ED 122 EUROPE LATINE AMRIQUE LATINE
Centre de Recherches sur les Pays Lusophones
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE LETRAS
Programa de Ps-Graduao em Letras
Thse de doctorat en tudes du monde lusophone Tese de doutorado em Escrita Criativa
Amilcar BETTEGA BARBOSA
DE LA LECTURE LCRITURE : LA CONSTRUCTION DUN TEXTE, LA FORMATION
DUN CRIVAIN
DA LEITURA ESCRITA : A CONSTRUO DE
UM TEXTO, A FORMAO DE UM ESCRITOR
Thse dirige par Tese orientada por
Mme Jacqueline PENJON M Luiz Antnio de ASSIS BRASIL
Soutenue le 20 dcembre 2012 Defendida em 20 de dezembro de 2012
Jury : Banca :
Monsieur Luiz Antonio de ASSIS BRASIL (PUCRS) - Professeur Madame Jacqueline PENJON (Paris3) - Professeur mrite Monsieur Ricardo Araujo BARBERENA (PUCRS) - Professeur Madame Marcia Ivana de LIMA e SILVA (UFRGS) - Professeur Madame Marilia ROTHIER CARDOSO (PUCRJ) - Professeur Madame Anne-Marie QUINT (Paris3) - Professeur mrite
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AMILCAR BETTEGA BARBOSA
DA LEITURA ESCRITA : A CONSTRUO DE UM TEXTO, A
FORMAO DE UM ESCRITOR
Tese em regime de co-tutela apresentada como requisito para a obteno do grau de Doutor pelo Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Letras da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul e pela Universit Sorbonne Nouvelle Paris3.
Orientadores:
Prof. Dr. Luiz Antonio de Assis Brasil (PUCRS)
Prof Dr Jacqueline Penjon (Universit Sorbonne Nouvelle Paris3)
Porto Alegre, 2012
Catalogao na Fonte
B238l Barbosa, Amilcar Bettega De la lecture lcriture : la construction dun texte, la formation dun crivain = Da leitura escrita : a construo de um texto, a formao de um escritor / Amilcar Bettega Barbosa. Porto Alegre, 2012. 310 f.
Tese (Doutorado) Programa de Ps-Graduao, Faculdade de Letras, PUCRS. Orientador: Jacqueline Penjon, Luiz Antnio de Assis
Brasil
1. Literatura Brasileira. 2. Oficina de Criao Literria. 3. Arte de Escrever. 4. Escrita Criativa. 5. Leitura. I. Penjon, Jacqueline. II. Assis Brasil, Luiz Antnio De. III. Da leitura escrita : A construo de um texto, a formao de um escritor.
CDD 809
Bibliotecrio Responsvel Ginamara de Oliveira Lima
CRB 10/1204
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AMILCAR BETTEGA BARBOSA
DA LEITURA ESCRITA : A CONSTRUO DE UM TEXTO, A
FORMAO DE UM ESCRITOR
Tese em regime de co-tutela apresentada como requisito para a obteno do grau de Doutor pelo Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Letras da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul e pela Universit Sorbonne Nouvelle Paris3.
Aprovada em: _____ de _______________ de _______.
BANCA EXAMINADORA:
______________________________________________
Prof. Dr. Luiz Antonio de Assis Brasil - PUCRS
______________________________________________ Prof. Dr. Jacqueline Penjon Sorbonne Nouvelle Paris 3
______________________________________________
Prof. Dr. Marlia Rothier Cardoso - PUCRJ
_________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Araujo Barberena - PUCRS
_________________________________________________ Prof. Dr. Anne-Marie Quint Sorbonne Nouvelle Paris 3
________________________________________________
Prof. Dr. Mrcia Ivana Lima e Silva UFRGS
Porto Alegre, 2012
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AGRADECIMENTOS
Aos Professores Doutores Jacqueline Penjon e Luiz Antonio de Assis Brasil,
pela orientao, pela disponibilidade e pelo incentivo ao longo de todo o
trabalho.
Professora Doutora Ana Maria Lisboa de Mello, grande incentivadora e de
certa forma tambm responsvel pela concretizao deste trabalho.
minha esposa e s minhas filhas, pelo tempo subtrado do convvio.
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RESUMO
Este trabalho composto por duas partes distintas e complementares: uma
ensastica e a outra ficcional. A primeira tem o objetivo de, a partir da experincia
pessoal do autor como escritor de prosa, analisar alguns momentos-chave da sua
formao que, em certa medida, podem ser encontrados na formao de um bom
nmero de prosadores brasileiros de sua gerao, a saber: o caminho percorrido da
leitura escrita, depois do manuscrito ao livro e, por fim, do conto ao romance. A
segunda parte apresenta um romance indito intitulado Bariyer e composto para
este trabalho. Aliando reflexo e fico, o conjunto destas duas partes configura uma
tentativa de mostrar no apenas alguns elementos que participam do processo
formativo do escritor, mas tambm o resultado prtico do seu trabalho.
Palavras-chave : Literatura Brasileira, Escrita, Leitura, Oficina Literria, Escrita
Criativa
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RSUM
Ce travail est constitu de deux parties distinctes et complmentaires : l'une
thorique, l'autre fictionnelle. La premire partie sappuie sur lexprience
personnelle de lauteur en tant qucrivain de prose qui dbute son parcours dans les
annes 90 au Brsil pour analyser certains moments-clef de la formation dun
crivain qui peuvent s'appliquer d'autres crivains brsiliens de la mme
gnration, notamment les passages de la lecture l'criture, puis du manuscrit au
livre et finalement celui de la nouvelle au roman. La seconde partie est intgralement
compose du roman indit intitul Bariyer. Alliant rflexion et fiction, l'ensemble des
deux parties est une tentative de prsenter certains lments participant au
processus formateur de l'crivain, mais aussi le rsultat pratique de ce travail.
Mots cls : [Littrature Brsilienne, criture, Lecture, Atelier Littraire, criture
Crative]
8
ABSTRACT
From reading to writing : the construction of a text, the training of a writer.
This work consists of two distinct and complementary parts: one essay and one
fiction. The first part analyzes some key moments of the author`s training as a writer of
prose, namely the path from reading to writing, then from the manuscript to the
book and, finally, from the short story to the novel, all of which is based on his personal
experience, and applies, to some extent, to a number of Brazilian prose writers of his
generation. The second part displays an unpublished novel entitled Bariyer that was
composed especially for this work. In combining reflection and fiction, the assemblage of
these two parts constitutes an attempt to show not only the elements participating in the
writer`s training process, but also the actual result of his creative work.
Keywords : [Brazilian Literature, Writing, Reading, Literary Workshop, Creative
Writing]
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LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1 (Capa do livro O vo da trapezista) ............................................. 60
Figura 2 (Istambul, Caderno I, 30/05/2007) ............................................................. 88
Figura 3 (Istambul, Caderno I, 02/07/2007) ............................................................. 89
Figura 4 (Istambul, Caderno I, 02 a 05/07/2007) ..................................................... 90
Figura 5 (Istambul, Caderno I, 20 a 26/09/2007) .................................................... 92
Figura 6 (Istambul, Caderno I, 20 a 26/09/2007) .................................................... 92
Figura 7 (Istambul, Caderno VI, 02/01/2012) ......................................................... 93
Figura 8 (Istambul, Caderno VI, 02/01/2012) ......................................................... 94
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SUMRIO
1 INTRODUO ..12
2 PRIMEIRA PARTE : O ENSAIO 19
2.1. DA LEITURA ESCRITA 20
2.1.1. Da leitura (o prazer) 20
2.1.2. Da escrita (a vocao) ...26
2.1.3. Da leitura escrita (a imitao) 29
2.2. DO MANUSCRITO AO LIVRO A PASSAGEM PELAS OFICINAS LITERRIAS, TORNAR-SE ESCRITOR PUBLICADO ..35
2.2.1. Ler para escrever 35
2.2.2. Escrever para aprender a tcnica, as oficinas literrias ...37 2.2.2.1. A tcnica .37 2.2.2.2. As oficinas literrias ou de Escrita Criativa ..40
2.2.2.2.1. A (minha) experincia da oficina .43 2.2.2.2.2. A Oficina do Assis ..45 2.2.2.2.3. Os benefcios da oficina 56
2.2.3. Escrever para publicar ...59
2.3. DO CONTO AO ROMANCE .65
2.3.1. Do conto ...65
2.3.2. Criao e elaborao, ou as duas faces da mesma escrita 69
2.3.3. Comear com contos .77
2.3.4. Conto x Romance : lendo e escrevendo, o que muda ? ..80 2.3.4.1. A concentrao (do leitor e do escritor) 81 2.3.4.2. A linearidade (ou no) da escrita ...83
11
2.3.5. Ao romance, sem mais tardar ..86
Apndice .....99
Referncias bibliogrficas....103
3. SEGUNDA PARTE : A FICO ..106
12
1. INTRODUO
Isto no uma tese. Pelo menos no no sentido tradicional que costumamos
associar aos trabalhos acadmicos. Porm, se a linguagem, a metodologia, o
carter (menos cientfico) e o prprio objeto resultante da pesquisa diferem do que
normalmente (ou pelo menos em seu aspecto formal) caracteriza tais propostas,
reivindico para este que aqui apresento o mesmssimo estatuto de um trabalho
acadmico ao nvel de doutoramento submetido a uma banca competente para
valid-lo (ou no) com vistas obteno do diploma universitrio uma tese,
portanto.
Minha reivindicao baseia-se no simples fato de que o que aqui est foi
resultado direto de estudos realizados no seio da universidade durante um perodo
em que, inscrito em um programa de ps-graduao, frequentei seminrios,
pesquisei, cursei disciplinas tericas, redigi monografias, trilhando, portanto, o
percurso clssico que todo doutorando deve percorrer a caminho de sua titulao.
Tais estudos no s me auxiliaram na reflexo sobre o tema que eu me propunha a
abordar a criao literria como foram mesmo, em funo do compromisso
assumido diante das duas instituies universitrias que acolheram meu projeto em
regime de cotutela, os responsveis diretos pela concretizao deste projeto, isto ,
por sua realizao material, sua existncia: este corpo fsico que o texto como
fruto de uma produo do esprito.
Desde o incio, quando comecei a pensar na possibilidade de tratar o tema da
criao literria no mbito de uma tese de doutoramento, a ideia que eu trazia na
cabea era a de pensar a dita criao literria desde dentro dela, evitando aplicar
ou testar uma teoria sobre algo que em sua essncia prtica.
Enquanto escritor, aps mais de vinte anos de convvio ntimo com a escrita,
debatendo-me quase diariamente com os infinitos entraves que precisamos
13
ultrapassar a todo momento quando enveredamos pelos caminhos da criao
literria, eu sentia:
1) necessidade de entender melhor o que se passa durante o processo de
escrita, como ele se realiza, isto , os caminhos que precisamos trilhar para que uma
abstrao mental ganhe a forma de texto;
2) que a experincia acumulada como escritor ao longo desses anos me
habilitava a buscar este entendimento;
3) e que esta busca s se legitimaria se feita a partir desta experincia e no
interior mesmo do processo.
Refletir sobre a criao literria, era esta, portanto, a proposta geral. E a
melhor maneira de fazer esta reflexo era exercendo a criao literria, colocando-a
em cena, pondo-a em prtica. Ou seja, criando algo que se quer literatura no interior
mesmo da reflexo. Ou ainda, e em duas palavras: escrevendo fico.
Uma questo de forma? Sem dvida. Como sempre acontece, alis, em
qualquer questo literria. A literatura sempre uma questo de forma. Todo texto
se constroi a partir das escolhas formais que em algum momento o seu autor
obrigado a fazer. So tais escolhas que organizam internamente o texto e, assim
fazendo, acabam por revelar o seu verdadeiro contedo.
Por outro lado, a forma tambm prepara a recepo do texto, pois agencia o
leitor em uma espcie de pacto necessrio compreenso do que ele, o texto, quer
expressar: no se l uma notcia de jornal e um conto com o mesmo esprito, as
predisposies do leitor so bastante diferentes nas duas situaes, e isto acaba se
refletindo na mensagem que o texto vai passar, naquilo que ele vai comunicar.
Se num discurso cientfico a lgica externa ao texto, e os principais critrios
so os da objetividade, no texto literrio, ao inverso, a lgica interna, faz parte do
texto, recaindo inteiramente no domnio da subjetividade. O que est em jogo, claro,
no uma suposta verdade absoluta, se que isso existe, mas uma verdade
possvel no interior do texto.
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Assim, penso que no me desvio mas, antes pelo contrrio, aproximo-me do
tema quando adoto a forma ficcional para discutir uma questo altamente subjetiva
como a da criao literria.
No por outra razo, eu creio, os departamentos de Creative Writing dos
programas de ps-graduao em Letras das universidades americanas, em
primeiro lugar e como exemplo j clssico, mas tambm das de outros pases,
nomeadamente o Brasil, onde a Escrita Criativa ganha cada vez mais fora
incentivam seus alunos a comporem uma obra ficcional e a apresentarem-na como
tese (ou parte dela) de doutoramento.
No meu entender, trabalhos deste tipo, que mesclam fico e teoria tentando
faz-las dialogar em vez de separ-las em categorias estanques, tm dois aspectos
fundamentais:
1) conduzem o autor a uma reflexo sobre o seu processo criativo que
normalmente lhe escaparia, pois na maioria das composies literrias os motivos
que levaram o escritor a trabalhar desta e no daquela maneira, e a chegar a este e
no quele resultado, acabam ocultos em uma espcie de memorial descritivo
inconsciente, ocultando tambm algum caminho interessante para entender as
tomadas de deciso do autor durante a escrita, o que pode ser til para uma boa
interpretao da obra;
2) na medida em que agregam um sentido de prtica ao enfoque
normalmente terico utilizado nos trabalhos acadmicos sobre literatura, acabam por
oferecer, igualmente, uma abordagem crtica mais prxima do ponto de vista do
autor (neste caso, tanto da fico quanto da crtica), o que significa dizer mais
comprometida com a obra ela prpria.
O texto literrio e o texto terico ou crtico representam faces diferentes de um
todo, no caso a literatura, e tm uma existncia compartilhada, de modo que se
torna quase impossvel falar de um texto puramente crtico ou puramente literrio.
No h sujeito que no possa ser objeto ou vice-versa.
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A crtica literria, est claro, se faz a partir de um objeto, de algo (a literatura)
que tem existncia prvia: no texto, na obra. Porm, tambm certo que, se o texto
literrio existe independentemente de qualquer anlise que se faa sobre ele, jamais
este texto estar dissociado de uma teoria implcita que lhe permitiu a construo e
que, por sua vez, tambm tem existncia prvia, no autor do texto.
Porque e essa uma das premissas deste trabalho no h escritor que
no seja antes um leitor. E a teoria tambm se adquire e se transmite atravs da
leitura de outras obras literrias na busca s vezes inconsciente da identificao
do processo de construo de textos anteriores que so, no fim das contas, o que
quase sempre motiva o escritor a escrever sua prpria obra. Ento, na escrita (ou
em um dos momentos desta) como espcie de resposta ao estmulo da leitura,
mesmo sem ter muito presente, o autor aplica essa teoria interiorizada, fazendo a
crtica no momento da elaborao do texto, a crtica como parte do processo de
construo do texto. Nos ltimos tempos, alis, a problematizao das questes
narrativas dentro da prpria narrativa tornou-se cada vez mais explcita, a ponto de
muitas vezes ser mesmo o tema central em torno do qual estas narrativas se
constroem.
Por outro lado, o discurso crtico, apesar de reivindicar com frequncia uma
aura de impessoalidade e certa frieza prpria dos mtodos, ele nunca vai estar
dissociado da viso de mundo e idiossincrasias do seu autor. A crtica tambm
texto. E no h texto impessoal. Em suas escolhas, rejeies, em cada palavra do
discurso crtico esto tambm a marca do autor. Neste sentido, possvel dizer que
h uma parcela de fico na crtica, ainda que muitas vezes no assumida. Afinal,
como bem afirma o Prof. Gustavo Bernardo em seu artigo A fico da tese1, o
discurso cientfico sempre baseado em hipteses, em teses a serem verificadas:
a estrutura do discurso de um texto de fico, a sua forma, pode ser, e , diferente
da estrutura e da forma de um texto que explica os princpios do Clculo Diferencial,
mas ambos partem de suposies.
1 KRAUSE, Gustavo Bernado. A fico da tese. In : Prosa & Verso, suplemento do jornal O Globo, 13/09/2008.
16
No caso particular deste trabalho, a observao do meu prprio processo de
escrita e a tentativa de compreend-lo, de apreend-lo por meio da linguagem (o
que j se confunde com a escrita ela mesma), implica que eu volte os meus olhos
no somente para o texto ficcional que me propus a compor, mas tambm para todo
o meu percurso como escritor, pois me parece evidente que eu no poderia ter
escrito o romance que aqui apresento sem ter antes escrito todos os contos de meus
livros anteriores e tambm aqueles que nunca foram publicados.
Meu primeiro conto (pelo menos o primeiro que foi publicado) foi escrito l no
incio dos anos 90, talvez em 1991. De l para c, estive sempre envolvido com a
criao de um ou mais textos ao mesmo tempo, que fui publicando ou em livros solo
(trs coletneas de contos) ou em antologias com outros autores ou ainda em uma
coluna quinzenal que mantive desde 2006 at meados de 2012 na revista eletrnica
Terra Magazine, do portal Terra. So, portanto, mais de vinte anos de escrita
contnua, e se insisto sobre este ponto porque vejo a formao do escritor como
algo que se inscreve na continuidade de uma vida e que para entender como ele
chega a determinado resultado no podemos nos restringir simples anlise deste
resultado. preciso ver a obra como um conjunto e a escrita como um processo
sempre em evoluo.
Assim, ao voltar-me para minha trajetria pessoal como escritor de prosa,
identifico trs momentos fundamentais, todos eles em certa medida momentos de
passagem, que, acredito, podem estar mais ou menos presentes (ao lado de outros
aspectos, obviamente) na formao de um bom nmero de prosadores brasileiros da
minha gerao. So os momentos que configuram as seguintes passagens:
1) da leitura escrita
2) do manuscrito ao livro o aprendizado (ler, escrever), a
passagem pelas oficinas literrias, tornar-se escritor publicado
3) do conto ao romance
17
Enfim, o objetivo deste texto introdutrio apresentar a minha tese em duas
partes distintas e complementares: uma, sob a forma do ensaio, composta pela
anlise destes trs momentos formativos do escritor (do escritor que sou eu, em
particular, mas com a pretenso de que isto possa ser estendido a outros
escritores), e a outra, sob a forma ficcional, que consiste na experincia at ento
indita para mim que a escrita de um romance, intitulado Bariyer.
Trata-se evidentemente de um trabalho bastante pessoal, feito a partir da
minha prpria produo literria que, quando no objeto mesmo do texto (a
fico), serve de base para a reflexo sobre a formao do escritor. Assim, no
desenvolvimento de cada um dos trs tpicos que compem a parte no ficcional do
trabalho, a ideia no perder nunca de vista o (meu) processo criativo, presente,
obviamente, na composio da parte ficcional.
Chamo a ateno para o fato de que a fico e o ensaio que compem este
trabalho no esto ligados diretamente, no configuram exatamente o conjunto de
um texto e seu comentrio. E isto por duas razes principais:
1) a ideia, desde o incio, foi sempre discutir o meu processo criativo em
termos gerais e no especificamente o de um texto em particular;
2) agindo desta forma, penso evitar uma situao desconfortvel, de difcil
soluo e que, a meu ver, pode se constituir em uma armadilha a nica,
talvez de teses compostas por uma fico aliada a um texto terico: a
crtica, anlise terica, do texto ficcional elaborada pelo prprio autor desta
fico. Quando o tema da anlise um s texto em particular fcil
cairmos no terreno da interpretao e, quando se trata do prprio autor do
texto a fazer esta interpretao o caminho para a auto-justificao ainda
mais curto.
Olhar para mim mesmo enquanto escrevo. Gostaria de fazer uma ltima
ressalva para dizer que no vai a nenhuma inteno narcsica. Pensar a
composio de seus prprios textos, estar atento para a maneira como eles se
organizam internamente e questionar esta organizao a todo momento , hoje,
neste sculo XXI avanando a passos largos, o mnimo que o escritor deve fazer se
18
quer ver o seu trabalho vinculado ao domnio da arte. Tornar pblico este
pensamento no mais do que deitar luz onde normalmente h sombras, o que no
deixa de ser uma forma de praticar a honestidade, consigo prprio, o escritor, mas
tambm com o leitor.
Do ponto de vista institucional, a proposta de uma tese em cotutela entre a
Universit Sorbonne Nouvelle Paris 3 e a Pontifcia Universidade Catlica do Rio
Grande do Sul, no Brasil se justifica, pelo lado francs, por ser Paris 3 a
universidade onde eu estava inserido, como Leitor de portugus a ensinar a lngua
aos estudantes franceses (e no s), no momento em que decidi comear o
doutorado. Pareceu-me natural, portanto, propor meu projeto lcole Doctorale
Europe Latine - Amrique Latine daquela universidade. Numa esfera mais ampla,
acredito que o carter original de um trabalho deste tipo justificaria por si s a sua
proposio a uma universidade francesa no fiz nenhuma pesquisa estatstica,
mas no tenho notcias de algum trabalho ficcional ter sido apresentado a uma
universidade na Frana com vistas obteno de um ttulo de doutor em Letras.
Pelo lado brasileiro obrigatoriamente deveria haver um lado brasileiro, j
que minha proposta contemplava a escrita de uma fico e eu jamais concebi
escrever fico em outra lngua que no a materna foi tambm natural a escolha
da PUCRS pelo seu pioneirismo nos estudos ligados Escrita Criativa no Brasil e na
abertura recepo de trabalhos ficcionais como tese de doutorado. Um pioneirismo
que levou recentemente esta universidade a criar, no mbito do seu Programa de
Ps-Graduao em Letras, uma rea de Concentrao designada justamente
Escrita Criativa, sob a coordenao do escritor e professor Dr. Luiz Antonio de Assis
Brasil, com longa experincia no domnio da criao literria.
Estruturando o meu trabalho da forma como aqui o apresento, penso poder
contribuir para os estudos de doutorado em Letras com rea de concentrao em
Escrita Criativa da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul e para os
mesmos estudos desenvolvidos na unidade de pesquisa dos tudes Lusophones da
cole Doctorale Europe Latine - Amrique Latine da Universit Sorbonne Nouvelle.
19
2. PRIMEIRA PARTE
O ensaio
20
2.1. Da leitura escrita
2.1.1. Da leitura (o prazer)
Em 1905 Marcel Proust, sob o pretexto de escrever o prefcio2 a sua traduo
de um livro (Ssame et les Lys, na verso francesa) do poeta e crtico de arte
britnico John Ruskin, acabou por fazer um dos mais bonitos e certeiros elogios da
leitura enquanto fonte de enriquecimento do esprito desde que encarada como
porta de acesso a um conhecimento (ou melhor ainda, autoconhecimento) e no
como transmisso ou aquisio direta deste conhecimento.
Bem ao estilo do narrador/autor de Em busca do tempo perdido, servindo-se
de uma longa srie de evocaes da infncia, de recordaes de momentos
especiais de prazer ligado leitura, descries extremamente sensuais do ambiente
e de tudo o que o cercava quando, fosse em seu quarto ou na sala de estar da casa
de campo da famlia, fosse ao p da lareira numa tarde fria de inverno ou em
mangas de camisa sob uma cerejeira depois do almoo, ou bebendo ch de tlia e
enrolado em mantas de l, um tanto febril por causa de um resfriado, ou ainda
estirado na grama a ouvir os pssaros nos galhos das rvores e o riacho correr entre
as pedras, ele, o jovem leitor que era Proust (mas que poderia ser qualquer outro)
via-se tomado de encantamento pela leitura de um livro.
Atravs deste desfile de reminiscncias, Proust introduz a ideia de que a
marca que as leituras, sobretudo as da infncia e j bem distantes no tempo, deixam
no leitor est mais (ou tanto quanto) ligada s circunstncias em que elas se deram
os lugares, as horas, os dias, as sensaes experimentadas, etc do que
propriamente ao contedo dos livros onde elas se produziram. Ou seja, o foco est
no eu, no sujeito, no no objeto.
2 Trata-se do texto publicado sob o ttulo Sur la lecture (Actes Sud, 1988)
21
No texto, Proust contesta a tese defendida por Ruskin tese que, segundo
ele, Proust, provm de Descartes que diz mais ou menos o seguinte : a leitura de
todos os bons livros seria como uma espcie de conversa que mantemos com as
pessoas de grande esprito, os maiores do passado, que so precisamente os
autores destes livros.
Para Proust a leitura no nada disso. Ela no pode ser comparada a uma
conversa, mesmo se o autor do livro fosse o mais inteligente dos homens. O que
diferencia um livro de uma pessoa (um autor) no a maior ou menor fonte de
inteligncia com a qual nos poremos em contato, mas sim a maneira, o meio atravs
do qual se d este contato. Na leitura, assim como em uma conversa, ns
comunicamos, certo, com outro pensamento. Mas diferena desta ltima,
permanecemos a ss conosco, ou seja, continuamos a gozar do poder intelectual
que temos na solido e que a conversa dissipa imediatamente, continuamos a poder
ser inspirados, continuamos em pleno trabalho fecundo do esprito sobre ele
prprio3.
Esta ideia interessante porque aponta para o carter ativo que, para ser de
fato enriquecedora, toda leitura deve incorporar. E nisso ajuda a aproximar o ato de
ler ao de escrever.
A leitura como um encontro consigo prprio. Assim como a escrita. A
solido do leitor, em certa medida se assemelha solido do escritor, ambos
cortados do mundo real, imersos no contramundo de suas imaginaes, de seus
pensamentos.
Uma frase escrita representa todo um caminho percorrido pelo pensamento
do escritor que, de posse de sua arte, conseguiu express-lo daquela forma. Esta
mesma frase lida o incio de uma operao mental de parte do leitor que, fazendo
uso de sua sensibilidade e de sua carga de experincias pessoais, tambm produz
(novas) imagens e ideias.
3 No original : () en continuant jouir de la puissance intellectuelle quon a dans la solitude et que la conversation dissipe immdiatement, en continuant pouvoir tre inspir, rester en plein travail fcond de lesprit sur lui-mme. Sur la lecture, p. 29
22
A literatura no uma arte da imagem explcita, como a pintura, a escultura,
a fotografia, o cinema, etc, onde o leitor da obra recebe uma imagem j pronta e a
partir dela que vai procurar extrair-lhe sentidos. Mas ao mesmo tempo em que o
material do qual a literatura feita palavras, signos convencionais que em si
mesmos no querem dizer nada no tem uma transmisso imagtica direta, ela, a
literatura necessria e profundamente imagtica, no sentido em que provoca a
produo de novas imagens por parte do leitor.
Este entra em contato com a obra por meio de algo (o texto) que
obrigatoriamente vai evocar neste leitor imagens que so do seu universo (real, da
prpria experincia ou alheia, ou ao contrrio, da fantasia pura mas em ambos os
casos, sem dvida nenhuma, de um universo que o dele). So imagens que lhe
pertencem, por assim dizer. Se o texto criado pela imaginao do autor, na leitura
ele reimaginado pelo leitor. E nesta reimaginao as referncias, como no
poderiam deixar de ser, so as do leitor e no mais as do autor. Ao lermos uma
frase que diz era um dia chuvoso automaticamente vamos construir a imagem do
nosso dia chuvoso. Talvez recorreremos a dias chuvosos vividos h muito tempo
ou vistos em filmes ou em quadros ou ao que pensamos ter sido os dias chuvosos
vividos ou vistos em filmes, etc. O que certo que ns que vamos construir a
imagem mental deste dia chuvoso e ela ser nica, diferente das imagens
construdas pelo autor ou por quantos forem os outros leitores.
Assim, toda leitura autorreflexiva, ela aponta para dentro do leitor, para a
sua experincia, para o seu mundo, para a sua imaginao. Apesar de ser uma
forma de comunicao, de apreenso de algo que vem do outro que vem de fora
ela remete aquele que a pratica para a sua vida interior. No deixa de ser, portanto,
um exerccio de autoconhecimento, que permite ao mesmo tempo a explorao e
expanso de si prprio.
E se por um lado a leitura est ligada a ideia de recepo, no sentido inverso
quela de emisso que a escrita inspira, ela no , no pode ser, jamais um
exerccio passivo. Ou quando o , esvazia-se de sentido. J no leitura. Porque
no ativa no leitor o seu esprito, o seu mundo interior. No deixa marcas.
23
J bem conhecida a ideia de que se um texto literrio comea em seu autor
ele s vai de fato se completar e ter existncia enquanto literatura quando for lido.
Ou seja, quem o completa o leitor, parte ativa no processo. No dizer de Proust o
carter daquilo que para o escritor seria uma concluso, para o leitor incitao.
Ou seja, a sabedoria do leitor comea quando a do autor termina e por mais que
aquele queira que este lhe traga respostas, o mximo que um escritor pode fazer por
um leitor despertar-lhe desejos4.
Desejos estes que nascem no contato com a obra, na contemplao do
resultado esttico que o esforo da arte do escritor permitiu-lhe atingir. Proust:
quando o escritor j disse tudo o que poderia dizer que ele faz nascer no leitor o
sentimento de que ainda nada disse5.
Quantas vezes chegamos ao fim de um livro querendo mais, com pesar por
ele ter acabado ali. como se a ponta de um vu (o vu da feira e da
insignificncia que nos deixa negligentes diante do universo6) que nos impedisse de
ver algo fosse levantada. Mas s a ponta. E para retir-lo completamente j no h
mais ningum. Ou melhor, ningum mais poder faz-lo por ns. necessrio que,
sozinhos, continuemos o trabalho. At porque os olhos so nossos e s ns
poderemos ver o que est por trs do vu. Se forem outros os olhos, outras sero as
vises.
Se uma verdade existe e possvel, ns no podemos esperar receb-la de
ningum, mas devemos cri-la ns mesmos, no interior de ns mesmos. A verdade
que interessa no est nos livros. E por que no est? Porque a verdade que
buscamos diz-nos respeito intimamente, a nossa verdade. Quando Jean-Paul
Sartre se indaga sobre o porqu de as pessoas lerem romances, ele conclui que
falta alguma coisa na vida da pessoa que l, e isso que ela procura no livro. O
sentido, evidentemente, o sentido de sua vida, dessa vida que para todo mundo
4 No original : () tout ce quil (lcrivain) peut faire est de nous donner des dsirs. : Sur la lecture, p. 32 5 No original : () cest au moment o ils nous ont dit tout ce quils pouvaient nous dire quils font natre en nous le sentiment quils ne nous ont encore rien dit. ; Sur la lecture, p. 32 6 No original : () le voile de laideur et de insignifiance qui nous laisse incurieux devant lunivers ; Sur la lecture, p. 34
24
torta, mal vivida, explorada, alienada, enganada, mistificada, mas acerca da qual, ao
mesmo tempo, aquele que a vive, sabe muito bem que poderia ser outra coisa.7
Isto resume bem o poder da leitura a sua importncia e tambm a sua
limitao, como mais uma vez diz Proust: a fim de ser salutar a leitura deve ser uma
ferramenta para o desenvolvimento interior da pessoa, mas poder at se tornar
perigosa se em vez de despertar o indivduo para a vida espiritual ela passar a ser
para ele o substituto desta vida, ou seja, se em vez de encararmos a resposta s
nossas questes como uma espcie de verdade idealizada s alcanvel atravs do
progresso ntimo de nosso pensamento ns encararmos esta verdade como algo
pronto, rgido, uma coisa material disposta entre as folhas dos livros como um mel
preparado pelos outros, bastando-nos espichar a mo at a prateleira para degust-
lo passivamente num total repouso do corpo e do esprito8.
Para Proust a leitura seria como uma amostra, uma viso de relance de uma
espcie de tesouro que se esconderia em outros textos. Por isso a vontade de
continuar. Ele relata que ao ler Le Capitaine Fracasse, de Thophile Gautier trata-
se efetivamente do livro de cuja leitura rememora as circunstncias na parte inicial
do seu prefcio , onde a bem da verdade havia apenas duas ou trs frases que
para ele eram de uma beleza extrema e que deveria corresponder, esta beleza, a
uma realidade ali apenas entrevista. Isto o levava a pensar que o autor pudesse
expor esta realidade inteira em outros dos seus livros, para os quais ele, o leitor
Proust, ia correr com avidez.
Ao mesmo tempo em que intimamente o leitor intui que o sentimento de que
algo falta continuar sempre, h uma promessa implcita de jubilao nesta busca.
A beleza prometida e apenas degustada pode estar logo adiante, nas prximas
frases. O motor o prazer, ou a possibilidade de experimentar este prazer.
7 SARTRE, Jean-Paul apud PIGLIA, Ricardo. In : O ltimo leitor, p.136 8 Marcel Proust. In : Sur la lecture, p. 38. No original : () une chose matrielle, dpose entre les feuillets des livres comme un miel tout prpar par les autres et que nous navons qu prendre la peine datteindre sur les rayons des bibliothques et de dguster ensuite passivement dans un parfait repos de corps et desprit.
25
No que diz respeito escrita, a motivao parece ser da mesma ordem.
Quase um sculo depois de Proust, Roland Barthes vai refletir sobre as condies
que cercam a preparao de uma obra literria em La prparation du Roman, o
ltimo dos seminrios que ministrou no Collge de France em 1979/1980.
Interrogando-se sobre as razes que levam algum a desejar escrever, ele conclui
que jcris9 pour contenter un dsir10. E este desejo tem origem no prazer, le
sentiment de joie, de jubilation, de comblement que me donne la lecture de certains
textes crits par dautres11.
No ponto inicial daquilo (a leitura) que pode se transformar no desejo de
escrita, Barthes identifica trs tipos de Prazer, a saber:
1) O prazer da leitura que se basta, que se fecha em si mesmo; o sujeito
no tocado pelo tormento de fazer igual: so os leitores que
permanecem leitores, os leitores que no escrevem.
2) O prazer da leitura quando ele traz uma sensao de falta (falta alguma
coisa), que vai desembocar no desejo de escrever;
3) O prazer de escrever, que no est livre da angstia originada pelas
inmeras dificuldades envolvidas neste ato, mas que j um prazer de
outra ordem, provocado pelo (outro) prazer no totalmente satisfeito.
Para efeitos deste estudo, o que nos interessa o prazer incompleto,
produtivo, porque desperta no leitor a vontade de complet-lo, induzindo-o a dar
segmento leitura j num processo interior, de reflexo da matria lida ou, em
alguns casos, provocando o desejo da escrita.
o que analisaremos a seguir.
9 Barthes usa a primeira pessoa no s como marca de estilo, mas para evidenciar a postura auto-reflexiva do seu pensamento, o que serve perfeitamente para o presente trabalho. Olhar para si mesmo a fim de entender o geral. 10 BARTHES, La prparation du roman, p 187 11 Ibid., p 188
26
2.1.2. Da escrita (a vocao)
comum ao lermos as entrevistas que so feitas com escritores nos
depararmos com pedidos de conselhos aos jovens que pretendem se lanar na
escrita, ou, de uma forma mais direta, com indagaes do tipo o que fazer para se
tornar um escritor? Dez entre dez dos escritores respondero como teriam
respondido Proust ou Barthes: ler, ler muito e bem. Mas se s escreve quem l e se
todo escritor antes de mais nada e por algum tempo foi apenas isso um leitor
aplicado, a recproca no verdadeira.
Penso que alm do desejo de completar algo que na leitura ficou faltando,
como visto no captulo anterior, alm mesmo da prtica constante e aplicada da
leitura, preciso acrescentar a esta equao um componente ainda mais subjetivo e
de difcil definio que o que, na falta de melhor palavra, poderamos chamar de
vocao12 literria.
evidente que no falo aqui das ideias mitificadoras do escritor como um
eleito dos deuses, algum escolhido para ser o meio atravs do qual a Beleza
outra entidade de difcil apreenso e de coloraes divinas se exprimiria.
Felizmente nos dias de hoje j no h lugar para este tipo de pensamento, pelo
menos no entre aqueles que se dispem a tratar seriamente esta questo.
Mas se por um lado a explicao pela via do destino, do fado inevitvel,
vazia, por outro a escolha pelo livre arbtrio, ou seja, apenas a vontade de tornar-se
um escritor e a persistncia neste intuito embora fundamentais e partes
integrantes daquilo que acabam por conformar uma vocao no so suficientes
12 Assumo o risco de usar aqui uma palavra bastante marcada por uma ideia romntica e ultrapassada, que durante algum tempo parece ter servido apenas para ocultar ou justificar a dificuldade em abordar o tema da criao literria. Decidi mant-la justamente para enfatizar seu sentido mais atualizado, derivado, que aponta para uma habilidade inerente para determinada atividade, habilidade esta que deve ser desenvolvida a fim de que a atividade seja realizada a contento. Por outro lado, um escritor escreve porque precisa escrever (ningum lhe pede que escreva, ningum lhe exige que escreva, ningum espera que ele escreva), ele escreve porque sente desejo (e a necessidade de realizar este desejo) de escrever. Usando a palavra vocao, pretendo contemplar estas ideias: habilidade, vontade, desejo, necessidade. Na sequncia do texto, isto deve ficar claro.
27
para caracterizar esta espcie de divisa pessoal que leva algumas pessoas a
viverem com a certeza de que o exerccio da escrita a nica forma de dar sentido
s suas vidas.
Mas embora no haja uma definio precisa para a vocao literria, parece-
me evidente que aquele que escreve assim o faz por necessidade, por absoluta
incapacidade de no faz-lo. neste sentido que deve ser entendida a expresso
vocao literria invocada neste captulo, despida, portanto, de toda e qualquer
aura romntica. Segundo Mario Vargas Llosa, em suas Cartas a um jovem escritor,
possvel especular a respeito das origens desta necessidade na infncia, quando a
criana experimenta uma espcie de predisposio fantasia, criando jogos e
narrativas que estruturam estes jogos, numa clara tendncia para instituir mundos
que reproduzam, corrijam ou neguem o mundo real em que ela vive. Sartre, por
exemplo, em sua autobiografia intitulada Les mots, faz um paralelo entre a criana
que brinca de faz-de-conta e a atividade mental do ficcionista. Uma das razes das
fantasias infantis tem a ver com a resistncia ou insatisfao em relao a este
mundo real, um questionamento da realidade que a cerca.
Sem entrar em questes que dizem respeito psicologia, acredito que os
escritores so quase sempre pessoas em quem esta resistncia realidade,
experimentada durante a infncia, perseverou na idade adulta. claro que esta
perseverana no deixa de ser um desvio, no sentido de que sendo necessria no
desenvolvimento da criana deveria deixar de existir na fase adulta. certo tambm
que em algumas pessoas esta resistncia realidade pode levar a caminhos que
no tem nada a ver com a literatura e tomar formas at dramticas de perturbaes
psquicas. A sada pela literatura ou por qualquer forma de arte parece ser uma
resposta positiva dos indivduos que, mesmo adultos, continuam sentindo a
necessidade de se contraporem realidade, uma resposta saudvel a esta
necessidade.
Se prestarmos ateno aos discursos dos escritores quando eles falam de
seu trabalho, de sua vida ou mesmo quando emitem opinies sobre outros assuntos,
no raro identificarmos certo sentimento de inadaptao, uma maneira de estar no
mundo que oblqua, dessintnica. A criao de mundos ficcionais, a substituio
28
da concreta realidade pela fugaz iluso de uma fico, uma maneira de compensar
esta espcie de inadequao ao mundo que parece ser uma constante no modo de
ser de todo o artista em geral, e do escritor em particular. Algum perfeitamente
adequado realidade no produz arte. Ou melhor, no sente a necessidade de
produzir arte.
Se a vida real insatisfatria e a existncia cheia de vazios, a fico se
encarrega de preench-los. E isto tanto do lado de quem a faz o escritor quanto
de quem a l.
Assim, uma vez manifestado o desejo de escrever e este for persistente,
teremos j boas condies para o incio de uma trajetria no terreno da escrita.
Vargas Llosa insiste nesta ideia de que a vocao estaria na combinao dessas
duas coisas em tempos diferentes: uma predisposio (subjetiva) inicial e,
posteriormente, a escolha racional, sartreana, um ato de vontade. O certo que em
algum momento que sempre de grande excitao e normalmente durante o
perodo da juventude aquele que se prepara para (ou especula) lanar-se
aventura da escrita se v s voltas com questes do tipo poderei de fato tornar-me
um escritor?
Quase sempre este questionamento traz algo de vital, uma energia muito
grande e capaz de impulsionar toda uma vida na direo do objetivo, mas ao mesmo
tempo a dvida da qual ele portador tambm geradora de grande angstia.
Obviamente no h nenhuma garantia de que se vai alcanar o objetivo
traado (tornar-se escritor), e alm do mais o prprio objetivo por vezes no bem
claro em suas verdadeiras motivaes (o que significa de fato tornar-se escritor?).
Para o jovem que almeja escrever, a figura do escritor, personalizada
naqueles de sua preferncia, algo digno da mais alta admirao e isto no
poderia deixar de ser assim. So escritores cuja obra goza de reconhecimento
pblico, ou, pelo menos, do reconhecimento daquele que at ento apenas alimenta,
muitas vezes em segredo, o desejo de tambm ele ser um escritor capaz de ter seu
trabalho reconhecido. natural, portanto, que nas expectativas que ele nutre para o
29
seu futuro estejam, ainda que ele no admita ou no perceba, o reconhecimento, o
sucesso e as glrias que a literatura pode oferecer a (muito) poucos.
Se esta for a sua motivao essencial, bastante provvel que o jovem
aspirante a escritor se ver frustrado mais adiante. Por outro lado, se ele for movido
por uma verdadeira necessidade interior, o exerccio da escrita torna-se um fim em si
mesmo e no um meio para alcanar a admirao dos outros: talvez o atributo
principal da vocao literria seja o fato de que quem a possui vivencia o exerccio
dessa vocao como a sua maior recompensa, muito, muito superior a qualquer
coisa que pudesse obter como consequncia de seus frutos13. Com outras palavras,
a romancista americana Joyce Carol Oates em seu livro no por acaso intitulado
A f de um escritor resume a mesma ideia: A satisfao [de exercer o ofcio de
escritor] reside no esforo, e raramente nas eventuais recompensas que da advm,
se que elas existem14. Ou, finalmente, como ainda mais resumidamente faz
Flaubert em algumas das numerosas cartas que endereou a Louise Colet
reiterando que escrever para ele uma maneira de viver.
Sim, a escrita vivida como a prpria vida. Porque uma vez picado pelo bicho
da escrita, dificilmente a pessoa vai se livrar dela. coisa para toda a vida, o tempo
todo. Algumas ideias frequentes na fala de muitos escritores a respeito de seu
trabalho entrega, exclusividade, disciplina, obsesso apontam para este carter
meio doentio da literatura. Como uma droga. Ou como, na metfora que Mrio
Vargas Llosa, uma vez mais, utiliza em suas Cartas..., uma solitria voraz que o
escritor traz dentro de si e que lhe exige tudo, que se alimenta de sua prpria vida.
2.1.3. Da leitura escrita (a imitao)
13 LLOSA, Mario Vargas, In : Cartas a um jovem escritor, p 4-5 14 OATES, Joyce Carol. In : A f de um escritor, p. 36
30
Mas como, por que, em que circunstncias se d a passagem da leitura
escrita? Do ato de ler e sua repetio doentia (que o torna parte indispensvel de
uma existncia e fonte de um prazer obsessivo) ao ato de escrever (tambm este, a
um determinado momento, vivido como necessidade absoluta), h um caminho, ou
melhor, h um impulso, um movimento quase irracional motivado pelo desejo de
fazer, e fazer igual quilo que, quando lido, provocou tanto prazer.
J vimos que na infncia que se manifesta certa predisposio para criar
fantasias que contrapem a realidade. Joyce Carol Oates chega a dizer que neste
perodo quando o chamado impulso criativo comea a se manifestar somos
todos artistas arrebatados15.
Pois o impulso do leitor fascinado que quer, que deseja com todas as suas
foras escrever tem algo (tem muito) de infantil: a criana que quer prolongar a
brincadeira (e a brincadeira sempre uma reproduo da vida), reflexo da sua fome
permanente de prazer. a criana querendo fazer como os outros os grandes
fazem, querendo ser parte ativa, juntando-se de maneira ativa fonte do prazer.
Pois uma criana aprende a fazer as coisas. Em vrios grupos e contextos,
desde a famlia at a escola, passando pela sociabilizao constante, o aprendizado
fora motora do desenvolvimento. E a imitao dos gestos, palavras, atitudes
que est na base de todo aprendizado: primeiro impulso criador, j que a imitao
sempre imperfeita e, portanto, diferente do original.
O aprendizado do escritor se d de forma semelhante. a partir de
determinados modelos, aqueles com os quais ele percebe uma afinidade, que aqui
chamo de fraterna, que suas primeiras tentativas de escrita se esboam. E
tambm em direo a estes modelos que elas se constroem. Em algum momento da
vida do leitor lembramos: sempre um escritor em potencial d-se o encontro
com um texto e um autor16 que sero decisivos no desenvolvimento dessa
15 OATES, Joyce Carol. In : A f de um escritor, p. 11 16 Evidentemente, os textos e autores que participam da formao do futuro escritor so muitos. O uso do singular aqui meramente retrico.
31
potencialidade para a escrita. Alguma coisa se passa nesse encontro e firma uma
aliana indissolvel: o futuro escritor jamais esquecer esse momento, jamais
renegar sua filiao a esse ou a esses autores formativos. quando o leitor (que
ainda no se sabe escritor) tocado pelo texto e percebe que h uma sensibilidade
da mesma espcie entre ele, leitor, o texto e, em ltima instncia, aquele que
produziu este texto j decisivo, j formador. Ele descobre e reconhece ali aspectos
que desconhecia em si mesmo e que lhe so revelados a partir desse encontro.
Leitor e texto. Nada mais forte do que esta aliana. So elementos que se
atraem (ou se repelem), mas em todo caso interagem constantemente. Completam-
se (mesmo quando se afastam), ou melhor, completam o que tem origem em outro
ponto deste triplo arco no qual se apoia a literatura, o autor.
Imitando Julio Cortzar
Um dos autores mais importantes em minha formao como escritor foi Julio
Cortzar. Li-o pela primeira vez quando tinha uns 17 anos, quando ainda nem
passava pela minha cabea que um dia eu desejaria escrever meus prprios textos.
Uma leitura pura, desinteressada, movida pelo simples prazer. No lembro de
ningum ter me indicado a leitura de Cortzar, fui atrs do que saa nos jornais, do
que lia em entrevistas de outros escritores, ou seja, fui levado de leitura em leitura,
de afinidade em afinidade. Mas lembro ainda do impacto desta leitura e,
principalmente, deste sentimento do qual fala Barthes (e Proust) de que algo faltava
naquela sensao de arrebatamento que eu experimentava: um arroubo que era de
prazer, sem dvida, mas ao mesmo tempo de insatisfao.
Alguns anos depois (j tocado pelo desejo de escrever), escrevi um conto17
onde Cortzar aparece como personagem. A primeira frase deste conto tem um
carter ambguo: Quando conheci Cortzar eu j o imitava descaradamente18 .
17 Trata-se do conto intitulado A/c editor cultura segue resp. cf. solic. fax, includo no livro Os lados do crculo (Companhia das Letras: So Paulo, 2004) 18 BARBOSA, Amilcar Bettega. In: Os lados do crculo, p. 97
32
Em uma primeira leitura, o significado mais direto para esta frase de que o
narrador trata-se de fato de um imitador de Cortzar (o que se encaixa muito bem no
contexto do conto que gira em torno de um encontro do narrador, um jornalista com
veleidades literrias, com o dolo Cortzar em um caf de Buenos Aires). Mas num
segundo momento, ou num segundo nvel de leitura, esta mesma frase pode ser
interpretada de outra maneira : o narrador pode estar dizendo que no momento em
que ele entra em contato com a literatura de Cortzar (quando ele conhece,
portanto, Cortzar como escritor), ele, o escritor que ele prprio , j escreve de uma
maneira que est muito prxima da escrita de Cortzar. Ou melhor, a sua escrita
potencialmente da mesma famlia da de Cortzar, o que significa dizer que um
caminho natural para o desenvolvimento de sua escrita seria o de se aproximar
daquilo que poderamos chamar de uma escrita cortazariana, que ele no conhecia.
o que poderia definir e define, para mim a questo da influncia em
literatura: h certos autores naturalmente aqueles de nossa preferncia que nos
revelam possibilidades dentro do campo de nossa sensibilidade e de nossas
afinidades, que nos apresentam caminhos e nos ajudam a encontrar o nosso
prprio. Mesmo que este caminho esteja de certa forma j intudo por aquele que
admira (naquilo que admira), pois a admirao em literatura nunca gratuita: ela
nasce de uma profunda identificao, de um sentimento de pertencimento a uma
determinada famlia literria e isto vale tanto para escritores quanto para leitores,
tambm estes fazendo parte de famlias.
So estes autores da mesma famlia, os nossos parentes, que nos fazem
escrever, so eles que, ao nos tocarem, acendem em ns o desejo de, ns tambm,
tocarmos o outro.
E a famlia, percebe-se em seguida, por mais particulares que sejam as
caractersticas que a constituem como famlia literria, est sempre a aumentar. Um
autor leva a outro, cada leitura leva a outra nova leitura sem falar nas releituras,
que so sempre novas leituras.
Contudo, voltando ao exemplo pessoal, s me foi possvel chegar a esta
formulao, a este entendimento do que se passa quando encontramos um autor
33
que ser decisivo na nossa formao, ao escrever o conto que relata o encontro do
narrador com Julio Cortzar.
Ocorre, porm, que a ideia para este conto que estruturado em forma de
uma entrevista concedida pelo narrador (ento j um escritor consagrado) onde ele
rememora aquele encontro no passado com o seu mestre surgiu-me em funo de
outro conto que eu havia escrito muito tempo antes e que era, este sim, uma
imitao descarada do estilo de Cortzar.
Claro, quando comecei a escrever este primeiro conto, que depois intitulei
Mano a mano, eu dava meus primeiros passos como escritor e ainda no tinha
conscincia de que estava a imitar Cortzar. Mas acabei por perceber que aquele
texto no conseguia se desgrudar de uma forma de escrita cortazariana que, por sua
vez, estava colada minha prpria maneira de escrever naquele momento. Cortzar
era, ento, o meu modelo maior e eu queria, conscientemente ou no, fazer igual a
ele. Eu estava contaminado por Julio Cortzar.
A partir de certo momento da escrita de Mano a mano, quando me dei conta
de que o texto estava excessivamente cortazariano e que de fato no passava de,
na melhor das hipteses, uma boa imitao na forma e mesmo na temtica do
escritor argentino eu comecei a encar-lo como um exerccio de estilo. Procurei
retrabalh-lo de maneira que ele fosse mesmo uma espcie de cpia de uma
maneira de escrever que eu lia em Cortzar.
Terminado o conto, no obstante seu carter de cpia, eu gostei do
resultado e achei que poderia public-lo desde que ficasse patente o que ele era, ou
seja, um conto escrito por outro autor assombrado (ou possudo) pela figura de
Cortzar, pelo seu estilo, pela sua literatura.
A soluo encontrada foi, portanto, a escrita de A/c editor cultura segue resp.
cf. solic fax, o conto-entrevista referido anteriormente, onde existe a meno a um
texto do personagem Julio Cortzar, um texto que ele teria esquecido (ou
abandonado deliberadamente) sobre a mesa do caf onde se deu o encontro com o
narrador. Este texto, um (fictcio, claro) indito de Cortzar, fica em poder do
narrador durante anos, at que este resolve procurar Cortzar mais uma vez para
34
devolver-lhe o manuscrito e mostrar-lhe a traduo que ele fizera do manuscrito. O
argentino, porm, j doente e no fim da vida, pouco caso faz do texto, jogando-o ao
fogo sem nem sequer folhe-lo. a partir deste episdio que o narrador recomea a
escrever seus prprios textos suas tentativas anteriores para tornar-se escritor
haviam malogrado e ele se direcionara para outras atividades , e acaba por tornar-
se o escritor que concede a entrevista que configura o conto.
Os dois contos foram includos no livro Os lados do crculo um livro onde
todos os contos, de uma maneira ou de outra, encontram-se interligados ,
dispostos em sequncia: primeiro a entrevista e depois o indito de Cortzar
esquecido na mesa do caf.
35
2.2. Do manuscrito ao livro a passagem pelas oficinas literrias,
tornar-se escritor publicado
2.2.1. Ler para escrever
Se a leitura, na sua essncia, em seu primeiro impulso, est invariavelmente
associada ao prazer, talvez no escritor, mais do que em qualquer outro, que esta
associao sentida com mais fora. So eles, os escritores, que a levam mais
longe, a ponto de sentirem necessidade de a certa altura passar para o outro lado:
por se sentirem to tocados pela leitura passam tambm a escrever. Porm, a partir
de determinado momento o desejo de escrever j instalado, forando a produo
da escrita, a passagem ao ato , a leitura assume outras funes. L-se para
(tambm) aprender, para dissecar uma escrita, para v-la por dentro. A a leitura
(pode ser) mais pragmtica. E por vezes at mesmo entediante, podendo
transformar-se em um fardo. J no se l s por prazer.
O prazer da leitura est ligado ainda a uma espcie de ingenuidade infantil
diante do texto literrio, uma ingenuidade, em certa dose, necessria para o leitor
ser cativado pelo texto, para se deixar levar pelo jogo de faz-de-conta da fico.
Orhan Pamuk, em O romancista ingnuo e o sentimental livro que rene as seis
conferncias proferidas pelo escritor turco em 2009-2010 no quadro das Norton
Lectures da Universidade de Haward , desenvolve uma srie de reflexes acerca
da arte do romance a partir da diviso nestas duas categorias de leitores e
romancistas: os ingnuos e os sentimentais ou reflexivos.
Na verdade Pamuk se inspira num ensaio de Schiller, ber nave und
sentimentalische Dichtung (Sobre a poesia ingnua e a sentimental), que utiliza a
palavra sentimentalische num sentido um pouco diferente do significado mais
imediato que normalmente damos para sentimental. Schiller a usa para caracterizar
o poeta moderno, no ingnuo, que reflete sobre a poesia, que se atm aos seus
pensamentos, suas emoes, seus sentimentos.
36
Fiquemos, portanto, com este termo ingnuo para caracterizar o leitor que
est mais interessado em se deixar levar pela histria19 do que propriamente na sua
mecnica. Por outro lado, o leitor que escreve o escritor, portanto no pode ficar
completamente alheio a estes aspectos que, diramos, fazem o texto funcionar, ou
seja, fazem-no ser capaz de cativar um leitor (ingnuo ou no).
Se o leitor ingnuo l pelo prazer, o leitor-escritor, o leitor reflexivo (para
continuar no mbito da nomenclatura de Pamuk) l tambm para enxergar o texto
por dentro (ou por trs de sua fachada aparente), para saber por que aquele texto
especfico provocou-lhe (e a outros) tanto prazer. So posturas diferentes diante do
texto, que resultam em leituras diferentes: uma constri a histria a partir dos
elementos que o texto oferece e a outra a constri igualmente, num primeiro
momento, para desmont-la logo a seguir (ou ao mesmo tempo) a fim de entender
as engrenagens deste artifcio que se chama texto literrio.
Ora, toda leitura de uma obra literria pressupe um pacto implcito entre o
leitor e o texto: sabemos que se trata de uma fico mas fingimos acreditar que se
trata de algo real. Mesmo a mais fantstica das narrativas traz sempre uma
reivindicao do real. O leitor acompanha as peripcias do personagem de um conto
ou de um romance como se todos os acontecimentos narrados tivessem de fato
ocorrido, mesmo sabendo que se trata da imaginao do autor, e mais do que isso,
que os elementos da narrativa esto organizados, manipulados artificialmente, de
maneira a lhe causar essa impresso de realidade.
Segundo Pamuk, o que faz o leitor dito ingnuo esquecer
momentaneamente esta artificialidade prpria da narrativa, entregando-se ao puro
prazer de seguir o fio da histria tentando extrair significados daquilo que vai
encontrando ao longo do texto.
Porque, no fundo, ler significa implicar esforos, maiores ou menores, no
sentido de buscar apreender o que o que o texto expressa ou pode expressar
19 Entendendo-se por histria, evidentemente, no s a sucesso de acontecimentos vividos pelos personagens e narrados no texto, mas o amplo e complexo universo criado pela narrativa atravs do tratamento que o autor confere a aspectos como o prprio personagem, a linguagem, o cenrio, o tempo, etc.
37
atravs da forma como ele se apresenta ao leitor, forma esta que foi manipulada
pelo autor na tentativa de exprimir-se esteticamente. Dessa maneira, a atividade do
leitor aproxima-se quela do autor, tambm agindo sobre a forma do texto,
rearranjando-a atravs de sua leitura a fim de extrair sentido(s) daquilo que l.
Um texto ficcional funciona em uma estrutura prxima da dos jogos de
adivinhao. A linguagem literria assemelha-se a uma linguagem cifrada onde o
texto constitudo de uma srie de pistas lanadas pelo autor a um desconhecido
leitor que, interpretando e relacionando as pistas entre si, poder clarificar pelo
menos algumas das zonas de sombra deste texto, extraindo-lhe sentidos. Seria
como decifrar uma mensagem aps longo estudo dos indcios, o que, evidente,
nunca se d sem esforo. A satisfao do leitor ao sentir que apreendeu algo
essencial do texto a recompensa prazerosa por este esforo.
Ora, quando o leitor-escritor atm-se mais ao mecanismo do texto, maneira
como o autor distribui as pistas ao longo do texto, aos artifcios dos quais ele lana
mo para fazer funcionar o texto, o prazer da leitura pura diminui, ou melhor, no
h mais este tipo de leitura. Quando o carter artificial do texto trazido tona, a
impresso de realidade se enfraquece e ele acaba por perder um pouco do seu
charme, do seu poder de fascinao.
No raro nos deparamos com manifestaes de escritores nostlgicos de um
tempo em que liam de maneira descompromissada, por puro prazer. Reclamam de
uma espcie de deformao profissional do olhar que agora no consegue deixar
de ver a tcnica que pe em p um texto nostalgia de um olhar ingnuo, o olhar
infantil, que no v, ou no tem a sua ateno voltada para os artifcios da
construo.
O aprendizado implica perdas.
2.2.2. Escrever para aprender a tcnica, as oficinas literrias
2.2.2.1. A tcnica
38
Na literatura, quem escreve, mesmo o escritor que est comeando e que
ainda nunca publicou, escreve com a perspectiva da publicao. Porque em suma
escreve-se sempre para que algum leia, at porque, como j foi mencionado
anteriormente, um dos fundamentos da literatura reza que ela s se completa de fato
no momento da leitura, ou seja, sem leitor no h literatura.
Assim, toda escrita pressupe uma leitura, e esta leitura s se d num
domnio que no o do privado (que , contudo, o domnio da escrita). Escrever ,
portanto, tornar pblico mesmo textos que no sero publicados. Este tornar
pblico, mais do que imprimir o texto em pginas de livro, significa fazer com que
algo que tem existncia em uma esfera interior uma ideia, um pensamento, uma
emoo, sensao ou seja l o que o escritor deseje expressar passe a ter
existncia fora desta esfera, fora do crculo ntimo do autor. Em outras palavras,
preciso elaborar o que se deseja expressar de maneira a que isto gere um sentido
para o leitor, e mais do que isso, que o atinja em sua sensibilidade.
Esta elaborao20 exige, entre outras coisas, o domnio de certa quantidade
de elementos que do forma a uma narrativa. o que chamamos de tcnica. Joyce
Carol Oates ilustra bastante bem este aspecto da escrita: uma vez que em
condies ideais a escrita representa um delicado equilbrio entre a viso particular e
o mundo pblico, sendo uma apaixonada e muitas vezes rudimentar, e a outra
formalmente construda, dividida em categorias e de fcil acesso, torna-se
necessrio pensar nesta arte como uma tcnica. Sem tcnica, a arte permanece no
domnio do privado. Sem arte, a tcnica no passa de um ato mecnico.21
Ou seja, no casamento perfeito entre arte e tcnica que reside o segredo da
escrita. na combinao e no bom equilbrio entre estes dois conceitos que
apontam ambos para a ideia de fabricao, concretizao, materializao, etc que a
escrita literria se realiza. A arte d dimenso esttica e espessura a um texto, a
tcnica pe-no em p e f-lo funcionar. Mas se por um lado o capital artstico de um
escritor, que est muito ligado a sua sensibilidade e a critrios muito subjetivos,
20 No captulo 3 deste ensaio, desenvolverei o que entendo por elaborao no processo de escrita. 21 OATES, Joyce Carol. In : A f de um escritor, p. 11-12
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de difcil definio, por outro a tcnica muito mais fcil de ser mensurada,
decomposta, classificada e analisada objetivamente, e, por isso mesmo, passvel de
ser transmitida.
Desde sempre (vide a Potica, de Aristteles, por exemplo) os escritores tm
conscincia de que h um mecanismo por trs da obra literria e que o alcance
esttico da mesma depende em parte do bom funcionamento deste mecanismo. Da
a necessidade de compreender e dominar as estruturas que compem as narrativas.
Muitas vezes esta busca de compreenso anterior ao processo da escrita,
ou seja, ela apresenta-se como um estudo consciente e objetivo como forma de
preparao, de aparelhamento para enfrentar a tarefa de escrever. Outras vezes,
porm, esta reflexo se d durante o prprio processo de composio da obra.
Mas o que certo que para escrever, ou j escrevendo, o autor
obrigatoriamente se volta para o processo mesmo da escrita. O simples fato de
pegar uma caneta na mo para comear um texto implica se colocar uma srie de
questes sobre como este texto vai se organizar. Assim, no existe obra irrefletida,
que no tenha sido bastante pensada em seus aspectos composicionais, na tcnica
a envolvida. Isto faz parte das preocupaes correntes de todo e qualquer criador.
Ao longo do tempo so infinitos os casos de escritores que se dedicaram a
analisar a composio de obras literrias (alheias e prprias) e que escreveram
sobre isto. So notrios os registros feitos por escritores clebres a propsito de
suas obras, assinalando os avanos, recuos, dvidas, enfim, toda uma srie de
hesitaes que faz parte do processo de criao. Outros se debruaram sobre o
tema em seus escritos ntimos, nos dirios e anotaes pessoais. H ainda os que
fizeram do dilogo fora de si o caminho para a reflexo sobre a criao, como
atestam os exemplos (abundantes, ao longo da histria literria) de
correspondncias que se estenderam por anos a fio entre escritores e alguns
amigos, colegas de ofcio ou pessoas com afinidade literria suficiente para
estabelecer o clima de confiana necessrio troca frutfera de idias a respeito da
escrita.
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Foi fundando-se precisamente sobre estes dois pontos a reflexo sobre os
aspectos composicionais, e a sua discusso em grupo , que como vimos no so
preocupaes novas nos escritores, que nasceu uma instituio, esta sim
relativamente nova, que nos ltimos tempos tem exercido um papel importante na
formao dos escritores em todo o mundo: as oficinas literrias, ou de escrita
criativa.
Elas partem da ideia de que se no possvel dotar algum de uma
sensibilidade artstica capaz de produzir uma obra digna desse nome,
perfeitamente vivel p-lo em contato com a tcnica necessria embora no
suficiente para a produo desta obra.
anlise das oficinas literrias, pela importncia crescente que julgo que elas
adquirem hoje, dedicarei os prximos tpicos deste ensaio.
2.2.2.2. As oficinas literrias ou de Escrita Criativa
As oficinas literrias, tambm chamadas de Oficinas de Escrita Criativa, so
grupos formados com a proposta clara e objetiva de discutir o processo de criao
do texto literrio, suas tcnicas, suas dificuldades, suas particularidades, e isso a
partir da troca de experincias, da leitura e da discusso tanto de textos de autores
consagrados como dos prprios participantes da oficina, sempre na tentativa de
olhar friamente para um texto e tentar ver, por trs de sua fachada, os andaimes da
criao literria.
O modelo de workshop de criao literria que est na base da dinmica de
todas as oficinas literrias foi criado na dcada de 30 do sculo XX, na
Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, que ainda hoje mantm o mais
41
importante programa de Escrita Criativa do mundo22. Atualmente, boa parte das
grandes universidades norte-americanas oferece o curso ao nvel da graduao ou
da ps-graduao.
Ao longo das ltimas dcadas, pelo menos nos Estados Unidos, os cursos de
Escrita Criativa tornaram-se to correntes a ponto de hoje formarem um elo
importante do circuito literrio norte-americano, assim como so os editores, os
agentes literrios, os crticos, etc. Neste segundo decnio do sculo XXI, portanto, j
so poucos os novos escritores americanos que no tm passagem por este modelo
de aprendizado. E na Europa, sobretudo na Inglaterra e Espanha, mas tambm na
Itlia, Portugal e at na Frana23, cursos semelhantes tambm tm se difundido
largamente.
A verdade que pelo mundo afora as oficinas tm se multiplicado, ora em
torno de instituies como universidades ora informalmente como grupos de estudo
entre amigos, ora com mais ora com menos avanos, dependendo de cada pas e
da difuso ou aceitao da cultura da oficina por parte do meio literrio e
intelectual.
Como atesta o escritor e jornalista Roberto Taddei, ele prprio mestrando em
Escrita Criativa pela Columbia University, de Nova York,
o modelo do workshop norte-americano baseia-se na crena de que escrever se aprende lendo e escrevendo, mas para tanto preciso passar do nvel de diletante e adorador das letras e mergulhar em um patamar onde haja domnio das tcnicas de escrita. (. . .) Ali (na oficina) o estudante aprende a prestar ateno na leitura de textos e a procurar entender as intenes do escritor, e no mais apenas satisfazer a questo bsica do leitor leigo: gostar ou no gostar. preciso ir alm. Com esse novo olhar, o
22 Em 2010, tive o privilgio de participar a convite do governo americano, durante trs meses, do International Writing Program da Universidade de Iowa que, desde 1967, rene anualmente escritores de todo o mundo para encontros, conferncias, leitura pblicas, etc. Na ocasio pude encontrar-me com alguns alunos e professores do curso de Escrita Criativa daquela universidade e de confirmar o grau de importncia que este programa sustenta no cenrio americano e mundial. 23 Pela forte tradio cultural e literria deste pas, todo modelo de funcionamento do circuito literrio diferente daquele implantado h muitos anos, e responsvel por esta tradio, enfrenta naturalmente muitas resistncias.
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aluno torna-se capaz de procurar por si s exemplos na literatura universal que possam servi-lo (sic) na composio de seus prprios textos. Ao mesmo tempo, ao submeter-se a sesses de crticas frequentes, ele aprende a reconhecer em si mesmo o que autoral e nico, e a separar esse material do que apenas sentimentalismo e auto-piedade. Aprende a escrever como escritor srio, e no como um apaixonado pelas prprias ideias, cheio de amor-prprio. Aprende a utilizar-se de tcnicas e ferramentas comuns a todos os escritores24.
Portanto, sendo um ambiente propcio para a reflexo sobre a escrita, ,
contudo, na leitura que a oficina literria encontra sua principal ferramenta, o que vai
permitir quele que a frequenta o acesso e o domnio da tcnica. Uma oficina
literria no faz um escritor de algum que j no o era antes, mas pode
seguramente ensin-lo a ler melhor. E como vimos, a leitura est na base do
aprendizado da escrita. Ler e descobrir em certos textos (aqueles que so decisivos
para esse leitor em particular) a sua prpria voz, como quem l a si prprio; ler o que
poderia ter sido escrito por ele prprio, revelando o que j estava l, adormecido e
informe assim que uma oficina pode ajudar algum a se descobrir escritor.
Mesmo que a literatura continue sendo vista como uma arte essencialmente
solitria e o , feita quase em segredo, sem alarde, e o escritor como o
autodidata por excelncia, hoje em dia j no possvel fechar os olhos para o
crescimento do fenmeno das oficinas literrias.
por esta razo, aliada ao fato de que o que busco neste ensaio iluminar
alguns momentos-chave da minha formao como escritor que, entendo, poderiam
ser estendidos a outros escritores da minha gerao e de meu pas, que nas
pginas seguintes me estenderei mais demoradamente sobre a questo das oficinas
literrias, concentrando-me sobre a minha prpria experincia como participante de
oficinas, em particular a Oficina de Criao Literria da PUCRS, quando ento
descreverei em pormenores a sua dinmica.
24 TADDEI, Roberto. In: Pelo ensino da criao literria no Brasil.
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2.2.2.2.1. A (minha) experincia da oficina
Quando tento identificar o momento em que comecei a escrever, olho para
trs e vejo-me entre quartos de hotel de vrias cidades do interior do Rio Grande do
Sul, lendo freneticamente noite. Na poca, engenheiro recm formado, eu
trabalhava para uma empresa de construo civil e cumpria uma rotina semanal no
interior do estado como engenheiro de obras em visitas a canteiros distribudos por
vrias cidades gachas. Findo o dia de trabalho, no me restava outra coisa alm de
ir para o hotel e comear a ler o que para mim era uma bno. Vivi quase cinco
anos assim, um perodo que, analisado retrospectivamente, foi decisivo para o que
eu vim a fazer mais tarde. No escrevi nenhuma linha durante este perodo ainda
no escrevia, ainda no me passava pela cabea a ideia de escrever. Mas era
preciso um tempo de preparao para a escrita, e este tempo, sem o saber, eu vivi
ali.
Eram leituras aleatrias, sem nenhum critrio ou programa, que iam da
literatura filosofia, das biografias aos ensaios, e muitos contos e romances.
Fundamentalmente, hoje posso constatar e diz-lo sem constrangimentos, eram
leituras superficiais e incipientes. Mas ainda assim deixaram marcas no leitor
desaparelhado que eu era.
Por acaso, mais ou menos nesta poca li uma pequena nota num jornal de
Porto Alegre, numa destas sees que anunciam cursos e coisas afins, falando da
abertura de uma turma de Oficina Literria. O ano era o de 1991, e pela primeira vez
eu tomava conhecimento desta expresso Oficina Literria. O que seria? O termo
oficina, para mim, sempre esteve ligado mecnica de automveis. Soava estranho
v-lo associado literatura. No pensei duas vezes e decidi ir ver o que era afinal
uma Oficina Literria. Mais tarde eu percebi que a ideia de mecnica, ali, no era
nada descabida.
Funcionava em uma sala de aula emprestada ou alugada em um colgio do
bairro Menino Deus, em Porto Alegre. Chamava-se Alquimia da Palavra e era
organizada por Srgio Crtez, algum que havia passado recentemente como
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oficineiro25 por uma experincia de oficina literria na PUCRS ministrada pelo
professor e escritor Luiz Antonio de Assis Brasil.
O primeiro encontro serviu apenas para que Srgio (professor?, orientador?,
mestre?) explicasse aos cerca de quinze interessados que ali apareceram e que,
assim como eu, no faziam a mnima ideia do que se tratava, o que era, como
funcionava e para que servia uma Oficina Literria.
E o que ele disse foi que ao longo dos dois semestres de durao da oficina
ns nos encontraramos uma vez por semana, escreveramos textos que seriam
lidos e analisados em conjunto por todos ns, discutiramos as tcnicas de escrita,
leramos e tentaramos entender o que iramos ler. E um aspecto muito importante
como elemento motivador do grupo, espcie de objetivo de final de curso
organizaramos uma antologia com textos de todos os participantes com vistas a
uma publicao ao fim dos dois semestres. Ou seja, em um ano veramos o nosso
texto (e o nosso nome) impresso nas pginas de um livro. Isto soava como msica
encantada aos nossos ouvidos, e assim soa aos ouvidos de qualquer um que
acalenta em seu ntimo a ideia de tornar-se escritor. Todos, sem exceo.
O formato era praticamente o mesmo da a esta altura j consagrada (pelo
menos nos meios literrios, vim a saber mais tarde) Oficina da PUCRS, ou Oficina
do Assis, como comumente chamada aquela que hoje a mais importante oficina
literria do Brasil e tambm a mais slida e longa experincia nesta rea.
Um ano depois, terminado o perodo da Alquimia da Palavra onde escrevi
meus primeiros textos que viriam a ser publicados , submeti-me a um processo
seletivo para admisso, e fui aprovado, na Oficina do Assis.
Sem menosprezar a experincia na Alquimia da Palavra, minha primeira com
oficinas literrias, a participao na Oficina do Assis foi muito mais importante e
fundamental minha formao de escritor. E creio que assim tem sido para muitos
25 O termo, que rapidamente passou ao vocbulrio corrente utilizado naquele espao, servia para designar os participantes de uma oficina como alternativa a uma abordagem clssica, e indesejada, da forma tradicional de transmisso de conhecimentos que nos levaria a usar o termo alunos.
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outros escritores que hoje fazem parte daquilo que chamam de as novas geraes
da literatura brasileira. Trata-se de escritores surgidos nos ltimos dez ou quinze
anos no Brasil, que hoje publicam regularmente nas principais editoras do pas, so
traduzidos e representam legitimamente uma parcela da literatura contempornea
brasileira. E que apresentam uma singular e repetida caracterstica: a passagem em
algum momento de sua formao por oficinas literrias.
2.2.2.2.2. A Oficina do Assis
Um breve histrico
Embora no seja algo absolutamente novo no Brasil, foi nos ltimos quinze ou
vinte anos que a prtica das oficinas literrias experimentou um sensvel
crescimento. A demanda vem da parte de um pblico basicamente interessado em
lanar-se (ou pelo menos tentar lanar-se) em um projeto de escrita literria. Talvez
a resida em seu pblico a especificidade brasileira (ou americana, para ser
mais preciso, porque o modelo, como veremos, o dos Estados Unidos) em termos
de oficinas literrias: hoje em dia no Brasil a grande parte dos aspirantes a escritores
recorrem s oficinas literrias em busca de aprimoramento tcnico, ou de alguma
insero no meio literrio ou ainda de uma sistematizao de conhecimentos
intudos ou aprendidos de maneira anrquica em uma formao solitria e
autodidata.
A maioria das oficinas literrias so ainda cursos organizados fora de um
contexto institucional e acadmico, fruto de iniciativas pessoais ou de centros
culturais cuja flexibilidade no tratamento de questes ligadas escolaridade
(currculos, ttulos, avaliaes, etc) corresponde melhor ao que buscado pelo
pblico destas oficinas.
Porm, algumas experincias levadas a cabo dentro de um quadro
universitrio so dignas de considerao. Dentre elas, a Oficina de Criao Literria
da PUCRS, ou a Oficina do Assis.
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Antes, porm, de me debruar sobre o funcionamento da Oficina do Assis,
penso ser importante contextualizar a experincia desta oficina no panorama
brasileiro, situando-a em relao a outras experincias menos duradouras mas que
serviram para abrir o caminho at o estgio atual. Se hoje no Brasil os programas de
Escrita Criativa nas universidades no so to largamente difundidos como o so,
por exemplo, nos Estados Unidos, onde praticamente todas as grandes
universidades tm seus programas de Creative Writing , existem experincias
mais ou menos pontuais que vo mesmo alm do que praticado nos Estados
Unidos, como, por exemplo, a aceitao de uma fico como tese de doutorado.
A primeira experincia com escrita criativa no Brasil data de 1962, na
Universidade de Braslia, quando o escritor Cyro dos Anjos foi convidado a realizar
uma oficina nos moldes dos workshops americanos. O curso era aberto a alunos
de vrias reas, tanto queles com veleidades literrias e dominando algum
conhecimento terico quanto aos outros que buscavam apenas melhorar suas
capacidades de expresso escrita. A experincia durou doze anos.
Em 1966, foi criada na Universidade Federal da Bahia, uma Oficina de
Criao Literria , primeiro como atividade extracurricular, depois como disciplina
opcional (desta experincia resultou a publicao de um romance escrito
coletivamente). Houve ainda nos anos 60 uma experincia na Universidade Federal
do Rio de Janeiro, mas a partir da dcada de setenta que as oficinas comeam a
se multiplicar nas universidades brasileiras. Apenas para citar algumas
universidades que nos anos 70 e 80 desenvolvem experincias nessa rea, temos :
Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Marlia (SP) 1972; Faculdade de
Filosofia, Cincias e Letras Moura Lacerda (Ribeiro Preto, SP), 1975; PUC-RJ, sob
a orientao do escritor e crtico Silviano Santiago, tambm em 1975; Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, em 1977; Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, em 1978; Universidade Federal do Esprito Santo, em 1981; Faculdade de
Comunicao Hlio Alonso (RJ), em 1981; Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras
de Cabo Frio (RJ), 1982; Universidade Gama Filho RJ, em 1983.
Porm, em 1985 que se d incio a Oficina de Criao Literria oferecida
pelo Curso de Ps-Graduao em Letras da Faculdade de Letras da PUCRS. Aberta
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no s ao pblico acadmico mas tambm s pessoas no matriculadas em cursos
da universidade, seus nicos pr-requisitos so o interesse pela literatura, o desejo
de escrever e alguma familiaridade com este domnio.
Esta oficina funciona, portanto, h 27 anos de maneira ininterrupta. Desde o
seu incio ministrada pelo escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, ao qual est
indissoluvelmente associada. Autor de 18 livros, romancista premiado e traduzido
em vrios pases, Assis Brasil hoje reconhecido no pas no apenas por sua
produo literria, mas tambm por sua trajetria como ministrante da mais
importante oficina de criao literria do pas.
Inicialmente a disciplina era oferecida como curso de
extenso universitria26, mas depois de alguns anos passou a integrar o currculo
dos cursos de graduao e de ps-graduao em Letras, embora no tenha perdido
o seu carter aberto, ou seja, continua a receber tambm pessoas de fora da
universidade.
Devido ao crescente nmero de candidatos, desde 1988 realizado um
processo de seleo para fins de admisso ao curso. Atualmente o curso recebe em
torno de 100 candidaturas a cada ano e o ministrante trabalha com apenas um
grupo de no mximo 16 alunos ao longo de um ano. Para a seleo o candidato
deve apresentar trs textos de fico em prosa e responder a um breve questionrio
que serve para medir o seu grau de interesse na escrita e na leitura.
Recentemente o Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Letras da
PUCRS abriu uma rea de Concentrao prpria em Escrita Criativa. Em 2006 foi
apresentada a primeira dissertao de Mestrado nesse domnio, quando a Escrita
Criativa ainda fazia parte da rea de Concentrao em Teoria da Literatura. A
dissertao, necessria para a obteno do diploma de Mestre em Letras, foi
composta de um livro de fico de autoria do aluno, seguido de um comentrio
terico. O modelo , sem dvida, o dos Masters of Fine Arts americanos, onde a
apresentao de um trabalho ficcional ao final do curso d direito ao diploma.
26 O que equivaleria a um Diplme Universitaire (DU) no sistema francs.
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Tal modalidade agora foi estendida ao nvel do doutorado na PUCRS, e
nesse quadro que o presente trabalho se insere.
Voltando oficina
Em 2010, enquanto cursava as disciplinas do doutorado tive a oportunidade
de acompanhar, na qualidade de ouvinte para recolher elementos para este estudo,
os dois semestres da Oficina de Criao Literria, agora oferecida como disciplina
corrente dos cursos de Ps-Graduao em Letras da PUCRS.
Foi a ocasio para entrar em contato outra vez com os procedimentos da
mesma oficina que cursei em 1992, quando ento eu dava meus primeiros passos
na tentativa de seguir uma trajetria de escritor.
Trs livros mais tarde, um deles traduzido e publicado no exterior, com vrias
outras publicaes avulsas fora e dentro do Brasil e com alguma estrada percorrida
como escritor, meu objetivo j no era o mesmo. Porm, interessado agora em
analisar como as oficinas literrias podem ser teis na formao dos escritores, eu
pude reconhecer facilmente nos jovens oficineiros que acompanhei durante estes
dois semestres, as mesmas expectativas que eu tinha na poca e, igualmente, o
grande efeito que a passagem pela Oficina do Assis representa em termos de
motivao e de orientao da carreira.
A oficina se aperfeioou, o mestre Assis Brasil est mais sbio e experiente,
mas os princpios continuam os mesmos. E os resultados, quando olhamos para o
trabalho destas novas geraes de escritores compostas por gente com
passagens pela oficina, na maior parte dos casos que de uns tempos para c vem
renovando a cena literria brasileira, so cada vez mais consequentes.
A publicao de uma antologia no ano seguinte ao curso, o que realizado
desde 1988, ratifica o carter profissionalizante da Oficina do Assis. E talvez a
esteja a sua principal caracterstica : ela voltada principalmente para pessoas que
querem seguir a carreira de escritor, no, claro, no sentido de fazer disso o seu
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meio de vida, mas no sentido de continuar escrevendo, publicando e buscando uma
insero no sistema literrio brasileiro.
Isto confirmado quando se investiga a respeito das motivaes que levam
as pessoas a buscar a Oficina do Assis. No caso particular deste grupo de 2010,
cujos participantes eu tive a oportunidade de entrevistar, quase todos responderam
que se inscreveram na oficina porque tm um projeto de se lanarem como
escritores. Muitos acrescentaram ainda que o nmero de ex-alunos da oficina que
hoje so escritores reconhecidos na cena literria brasileira e os resultados obtidos
por eles em suas respectivas trajetrias literrias foram determinantes para a
escolha desta oficina em particular. Existem hoje mais de 170 livros publicados por
ex-integrantes da Oficina do Assis, sendo que 14 destes encontraram acolhida
tambm fora do Brasil, tendo sido traduzidos e publicados em pases como Portugal,
Espanha, Itlia, Alemanha, Argentina, Inglaterra, Estados Unidos, Holanda, entre
outros.
Esta uma das razes porque nos