Newcastle: Cambridge Scholarly Publishing, 2010. REIS, João José; MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Nagô and Mina: The Yoruba Diaspora in Brazil. In: FALOLA, Toyin; CHILDS, Matt (Eds.). The Yoruba Diaspora in the Atlantic World. Bloomington: Indiana University Press, 2004. SHADD: Studies in the History of the African Diaspora — Documents. Available at: <http://tubman.info.yorku.ca/publications/shadd/>.