Top Banner
119 Artigos A IDENTIDADE DO SER HUMANO À LUZ DA FÉ THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH Hélcion Ribeiro * RESUMO: A tradição da antropologia teológica está fundada na afirmação do ser humano criado à imagem e semelhança com Deus. Muitos teólogos enfatizam uma nova posição, também adotada pelo Vaticano II – especialmente na GS -: é Cristo quem dá a singularidade teológica ao ser humano. Daí a necessidade de se passar a uma Antropologia Cristológica. É Cristo, e não o velho Adão, quem dá sentido à vida de todos os homens. É nele que ficamos sabendo quem somos, inclusive de filhos de Deus e irmãos do próprio Verbo, que se fez carne para se tornar irmão, como imagem visível do Deus invisível. Nele fica superada a imagem do “velho” Adão – mesmo quando considerada a evolução natural da espécie. É em Cristo que nasce a nossa novidade criatural. Também é nele e a partir dele que se torna possível a fraternidade universal. Este dado nos conduz a outra realidade: nós somos, individualmente, pessoa – com todas as dimensões decorrentes, mas também somos um povo: o Povo de Deus, que com todos os homens e mulheres da terra e em quais quer tempo, formamos o único corpo de Cristo. PALAVRAS CHAVE: Filiação. Fraternidade. Imagem. “Homem novo”. Cristo. ABSTRACT: Tradition of theological anthropology is based on the affirmation of the human being created in the image and likeness with God. Many theologians emphasize a new position, also adopted by Vatican II - especially in GS -: it is Christ who gives the theological singularity to the human being. Hence the need to move to a Christological Anthropology. It is Christ, not the old Adam, who gives meaning to the lives of all men. It is in him that we know who we are, even as children of God and brothers of the Word himself, who became flesh to become brother, as the visible image of the invisible God. In him is surpassed the image of the "old" Adam - even when considered under the natural evolution of the species. It is in Christ that our creaturely novelty is born. It is also in him and from him that universal brotherhood becomes possible. This fact leads us to another reality: we are, individually, persons - with all the resulting dimensions - but we are also a people: the People of God who, with all the men and women of the earth and in whatever time, form the one Body of Christ. KEY WORDS: Affiliation. Fraternity. Image. "New man". Christ * Licenciado em pedagogia e filosofia. Especialista em Supervisão Escolar e Metodologia da Pesquisa Científica. Mestre e Doutor em Missiologia e Pós-doutor em Antropologia Teológica Foi professor de teologia sistemática na Faculdade N. Sra. da Assunção (SP), Instituto de Teologia de Santa Catarina e PUC/Curititba. Coordenador da pós-graduação/EAD – latu sensu – de teologia Contemporânea do Centro Universitário Claretiano (SP). É autor de mais de oito livros, entre eles: Ensaio de Antropologia cristã, Quem somos, donde viemos e para onde vamos?, A encarnação de nosso Deus e a realização humana, Identidade do brasileiro. Capado, sangrado e festeiro. É editor da Revista de Teologia STUDIUM.
22

THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH A IDENTIDADE DO SER HUMANO À LUZ DA FÉ THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH Hélcion Ribeiro * RESUMO:

Jul 08, 2020

Download

Documents

dariahiddleston
Welcome message from author
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
Page 1: THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH A IDENTIDADE DO SER HUMANO À LUZ DA FÉ THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH Hélcion Ribeiro * RESUMO:

119

ArtigosA IDENTIDADE DO SER HUMANO À

LUZ DA FÉTHE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH

Hélcion Ribeiro *

RESUMO: A tradição da antropologia teológica está fundada na afirmação do ser humano criado à imagem e semelhança com Deus. Muitos teólogos enfatizam uma nova posição, também adotada pelo Vaticano II – especialmente na GS -: é Cristo quem dá a singularidade teológica ao ser humano. Daí a necessidade de se passar a uma Antropologia Cristológica. É Cristo, e não o velho Adão, quem dá sentido à vida de todos os homens. É nele que ficamos sabendo quem somos, inclusive de filhos de Deus e irmãos do próprio Verbo, que se fez carne para se tornar irmão, como imagem visível do Deus invisível. Nele fica superada a imagem do “velho” Adão – mesmo quando considerada a evolução natural da espécie. É em Cristo que nasce a nossa novidade criatural. Também é nele e a partir dele que se torna possível a fraternidade universal. Este dado nos conduz a outra realidade: nós somos, individualmente, pessoa – com todas as dimensões decorrentes, mas também somos um povo: o Povo de Deus, que com todos os homens e mulheres da terra e em quais quer tempo, formamos o único corpo de Cristo.

PALAVRAS CHAVE: Filiação. Fraternidade. Imagem. “Homem novo”. Cristo. ABSTRACT: Tradition of theological anthropology is based on the affirmation of the human being created in the image and likeness with God. Many theologians emphasize a new position, also adopted by Vatican II - especially in GS -: it is Christ who gives the theological singularity to the human being. Hence the need to move to a Christological Anthropology. It is Christ, not the old Adam, who gives meaning to the lives of all men. It is in him that we know who we are, even as children of God and brothers of the Word himself, who became flesh to become brother, as the visible image of the invisible God. In him is surpassed the image of the "old" Adam - even when considered under the natural evolution of the species. It is in Christ that our creaturely novelty is born. It is also in him and from him that universal brotherhood becomes possible. This fact leads us to another reality: we are, individually, persons - with all the resulting dimensions - but we are also a people: the People of God who, with all the men and women of the earth and in whatever time, form the one Body of Christ.

KEY WORDS: Affiliation. Fraternity. Image. "New man". Christ

* Licenciado em pedagogia e filosofia. Especialista em Supervisão Escolar e Metodologia da Pesquisa Científica. Mestre e Doutor em Missiologia e Pós-doutor em Antropologia Teológica Foi professor de teologia sistemática na Faculdade N. Sra. da Assunção (SP), Instituto de Teologia de Santa Catarina e PUC/Curititba. Coordenador da pós-graduação/EAD – latu sensu – de teologia Contemporânea do Centro Universitário Claretiano (SP). É autor de mais de oito livros, entre eles: Ensaio de Antropologia cristã, Quem somos, donde viemos e para onde vamos?, A encarnação de nosso Deus e a realização humana, Identidade do brasileiro. Capado, sangrado e festeiro. É editor da Revista de Teologia STUDIUM.

Page 2: THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH A IDENTIDADE DO SER HUMANO À LUZ DA FÉ THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH Hélcion Ribeiro * RESUMO:

120

A “Antropologia Teológica” se relaciona com várias outras ciências, inclusive teológicas. E, hoje, mais concretamente, se percebe que é assim que ela se constrói. Por exemplo, com a teologia da criação (teologia da criação e também conhecida como protologia), com a escatologia (teologia da consumação do mundo e do ser humano), com a cristologia (sobretudo ao enfocar Cristo modelo e salvador do ser humano e da humanidade toda). Aqueles que escrevem “antropologia teológica” se sentem devedores da tradição manualística, onde esta temática aparecia nos tratados “De Deo creante” e “De Deo elevante”. A catequese também sofre (ainda) esta influência.

Então ao se identificar teologicamente o ser humano, entre as primeiras ideias que nos vem, estão: fomos criados por Deus (na origem do universo), à sua imagem e semelhança, em Adão e Eva tornamo-nos pecadores (pecado original) e Deus nos concede graças para nos tirar do pecado e nos salvar (por isso a grande graça salvadora é Jesus, homem-Deus). A bíblia, e mais especificamente desde o AT, deu à criação um enfoque teológico. No entanto, a antropologia atual torna-se mais cristológica. O ser humano, sem dúvida, é contemplado decididamente a partir de Cristo – que sem dúvida remete ao mistério trinitário.

Aborda-se teologicamente a criação porque se quer afirmar dois pontos: a) origem de tudo em Deus; b) a razão da criação é a glória divina; c) tudo converge para Deus.

A antropologia cristã é bem mais um estudo a partir do ser humano, que não pode jamais estar desvinculado da Trindade, e mais precisamente de Cristo; pois tudo foi criado por ele, nele e para ele (cf. 1Cor 8,5-6; Col 1,15-20). A antropologia cristã estuda, por um lado, o ser humano criado e consumado em Cristo; por outro, analisa as questões de autonomia do ser humano, dentro da história da salvação. O mistério do ser humano se explica em Cristo, em sua totalidade. Isto quer dizer: leva-se em conta o Cristo pascal, contemplado como salvador pré-existente, encarnado na humanidade, senhor da história, Filho de Deus, sentido profundo e último da história e da realização cósmica.1

Uma identidade teológica para o ser humano

Ao produzirem suas antropologias teológicas, os teólogos preferem identificar a pessoa humana a partir de Jesus Cristo. É assim que se vem procedendo

1 Cf. ANCONA, G, Antropologia Teologica. Temi fondamentali. Brescia: Queriniana, 2-14, pg.: também BRAMBILLA, F. G. Antropologia Teologica. Brescia: Queriniana, 2005, pt 25; LADARIA, L.F. El hombre en la creación. Madri: B.A.C. 2012, pg. 26.

Page 3: THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH A IDENTIDADE DO SER HUMANO À LUZ DA FÉ THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH Hélcion Ribeiro * RESUMO:

121

desde o Concilio Vaticano II. Como diz a GS 22 (e João Paulo II2): Só Jesus Cristo explica verdadeiramente quem é o ser humano e sua altíssima vocação. Antes, São Paulo já afirmava: Cristo faz nova a sua criatura. Pode-se fundamentar nossa identidade e origem em Cristo nos seguintes textos: Col. 1,15-17; 1,18-20; Rm 8,28-30; Col 3,10-15; Rm 6,3-11; 2Col 5,17; Gal 6,15. Ainda mais: São Paulo aproveitou um hino de sua época, fez uma adaptação belíssima em Ef 1,3-13. Entre outras afirmações, se diz: fomos criados em Cristo, por ele e para ele. É o plano, já antes de Deus, criar tudo quanto existe. Deus não faz distinção de pessoa, faz chover sobre bons e maus e faz o sol brilhar sobre justos e injustos (cf. Mt 5,45).

São Paulo é quem mais ajuda a compreender o significado cristocêntrico tanto da criação, em geral, quanto do ser humano. E ele ajuda por causa de suas afirmações escatológicas – que são intensas – quanto por mostrar Cristo como imagem visível do Pai invisível, o primogênito da criação. “E nós todos que com a face descoberta, refletimos como num espelho a glória do Senhor, somos transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente pela ação do Senhor, que é o Espírito” (2Cor 3,18)3. Só Cristo revela quem é realmente o ser humano (independentemente de ser católico, budista, muçulmano ou espírita). É preciso lembrar sempre que Deus amou tanto o mundo (a humanidade inteira) que nos deu seu Filho único. Isto não depende de religião ou crença. É um ato de amor de Deus, acima e antes de qualquer outra coisa.

No Verbo eterno feito carne e habitando entre nós (cf. Jo 1,14), conhecemos a imagem de quem somos e de quem seremos. O Filho de Deus, que preside a criação, intervém nela para comunicar a nós, seres humanos, o reflexo do rosto do Pai. Cada ser humano participa do dinamismo da criação, em pessoa pelo Filho, como imagem do Pai. E tudo isto se revela em plenitude pela ressurreição de Cristo. Ele, o primogênito dos mortos, leva à realização máxima nossa carne mortal agora transformada em carne imortal. Isto quer dizer: a criação nossa em Cristo só se completará de modo definitivo quando ressuscitado, participaremos da vida em Deus, vendo-o face-a-face. Isto é, sendo semelhante a ele, pois Cristo nos fez assim. Esta nossa união escatológica – ação do Espírito – nos con-figura totalmente em Cristo. E por ele seremos apresentados ao Pai. Criados, então, nele e por ele. E consumados nele e com ele como glória do Pai4.

Só por Cristo e nele, a criação passa a ter seu sentido: participar da glória do Pai. Levamos a imagem de Cristo impressa em nós – desde antes da criação

2 Cf. Redemptor hominis, nº 113 Cf. notas da Biblia de Jerusalém sobre este versículo4 Cf. LADARIA. Op. Cit. Pgs. 48-63

Page 4: THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH A IDENTIDADE DO SER HUMANO À LUZ DA FÉ THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH Hélcion Ribeiro * RESUMO:

122

– porque, tudo o que foi feito, o foi por ele desde o início. É ele quem, por seu Espírito, conserva nossa existência e a conduz à sua consumação.

Sem dúvida, a imagem de Deus - visível em Jesus histórico – alcançou grandeza sublime, mas ainda estava distante da dignidade que o próprio Cristo lhe confere. Quer dizer: a dignidade de Cristo em nós é muito maior que o próprio Jesus – considerado apenas historicamente. Santo Irineu dizia que o Filho preparou (criou) nossa carne (nossa humanidade) de tal modo que pudesse conter sua divindade. Com isto visava levar-nos a sua estatura de filhos de Deus.

A antropologia teológica do AT. é ampliada na antropologia cristã neotestamentaria e aí se revela todo o significado cristológico de pessoa humana. Daí pode-se afirmar toda pessoa é crística, por origem e destinação.

Toda pessoa é feita por ele e por ele elevada a glória do Pai.

O dever moral de nos assemelharmos a Deus e a seu Cristo, como “homens novos” – como ensina a Igreja – decorre exatamente dai e vai se manifestar através de nossas atitudes.

Desde a antropologia pode-se dizer que o amor de Deus pelo ser humano, possui três faces: a criação, a conservação e a consumação. Moralmente é uma só a resposta humana: viver a vida nova de Filho de Deus em Cristo pelo Espírito. Desde a criação levamos o sinal de Cristo, o Primogênito de toda a Criação, por ele somos feitos Filhos do Pai Eterno, e por ele haveremos de ver a Deus. Cristo oferece a todos os homens um testemunho perene de si mesmo (cf. Rm 1,19-20), (GS 12; DV 3). Esta relação do amor um trinitário de Deus tem sentido nitidamente cristocêntrico (cf. LG 38). Foi assim que o Pai nos quis predestinado à imagem de seu Filho primogênito em quem todos somos irmãos (cf. Rm 8,29).

Nós nos tornamos cooperadores de Deus (ver GS 34) co-criadores com ele em Cristo, por ele e com ele também; e o somos nós todos pela nossa vida e nosso trabalho. Estabelecendo uma relação de irmãos com todos os Filhos de Deus, a modo do amor trinitário, e a exemplo de Cristo.

Muitas vezes, nos textos bíblicos, aparece a expressão “nova criatura”. Nova porque se contrapõe à “velha criatura”. A “velha criatura” é o ser humano em seu pecado. O velho Adão é o ser humano pecador. Mas, em Cristo está o verdadeiro ser humano, sem pecado. Nele está o ser original e novo. Não o envelhecido pelo pecado. E isto faz uma diferença muito grande. Evidentemente quem é cristão (consciente) sabe, conhece o que significa viver em Cristo, ser “nova” criatura. Isto é um mistério que nos foi revelado exatamente em Jesus de Nazaré. Então, além de Cristo nos fazer seres humanos novos, também nos revela quem somos.

Page 5: THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH A IDENTIDADE DO SER HUMANO À LUZ DA FÉ THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH Hélcion Ribeiro * RESUMO:

123

A filiação divina

Por meio de Cristo, o Filho, constrói-se ainda outra identificação nossa: nós nos tornamos filhos de Deus. Esta categoria – Filho de Deus – é fundamental e é afirmada no batismo. Mas, não confunda: por causa de Cristo – desde toda a eternidade e pelo simples fato de nascermos, somos filhos de Deus. Jesus é o Filho Unigênito e/ou primogênito de Deus. Por meio dele todo homem e toda mulher também o são. O batismo – que tem diversas funções (p. e. introduzir-nos na Igreja) – torna consciente a cada pessoa sua filiação divina.

A expressão “filho” indica a especial relação nossa com Deus, pois tem em conta o aspecto mais intimo e profundo do ser: divino; a comunhão de pessoas.

Aqui há uma diferença radical dos outros seres existentes e nós. Enquanto pessoas somos filhos de Deus e nossa relação com ele é filial. Não por causa de nós. Foi Cristo quem repartiu – desde toda a eternidade (cf.. Ez 1,3 ss.) esta filiação adotiva, assumida pelo Pai. Deste modo como diz a GS: somos as únicas criaturas que Deus quis por si mesmas.

Teólogos há que seguem um raciocínio diverso: porque nos comportamos dignamente diante de Deus é que vivemos esta filiação divina. Nós afirmamos aqui: a causa da filiação está no tão grande amor de Deus por nós, que nos deu seu próprio Filho (e, pelo Espírito Santo, filhos no Filho). Isto é antropológico. A outra questão é moral: viver com dignidade o que somos5.

Especialmente nos textos bíblicos indicados, no item acima (3.1), vê-se muitas vezes a expressão “nova criatura” ou “homem novo” contraposto ao “velho homem”. Foi S. Paulo quem mais explorou este tema. Hoje em dia, quando os cristãos - católicos e outros – usam a expressão, o fazem quase só em sentido moral (e moralista). Isto é correto, porque quem recebe o batismo quando criança - por meio dos pais e padrinhos – ou jovem/adulto sabe pessoalmente, que assumiu explicitamente a condição de cristão. I. é: de seguidor (discípulo e missionário) de Cristo. E como tal deve viver está “nova” condição de vida.

Enfaticamente, a(s) Igreja(s) usa(m) esta linguagem (“novo” e “velho homem”) em referência aos sacramentos (batismo, penitência, unção dos enfermos), moral (e moralismo) e à membresia religiosa. Também se usa do fator de pecado original.

Quando se professa que todos os homens e mulheres nascem sob o signo do pecado original, a Igreja Católica não afirma que todos os seres humanos,

5 Cf. BRAMBILLA e ANCONA, op. cit.

Page 6: THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH A IDENTIDADE DO SER HUMANO À LUZ DA FÉ THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH Hélcion Ribeiro * RESUMO:

124

por natureza, nascem pecadores. Sabe-se que o pecado original só é pecado analogicamente. Ninguém é pessoalmente responsável por ele. Só se o é, por solidariedade moral. Por natureza, nós não somos pecadores. Só o somos por participação. Sem dúvida, pelo ensino da Igreja se sabe que “o pecado das origens” “debilita” o ser humano, em sua liberdade. Contudo, ao menos de Jesus e Maria a Igreja fala de modo claro que eles, desde a natureza, foram isentos do pecado. Convém sempre lembrar que Jesus só foi perfeito porque não pecou.

S. Paulo, na carta aos Romanos, para realçar a grandeza de Cristo, o contrapõe ao “velho Adão”, “o homem pecador”. O “homem velho” é o que está sob o jugo do pecado, do que não pode libertar-se sem a graça de Cristo. Ou seja: o pecador perdeu a liberdade de sair por si só de seu pecado. E aí só Cristo pode libertá-lo. Neste sentido, fica realçada a função redentora de Cristo. Só ele e por ele, é que se reconquista a liberdade sempre comprometida pela concupiscência, mas também sempre amparada pela graça. Deve-se dizer, pois, que só Cristo faz “nova” a criatura, só ele nos liberta de nossos pecados.

O homem, “criatura nova” 6

Deve-se, agora aprofundar duas questões, antropologicamente pouco estudada. A primeira está muito presente, mas quase só sob o prisma da moral. Aqui é necessário ter presente que não vamos considerar os pecados morais e nem afirmar a historicidade do senhor Adão que com sua esposa Dona Eva, cometeu o pecado original. Também para S. Paulo, “Adão” é: a) em geral o símbolo da humanidade (homem natural); b) às vezes, símbolo da humanidade pecadora; c) também símbolo do ser humano sem Cristo, ou melhor, do que o nega. A segunda questão: Cristo foi constituído por Deus como o salvador da humanidade já antes da criação. É importante recordar que salvar/salvação tem dois sentidos: salvar do pecado (sentido negativo) salvar para a vida eterna (sentido positivo).

Quando o Verbo se encarnou, encontrou o ser humano ferido pelo pecado e “impotente” diante da liberdade. Daí transparece a necessidade histórica da salvação Cristo. Ele nos restituiu, pela graça, a vida nova. Neste sentido, ele fez “novas criaturas” todos os que viviam sob o domínio do pecado. Ele continua salvando do pecado todo homem e toda mulher, que ab-usa de sua liberdade e se escraviza no reino do pecado. Jesus foi um homem livre. Usou a liberdade dele para dedicar-se totalmente a Deus. Por esta razão não pecou. Jesus – o que não pecou porque era livre – mostra a possibilidade, com a graça de Deus de se evitar o pecado.

6 Estas ideias são desenvolvidas mais extensivamente em meu livro: ensaio de antropologia cristã. Petrópolis: Vozes, 1985, especialmente cap. III.

Page 7: THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH A IDENTIDADE DO SER HUMANO À LUZ DA FÉ THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH Hélcion Ribeiro * RESUMO:

125

Mais ainda: ele quer nos salvar para a vida com Deus. Salvar aqui quer dizer, sob a força do Espírito, ele quer nos levar à realização plena. Quer nos colocar diante de Deus face-a-face. É ele que, salvando-nos, nos leva à realização plena: ver a glória de Deus.

Como todo ser humano foi criado para ser salvo, mesmo tendo o dom da liberdade, sofre impactos da tentação – como Jesus. Ninguém é obrigado a cometer pecado(s) e nem a ser pecador. Dizem que Sta. Terezinha do Menino Jesus afirmava que desde os 4 anos de idade, nunca cometeu nenhum pecado mortal. Deus nos fez a caminho da perfeição; não nos fez imperfeitos, nem perfeitos, mas perfectíveis7. Para isto é radical a colaboração da graça de Deus, por Cristo no Espírito Santo.

O ser humano é nova criatura porque nascido em Cristo, dele e por ele. Originalmente, ele é o modelo. Ele é a imagem visível do Deus invisível. Sto. Irineu nos ajuda aqui outra vez: O modelo, só apareceu recentemente. O primeiro Adão apareceu antes do original. O primeiro Adão é a humanidade histórica que o AT conheceu e chamou “imagem de Deus”. “Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou seu próprio Filho, nascido de mulher” (da humanidade em geral e de Maria, em particular). No homem Jesus, encontramos Deus mesmo. No mistério do Verbo encarnado viu-se o homem tão humano que era Deus. Aquele que existia desde toda eternidade – o Verbo – uniu-se profundamente à humanidade e foi um de seus filhos. Após a morte, Deus o ressuscitou e revelou que aquele seu filho amado era (é) o homem original, sua imagem visível e pensado desde toda a eternidade para que um dia se manifestasse entre nós, como um de nós. Era o primeiro e o verdadeiro Adão, mesmo que só aparecido depois, como Cristo. Ele, o primogênito de toda criatura, era o “novo”, mesmo que só tenha aparecido recentemente (há 2000 anos)8.

Nem todo o significado da palavra “novo” transparece na língua portuguesa. O “novo” é o original, o primeiro, o autêntico. Aqui não é a questão de tempo; mas de perfeição. Cristo – que nos revela em si e por sim, quem somos verdadeiramente – é o protótipo do ser humano. Porque somos de sua origem e de sua vida, também somos “novas” criaturas. O que nos envelhecem são a idolatria e o pecado; não a idade, nem o tempo. A graça de Deus é dom de Deus que pode nos manter sempre novos, como Cristo, mesmo vivendo na história.

Resumindo, antropologicamente - antes que em aspecto moral - somos novas criaturas em Cristo, porque feitos nele, por ele e para ele. Com a graça de

7 Esta é uma das grandes intuições de Sto. Irineu, e que perpassa toda a sua obra, especialmente a Demonstração da fé e Irineu de Lião, S. Paulo: Paulus, 1995.

8 Convêm recordar que o homo sapiens tem uns 150.000 anos).

Page 8: THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH A IDENTIDADE DO SER HUMANO À LUZ DA FÉ THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH Hélcion Ribeiro * RESUMO:

126

Deus, podemos nos manter nesta história de salvação como “criatura nova”. Os cristãos têm a consciência deste mistério que só agora foi-nos revelado, e que estava oculto aos próprios anjos. O mistério da “nova criatura” em Cristo vem desde antes da criação. Foi-nos revelado em Jesus de Nazaré. A Igreja ensina que Deus salva misteriosamente, de um modo só conhecido dele, também aqueles que fazendo o bem e seguem reta consciência.

A filialidade por vontade de Deus

Nosso tema é a identificação do ser humano à luz da revelação (cristã). Somos criados, em Cristo, por Cristo e para Cristo, somos nele “novas criaturas”. Agora queremos aprofundar nossa filiação divina. Somos filhos de Deus. Aliás, dizer que os homens são filhos de Deus (ou dos deuses) é uma atitude frequente nas religiões. Os cristãos, porém, dão a esta identificação um sentido peculiar. Jesus, pelos evangelhos sinóticos, revela um sentido novo da paternidade de Deus e de nossa filiação. Há uma diferença fundamental, revelada pelo próprio Jesus entre ele e nós (cf. Mt 5.45; 25,34; Lc 24,49). São Paulo elabora teologicamente melhor nossa condição de filhos. O fundamento da filiação não é a criação, mas a adoção. Jesus é filho único de Deus mesmo que se fale dele como unigênito ou primogênito. Nós o somos porque Deus se torna nosso Pai, através do seu Filho.

Surgem aqui novamente questões antropológicas e pneumatológicas, mas não necessariamente jurídicas. É claro, haverá também uma dimensão moral na filiação, mas isto é uma abordagem da teologia moral. É preciso retornar à reflexão antropológica.

Deus, por meio de seu Filho, nos eleva à condição de filhos; infunde em nós uma vida nova, guiados pelo seu Espírito. (cf.Rm 8,15-23; Gal 4,1-7; Ef 1,5). 9

Em Ef 1,3-14, encontramos o texto mais importante deste tema. O texto sagrado faz uma grande e majestosa síntese da filiação divina, fundada na gratuita eleição do Pai, que nos adota por meio de seu Filho, nos concede como dom o Santo Espírito, como garantia da herança a ser recebida. O evangelista João acentua não tanto o aspecto moral (fazer-se filho), mas a realidade ontológica (ser filho). A filiação é um dom que vem do alto (Jo 3,7). Não somos chamados a ser, mas o somos realmente. Mesmo que isto ainda não se tenha manifestado (cf. 1Jo 3,1-2). Não nos tornamos filhos pelo nascimento, nem pelo agir (vontade da carne ou do homem). É a gratuita bondade de Deus que nos elege (Jo 1,13). Segundo João, somos filhos de Deus, não da Trindade, por sermos irmãos de Jesus (Jo 20,16-17) e nascidos do Espírito (Jo 3,8).

9 Sobre a vida nova, ver também: Gal 1,4-5; Ef. 5,20; 2Tes 2,15-16.

Page 9: THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH A IDENTIDADE DO SER HUMANO À LUZ DA FÉ THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH Hélcion Ribeiro * RESUMO:

127

Também, “somos feitos sua herança” (Ef 1,13). Ser filho implica de modo inseparável em ser herdeiro. “Se nós somos filhos, logo somos também herdeiros, herdeiros de Deus e coerdeiros de Cristo, se é certo que com ele padecemos, para que também com ele seremos glorificados” (Rm 8,17). Esta herança vem ligada a herança/benção de Abraão (Gal 11,7). E culmina a fortificação da herança dos santos na luz (Col 3,24; 1Pe 1,4).

A fraternidade universal

Sendo criaturas em Cristo, ele nos faz sermos “criaturas novas” e nos torna filhos adotivos de seu Pai. Surge, então, naturalmente a questão da nossa fraternidade em Cristo e com Cristo. Se todos somos criados nele, então somos todos os homens e mulheres irmãos uns dos outros. Se todos temos a filiação comum, então também temos a fraternidade em comum. Todo homem e toda mulher são irmãos entre si, independentemente do tempo, do lugar, da situação socioeconômica.

A fraternidade universal é um dom do alto, porque Deus se fez o Pai comum e ele no-la concede como um dom e uma tarefa. Esta fraternidade não está circunscrita à comunidade dos crentes. A filiação divina institui um estatuto universal entre todas as pessoas e se manifesta de modo concreto no amor ao próximo (Mt 5,44ss.; 2 Pe 1,7) – para os seguidores de Cristo impõe-se inclusive como amor aos inimigos. Toda diferença deve moralmente ser superada nas questões raciais, nacionais, sexuais, econômicas, etc. porque dos povos divididos Jesus Cristo fez um só povo: o povo de Deus.

O fundamento da fraternidade humana está em Cristo Jesus, além da nossa filiação universal; pois Jesus Cristo é quem une e unifica todos os homens e mulheres da história. Ao assumir a carne humana, este Deus se fez nosso irmão. A leitura antropológica desta afirmação cristológica fica assim: Deus é nosso irmão, ou somos irmãos de Deus. Jesus mesmo afirma isto inúmeras vezes (cfr., Mt 12,50; Mc 3,34; Hebr 2,11; Lc 8, 21; Hebr 2,11-17). É esse o sentido que S. Paulo deu ao falar do mistério escondido até a vinda de Cristo: todos os homens são chamados à salvação universal: “Esse mistério, Deus não o fez conhecer aos homens das gerações passadas, Mas acaba de revelar agora pelo Espírito, aos santos apóstolos e profetas; os pagãos são admitidos à mesma herança, são associados à mesma promessa, em Jesus Cristo, por meio do Evangelho”. (Ef. 3, 5-6)

Assumindo a natureza humana o Verbo se fez em tudo igual a nós. Isto quer dizer: ele se tornou membro da família humana (cf. Mt 1,1-17; Lc 3,23-28).

Page 10: THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH A IDENTIDADE DO SER HUMANO À LUZ DA FÉ THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH Hélcion Ribeiro * RESUMO:

128

O texto de Gal 4,4 “nascido de mulher” implica em afirmar “filho da humanidade”. Portanto, o irmão universal. Deus o constitui primogênito. Ele é o irmão maior com os direitos e deveres de primogênito (cfr., Ex 13,2; 34,19; Lv 27,26; Nm 3,13: Dt 21,17; Ne 10,36). Somos irmãos de Deus, Deus é nosso irmão, porque ele quis pertencer a nossa família, a fim de nos fazer participar também de sua família: a Trindade. Esta irmandade em Cristo não é consequência de nossos atos, mas um dom prévio de Deus e que nem por isto nos converte em Deus ou deuses. A fraternidade, intimamente relacionada à filiação, indica a igual dignidade e a solidariedade universal. Ela é um processo. Pois não somos nem perfeitos, tão pouco imperfeitos, mas processualmente em construção, em aperfeiçoamento.

Fundada com Cristo, nosso irmão e na fraternidade dos filhos de Deus, a fraternidade universal cria entre os irmãos a consciência e a responsabilidade ética de todos por todos. E da experiência judaico-cristã, surge um parâmetro especial: os pobres. São milhões e milhões os pobres da terra, irmãos de todos. No AT., Deus se volta em primeiro lugar para os pobres; Jesus, que passou pelo mundo fazendo o bem (cf. At 10,38), também nos legou este princípio.

Em nossa identificação (criados em Cristo, “nova criatura”, a filhos do Pai de Jesus e irmãos universais), a teologia baseou-se, sobretudo, na bíblia neotestamentária. Por outro lado, deve ter percebido que também o NT não tem uma linguagem conceitual, filosófica, ela é, sobretudo descritiva. Em terceiro lugar, a antropologia cristã não se esgota nestas grandes idéias.

Um ser total (holístico)

E a questão do ensino bíblico a respeito da alma e do corpo? A resposta deve ser buscada mais na filosofia que na bíblia – apesar do que a Igreja também frequentemente tenha se deixado influenciar pelo helenismo. São Paulo até fala sobre o corpo e alma do ser humano. Ele, porém, não usa os conceitos gregos. E, inclusive, chega a falar de corpo, alma e espírito humanos (1Tes. 5,23). A tricotomia paulina é uma descrição do ser humano e não uma definição. São Paulo faz uma teologia eminentemente cristológica, sotereológica. É daí que decorre a sua antropologia. Ao falar do ser humano, na verdade, discorre sobre Cristo. Isto quer dizer: não faz antropologia em si. Antes têm, neste sentido, intenções cristológicas pastorais e, inclusive, morais. Por isto, predominam as dicotomias em S. Paulo: velha/nova criatura, segundo a carne/segundo o Espírito, homem carnal/homem espiritual, desde o pecado/desde a justificação etc. No mais, como a bíblia, ele sempre vê o ser humano à luz de Deus (à luz de Cristo no NT). É por isto, que utiliza a linguagem da antropologia bíblica.

Page 11: THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH A IDENTIDADE DO SER HUMANO À LUZ DA FÉ THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH Hélcion Ribeiro * RESUMO:

129

A antropologia bíblica, em sua linguagem, é sempre descritiva. E com frequência fala de um aspecto do ser humano para indicar o todo. Assim palavras como rim, coração, corpo, alma, espírito, mão, sangue, ossos, vísceras etc., sempre tem mais o sentido de indicar o todo pela parte. Por exemplo, no AT quando Deus manda “cingir os rins” para a batalha, está se querendo dizer: “prepara-te ó homem, para a luta entre Deus e os ídolos”.

A linguagem antropológica do AT, por outro lado, não tem o mesmo sentido semântico atual. Ela muitas vezes é polissêmica, isto é: tem vários significados para expressar as realidades humanas; é sinonímica, i. é: utiliza diversos termos para expressar a mesma realidade. É simbólica: muitas vezes um simples órgão do homem representa o homem inteiro. É representativa, i.é: os termos não têm a rigorosa função que hoje nós lhe atribuímos, mas expressam diferentes atividades humanas. Por fim, deve-se também fazer menção às questões de tradução. Nem sempre a palavra traduzida tem o significado real da língua original. Deste modo, a tricotomia paulina (diferente da dicotomia grega) é a ocasião de entender a realidade humana sob um aspecto ou tal palavra servia para ressaltar um aspecto da totalidade.

A pessoa humana é, pois, uma totalidade complexa, pluridimensional, aberta as relações com Deus (principalmente), com os outros e com o mundo. É uma realidade relacional dialógica. Não é uma constituição ontológica (como os gregos). As categorias corpo-alma-espírito (“nephes”, “bazar” e “ruah”) exprimem relações constitutivas da experiência humana.

a. Um ser vivente (“nephes”). O tema “nephes” indica a vida no seu sentido mais geral, inclusive aplicada aos animais. No caso do ser humano, a “nephes” é o sentir vital da pessoa na sua individualidade, É o eu como subjetividade, aberto às relações com tudo que o circunda e transcende. O termo não pode ser entendido de modo unívoco, pois muitas vezes se justapõe ou sobrepõe a outros. “Nephes”, que indica vida, primitivamente na natureza física, bem concreta: parte do corpo que une a cabeça ao tronco (pescoço, a garganta). Por ali passa a respiração, sem o que o ser humano morre10.

A expressão hebraica “nephes” foi traduzida em 600 casos para o grego dos LXX como “psyche”, e daí ao latim e outras línguas ocidentais como “alma” ou “anima”. Isto não foi nem uma boa tradução nem boa interpretação.

10 O termo bíblico em Sl 69,2 foi empregado diferente do Sl 124,4-5; Nm 21,5; nos seguintes conjuntos “nephes” pode ser entendido como respiração Jr 15,9; Jó 11,20; 41,13; como princípio vital, a vida em si: Ex 4,19ª; 1Sm 9,11b; Jó 30,16; Lam 2,12; como impulso vital Pr 10,3; Dt 12, 15,20-21; Sl 35,9; 1Sm 1,10; Ex 15,9; como individuo concreto Jos 11,11; Nm 6,6; Lev 19,28; como pronome pessoal Gn 12,13; 1Pe 20,32.

Page 12: THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH A IDENTIDADE DO SER HUMANO À LUZ DA FÉ THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH Hélcion Ribeiro * RESUMO:

130

Desde a bíblia, o ser humano é “nephes” e não tem “nephes”. Isto significa que ele é um ser vivente; Já para os gregos e latinos, a alma é um componente do homem: o homem tem alma.

b. Um ser terrestre, frágil, mortal (corpo) ·.

“Basar” indicada esta realidade. “Basar” é a realidade humana sob o aspecto de fragilidade e caducidade, a finitude estrutural do ser humano. Indica também, em sentido negativo, a carne, o egoísmo, o pecado, a posição a Deus e ao espírito; em sentido positivo indica o corpo. “Basar” pode identificar-se com o corpo físico (2Re 5,10; Ez 37,6; Ex 28,42; Jó 6,12; Sl 109,24; Nm 19,7); como sede dos sentimentos (Jô 14, 22; 21,6; Sl 16,9; Sl 84,3; Sl 63,2); como pessoa inteira ou sinônimo de homem (Jr 17,5; Gn 6,3); como debilidade física ou moral (Jó 34; 14-15; Is 40,6-7; Pr 5,11; Gn 6,12).

“Basar”, na versão grega dos LXX, foi traduzido, do modo indistinto, por “sarx” e “kreas” significam “carne”, “corpo biológico”. E este sentido passou para o latim e as demais línguas ocidentais. Isto não significa algo externo, biológico ou físico; pois Deus se fez humano. O corpo – no sentido bíblico – pode ser carnal ou espiritual instrumento do Espírito ou do egoísmo. Pode ser corpo espiritual ou corpo de pecado. Ele é sinônimo de pessoa na sua concretude. A relação do ser humano com os outros e com o mundo se faz pelo corpo (“basar”). Neste sentido é o ser humano que demonstra sua solidariedade (ou egoísmo). É o ser humano que necessita da salvação de Deus e expressa sua condição humana, no ecossistema e cosmo.

“Basar” é o único termo hebraico para designar o “corpo” do homem (umas 50 vezes). Também é aplicado ao corpo morto, ao cadáver (2Re 4,3; Ez 32-5; Sl 79,2).

c. O portador do sopro divino. Como imagem de Deus, o ser humano recebeu o “sopro divino”, a” ruah”. “Ruah” qualifica a interioridade (“nephes”) e as relações sociais (“basar”) do ser humano. É o principio da vida religiosa e moral (Ez 11,19-20; Zac 12,10). Significando originalmente ar, vento, álito vital, força vital, o termo exprime a convicção que a força que mantém vivo o ser humano vem só de Deus. sem ele, o homem volta a ser pó e morre (Jó 34,14-15). O fundamento da vida humana com Deus está na “ruah”. Por ela, Deus faz as pessoas virem à vida (criação) e se Deus a retira, o homem não o verá (não se salvará).

Neste termo, há uma plurissemia também, ao analisar as variações bíblicas: como “vitalidade” ou “potencia vital” (1Sm 30,12b; Gn 7,105; Gn 6,3; Jo 4,14-15; Sl 104,2a), sede das paixões ou “aflitos do homem” (Gn 26,35; 1Re 21,5; Is 54,6;

Page 13: THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH A IDENTIDADE DO SER HUMANO À LUZ DA FÉ THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH Hélcion Ribeiro * RESUMO:

131

Ex 21,22); sede de projetos e decisões (Is 29,24; Ez 11,5; Ex 35,21; Nm 14,24; Sl 77,7), em sentido escatológico (Ez 11,19). “Pneuma” é a versão grega dos XXX para “Ruah”. Daí para as demais línguas ocidentais como “espírito” – palavra que indica um conceito particular. Ele, por não ter correspondente em nossas línguas, presta-se a confusões.

Há inúmeros outros conceitos, na mentalidade bíblica, além destes três fundamentais que São Paulo usou que aludem à realidade humana. Identificá-los, compreendê-los também é importante num estudo aprofundado sobre a antropologia bíblica. Apenas vamos citá-los, como ilustração. “Leb” / “lebad” (centro da atividade sentimental e espiritual, ele foi traduzido como “kardia” – coração) é o primeiro. Outros mais são: “dam” (sangues), “neshamah” (respiração), “me’im” (vísceras), “janim” (rosto), “ro’sh” (cabeça).

Ser imagem e semelhante a Deus

Há uma admirável riqueza de expressões na antropologia para falar sobre o ser humano. Mas sua linguagem não tem a precisão de certas outras línguas e/ou conceitos, como o grego ao falar da constituição do homem em corpo e alma.

Podem-se formular ao menos duas questões: 1), mas a bíblia não usa a expressão “homem”? - O que se deve entender então? (2) porque então na Igreja e no cristianismo se usa a palavra “homem” e até as categorias de corpo e “alma”?

Façamos uma introdução ao tema, primeiramente.

Quase todas as vezes que encontramos a palavra “adão”. Ela deveria estar escrita em letra minúscula. Ela, na bíblia, é, sobretudo, um substantivo genérico e coletivo. Não como nome de uma pessoa. Assim, “adão” é usado (562 vezes). A etimologia não é muito segura. Porém, se aceita que ou deriva da raiz “adamah” (terra), em referência ao elemento material, do qual havia sido feito. Ou se relaciona com “adam” (vermelho, escuro, moreno) aludindo à cor escura da pele, da gente médio-oriental. Note – que algumas vezes é usado para designar nominalmente um ser humano – o primeiro dos viventes (cf. Gn 40,25; 5,1-5; 1Cron 1,1).

“Adão” na bíblia, diz C. Spicq, significa a natureza adamítica. Ela vincula os seres humano entre si, com suas qualidades, história e destino. Este seria o sentido do II Henoc 30,13: “Eu lhe dei um nome composto dos quatro pontos cardeais: Leste, Oeste, Norte e Sul: A para Anatalé, D para Dúsis, A para Arhos e M para MesemBria” 11. Alguns dizem que “adão” foi feito com um punhado de terra tirado

11 Cf. Spicq. Dio e l’uomo secondo il Nuovo Testamento. Roma: Paoline, 1969, pág. 183. Veja também meu Da imagem à semelhança. Ensaio de Antropologia Cristã. Petrópolis: Vozes, pg. 53ss.

Page 14: THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH A IDENTIDADE DO SER HUMANO À LUZ DA FÉ THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH Hélcion Ribeiro * RESUMO:

132

dos quatro cantos do mundo. A palavra “ish” significa varão, marido, ser humano. “Ishâh” é o correspondente feminino e designa a mulher, a fêmea. São usados no plural e no singular 2160 e 775 vezes respectivamente. Também, os israelitas usaram a palavra “enõsh” (45 vezes) por indicar o homem, para significar “ser débil” ou ”ser social”; outras vezes tem o sentido de “serem fortes”, os homens (todos ou só alguns), humanidade.

Como já se afirmou. a bíblia não tem a moderna concepção semiótica das palavras. Ela as usa como significados, não como definições ou conceitos. Por outro lado também não é um livro de teologia, mas narrativa da história da salvação. Por isso, sua preocupação é com o ser humano real e a humanidade toda no processo salvífico. Ela se ocupa do ser humano a partir da história que Deus faz com ele. Ela conta isto ao usar recursos linguísticos, literários e culturais de sua época. A concepção positiva e filosófica não lhe pertence. Isto, todavia, não significa desinteresse pelo ser humano. Bem pelo contrário. Pois o único interlocutor de Deus é ele. E a bíblia só descreve o ser humano histórico, marcado pelo seu passado e projetado para o futuro, desde uma concepção teológica.

A dramática vida humana sobre a terra, na bíblia, é contada e recontada muitas vezes. Ela adquire um caráter mítico, um caráter simbólico e/ou exemplar, que permite narrar fatos com significado universal – sobretudo os 11 primeiros capítulos do Gênesis. O ser humano, em síntese é um ser vivente – por obra de Deus – capaz de relacionar-se com ele. De receber uma missão na administração da criação toda. De ser marcado, mesmo na diferença do homem e mulher, por uma igualdade fundamental. Além da missão sobre a terra e a parceria com Deus, ele tem um destino divino.

O ser humano, muitas vezes, é um ser frágil, ambíguo. Pode tornar-se idólatra, abandonando o único Deus, verdadeiro e fiel à aliança comum. Mesmo assim, ele é um ser de cuidados divinos. Deus tem por ele particular solicitude. Apesar das aparências em contrário e da insatisfação diante das respostas tradicionais, ele se convence que Deus lhe prepara um destino ultraterreno feliz.

Agora é importante retornar a um tema (quase o único, talvez) que se traz da catequese: o ser humano foi criado por Deus a sua imagem e semelhança. A afirmação é encontrada no Gn 1,26-27. E ela se tornou clássica em nossas igrejas: o ser humano é imagem e semelhança com Deus. Mesmo que tenhamos já antecipado que Jesus é a imagem visível do Deus invisível, que ele é o modelo original, “novo” e que só apareceu na encarnação do Verbo – convém voltar ao tema do ser humano como imagem e semelhança.

Page 15: THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH A IDENTIDADE DO SER HUMANO À LUZ DA FÉ THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH Hélcion Ribeiro * RESUMO:

133

A bíblia, em geral, usa “quase” como sinônimas estas duas palavras (“selem” e demut”, em grego). Na patrística, vários Stos. Padres, entre eles Sto. Irineu, deram um sentido diferente: feita à imagem de Deus, o ser humano vai se tornando – pela ação do Espírito Santo – semelhante a ele, até podê-lo ver face-a-face.

Já é tradição bíblico-histórica compreende-se o ser humano como imagem de Deus. Enunciaremos aqui esquematicamente algumas ideias, a título de introdução ao tema. A palavra “selem” designa o que, mais-ou-menos, entendemos por imagem, e “demut” significa a semelhança. “Selem” aparece na bíblia 17 vezes e “demut” 25 vezes. Significa estátua de um ser divino – estátua de deus ou representação de Deus ou representante de Deus. No caso imagem humano representa Deus.

Alguns Stos. Padres davam-lhe dois sentidos à expressão “imagem e semelhança”. Sentido funcional: é imagem e semelhança porque o Senhor confiou ao ser humano uma missão/benção. A pessoa humana será o representante de Deus diante da criação toda. É o lugar tenente de Deus. Assim, o que o caracteriza é o agir humano no lugar de Deus e como Deus age. O outro é o sentido relacional: é imagem porque está relacionado a Deus. Daí derivaria a dignidade do ser humano. Só ele pode fazer companhia a Deus. Ele responde e fala com Deus. É seu interlocutor. O “tu” de Deus. Muitos se perguntaram, na história da fé, se a imagem que o ser humano é ou, está no corpo, na alma, no espírito. As respostas foram as mais diversas.

Talvez, a discussão hoje não faça sentido. Como não o fez na bíblia. Importante é afirmar e crer: a) todo homem e toda mulher – independente de qualquer situação – são imagens de Deus; b) e por isto, tem confirmado sua dignidade.

Em outro sentido, é preciso compreender:

a) o ser humano não é Deus, mas sua imagem;

b) porque foi criado assim;

c) ele é interlocutor de Deus;

d) é naturalmente bom, mas ainda não perfeito (nem imperfeito). Deve crescer e se aperfeiçoar;

e) a imagem de Deus está em todos e em cada um em particular.

O ser humano, porque é imagem de Deus, não se esgota dentro do universo cósmico. Ele é chamado a transcender-se. O pecado pode até machucar, mas nunca eliminar a imagem de Deus, que cada um traz em si. No ser humano ferido,

Page 16: THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH A IDENTIDADE DO SER HUMANO À LUZ DA FÉ THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH Hélcion Ribeiro * RESUMO:

134

machucado e empobrecido, também permanece a imagem de Deus – mesmo que mais próximo do Deus crucificado. A imagem de Deus está no todo do nosso ser e, portanto, ela se manifesta clara e límpida, nobre e santo; ou ferida e empobrecida, idolátrica e pecadora em cada um de nós. É claro que homem e mulher, rico ou pobre, branco ou negro etc., todos somos imagem de Deus.

Sendo imagem de Deus, o ser humano sempre reflete – mesmo se se está em pecado – a sua origem. Em outras palavras somos abertos (a Deus). Somos feitos para a comunhão inter-humana. Somos dotados de liberdade, responsabilidade e comprometidos com o meio ambiente e o cosmo todo. Porém, podemos “carregamos” em nós – seres humanos concretos, corporais - a realidade espiritual que é Deus.

Diversos teólogos afirmam que a plenitude da imagem e semelhança com Deus se evidenciará na consumação do mundo. Outros dizem que o Verbo se fez humano para que nos divinizar. Divinização significa também: deificação ou santificação. Para o ser humano atual, desde a teologia, pode-se falar da realização plena como ser humano, ou a humanização completa em Deus. De qualquer forma, uma ou outra – além da contribuição humana – é uma radical ação do Espírito de Cristo. E isto é motivo de louvar a Deus.

O ser humano é, por natureza, social. Ou o ser humano como comunidade

É comum entre nós, cada vez mais pensar-se a pessoa humana como individualidade. Cada um é seu eu mesmo, sozinho. E nesse “eu” ele se identifica. Esse eu até pode ser igualmente o “meu grupo”, “a minha casa”. Evidentemente cada pessoa é um ser singular, único, insubstituível e amado por Deus em sua realidade pessoal. Todavia, ninguém é ilha. Nós todos somente podemos dizer “eu” por coexistir com os outros. Somente eles é que vão dar consistência a nossa realidade pessoal. Porque nossa existência sempre o é em comunhão. Nós existimos com os outros: co-existimos. Deus nos criou como “sócios”, isto é como homens e mulheres que vivem juntos. Somos os companheiros de jornada. Companheiro é uma palavra cuja origem vem de “cum pannis”. A expressão latina quer significar: aqueles que repartem em comum o pão, que comem juntos. Somos sócios de Deus e de uns para com os outros.

Na história humana há um espaço adequado tanto para a individualidade quanto para a coletividade. Nenhuma pode ser um absoluto sob pena de criar anomias ou anomalias humanas. O equilíbrio entre o pessoal e o societário é uma tensão dialética importante para a pessoa na história. Nos últimos, tem-se vivido

Page 17: THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH A IDENTIDADE DO SER HUMANO À LUZ DA FÉ THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH Hélcion Ribeiro * RESUMO:

135

precariamente esta positiva tensão. Por um lado, a ênfase nos indivíduos como fonte de consumo e autossuficiência oportunizou e oportuniza ao sistema liberal (seja filosófico, político e, sobretudo econômico) a negação prática do valor da sociedade. Põe em risco uma série de fatores sociais, que a duras penas os povos conquistaram. Neste início de século, são poucas as pessoas e/ou instituições que criticamente podem fazer frente à desenfreada voragem de tal sistema.

Nenhum homem/mulher é só. O ser humano con-vive e se redefine para além de sua realidade individual, para além da relação “eu-tu”, e para além da relação “eu e minhas circunstâncias” mediatas. Somente a pessoa na comunidade aberta, formada de outras pessoas (conhecidas ou não), torna-se o símbolo vivo da realidade que é a pessoa humana. Ainda mais: o ser humano é verdadeiro só numa comunidade aberta para todos e para o divino. Isto o completa e o faz ser pessoa humana total. O ser humano é um nó de relações que se explicita desde dentro de si mesmo até o encontro com as diversas possibilidades sociais e a realidade divina. “O individualismo da era moderna expôs a pessoa humana a um isolamento angustiante”12. Criaram-se grandes espaços para o liberalismo que privilegia o individualismo, desde o econômico até o religioso. Mesmo as descobertas do “personalismo” e do “solidarismo” não foram suficientes para aquilatar o papel humano do comunitário. Aí, ainda estão presentes o desejo da realização individualista, o consumismo, a salvação individual (salva tua alma!), etc., como formas de plenitude humana. “Do ponto de vista teológico, são responsáveis por isso a análise racional aristotélica, o pensamento estático, o método da síntese puramente lógica, o juridicismo e influências da Reforma. Em consequência, o mistério da unidade e da comunidade já não é compreendido numa visão totalizadora e intuitiva. A este individualismo também cabe parte da culpa num certo estado de fraqueza espiritual da vida da Igreja”. 13

A tendência de considerar ontologicamente a pessoa humana (o homem enquanto essência) fez perder o passo Existencial da vida (quem é esta pessoa humana diante de mim? - ou quem está lá mais além de mim?). Também à medida que o indivíduo ficou anulado descaracterizou-se a pessoa humana. A tendência de fazer valer o todo pelas partes, querendo hipostasiar na comunidade o valor dos indivíduos, propicia a sua desconsideração e a supremacia de um todo que não é real senão pelos particulares. A comunidade não existe separada dos indivíduos. O singular não tem sentido na solidão.

12 HOLZHERR, G. O homem e as comunidades. In Mysterium salutis II/3. Petrópolis: Vozes, 1980, pg.181

13 Ibidem

Page 18: THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH A IDENTIDADE DO SER HUMANO À LUZ DA FÉ THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH Hélcion Ribeiro * RESUMO:

136

Ninguém singularmente esgota a afirmação judaico-cristã de que a pessoa humana é a imagem de Deus. Só coletivamente a imagem acontece. Contudo, só quando homens e mulheres formarem o corpo definitivo de Cristo, apresentado ao Pai (cf. 1Cor 12,12-30; Ef 4,4-16), é que se realizará a plenitude da imagem e semelhança.

A Igreja católica recuperou tal perspectiva teórica no Concilio Vaticano II, particularmente nos documentos LG e GS: “Em qualquer época e em qualquer povo é aceito por Deus aquele que O teme e pratica a justiça (cf. At 10,35). Aprouve, contudo a Deus santificar e salvar os seres humanos não singularmente, sem nenhuma conexão uns com os outros, mas constituí-los num povo que O conhecesse na verdade e santamente O servisse. Escolheu para isto Israel como o seu povo (...). Foi Cristo (...) quem constituiu o novo Povo de Deus” (LG 9).

Em muitas culturas o indivíduo só tem valor por causa de sua referência à comunidade. Separado dela é um ninguém. Os valores comunitários (fundados solidariedade) e a dignidade das pessoas singularmente ou em seus grupos primários (fundados na subsidiariedade) é que estabelecem o sentido primário maior da história, caracterizando a dimensão profunda da pessoa humana. A comunidade, então, é a fonte e o garante da dignidade pessoal na história intramundana.

Ainda não somos quem seremos

Deus não poderia ter-nos feito perfeitos. Isso seria contraditório, pelo simples fato de Ele nos “ter feito (criado) no tempo – na relatividade nossa. Temos um começo e Deus não tem origem, é eterno. Mas, Ele nos criou perfectíveis. Isto é, Ele nos amou com um amor particular. O criador criou esta sua criatura para que ela lhe prestasse culto, agisse em seu nome em meio a toda a outra criação. Tal ideia não nos dá o direito de nos sobrepormos sobre aos demais também seres criados. Tampouco nos dá o direito de usar e abusar das outras vidas. Somos pó da terra com todos os outros animais e com a própria natureza. Porém, Ele nos quis de um modo particular, singular, ao nos criar a sua imagem e semelhança: os únicos seres assim criados e desejados. Criou-nos à imagem de seu próprio Filho que viria se mostrar como Deus visível entre nós, a fim de sabermos quem somos.14 Inclusive no contexto da criação. Todavia, como afirma São Paulo: nós ainda nem sabemos o que seremos. Mas, quando Cristo se manifestar, então o veremos face-a-face e saberemos quem somos e a que fomos chamados.

14 JÜNGEL, E, O homem que corresponde a Deus in GADAMER, H.G. e VOGLER, P. Antropologia filosófica. S. Paulo: Edusp, 1977. Cap10, pg. 235- 296.

Page 19: THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH A IDENTIDADE DO SER HUMANO À LUZ DA FÉ THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH Hélcion Ribeiro * RESUMO:

137

Hoje, todos nós sabemos que ninguém escapa da morte. Todos somos mortais. A mortalidade atinge nossos corpos. Nossa corporeidade é bem mais provisória que nós mesmos. Não porque os gregos intuíram isso antes de Cristo ter estado entre nós. Mas todos nós professamos a fé nas promessas do Pai: sabemos que somos feitos para a eternidade. A morte nos atingirá de modo profundo, radical. Ela destruirá nossos corpos mortais, tentando nos aniquilar. Todavia, ela será perdedora nesse embate. Deus é maior que tudo. Pois, sabemos pela fé, que podemos esperar a ressurreição. Não é a ideia grega sobre a imortalidade15 que nos alimenta.16 Mas, é a fé na ressurreição do Senhor, e a certeza decorrente de que o mesmo Deus nos ressuscitará. Não só nos ressuscitará como nos fará vê-Lo face-a-face, fazendo-nos viver em seu coração uma vida que não mais se acabará. Se vivemos e, em parte, somos frutos da história, Deus nos chamou – por meio de seu Filho, de quem somos herdeiros - a uma vida que é eterna. Só aí saberemos e modo definitivo quem somos e porque viemos à vida.

Daí, a nossa identidade é sempre algo a ser construído nessa história e para além da história. Mas, só Deus, dar-lhe-á o acabamento definitivo, através da ressurreição e da vida nele. Noutras palavras, o Deus que nos chama à vida, na história, pensa em nós também para além dessa vida na história. Ele nos quer como viventes nele. Assim como aconteceu com Jesus de Nazaré - que foi homem provado na história e terminou morto pelos chefes romanos e judeus17 - Deus nos ressuscitará também. E isso, antes de ser uma questão de liberdade humana, é um compromisso de Deus, o que nos cria, salva e nos leva à consumação nos séculos futuros. Lá, nós – que não usaremos mais esse corpo de morte – viveremos a vida prometida, a que olho nenhum viu e nem ouvido algum ouviu. Porém sabemos que Deus no-la prepara.

Poderá alguém ficar fora dessa plenificação humana – a vida eterna de ressuscitado? Nossos critérios humanos – cristãos, católicos?! – dizem que a força do homem pecador poderia ser maior que a justiça e a misericórdia de Deus. O Deus justo – segundo o critério dos homens - só fará justiça condenando eternamente os maus, os injustos, os corruptos, os perversos, etc. Ele não permitiria que tais

15 CHAPELLE, A. Antropologie Bruxelles: Ed. Lessius, 2007. Especialmente Cap. VII.16 Essa discussão sobre a imortalidade tem sido um dos pontos que Ratzinger aprofundou,

mostrando a diferença entre a perspectiva grega e a cristã, em diversas de suas obras, sobretudo em RATZINGER, J. Introdução ao Cristianismo, Preleções sobre o Símbolo dos apóstolos, S. Paulo: Ed. Loyola, 2005, especialmente II Parte, cap. II, pgs.217 ss e Escatología. La muerte e la vida eterna. Barcelona: Herder, 2008

17 É importante lembrar, que mais que pelos chefes judeus, Jesus nazareno foi morto - historicamente falando – pelos romanos, com o castigo fulminante da cruz. Deus, contudo, negando o julgamento dos homens sobre seu Filho. Mudou a história e o ressuscitou para além da história. A ressurreição transcende a história, mas marca profundamente o modo de viver dos cristãos já nessa história.

Page 20: THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH A IDENTIDADE DO SER HUMANO À LUZ DA FÉ THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH Hélcion Ribeiro * RESUMO:

138

pessoas se realizassem em plenitude como seres humanos, porque a força do seu pecado seria maior que Deus.18 Eles nunca atingiriam a perfeição humana...

Todavia, a plenificação humana só se realiza mediante a encarnação, morte e ressurreição de Jesus, o homem-Deus. Se a eternidade feliz fosse reservada apenas aos que conheceram e viveram sob o patrocínio de Jesus, o Cristo, como ficaria a grande maioria da humanidade histórica. O plano de realização dos seres humanos seria aplicável e realizável apenas aos crentes? Todavia, Deus, o que criou a todos - os criou como filhos e como herdeiros de seu Filho –, certamente não passaria a eternidade sabendo que, por pequenez, tantos filhos seus haveriam de padecer pelo pecado de terem se recusado a Ele e/ou maltratados seus irmãos. Isto suposto que esses tenham sabido quem é Deus!

Enfim, o ser humano atingirá sua plenitude só em Deus. Esse dom de Deus o levará a sua realização definitiva. Em Cristo, com a plenitude de seu corpo, será apresentado, no dia final, ao Pai para a consumação da história.

Sem dúvida, nada desta crença é verificável pelos olhos humanos, menos ainda pelas ciências dos homens. É puro dom total. A identidade do ser humano, pois não se esgota em seus conhecimentos, nem em seus feitos. É somente Deus quem plenifica – torna pleno – o ser humano. Por isso, na história, nossas descrições e nossas definições sempre estarão limitadas. Pois, sem conhecer a Deus, é impossível definir o homem. E como conhecer a Deus, sem poder vê-lo face-á-face, sem véus, com esse corpo mortal? Como saber que viveremos em Deus nossa plenificação humana se não experimentar-nos a ressurreição?

O enigma do homem permanece indecifrável só, e tão somente, enquanto viver-nos nessa carne. Na verdade, ao afirmar que só Cristo revela plenamente quem somos, fazemos uma revelação do que já sabemos, mas na fé, sabendo que só sabemos o suficiente para crermos. Como consequência: como é difícil saber que é o ser humano. Ou qual é sua identidade? Ao compararmo-noss com os animais, conseguimos nada mais que a referência horizontal da identidade de um “naturalismo biológico”, como chamou o filosofo estadunidense John Searle19; ao nos compararmos uns com os outros, nada mais teremos que uma tautologia; ao nos compararmos com Deus, tudo é provisório, pois não sabemos quem somos e – se conhecemos Jesus – não o vimos em plenitude (ou melhor, só o conhecemos pela fé) e ainda não se manifestou o que seremos. Todavia, convém continuar a

18 Que grande é o poder do homem! Por outro lado, os crentes professam que a eternidade feliz não é um mérito do homem. Mas, é dom puro e total de Deus...

19 Cfr. J. R. SEARLE, Libero arbitrio e neurobiologia. Libertà e neurobiologia. Riflessioni sul livre arbitrio, el linguaggio e el potere politico, Mondadori, Milano, 2005.

Page 21: THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH A IDENTIDADE DO SER HUMANO À LUZ DA FÉ THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH Hélcion Ribeiro * RESUMO:

139

interrogar-nos, como o salmista: “Quem é o homem, ó Senhor, para que cuideis dele tanto assim?” (Sl 8).

Para ir terminando...

Estas identificações todas são fundamentalmente reveladas e decorrem da Bíblia Sagrada. É oportuno, porém, concluir e, a modo de síntese, acenar a duas questões.

A primeira: a Bíblia revela quem é o ser humano (diante de Deus e dos outros). Mas de modo algum fazuma teorização sobre o tema. Não se encontra nela um estudo sistemático, nem uma tratação uniforme e localizada. A identificação da pessoa humana está nos milhares de versículos escritos em tempos, linguagens e perspectivas diferentes.

Mais complexa é a segunda questão. E decorre da revelação. Ela é percebida como uma construção ou elaboração da teologia. Estamos falando do conceito pessoa. O texto bíblico não sistematiza este tema de pessoa. Uma das maiores contribuições dadas pela Igreja é a concepção de pessoa humana. Tal compreensão é fruto de muita observação e reflexão, que evolui ao longo dos séculos. Entrementes, ela é sempre provisória e limitada.

Page 22: THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH A IDENTIDADE DO SER HUMANO À LUZ DA FÉ THE IDENTITY OF THE HUMAN BEING IN THE LIGHT OF THE FAITH Hélcion Ribeiro * RESUMO:

140